Luciana Sandroni - Minhas Memorias de Lobato

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Luciana Sandroni - Minhas Memorias de Lobato, publicado pelo Ministerio da Educação.

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Minhas Memrias de Lobato

Literatura em minha Casa

Novela - Volume 3

Contadas por Emlia, Marquesa de Rabic e pelo Visconde de Sabugosa

Luciana Sandroni

Impresso braille em duas partes, do volume 3, da 2 edio, 2002, Editora Schwarcz Ltda.

Primeira Parte

Ministrio da Educao

Instituto Benjamin Constant

Diviso de Imprensa Braille

Av. Pasteur, 350/368 - Urca

22290-240 Rio de Janeiro

RJ - Brasil

Tel.: (0xx21) 2543-1119

Fax: (0xx21) 2543-1174

http:`/`/www.ibcnet.org.br

- 2003 -

Copyright do texto (C) 1997 by H. Monteiro Lobato;

Copyright do texto (C) 1997 by Luciana Sandroni

Preparao:

Mrcia Copola

A editora agradece a gentil colaborao da famlia de Monteiro Lobato

ISBN 85-85466-81-2

Todos os direitos desta edio reservados Editora Schwarcz Ltda.

Rua Bandeira Paulista, 702,

cj. 32 - 04532-002

So Paulo - SP - Brasil

Telefone: (11) 3167-0801

Fax: (11) 3167-0814

www.companhiadasletras.com.br

[Nota da digitalizao: destinando-se o presente texto a ser lido por meios electrnicos, foi retirada do texto a formatao braille e a Nota Oficial da Comisso Brasileira do Braille, bem como a seco "Seu Livro em Braille".]

Dados Internacionais de Catalogao na Publicao (CIP)

(Cmara Brasileira do Livro,

SP, Brasil)

Sandroni, Luciana, 1962-

Minhas memrias de Lobato, contadas por Emlia, Marquesa de Rabic, e pelo Visconde de Sabugosa / Luciana Sandroni ;

ilustraes Laerte.

- So Paulo : Companhia das Letrinhas, 1997.

ISBN da coleo 85-7406-111-5

ISBN 85-85466-81-2

1. Literatura infanto-juvenil

2. Lobato, Monteiro, 1882-1948

I. Laerte.

II. Ttulo.

97-0411 CDD-028`.5

ndices para catlogo sistemtico:

1. Literatura infantil 028`.5

2. Literatura infanto-juvenil 028`.5

{}

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Sumrio Geral

Primeira Parte

Minhas Memrias de Lobato ..................: 1

Segunda Parte

Minhas Memrias de Lobato (continuao) ..................... 81

lbum de Recordaes ...... 162

Ilustraes de Lobato ..... 164

Cronologia ................. 165

Sobre a Autora ........... 168

memrias de lobato

Por incrvel que parea, Emlia andava muito quieta. Pensava o dia inteiro em que aventura ia se meter desta vez. Pedrinho e Narizinho estavam na escola, e ela no poderia esperar para aprontar alguma. Dona Benta, Tia Nastcia e o Visconde estavam desconfiadssimos de que algo ia acontecer, e com certeza ia nascer daquela cabecinha. Dito e feito. Dali a pouco, l veio ela com mais uma das suas:

- Tive uma idia mirabolante! Vou escrever minhas memrias.

Dona Benta no entendeu nada. Ser que Emlia estava sofrendo de amnsia e tinha esquecido que j tinha escrito as Memrias da Emlia?

- Mas, Emlia, voc j escreveu suas memrias. No me diga que j tem um segundo tomo!

- No, que eu tive a idia de escrever as memrias do Monteiro Lobato, e claro que metade do livro vai ser sobre mim, j que eu sou a personagem mais importante que ele criou. Por isso o livro vai se chamar "Eu e Lobato".

Dona Benta ficou rindo da gabolice da Emlia e, apesar de ter achado que a danadinha teve realmente uma boa idia, ps um pouco de lenha na fogueira para ver o que a boneca ia dizer:

- Mas, Emlia, est certo que o Lobato ficou muito famoso porque escreveu os livros aqui do Stio, e colocou na sua boquinha todas as crticas e reclamaes que ele teve deste mundo, mas alm disso ele foi um grande contista, inventou o Jeca Tatu, fez campanha sanitarista, foi um grande editor de livros

e, como voc deve saber, foi um dos primeiros brasileiros a bater o p dizendo que no Brasil tinha petrleo, numa poca em que todo mundo ria disso. Parece at que voc no leu O poo do Visconde. Ento, eu acho que o livro deve se chamar "Lobato e o petrleo".

- "Lobato e o petrleo"? Que idia, Dona Benta! claro que eu sou muito mais importante pro Brasil que o petrleo! Eu sou a independncia ou morte! A senhora s pode estar brincando! Est certo que eu escreva um captulo sobre o petrleo, ou melhor, um pargrafo, mas mais que isso no tem caimento!

- Cabimento, Emlia.

- Caimento! Caimento!

Dona Benta parou de atiar a boneca e resolveu saber como ela pretendia comear a escrever as memrias:

- Est bem, Emlia, que seja um pargrafo, mas e o resto? A vida do Lobato no se resume a voc e uma linha sobre a Campanha do Petrleo. Voc vai ter que fazer uma pesquisa sobre a vida dele, e olha que tem muita coisa para ler. Tem A barca de Gleyre, que so quarenta anos de correspondncia com o amigo Godofredo Rangel, tem Monteiro Lobato, vida e obra do Edgar Cavalheiro, tem Monteiro Lobato para crianas, do Alaor Barbosa, tem...

- Chega! Chega, Dona Benta! Eu no vou fazer porcaria de pesquisa nenhuma! Eu vou escrever tudo da minha cabea, como todos os escritores! Duvido que algum faa pesquisa. Eles dizem que fazem, mas no fundo saem inventando um monte de lorotas e todo mundo cai feito um patinho. Os poetas, por exemplo, aposto que so os primeiros que no fazem pesquisa, vivem mentindo e ningum reclama. A senhora mesma estava lendo um poema outro dia que dizia que um tal de Jos queria ir pra Minas mas no podia porque Minas tinha acabado. Eu fui correndo olhar no mapa do Pedrinho e vi que Minas Gerais continuava l, firme. Ele destruiu um estado inteiro, Dona Benta, e todo mundo achou bonito!

- O poeta se chama Carlos Drummond de Andrade, Emlia, e o que ele fez foi licena potica. Ele quis dizer que para ele Minas acabou, porque no mais a Minas da infncia dele, entendeu? No seu caso diferente, voc no est fazendo poesia e sim uma biografia. No pode inventar a vida de uma pessoa que nasceu, foi criana, cresceu, publicou livros, casou. Voc tem que pesquisar, ver as datas, os nomes. Tem que ler todos os livros sobre ele, mas sem inventar. V l que voc invente nas suas memrias o que no aconteceu realmente, mas nas dos outros demais, Emlia!

Emlia viu que Dona Benta estava danada com aquela histria de escrever a vida do Lobato sem pesquisar e ento teve uma idia:

- Est bom, a senhora ganhou, vai ter pesquisa, sim, mas s um pouquinho, e quem vai fazer o Visconde!

E saiu no maior assanhamento atrs do Visconde, deixando Dona Benta aflitssima:

- O que que essa boneca vai fazer com a vida do Lobato?! Na certa vai aprontar uma confuso dos diabos!

Emlia encontrou o Visconde na biblioteca, e no quis nem saber o que ele estava fazendo; foi logo dando ordens:

- Visconde, voc vai ser meu secretrio! Vou escrever as memrias do Monteiro Lobato. O livro vai se chamar "Eu e Lobato".

O sabuguinho de cartola levantou os olhos para o teto, como se dissesse: "l vem mais uma!". Emlia nem deixou o Visconde falar; continuou dando ordens e mais ordens:

- Nem adianta fazer essa cara, senhor Visconde. Veja logo papel, pena e tinta. Vou comear a ditar! E veja se desta vez no me trai, hein?

Quando Emlia obrigou o Visconde a escrever as memrias dela enquanto a danada brincava com o Quindim, ele deu uma de espertinho e escreveu coisas horrorosas

sobre a boneca: "Emlia uma tirana sem corao. No tem d de nada. Quando Tia Nastcia vai matar um frango, todos correm de perto e tapam os ouvidos. Emlia, no. Emlia vai assistir. D opinies, acha que o frango no ficou bem matado, manda que Tia Nastcia o mate novamente e outras coisas assim".

O Visconde foi logo se defendendo:

- Se voc no gostou daquela parte do livro, poderia muito bem ter censurado. No cortou porque no quis, senhora Marquesa; alis, disse que era assim mesmo, como eu escrevi.

- E sou assim mesmo, e a culpa da Tia Nastcia, que me fez assim! Agora vamos deixar de lero-lero e vamos comear as memrias.

- Mas, Emlia, voc j leu alguma coisa sobre o Lobato, j se informou de alguma caracterstica da vida dele, os fatos mais marcantes, a infncia, os estudos, as primeiras leituras?

- Ai! Que droga! Por que voc e a Dona Benta no vo pentear macacos? Puxa, eu tenho uma idia maravilhosa dessas e vocs s sabem falar de pesquisa e mais pesquisa! Est tudo aqui, na cachola!

O sabugo resolveu parar de falar para ver as asneirinhas que a boneca ia dizer. Trouxe papel, pena e tinta. Como sempre, Emlia no tinha a mais remota idia de como comear, e, tal como nas suas memrias, fez exigncias esdruxulssimas para adiar o incio do livro:

- Esse papel no serve, quero papel cor do cu com todas as suas estrelinhas! E essa tinta tambm no serve, quero tinta cor do mar com todos os seus peixinhos! E essa pena, senhor Visconde, francamente! Quero pena de pato com todos os seus patinhos!

O Visconde ergueu os olhos com jeito de perder a pacincia. Emlia sabia de cor e salteado que no tinha nada daquilo no Stio.

- Marquesa, a senhora sabe perfeitamente que no temos nenhuma dessas coisas, e como j sei que sem essa

parafernlia a senhora no tem condies de escrever, melhor que esqueamos tudo isso.

- Esqueamos, uma pinia! Eu pensei que esse Stio tinha evoludo um pouquinho, ora bolas! V l, quem no tem cavalo, monta no boi. Mas um dia eu ainda hei de conseguir papel cor do cu, tinta cor do mar e pena de pato! - resmungou Emlia.

O Visconde se preparou para comear a escrever. A boneca andava de um lado para o outro, pensativa. Finalmente comeou a ditar:

- Escreva a, senhor Visconde, bem no alto da folha: "Eu e Lobato", o ttulo, e o subttulo : "Memrias do autor, contadas pela sua mais famosa personagem, Emlia, Marquesa de Rabic".

O Visconde escreveu tudinho. Emlia coava a cabea, no sabia como comear. Resolveu colocar um subsubttulo. O sabugo achou aquilo estranhsimo e disse que nunca tinha ouvido falar que algum livro tivesse mais que um subttulo.

- Voc no entende nada, seu sabugo velho, cale a boca e escreva a: "Aqui voc vai saber como o autor teve a brilhante idia de criar a maravilhosa boneca Emlia, e tambm vai ter um pargrafo sobre a Campanha do Petrleo, porque a Dona Benta pediu".

O sbio nobre escreveu tudo, mas achava que Emlia estava enrolando demais. Finalmente ela disse:

- Bem, agora, escreva a: "Primeiro captulo".

Emlia coou a cabecinha e voltou a andar para l e para c. Procurava um comeo e no encontrava. At que pediu arrego para o sabugo:

- Visconde, no tenho a mnima idia de como comear. muito difcil... E se a gente comeasse pelo final? Assim: "... e a, Monteiro Lobato, o maior escritor para crianas, morreu", e ponto final. Que tal?

- Mas, Marquesa, se no final ele morre, o comeo s pode ser como todos os comeos: ele nascendo!

- Excelente, senhor Visconde! Como que eu no

pensei nisso antes? Escreva a: "Monteiro Lobato nasceu em... ... ... no Brasil"!

- Agora a senhora Marquesa est vendo por que precisa fazer uma pesquisa? A senhora no sabe nada da vida do seu autor!

- No sei e tenho raiva de quem sabe! Estou achando essa parte do livro muito cacete! Quem quer saber onde e quando o Lobato nasceu? Vamos logo pra parte em que ns somos inventados, Visconde. O primeiro livro do Stio, quando eu no sabia falar ainda e tive que tomar as plulas falantes do Doutor Cara de Coruja Seca, e depois o segundo, e depois...

Nesse instante Emlia v pela janela Tia Nastcia indo em direo ao galinheiro, com um faco na mo. Na certa ela estava indo matar um frango para a janta. Era uma boa oportunidade de escapar do incio do livro e ir encher a pacincia da velha enquanto deixava o Visconde escrevendo por ela:

- Visconde, pensando melhor, acho que essa parte do livro, mais burocrtica, mais chata, voc que deve escrever, sabia? Afinal, voc um sabugo cientfico, sabe pesquisar, se informar melhor que eu, uma boneca de macela, no ?

- Mas, Emlia, assim eu vou novamente escrever para voc?!

- s esse comeo, Visconde, eu j, j estou de

volta. Vai pesquisando nos livros... depois eu vejo se est bom...

Emlia sai correndo atrs da tia e deixa o Visconde a ver navios. Ele se conforma e comea a procurar os livros sobre Monteiro Lobato. So livros e mais livros. Todos contam tintim por tintim a vida de Lobato. O sabugo teve uma trabalheira: leu muito e anotou tudo o que achava importante. Passou horas e horas na biblioteca s pesquisando. Depois de muita leitura, comeou a escrever, e quando j estava terminando a parte da infncia do Lobato, Emlia chegou afobada:

- Visconde! Visconde! Acuda, Visconde!

- Que foi, Emlia? Parece que est fugindo de alguma coisa!

- E estou mesmo. Eu amolei tanto a velha que ela est querendo me esganar... mas deixa pra l. E como vo as minhas memrias do Lobato? J escreveu tudinho? O local, o dia, a hora, o minuto, como estava o tempo quando o Lobato nasceu?

O sabugo ficou irritado com o desprezo da boneca pela pesquisa que ele tinha feito; e j estava com os dedos cansados de escrever, o coitado:

- J escrevi sim, senhora Marquesa. A hora, o local, a data, e mais algumas coisinhas, que eu, este sabugo velho, acho muito importante as pessoas ficarem sabendo.

- E eu? J apareci?

- Claro que no, Emlia! O Juca ainda mora em Taubat, nem sonhava que ia virar escritor... ainda mais que ia inventar voc.

- Juca? Que Juca?

- Pois , senhora Marquesa, no pesquisou, no se informou e agora nem sabe que Juca era o apelido do Lobato quando era pequeno.

- E por que Juca?!

- Quem se chama Jos pode ter esse apelido, Emlia. O nome do Lobato inteiro Jos Bento Monteiro Lobato.

Emlia resolveu encrencar com o tal Juca. No via sentido em chamar Lobato de Juca:

- No quero nem saber se o nome dele Jos ou Joo! O negcio que o Lobato tem cara de Lobato. No mximo a gente pode chamar ele de Lobatinho na infncia... , Lobatinho vai ser o apelido dele na infncia!

- Mas ningum chamava ele de Lobatinho... chamava de Juca.

Emlia foi ficando cada vez mais furibunda com aquele Juca e fez um escndalo to grande que o Visconde teve que riscar todos os Jucas e mudar para Lobatinho:

- Lobatinho, senhor Visconde! As memrias do Lobato so minhas e eu escrevo o que eu quiser!

O Visconde comeou a perceber que a pesquisa que tinha feito no ia adiantar nada. Pelo visto a Emlia ia mudar tudo. Como que uma bonequinha de macela podia anarquizar tanto com as coisas? Mas o que que ele podia fazer? Resolveu encher o peito e ler o que tinha escrito para ver no que ia dar:

Jos Renato Monteiro Lobato nasceu no dia 18 de abril de 1882, na cidade de Taubat, em So Paulo. Lobato foi o primeiro filho do casal Jos Bento Marcondes Lobato e Olmpia Augusta Monteiro Lobato, filha de Jos Francisco Monteiro, rico fazendeiro da regio, que ficou muito orgulhoso do neto. Seu av recebeu o ttulo de Baro de Trememb em 1868 e o de Visconde de Trememb em 1887. Lobato nasceu na casa dos pais, em Taubat, no Largo da Estao.

Emlia ficou muito espantada quando soube que o Lobato era neto de um Visconde de verdade. Ela, que adora esses ttulos de nobreza e que casou com o Rabic s porque Narizinho disse que ele era um Marqus, se assanhou toda com a novidade:

- Espera a, Visconde, que eu no estou entendendo uma coisa: o av do Lobato era Visconde? Visconde de verdade?

- Era sim. Era o Visconde de Trememb, um fazendeiro muito rico e poderoso. Ganhou esse ttulo de nobreza de Dom Pedro II.

- Mas por qu? Ele foi heri? Participou de alguma guerra? Lutou na batalha de Tremembeb?

- Batalha de Tremembeb? Claro que no, Emlia, no houve batalha, nem guerra nenhuma. Trememb o nome de um lugarejo perto de Taubat. Para receber esses ttulos de nobreza a pessoa tinha que ser muito rica, como era o caso do av do Lobato.

- Ento... se o av do Lobato era Visconde, o Lobato tambm era. E se o Lobato era Visconde eu devo ser Viscondessa. J que fui inventada por ele, devo ser meio filha dele...

O Visconde estava meio tonto com as elucubraes da Emlia, mas tentou responder boneca:

- No, Emlia. O Lobato nunca foi Visconde. Essas coisas no passam de pai para filho, e alm disso em 1889 o Brasil virou uma repblica, no tinha mais imperador, e sim presidente.

Emlia no gostou: queria ser Viscondessa. Mas ela j era Marquesa, no tinha o que reclamar. O Visconde recomeou a ler; e disse a primeira palavra bem contrariado:

Lobatinho teve uma infncia bem parecida com a de Narizinho: com muito verde, muito p de jabuticaba, ribeiro. Fez caadas e pescarias como Pedrinho, adorava ler na biblioteca do av, como o Visconde de Sabugosa e... era teimoso e mando como a Emlia.

O Visconde ficou esperando ouvir a maior bronca de Emlia, mas ela s complementou:

- Teimoso, mando e esperto como eu.

O menino tinha duas irms, Ester e Judite, que o adoravam e o mimavam como a me, Dona Olmpia. Por isso, desde pequeno ele reinava absoluto. Chegou a dizer uma vez: "Sempre fui tirnico. Eu sempre estava certo. Isso de erro era com os outros". Lobato s obedecia ao pai, que era severo toda a vida. O av tambm o mimava, pois ele era o nico neto homem e por isso iria realizar todos os seus sonhos.

Emlia no entendeu essa parte:

- U, por que as netas no podiam realizar os sonhos dele?

- que naquela poca as mulheres ficavam dentro de casa, no estudavam nem trabalhavam. Por isso os pais e avs ficavam querendo filhos e netos homens, para trabalharem como eles.

- Que poca mais boba, Visconde. Se eu tivesse vivido nesse tempo mandava todos os homens catarem coquinho e ia fazer o que me desse na telha.

O Visconde riu da Emlia, e disse que as coisas no eram nada fceis para as mulheres daquele tempo, e que ainda hoje muitas ganham menos que os homens s porque so mulheres. Emlia achou um absurdo aquela histria. O Visconde retomou a leitura, antes que a boneca se exaltasse mais ainda:

Lobatinho gostava muito de ler e vivia na biblioteca do av Visconde. Naquela poca no havia muitos livros para crianas no Brasil. Ento, os poucos livros que existiam, ele lia e relia vrias vezes, como Robinson Cruso, O Menino Verde e Joo Felpudo. O menino adorava ler para suas irms menores e para os filhos dos empregados.

E Emlia foi logo perguntando:

- Mas por que que no tinha outros livros pra ele ler? Os escritores no sabiam escrever nessa poca? - provocou.

- No, Emlia, que como no Brasil no existiam editoras, a grande maioria dos livros era feita na Europa, ento era muito caro e complicado. E ningum ia se preocupar com livro para criana. Livro era uma coisa da elite. S as pessoas ricas tinham livros e bibliotecas, como o av do Lobato.

- Puxa, que sorte a do Lobato de ter um av Visconde, fazendeiro e ainda por cima cheio de livros!

- Sorte a nossa. Porque assim, tendo uma infncia cheia de livros, se divertindo e aprendendo tanto com os livros, o Lobato notou que todo mundo, principalmente as crianas, tinham que ler, e por isso em 1919 ele fundou uma editora: a Monteiro Lobato & Cia.

- Espera a, Visconde, voc estava na infncia do Lobatinho e agora ele j est afundando editora?

- Fundando, Emlia. Em todo caso voc tem razo, acho que me adiantei um pouquinho. Mas vamos l, deixa eu continuar a ler:

Alm dos livros, Lobatinho adorava caadas e pescarias. Quando tinha onze anos, ganhou uma carabina Flaubert, mas um dia acertou um tiro na caixa-d'gua da ducha que o pai tinha mandado fazer no jardim; quando o pai foi tomar banho, e viu que no tinha gua, adeus, carabina. Lobatinho, suas irms e a meninada de Taubat gostavam muito de brincar de bonecos. S que no eram bonecos comprados em lojas; eles faziam de um chuchu ou uma batata e quatro palitos tudo o que se possa imaginar: um porquinho, um cavalo... E um sabugo de milho, ento?... Era tudo o que uma criana precisava para inventar um mundo parte. Os bonecos de sabugo eram e sero sempre os melhores brinquedos.

Nesse instante Emlia danou:

- Que histria essa, senhor Visconde? "Os bonecos de sabugo eram e sero sempre os melhores brinquedos"? Uma pinia! E as bonecas de pano? As bonecas de macela e olhos de retrs, hein?!

O Visconde quase ia dizer que ningum falava em bonecas de pano nos livros em que ele pesquisou, mas como viu que isso no ia adiantar nada, foi logo tratando de cortar a histria dos sabugos de milho e escrever:

Os mais amados brinquedos das crianas daquele tempo e das de hoje so as bonecas de pano feitas de macela e olhos de retrs, iguais Emlia, sem tirar nem pr:

Emlia se acalmou e mandou que ele prosseguisse na leitura.

O pai de Lobatinho tinha uma fazenda e uma casa na cidade, e de vez em quando por l aparecia a maior diverso da meninada daquela poca: o circo. Era um acontecimento a chegada do circo no interior. As crianas vibravam de alegria com o palhao, o preferido de Lobatinho, que rolava de rir com qualquer cambalhota. Mas a grande atrao do circo eram os cavalinhos ensinados.

Emlia deu um salto de alegria:

- O crculo de escavalinhos!

- Circo de cavalinhos, Emlia!

- Pois , mas isso ele colocou no Reinaes de Narizinho. Fui eu que dei a idia de fazer o circo no Stio, lembra?

- Lembro, mas agora posso continuar? Se no, a gente no vai acabar essas memrias nunca.

Emlia no deu a menor bola para a pressa do Visconde e continuou de torneirinha aberta:

- Mas, Visconde, uma coisa que eu estou notando que muitas histrias da infncia do Lobato ele colocou no Stio. Olha s: voc Visconde e adora livros que nem o av dele; ele morava numa fazenda, que nem a gente aqui no Stio; agora, o crculo de escavalinhos... Ser que desde pequeno ele j imaginava que ia escrever essas histrias?

- Pois ... isso mesmo interessante. Mas pelo que eu li, quando ele era pequeno nem sonhava em ser escritor, porque o que ele gostava mesmo era de pintar.

- Pintar? Ele queria ser pintor?

- Queria muito. Mas quando ele foi fazer a Escola de Belas-Artes o av no deixou, mandou ele fazer Direito.

- Fazer direito o qu?

- Fazer a Faculdade de Direito, Emlia. O av queria que ele fosse advogado, bacharel, juiz...

- Mas que av Visconde mais mando, hein?! E os pais dele? No falavam nada?

De repente o Visconde ficou triste. Pegou um lencinho, enxugou algumas lgrimas e disse:

- Emlia, o caso que... os pais do Lobato morreram cedo... ele era um adolescente... e a quem cuidava dele era o av.

- E a av dele, a Dona Viscondessa?

O Visconde se recomps:

- Essa histria meio complicada, Emlia... que a av do Lobato, a Dona Anacleta, no era mulher do Visconde: s teve filhos com ele.

- Ah... ento o Visconde se separou da Viscondessa e casou com a av do Lobato!

- No, Emlia! Ningum se separava naquela poca! O Visconde teve dois filhos com a Dona Anacleta e mais tarde se casou com a Viscondessa, Dona Maria Belmira de Frana. Foi um casamento de convenincia, muito comum naquela poca. A Viscondessa concordou em criar os filhos que o Visconde teve antes de se casar.

Emlia no entendeu muito bem aquela histria e resolveu encrencar:

- Casamento de convenincia?!

- quando as famlias decidem o casamento e s vezes os noivos nem se conhecem. Antigamente isso era muito comum. As famlias tratavam o casamento como um negcio. Mas o Visconde, aps o casamento, no teve mais nenhuma aventura amorosa, por respeito a Dona Belmira.

- Puxa, e a Dona Benta vive dizendo que antigamente o mundo era mais romntico e coisa e tal, pois pra

mim essa poca era uma bela porcaria de poca: mulher no podia trabalhar, nem estudar, e ainda tinha que se casar com um homem que nunca tinha visto na vida!

O Visconde achou melhor mudar de assunto logo, mas antes disse que a Dona Anacleta era muito querida do Lobato e que ele, na infncia, no entendia o fato de a av no ser a mulher do av, mas isso no diminua o amor que sentia pelos dois. E mais uma vez retomou a leitura:

Lobatinho era um menino que fazia muitas travessuras, e quem sofria eram suas irms menores. Certa vez, na fazenda, um cachorro chamado Blondel, muito querido das crianas, ficou com raiva e o pai teve que mat-lo. Enterraram-no no pomar perto de uma laranjeira. Lobatinho, mesmo triste com a morte de Blondel, aprontou uma das suas. Como ele adorava aquele p de laranja e tinha at cimes de quem chegava perto dele, teve a idia de dizer s irms que quem chupasse as laranjas daquela rvore iria enlouquecer que nem o cachorro. As duas se apavoraram tanto que nem se aproximaram mais daquele pomar. Mas, um dia, Ester e Judite foram encontrar o irmo exatamente ali... se deliciando com as laranjas. Ficaram furiosas e foram correndo contar para Dona Olmpia.

Emlia interrompeu de novo:

- E que que a Dona Olmpia fez?

- Ah, no sei, Emlia... deve ter dado uma bronca...

- Ela deve ter dito bem assim: "Bem feito pra elas, meu Lobatinho, quem manda serem to bobinhas?".

- Emlia! Coitadas da Ester e da Judite, elas eram pequenas, s isso...

- Eu tambm sou pequena e no ia cair numa dessas.

O Visconde resolveu no discutir e voltou a ler:

Uma outra vez Lobatinho resolveu mudar de nome. E tudo por causa de uma bengala. O que aconteceu foi o seguinte: ele reparou que na bengala do pai, de ouro todo granulado, que ele achava linda, estavam gravadas as iniciais JAML. O garoto ficava danado com aquilo: "Esse diabo do B", pensava ele. Ento, simplesmente mudou de nome: "De agora em diante, meu nome Jos Bento Monteiro Lobato, e no Jos Renato Monteiro Lobato". Outra razo para Lobato ter mudado de nome foi o fato de Renato rimar com rato; ele pensava: "Um dia ainda me botam um apelido... ento eu mudo de nome logo e no vou ter mais problemas".

- Ah! Essa foi boa, hein, Visconde? Tem mais dessas travessuras do Lobatinho?

- Ihhh... Tem um bocado, Emlia. O Juca, quer dizer, o Lobatinho aprontava:

Certa tarde, Dona Olmpia recebeu visitas para um papinho e um lanchinho, e a coisa que Lobatinho mais odiava era visita chata. Vendo que Generosa, uma ex-escrava e amiga da Judite e da Ester, estava preparando um suco de abacaxi, porque o de limo tinha ficado muito azedo para servir para as visitas, ele a convenceu de trocar os sucos: servir o de limo em vez do de abacaxi. E, pelo buraco da fechadura, eles ficaram olhando as caretas horrveis que as visitas faziam, porque o suco estava muito azedo mesmo. Quando Dona Olmpia percebeu o que estava acontecendo, deu uma bronca nos dois e ps os pestinhas de castigo.

- Ah! Mas deve ter valido a pena! Bem que eu queria estar l pra ver as caretas das visitas. Conta mais, Visconde!

- Deixa ver o que eu anotei de travessura que ele fez. Ah, veja s esta:

Num outro dia, Ester e Judite ganharam uma boneca nova e puseram nela o nome de Nh Cota. As duas queriam batizar a boneca e ento chamaram Lobatinho para ser o padre. Generosa preparou uma mesa linda de doces e guloseimas para depois da cerimnia. Lobatinho fez tudo como manda o figurino, s que com uma pressa danada: molhou a cabea da boneca, rezou uma ave-maria, um padre-nosso, felicitou as mes, as madrinhas e saiu correndo. Enquanto as mes cumprimentavam os convidados na maior calma, o endiabrado do padre, quer dizer, do Lobatinho, tratava de comer todos os doces da festa! Depois de encher a pana teve a cara-de-pau de voltar como se no tivesse feito coisa alguma. E quando as meninas viram que os doces tinham sido comidos, foi ele mesmo quem disse: "Deve ter sido arte de algum cachorro da fazenda!". E ningum desconfiou de nada!

- Ah! Dessa eu no gostei, Visconde! Lembrei do meu casamento horrvel com o Rabic: depois do casrio ele foi correndo comer os doces que Narizinho tinha comprado. Que droga eu ter casado com aquele porco! Tomara que ele morra logo, pra Narizinho me casar com um prncipe!

O Visconde resolveu continuar a leitura para ver se Emlia se esquecia dessa parte infeliz de sua vida:

Quem lhe ensinou as primeiras letras foi a me, Dona Olmpia. Lobatinho tinha quatro ou cinco anos. Aos seis j escrevia bilhetinhos, mas sua mania era mesmo o desenho, a pintura... Por isso, todo mundo dizia: "Esse menino, quando crescer, vai ser pintor".

Uma das coisas curiosas da infncia de Lobato, e que ele recordava bem, foi seu encontro com Dom Pedro II, o imperador do Brasil. Sua lembrana era de ter achado aquela barba muito grande e tambm de ter ficado impressionado com a vozinha fina que ele tinha.

De repente Emlia se levantou da cadeira toda assanhada e abriu a torneirinha de asneiras, deixando o Visconde perplexo:

- Eu j sei de tudo, senhor Visconde! Pode comear a escrever o prximo captulo!

O sabugo no entendeu nada, mas no teve nem tempo de perguntar. Emlia no parava:

- O prximo captulo : "De como Lobatinho cortou a barba de Dom Pedro II"!

- Mas, Emlia, o Lobato no cortou barba nenhuma! De onde voc tirou essa histria maluca?

- Da minha cabea, senhor Visconde. Gostaria de lembr-lo de que estas memrias so minhas, e por isso escrevo o que eu quiser, no tenho que dar satisfao pra ningum!

O Visconde ficou furioso. Ele j tinha escrito tudo e a danada da boneca s fazia mandar e desmandar, e agora queria inventar uma histria sem p nem cabea, e sem barba principalmente:

- Pois bem, Emlia. Se as memrias so suas, ento escreva-as, que eu j perdi toda a pacincia.

Emlia nem se esquentou. A boneca era mesmo uma diaba:

- Pode ir, senhor Visconde. Agora no preciso de

sabugos cientficos por perto, agora o meu negcio imaginao, e isso eu tenho de sobra.

O Visconde saiu magoado com a Marquesa, mas tambm no deu o brao a torcer, e disse:

- Pois fique com a sua maravilhosa imaginao, senhora Marquesa de Rabic, que eu vou estudar a vida toda do Lobato e vou escrever as minhas memrias dele. E sabe qual vai ser o apelido dele na infncia? Juca! E sabe qual vai ser o brinquedo que ele mais amava? Um sabugo de milho!

O Visconde bateu a porta da biblioteca, deixando Emlia enfurecida:

- Visconde, seu traidor, volte aqui! Voc no pode fazer isso! Essa idia minha! Seu ladro de idias! Ladro de memrias!

Dona Benta, que notou o alvoroo no escritrio, resolveu ir ver o que estava acontecendo. Encontrou Emlia aos berros, difamando e insultando o Visconde.

- Que isso, Emlia? O que que aconteceu? Vocs estavam to bem aqui, de repente essa gritaria...

- Dona Benta, lamento inform-la, mas existe um ladro aqui no Stio! Um ladro muito horrvel. A pior espcie de ladro: um ladro de idias.

- Que histria essa de ladro, Emlia?

- O Visconde roubou minha idia, vov. Roubou bem roubado! J deve estar terminando as memrias dele do Lobato.

- Emlia, alguma voc deve ter aprontado para o Visconde ter dito que ia fazer o livro sozinho. Tem certeza de que no magoou o pobre do sabugo?

- Eu s disse que no precisava mais dele, que ele podia ir embora.

- Que horror, Emlia. Isso no se faz. Primeiro faz gato-sapato do coitado, depois diz que no precisa mais, como se ele fosse uma coisa qualquer.

- Mas, Dona Benta, o problema que o Visconde quer fazer tudo certinho, tudo como est nos livros, e eu

acho que tem que inventar, seno essas memrias ficam muito cacetes.

- Ento voc deve explicar isso para o Visconde, sem ficar mandando. Voc fala o que pensa e ouve o que ele pensa tambm. E os dois juntos chegam a uma concluso.

Emlia no gostou muito daquela idia de no poder ir mandando no Visconde. Esse negcio de discutir no era com ela, dava muito trabalho. Era melhor ir dando ordens e pronto. Mas mesmo assim resolveu procurar o Visconde.

- Veja l o que voc vai aprontar, Emlia!

- Pode deixar, Dona Benta, eu me entendo com aquele sabugo velho.

O Visconde estava compenetrado, escrevendo e fazendo mais pesquisas. Emlia chegou espevitada e como sempre gritando:

- Visconde, eu decidi dar mais uma chance pra voc!

- Mais uma chance!? Fique sabendo, Emlia, que eu no vou mais escrever para a senhora e no quero chance nenhuma.

Quando Emlia ia dizer um monte de desaforos, lembrou dos conselhos de Dona Benta e de fazer aquele clebre ar de anjo de inocncia:

- Visconde, parece at que voc no me conhece. claro que eu estava zombando da sua cara quando disse pra voc ir embora. Todo mundo precisa de um sabugo sbio por perto, Visconde. Ser que no dava pra voc continuar a ser meu secretrio?

O Visconde notou que Emlia estava mentindo s para ele escrever as memrias. Mas a verdade que ela estava mentindo to bem que at parecia verdade. O sabugo resolveu aceitar as desculpas mentirosas, pois a boneca estava fazendo um esforo terrvel para ser bem-educada:

- Est bem, Emlia, eu volto a ser seu secretrio, mas antes eu queria...

Emlia voltou ao normal rapidinho e nem deixou o Visconde falar:

- Muito bem, vamos deixar de mas, mas, mas e vamos ao trabalho. Anote a, senhor Visconde, o prximo captulo : "De como Lobatinho cortou a barba de Dom Pedro II".

- Mas, Emlia, de novo essa histria maluca?

A boneca notou que daquele mato no sairia coelho e resolveu ela mesma escrever a grande cena:

Lobatinho era o capeta em forma de menino, e quando viu o imperador pela primeira vez teve uma idia dos diabos:

- Coitadinho do Dom Pedro II, ele anda to na pindaba que no pode nem ir ao barbeiro! Mas eu, que sou um bom menino, vou fazer esse favorzinho pra ele.

Numa noite, quando o imperador dormia a sono solto, Lobatinho se aproximou dele sorrateiro, com uma tesoura na mo, e tentou cortar a sua barba. Dom Pedro comeou a sentir ccegas e acordou. Quando viu Lobatinho com a tesoura deu um grito, com aquela vozinha fina dele, e quase desmaiou de susto:

- Aaaaaahhhh! Socorram-me! Tem um menino querendo me matar!

- No quero matar coisa nenhuma, eu quero cortar essa sua barba! No fica bem um imperador com uma barbona dessa!

Dom Pedro, no entendendo nada, completamente aparvalhado, comeou a correr e a berrar dentro do quarto:

- Ahhhh! Socorram-me! Tem um menino querendo cortar a minha barba!

Lobatinho no quis nem saber, e no parava de correr atrs dele, disposto a cortar at o ltimo fio de cabelo, digo, de barba. E como a voz de

Dom Pedro era fininha como a de um ratinho, ningum escutava os seus gritos. At que o imperador conseguiu sair do quarto e foi bater na porta do Visconde de Tremembeb:

- Socorro! Socorro! Senhor Visconde! Acuda! Acuda! Tem algum querendo cortar a minha barba!

Lobatinho fugiu correndo antes que o av o visse e lhe desse uma surra. Dom Pedro, ainda trmulo, contou a histria pro Visconde, que ficou tiririca da vida:

- Mas isso s pode ser coisa do meu neto! Eu vou dar uma surra de chinelo naquele moleque! Lobatinho no vai conseguir sentar durante um ms!

O Visconde de Tremembeb foi tomar satisfaes com Lobatinho, mas quando o viu dormindo feito um anjo no entendeu nada, e at se arrependeu de ter pensado que o neto queria ter cortado a barba de Dom Pedro. Achou que Dom Pedro que estava ficando gag e devia ter imaginado tudo aquilo. Quando foi falar com o imperador, este j tinha se pirulitado da fazenda com toda a sua comitiva, com medo de que o danado do neto do Visconde tentasse mais uma vez

cortar sua linda e preciosa barba.

O Visconde, apatetado com a capacidade que Emlia tinha de inventar tanta bobagem, nem conseguiu reagir. A nica coisa que fez foi dizer que no era Tremembeb e sim Trememb. E claro que a nossa Marquesa no deu a mnima para aquela observao.

Emlia estava toda afetada e resolveu que tinha que repousar um pouco.

- Visconde, eu j trabalhei demais por hoje. Sabe que esse negcio de inventar cansa? Acho que vou tirar uma soneca. E voc faa alguma coisa, hein? J, j estou de volta.

O sabugo continuava apatetado, mas quando se viu sozinho retomou suas pesquisas e anotaes sobre a vida do Lobato. Ele j estava quase se conformando com as invenes da Emlia. Mas era bom voltar realidade logo, antes que a boneca retornasse com mais invencionices.

Depois de um bom tempo de leitura e anotaes, o Visconde j havia escrito bastante. Emlia, que tinha tirado sua soneca, voltou com o maior gs:

- E a? Como vo minhas memrias? J apareci?

O Visconde estava muito chateado, ou melhor, indignado com um acontecimento marcante na vida do Lobato:

- Emlia, voc no sabe da maior!

- Que que foi, Visconde? Conta logo!

- Lobatinho levou pau! Sabe em que matria? Portugus! O pobre coitado l em So Paulo, sozinho. Tinha sado de Taubat feito um heri para ir estudar na capital e aconteceu isso. Foi reprovado injustamente, Emlia. Foi uma grande decepo.

- Visconde, no tem problema nenhum. s fazer como os poetas e tacar uma licena potica: "Lobatinho passou com louvor em todas as matrias, inclusive em portugus", e pronto.

- No sei no, Emlia. Porque na verdade foi uma injustia com o pobrezinho. O que aconteceu foi o seguinte:

Aos treze anos foi sozinho para So Paulo prestar exames de admisso aos preparatrios para o ingresso no curso superior. Lobatinho se saiu bem nas provas, tanto as orais como as escritas, mas

foi reprovado na oral de portugus. Todos achavam que aquilo s podia ser um engano terrvel. Na verdade, foi uma grande injustia. Lobatinho voltou para Taubat disposto a se grudar nos livros. Teve aulas particulares, estudou, estudou, e no ano seguinte, 1896, passou com "plenamente" em tudo!

- Ah! Ele deve ter feito uma careta enorme para aqueles professores que tinham reprovado ele antes.

- . Deve ter sentido um alvio, uma alegria quando passou... S que em So Paulo comearam os tempos difceis. Foi o fim da infncia do menino Juca Lobatinho. A poca de estudante em So Paulo tambm foi a poca de tornar-se adulto: seu pai e sua me faleceram, e agora seu av era quem mandava nele e nas irms. "O mundo tinha virado", ele pensava. Uma tristeza.

- A, para ficar bem alegrinho, ele resolveu ser autor de livros pra crianas e escreveu os livros do Stio do Pica-Pau, no foi?

- No, Emlia, ainda no. Alis, bom a gente falar disso:

A escrita, como a leitura, sempre fez parte da vida de Lobatinho, que, quando estudante, costumava colaborar em jornais escolares. Ainda em Taubat, ele fez um chamado H;O. Era totalmente diferente: uma pgina s e escrito mo! O mesmo jornal era lido por todos os colegas! _`[H;O

representao de: H ndice

2 O_`]

- Eu no quero saber de porcaria de jornal nenhum, Visconde! E ainda mais de um to pequeno, um exemplar de uma pgina s! Eu quero saber dos livros! Os milhares de livros que ele vendia e cujo personagem principal era eu!

- Ento voc no quer saber o que ele escrevia nesse jornal?

- No! E tenho raiva de quem sabe!

- Tem certeza? Olha que voc vai gostar.

- Est bom, eu vou fazer o favor de ouvir o que voc escreveu. Pode ler, senhor Visconde de Sabugosa.

Tambm na escola Lobatinho aprontava. O H;O no falava de poltica, meteorologia, nem futebol. Seu jornal gozava os colegas. A cada nmero ele atacava uma turma com um monte de fofocas: "Fulaninho mulherzinha!"; "Fulustreco tira meleca do nariz!". Era s provocao. O jornal era lido no ptio do colgio. Lobatinho dizia quem no ia ser atacado e estes faziam uma rodinha para proteg-lo dos que foram citados. _`[H;O representao de:

H ndice 2 O_`]

- Que tal, Emlia? Essa no foi boa?

- A do suco azedo de limo da Generosa est ganhando disparado.

Emlia s falou aquilo para atazanar a vida do sabugo. No fundo, tinha gostado de saber das travessuras literrias do Lobatinho. O Visconde continuou, meio desanimado, a sua leitura:

Lobato passou a adolescncia estudando muito em So Paulo e passando as frias na fazenda. Escrevia e lia bastante. Queria ser escritor, pintor, enfim, um artista. Na hora da escolha da carreira, seu desejo foi vetado pelo av. Naquela poca os jovens de famlia nobre tinham que cursar a Faculdade de Direito. E Lobato no teve como enfrentar o av. Em 1900, entrou na Faculdade do largo So Francisco. A estudou gente muito famosa, como Rui Barbosa e Castro Alves. A verdade que Lobato pouco se interessava por leis e foi um aluno mdio do curso. Mas fez grandes amizades, entre elas, Ricardo Gonalves, Albino Camargo, Cndido Medeiros,

Raul de Freitas, Tito Lvio Brasil e Godofredo Rangel, com quem se correspondeu durante quarenta anos.

- Ele ficou escrevendo cartas durante quarenta anos pra esse Gordoalfredo?! Aposto que Lobato achava que esse Gordoalfredo cheirava muito mal, por isso inventou de ficar escrevendo cartas pra ele!

- Godofredo, Emlia! E eles se corresponderam durante quarenta anos porque cada um morava numa cidade, e eram muito amigos.

- E voc acha que algum est interessado nesse Gordoalfredo, Visconde? Ningum est dando a mnima pras cartas que o Lobato escreveu ou deixou de escrever. As pessoas s querem saber de mim. Euzinha aqui. Todo mundo deve estar se perguntando: "Quando que o Lobato vai ter a idia de escrever sobre o Stio do Pica-Pau Amarelo, quando a Emlia finalmente aparece?". Mas voc fica enrolando o pessoal!

- Pois eu acho muito importante as pessoas saberem que o Lobato tinha um amigo como o Godofredo, porque as cartas que ele escreveu falam de todos os acontecimentos importantes da vida do Lobato, de todas as polmicas em que ele se envolveu. Essas cartas falam inclusive de voc!

- Falam de mim?! Oba! O que que ele diz?

- Ainda no, Emlia. Vamos com calma. Ainda tem muita coisa antes do Stio chegar.

Enquanto Emlia dava um muxoxo, o Visconde retomou a leitura:

Essas cartas foram publicadas nos dois volumes de A barca de Gleyre. Lobato, nessas cartas, fala de tudo: seus problemas, suas leituras, sua preocupao com o Brasil, e em especial sua vontade de se dedicar totalmente literatura.

- Oba! Afinal, chegamos ao ponto principal dessas memrias!

- No, Emlia, lamento inform-la.

Mas ele nem sonhava escrever para crianas nessa poca. O jovem Lobato s sonhava em ser escritor. Alis, no apenas ele como todos os seus amigos do Minarete.

- Minarete? Que que isso?

- Minarete uma torre pequena. E Lobato e seus amigos literatos foram morar num sobradinho que parecia um minarete.

- E o que eles faziam da vida?

- Faziam muitas coisas:

Lobato e seus amigos discutiam sobre literatura, filosofia, poltica, tudo, enfim. Eram rapazes que queriam mudar o mundo. Eles eram Jovens como o sculo XX, que estava comeando, cheio

de aventuras, de novidades; era muita mudana para aqueles rapazes. Achavam que o velho mundo estava todo errado e eles que iriam consertar. Andavam pelas ruas de So Paulo sonhando com a fama. Naquele tempo So Paulo era bem menor. Tinha trezentos mil habitantes, trinta vezes menos que hoje. O bonde eltrico estava surgindo, os primeiros automveis apareciam, o cinema era uma grande novidade. No tinha nada a ver com a cidade de hoje, mas o estado j era o mais rico. Aqueles jovens s queriam saber da rua, dos teatros, dos cafs e das discusses. E por isso toda noite iam "fazer o Tringulo".

- Que histria essa de fazer o tringulo? Eles foram estudar geometria, por acaso?

- "Fazer o Tringulo" era uma expresso da poca.

As ruas Quinze de Novembro, So Bento e Direita formavam um tringulo, e era nessas ruas que ficavam as melhores confeitarias - que tinham as suas prprias orquestras -, os cafs, as lojas mais bonitas. Eram ruas alegres, cheias de vida, e depois do jantar nada melhor que "fazer o Tringulo", isto , passear por essas ruas. Mas o que eles adoravam mesmo era sentar a uma mesa do Caf Guarani e discutir sobre tudo.

- E sobre o que mesmo que eles discutiam?

- Eles discutiam e escreviam sobre vrios temas.

Poltica era um tema que empolgava a todos os jovens. Naquela poca o socialismo, um sistema de governo que fervia no mundo, chegava cabea dos operrios e jovens daqui. Lobato era um dos que defendiam uma sociedade sem classes e sem a misria de muitos para a riqueza de

poucos. Mas o que o jovem Lobato queria e sonhava o tempo inteiro era ser escritor, viver de literatura. Enquanto no realizavam seus sonhos, os rapazes formaram um grupo chamado Cenculo, que pretendia mudar as leis do universo.

- Queriam mudar as leis do universo? Queriam acabar com a lei da gravidade?!

- No, no era bem esse tipo de lei que eles queriam mudar. Eram as leis da etiqueta, que detestavam. Por isso ficou estabelecido que ningum podia falar nenhum lugar-comum. O lema era: "dio mortal aos lugares-comuns". Isto , ningum podia dizer, por exemplo, "bom-dia!", "muito prazer!". Tinha at um fiscal que s vezes denunciava: "O fulustreco falou: $"Estimo muito conhec-lo$"". A o fulustreco tinha que pagar uma rodada de cerveja, porque tinha falado um lugar-comum.

- Mas esse lema meu! Eu sempre disse que esse negcio de "por favor", "com licena", "pois no" era uma perda de tempo! Dona Benta e Narizinho que vivem falando essas asneirices.

- No so asneirices, so um sinal de educao, Emlia. Se as pessoas no se tratarem com educao no h dilogo, no h convivncia, amor, amizade.

- Pra mim isso uma grande baboseira. Tudo bem quando voc gosta de uma pessoa tratar bem, mas quando no gosta, ficar falando "obrigada", "bom-dia",

"como vai?" uma hipocrisia! Eu bem que queria fazer parte desse grupo Centauro.

- O nome Cenculo, Emlia. Cenculo um grupo de pessoas com as mesmas idias.

- Centauro! Centauro! Centauro! E vamos lembrando, senhor Visconde, que as memrias do Lobato so minhas, por isso v anotando um novo captulo que acabei de inventar.

O Visconde notou que Emlia ia abrir a torneirinha de asneiras de novo. Levantou os olhos e se resignou a escrever. Emlia botou as mos na cintura e comeou a ditar:

Lobato e seus amigos da turma do Centauro depois do jantar foram "fazer o Losango".

- Era o "Tringulo" que eles faziam.

- Quieto, Visconde! Voc est tirando a minha concentrao. Nesse captulo fica sendo Losango, que uma palavra mais engraada que tringulo; alis, todo mundo fala do tringulo, do retngulo, mas ningum nunca lembra do coitado do losango.

O Visconde achou que Emlia estava ficando maluca. Agora a boneca filosofava?

- Ento, como eu ia dizendo, Lobato e seus amigos foram fazer o Losango.

Nessa noite a turma estava encapetada, e alm de no poderem falar lugares-comuns tambm resolveram fazer m-criaes horrorosas com as pessoas que passavam. Implicavam com todo mundo, no perdoavam ningum:

- Olha, Lobato! - disse o Gordoalfredo. - Aquela dona com aquele chapu! Parece uma perua!

No deu outra: os rapazes do Centauro foram atrs da dona imitando peru:

- Glu-glu-glu-glu.

A dona no gostou nada daquela brincadeira e foi chamar um guarda. Quando eles viram que ia ter encrenca, fugiram correndo e entraram numa confeitaria entupida de gente. Lobato e o Gordoalfredo se meteram no meio da orquestra e se fingiram de msicos. O maestro no entendeu nada, mas depois pensou que eles eram os novos cantores contratados, e pediu pra eles cantarem. Pra no chamar a ateno da dona perua e do guarda, que tinham acabado de chegar confeitaria, comearam a cantar bem baixinho, mas o maestro no gostou e pediu pra aumentarem o volume. Foi um horror: eles eram mais desafinados que os patos do Stio. O pessoal da confeitaria vaiou, e a dona perua logo reconheceu os dois. Nisso, passou na sua frente um garom com uma torta de creme na mo, e ela no teve dvidas: apanhou a torta e atirou na cara do Lobato. Ele, que no era bobo nem nada, se abaixou e a torta foi parar na cara do maestro, que ficou danado da vida. A dona perua pediu desculpas, mas o maestro no quis nem saber: pegou um violino e jogou na cabea dela. Lobato e Gordoalfredo saram

de fininho antes que sobrasse pra eles. Depois, foram pra outra confeitaria, s gargalhadas, lembrando da cara do maestro e da dona perua.

- Que tal, Visconde? Essa foi boa, hein?

- Acho que a Marquesa anda vendo muita comdia-pastelo.

- Eu acho que est timo. Foi melhor que a histria do suco azedo.

O Visconde fez uma cara de "Deus, dai-me pacincia" e, antes que comeasse mais uma briga entre dois, resolveu continuar a sua leitura:

Os rapazes do Cenculo, alm de beber, declamar poesias at de madrugada pelas ruas, discutir nos bares, s sonhavam em escrever. At que um dia seus sonhos foram realizados, como que por encanto.

- No me diga que a fada-madrinha da Cinderela apareceu l e fez uma mgica.

- Quase isso, Emlia. O que aconteceu foi o seguinte:

Um amigo do Lobato, Benjamim Pinheiro, foi morar no

interior paulista, em Pindamonhangaba.

- Que isso, Visconde, agora deu pra falar palavro?

- Pindamonhangaba ou, para facilitar, "Pinda", uma cidade do interior do estado de So Paulo, Emlia. Fica perto de Taubat. Mas como eu ia dizendo:

Pinheiro resolveu se candidatar a prefeito da cidade, e para isso, alm de dinheiro, precisava de um jornal.

- J sei! E a a turma do Lobato inteira se mudou pra Pindagoiabada?

- Pindamonhangaba, Emlia. No, eles no se mudaram coisa nenhuma. Eles escreviam tudo em So Paulo e mandavam para l pelo correio.

- Mas como que algum faz um jornal de uma cidade morando noutra cidade?

- Pois , Emlia, e era um jornal em que voc adoraria trabalhar.

O jornal chamava-se Minarete e servia s para atacar o prefeito, assim a oposio venceria as eleies seguintes. Benjamim Pinheiro mandava a pauta, isto , os temas que eles tinham que abordar, sempre criticando o governo, para So Paulo, e pedia que falassem mal do prefeito por causa da grama nas ruas, que no estavam capinadas, ou porque a carne estava muito cara, e os rapazes arrasavam com o sujeito sem d nem piedade.

- Realmente, eu iria adorar trabalhar nesse jornal - disse Emlia, toda animadinha.

Outra coisa diferente nesse jornal era que ningum se atrevia a assinar os artigos. S usavam pseudnimos, isto , nomes inventados. Lobato nem sabia quantos tinha. As pessoas de Pinda achavam que o jornal era feito por um batalho, com um nome mais estranho que o outro: Lobatoievski, Pascalon, o Engraado, Rui d'H, Hlio Bruma, Josben, Anto de Vasconcelos, Oscarino, e milhares de outros.

- Gostei dessa idia, Visconde! No meu jornal tambm vou inventar pseudnimos. Deixa eu ver, que tal: Emiliaievski Marquesovski de Rabicovski e Viscondeievski de Sabugovski?

- No sei, Emlia. Algo me diz que vo notar que somos ns.

- Ser?

Enquanto Emlia ficava l pensando no seu jornal e nos pseudnimos, o Visconde continuou a leitura:

Alm dos artigos, eles tinham que fazer a seo de humor, variedades, e os anncios. Vrias vezes inventaram anncios malucos, como este, por exemplo: "Cadeiras Furtadas - Desapareceram da calada da casa de Jos Bento, no largo do Passeio, h dias, quatro cadeiras de jacarand envernizadas de preto e tecidas de palhinha. Quem lev-las ao seu dono, ou der notcias, ser gratificado".

- Boa idia! Tambm podemos inventar anncios, hein, Visconde? Podamos anunciar que o Stio do Pica-Pau Amarelo est venda. Quando os compradores chegassem de l... bem de looooonge... aps dias e dias de viagem em cima de lombo de burro, para enfim comprarem o Stio, ns vamos dizer com a cara mais inocentinha do mundo que o Stio nunca esteve venda e que tudo no passou de um terrvel engano! E depois vamos cair na gargalhada!

Emlia ria da prpria histria, mas o Visconde no achava graa nenhuma.

- Voc no tem corao mesmo, no , Emlia?

- Tenho sim! Tanto tenho que depois eu iria pedir pra Tia Nastcia servir bolinhos e pipoca pra eles no ficarem assim to a ver navios.

- Bom, pelo menos isso. Vamos voltar s memrias agora?

Emlia s queria falar e pensar no jornal que ia fazer no Stio.

- Visconde, o jornal j tem nome e tudo: "O Jornal da Emlia".

- No seria melhor: "O Jornal do Stio do Pica-Pau Amarelo"?

- No, Visconde. Muito grande. Estou preferindo o primeiro nome.

Visconde ergueu os olhinhos para o teto e retomou a leitura:

Eles tambm publicavam poesias e contos no Minarete. Lobato comeou a escrever um romance completamente absurdo e seus captulos saam no jornal. O romance se chamava "Lambe-Feras, uma maluquice literria". Os habitantes de Pinda nunca iriam entender que um autor escrevesse num de seus captulos o que ele escreveu: "Captulo XXXV: suprimido a pedido do bom senso". Eram artigos alucinados, que ningum na cidade entendia. Era pura diverso para os rapazes de So Paulo: redigiam artigos inventando cidades, misturando literatura com realidade; era uma farra. E o mais engraado que o tal amigo de Lobato, o Benjamim Pinheiro, ganhou a eleio.

- Depois voc reclama que eu invento muito. Essa turma do Lobato inventava notcia, anncio e ainda falava mal do prefeito, e voc nem reclama!

- diferente, Emlia. Quando a gente escreve as memrias de algum tem que ser fiel vida dessa pessoa, e no sair inventando.

- E num jornal? A gente pode sair inventando?

- No, mas que eles eram jovens do comeo do sculo querendo fazer farra.

- E eu sou uma jovem e linda boneca deste sculo querendo fazer uma farrissssima!

- Por falar em farra, lembrei da chegada do Lobato em Taubat.

Quando Lobato voltou da capital, formado, trazendo o diploma, foi recebido com honras de heri: era um "doutor". Teve banda de msica, foguetes,

discurso, bebida para todo mundo. Taubat estava em festa, menos Lobato, que no estava gostando nada daquilo.

- Puxa, foi recebido com banda de msica, foguetes, e no gostou?

- Na verdade, ele sabia que aquilo tudo no era para ele, ou melhor, ele sabia que aquilo era para o "neto do Visconde". Aqueles discursos inflamados, aquela alegria toda eram s para impressionar o Visconde, que era muito prestigiado na cidade.

- Mesmo assim eu ficaria feliz da vida se eu fosse recebida com banda de msica e foguetes numa cidade.

- Mesmo sendo tudo falso? Era s porque ele era o neto do Visconde, Emlia.

- Eu ia pular de alegria, no ia nem querer saber se estavam querendo bajular o Visconde. Eu ia aproveitar.

- Pois . E foi o que o Lobato fez, da maneira dele.

- Mandou todo mundo ir plantar bananeira?

- Quase isso.

Respondeu dizendo que no queria homenagens, que aquele diploma no valia nada porque ali estava

um bacharel formado mais pela bomia do Tringulo do que por outra coisa. Disse ainda que um novo advogado mais uma filoxera social que sai do casulo.

- Puxa vida! O av Visconde deve ter ficado danado com o neto, porque ele xingou todo mundo no meio da festa?

- Ele no xingou ningum, Emlia. Filoxera no xingamento, um inseto que produz uma doena nas vinhas. uma praga. Ele estava sendo irnico com a profisso de advogado, dizendo que um novo advogado era mais uma praga para a sociedade.

- Ele no xingou diretamente, mas que xingou, xingou. Se ele disse que ele era uma doena, aquele povo todo l, fazendo festa pra uma doena, era no mnimo um povo maluco. Porque ningum que eu conhea solta fogos ou manda vir banda de msica quando chega uma virose ou uma epidemia.

O Visconde ficou bobo com a Emlia: no que a danada sabia de tudo!

- , Emlia, voc tem razo, mas ningum entendeu o discurso do Lobato: entrou por um ouvido e saiu pelo outro. As pessoas notaram que ele no estava gostando muito, mas fingiram que estava tudo bem e continuaram bebendo cerveja felizes da vida. E no final fizeram questo de cumprimentar o "Doutor Lobato".

- Eu tambm quero ser chamada de Doutora Emlia.

- Mas eu j disse que era tudo falso. Tudo lugar comum, que voc disse que odeia.

- No, espera a, Visconde. Eu no falo lugar-comum pra ningum, mas se algum quiser me paparicar vou adorar!

- Mesmo que no seja verdade?! Mesmo que a pessoa seja falsa?

- Visconde, o que a verdade? A verdade uma mentira bem contada, ela no existe. Por isso melhor viver de mentiras do que procurar uma coisa que no existe!

- Que o Lobato no oua voc, Emlia! Um homem que lutou a vida inteira pela verdade, contra a hipocrisia, e vem voc e diz que aceita a mentira dos outros.

- Eu no aceito, eu aproveito a mentira se for boa pra mim, ora bolas.

O Visconde resolveu encerrar a discusso, antes que se irritasse mais. Meio aborrecido, voltou a ler o texto:

Aquela fase de ps-formado foi muito difcil para Lobato. Ele estava acostumado vida urbana de So Paulo, rapidez das coisas, e no quela vagareza de Taubat. Tinha saudade dos amigos, das conversas e da agitao da capital. Sentia-se como um "exilado" em Taubat.

- Taubat pra ele era como um asilo?

- Devia ser, para um rapaz de vinte e dois anos. Mas eu disse exilado.

Diz que sentia que estava se "burrificando" e "embolorando", que no tinha nenhuma idia incrvel como tinha na capital. Por isso passava os dias lendo e escrevendo. Continuava com o jornal Minarete, de Pindamonhangaba, e nessa poca comeou a escrever com o Godofredo Rangel uma novela daquelas bem malucas, chamada O queijo-de-minas ou A histria de um n cego. A idia deles era criar uma histria em que os figurantes seriam assassinados, mas Lobato resolveu matar logo de sada um personagem principal que o Rangel tinha inventado. O Rangel no pestanejou: matou um dos protagonistas de Lobato. E a foi uma matana geral. No final, s os autores sobreviveram.

- Puxa, que tragdia grega!

- Mas era tudo brincadeira, Emlia. Imagine a cara

das pessoas lendo uma histria que de repente no tem mais personagem.

- Bom, s espero que o Lobato no tenha inventado de sair matando o pessoal do Stio.

- No, agora ele s queria saber de poesia. Lobato estava apaixonado. Depois que Purezinha foi para Taubat, ele vivia nas nuvens. S pensava em Maria da Pureza.

- Que nome esquisito!

- Era um nome da poca. Os nomes tambm so de poca, Emlia.

- Estou dizendo que essa poca no era muito boa de se viver.

- Aposto que hoje poucas crianas se chamam Emlia. Todo mundo acha o seu nome esquisito.

- Que achem, no tenho nada com isso - respondeu Emlia, de nariz em p.

No comeo de 1906, Maria da Pureza Gouva Natividade foi passar as frias em Taubat com o av, Doutor Quirino. Lobato se apaixonou: s pensava em Purezinha. Comeou a fazer poesias de amor e a public-las no Jornal de Taubat. Doutor Quirino tinha sido professor de Lobato, que aproveitava e ia jogar xadrez com ele toda tarde. O momento mais esperado era quando Purezinha entrava na sala oferecendo caf com bolinhos. Lobato s tinha olhos para ela.

- E eu s tenho olhos pros bolinhos. Voc pode ficar com o caf, Visconde.

Ele j tinha tomado a deciso: ia casar com Purezinha. Mesmo que o av Visconde no consentisse. Mas ainda no tinha arranjado um emprego e vivia s custas do av. At que, em 1907, Lobato ganhou a promotoria de Areias.

- Que bicho esse?

- Ele foi nomeado para ser promotor, que aquele que promove as causas, os processos judicirios. Ele faz as coisas andarem, entendeu?

- Entendi, senhor Visconde. Eu sou uma boneca de macela, mas no sou burra. E Areias, onde fica?

Areias uma cidade do interior paulista que na poca estava completamente abandonada. Tinha parado no tempo. Depois do perodo do caf, das grandes fazendas, ainda no tinha se reerguido. As pessoas iam embora e a cidade ficava cada vez mais morta. Lobato tinha medo de "embolorar" em Areias. Como o servio era pouco, ele lia e escrevia muito. Mas na opinio dele o lugar era muito importante para o artista: "Se o meio pfio, o artista pfio, e a obra de arte pfia". Para ele, nem Shakespeare tiraria um drama de Areias. No havia nimo para nada. Lobato, ento, resolve tentar convencer Purezinha a se casar com ele e ir morar em Areias, o que aconteceu em 1908.

- Puxa, que maldade com a Purezinha. Levar a pobre coitada para essa cidade to horrvel onde no acontece nada...

- Mas que eles estavam apaixonados, Emlia. E Purezinha iria fazer companhia a ele, ajud-lo nesse momento to difcil.

- Se o meu prncipe encantado fosse morar em Areias eu iria dizer tchauzinho pra ele sem pestanejar. Talvez mandasse um carto de Natal ou de Ano-Bom.

- Mas, Emlia, o Lobato precisava trabalhar e foi nomeado promotor l em Areias. Ele no podia bater o p e dizer: "No, para l eu no vou!". Ele tinha que trabalhar.

- E por que no virou logo escritor de livros para crianas?!

- Calma, Emlia, antes de ser escritor, Lobato foi fazendeiro, editor de livros... Ah, o Lobato fez tanta coisa que voc nem imagina.

- Ah, assim no h leitor que agente essas memrias, Visconde. Quanta enrolao! Editor de livros ainda v l, mas fazendeiro? Ele foi fazendeiro do ar por acaso?

- Pode ser, Emlia. Mas na verdade Lobato quis ser um fazendeiro de verdade e ficar muito rico para assim poder escrever seus livros.

Lobato e Purezinha moraram um tempo em Areias j casados. A, alm de ser promotor, ele colaborou em jornais, continuou a pintar, trabalhou com carpintaria, fez tradues, escreveu contos e leu muitos livros. Tambm nessa poca nasceram os seus dois primeiros filhos, Martha e Edgar.

- Filhos! Que chatice! Eu nunca vou ter filhos. Ficar gorda durante nove meses, depois no dormir com o choro do nenm, que nem sabe falar. Os bebs j poderiam nascer falando, porque a em vez de chorar eles simplesmente diriam: "Estou com fome"; "Fiz pipi". Voc no acha que ia ser uma mo na roda, Visconde?

- Que idia, Emlia! O choro do beb o jeito dele de se comunicar. Demora um pouco, mas toda me acaba entendendo o que quer dizer cada choro. E depois vem a emoo da primeira palavra, da primeira frase.

- Uma chatice, isso sim!

- Voc uma grande mentirosa, Emlia. Quem que ficou toda derretida quando o anjinho da asa quebrada apareceu aqui no Stio? Voc explicava tudo para ele e no deixava ningum chegar perto. Exatamente como uma me.

- ? No me lembro disso no, senhor Visconde - disse Emlia, disfarando.

- Bom, mas onde estvamos mesmo?

- O Lobato teve a brilhante idia de ser fazendeiro do ar em Areias.

- No, Emlia! No confunda as coisas. No foi em Areias que ele virou fazendeiro. L ele teve a triste notcia do falecimento do seu av, e...

- Ah, ento o av Visconde bateu as botas e o Lobato foi tomar o posto dele!

- O Lobato dividiu a herana com as irms, e a parte que coube a ele foi a Fazenda So Jos do Buquira. Em vez de vender a fazenda, ele ficou animado e resolveu ser fazendeiro. muito normal uma pessoa que recebe uma fazenda querer ser fazendeiro.

- Mas no o Lobato, que nunca pensou em ser fazendeiro e, como voc tinha dito, s sonhava em ser escritor e voltar pra capital.

- , Emlia, mas, como eu tambm j disse, ele achava que podia ficar muito rico na fazenda para depois comprar uma casa em So Paulo e viver escrevendo os seus contos, entendeu? E na verdade ele ficou muito entusiasmado com a fazenda.

- Estou achando que isso no vai dar muito certo.

Fim da Primeira Parte

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Segunda parte

Sumrio

Segunda Parte

Minhas Memrias de Lobato (continuao) ..................... 81

lbum de Recordaes ...... 162

Ilustraes de Lobato ..... 164

Cronologia ................. 165

Sobre a Autora ........... 168

- Mais ou menos, Emlia. O que aconteceu foi o seguinte:

Com a morte do av, Lobato recebeu de herana a Fazenda So Jos do Buquira - na lngua dos ndios, buquira significa "rio dos pssaros". Era uma propriedade de dois mil alqueires, terra que no acabava mais. A casa da fazenda era um casaro de oitenta janelas e portas onde poderiam morar mais de cinco famlias. A natureza l era

exuberante: matas, rios, cachoeiras. Lobato e a famlia despertavam com o canto dos pssaros. Ele montava sua gua moura pela manh e ia tomar um belo banho de cachoeira. E foi assim, encantado pelo lugar, que ele decidiu conciliar as suas paixes: a de escritor e a mais recente, de fazendeiro. Como escritor, foi nessa poca que ele criou quase todos os contos do seu primeiro livro; como fazendeiro, comprou marrecos de Pequim e patos indgenas, e plantou mais feijo, arroz, caf, milho. Estava convencido de que, se no tinha dado certo como escritor, podia ser um grande fazendeiro. Essa era uma caracterstica do Lobato: mal comeava a fazer uma coisa, j queria ser o melhor. Queria que a fazenda fosse a primeira do municpio, s que para ver o resultado de uma plantao preciso ter pacincia. Exatamente o que Lobato no tinha.

- E a ele desistiu de tudo, vendeu a fazenda e foi pra So Paulo.

- No, primeiro ele inventou o Jeca Tatu, o personagem mais famoso do Lobato.

Emlia olhou para o Visconde com aquele olhar fuzilante que deixou o sabugo tremendo feito vara verde.

- Que histria essa, senhor Visconde? Eu que sou a personagem mais importante da obra do Lobato. Sou eu, seu sabugo velho! Est querendo arruinar as minhas memrias, ?!

- No, Emlia... o que eu quero dizer que... o Jeca Tatu foi o primeiro personagem do Lobato que

ficou famoso no Brasil inteiro. isso. Voc ainda no apareceu na histria! Antes, o Lobato teve a idia do Jeca, que, pensando bem, no ficou to famoso assim - disse o Visconde, tentando acalmar a fera.

- E quem esse tal de Jaca Tatu?

- Jeca Tatu foi a figura que Lobato inventou para representar o homem do interior, ignorante e doente. O Lobato se interessou muito pela linguagem e pela cultura do caboclo.

- Aposto que ningum est interessado nessa parte da vida dele. Ento, vamos logo pra parte que ele vende o raio dessa fazenda e vai ser o famoso escritor de livros infantis l em So Paulo!

- Mas, Emlia, a gente no pode pular pedaos da vida do Lobato. Essa parte importante porque foi exatamente por causa do sucesso do Jeca que ele decidiu ser escritor, e um dos escritores mais preocupados com os problemas do pas. No demorou muito, ele vendeu a fazenda, se tornou um grande escritor conhecido em todo o Brasil e...

- Est bom, v l! Mas seja breve, senhor Visconde. Aposto que os leitores j esto bocejando com essa histria.

- Bom, o negcio foi o seguinte:

No ano de 1914, tambm o Brasil passou a sofrer os problemas da Primeira Guerra Mundial. As dificuldades econmicas eram grandes, porque as exportaes comearam a diminuir. Quando Lobato notou que suas terras estavam cansadas e no produziam, quis subir pelas paredes. E ficou mais danado ainda ao ver que os prprios caboclos, os homens do campo, que cansavam e maltratavam a terra.

- Mas o que que esse caboclo fazia com a terra pra ela ficar cansada? Botava ela pra correr, por acaso?

- No, Emlia, que idia! Ele fazia uma coisa que at hoje atrapalha a agricultura. Ele queimava a terra, botava fogo na mata, achando que assim a terra iria ficar boa para produzir. So as famosas queimadas. S que isso uma ignorncia, isso s faz matar a terra.

Lobato, ento, ficou com muita raiva desses caboclos, porque acabou perdendo muito dinheiro. Tinha comprado mquinas modernas e importado animais. Mas, na poca, ele no percebeu que a culpa no era dos trabalhadores.

- Como no era deles? Eles punham fogo na terra, acabavam com a terra e a culpa no era deles?

- O problema, Emlia, que esses caboclos no tinham estudo, eram ignorantes. Eles no tinham informao nenhuma de nada. O governo, que tinha obrigao de ensinar as coisas, tapava o sol com a peneira. Fingia que no via para receber os votos deles nas eleies seguintes.

- No sei disso no, senhor Visconde. Por acaso foi o governo que mandou tacar fogo na mata? Estou achando que esse caboclo meio pancada.

- Pois , e o Lobato tambm achava. E alm de ficar pensando em como se livrar daquele "piolho da terra", ele achava que podia fazer boas histrias com aquela figura, com aquele personagem.

Outra coisa que o irritava muito era o fato de a nossa literatura enaltecer o homem do campo. Todos os autores da poca adoravam falar que o caboclo era forte, valente, ntegro, desbravador, impetuoso. E, na fazenda, o que Lobato via era aquele homem fraco, doente, molenga, que s sabia pr fogo na mata. Lobato pensou at em se meter em poltica, se candidatar; achava que o governo tinha o dever de ajudar o agricultor. Mas desistiu logo, pois no ia ter pacincia para fazer campanha

eleitoral. Ento ele resolveu escrever um artigo chamado "Velha praga", que saiu no jornal O Estado de S. Paulo, falando exatamente das dificuldades de ser agricultor no Brasil e do seu pior inimigo: a queimada. O artigo foi notado por algumas pessoas: Lobato recebeu vrios telegramas de apoio e foi convidado para dar conferncias. Seu nome comeou a ficar conhecido.

- Visconde, acho que voc se esqueceu do tal famoso personagem, o... Como mesmo o nome dele?

- Jeca Tatu. Pois , ele j vai aparecer.

"Velha praga" s um incio. Depois de um ms ele publica "Urups", mais um artigo sobre as queimadas, e cria o personagem Jeca Tatu.

- Urups? Que que isso?

- Urup um parasita que nasce no tronco da rvore e suas razes sugam toda a seiva da planta, at ela morrer.

- Que horror! E o Lobato no tinha nome melhor pra escolher, no?

- Mas, para o Lobato, o urup era exatamente o Jeca Tatu, que no fazia nada e ainda acabava com a mata.

O Jeca Tatu virou um smbolo dos queimadores de mato. Nesse artigo, Lobato denuncia o abismo que h entre o homem da cidade e o do campo. Diz que as pessoas da cidade ainda tm uma viso romntica do campo, que ningum v o atraso em que vive o pas no interior. Ele mostra que o que existe ali no a fora nem a coragem do caboclo, apenas invenes dos autores, mas a misria e a doena. Lobato achava que o caboclo resumia tudo de ruim que possa ter o ser humano; s depois ele foi perceber que o caboclo era

ignorante porque o governo no lhe oferecia educao e sade. Na verdade, analisando-se bem a situao, nota-se que Lobato queria era arranjar um culpado para o seu fracasso como fazendeiro, e o Jeca era o culpado ideal. E, como ele tinha desistido de ser escritor para se tornar fazendeiro, o fracasso era duplo.

- Ai, quanto fracasso, senhor Visconde. Isso j est me dando agonia. Acho melhor meter o meu dedinho nessa histria.

- No, Emlia! Eu j estou acabando, agora s falta escrever que...

- Sinto muito, senhor Visconde, mas seu tempo est esgotado. Alm disso, ningum quer ficar lendo sobre o fracasso dos outros. Portanto, eu vou comear a ditar a minha verso dos fatos.

- Como a sua verso dos fatos, se voc no sabe de nada, Emlia?

- Ora, a minha verso dos fatos inventados! At parece que voc no me conhece.

- Mas, Emlia...

A boneca estava decidida. Pegou o papel e a pena do Visconde e comeou a falar e a escrever tintim por tintim tudo o que nunca aconteceu mas era o que devia ter acontecido!

Lobato estava jururu com os tais Jacas-tatus, que no sabiam fazer nada alm de molengar e pr fogo no mato. Depois de matutar dia e noite, ele teve uma idia:

- J sei! Vou chamar o Curupira pra ele dar um jeito nesses jacas!

Lobato foi ento para o mato com um pedao de queijo e um pouco de fumo pra dar ao Curupira, que logo sentiu o cheiro e apareceu. Lobato travou uma prosa com ele:

- Boa noite, seu Curupira. Eu trouxe queijo e fumo pro senhor.

O Curupira no era nada simptico, nada educado, nada bonito, nada cheiroso, e ainda era estranho, com aqueles ps virados pra trs.

- Oc tem um queijinho a? - perguntou ele, todo interessado.

- Tenho, e pro senhor.

- Oc tem um fuminho a?

- Tenho, e pro senhor.

Quando o guloso foi pegar, o Lobato recuou e disse:

- Mas antes, seu Curupira, eu queria lhe pedir um favor: ser que o senhor no podia dar um susto nos jacas-tatus da minha fazenda, que esto pondo fogo em tudo?

O Curupira ficou danado com aquela histria.

- No sei se voc sabe, Visconde, mas o Curupira o defensor da natureza - disse Emlia, muito prosa, para o Visconde.

- No me diga, Emlia! - brincou o sabugo.

- bom explicar, porque voc todo cientfico e pode no saber essas coisas que a Tia Nastcia conta.

- Essas coisas se chamam folclore, Emlia.

- Bom, deixa eu continuar, seno eu perco o fio da meada.

E foi direto cuidar do assunto. Assustou os caboclos noite e dia: quando via um tacando fogo no mato, ia l, dava um susto e botava o jaca pra correr; e nunca mais o jaca tinha coragem de botar fogo no mato. O Lobato deu o queijo e o fumo pro Curupira, que ficou feliz da vida. A fazenda comeou a produzir tudo do bom e do melhor, e o Lobato ficou riqussimo!

Emlia foi se empolgando com o que inventava e parecia que no ia mais parar de falar:

Um dia o Lobato fez uma festa e chamou todo o pessoal do Reino da Fantasia: o Peter Pan, a Branca de Neve, a Cinderela, e eu, claro. Foi uma festa linda. No final o Lobato deu uma cesta com cada coisa gostosa... tinha ma, banana, abacaxi, jabuticaba, maracuj, morango.

- S que, quando eu estava voltando pra casa, a cesta caiu no rio e no deu pra trazer nem um tantinho assim pra voc, Visconde.

O sabugo estava de boca aberta e se perguntava o que que a Tia Nastcia tinha colocado na Emlia para ela ser to asneirenta.

- Que tal, Visconde? Acho que assim ningum dorme lendo essas memrias.

- Ningum dorme, porque no consegue entender lhufas - disse o Visconde, desalentado.

- Mas isso que bom, muita ao!

- Muita confuso, isso sim. O Lobato tinha que fazer uma festa maravilhosa com a Cinderela e a Branca de Neve? Ser que a Chapeuzinho tambm foi?

- Claro que foi! Ela, a vov e o Lobo, que se comportou muito bem e no comeu ningum. E eu at rimei!

- Emlia, sem querer incomodar, ser que agora eu poderia continuar a escrever a verdade dos fatos, que eu pesquisei? - perguntou o Visconde voltando a se entusiasmar.

- Pode, Visconde. Mas seja breve, seno as pessoas vo fechar esse livro antes de chegar a parte mais emocionante que ...

- ... quando voc inventada - disse o sabugo imitando o jeito da Emlia.

- Isso mesmo!

O Visconde levantou os olhinhos e continuou as memrias:

Na poca da publicao do artigo "Urups", Lobato passou uma temporada em So Paulo e comeou a escrever artigos para O Estado de S. Paulo. Ele estava bem mais animado, sonhando em publicar seu primeiro livro de contos. J estava tentando vender a fazenda e se estabelecer em So Paulo. E eis que, para a sua alegria, ele vendeu a fazenda em 1917 para um tal senhor Alfredo Leite.

- Puxa, que bom! Vivas para esse senhor Leite! Agora Lobato s escritor!

- Mas lembre-se que todos os contos do primeiro livro foram gerados em Areias e na Fazenda do Buquira. Todos tm o universo do caipira, da vida do interior.

- Pelo menos essa fazenda do av serviu pra alguma coisa!

Lobato se mudou para a capital com a famlia, que tinha aumentado: Guilherme e Ruth nasceram. Nesse perodo ele comeou a colaborar na Revista do Brasil, uma importante publicao da poca, que trazia artigos sobre arte, letras, histria. Essa revista tinha uma preocupao nacionalista muito grande: queria mostrar o Brasil para os brasileiros.

- Essa eu no entendi, Visconde. As pessoas no conheciam o Brasil?

- que nas primeiras dcadas do sculo a moda vinha toda da Frana: o chique era falar francs, ler livros em francs, se vestir como os franceses. Como hoje a moda falar ingls, comer cheeseburger, naquele tempo o bacana era seguir as modas da Frana. E a Revista do Brasil queria valorizar as coisas do nosso pas, por isso dava muito valor cultura nacional.

E Lobato assentava como uma luva Revista do Brasil, porque seus contos e artigos valorizavam a linguagem e a cultura brasileiras. Nessa poca ele escreveu um artigo no jornal O Estado de S. Paulo que depois gerou uma enorme polmica. Era uma crtica sobre a exposio de uma pintora chamada Anita Malfatti, que seguia uma linha mais aberta de arte, pintando coisas como ela sentia e no como so na realidade. Lobato no gostava, achava que era um exagero, que deformava a natureza, que os quadros dela eram mais caricatura do que pintura.

- Ento, ela fazia licena potica na natureza, como os poetas - disse Emlia, toda metida.

Anita pintava sem querer copiar a natureza, o que na poca era uma novidade muito grande no Brasil,

mas estava na moda na Europa, e era isso que deixava Lobato possesso. Alm de no gostar daquele tipo de pintura, ele achava que a pintora era mais uma artista sem personalidade que "macaqueava" as modas da Frana. Depois ela ficou muito famosa e Lobato foi muito criticado por no ter entendido a sua obra. As pessoas que gostavam da sua maneira de pintar falaram que Lobato era atrasado, que ele s dava valor para as coisas do passado. S que na literatura ele foi um dos primeiros autores a inovar na linguagem: queria modificar o jeito antigo de escrever, exatamente como a Anita Malfatti queria mudar o jeito antigo de pintar.

- Eu acho que eu sou como essa Anita Mafalda.

- Malfatti, Emlia!

- Ela pintava do jeito que ela queria como eu escrevo sem me importar com os fatos.

- Ento, voc deveria escrever poesia ou romance, e no memrias.

- Mas a no teria a mnima graa! Todos os poetas e romancistas inventam. Eu sou a nica que invento em matria de memrias, ou pelo menos assumo que invento!

- Bom, mas voltando Revista do Brasil.

Quando Lobato comeou a publicar seus contos na Revista do Brasil, foi ficando cada vez mais conhecido. Ele se empolgou tanto com a revista que, quando o convidaram para ser o editor, decidiu compr-la.

- Ah, no, Visconde. No estou acreditando nisso. Agora que ele vendeu a fazenda e foi pra So Paulo, em vez de ficar quieto escrevendo, ele foi ser editor!

- E um dos editores mais importantes do Brasil! Mas, Emlia, no precisa ficar com essa cara.

Logo depois, ele lanou seu primeiro livro: Urups, que fez um sucesso estrondoso. Na verdade, o livro ia se chamar "12 histrias trgicas", porque reunia contos um tanto cruis, envolvendo morte e traies; o tema de todos a vida do caboclo, retratada sem floreios, da maneira prpria escola naturalista. O livro, impressionante, teve tiragens fantsticas e, quando j estava na terceira edio, um fato contribuiu para aumentar suas vendas: o famoso intelectual e poltico Rui Barbosa falou do livro de Lobato no meio de um discurso no Teatro Lrico, no Rio de Janeiro.

- E que que tem isso de mais? Por acaso esse Rui Babosa era algum rei da verdade?

- Rui Barbosa, Emlia, era um dos homens mais inteligentes e respeitados do Brasil naquela poca, considerado um poo de sabedoria. E o Teatro Lrico era um dos lugares mais chiques e bonitos, mas infelizmente foi derrubado. Ento, imagina, quando o Rui Barbosa falou do livro, falou do Jeca Tatu, falou da misria no interior do Brasil que o Lobato vivia denunciando, foi um au. Todo mundo queria conhecer o Lobato, comprar os livros dele, discutir suas idias. No dia seguinte saiu em todos os jornais: "Rui Barbosa cita o Jeca Tatu de Monteiro Lobato!".

- Chega desse Jeca, Visconde. Eu j estou ficando meio cansada dessa histria.

- Pois , e no s voc no. At o Lobato comeou a no agentar o Jeca.

Por volta de 1919, ele notou que fora muito cruel com o caboclo; que, na verdade, a culpa era do governo, que fingia no ver o problema da misria no interior do Brasil. Alm disso, todo mundo queria discutir esse assunto com ele, porque muita gente no acreditava que a realidade era to feia quanto ele pintava. Diziam que estava exagerando; que

ele, sendo escritor, inventava coisas. Achavam at que ele

tinha sido pago para difamar o Brasil!

Fazendo uma rpida interrupo na leitura, o Visconde explicou:

- Nessa poca no se falava to mal do pas como hoje em dia.

- , hoje todo mundo mete o pau no Brasil e ningum reclama.

Mas Lobato no estava difamando o pas. Ao contrrio, estava apontando os problemas e querendo solues. Entrou at numa campanha de saneamento iniciada pelo governo. Escreveu artigos fervorosos sobre o atraso dos que viviam no campo, onde doenas como malria, lepra, sfilis e tuberculose acabavam com a populao. Participou da luta dos grandes mdicos sanitaristas, como Miguel Pereira, Oswaldo Cruz, Belisrio Pena, Carlos Chagas, Artur Neiva e tantos outros. Reclamou do governo e dos intelectuais, que s sabiam torcer o nariz para os verdadeiros problemas do Brasil. Mas tambm estava cansado de ouvir todo mundo na rua perguntar pelo Jeca: "E a, seu Lobato, cad o Jeca? Como que vai aquele molengo? Jeca mais preguioso aquele, hein?". Aquilo j estava virando um tormento para ele.

- No s para ele como pros leitores. Fica estipulado que ningum mais fala do Jeca nessas memrias!

- Est bom, Emlia, ento vamos falar do Saci-Perer.

- Oba! finalmente o Stio chegou!

- No, Emlia, ainda no. Como eu j disse, o momento era de dar muito valor s coisas da terra. O nacionalismo era muito forte.

Sendo um dos escritores que mais defendiam a cultura brasileira, Lobato teve a idia de fazer uma pesquisa sobre o Saci-Perer entre os intelectuais e os artistas, para o jornal O Estado de S. Paulo. E constatou que todos lembravam alguma coisa sobre ele.

- Bom, mas depois ele escreveu o livro do Saci.

- , mas antes ele fez essa pesquisa.

Ficou to entusiasmado que resolveu escrever um livro com o tema. Assim, em 1918, antes de lanar Urups, ele publicou O Saci-Perer: resultado de um inqurito. As vendas foram boas, e depois de dois meses saiu a segunda edio. E foi nesse perodo que Lobato comeou a se interessar em se tornar um editor de livros. Logo de sada, notou que o Brasil tinha muitos leitores mas os livros no chegavam at eles. O problema era acertar na distribuio do livro, isto , levar o livro para todos os cantos do pas. Naquela poca, s existiam trinta e poucas casas que vendiam livros no Brasil inteiro! Lobato, ento, resolveu mandar cartas para todos os comerciantes que quisessem vender "uma coisa chamada livro".

- No me diga que ele fez um padeiro vender livro em vez de po?

- Eu acho que era exatamente o que ele queria, tamanho o seu entusiasmo. Mas quem topou foram as farmcias,

papelarias, bazares, bancas de jornal, que comearam a vender livros estimulados pela forma de pagamento. Lobato mandava os livros em consignao, quer dizer, os comerciantes s pagavam os livros que vendessem.

- Quer dizer que se o seu Z das Dores chegasse na farmcia e pedisse um remdio pra dor de estmago saa de l com um livro na mo?

- No, claro que no. Mas se ele quisesse um livro era s ir farmcia, j que no tinha livraria, entendeu?

- E qual era o nome da editora? Que eu saiba, toda editora tem nome. Editora Sem Nome, por acaso?

O Visconde leu, depois de levantar os olhinhos:

No comeo tudo funcionava sob a chancela da Revista do Brasil, que em 1919 se transformou em Monteiro Lobato & Cia. A editora ia de vento em popa, e Lobato, como sempre, s pensava em crescer. As edies eram de mil exemplares, numa poca em que o normal era fazer edies de apenas quatrocentos exemplares. Lobato vibrava de entusiasmo, pois descobrira um pas de leitores, e escrevia, satisfeito: "Isto o melhor negcio que existe! Dizem que o Brasil no l! Uma ova! A questo saber levar a edio at o nariz do leitor, aqui ou em Mato Grosso, no Rio Grande do Sul, no Acre, na Paraba, onde quer que ele esteja, sequioso por leituras... Livro cheirado livro comprado, e quem compra l. O Brasil est louco por leituras. S os editores que no sabiam disso". O que acontecia de diferente na sua editora era que l se lanavam autores novos e bons; os medalhes no entravam. E mesmo assim a editora vendia. Todos queriam publicar seus livros pela editora de Lobato. Ele no parava de receber amigos e desconhecidos querendo mostrar os originais. Era tanta gente que s dava para

trabalhar mesmo no perodo da manh, pois tarde era uma festa.

- Estou vendo que com essa festana toda vai sobrar pouco tempo pra ele inventar os livros do Stio.

- A verdade, Emlia, que o Lobato, depois que virou editor, cismou de ficar espalhando que no era mais escritor, que agora era um homem de negcios.

Mas mesmo nesse perodo de dono de editora ele publicou alguns livros de contos, como Cidades mortas, Negrinha e O macaco que se fez homem, feitos na poca da faculdade, de Areias e da Fazenda do Buquira, os quais ele tirou da gaveta e reescreveu. Tambm lanou Idias de Jeca Tatu, Mundo da Lua e A onda verde, livros que reuniam crnicas e artigos que Lobato publicava em jornais.

- A onda verde? O Lobato j fazia livro ecolgico naquele tempo?

- No.

A onda verde traz um artigo sobre o problema do caf. Lobato achava errado o Brasil dedicar tantas terras a essa cultura; este era o principal produto de exportao daquele tempo, mas e se de repente a Europa e os Estados Unidos no quisessem mais caf? E foi o que aconteceu: com a crise de 1929, ningum podia importar nada. Lobato tinha escrito esse artigo em 1921!

Outra coisa muito importante na vida de Lobato era sua paixo pelo jogo de xadrez.

Emlia olhou para o Visconde e no entendeu nada: ser que o sabugo estava sofrendo de memorite aguda, doena que atinge pessoas que passam muito tempo

escrevendo memrias? O que que tinha a ver falar de xadrez naquela altura do campeonato?

- Xadrez?! Mas quem quer saber se ele jogava xadrez ou no jogava, Visconde? Que idia! Voc est passando bem? Quer parar um pouquinho? Tomar um ar fresco? Comer um bolinho da Tia Nastcia?

- que eu pensei que voc poderia se interessar porque foi jogando xadrez que o Lobato teve a idia de escrever a sua primeira histria infantil. Mas voc no est muito interessada, no ?

- Ei! Finalmente! Vivas para esse jogo de xadrez! Conta logo, Visconde! Como que foi que a gente nasceu?

- Bom, deu-se o seguinte:

Lobato gostava demais de jogar xadrez, desde que era jovem. Mas era muito distrado e no prestava ateno nas jogadas do adversrio. O engraado era que ele reclamava dos seus prprios lances como se o adversrio tivesse roubado: "Isso no vale! Fiz uma pssima jogada!".

Nas ltimas horas do expediente, a redao da Revista virava um clube. Numa dessas tardes, apareceu um amigo, chamado Toledo Malta, que, claro, foi convidado para jogar uma partida. S que, enquanto jogava, esse Toledo contou uma histria sobre um peixinho que, tendo ido dar um passeio fora do rio, quando voltou para casa morreu afogado, pois no sabia nadar.

Lobato adorou essa histria - disse que o peixinho comeou a nadar na sua imaginao.

- Que histria mais boba! - disse Emlia, com cimes.

Quando Malta saiu, ele correu para a mesa e comeou a pr a histria no papel. Depois, contou que as recordaes da roa, do ribeiro, da floresta,

das brincadeiras com as irms tambm comearam a aparecer, e de repente ele estava escrevendo: "Naquela casinha branca, l muito longe, mora Dona Benta, uma velha de mais de sessenta anos".

- Visconde, voc s pode estar caoando de mim. Voc acha que eu vou engolir essa histria?

- Mas de que voc est falando, Emlia?

- Voc acha que algum vai acreditar que o famoso Stio do Pica-Pau Amarelo foi inventado por obra e graa de um peixinho afogado?

- A coisa no bem assim, Emlia.

A histria do peixe afogado, que foi at publicada mas Lobato nem lembrava mais onde, despertou nele a lembrana do ribeiro onde pescava quando criana. E a primeira aventura do Sitio exatamente quando Narizinho, estando no ribeiro, entra no Reino das guas Claras e conhece o Prncipe Escamado. Quando Lobato sentiu vontade de criar uma histria maior, escreveu A menina do narizinho

arrebitado, livro ilustrado por Voltolino e publicado em 1921.

- O nome do livro Reinaes de Narizinho, Visconde! Voc est me saindo um sbio de meia-tigela! E olha que eu nem fiz pesquisa.

- Mas era A menina do narizinho arrebitado, sim, Emlia.

A maioria das pessoas no sabe, mas Lobato reescreveu muita coisa mais tarde, em 1925. E tambm mudou o ttulo desse livro. No comeo os livros do Stio eram visivelmente dedicados s escolas, tanto que o subttulo do A menina do narizinho arrebitado era: "Segundo livro de leitura para uso das escolas primrias". A forma do texto era didtica e havia comentrios como: "Que pena! Tudo aquilo no passara de um lindo sonho!". Tempos depois, quando Lobato j havia percebido a importncia do mundo que estava criando, passou a misturar fantasia e realidade.

- Quer dizer ento que no comeo ele nem ligava pra gente?

- No comeo a gente nem existia, Emlia.

- Como assim, eu no existia? - berrou Emlia, completamente fora de si.

O Visconde ficou assustado com a reao da boneca, mas depois encheu o peito e falou toda a verdade, mesmo achando que ela podia mudar tudo:

- isso mesmo, Emlia, no comeo voc era uma boneca de pano comum, sem muita importncia. S mais tarde que voc se tornou o que todo mundo sabe: uma boneca, crtica acima de tudo, que fala pelos cotovelos, que uma dadeira de idias, que fala o que lhe vem cabea. No final, o Lobato achava que voc que o dominava e no o contrrio.

O Visconde disse tudo isso de um s flego, e logo foi entregando o papel e a caneta para a Emlia fazer a verso dela. Mas a boneca teve uma reao totalmente inesperada: ficou decepcionada e sentida, pois achava que desde o comeo havia sido a personagem principal do Stio.

- Eu no vou fazer licena potica nenhuma, Visconde. Eu queria ver se fosse com voc. Sempre pensei que