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Cem anos do Três ensaios sobre a teoria da sexualidade a sexualidade infantil e seus problemas Luiz Augusto Celes Resumo Este artigo debruça-se sobre o esquecimento da sexualidade na psicanálise contemporânea, mostrando o que de revolucionário ela rejeita da descoberta da sexualidade infantil na obra de Freud. O marco dos 100 anos de publicação da primeira edição do Três ensaios sobre a teoria da sexualidade é tomado como motivo suficiente para a sua comemoração, sugerindo-se que em 1905 Freud já indicara o que de mais desconcertante a psicanálise teve a mostrar e trazer à consideração dos psicanalistas. Caracteriza-se com largos traços os Três ensaios , indicando o problema que ele circunscreveu e para o qual buscou solução, o da sexualidade infantil. Conclui-se com o entendimento do quê a psicanálise contemporânea em seu senso geral veicula para solução para o impasse introduzido pela sexualidade infantil. Palavras chaves: psicanálise contemporânea; teoria da sexualidade; sexualidade infantil; problemas.

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Cem anos do Três ensaios sobre a teoria da sexualidade

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Cem anos do Três ensaios sobre a teoria da sexualidade –

a sexualidade infantil e seus problemas

Luiz Augusto Celes

Resumo

Este artigo debruça-se sobre o esquecimento da sexualidade na psicanálise contemporânea,

mostrando o que de revolucionário ela rejeita da descoberta da sexualidade infantil na obra

de Freud. O marco dos 100 anos de publicação da primeira edição do Três ensaios sobre a

teoria da sexualidade é tomado como motivo suficiente para a sua comemoração,

sugerindo-se que em 1905 Freud já indicara o que de mais desconcertante a psicanálise

teve a mostrar e trazer à consideração dos psicanalistas. Caracteriza-se com largos traços

os Três ensaios, indicando o problema que ele circunscreveu e para o qual buscou solução,

o da sexualidade infantil. Conclui-se com o entendimento do quê a psicanálise

contemporânea em seu senso geral veicula para solução para o impasse introduzido pela

sexualidade infantil.

Palavras chaves: psicanálise contemporânea; teoria da sexualidade; sexualidade infantil;

problemas.

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Cien años de Tres Ensayos de Teoría Sexual - la sexualidad infantil y sus problemas.

Luiz Augusto Celes

Resumen:

Este artículo se inclina sobre el olvido de la sexualidad en el psicoanálisis contemporáneo,

mostrando lo que de revolucionario ella rechaza del descubrimiento de la sexualidad

infantil en la obra de Freud. El marco de los cien años de publicación de la primera edición

de Tres Ensayos de Teoría Sexual es tomado como motivo suficiente para su celebración,

sugiriéndose que en 1905 Freud ya había indicado lo que de más desconcertante el

psicoanálisis tuvo a mostrar y a traer a la consideración de los psicoanalistas. Se

caracteriza con grandes trazos los Tres Ensayos, indicando el problema que él

circunscribió y para el cual buscó solución, el de la sexualidad infantil. Se concluye con la

comprensión de qué el psicoanálisis contemporáneo, en su sentido general, difunde como

solución para la encrucijada introducida por la sexualidad infantil.

Palabras-clave: psicoanálisis contemporáneo; teoría sexual; sexualidad infantil;

problemas

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Cem anos do Três ensaios sobre a teoria da sexualidade –

a sexualidade infantil e seus problemas

Luiz Augusto Celes

No ano atual, comemoram-se 100 anos da publicação de diversas obras freudianas1 que

não somente marcaram importantes balizamentos do progresso da psicanálise, em Freud e

além dele, mas que também se constituíram (e se constituem até hoje) obras

particularmente relevante para a apreensão da psicanálise, em seu sentido mais radical,

como tratamento, como pesquisa e como teoria do psiquismo. Embora um ou outro evento

rememore o aparecimento dessas idosas obras de 100 anos, de uma maneira geral não se

encontrou alardes ou grandes festividades. Para tomar ligeiramente alguns exemplos: 44º

Congresso da IPA, realizado no Rio de Janeiro (julho/2005), teve como tema “Trauma:

novos Desenvolvimentos em Psicanálise”; o XX Congresso Brasileiro de Psicanálise, a ser

realizado em Brasília (novembro/2005), tem por tema “Poder, Sofrimento Psíquico e

Contemporaneidade”; a Reunião Lacanoamericana de Psicanálise de Florianópolis

(outubro/2005), não tem título específico, nem consta em sua convocatória referências às

obras freudianas de 1905; e o IV Encontro Latino Americano dos Estados Gerais da

Psicanálise (nov/2005), para o qual este trabalho está sendo apresentado, também não se

reúne em torno de tema específico, havendo entre os trabalhos até hoje divulgados alguns

que fazem referência a uma ou outra das obras freudianas de 1905. Isso somente cuidando

de citar eventos psicanalíticos de caráter nacional e internacional ocorridos no Brasil.

Diante da contemporânea psicanálise, que se propala como modificada, as obras de

1905 permanecem, em grande parte, obras esquecidas, de valor quase exclusivamente

"arqueológico", – velhas peças empoeiradas nas mais recentes bibliotecas psicanalíticas.

Ou, por vezes, são re-visitadas, um tanto às escondidas, como fizesse vergonha ter-lhes

apreço de ensinamentos efetivos e de serem tomadas como valor de recordação das

radicais descobertas de Freud e de seus efeitos inovadores e desconcertantes.

1 São elas: Sobre a psicoterapia (1905a); Os chistes e sua relação com o inconsciente (1905c); Três ensaiossobre a teoria da sexualidade (1905d); Fragmento da análise de um caso de histeria (1905e [1901]).

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Compreendo encontrar retratado nas então jovens obras de 1905, um Freud

particularmente ousado. Audácia que talvez lhe conviesse como auxílio em sua política de

difusão desta disciplina, a psicanálise, recém constituída como tratamento e, pari passu,

como teoria, na sua forma mais essencial, como metapsicologia. Hoje se pode avaliar que

lhe parecia convir tamanha coragem em se opor às correntes médicas majoritárias e ao

senso comum de sua época, ao mesmo tempo anunciando e afirmando sua diferença que

vai além do aspecto teórico-prático e de política de difusão da psicanálise – parece tratar-se

de afirmação social, acadêmica (embora Freud se afastara desse meio), criativa (e

narcisista), mas como diferença, como o que destoa, e muitas vezes declaradamente como

oposição – embora Freud não renunciasse ao sonho de elevar a psicanálise como

movimento abrangente, que merecesse o respeito e a difusão das grandes descobertas

científicas. Essas são impressões que me alcançam após trinta anos de contato com a

psicanálise, sabendo de minhas restrições quanto ao conhecimento biográfico e histórico

para plenamente fundamentá-las e sustentá-las. Meu interesse aqui é outro: o de uma

visitação ao velho senhor que são o Três ensaios sobre a teoria da sexualidade, obra que

deve ser tomada em sua condição de teoria recém-nascida da sexualidade.

Alguém já disse que após 1895, teríamos, a cada ano, de nos dedicarmos aos

festejos de significativas obras de Freud, como justificando esse esquecimento

(recalcamento?) do Três ensaios. Embora não me oponha ao valor, repetidamente

inaugural, das obras de Freud, o Três ensaios carrega o peso de uma particularidade

inovadora somente comparável à Interpretação dos sonhos, e também somente a ela

comparável em ousadia e desconserto. Mas, enquanto a ousadia de uma metapsicologia e o

desconcerto provocado pelo conceito de "inconsciente" podem em certo sentido ser

assimilados aos meios científicos e filosóficos correntes; o fundamento notadamente sexual

das constituições subjetivas e o desregramento sexual como norma abalam as mais

cotidianas crenças do privilégio da autoconservação como sentido vivenciado dos

comportamentos, alcançando questionar toda boas e primeiras intenções. No entanto e

como já fizeram notar vários psicanalistas, foi e é justamente esse aspecto da psicanálise

freudiana o mais rejeitado e abandonado – e, segundo Freud, o que encontrou maior

resistência.

Tendo passado o tempo em que a questão sobre o fundamento da sexualidade e seu

predomínio na compreensão das estruturações psíquicas causava o maior motivo das

dissidências no movimento psicanalítico, agora que majoritária e frontalmente se opõem à

descoberta freudiana da sexualidade em sua especificidade, a questão para o movimento

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psicanalítico se coloca como sendo a da normalização da psicanálise ela mesma, de sua

adaptação às demandas contemporâneas do atendimento aos infelizes casos da inadaptação

ao mundo contemporâneo caracterizado pela diversidade estandardizada na forma da

produção e do consumo. Reanimam-se sob novas formas as concepções do trauma (mais

ou menos inevitável – como, aliás, sugere o tema do 44º Congresso da IPA) considerado

como quebra ou fratura no "ambiente" que teria a tarefa de sustentar e assegurar, no

sentido mais imediato, a autoconservação dos sujeitos. Por outras vezes, o ambiente fica

entendido tendo a tarefa da própria constituição dos sujeitos – diferença entre sustentação e

constituição que para este argumento introduz pouca deferência. Para implementar esses

novos desenvolvimentos do trauma, grande parte da psicanálise contemporânea, senão

mesmo o que mais significativamente se entende como tal, sequer necessitou de abandonar

o inconsciente, como o conceito fundamental de uma clivagem nos sujeitos. Absorveram-

se as diversas e sofridas vicissitudes psíquicas às questões da boa adaptação do "ambiente",

diante do que se entende o inconsciente, grosso modo, como o resto não adaptado: como

resto precisamente, e não mais como fundamento ou a sustentação da parte visível do

iceberg, com o qual Freud uma vez comparou o psiquismo. Com isso, o inconsciente-resto

descaracteriza-se de sua natureza sexual, ou, pelo menos, descaracteriza-se como efeito da

sexualidade em conflito. Diferentemente de Freud que se empenhou em elevar ao conceito

a sexualidade, essa psicanálise, mais convém colocá-la no plural – ainda que uma

pluralidade bastante homogeneizada –, essas psicanálises contemporâneas recolocaram a

sexualidade em seu "devido lugar" de uma função sujeita a fases, desenvolvimentos,

conflitos, retrocessos conseqüências da inadaptação que rigorosamente permanece

compreendida como alheia a ela mesma – o que significa também dizer que a sexualidade

perdeu seu inerente sentido traumático. Para isso, em algumas teorizações, sequer se

desprezam a pulsão, o Édipo e a castração, mas são retomadas secundariamente como

funções egóicas em meio a outras, ou funções de self – funções de uma totalidade e síntese,

afinal re-encontrada. Nessa perspectiva, à psicanálise dita contemporânea parece ter-se

reajustado a sua interpretação funcionalista. Os efeitos dessas posturas mais ou menos

homogeneamente adotadas são vários.

No miúdo das sessões cotidianas, privilegiam-se as situações do aqui e agora dos

vínculos, do enquadre e do ambiente físico dos consultórios de psicanálise. Pelo que se

pode apreender do pouco que se encontra exposto, a análise tende a ser exercida como uma

interpretação do jogo do vínculo entre terapeuta e paciente – sendo o vetor desse vínculo

predominantemente tomado pelos analistas no sentido do paciente para o terapeuta, mesmo

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quando consideram o que se fez conhecido como sentimentos contratransferenciais.

Também a índole voltada para a reconstrução, ou para a regeneração das adaptações

necessárias para a boa re-instauração do ego ou do self se faz sobremaneira presente: nova

chance, novo nascimento... A psicanálise termina diferenciada de outras formas da

psicoterapia não mais pelo que sustenta ou pelo que a fundamenta, mas sim pelo

cumprimento de certas normas de tempo, freqüência e posições relativas de analista e

analisando.2 Isso significando em essência, como se percebe, verdadeira indiferenciação

entre psicanálises e psicoterapias.

Nas conversas cotidianas entre analistas e mesmo na difusão midiática, não raro a

psicanálise é oferecida como panacéia: remédio para todos os sofrimentos, psíquicos ou

quase tais; remédio para as inadaptações escolares, para os ciúmes e invejas entre as

crianças, que parecem exagerados aos olhos daqueles que se propõem satisfazê-las;

remédio para as rivalidades entre irmãos, para as fantasias mais ou menos expressas em

atos e brincadeiras, para os sentimentos de ódios, para os desregramentos etc. Não somente

a psicanálise se debruça cada vez mais atentamente sobre os processos concretos de

constituições ontogenéticas, mas também tomam essas constituições como seus objetos

privilegiados, em concepções de intervenção precoce, de auxílio na educação e boa

adaptação dos pequenos filhotes humanos, ou, menos concretamente, tomam como objeto

a “criança” no interior de cada adulto – e sugiro que convém uma distinção essencial entre

“criança” e infantil.

Voltando ao problema que propriamente me mobiliza, ou seja, o do movimento de

desmerecimento da desconcertante proposição freudiana expressa no Três ensaios sobre a

teoria da sexualidade, retomo o que nela me parece mais crucial sob a perspectiva do

assentamento do sentido da psicanálise, mas também de seu fundamento de compreensão

dos modos e processos de subjetivação. Trata-se nomeadamente da sexualidade infantil.

2 São característicos a respeito a maior parte dos textos reunidos em Green (2003), alguns afirmando taiscondições normativas de maneira completamente explicita. Essa obra bastante significativa da culturapsicanalítica contemporânea aponta com certeza a diversidade que, não obstante, permanece no pensamentopsicanalítico. Isso é absolutamente claro: ninguém aqui pretende ser pensador único da psicanálise freudianaem seu fundamental sentido, por muitas vezes revisitado e reinterpretado. É mesmo a diversidade que nospermite tomar partido, re-elaborar e continuar pensando. Neste artigo estamos nos esforçando para delimitarcerta concepção que grosso modo adquiriu não as marginais, mas as melhores e muitas significativasintenções da psicanálise na contemporaneidade. Essa concepção grosso modo me parece a mais próxima daconcepção da psicanálise que se divulgou e alcançou entendimento, sintomaticamente, dentro da psicologia eda psiquiatria – disciplinas com respeito às quais Freud viu a psicanálise distanciar-se. Com respeito àpsicologia dita acadêmica ou clínica, o caso é sobremaneira curioso, cujo alguns dos aspectos desenvolvemosem Celes (1988). Lá, uma significativa referência bibliográfica que explora essas característicasaproximações entre a psicanálise e a psicologia é indicada.

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Embora fundamento da psicanálise freudiana, a apreensão e a sistematização da

sexualidade na teoria psicanalítica não encontraram caminhos fáceis – talvez essa

dificuldade contribua, desde aquela época, para a rejeição dos princípios da sexualidade na

constituição e estruturação psíquica. Já em 1900, à época do tratamento de Dora, Freud se

queixava com Fliess a respeito de suas próprias dificuldades para uma síntese da teoria da

sexualidade. Em 1905, a forma de “ensaios”, na qual foram publicadas as primeiras

aproximações teóricas sobre a sexualidade, renova o sentido da dificuldade encontrada por

Freud na tarefa de apreender tematicamente o que, não obstante, já se constituía o alicerce

de sua compreensão da neurose e do tratamento psicanalítico. Os acréscimos constantes

nas sucessivas edições dos Três ensaios, caracterizados por substantivos e inovadores

temas e problemas, sem desfazer-se do que já havia sido expresso nas edições anteriores,

também revelam as dificuldades da síntese almejada da sexualidade como conceito na

teoria da libido.

Por outro lado, a insistência de Freud testemunha o papel privilegiado da

sexualidade como fundamento e origem dos processos de subjetivação, do qual papel

Freud parece não abrir mão, sob pena – talvez hoje se possa entender – de a psicanálise

perder sua especificidade como trabalho de tratamento. No entanto, os seguidos acréscimos

ao Três ensaios, mantendo-se não obstante o que já se publicara, ganham importância para

salientar que eles não se permitem compreender nem como puras progressões do

pensamento de Freud – que estaria, se assim fosse, sendo constituído em sínteses cada vez

mais completas sobre a sexualidade –, nem como simples redistribuição e aprimoramento

da compreensão freudiana estabelecida em 1905. A experiência freudiana com a teoria da

sexualidade parece apontar para a resistência da sexualidade em ser elevada ao conceito. A

experiência da sexualidade em análise, que parece ter sido imediatamente apreendida por

Freud, não se fez dócil à tematização, isto é, à sua teorização além de sua apreensão

fenomenológica. Tarefa de teorização da qual Freud jamais se esquivou, inquietando-se

com atitudes simplesmente descritivas.

O que, desde a origem, atravessa o empenho de teorização da sexualidade parece

ser o que está expresso já na primeira edição do Três ensaios, a saber, o caráter infantil da

sexualidade. Sendo esse caráter o que Freud inúmeras vezes sustentou no âmago de nossas

constituições, as mais recalcadas, e a favor do que tomou posição contra sua destituição.

Revisitar os Três ensaios no que ele foi em 1905, como se depreende, não é tarefa

fácil. Trata-se de limpar o texto, separando suas partes, operação que já nos foi adiantada

por Strachey. Mas trata-se, sobretudo, de ler 1905, apesar das elaborações subseqüentes,

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expressas ou não nas edições posteriores dessa obra. Afinal, constitui-se missão

impossível, uma vez que não está em nosso alcance ler Freud desprevenidamente, como se

o encontrássemos pela primeira vez. No entanto, um trabalho de contextualização ajuda

nessa ambiciosa leitura.3 Aqui não se trata de renovar ou completar estudos de

contextualização, mas de diretamente indicar minha leitura do Três ensaios de 1905, a

modo de revitalizar o que penso lhe ser essencial, desconcertante e um tanto revolucionário

– sendo talvez esses motivos suficientes para a rejeição ou simplesmente o esquecimento

da sexualidade na psicanálise contemporânea, acontecimento que, é importante lembrar,

não é de hoje que se têm notícias.4

O primeiro dos Três ensaios sobre a teoria da sexualidade (As aberrações sexuais)

possui um caráter predominantemente fenomenológico. Freud adota uma atitude descritiva

para alcançar a variabilidade e a disseminação das “aberrações” sexuais, especificando-as

quanto à inversão da escolha sexual, quanto à imaturidade dos comportamentos sexuais,

quanto à incerteza e variabilidade dos objetos sexuais, quanto às fixações em objetos e

experiências que se repetem, quanto à descentralização dos órgãos genitais como os meios

mais adequados do prazer sexual etc. A partir do item “(4)”, algum ensaio teórico começa

a se fazer presente, na aproximação entre perversão e psiconeurose, na conceituação de

zonas erógenas e de componentes da pulsão e numa primeiríssima aproximação ao caráter

infantil da sexualidade. A seqüência do argumento de Freud nesse primeiro ensaio parece

inverter a aproximação de sua descoberta havida no tratamento das psiconeuroses. Já em

1897, na famosíssima carta a Fliess de 21 de setembro, onde Freud anuncia o abandono de

sua teoria traumática, ele nomeia o caráter fantasioso da sexualidade, aproximando-se da

concepção infantil da sexualidade exatamente pelo negativo da perversão. A concretude –

autorizemos-nos a assim afirmar – da perversão no Três ensaios induz, além do caráter

descritivo do primeiro ensaio, à adoção de certo parâmetro ideal da sexualidade, que seria a

sexualidade genital e adulta, com referência ao que justamente se descrevem as

“aberrações” – mesmo se entendendo que Freud tenha adotado uma tal estratégia para

chegar à conclusão do desregramento da sexualidade como a norma. Norma essa que não

significa nenhuma normalidade da sexualidade, mas a sua base, a sua origem como

sexualidade infantil. De qualquer maneira, a apreensão desse primeiro ensaio não parece

3 Alguma coisa dessa contextualização, antecipei-a num estudo sobre o caso Dora (cf. Celes, 1995)4 Muito a propósito, vejam-se as críticas de Fairbairn (1980/1952), cuja atualidade se torna inconteste, diantede obras como Grotstein, J.S. e Rinsley, D.B. (2000), onde se encontram releituras desse autor realizadas porprincipais psicanalistas contemporâneos. Também significativa quanto à sua atualidade é o texto deFigueiredo (2003).

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simples precisamente por estes dois aspectos: devido à passagem do descritivo para o

teórico; e devido à adoção do ideal sexual para precisamente desfazê-lo. Nesse ensaio,

encontramos Freud muito mais envolvido numa política de convencimento que numa

postura do desmanche efetivo de qualquer normalidade teórica. Do ponto de vista teórico,

com certeza esse não é o mais desconcertante ensaio dessa obra.

O último dos Três ensaios reafirma, pelo menos em parte, o aspecto da

normalização da sexualidade, embora não desfaça completamente o que há de inovador e

desconcertante nessa obra. “As transformações da puberdade” no mesmo passo em que

retoma os conceitos e as inovações do ensaio que o precede, sobre a sexualidade infantil,

traz para ela a possibilidade de sua normalização, ainda que essa normalização passe para

uma condição secundária, isto é, como fruto de um desenvolvimento, efeito de certas

confluências da sexualidade infantil. No entanto, o caráter genital da puberdade –

responsável inclusive pela síntese e pelas transformações por que passa a sexualidade

infantil em direção à sexualidade adulta – concede certo ar de naturalidade ao

desenvolvimento da sexualidade, estando o seu sentido voltado para a genitalidade: esta se

constituindo a meta da sexualidade. A genitalidade nesse ensaio, no que tem de 1905, é

pensada por Freud positivamente. É o que há de diferença quando introduz,

posteriormente, o conceito de castração, que re-atualiza a genitalidade numa forma

negativa. Para dar sustentação teórica a essa última virada, foi essencial o trabalho

intitulado “A organização genital infantil: uma interpolação na teoria da sexualidade”, de

1923, onde, em resumo, Freud estende à genitalidade o caráter infantil da sexualidade,

dando-lhe o estatuto de uma organização libidinal parcial. Pode-se sugerir que Freud então

iça para o infantil a genitalidade (parcial), tirando-lhe o remanescente privilégio de síntese

da sexualidade, de sua normalização. A partir de então é a castração – forma negativa da

genitalidade – que assumirá a função “sintética” da sexualidade, cujas “sínteses” se

expressam nas diversas estruturações psíquicas que se tornam possíveis de serem

entendidas, incluindo-se aí, na visão freudiana, também a sexualidade feminina e o

desenlace feminino da sexualidade. Com o “complexo de castração” – o termo “complexo”

parece fundamental para Freud, pois aponta o caráter psíquico do que sintetiza, do que

reúne, ainda que permaneça uma síntese e reunião falhas – a sexualidade encontra o ponto

máximo de sua desnaturalização na teoria de Freud. Embora tenha feito o propósito de

manter esta análise ao circunscrito no texto de 1905, esta incursão à castração e à

genitalidade infantil tem o objetivo de, por contraste com certos aspectos do terceiro ensaio

de 1905, apontar o peso que ganha em Freud a qualidade de infantil da sexualidade. O

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terceiro ensaio, na versão de 1905, parcialmente recobre aquilo que se impõe com toda

força no segundo dos três ensaios.

“A sexualidade infantil”, o segundo ensaio do Três ensaios sobre a teoria da

sexualidade, concentra, segundo minha avaliação, o mérito inovador da obra. É verdade

que o “Sinal do caráter infantil da sexualidade”, último item do primeiro ensaio, traz

anunciado o valor da inovação (revolução) que Freud introduz com essa exemplar obra.

Mas o segundo ensaio também traz a inovação teórica mais radical de todos os três ensaios.

Menos que se deter sobre a descrição da sexualidade infantil, ela é teorizada como parcial,

trazendo como conseqüência diversas conceituações, ou firmando-as de modo mais cabal:

as zonas erógenas, as fases, o objeto, o objetivo da sexualidade infantil são introduzidos

tematicamente. O esforço de Freud por conceituar a sexualidade infantil, e, com isso, o

infantilismo da sexualidade, parecem mostrar a importância que a sexualidade encontra no

edifício psicanalítico. Se a experiência psicanalítica de Freud já o havia permitido colocar a

sexualidade no âmago das psiconeuroses, o Três ensaios trouxe a oportunidade inicial de

situá-la no centro e no fundamento das estruturações psíquicas de um modo geral, o que se

deu precisamente com a teoria da sexualidade infantil.

No entanto, essa teoria não se mostrou imediatamente apaziguadora das

inquietações freudianas a seu respeito da sexualidade infantil. E isso se verifica não

somente nos acréscimos e modificações que posteriormente se produziram na teoria da

libido. A formulação da sexualidade infantil no Três ensaios já fora resultado de um longo

amadurecimento, cujas questões e problemas podem ser encontrados na correspondência

de Freud com Fliess (Masson, 1986), e que alcançaram no caso Dora uma primeira

publicação (Freud, 1905e – até mesmo se poderia afirmar que esse caso se constituiu o

primeiríssimo ensaio da “teoria” da sexualidade, se tomado nesse aspecto). O empenho que

conduziu à articulação da sexualidade infantil foi profundamente impulsionado pelo

aspecto de problema que ela introduziu na compreensão das psiconeuroses, no seu

tratamento e na sua teoria. A sexualidade infantil, na forma da fantasia que se apresentara

nas análises, teve o impacto inicial de ruptura da compreensão já solidificada por Freud

nos primeiros trabalhos de psicanálise – marco dessa ruptura é a já citada carta a Fliess de

21 de setembro de 1897. A fantasia, animada pela sexualidade infantil, opôs-se à teoria

traumática (que Freud designou “neurótica”), então porto seguro da prática analítica e da

teoria das psiconeuroses. Sabe-se que o desânimo de Freud à época foi grande, pois essa

ruptura deixou sem explicações o fundamental processo de defesa (recalcamento) que

sustentava a teoria das psiconeuroses. O “achado” da sexualidade infantil nas fantasias que

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encenavam essa sexualidade não foi inicialmente um achado de solução. Ao contrário,

apresentou-se como um problema a ser resolvido, em torno do qual haveria de se erigir

uma outra teoria das neuroses, ou, dito de maneira mais ampla, uma outra teoria das

estruturações psíquicas. Dessa vez, mais abrangente, não se limitando à compreensão de

desenvolvimentos psicopatológicos. A universalidade da sexualidade infantil permite a

consideração das constituições psíquicas, dos modos e processos de subjetivação, tornando

os destinos psicopatológicos casos particulares, isto é, formas de estruturações, dentre

outras possíveis. Com isso, os chamados casos psicopatológicos não ganham distâncias da

suposta normalidade: uns e outros seriam tomados como destinos da sexualidade infantil,

submetidos, segundo Freud, a determinações constitucionais e acidentais.

Com essa radical mudança, estando Freud impossível de escapar de seus próprios

“achados” clínicos (como se costuma dizer), a chamada época de ouro da psicanálise

encontra seu fim, superada por alguma coisa muito menos esperançosa: as estruturações

dos sujeitos elas mesmas se fazem objetos da psicanálise. Uma certa abordagem de Lacan,

lida não me lembro mais aonde, que parafraseio, revela, à minha compreensão, toda

dramaticidade (talvez tragédia) da história a partir de então da psicanálise, pois: do que se

trataria quando se trata da cura do sujeito. Como tratar a submissão psíquica à sexualidade

infantil?

No entanto, a sexualidade infantil impõe desde então outra questão à psicanálise,

que é a questão pela consideração dos destinos humanos (individuais e sociais), tomados

de uma maneira geral, como determinados por sua perversidade e não simplesmente por

influências dos meios ou situações específicas. É claro que aqui estamos discutindo muito

rapidamente a natureza dessa apropriação da perversão e das chamadas influências do

meio, aliás, rigorosamente falando, nem a estamos discutindo. O caráter dessas causações e

determinações é tarefa que também se põe à psicanálise desde Freud. O que aqui interessa

é apontar que entre as causas chamadas por Freud constitucionais ou acidentais, sejam elas

tomadas como adquiridas na experiência ontogenética ou filogenética, ou em ambas, sejam

elas suplementadas pelos meios nos quais os sujeitos se constituem, sejam tomadas como

tendo o caráter “metabiológico”, como sugere nomear Green (2000) a chamada e

contestada fundamentação biológica da sexualidade na obra de Freud, sejam enfim os

arranjos que se queiram dar a isso – inclusive o arranjo, bem ao estilo freudiano, de

entender como mal formulada a questão –, a psicanálise teve, desde então, de enfrentar o

crucial problema antropológico da natureza psíquica dos humanos, dado que a sexualidade

infantil e o infantilismo da sexualidade se afrontavam com as mais sedimentadas e valiosas

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crenças da modernidade sobre a autonomia, a auto-suficiência e os fins de autoconservação

dos atos, comportamentos e atitudes dos homens. Também assim a psicanálise solapa as

promissoras soluções para os sofrimentos humanos e para seus mal-estares.

O esforço da psicanálise contemporânea de re-introduzir a questão traumática sob

novos desenvolvimentos – como sugere o tema do 44ª Congresso da IPA – pode ser

entendido como uma resposta (afinal nem tão atual quanto se supõe) ao problema

introduzido pela sexualidade infantil, como acima esboçamos. Nos novos

desenvolvimentos não se torna importante o aspecto da sexualidade no trauma, não se

considera relevante a sua natureza sexual, mas a concretude traumática que, sendo sexual

ou não, colocaria em questão a autoconservação (física ou psíquica) do sujeito que se

constitui. A inadaptação do meio às necessidades da criança – que na forma da perversão

paterna, fora abandonada por Freud –, retorna como uma espécie de “perversão” psíquica

do meio – da mãe, do pai ou do casal parental – nas figuras, por exemplo, do objeto sempre

insuficiente para atender às necessidades egóica (Fairbairn, 1980/1952), na condição da

mãe que não é suficientemente boa (Winnicott5), ou ainda na metáfora – aliás, bastante

concreta – da “mãe morta” sugerida por Green (1988). A resposta assim formulada que

parece se fazer consensual àquele problema assemelha-se à responsabilização do meio –

não fosse sua insuficiência, ainda que considerada inescapável, a história seria outra, para

os destinos humanos, individuais e coletivos.6

5 É sobejamente conhecido o tema winnicottiano da mãe suficientemente boa, sendo várias as obras em quetrata desse tema.6 É curioso constatar como quase instantaneamente a mídia, principalmente a impressa, veicula reflexões depsicanalistas sobre os fatos e notícias hodiernos, expressando suas opiniões psicanaliticamente bem fundadassobre as mazelas factuais de nossa sociedade e sua responsabilização pelo nosso mal-estar. A pressa meparece tamanha que convém perguntar pelas atitudes psicanalíticas que se constituíram como seufundamento: a paciência em ouvir e a espera de somente entender posteriormente.

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Referências bibliográficas

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Luiz Augusto Celes

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