Locus suspectus: o desenho no espaço e os espaços do...

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1 Universidade do Estado de Santa Catarina – UDESC Centro de Artes – CEART Programa de Pós-Graduação em Artes Visuais Diego Rayck da Costa Locus suspectus: o desenho no espaço e os espaços do desenho Orientador: Prof. Dr. Antônio Vargas Florianópolis/SC 2009 Dissertação de Mestrado elaborada junto ao Programa de Pós-Graduação em Artes Visuais do CEART/UDESC, para obtenção do título de Mestre em Artes Visuais.

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Universidade do Estado de Santa Catarina – UDESC

Centro de Artes – CEART

Programa de Pós-Graduação em Artes Visuais

Diego Rayck da Costa

Locus suspectus:

o desenho no espaço e os espaços do desenho

Orientador: Prof. Dr. Antônio Vargas

Florianópolis/SC

2009

Dissertação de Mestrado elaborada junto ao Programa de Pós-Graduação em Artes Visuais do CEART/UDESC, para obtenção do título de Mestre em Artes Visuais.

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C837d Costa, Diego Rayck da

Locus suspectus : o desenho no espaço e os espaços do desenho / Diego Rayck da Costa. – 2009. 218 p. : il. ; 21 cm.

Bibliografia: 000-00 Orientador: Antônio Vargas Dissertação (mestrado) – Universidade do Estado de

Santa Catarina, Centro de Artes, Mestrado em Artes Visuais, Florianópolis, 2009. 1. Desenho – 2. Espaço (Arte) – 3. Espaço (Arquitetura) –

I. Vargas, Antônio. II. Universidade do Estado de Santa Catarina. Mestrado em Artes Visuais. III. Título.

CDD: 700

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Diego Rayck da Costa

Locus suspectus:

o desenho no espaço e os espaços do desenho

Dissertação de Mestrado elaborada junto ao Programa de Pós-

Graduação em Artes Visuais do CEART/ UDESC, para obtenção do

título de Mestre em Artes Visuais, na linha de pesquisa Processos

Artísticos Contemporâneos.

Banca examinadora:

Orientador: Prof. Dr. Antonio Vargas (CEART/UDESC)

Profa. Dra. Regina Melim (CEART/UDESC)

Prof. Dr. Eduardo Vieira da Cunha (IA/UFRGS)

Florianópolis, 13 de novembro de 2009.

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para Aline

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Agradecimentos

Meus agradecimentos aos docentes, coordenação e equipe técnica do PPGAV pela dedicação e empenho no encaminhamento das atividades. Aos colegas do mestrado pelas várias demonstrações de companheirismo durante o curso. A Sandra Lima Siggelkow pela atenção e disposição especial em tornar alguns obstáculos técnico/acadêmicos visíveis e contornáveis. A Eduardo Vieira da Cunha pelas suas contribuições e generosidade na banca examinadora. A Regina Melim por suas contribuições na banca examinadora, em sua disciplina e nos contatos com os trabalhos. A Antonio Vargas pela confiança que me depositou em sua orientação. Aos meus alunos da graduação em artes pela convivência de discussão e troca. A Fernando Lindote pelas observações e considerações precisas sobre a produção aqui analisada. Aos amigos Julia Amaral, Ana Lúcia Vilela, Augusto Benetti, Fernando Garcia, e outros que não me lembro de citar agora, mas que foram interlocutores preciosos durante a pesquisa. Aos familiares pelo apoio e compreensão. Ao Petit e Isabelle. E, com carinho, a Aline pelo estímulo desde o início, pelo apoio e aconselhamento ao longo do processo, pela interlocução constante, interessada e generosa e pelo presente que ela está trazendo.

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Resumo Esta pesquisa é uma investigação sobre parte de minha produção artística realizada entre os anos de 2006 e 2009, focada em analisar os elementos constitutivos e características determinantes no processo de criação destas obras vinculados ao desenho e suas relações com o espaço. Para isso pesquisa recorre às discussões sobre os múltiplos desdobramentos que o desenho pode assumir em um caráter processual, sobre os sistemas de referência entre lugares e certos artifícios, operações dentro do âmbito de site specificity e também sobre as zonas residuais dos projetos de construção do espaço, sobretudo do espaço expositivo institucional. A referência para estas reflexões são as pesquisas de alguns artistas, especialmente Gordon Matta-Clark e Robert Smithson, e análises relacionadas a estes artistas e aos assuntos apresentados desenvolvidas pelos teóricos Yves-Alain Bois, Anne Cauquelin, Fernando Castro Flórez, Pamela Lee, Miwon Kwon, James Meyer, Juan Gómez Molina, entre outros. A forma como as obras e referências em questão lidam com a espacialidade, o deslocamento e a indeterminação geram situações potencialmente críticas que são tratadas na pesquisa através do conceito de unheimlich de Sigmund Freud.

Palavras-chave desenho. espaço. zona residual. unheimlich.

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Abstract This research is an investigation on part of my artistic production developed between the year 2006 and 2009, focused on analyzing the components and crucial features for the creation of these works related to drawing and its relationship with space. It appealed to the discussions about the many developments that drawing can take on a procedural concern, on the reference systems between places and some devices, operations within the scope of site specificity and also on the waste zones of constructed space projects, especially the institutional exhibition space. The reference for these reflections are the works of some artists, especially Gordon Matta-Clark and Robert Smithson, and the analysis related to these artists and the topics presented above by the theorists Yves-Alain Bois, Anne Cauquelin, Fernando Castro Flórez, Pamela Lee, Miwon Kwon, James Meyer, Juan Gómez Molina, among others. The way that the works and references in question deal with spatiality, displacement and indeterminacy generate potentially critical situations that are dealt within this research through the concept of Sigmund Freud's unheimlich.

Keywords drawing. space. waste zone. unheimlich.

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Sumário

Introdução............................................................................ 15

1. Considerações sobre desenho..................................... 26

1.1. Desenho como forma de pensamento................ 30

2. Desenho no espaço, espaço no desenho.................... 46

2.1. Homens-de-nada (imagens).................................... 52

Homens-de-nada (texto)......................................... 73

2.2. Homens-parede (imagens)...................................... 82

Homens-parede (texto).......................................... 103

3. Locus suspectus............................................................. 115

3.1. Buracos (imagens)................................................ 118

Buracos (texto)...................................................... 157

3.2. Outros espaços (imagens)..................................... 186

Outros espaços (texto).......................................... 193

Considerações Finais......................................................... 205

Referências ......................................................................... 215

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Introdução Esta pesquisa parte do entendimento do desenho

como forma de pensamento para compreender as relações entre as intervenções gráficas desenvolvidas nas séries homens-de-nada, homens-parede, buracos e outros espaços, trabalhos por mim desenvolvidos no período de 2006 a 2009, e suas articulações com o espaço arquitetônico. Assumindo as implicações das relações que se estabelecem entre estas duas instâncias, tanto a proposição gráfica quanto o espaço físico são pensados, no contexto desta pesquisa artística, enquanto desenho.

Para esta análise, será utilizado o conceito de unheimlich, o inquietante estranhamento, desenvolvido pelo psicanalista austríaco Sigmund Freud. Este conceito relaciona o estranho ao familiar e traz importantes implicações ligadas à espacialidade oriundas do termo alemão heimlisch : doméstico, caseiro.

Ainda que o estranhamento específico do unheimlich, caracterize o enfoque de maior importância para esta pesquisa, o estranhamento, em uma definição mais ordinária (admiração, surpresa e desconforto) possui importância considerável para se refletir sobre a arte, presumindo que ela permita a problematização de certezas e modelos, levando o espectador a reposicionar-se diante do mundo.

A partir do século XX e das mudanças do estatuto da obra de arte, a idéia de estranhamento aparece de forma mais explícita nas reflexões artísticas, uma vez que a arte passa a questionar seus próprios mecanismos, operando através de rupturas e evidenciando diferenças e dúvidas.

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Esta condição reflete, de uma maneira geral, a crise dos valores estabelecidos que caracteriza o contexto contemporâneo, com sua impossibilidade da instauração de discursos universais, hegemônicos, totalizantes, assim como uma constante situação de questionamento e relativização de conceitos.

O perfil questionador reivindicado pela arte está diretamente relacionado ao embaralhamento das categorias artísticas e das fronteiras disciplinares ao recusar a tradicional hierarquia de suportes, procedimentos ou materiais. A arte, assim reconfigurada, incorpora o contexto espacial, histórico e social em que se insere com cada vez menos intermédios.

Segundo o crítico de arte Michael Archer, o fato de a arte recente utilizar-se de materiais ou atividades diversas e por vezes ordinárias, aponta para o reconhecimento de que o significado de uma obra não está necessariamente contido nela, mas emerge do seu contexto1, uma vez que nenhum método, técnica ou material possa garantir, por si só, a “artisticidade” de uma obra.

Há atualmente propostas artísticas muito próximas de práticas cotidianas e desvencilhadas de categorias e dispositivos que a caracterizariam há algumas décadas como arte, possibilitando experiências singulares ao re-significar experiências cotidianas, naturalizadas, banalizadas.

O estranhamento é aqui considerado mais especificamente como uma reação em um conjunto de 1 ARCHER, Michel. Arte Contemporânea – uma história concisa. São Paulo: Martins Fontes, 2001. No prefácio, Archer resume o que ele esclarece ao longo de sua obra na qual analisa o panorama da arte contemporânea.

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relações em contextos específicos, e não como um valor absoluto em si mesmo, e que poderia estar, por isso, atrelado a estereótipos e ser tratado como um recurso de gênero. Por outro lado, diante das questões específicas levantadas pelas obras analisadas, especialmente nas séries buracos e outros espaços, esta noção de estranhamento requer uma maior definição, justificando a opção pelo conceito de unheimlich.

Como objeta o historiador norte-americano Anthony Vidler, “o sentido contemporâneo do estranho [...] não é simplesmente a permanência de um lugar-comum romântico ou um sentimento restrito ao gênero de horror e estórias de fantasmas”2. O texto de Freud, enquanto estudo literário e estético, continua sendo amplamente valorizado e discutido, retomado por diversos autores e pela produção artística, literária, arquitetônica e cinematográfica. Igualmente importantes são as considerações de cunho psicanalítico, especialmente em sua dimensão social, uma vez que o texto, em uma perspectiva histórica, é uma resposta significativa aos traumas do “choque do moderno” e das duas guerras mundiais, ainda presentes no “imaginário contemporâneo”3.

No artigo Das Unheimlich publicado em 1919, no qual o conceito é apresentado, Freud parte do ensaio de 1906 Über die Psychologie des Unheimlichen, do psicólogo Ernest Jentsch, no qual o estranho é relacionado ao

2 VIDLER, Anthony. The architectural uncanny: essays in the modern unhomely. Massachusetts: Mit Press, 1994. p. 12. “Yet the contemporary sense of the uncanny […] is not a simply survival of a romantic commonplace, or a feeling confined to the artistic genres of horror and ghost stories.” 3 Vidler. Op. cit. p. 9.

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desconhecido, a uma incerteza intelectual, o que Freud não considera incorreto, mas incompleto: “[...] somos tentados a concluir que aquilo que é ‘estranho’ é assustador precisamente porque não é conhecido e familiar. Naturalmente, contudo, nem tudo o que é novo e não familiar é assustador. A relação não pode ser invertida”4. Freud segue analisando o uso do termo original alemão unheimlich, explicando que esta análise lingüística na verdade foi a confirmação de uma série de constatações em casos clínicos e observações pessoais. Este levantamento inicial chama a atenção para o fato de que o termo na verdade seria uma subespécie de heimlich, palavra empregada para designar o que é familiar, íntimo, confortável e seguro. De modo ambíguo, heimlich também quer dizer oculto, escondido, inacessível ao conhecimento e potencialmente perigoso. Freud observa que “heimlich é uma palavra cujo significado se desenvolve na direção da ambivalência, até que, finalmente, coincide com o seu oposto, unheimlich”5.

Estas primeiras considerações de Freud já se mostram muito oportunas para esta pesquisa. Elas definem dois aspectos importantes do estranho. O primeiro é a relação entre o familiar e o assustador: “o estranho é aquela categoria do assustador que remete ao que é conhecido, de velho, e há muito familiar”6. O estranho, diferentemente do que Freud aponta no estudo de Jentsch, está ligado ao familiar, a algo conhecido e íntimo. A tensão neste caso permanece na transição do conhecido ao desconhecido até 4 FREUD, Sigmund. Edição Standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud. Volume XI. Rio de Janeiro: Imago, 1969-1990. p. 7. 5 Ibidem. p. 283. 6Ibidem. p. 276.

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ser percebido como assustador. Mas como o que é conhecido apresenta-se como desconhecido? Como aponta Freud no início de seu texto, nada se encontra sobre o assunto em “extensos tratados de estética que em geral preferem preocupar-se com o que é belo, atraente e sublime, [...] mais do que com os sentimentos opostos, de repulsa e aflição”7. Apesar de, em seguida, desculpar-se por não fazer um exame muito completo da literatura relacionada ao assunto em questão, a constatação desta lacuna confirma a intenção de Freud de tratar de uma experiência estética negligenciada. Consciente do compromisso psicanalítico de suas considerações, muito coerentemente Freud parece projetar para a disciplina da Estética o mesmo processo psicológico de indivíduos que ele identifica como essencial para o estranho, que é a repressão. Ele chama a atenção para a definição do filósofo alemão Friedrich W. J. von Schelling de que “unheimlich é tudo o que devia ter permanecido secreto e oculto mas veio à luz”8, pois sua contribuição para a discussão sobre o estranho se baseia justamente na relação com o retorno do reprimido. Freud discute sobre a natureza desta repressão, baseada em crenças primitivas superadas ou em complexos infantis, alertando para a dificuldade de distinção entre as duas e lembrando que elas não geram apenas a experiência de estranhamento. É importante destacar o estabelecimento de uma relação, e mesmo de uma proporcionalidade, entre assombro e familiaridade.

Para introduzir o trajeto de pesquisa Locus suspectus: o desenho no espaço e os espaços do desenho apresento brevemente o conjunto das séries abordadas.

7 Ibidem. p. 276 8 Ibidem. p. 282.

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Homens-de-nada, série que vem sendo desenvolvida desde 2006, é composto por desenhos feitos à nanquim sobre a parede. Apresenta pequenas figuras humanas, geralmente incompletas, representadas através de linhas curtas, fragmentárias, que tornam sua estrutura frágil e rarefeita. Neste trabalho, o espaço gerado pelo desenho e ocupado pela figura conta com um mínimo de referência, apenas algum plano no qual a figura se apóia. Realizados inicialmente em cadernos de anotações, os desenhos passaram a ser instalados diretamente sobre as paredes, permitindo que a percepção do vazio gerado por sua referência espacial mínima se alternasse com a percepção do plano da parede.

A partir deste trabalho, foi desenvolvida em 2007 a série Homens-parede, trazendo outras questões às já iniciadas com os homens-de-nada. Esta série é composta por pequenas peças humanóides inseridas na parede como se estivessem parcialmente fundidas a ela. Assim como nos homens-de-nada, a figura está em uma situação dúbia de formação ou diluição, na qual a superfície plana e opaca da parede contribui para a incerteza desta situação. Apesar do uso de recursos escultóricos, este trabalho é pensado como desenho, a partir de suas operações interseccionais, que ativam um outro entendimento do desenho e englobam as discussões espaciais. Estas situações de intervenção caracterizam-se por projeções de um pensamento que tem sua origem e desenvolvimento no desenho.

Ambas as séries apresentam semelhanças em termos de ocupação do local expositivo, visibilidade, relação de escala e figuração. Em termos de processuais, elas mantiveram proximidade ao ampliarem a noção de desenho que estava sendo tomada inicialmente.

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Considerando estas relações, as séries serão tratadas conjuntamente no segundo capítulo.

Em 2008, a série buracos começa a ser desenvolvida, apresentando desenhos de escavações em ambientes – cômodos, corredores, escadas, gramados, etc., inicialmente realizados em papel e fixados na parede quando expostos. Diferente das séries anteriores, buracos não apresenta a figura humana como elemento central, apenas mostrando, por sugestão narrativa, uma possível presença através de vestígios de ações.

Em decorrência deste processo, no início de 2009, foi desenvolvida a série outros espaços. Neste trabalho, pequenos fragmentos arquitetônicos que têm como referência o próprio local expositivo são desenhados sobre a parede. Nos desenhos, as linhas que delimitam as mudanças de planos entre os pisos, paredes e teto dos locais representados ocasionalmente se estendem até coincidirem com linhas que constituem desenhos vizinhos e que mostram outros fragmentos do lugar, gerando uma espécie de teia na qual linhas ligam e relacionam aglomerados de desenhos a princípio independentes, mas que são concebidos como conjunto. Estas duas últimas séries serão abordadas no terceiro capítulo.

A presente investigação artística, seguindo a linha de pesquisa Processos Artísticos Contemporâneos, orienta-se por uma reflexão teórica articulada ao trabalho artístico em processo. Esta abordagem assimila a imersão do pesquisador imerso em seu próprio objeto de estudo que é dinâmico, complexo e de difícil apreensão. Esta situação ora lhe permite uma posição privilegiada em termos de investigação em artes, ora lhe exige um difícil exercício de afastamento e proximidade com relação ao seu próprio processo poético e reflexivo.

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No trajeto desta pesquisa, os trabalhos que compõem as séries são descritos visando o melhor entendimento de seus elementos constitutivos. Isto possibilita uma análise sobre a participação destes elementos nas questões destacadas em cada trabalho, como deslocamentos entre espaço percebido e espaço representado, sobreposição de diferentes situações de um lugar e ficcionalização deste através do desenho. Conjuntamente, a pesquisa narra o desenvolvimento e desdobramentos das séries, levando em conta o caráter dinâmico do processo, não apenas apreciado em uma sucessão de resultados que refletem instantes da produção, mas como fluxo de reflexões simultaneamente visuais e teóricas.

Definindo seu escopo, a pesquisa concentra-se em um aspecto constante desta produção recente: a presença do desenho em sua condição instalada, ou seja, dialogando diretamente com o local onde é exposto. Este aspecto marca a necessidade de abordar o desenho em sua relação de registro gráfico sobre um suporte, assim como o caráter arquitetônico deste suporte, com suas implicações espaciais que oscilam entre o projeto e a experiência sensorial de um lugar. Nestes desenhos instalados estabelece-se um conjunto de referências e relações entre a experiência sensível no espaço e os recursos de representação e ficcionalização deste espaço.

A partir destes pontos apresentados, a pesquisa organiza-se em três capítulos. No primeiro capítulo, Considerações sobre desenho, a pesquisa apresenta algumas reflexões sobre o desenho orientadas por distintas concepções que o associam ou identificam com o processo de pensamento. Sem o intuito de deter-se em uma análise histórica detalhada, este capítulo faz um breve

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levantamento de discursos e práticas sobre o desenho em diferentes contextos, e que podem contribuir para as reflexões propostas nos capítulos posteriores. Estas concepções valorizam distintas possibilidades de trabalhar o desenho. Este é enfatizado enquanto dispositivo para projetar, em seu aspecto não apenas instrumental de preparação e visualização de um objetivo, mas em seu aspecto abstrato de pensamento visual atrelado à intencionalidade.

Por outro lado, o desenho também é abordado enquanto ferramenta de investigação visual, implicado originalmente na representação baseada em observação, até a exploração dos limites do próprio desenho, um desenho que se propõe como relação com o mundo através de uma reflexão e uma prática exploratória, inclusive dos próprios recursos.

As diferentes direções do desenho lhe permitem criar e desestabilizar modelos, gerar ficções, reorganizando, interpretando e atualizando o contato do homem com o mundo e as marcas produzidas neste encontro.

Este levantamento, além de citar algumas obras de artistas que tornam mais claras as situações comentadas, referencia textos de Jacqueline Lichtenstein, Juan José Gómez Molina, Edith Derdyk, Fernando Castro Flórez e Emma Dexter, artistas, pesquisadores e curadores envolvidos em projetos, publicações e exposições que discutem o desenho.

Após esta primeira explanação do assunto, o texto aborda diretamente os trabalhos da produção em questão. No segundo capítulo, intitulado Desenho no espaço, espaço no desenho, são analisadas as séries homens-de-nada e homens-parede, pontos de partida para a reflexão sobre

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espaço e desenho. Estas séries, além de se situarem no marco inicial da produção contemplado pela pesquisa, apresentam várias características em comum, como a presença da figura fragmentária ou incompleta, e proximidades muito grandes entre formas de trabalhar escala, visibilidade e ocupação dos locais expositivos. Estes aspectos envolvem a reflexão sobre a mudança do suporte papel para a parede, incorporando a experiência espacial e ampliando o uso das potencialidades do desenho. Sobre o desenho, as séries tratam de sua incompletude através da fragilidade e fragmentação das figuras, assim como a impossibilidade de delimitar as bordas/molduras do desenho. Ao pensar as correspondências entre desenho e espaço construído, o texto aborda alguns aspectos da obra do artista Gordon Matta-Clark através da pesquisa de Pamela M. Lee.

Dando continuidade à pesquisa, este capítulo também pretende discutir as maneiras de ocupar as zonas de pouca visibilidade nos lugares ocupados pelo trabalho, articulando noções de vazio que se ativa a partir de intervenções pontuais e discretas.

No terceiro capítulo, chamado Locus Suspectus, a pesquisa aborda as séries buracos e outros espaços.

O primeiro sub-capítulo discorre sobre a série buracos, narrando seu processo de elaboração no qual a situação da montagem passa a envolver de forma mais complexa o deslocamento, tanto da representação como do observador, entre os dispositivos de referência e o local da experiência espacial que envolvem o espaço expositivo.

Buracos desencadeia uma reflexão sobre site specificity, aproximando-se, para isso, das considerações de James Meyer e Miwon Kwon sobre o assunto, assim como do conceito de non-site do artista norte-americano Robert

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Smithson. Complementando, serão utilizadas considerações de Anne Cauquelin sobre o vazio e o lugar, pensados como incorporais na filosofia estóica.

O segundo sub-capítulo fala da série outros espaços e trata a questão das visibilidades de regiões menos privilegiadas nas nossas relações com os lugares, abordando o que seriam espaços marginais, lugares residuais do projeto arquitetônico e que por isso mostram afinidade com a idéia de repressão tratada no conceito de unheimlich. Para esta reflexão, a pesquisa propõe retomar a análise crítica da historiadora da arte Pamela M. Lee sobre a obra do artista norte-americano Gordon Matta-Clark e o conceito de zona proposto pelo historiador da arte Yve-Alain Bois na curadoria conjunta com Rosalind Krauss da exposição L’informe: mode de’emploi.

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1. Considerações sobre desenho No decorrer desta pesquisa algumas reflexões sobre

os trabalhos em questão conduziram a uma abordagem mais atenta e específica sobre o desenho enquanto linguagem, o que não estava previsto na elaboração do projeto inicial. Isto ocorreu pela natureza gráfica dos trabalhos em questão, que indicava constantemente a necessidade de pensar as especificidades do meio.

Ao analisar a bibliografia sobre o assunto ficou evidente que tal opção não limita o desenho enquanto território rigidamente delimitado, categoria normatizada ou linguagem autônoma. O que confirma este interesse e permite tal aproximação é justamente o caráter permeável do desenho com outras práticas, sua capacidade de estabelecer acessos, trânsitos e correspondências em diferentes momentos do processo artístico e sua clareza ao evidenciar a própria trajetória processual.

A importância do caráter gráfico do trabalho é fundamental para a análise de outros aspectos, como a questão espacial, não apenas servindo de via de acesso (como um desenho mediador), mas de campo nos quais estes aspectos se esboçam, se encontram e podem articular sentidos.

Apesar do reconhecimento da importância de abordar o desenho para pensar o trabalho, é difícil encontrar uma forma de abordá-lo sem reduzir sua complexidade. O desenho parece fugidio às tentativas de apreendê-lo, mesmo restringindo a reflexão a um conjunto definido e pequeno de trabalhos. Isto, parcialmente, parece se explicar por esta posição paradoxal do desenho enquanto conceito amplo, interdisciplinar e dinâmico e,

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simultaneamente, conjunto de práticas com certas particularidades que podem ser tratadas sob esta mesma designação: desenho. Esta pesquisa não pretende optar entre uma ou outra destas concepções, pois parte do pressuposto de que elas não apresentam uma dicotomia estanque, nem sequer um ponto fronteiriço nítido, mas que esta condição complexa e conflituosa é constitutiva do desenho.

Considerando a relação que o artista-pesquisador estabelece na sua investigação em artes, a tentativa de olhar frontalmente para o desenho parece levá-lo à dissolução, tornando necessário tratá-lo de forma oblíqua – como se procede para observar um objeto na penumbra. Sem se eximir de pensar o desenho dentro do contexto do trabalho, este capítulo procura apresentar um breve levantamento das definições e conceitos referentes à participação do desenho na tradição artística ocidental.

Ciente de suas limitações quanto ao recorte do objeto de pesquisa, pretendo percorrer brevemente a trajetória do desenho, não apenas enquanto objeto gráfico, mas como forma de pensamento, buscando assim situar algumas questões relativas ao desenho na contemporaneidade e compreender como os trabalhos analisados nos capítulos seguintes articulam estas questões, principalmente em suas implicações na projeção espacial.

Neste intento a pesquisa conta com as contribuições teóricas de Jacqueline Lichtenstein, Juan José Gómez Molina, Edith Derdyk, Fernando Castro Flórez e Emma Dexter, que constroem suas análises partindo desde textos históricos essenciais, até obras paradigmáticas do passado artístico recente. Apesar do perfil mais histórico deste levantamento, a intenção é contribuir para os capítulos

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seguintes no momento de discorrer detalhadamente sobre os trabalhos, esclarecendo como estes articulam estas questões.

Um levantamento histórico sobre desenho, sem muita dificuldade, pode situar a posição deste na tradição da arte ocidental. A trajetória histórica do desenho privilegia sua relação com a pintura, escultura e arquitetura, assim como seu papel especial na concepção da obra, esta compreendida, durante um longo período, em termos de um processo que tem início em uma idealização e culmina em uma finalização materializada e conclusiva9.

No contexto contemporâneo, tendo sido problematizadas as noções conclusivas e as hierarquias técnicas no processo artístico, o desenho parece ocupar uma posição diferente, discreta apesar de insistente.

Considerando no desenho a acessibilidade de execução e possibilidade de projeção e desdobramentos em outras etapas das obras, é possível pensar sobre sua participação atual em diversas etapas de elaboração e desenvolvimento no processo artístico. Sobre sua posição, a discrição que comento se refere à visibilidade com a qual o desenho trabalha, visibilidade que possui uma freqüência particular, parecendo avessa a uma aparição ruidosa. Coloco aqui este posicionamento enquanto impressão inicial e ao mesmo tempo um estímulo nesta pesquisa,

9 Esta concepção pode ser encontrada em textos referenciais da teoria artística ocidental, como os que serão citados a seguir de Zuccaro e Le Brun, que em seu conjunto expressam os valores vigentes da época em relação aos estágios do processo criativo. Para consultar estes e outros textos ver os 14 volumes de LICHTENSTEIN, Jacqueline (org). A Pintura – textos essenciais. Rio de Janeiro: Editora 34, 2004.

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surgidos na procura por interlocutores na produção contemporânea.

Estas referências, comentadas nos demais capítulos em relação às séries analisadas, apresentam o desenho tanto em uma das muitas etapas de seus processos quanto como um meio prioritário de trabalho. Em ambos os casos a questão da visibilidade destes desenhos parece envolver as suas especificidades de incompletude, participação ativa do fundo que se relaciona com a linha, marca que aponta para uma presença e uma ação, indício da trajetória de sua elaboração, proximidade com processos mentais de ideação e referência a outros desenhos em várias áreas do conhecimento humano. Esta questão não se restringe à defasada dualidade de um intelectualismo racionalista do desenho em oposição a um apelo sensorial da pintura e parece apontar para as relações destas suas especificidades com as implicações da ênfase processual particular do contexto contemporâneo.

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1.1. Desenho como forma de pensamento

O entendimento de desenho ainda é fortemente relacionado à ideação, aos processos de pensamento e criação mental. Para o artista e pesquisador espanhol Juan José Gómez Molina, a idéia de que “desenhar corresponde a pensar” é fundamental para “todo o desenvolvimento de toda a teoria do desenho desde o início do Renascimento até hoje em dia”10.

Pode-se encontrar significativa presença desta definição no contexto humanista do Renascimento, quando a intelectualização que distinguiu a atividade artística naquele momento das atividades prioritariamente artesanais produziu textos que se referiram diretamente ao desenho enquanto expressão de um conceito. Para a pesquisadora Jacqueline Lichtenstein, uma concepção na qual “o desenho remete sempre à ordem do projeto” já estava presente em Aristóteles e encontra ressonância na afirmação do pintor e arquiteto italiano Federico Zuccaro, em 1607, de que desenho “não é matéria, nem corpo, nem acidente [...] e sim forma, concepção, idéia, regra e finalidade” 11. Partindo desta remissão, parece pertinente

10 MOLINA, Joan José Gómez Molina (org). Las Lecciones del dibujo. Madrid: Cátedra, 2006. Molina comenta que a definição de Bruce Nauman, de que ‘desenhar é equivalente a pensar’, “contiene en el encabezamiento la idea que va ser fundamental em todo el desarrollo de toda la teoría del dibujo desde los inícios del Renascimiento hasta hoy em dia, passando, por supuesto, por todos los movimientos renovadores de este siclo: el que dibujar corresponde a pensar.” p. 44. 11 LICHTENSTEIN, Jacqueline (org). A Pintura – textos essenciais. Volume 9: o desenho e a cor. Rio de Janeiro: Editora 34, 2006. p. 12. Considerando a herança de tal definição, para Bernice Rose esta atribuição metafísica do desenho por Zuccaro é importante referência

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lembrar o que Lichtenstein coloca sobre o sentido do termo originalmente utilizado na época: disegno significava simultaneamente concepção e contorno, projeto e execução manual do traçado, diferente dos termos franceses dessin e dessein (que vindos da mesma raiz latina se confundiam até o século XVII) ou dos ingleses drawing e design, que nos dois idiomas se referem respectivamente a noções de desenho e projeto12.

Esta definição inicial se construía em um debate público de amplas implicações ideológicas sobre a intelectualização da arte e sua importância na formação de modelos de representação. Além disso, o contexto de uma posterior instrumentalização do desenho, acentuada pelos academicismos nacionalistas e pela Revolução Industrial, favoreceram um entendimento mais rigoroso na distinção entre o desenho interno e o desenho externo, já presentes nas idéias de Zuccaro13. Um exemplo disso é a diferenciação entre desenho intelectual e desenho prático, estabelecida pelo pintor Charles Le Brun em conferência na Academia Real de Pintura e Escultura da França em 1672, que expressa a teoria dominante, legitimada pela

para o entendimento do caráter conceitual do desenho, encontrando pertinência, por exemplo, na produção de artistas norte-americanos nos anos 60 como Sol LeWitt. ROSE, Bernice. Drawing Now. Nova Yorque: MoMA, 1976. p. 9 e 68-76 12 Lichtenstein. Op. cit. p. 19 13 Rose. Op. cit. p.9. Zuccaro propõe esta distinção entre disegno interno, pensamento, e disegno externo, realização gráfica. O disegno interno corresponde a processos intelectivos e Zuccaro explica que utiliza este termo para se dirigir a artistas e arquitetos, adequando sua definição para a discussão desta área de saber, diferenciando disegno interno dos termos intenção e idéia, utilizados respectivamente por filósofos e teólogos. Molina. Op.cit. p. 44.

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Academia em sua tríplice função pedagógica, teórica e política14.

Posicionamentos que confluíam para uma concepção como a de Zuccaro já podiam ser encontrados anteriormente em textos de autores como Cennini, Vasari e Leonardo, tendo os escritos deste último se tornado uma referência constante até hoje para a discussão sobre desenho.

Para Molina, esta espécie de patrimônio universal em que se converteram os textos de Leonardo confirma o predomínio de um universo imaginário e ideológico de uma época. Isto porque sinais do que se supõe ser influência das reflexões de Leonardo ocorreram muito antes da publicação de seus escritos, o que permite a suposição de que suas idéias expressavam também o patrimônio coletivo de valores comuns dos artistas daquele período e que influenciou gerações posteriores15.

No contexto brasileiro, com as peculiaridades de um país colonizado, vale atentar para uma noção de desenho que antecede a concepção européia importada pela Missão Francesa, vinculada à experiência neoclássica “no modo de produzir, criar e pensar a arte, a ciência e a técnica”16. Este entendimento de desenho, conforme

14 Lichtenstein. Op. cit. p. 13. A autora coloca ainda que, diferente da dimensão da discussão entre coloristas e desenhistas que ocorreu na Itália no século anterior, na França a questão tomou maiores proporções, pois os partidários do desenho encontraram condições para tornar sua posição uma doutrina oficial do Estado especialmente pelo caráter normativo e regulamentado que o ensino do desenho, tal qual era concebido, permitia. 15 Molina, Op. cit. p. 44. 16 DERDYK, Edith (org). Disegno. Desenho. Desígnio. São Paulo: SENAC, 2007. p. 22.

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comentado pela artista Edith Derdik a partir de observações de Flávio Motta, não se restringe a materiais e convenções do desenho sistematizado por esta tradição, mas a uma possibilidade da experiência humana do desenho enquanto ação, atitude, que encontra correspondência nas investigações em arte contemporânea17.

Derdyk registra dois relatos nos quais pessoas, fora de uma formação com influência direta da herança européia erudita, identificam suas criações plásticas e verbais, como artesanato popular e poesia em um registro apenas oral, com uma idéia de desenho. Esta identificação caracteriza o que a autora denomina desenho vivo, dotado de “uma tonalidade atemporal, dada a natureza do desenho enquanto linguagem expressiva e funcional [...] e evidenciando, por outro lado, as singularidades, dadas as pregnâncias da realidade dos lugares naquilo que o desenho atrai e na forma como projeta discursos”18.

Considerando tais relatos, Derdyk ainda chama atenção para a hipótese de Mário de Andrade de que “a participação efetiva do desenho na origem da escrita evoca as qualidades mentais e abstratas do pensamento que se concretiza nas escrituras de um mundo sem legendas”19.

Seja pela herança das reflexões renascentistas ou pelas hipóteses da origem comum da escrita e do desenho, este último permanece atrelado à dimensão abstrata do pensamento e às instâncias de relacionamento entre este pensamento e o mundo. E este é outro fator determinante na tradição da arte ocidental sobre o desenho e com grande

17 Derdik. Op cit. p. 21. 18 Ibidem. p. 21. 19 Ibidem. p. 22 .

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importância em seu legado: uma forma do homem perceber, refletir e se relacionar com seu entorno. Isto justificado por uma concepção que compreendeu como distintos o mundo natural e as criações humanas, servindo então para a formulação de modelos de realidade20. Giorgio Vasari escreve em 1568 que da percepção da natureza se forma um juízo, um conceito, que pode ser expresso enquanto desenho21. Tal afirmação além de confirmar o entendimento do desenho enquanto obra gerada na mente, mostra como o desenho enquanto projeto não pode ser dissociado de uma ação investigativa, apesar de reconhecer uma maior valorização da idealização sobre a experimentação sensível, uma vez que “esse juízo assemelha-se a uma forma ou idéia de todas as coisas da natureza, que é por sua vez sempre singular em suas medidas”, enquanto esse desenho “não é senão a expressão e manifestação do conceito que existe na alma ou que foi mentalmente imaginado por outros e elaborado em uma idéia”22.

Para compreender melhor como a aproximação entre desenho e idéia se mantém ao longo dos séculos que nos separam das primeiras definições renascentistas, é oportuno lembrar que esta relação permaneceu efetiva mesmo nos momentos de problematização da institucionalização do desenho, como ocorreu no Romantismo. A curadora Emma Dexter considera que entre os séculos XVIII e XIX os valores românticos fizeram

20 O assunto da tensão entre o que o homem apreende e organiza e o que lhe escapa à compreensão é abordado por Miguel Copón em Conocimiento como naturaleza muerta In Molina. Op. Cit. p. 429. 21 A vida dos mais excelentes pintores, escultores e arquitetos (o primado do desenho) In Lichtenstein. Op. cit. p. 20. 22 Ibidem. p. 20.

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do desenho um meio ideal para expressar o descontentamento dos artistas em relação aos valores instituídos: “o desenho enquanto forma de criar um mundo imaginário, um local de alteridade e oposição às normas estabelecidas do comportamento, tradição e religião”23. Este potencial do desenho enquanto meio crítico através de uma posição subjetiva estaria diretamente relacionado ao seu caráter de “honestidade”, ou seja, ao imediatismo e intimidade estabelecidos pelo artista no próprio desenhar.

Apesar do enfoque romântico na subjetividade, o desenho neste contexto continua sendo uma maneira de pensar, de desenvolver e apresentar imagens a partir de um sujeito inquieto. O entendimento do desenho com uma predominância do caráter descritivo e objetivo, desenvolvido progressivamente por demandas instrumentais na criação de modelos estéticos e técnico-científicos, também encontra na descoberta da fotografia outro elemento que o conduz a uma crise24.

23 DEXTER, Emma. Vitamin D – New perspectives in drawing. Londres: Phaidon, 2005. p. 9. “[...] drawing as a means to create a world of opposition to the established norms of behavior, tradition and religion”. A autora considera esta contribuição romântica essencial para o desenho na contemporaneidade, identificando-a com um viés narrativo, informal, associativo, biográfico e histórico-cultural, que seria negligenciado em relação a um viés conceitual, filosófico e processual na abordagem teórica da produção atual. 24 Segundo Molina, em certos centros de formação isto levou, em longo prazo, ao descrédito do ensino do desenho proporcional à defasagem destes centros em relação à arte contemporânea. Pois, nestes casos, se consolidaram os valores mais reacionários e negativos da “antiga Academia”, segundo os quais o ensino do desenho o compreende enquanto modelo formal de representação ao invés de conceito conflituoso da configuração de uma idéia. Molina. Op. cit. p. 26.

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Logo amplia-se o entendimento do desenho enquanto linguagem não plenamente normatizada, não condicionada a determinações instrumentais e capaz de expressar os anseios e posicionamentos de artistas diante das questões propostas pela arte moderna. Uma nova perspectiva de arte auto-referente e que problematiza modelos vigentes anteriores, considerando a autonomia das formas e o papel revolucionário do artista, pode encontrar neste perfil imediato, subjetivo e especulativo do desenho um meio favorável de trabalho.

Em propostas como De Stijl, e Cubismo, que argumentaram pelo abstracionismo e geometrização em detrimento dos códigos anteriores de representação, o desenho serviu de dispositivo de investigação de uma dimensão organizadora e estrutural das formas. Os estudos de decomposição de figuras realizados por artistas destes movimentos, como na série Vaca, 1917, de Theo Van Doesburg, evidenciam um tipo de aproximação desta possibilidade do desenho25.

Em propostas como Dadaísmo e Surrealismo, que argumentaram por uma reformulação dos processos de criação artística e sua relação com o culturalmente instituído, o desenho possibilitou formas distintas de acesso à subjetividade do artista e à experimentação26. Um 25 Van Doesburg afirma no manifesto da arte concreta que “a obra de arte deve ser inteiramente concebida e formada pelo espírito antes de sua execução” (l'oeuvre d'art doit être entièrement conçue et formée par l'esprit avant son exécution). Apud BOUCHIER, Martine. L'art n'est pas l'architecture. Paris: Archibook, 2006. p. 124. A afirmação justifica a participação pelo desenho, enquanto meio ligado ao pensamento e ideação, na pesquisa deste tipo de concepção projetiva de gênese do processo criativo. 26 Para Herschel Chipp, Breton fala sobre a arte como “meio de registrar as configurações visíveis de imagens existentes no subconsciente” ao

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exemplo desta situação são as experiências de automatismo no desenho desenvolvidas por André Breton e André Masson nos anos 20.

Theo Van Doesburg. Série cow, 1917. As contribuições destes e outros movimentos de vanguarda estabeleceram uma ampliação do campo do desenho, reintegrando-o, dentro de uma perspectiva da arte, a um vasto marco de referências voltadas para outras disciplinas27.

afirmar que a pintura surrealista “não é uma questão de desenho, mas simplesmente uma questão de traço” CHIPP, Herschel B. Teorias da arte moderna. São Paulo: Martins Fontes, 1996. p. 375. 27 Como comenta Molina, esta amplitude é própria de sua natureza, vai além de limitações disciplinares, uma vez que o desenho está relacionado à atividade essencial de compreensão, de nomeação das coisas. Molina. Op. Cit. p. 17. O debate sobre esta essencialidade do desenho desperta interesse, mas conduz muito além da discussão proposta pelo texto, que procurará abordá-lo tendo como referências o

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André Masson. Dessin automatique, 1924.

Além disso, o contínuo processo de diluição das categorias artísticas, iniciados no contexto dos eventos subversivos dadaístas ou operações duchampianas de apropriação e deslocamento, configuram-se nos anos 60 em um conjunto de práticas diversificadas. Muitas vezes estas práticas estão próximas de ações e elementos cotidianos, campo artístico, fazendo algumas digressões apenas quando for essencial.

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que fazem uso do desenho tanto por este seu caráter interdisciplinar versátil, quanto por sua correspondência com o pensamento, seja em um registro mais analítico ou mais intimista.

Atualmente, o entendimento do desenho permite considerá-lo, além de ferramenta para o estabelecimento de modelos, um complexo meio de configurar idéias que não se limita à dualidade pensamento/imaterialidade e grafismo/materialidade, como pode-se perceber na afirmação do artista Bruce Nauman de que “desenhar é equivalente a pensar”28. Nauman comenta ainda sobre algumas possíveis posições do desenho na produção contemporânea:

Alguns desenhos são feitos com a mesma intenção da escrita: são notas que se tomam. Outros tentam resolver a execução de uma escultura particular ou imaginar como esta funcionaria. Existe um terceiro tipo, desenhos representacionais de obras, que se realizam depois das mesmas, dando-lhes um novo enfoque. Todos eles possibilitam uma aproximação sistemática no trabalho, inclusive se forçam sua lógica interna ao absurdo. 29

A partir desta afirmativa é possível pensar nas

diferentes etapas nas quais o desenho desempenha importante função no processo dos artistas. Aqui

28 Ibidem. p. 33. Texto de Nauman para a exposição Drawing & Graphics de 1991. 29 Nauman apud Molina. Op. cit. p. 33. “[...] Algunos dibujos se hacen com la misma intención que se escribe: son notas que se toman. Otros intentan resolver la ejecución de uma escultura em particular, o imaginar como funcionaria. Existe um tercer tipo, dibujos representacionales de obras, que se realizam después de las mismas, dándo-les um nuevo enfoque. Todos ellos possibilitam uma aproximación sistemática em el trabajo, incluso si a menudo fuerzam su lógica interna hasta el absurdo.”

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sistematizados nos momentos de anotações de idéias, projeto de trabalho e registro de obra, o desenho também se encontra em posições não tão definidas, envolvendo simultaneamente alguns destes aspectos e mesmo vindo a ser o procedimento através do qual se configura a obra.

Um exemplo disto é a forma como algumas propostas artísticas dos anos 60 se aproximam do desenho. Para analisar o desenho na obra de Robert Smithson, Fernando Castro Flórez parte da investigação de Robert Moris sobre os colossais desenhos primitivos no deserto de Nazca. Nesta situação, Moris relaciona estes desenhos antigos com uma parcela da produção em arte contemporânea por sua obsessão com o espaço enquanto “vacío palpable”. O que seria para os índios um exterior indeterminado, em 1970, para o artista, seria um interior delimitado, uma “ausência recapturada”30. A busca por este tipo de desdobramento de um espaço exterior em um espaço interior, para Moris, estaria fortemente presente na arte dos anos 60 e 70. Flórez comenta:

Certamente o minimalismo, uma arte diagramática derivada de planos e desenhos gerados em ‘páginas planas’, é uma das realizações mais intensas desta experiência de redução, uma configuração estética que media entre o conhecimento notacional das relatividades planas e a posição objectual: o sistema e o diagramático integrado na relatividade perceptiva da profundidade. 31

30 FLÓREZ, Fernando Castro. Robert Smithson. El dibujo en el campo expandido In Molina, Juan José Gómez (org). Estrategias del dibujo en el arte contemporáneo. Madrid: Cátedra, 2006. p. 553-592. 31 Flórez. Ibidem. p. 553. “Ciertamente el minimalismo, un arte diagramático derivado de planes y dibujos generados em ‘páginas planas’, es una de las concreciones más intensas de essa experiencia de anonadamiento, uma configuración estética que media entre el conocimiento notacional de las

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Esta busca dos artistas da landart, que se

aventuraram para além do espaço urbano e organizado, atravessando territórios limítrofes, desertos, ruínas e subúrbios, encontrou no desenho uma via para trabalhar problemas complexos que envolviam a experiência espacial: deslocamentos, sobreposições, vazios, interferências e espelhamentos, especialmente no contexto de problematização dos mecanismos institucionais da arte na época.

O trabalho sobre estes problemas pode ser pensado em termos de questionamentos sobre os valores da tradição escultórica, mas, segundo Flórez, apoiado pelas palavras de Moris, a lógica deste trabalho é a do desenho: “desde Rodin, toda escultura moderna pressupõe o desenho. Especialmente desde os anos 60, toda obra tridimensional procede do desenho”32.

Trabalhos relacionados às noções trabalhadas pela landart, em sua recorrência a desenhos – mapas, anotações, diagramas, assim como caminhadas, viagens e intervenções na paisagem – articulam o conhecimento notacional das relatividades planas com uma dimensão espacial sensorial. A obsessão cartográfica de alguns dos seus artistas realça a importância de sistemas de referência com propostas que não se limitam a simples operações de correspondências, que ampliam as relações usuais contempladas entre uma anotação gráfica e o local que tem como referência, como nos diagramas apresentados por realidades planas y la posición objetual: el sistema y lo diagramático integrado en la relatividad perceptual de la profundidad.”. 32 Robert Moris, the present tense of space. Apud Flórez. Ibidem. p. 554. “desde Rodin, toda escultura moderna presupone el dibujo. Especialmente desde los anõs 60, toda obra tridimensional procede del dibujo”.

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Richard Long de suas caminhadas no campo em A walk by all roads and lanes touching or crossing an imaginary circle de 1977, ou o desdobramento entre linguagem e natureza apresentados por John Baldessari em California map project, de 1969, que conta com um mapa e fotografias de intervenções na paisagem. Os desenhos de plantas-baixas que compreendem a série Self-portrait as a building, de 1989, do artista holandês Mark Manders, são um exemplo de como os artistas hoje podem trabalhar, através do desenho, dos recursos notacionais, questões de identidade entre o espaço interno e o externo e de desdobramentos entre a experiência espacial e suas especulações abstratas.

Estas questões são essenciais para esta pesquisa, uma vez que estão implicadas diretamente com as obras desenvolvidas conjuntamente neste período de investigação.

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Richard Long. A walk by all roads and lanes touching or crossing an imaginary circle, 1977.

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Mark Manders. Série Self-portrait as a building, 1989.

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John Baldessari. California map project, 1969.

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2. Desenho no espaço, espaço no desenho

Emma Dexter afirma que “o desenho é parte de nossa inter-relação com o ambiente físico, gravando nele a presença humana. Esta é a razão pela qual podemos compreender e mapear, decifrar e chegar a acordos com nosso entorno, na medida em que deixamos marcas, rastros e sombras para marcar nossa passagem”33.

Esta possibilidade de pensar o desenho enquanto uma inscrição ou marca foi um dos primeiros argumentos que me levou a atentar para o encadeamento entre as imagens desenhadas e seus contextos de produção e locais de exibição nos trabalhos que estava desenvolvendo em 2006. Porém, o encaminhamento do processo conduziu a outras possibilidades de pensar o desenho.

Quando homens-de-nada foi feito pela primeira vez diretamente nas paredes, o espaço, especialmente o espaço interno construído e delimitado pela arquitetura, desencadeou uma série de mudanças que ampliaram possibilidades do meu processo de trabalho. Cruzar os interesses, percepções e práticas do desenho com a experiência no espaço construído era algo até impensado neste processo, mas que estava latente em anotações sobre idéias de intervenções que foram ativadas posteriormente pela própria investigação do trabalho e tratada posteriormente no sub-capítulo buracos. Mas foi em homens-de-nada que houve, pela primeira vez, um grau de interlocução intencional entre o meio gráfico e o espaço arquitetônico construído.

33 DEXTER. Op. cit.. p. 6.

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Em homens-de-nada, o desenho articula a construção do volume e, simultaneamente, a dissolução da forma. O estranhamento é sugerido por estas características gráficas do desenho, pela maneira como estes desenhos estão dispostos no espaço e se articulam com o local expositivo, e não através de elementos separadamente.

As figuras isoladas mostram-se pouco, criando uma sutil presença visual e tensionando o encontro entre o espaço gráfico e o espaço arquitetônico. O trabalho envolve noções de vazio que, conjuntamente com a fragmentação e incompletude, caracterizam questões relevantes e próprias do desenho. Pode-se considerar a noção de vazio comentada por Fernanda Junqueira sobre o esvaziamento espacial e a corporeidade do material na instalação contemporânea brasileira, segundo a qual “se algo nos impulsiona para fora é a perplexidade do ‘nada’ que perpassa a obra; ou a exigência contínua e humana do sentido – um sentido único e ordenador que sustente o velamento do vazio”34.

O desenho é justamente valorizado aqui enquanto um território de ambigüidades no qual o vazio, articulado com outros elementos, problematiza este sentido único e ordenador que procura suspendê-lo.

Outro conjunto de trabalhos que também será abordado neste capítulo por propor uma forma semelhante de ocupação de espaço é a série de pequenas figuras humanóides inseridas nas paredes e tetos chamada homens-parede.

Figuras tridimensionais realizadas em gesso, pintadas de branco, aparecem entre o mostrar e o esconder,

34 JUNQUEIRA, Fernanda. Sobre o conceito de instalação. Gávea, Rio de Janeiro, n.14, p. 551-569. set. 1996. p. 556.

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mescladas à parede, e reorientam as noções de desenho em questão. Esta situação, entre o mostrar e esconder, é importante para o trabalho por estar relacionada à suspensão do tempo narrativo unidirecional que poderia ser atribuído à imagem. As figuras desenhadas também estão entre a decomposição e a formação, sendo impossível definir precisamente em que direção este processo de incompletude caminha.

Na situação desencadeada por estas duas séries, de relação direta entre experiência gráfica e experiência espacial, as investigações arquitetônicas que faziam parte da instalação do desenho passaram a ser essenciais para as séries seguintes. É importante destacar que, a princípio, os registros de plantas ou de fotografias utilizados na elaboração de alguns destes trabalhos em algum contexto específico não possuíam informações suficientes para dar um suporte definitivo à sua elaboração.

Até este momento, o desenho não se configurava no trabalho enquanto sinal de uma presença apenas em seu aspecto gráfico, mas também no conjunto de experiências e escolhas prévias do processo e que são indissociáveis da experiência espacial. Porém, as transformações da concepção de desenho em questão e seus desdobramentos no entendimento do espaço problematizaram uma distinção rígida entre a experiência espacial e gráfica.

Para cada montagem e instalação dos trabalhos homens-de-nada e homens-parede era necessária uma experiência presencial no local que não era definida por nenhum método preciso, mas por um conjunto de percepções e escolhas. Apesar de aparentemente arbitrárias, ou pelo menos intuitivas, as intervenções muito discretas destes trabalhos acabavam apontando áreas negligenciadas da percepção comum do espaço, “sobras”

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deste espaço, ou seja, paredes, degraus, vãos, quinas, que tinham uma presença secundária, mas essencial para a consolidação do “espaço principal” e das zonas de visibilidade privilegiada.

É importante destacar que estes trabalhos não tencionam nenhuma espécie de resgate destes espaços, não pretendem fazer uma revalorização de certos elementos constituintes do espaço habitado. Apesar de apresentado aqui, este elemento trabalhado nas séries será abordado de forma mais completa no terceiro capítulo, locus suspectus.

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homens-de-nada Desenhos de nanquim instalados, 2006. Primeira experiência, montagem em minha casa.

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homens-de-nada Desenhos de nanquim instalados, 2006. Mostra Pretexto-SESC, Mercado Público Municipal de Florianópolis.

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homens-de-nada Desenhos de nanquim instalados, 2008. Centro Cultural Arquipélago, Florianópolis.

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homens-de-nada Desenhos de nanquim instalado, 2008. Prêmio Projéteis FUNARTE 2008-2009, Palácio Gustavo Capanema, Rio de Janeiro.

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Homens-de-nada

Ao abordar a relação que esta série de trabalhos estabelece entre desenho e espaço, é preciso apresentar as primeiras reflexões que a acompanharam e o surgimento de características que posteriormente serão pertinentes para a análise da série.

Em 2006, convidado a participar do projeto Pretexto35, tomei como ponto de partida uma série de estudos em cadernos de anotações: desenhos de figuras humanóides esboçados com traços fragmentados, sem a delimitação de contornos. As figuras se apresentavam rarefeitas: o espaço vazio que as envolvia parecia permeá-las, a coesão das partículas que as formavam parecia provisória. Estes traços, linhas muito curtas, quase restos, sobras de linhas sem proveito, apresentam pequenas curvaturas, que em suas relações buscam coerência para sugerir algum volume para estas figuras. Além destas situações formais, os homens-de-nada não são humanóides completos, seus corpos encontram-se “em aberto”. Membros inteiros podem estar ausentes ou separados a pequena distância de onde normalmente se encontrariam. Por vezes os corpos estão partidos ao meio ou acéfalos.

Uma possibilidade que não considerei logo de início foi a ambigüidade temporal que decorria do estado

35 Pretexto é um projeto do SESC-SC que visa ampliar a rede de relações e o debate entre artistas em cidades do Estado, propondo a elaboração de uma exposição discutida e realizada pelos próprios artistas convidados e um coordenador geral após uma série de encontros. Durante estes encontros, o projeto ainda contempla a visita de profissionais atuantes na área em contextos de maior projeção, trazendo a possibilidade de ampliar a visibilidade destas produções locais.

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de incompletude destas figuras. Durante os encontros com Fernando Lindote, artista que coordenava a primeira versão do projeto na cidade de Florianópolis, este acrescentou à forma como eu entendia o trabalho uma possibilidade que compreendia o seu oposto: que as figuras não estavam necessariamente se desfazendo, sucumbindo sob uma força entrópica irremediável, mas em estado de formação, coadunação, gradativamente estabelecendo sua constituição.

Esta bifurcação opositiva do vetor narrativo não podia ser negada e conferia ao trabalho um estado intermediário dúbio que suspendia seu encaminhamento temporal unilateral. A possibilidade parecia ainda confirmada pelas soluções formais descritas anteriormente, uma vez que as figuras, sem definirem se estavam surgindo ou desaparecendo, coadjuvavam com a incompletude e fragmentação gráfica do desenho.

Outro elemento que merece atenção é a solução gráfica adotada nos pontos nos quais as figuras estão incompletas. Por vezes, quando a figura dilui-se mais gradualmente no fundo, o tracejado simplesmente distribui-se entre estes dois elementos. Porém, na vista frontal e abrupta da intersecção das figuras, onde estas carecem de partes, a superfície modelada com estes fragmentos dá lugar a um vazio, uma zona em branco. De alguma maneira, este branco confere às figuras uma constituição superficial, ao apontar para o tracejado que as envolve, e simultaneamente maciça, por omitir uma transparência que aerasse a figura e denunciasse, nos vãos entre as linhas, ou na própria zona de intersecção, o verso da figura, a outra superfície.

Logo, este branco possui um valor também dúbio: ele vaza a figura em sua relação com o fundo, e sendo este

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fundo vazio, se confunde com ele, rarefazendo a figura em sua falta de bordas definidas e delimitadas. Porém também lhe serve de estofo ao não lhe conferir uma transparência que fizesse a figura confundir-se com um exoesqueleto de rabiscos oco em seu interior. É um branco cheio e vazio, presença e ausência, que, além disso, se confunde com o branco da superfície do suporte. Encontra-se neste estado apenas pela articulação frágil destas linhas-fragmentos. Linha gráfica que para Walter Benjamin justamente é determinada por sua oposição à superfície. Estas linhas, através desta oposição, tornam o fundo do desenho o espaço entre elas, algo completamente distinto da superfície do papel, concedendo-lhe sentido36.

O que mais me motivou neste momento foi a constatação de estar trabalhando com questões específicas do desenho. A fragmentação, dissolução e fusão da figura só ocorreram daquela forma pelas possibilidades próprias da relação entre as linhas e o suporte. Apesar de já me dedicar mais ao desenho do que a outros procedimentos, este foi o primeiro trabalho no qual houve o reconhecimento da importância da articulação de vazios, de fragmentações, de incompletude e ambigüidade.

Ainda entre as primeiras questões a resolver diante da necessidade de pensar a participação do trabalho na exposição, estava justamente a definição do suporte. Não parecia uma opção naquele momento expor os cadernos de anotações com os desenhos. As implicações informais, porém intimistas, atreladas à exposição dos cadernos, assim como a problemática de sua visibilidade e manipulação, pareciam desviar a atenção daqueles

36 BENJAMIN, Walter. Peinture et graphisme – De la peinture ou le signe et la marque. p. 13.

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elementos do desenho que se mostravam mais significativos.

A possibilidade de expor os desenhos individualmente, diretamente sobre a parede, também não se mostrava muito adequada. Emoldurar os trabalhos tornava-os algo muito diferente. A moldura trazia uma carga semântica muito forte enquanto dispositivo expositivo, conferindo uma formalidade excessiva e estranha àqueles desenhos que foram desenvolvidos sem uma intenção definida. A fixação dos papéis diretamente na parede também apresentava problemas, apesar de parecer a melhor solução diante das alternativas anteriores. Porém, de alguma forma, a relação dos desenhos com o fundo acabava enfraquecida com a sobreposição do papel sobre a parede, dois fundos que não dialogavam entre si. As bordas do papel acabavam sendo rigidamente definidas pela amplitude da parede, parecendo enclausurar as figuras em um espaço que, no caderno, não apresentavam este problema.

Como alternativa, após debater a questão nas reuniões do projeto, delineou-se a possibilidade de desenhar diretamente na parede. A partir daí foram feitos uma série de experimentos em casa. Comecei a desenhar as mesmas figuras, com uma caneta de nanquim simples, descartável, destinada a desenho técnico.

Estas primeiras experimentações foram essenciais para o estabelecimento de um novo tipo de relação com o suporte. Antes, cada desenho se organizava em relação aos limites do papel. Neste momento passaram a se organizar em relação aos limites da arquitetura.

Esta nova situação deflagrou uma série de questões que permaneceram nas séries desenvolvidas posteriormente. Estas questões envolviam desde a

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dimensão mais pragmática da execução, como acessibilidade, aspereza, irregularidade e absorção da superfície, até as implicações mais complexas que tratam da natureza da funcionalidade e do histórico da estrutura arquitetônica trabalhada.

Nestes primeiros experimentos realizados em casa, a adaptação ao suporte considerou prioritariamente as dimensões e relações entre as paredes enquanto grandes planos: seus cantos, recortes, área, e a situação de posicionamento que o espaço formado por estas configurações conduz o sujeito que o experimenta. As figuras foram atiradas em um grande vazio, uma vez que não foram redimensionadas e, assim, passaram a estabelecer uma outra relação de proporção com a área disponível.

Além desta nova ênfase do vazio, outra relação de visibilidade foi ativada. Tornou-se possível pensar a visibilidade das figuras trabalhando com a dimensão total desta área e as zonas privilegiadas de atenção aos pormenores arquitetônicos. Era determinante se uma figura estivesse próxima ao rodapé ou na linha do olhar, assim como se a parede na qual se encontrava era de um corredor ou a parede que se coloca logo diante da área de abertura de uma porta.

Este novo dado no processo foi muito positivo por permitir pensar o espaço construído com o mesmo tipo de atenção que se tem ao desenhar. Esta atenção envolvia um tipo de sensibilidade distinta da que se usamos cotidianamente em nossas relações com os lugares. Ainda assim creio que este tipo de atenção já pertencia a uma experiência incorporada, porém o trabalho trouxe uma consciência que a sistematizou e intensificou. Ao investigar o lugar no processo de elaboração de cada desenho, apesar

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da insegurança sentida, havia um senso de reconhecimento, rememoração, de detalhes que não fariam sentido em outras atividades que eu já tivesse realizado ou presenciado, especialmente dentro das práticas que envolvessem minha produção artística. Ou seja, já havia uma atenção direcionada a certas situações e detalhes, mas estes dados eram ignorados ou considerados irrelevantes. Posteriormente, ao levar o trabalho para ambientes que não me eram conhecidos, não havia este tipo de reconhecimento. Porém se estabelecia uma espécie de diálogo quando eu observava as particularidades deste novo local tendo em mente tanto outros lugares quanto os desenhos já instalados neles.

Muitas destas intervenções gráficas, dependendo de suas localizações, eram ignoradas pelas pessoas. Esta situação se acentuou logo que percebi que não utilizar as zonas privilegiadas de visibilidade acabava gerando situações mais interessantes e menos monótonas. Se eu mantivesse os desenhos restritos à linha da altura do olhar mediano, apenas em áreas de pouca informação visual e que contavam com o apoio do resto da configuração espacial e utilitária do espaço para facilitar a percepção das figuras, encontraria uma situação quase tão restrita em termos de reflexão sobre as possibilidades descobertas quanto desenhar em uma folha de papel e fixá-las nestes mesmos locais.

O que se mostrava como possibilidade ainda aberta e motivadora era justamente a investigação destas situações variadas, destas zonas negligenciadas ou obscuras, ainda que constituintes de nossos espaços cotidianos mais banais, através do desenho. O desenho como forma de acessar reações de estranhamento possíveis em um determinado espaço.

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O vazio das paredes se relacionava com as figuras estabelecendo também um tipo de ambigüidade entre linha e fundo. Aqui algumas observações do crítico e curador Guy Brett sobre a obra da artista brasileira Mira Schendel são pertinentes por tratarem diretamente das ambivalências próprias do desenho, que Schendel chama de “mal-entendidos” que dizem respeito ao vazio37. As monotipias de Schendel38 ativam uma noção de vazio através de uma relação que não é de uma ordem impositiva, dominadora e expressiva das linhas sobre o suporte. Como aponta Brett, havia nestes trabalhos “a sensação de que o espaço vazio e a linha, marcando-o ou definindo-o, eram parceiros equivalentes, energias recíprocas e intercambiáveis, criando um ao outro”39.

De forma inversamente proporcional, parece que quanto menos impositiva for a intenção e valorização da linha, maior é a possibilidade de exploração da ambigüidade geral do conjunto e a ativação do vazio.

37 BRETT, Guy. Ativamente o vazio. p. 72. In BASBAUM, Ricardo (org). Arte contemporânea brasileira: texturas, dicções, ficções, estratégias. Rio de Janeiro: Rios ambiciosos, 2001. 38 Trabalhos desenvolvidos pela artista entre 1964 e 1966. Nestes aproximadamente 2 mil desenhos, o gesto da artista fundiu linhas de tinta no papel arroz que era sobreposto em uma mesa preparada com tinta de impressão preta. Este processo peculiar gerava trabalhos nos quais a linha se integrava no papel finíssimo de modo que o desenho podia ser visto dos dois lados da folha. MARQUES, Maria Eduarda. Mira Schendel. São Paulo: Cosac & Naify, 2001. p.26-27. 39 Brett. Op. cit. p. 66. É importante lembrar que as considerações de Brett, apesar de serem pertinentes aqui, acabam se orientando por aspectos específicos e muito singulares da obra de Schendel, como a fusão material (impregnação) entre o material da grafia e o suporte e o processo de condução destas monotipias para os objetos da série Droguinhas, 1965. Em ambos os casos, o vazio é elemento fundamental na obra da artista.

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Neste sentido a noção de vazio é essencial para pensar sobre desenho, pela sua dualidade cambaleante, acidental e ambivalente entre linha e fundo.

Em homens-de-nada o plano que é parede, superfície material, entra em colapso com o vazio de fundo das figuras ao se observá-las atentamente. Quando estas perdem a atenção para o lugar novamente, contraem-se em sua superfície como manchas insignificantes. Assim como qualquer ilusão de ótica envolvendo o jogo esquivo de figura e fundo, não é possível que este plano/vazio seja observado em ambos os sentidos simultaneamente.

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homens-parede Peça de gesso instalada, 2007. Primeira experiência, montagem em minha casa.

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homens-parede Peças de gesso instaladas, 2007. Exposição inaugural do Centro Cultural Arquipélago, Florianópolis.

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homens-parede Peças de gesso instaladas, 2008. Intervenção no espaço estar do Centro Cultural Arquipélago, Florianópolis.

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homens-parede Peças de gesso instaladas, 2008. Prêmio Projéteis FUNARTE 2008-2009, Palácio Gustavo Capanema, Rio de Janeiro.

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Homens-parede

Em 2007, ainda desenvolvendo homens-de-nada, comecei a trabalhar em outra proposta. Apesar de manter o interesse na relação entre linha e fundo, este tipo de instalação do trabalho atentava para a estruturação espacial na qual convivemos.

A solidez das paredes enquanto planos projetados e dispostos em relação a outros coexistem, formam outros espaços, outros planos. Sua opacidade permite pensar em uma ocultação constituinte destas estruturas, que desdobram cada espaço em outros. Uma rede de cômodos e acessos que organizam nosso cotidiano.

A proposta homens-parede constitui-se de pequenas figuras em gesso fixadas e pintadas sobre a parede. O tipo de disposição espacial, a escala e a pouca visibilidade final do trabalho o aproximam muito de homens-de-nada.

Cada figura é esculpida a partir de brinquedos de plástico cujos detalhes e particularidades são removidos, restando apenas uma forma humanóide. Destas peças são desenvolvidos moldes de silicone nos quais o gesso é injetado, removido, recebe acabamento para a fixação na parede e em seguida um revestimento que visa integrá-lo melhor à superfície.

As peças apresentam cortes que prevêem sua intersecção com os planos da parede. Assim como homens-de-nada, as figuras nunca aparecem completas. Da mesma forma, não se pode ter certeza se elas emergem ou submergem da superfície.

Pelo pequeno tamanho, pouco as separa da total diferenciação ou fusão com as paredes. Seus gestos não ajudam a reforçar um ou outro sentido. A referência de

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cada figura era o plano, ou os planos, com os quais ela estabelece contato, mantendo outro tipo de relação com o eixo vertical/horizontal. Tanto a parede quanto o vazio que elas configuram poderiam ser pensados enquanto fluídos de naturezas e densidades diferentes.

Ao instalar as peças, são trabalhadas relações com o resto do espaço muito próximas às de homens-parede. De certa maneira, este trabalho parecia estar repensando o anterior ao tratar certas questões utilizando alguns elementos diferentes. Cabe aqui a pergunta sobre o porquê e qual a contribuição que esta variação pôde trazer ao processo.

Um ponto de partida para este questionamento foi minha impressão de não ter deixado de trabalhar com desenho enquanto fazia homens-parede. Estava clara a continuidade das questões relativas à instalação, porém esta série mais recente não mais lidava com o jogo de linhas e vazio, com pressupostos gráficos, e passava a utilizar elementos escultóricos, mantendo inclusive a preocupação material de que as figuras pudessem manter uma afinidade constitutiva com as paredes, o que levou ao uso do gesso. Mesmo assim, o trabalho permanecia para mim como uma espécie de desenho.

Mesmo compreendendo a impossibilidade de erguer fronteiras seguras entre categorias artísticas de relevância histórica, fui obrigado a admitir que as características que me atraíram e motivaram em homens-de-nada estavam ligadas a particularidades do desenho que não estavam presentes em homens-parede. Este estado de indiferenciação das linguagens, que pode nos levar a posicionamentos aparentemente ambíguos e que foi comentado no início do primeiro capítulo, era o lugar no qual eu me situava para tentar pensar o processo. Se não

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era apenas no jogo de linhas e vazios que o desenho habitava no trabalho, onde mais seria?

É importante lembrar neste momento que a presença do desenho na estruturação e desenvolvimento das teorias artísticas é sempre contígua à arquitetura. Neste contexto, a elaboração dos discursos sobre o desenho compreende a possibilidade da extensão de suas contribuições às artes e à arquitetura. Textos renascentistas fundamentais, como os de Alberti e Leonardo, citam a correspondência entre as medidas das edificações e do corpo humano. A representação nas pinturas demanda o conhecimento da perspectiva para a representação dos corpos e das obras arquitetônicas como um conjunto visual coerente de simulação da profundidade e estruturação espacial. Logo, temos uma tradição de alguns séculos que estabelece formas de correspondências entre arte e arquitetura.

Nas classificações propostas especialmente pelas teorias estéticas mais antigas, as artes são definidas em relação ao que não é arte utilizando “analogias entre um tipo de arte e a forma de expressão que a caracteriza”40. Considerando estes antecedentes, a arquiteta e filósofa da arte Martine Bouchier afirma que a teoria estética do filósofo alemão Georg W. F. Hegel foi inaugural como uma “história moderna da relação arte(s)/arquitetura” ao apresentar a arquitetura como situação negativa contra a qual as artes se organizam41. Bouchier parte deste

40 BOUCHIER, Martine. L'art n'est pas l'architecture. Paris: Archibook, 2006. “[... l’] analogies entre un type d’art et la forme d’expression qui la caractérise.”p. 8. 41 Bouchier afirma que “Le système hégélien se présente comme un moment clef de l’histoire de l’estéthique architecturale dans la measure où les mécanismes de la relation des arts ont pour la première fois été definis selon les

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pressuposto da estética de Hegel e de uma proximidade com a noção de campo expandido da crítica de arte norte-americana Rosalind Krauss42 para analisar esta relação arte(s)/arquitetura na produção artística contemporânea, entendendo que esta alteridade encontra-se em uma condição muito particular no século XX devido ao alargamento das fronteiras artísticas, de suas operações que reivindicam elementos cotidianos, ordinários, fora do campo da estética.

Para fazer esta análise, segundo a autora, é preciso desfazer momentaneamente o que se constrói nesta relação, procurando, mais do que o que é artístico na arquitetura, a base do que faz sentido nela para os artistas43. Considerando este método de Bouchier e o processo de desenvolvimento das séries comentadas até então, a arquitetura parece ser o ponto de encontro entre os dois pontos em questão: para onde confluem desenho e experiência espacial.

O que coexistia nas duas séries era o tipo de relação entre uma intervenção pontual e certas características do espaço. Estas intervenções, ao serem percebidas, provocam uma interferência, permitem pensar sobre uma complexidade destas estruturas sob as formas mais simples e naturalizadas de nos relacionarmos com elas. Fazem isso ao tensionar, por suas características formais, elementos

critères d’une différenciation qui identifie et localise l’architecture comme moment négatif à partir duquel les arts s’organisent”. Bouchier. Op. cit. p. 8. 42 KRAUSS, Rosalind E. La originalidad de la vanguardia y otros mitos modernos. Madri: Aliança, 1996. Podemos reconhecer na proposta do conceito de campo expandido de Krauss o uso de uma condição negativa , assim como em Hegel, por estabelecer uma comparação da escultura com a não-paisagem e não-arquitetura. 43 Bouchier. Op. cit. p. 7.

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próprios de nossas habitações: planos, linhas e vazios. Assim como os desenhos, uma construção é organizada na articulação destes elementos. Esta parece ser a justificativa para a permanência do desenho em homens-parede, o fato que os espaços são projetados a partir de desenhos. Ainda que a compreensão ordinária do desenho só encontre uma tridimensionalidade virtual idealizada pelo aparato perspectivista, é o desenho que permite e orienta a criação e organização de nossos espaços. Paredes, teto, andares, escadas são formas de desenhos. Se mantivermos presente a concepção do desenho enquanto idéia, tanto o espaço idealizado mentalmente, quanto o desenho gráfico que o representa e o espaço construído a partir dele são âmbitos diferentes de um desenho.

Sendo assim homens-parede pode permanecer em uma discussão sobre o desenho sem que se ignorem suas especificidades espaciais. As figuras instaladas seguem articulando linhas de divisões de planos, os próprios planos e os vazios, sejam estes últimos os vazios nos quais habitamos formados pelos intervalos deixados entre uma parede e outra, ou os vazios gráficos das superfícies que nos abrigam.

Retomando a idéia do desenho enquanto marca, inscrição humana no mundo, à qual se refere Dexter, poderíamos dizer que nestes trabalhos se estabelece uma interferência de um desenho com outro, sobrepondo desenhos de registros, escalas e naturezas distintas. A transposição de espaço no desenho e desenho no espaço se desenvolve em uma espiral alternante.

Além desta abertura do processo, há uma outra contribuição específica de homens-parede. Ao conceber e preparar as peças de gesso é preciso considerar sua relação com o corpo opaco das paredes. A operação empregada

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consiste basicamente de uma intersecção. Percebi que esta é uma operação importante no processo e freqüente no desenho. A intersecção trata de planos ao promover seus encontros e também traça cortes lineares que permitem uma aproximação com certos momentos de uma idéia em processo.

Tratando-se dos aspectos arquitetônicos, meio vinculado fundamentalmente ao desenho, a intersecção é a ferramenta que permite a representação da plantas baixas e cortes diversos de um projeto.

Na obra do artista norte-americano Gordon Matta-Clark, o corte estabelecido por operações de intersecções nos edifícios reorganiza os espaços. Matta-Clark subverte recursos da arquitetura, empregando estas variações sob a forma de cortes nas construções, alterando as situações que nos levam a um relacionamento comum com estes em nosso cotidiano.

A pesquisadora Pamela Lee, ao referir-se à experiência espacial de Conical Intersection, obra do artista de 1975, afirma que “as coordenadas usuais de orientação arquitetônica são interrompidas a tal ponto que uma sensação de vertigem é produzida no observador dentro do edifício”44. Para Lee, Matta-Clark leva o sujeito que experimenta sua obra a uma desorientação e deslocamento espacial principalmente pala maneira pela qual o artista ativa noções particulares de escala em relação à convencionalidade da arquitetura. “E o que uma tamanha experiência de escala faz é por à prova o julgamento crítico do observador no que diz respeito à capacidade do sujeito 44 LEE, Pamela M. Object to be destroyed – the work of Gordon Matta-Clark. Cambridge: MIT Press, 2001. p. 171. The normal coordinates of architectural orientation were interrupted to such a degree that a sense of vertigo was produced for the observer inside the building.

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de mensurar cognitivamente a proporção das coisas e do ambiente à sua volta”45.

É interessante comparar os registros fotográficos das obras Conical Intersection e Day´s End (1975) e seus respectivos desenhos de estudos, nos quais é possível perceber que as intervenções de Matta-Clark passam pelo mesmo tipo de planejamento que uma edificação.

Gordon Matta-Clark. Estudo para Conical Intersection, 1975.

45 LEE. Op. cit. p. 140. And what such an experience of scale enacts is a checking of the viewer’s critical judgment, the degree of the subject’s capacity to take cognitive measure of the proportion of things and the environmental surround.

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Gordon Matta-Clark. Vistas de Conical Intersection, 1975.

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Gordon Matta-Clark. Estudo para Day´s End, 1975.

Gordon Matta-Clark. Vistas de Day´s End, 1975.

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Circus ou The Caribbean Orange, de 1978, foi a última obra que Matta-Clark realizou. O trabalho consistia em múltiplas secções nos três andares de uma construção vizinha ao Museum of Contemporary Art de Chicago, e funcionou entre os dias 28 de janeiro e 13 de fevereiro do mesmo ano, antes que o prédio fosse anexado ao museu em suas obras de ampliação. Matta-Clark escreve que:

a idéia do projeto é gerar uma série de cortes circulares [...] que se tornam mais energeticamente liberados assim que tomam forma esférica ao longo de um eixo diagonal ascendente. Estes cortes estabelecem uma progressão de espaços menos delimitados até mais abertos na medida em que atravessam o teto no extremo sul da casa geminada. 46

As palavras que o artista utiliza evidenciam o

registro arquitetônico de sua obra. Cortes circulares, formas esféricas, eixo diagonal, termos descritivos ligados às representações geométricas são articulados para alterar a realidade espacial da construção, confirmando um ponto comum de sua natureza com o desenho enquanto idéia e realização gráfica. De uma maneira geral, as obras de Matta-Clark intersectam o edifício não apenas enquanto construção sólida, material, mas também enquanto desenho, com todas as implicações humanas envolvidas, rearticulando o arranjo de planos, linhas e vazios em suas convenções e implicações funcionais, estéticas e ideológicas.

46 Ibidem. p. 142-145. “The idea of the project is to generate a series of circular cuts (…) that become more energetically liberated as they take spherical shape along a diagonally ascending axis. These cuts dictate a progression of less enclosed to more open spaces as they break through the roof at the south end of the townhouse”.

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Gordon Matta-Clark. Estudo para Circus ou The Caribbean Orange, 1978.

Gordon Matta-Clark. Vista de Circus ou The Caribbean Orange, 1978.

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No processo de homens-de-nada e homens-parede, o que era inicialmente a percepção restrita de uma inserção do desenho no espaço ampliou-se para uma possibilidade do espaço no desenho, ambas implicadas em desdobramentos progressivos e incessantes que se estabelecem entre um e outro. Isto conduz à impossibilidade de definir uma linha divisória que distinga peremptoriamente desenho de espaço, assim como podemos confundir desenho e pensamento.

As questões gráficas presentes em homens-de-nada voltam a ser trabalhadas na série seguinte, buracos, que procura pensar as operações de corte, de intersecção, do transpassamento da opacidade e solidez das estruturas construídas. Mas a retomada destes elementos de trabalho, assim como a forma de aproximação com um lugar específico na instalação, passa a envolver um outro tipo de coexistência espaço/desenho, tratado na seqüência.

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3. Locus suspectus

O termo unheimlich, de acordo com o levantamento lingüístico desenvolvido por Sigmund Freud para a definição do conceito, está intrinsecamente ligado a uma noção espacial. Esta palavra, que na tradução de sua obra para o português foi transladada como estranho a partir do inglês uncanny, possui, segundo o próprio Freud47, um nuance sobre o caráter assustador que não se encontra em outra língua.

Em sua análise, a breve passagem fora da língua germânica feita por Freud cita termos equivalentes em outras cinco línguas. Em seguida, apenas menciona que na língua portuguesa, assim como no italiano, o que se encontram são apenas circunlocuções. Quando menciona o latim, transcrevendo pequenos excertos, Freud cita como exemplo a expressão locus suspectus como equivalente de “lugar estranho”, assim como a expressão intempesta nocte como equivalente de “numa estranha hora da noite”48.

A expressão Locus suspectus me chamou a atenção por parecer realçar o contexto espacial que o termo em português estranho traz latente e também a sensação de dúvida perante um perigo incerto, porém iminente. Estranho vem do latim extranèus, ”que é de fora, que não pertence a uma família, estrangeiro”49, o que torna interessante pensar um “lugar estranho”: um lugar tal qual aquele que é de fora; um lugar que não pertence ao

47 Freud. Op. cit. p. 278. 48 Ibidem, p. 278. A partir de Deutschlateinisches Worterbuch de K. E. Georges, 1898. 49 Conforme etimologia no Dicionário eletrônico Houaiss da língua portuguesa. Versão 1.0. Editora Objetiva, dezembro de 2001.

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lugar. Na expressão intempesta nocte a palavra intempesta, intempestívus, “feito fora do tempo”, está ligada à idéia de inoportuno, imprevisto50, e acaba gerando o mesmo tipo de impressão: noite fora do tempo.

Lugar fora do lugar e tempo fora do tempo ou lugar que não pertence ao lugar e tempo que não pertence ao tempo? A tendência apresentada na segunda formulação soa mais oportuna, tendo em vista os trabalhos abordados nesta pesquisa, pois privilegia uma situação de suspensão, de sobreposição, de coexistência e deslocamento relacionados ao espaço e que será desenvolvida na abordagem das séries buracos e outros espaços. Nestes trabalhos o desenho se relaciona com o espaço expositivo de forma mais imbricada do que a série homens-de-nada, pois envolve desenhos que se referem ao próprio espaço, criando sobreposições de versões, referências e experiências de um lugar específico.

Além de conduzir a esta formulação, Locus suspectus insinua a idéia de um lugar que, mesmo familiar, não é de todo conhecido, não apresenta um mapa preciso nem pode ser acessado através de uma rota clara, restando indicações de desvios e outros acessos. O próprio texto de Freud foi interpretado como unheimlich por Hélène Cixous, por sua estrutura circular que se desdobra lentamente para o leitor, omitindo no início princípios fundamentais para suas conclusões51.

50 Ibidem. 51 Cixous em La Fiction et ses Phantômes. Une lecture de l’unheimlich de Freud. Poétique 10, 1972. p. 199-216. apud Vidler. Op. cit. p. 230, nota da p. 24.

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buracos Desenhos de nanquim, 2008. Trabalhos exibidos na mostra itinerante Lugares Imaginários SESC/SC, no Centro Cultural Arquipélago, Florianópolis e exposição coletiva Suitcase na Arc Gallery, Chicago.

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buracos Desenhos de nanquim instalados 2008. Suitcase (fotos para estudos), Centro de Artes/UDESC, Florianópolis.

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buracos Desenhos de nanquim e lápis instalados (detalhes e vistas), 2008. Exposição individual no Museu de Arte Contemporânea Luis Henrique Schwanke, Cidadela Cultural Antarctica, Joinville.

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buracos Desenhos de nanquim instalados (detalhes e vistas), 2008. Exposição coletiva O mistério da Rua Idalina Pereira dos Santos 86, Centro Cultural Arquipélago, Florianópolis.

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buracos Desenhos de nanquim instalados (detalhes e vistas), 2009. Exposição coletiva Contin[g]ente, Centro Cultural Arquipélago, Florianópolis.

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Buracos

Em 2008, a partir de algumas anotações de idéias de intervenções, começo a desenvolver a série buracos. Planos para a construção de ambientes, prédios, anexos, subterrâneos, etc., eram até o momento realizados informalmente, apenas enquanto estudo de possibilidades e registros de idéias, sem qualquer previsão real de execução, tendo em vista as dificuldades para dar andamento a tais projetos.

Inicialmente não havia a perspectiva de realização destes trabalhos, nem a valorização destes projetos enquanto desenhos. A impossibilidade de realizar os projetos estimulava uma visão deficiente sobre o desenho enquanto linguagem autônoma e não permitia uma melhor compreensão do processo como um todo. Os trabalhos anteriores, homens-de-nada e homens-parede, descritos no capítulo desenho no espaço, espaço no desenho, contribuíram muito para alertar minha atenção sobre estas experiências até então negligenciadas.

No início de 2008, convidado a participar da mostra itinerante Lugares Imaginários52, propus uma série de desenhos de escavações nos quais estava trabalhando e que, dentro da proposta da exposição, relacionei ao verbete proposto da biblioteca de Babel, relativo ao conto do

52 A mostra promovida pelo SESC-SC contava com a itinerância de obras de três artistas que dialogavam com a participação de mais nove artistas com obras divulgadas no site http://www.sesc-sc.com.br/assets/projesp/2008/lugaresimaginarios. A curadoria, da artista Bianca Tomaselli, tinha como referência o Dicionário de Lugares Imaginários de Alberto Manguel e Gianni Guadalupi, organizando núcleos de artistas relacionados com verbetes desta obra.

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escritor argentino Jorge Luis Borges53. Esta relação se baseava no aspecto de desdobramento desmesurado da lógica da biblioteca que pareciam ser pertinentes naquele conjunto de desenhos. Este trabalho apresentava desenhos de nanquim sobre papel com imagens de lugares, a maior parte ambientes internos, passando pelo que pode ser entendido como algum processo de reforma. Nestas imagens uma parte do piso é removida e dá espaço a escavações subterrâneas; a parede é quebrada para a abertura de buracos que revolvem o solo.

Pensando nas relações entre o material que é depositado e o quanto se deixa em branco no desenho, buracos propõe uma situação interessante: no plano da representação, cada buraco, que é ausência de luz e matéria, correspondia, no plano gráfico, à presença e acúmulo do material depositado e do gesto. Para se ter mais buraco (ausência) desenhado, é preciso saturar mais nas linhas do desenho, ausentando o vazio. Logo o desenho não se constitui mais da presença da linha do que do vazio. É um tipo de relação ligeiramente diferente da trabalhada em homens-de-nada, nas áreas de suas incompletudes, que explorava o vazio do fundo de forma ambígua, um buraco branco. Em buracos, as possíveis ambigüidades do vazio se concentram nas bordas, zonas nas quais os limites do desenho se perdem no plano, se confundem os brancos da parede representada e da parede suporte.

Após observar mais atentamente esta primeira série, ficou evidente que os locais desenhados eram baseados em minha casa, detendo-se ora em detalhes precisos, ora gerando variações, recombinações de

53 BORGES, Jorge Luis. Ficções. Porto Alegre: Editora Globo, 1972. p. 84-94.

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revestimentos, aberturas, configurações espaciais e outras especificidades arquitetônicas.

Como se tratava de uma mostra itinerante, era preciso, dentro das condições da instituição promotora, apresentar uma certa versatilidade em termos de montagem. Dessa forma, os desenhos foram reproduzidos em suporte papel para cada montagem do trabalho e descartados após o término da exposição em cada cidade.

Esta solução inicial, a partir da constatação de que os desenhos se baseavam em um lugar específico, me causou certo incômodo, pois os trabalhos pareceram deslocados de um contexto que lhes era essencial. Compreender melhor como estes desenhos se relacionavam a um contexto, o que seria este contexto, passou a ser uma reflexão importante para o processo de buracos.

Neste momento o trabalho também participava da programação do projeto Suitcase, que envolvia três exposições com a produção dos alunos do mestrado do Programa de Pós-Graduação em Artes Visuais da Universidade do Estado de Santa Catarina e do Master of Fine Arts da Michigan State University. O trabalho destinado à exposição que ocorreria nos Estados Unidos já estava definido, porém, nas edições da mostra em Florianópolis, pude reelaborar a proposta.

A primeira exposição, contando com a participação apenas dos alunos do PPGAV-UDESC, foi montada no retiro do manguezal, um local destinado a práticas recreativas dos funcionários da Universidade. Tendo em mente a idéia inicial de desvelar ou realizar intersecções através de desenhos que se referissem ao local da exposição, fiz uma visita atenta, uma investigação do

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lugar para observar e experimentar particularidades funcionais, estruturais e vestígios.

Os registros fotográficos realizados neste momento auxiliam na execução da série, confirmando alguns detalhes do lugar que escapam à memória. No entanto, os desenhos são desenvolvidos e definidos a partir da visita ao lugar, orientada pelas possibilidades exploradas nesta experiência e nas precedentes.

Nesta edição foram realizados três desenhos que apresentavam cada um uma possibilidade de intervenção em um ponto específico do espaço expositivo. Estes três desenhos foram dispostos de maneira que não se pudesse simultaneamente observá-los e aos pontos específicos aos quais eles se referiam. Este novo dado da montagem ativou, por esta operação de deslocamento, a relação entre os desenhos e seu contexto espacial de forma mais intensa e encaminharam a reflexão sobre os trabalhos para uma discussão sobre a noção de site specificity54, considerando seu momento original nos anos 60 até suas reformulações no século XXI.

Desde a concepção do conceito a partir da experiência fenomenológica trabalhada pelo minimalismo até os movimentos de desmaterialização e nomadismo em prática atualmente, o conceito de site abrange uma gama muito ampla de variações, por vezes quase antagônicas, com sutilezas decisivas, capazes de problematizar qualquer reivindicação crítica ou saudosismo abnegado ao menor sinal de ingenuidade ou incoerência. 54 Considerando as sutilezas desta discussão, os termos presentes neste texto como site, non-site, site especificity, site-oriented, serão utilizados em seu idioma original. A complexidade de uma tradução neste assunto é discutida em BARRETO, Jorge Menna. Lugares Moles. Dissertação de mestrado defendida na ECA-USP, São Paulo, 2007.

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Em tal contexto, é importante situar os trabalhos das séries em questão e investigar como cada série se relaciona com algumas obras associadas a uma definição ou tendência nas práticas site-oriented. Considerando que existem concepções muito distintas, porém conectadas, de site é preciso cautela na abordagem que relaciona as séries aqui estudadas e as obras mais paradigmáticas destas concepções de site. Diante da complexidade deste campo parece apropriado evitar filiações ou apadrinhamentos rígidos com conceituações específicas de site, por mais apropriadas que elas possam parecer no presente momento. Isto porque, apesar do recorte da pesquisa ter definido as séries de trabalhos, estas permanecem em processo de elaboração contínua. Este processo define os próprios limites dos trabalhos enquanto se desdobra, podendo desestabilizar uma vinculação que se queira mais sólida, permanente, com um conceito. Por sua vez, este próprio conceito – o de site nas perspectivas site specificity – se encontra, ele próprio, em constante desdobramento. Logo, as relações são propostas como conexões provisórias e articuladas, configuradas para este momento de análise55.

Dentre as séries discutidas nesta dissertação, buracos parece a mais propícia para formular estas considerações, na medida em que enfatiza a auto-referencialidade espacial. 55 Destaco que a opção por utilizar a discussão sobre site specificity como referência procura manter-se próxima às considerações de artistas e autores na medida em que estas permitem mostrar certos aspectos das obras comentadas na análise. Logo esta pesquisa reconhece, mas não contemplará considerações importantes, mas que demandam maiores digressões no campo da realização e apresentação da obra, como, por exemplo, o conceito de in situ tratado em POINSOT, Jean-Marc. Quand l’œuvre a lieu: l’art exposé et ses récits autorisés. Genebra: musée d’Art moderne et contemporain (Mamco) e Villeurbanne: Institut d’Art Contemporain (IAC), 1999.

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Em buracos há uma espécie de espelhamento do lugar, uma vez que o desenho feito em um ambiente acaba se referindo (e “retratando”) este próprio ambiente. Mais do que uma imagem que traz a possibilidade de um conteúdo narrativo e se encontra em um lugar físico, a despeito de seu suporte, o desenho permite uma conexão entre o seu referente e a imagem que forma dele. Ele se estende no espaço através de uma dimensão temporal, pois abre a possibilidade de ser uma condição acontecida ou a acontecer naquele espaço concreto. O caráter narrativo da imagem não é verificável enquanto fato e a referência visual e presencial do espaço permitem e reforçam esta impossibilidade. A ficcionalidade se avizinha do espaço físico associada ao desenho.

Partindo destas considerações sobre buracos, é apropriado pensar na distinção que o crítico norte-americano James Meyer56 faz entre literal site e functional site ao analisar as transformações do conceito de site specificity.

Para Meyer o literal site é o local físico, concreto e singular que algumas práticas site-oriented acabam por privilegiar. Um exemplo que o autor apresenta é o Tilted Arc (1981), de Richard Serra. Neste trabalho a intervenção pública proposta pelo artista é feita considerando as particularidades do lugar, sendo inseparável deste por só encontrar sentido enquanto obra vinculada a estas condições. De forma contrária, o functional site não reflete necessariamente um lugar físico, pois é caracterizado acima de tudo por ser um local discursivo que privilegia os 56 MEYER, James, The Functional Site; or, the transformation of site specificity in SUDERBERG, Erika (org). Space, site, intervention: situating installation art. Minneapolis: University of Minnesota Press, 2000. p. 23-37.

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processos de mapeamento, movimento e relações entre lugares. Possui uma constituição mista entre objetos, lugares físicos, textos, registros fotográficos, maquetes, desenhos, etc. Em função disso, não reivindica uma permanência, mas assume a transitoriedade57.

Os desenhos presentes nas diferentes montagens de buracos se voltam para o lugar de referência, sendo fixados nas paredes ou executados diretamente sobre ela, seja com base na observação direta do lugar, seja com base em outros desenhos de observação, fotografias, plantas arquitetônicas e desenhos de projetos anteriores que se relacionem com a situação específica. Em ambas as soluções de montagem os desenhos assumem sua fragilidade, podendo ser removidos facilmente quando necessário. O papel é rasgado ao ser descolado da parede ou o nanquim se perde com a próxima demão de tinta. Do mesmo modo como não resiste a ser ignorado, buracos também não resiste a ser desfeito.

Estes elementos podem permitir pensar buracos como um trabalho que envolva o conceito de functional site. Mas é preciso, antes de atribuir esta adjetivação, considerar um aspecto importante que Meyer elabora sobre este conceito.

O caráter fenomenológico do primeiro momento dos trabalhos site-oriented nos anos 60 aliado a uma crítica ao sistema das artes conduziu esta produção e suas vertentes para uma crescente exposição dos mecanismos de funcionamento da arte instituída58. Isto propiciou, além da freqüente vinculação entre arte site-oriented e crítica institucional, uma ampliação da noção de site: “’o mundo

57 MEYER. Op. cit. p. 24-25. 58 Ibidem, p. 25-27.

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da arte’, em sua atividade, tornou-se um lugar em uma rede de lugares, uma instituição entre instituições”59. Os trabalhos desta produção passaram então a refletir os movimentos do artista com relação à instituição, um mapeamento de movimentos em uma série de operações, um lugar móvel. O artista estaria articulando diferentes sites, dada a sua capacidade de circulação e de não pertencimento a uma condição física permanente.

Neste sentido, a teórica norte-americana Miwon Kwon estabelece uma crítica aos juízos de valor atuais predominantes que consideram a permanência, a continuidade e o enraizamento retrógrados em comparação à impermanência, à instabilidade e à incerteza consideradas positivas, o que apenas reforça o nomadismo idealizado do artista60. Isto porque a autora propõe indagações inquietantes sobre a efetivação dos pressupostos críticos das práticas site-oriented atuais, problematizando o suposto abalo da noção de autoria e a adoção de uma mobilidade enquanto recurso de resistência aos sistemas da ideologia capitalista. Kwon questiona se esta mobilidade não pode ser uma forma de rendição à lógica capitalista expansionista, um desapego à fixidez que define também o capital e o poder de nossos tempos. Kwon comenta que a própria estratégia de re-fabricar e transportar (ou seja, dar mobilidade) a trabalhos que se baseavam em uma relação de fixidez com um lugar é prática da institucionalização de projetos site-specific que

59 Ibidem, p. 27. 60 Miwon. O lugar errado. Urbânia, São Paulo, Editora Pressa, n.3, p. 147-158, abril de 2008. p. 148.

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tiveram papel importante na crítica à autonomia histórica do objeto de arte61.

Neste primeiro momento, talvez por ser um trabalho muito recente, ainda não localizei em buracos uma preocupação explícita e sistematizada de crítica institucional, nem algo que caracterize uma declaração deste nomadismo. Por outro lado, buracos também não parece articular apenas uma noção de vinculação fixa ao lugar físico em um modelo fenomenológico.

Uma consideração que parece pertinente em relação a estas constatações é a que faz Kwon ao comentar a definição de functional site de Meyer que aponta para a desmaterialização do site em um vetor discursivo. Ela conclui que os três paradigmas de site specificity – fenomenológico, social/institucional e discursivo – não são lineares, seqüenciais ou excludentes entre si, mas simultâneos e sobrepostos62. Conceber a imbricação destas concepções parece ser uma forma bastante apropriada de pensar site specificity e conseqüentemente a série buracos, por não permitir o estabelecimento de uma visão hierárquica baseada em incompatibilidade ou sucessão. Kwon propõe o mesmo tipo de postura na questão entre o nomadismo sedutor e o sedentarismo nostálgico: não reduzir a resposta a tomar partido por um ou outro modelo, mas sim pensar em como lidar com a ansiedade e temor da coexistência entre fluidez e ruptura do espaço-tempo em nossa vida contemporânea63.

61 KWON, Miwon. One place after another: notes on site specificity In SUDERBERG, Erika (org). Space, site, intervention: situating installation art. Minneapolis: University of Minnesota Press, 2000. p. 47. 62 KWON. One place after another: notes on site specificity. Op. cit. p. 45. 63 KWON. O lugar errado. Op. cit. p. 150.

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Procurando, então, não adotar um posicionamento faccioso em relação às definições ou paradigmas em site specificity, parece oportuno refletir sobre buracos pensando no encadeamento de relações entre experiência física, projetos, narrativas, etc. que ele aciona. Neste sentido, a passagem do texto de Meyer que diz respeito à obra de Robert Smithson permite estabelecer uma relação de proximidade entre as duas obras.

Constatando que a obra de Smithson existe na sobreposição entre textos, mapas, vídeos, fotografias e visitas guiadas pelo próprio artista a lugares como pedreiras ou planícies, Meyer considera que nela “o site enquanto lugar único, demarcado, disponível apenas para a experiência perceptiva – o site fenomenológico de Serra ou o site crítico da crítica institucional – se transforma em uma rede de sites que se referem a outros lugares” 64.

Buracos começa a explorar as possibilidades de um sistema de múltiplas referências ao articular o desenho de um lugar, “enquanto lugar único, demarcado, disponível apenas para a experiência perceptiva”, sobreposto ao próprio lugar. Este desenho é acessado em relação ao local onde se instala e a partir do qual é pensado, criando um vínculo que não é baseado em equivalência, mas mediado por um grau de transposição, uma vez que o espaço construído por um desenho parte de um modelo particular de percepção. Também cabe salientar que, quando menciono acima que o desenho parte de um espaço físico, esta relação não é derivada exclusivamente deste espaço: o espaço físico é pensado em relação a outros desenhos (desenhos realizados 64 MEYER. Op. cit. p. 30: site as a unique, demarcated place available to perceptual experience alone - the phenomenological site of Serra or the critical site of institutional critique – becomes a network of sites referring to an elsewhere.

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ou mentais) e outros espaços físicos, de modo que não é possível precisar uma direção de avanço, ou ainda uma hierarquia entre experiências espaciais de naturezas distintas que possuem encontro no trabalho. Buracos se encaminha progressivamente para uma função de ponto de confluências e divergências entre lugares.

Isto fica mais evidente na montagem de buracos ocorrida na Cidadela Cultural Antarctica, em Joinville, na qual o trabalho ocupou o espaço de forma diferente. O espaço expositivo se situa em parte do que foi a fábrica de bebidas Antarctica. A proposta foi realizada para o edital da instituição a partir de poucas fotos e informações disponibilizadas no site do Museu de Arte Contemporânea Luiz Henrique Schwanke, sediado, junto a outras instituições municipais, neste complexo cultural local. No momento em que visitei o galpão destinado à montagem, a proposta inicial, semelhante a de versões anteriores de buracos, foi reformulada. A escala industrial, a acústica, os odores, a iluminação e situações bem específicas geradas do encontro destas características pediam outra forma de solucionar o trabalho. Outro dado que contribuiu muito para isto foi a quantidade de marcas e resíduos acumulados pelo local ao longo de sua existência. A fábrica, em constante alteração, sofreu inúmeras adaptações e reformas que interferiam na arquitetura. Não eram alterações radicais, mas pareciam gerar um intenso ruído para a sensibilidade acostumada à escala doméstica.

A pequena ala destinada às atividades do MAC-Schwanke sofreu apenas uma adaptação parcial na iluminação e no revestimento do piso. O resto da construção ainda mantém as instalações da fábrica degradadas por anos de abandono que precederam o uso do lugar pelos órgãos públicos municipais. Esta condição

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formada pela rejeição de tantos recursos industriais chamou a atenção para o aspecto temporal do lugar, principalmente pelo excesso nas dimensões e estranhamento gerados por todo o conjunto da cidadela: maquinário, mobiliário e todo perfil arquitetônico que considera esta ocupação específica.

Nos três dias que dispunha para elaborar o trabalho desenhei continuamente. A quantidade de espaço disponível, especialmente para uma exposição individual, solicitava uma resposta do trabalho, e uma maior quantidade de desenhos não apenas parecia necessária para isso, mas também era resultado de um envolvimento com o lugar, do estabelecimento de alguma espécie de vinculação. Tive acesso a plantas arquitetônicas do local e pude visitar a parte da construção interditada. Estes acessos deram a impressão de que o trabalho poderia se desenvolver no lugar por vários anos, pois os dados pareciam ter uma escala inapreensível. A atenção, em um certo aspecto, um recorte, um enquadramento, uma das camadas de informação e experiência do lugar obrigava o afastamento de outros aspectos a um segundo plano.

Apesar do empenho em aproximar todo o processo da escala da construção, no momento da abertura da exposição o trabalho ainda ocupava o espaço de forma discreta. Próximo à entrada, em paredes laterais que durante o dia eram iluminadas pelas portas abertas, mas à noite ficavam sob uma luz precária, estavam concentrados a maior parte dos desenhos. Realizados em papéis de tipos, gramaturas e tamanhos diferentes, e colados diretamente nas paredes com fita adesiva, eles apresentavam referências do lugar mais adentro do espaço expositivo. Vistas gerais das colunas centrais, caixas de inspeção no solo, cortes no teto, grandes valas, furos na parede, escadas

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insólitas. Estes desenhos formavam um painel que se remetia ao espaço mais interno, destinado à ocupação das exposições, através de uma visualidade preocupada com detalhes e uma certa clareza em termos de representação. Ao entrar mais no ambiente expositivo, o observador poderia deslocar-se e identificar alguns dos elementos presentes no desenho. As opções ficcionais neste painel não eram excluídas imediatamente, umas pareciam mais prováveis que outras. Além desta possibilidade de averiguação, de uma busca pelos recortes que os desenhos destacavam do lugar, havia a possibilidade de alguns daqueles detalhes não localizados no momento se referirem a um outro momento, uma reforma anterior, que foram muitas, ou por vir, como está programado para ocorrer pela instituição. Tentando contribuir com esta possibilidade de abordagem, plantas baixas se integravam ao material fixado na parede.

Poucos desenhos foram destinados ao espaço central, colados com fita nas colunas ou feitos diretamente sobre elas, de forma que o ambiente parecia desocupado em uma primeira impressão. Em um recanto mais recolhido, ignorado pela falta de iluminação, instalei uma lâmpada fraca, baixa, próxima à parede de fundo. Esta parede concentrava mais um pequeno conjunto de desenhos e sua proximidade com a área restrita da fábrica, isolada apenas por uma parede de engradados de bebidas empilhados, caracterizava uma outra acústica e um odor particular do maquinário abandonado conduzido por correntes de ar obscuras. Nesta situação específica houve uma ficcionalização que não partia do desenho, e sim da criação deste contexto, da alteração deste espaço que ficava entre o que era a fábrica abandonada e o museu adaptado. Este ponto da proposta, pensado após a vivência

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continuada naquele local, pareceu apropriado por ser viabilizado por um recurso simples, a inserção da lâmpada, que alterava o espaço de forma efetiva, porém discreta, procurando se encontrar no limite da visibilidade ao qual o trabalho se aproxima em alguns momentos.

Nesta montagem se manteve a proposta, já trabalhada anteriormente, de não permitir a visualização simultânea dos desenhos com os locais aos quais eles parecem se referir, procurando manter o deslocamento entre as experiências de natureza diferente e tempos e espaços articulados no trabalho. A percepção destes deslocamentos foi um dos primeiros motivos que contribuíram com o interesse em aproximar desta reflexão o trabalho de Robert Smithson, que desenvolveu o conceito de non-site ao definir esta operação de trânsito e referências entre noções de lugar em sua obra. Os non-sites seriam mapas, fotografias, esquemas, objetos, fragmentos, intervenções e outros mecanismos que se relacionavam diretamente a sites, locais físicos singulares, paisagens que Smithson visitava. O artista explica que “existe um ponto focal central que é o non-site; o site é a periferia fora de foco onde sua mente perde os limites e é preenchida por uma sensação oceânica”65.

65 SMITHSON, Robert. Entrevista para a revista Avalanche em 1970, Discussões com Heizer, Oppenheim, Smithson. In FERREIRA, Glória; COTRIM, Cecília (orgs). Escritos de artistas: anos 60/70. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2006. p. 285.

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Robert Smithson, detalhes de Mono Lake Nonsite (Cinders Near Black Point), 1968.

Ao discorrer sobre seu trabalho no Mono Lake em

1968, ao norte da Califórnia, Smithson explica que o site, “diferentemente do non-site, atira você para fora, para as periferias. [...] não há modo algum de focalizar um lugar específico. Pode-se até dizer que o lugar se evadiu ou perdeu-se”66. Apesar deste efeito de desorientação que o site acaba projetando para quem o visita, o non-site não tem como função uma compensação ou ação inversa deste efeito: “esse (non-site) é um mapa que vai levar você a algum lugar, mas quando chegar lá, você não saberá realmente onde está”67.

Como, para o artista, esta capacidade dos sites em lançar seu visitante em uma imensidão oceânica

66 SMITHSON. Op. cit. p. 284. 67 Ibidem, p. 284-285.

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desorientadora não pode ser contida nos limites da arte68, o uso de sistemas de referências a estes sites é algo que os artistas podem trabalhar. Mas parece que não em uma noção plena de continuidade ou metáfora, mas de ruptura, de fragmento, uma vez que as reflexões de Smithson, baseadas em dimensões geológicas e fascinadas pelos fenômenos que ocorrem durante o processo entrópico, assumem a fragmentação como elemento fundamental. “Desenvolvi o non-site, que de um modo físico contém a disrupção do site”69.

Fragmentação, mapeamento, distância, sobreposição são conceitos caros a Smithson que também estão presentes no processo de elaboração de buracos. O grau de abstração que é necessário para articular estes conceitos em relação ao espaço parece contrastar e ao mesmo tempo emergir da experiência sensorial com os lugares. Nestas considerações que buscam identificar uma afinidade entre estes conceitos elaborados na obra de Smithson e alguns aspectos presentes em buracos é útil destacar uma característica desta série que desenvolvo que se diferencia muito das reflexões da obra de Smithson. A articulação entre site e non-site acontece a partir de um interesse que Smithson mantém em uma “dialética interior-exterior”, situando seu trabalho entre os limites artificiais da galeria e os espaços ao ar livre: “o trabalho

68 SMITHSON, Robert. Uma sedimentação da mente: projetos de terra in FERREIRA, Glória; COTRIM, Cecília (orgs). Escritos de artistas: anos 60/70. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2006. p. 195. 69 SMITHSON. Op. cit. p. 195. Aqui o artista discorre sobre a coleta de pedaços de ardósia nas pedreiras de Bangor-Pen Angyl, Pensilvânia, para a realização de um non-site. Ele conclui: “[...] ele (o non-site) existe de fato como um fragmento de uma fragmentação maior. [...] não há mistério nestes vestígios, nem traços de um fim ou de um começo”.

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que deveria estar ali agora (em um site) está em outro lugar qualquer, normalmente em uma sala. Aliás, tudo o que tem alguma importância acontece fora da sala. Mas a sala nos lembra as limitações de nossa condição”70. Enquanto Smithson situa seu trabalho entre dois mundos, mesmo compreendendo a paisagem como coextensiva à galeria71, em buracos as relações entre as sobreposições de referências acontece toda no âmbito do espaço expositivo. A relação proposta entre o espaço e o desenho dobra esta situação indoor sobre si mesma. O espaço deste ambiente interior não é melhor apreendido a partir da proposta de buracos, ele recebe um elemento extra, uma camada, que se soma à experiência do que seria este ambiente sem a intervenção do trabalho. Aqui podemos retomar a concepção proposta no segundo capítulo, de que desenho e espaço possuem forte implicações um no outro. Porém, não costumamos considerar isto em nossas relações cotidianas com estes espaços. Se buracos pode chamar atenção para alguma correspondência entre espaço e desenho, não o faz da maneira em que um explique o outro, mas que eles coexistam, que se indiquem, como um mapa pode se referir a um lugar e este lugar possa ter projeção em um mapa. Partindo deste exemplo, a diferença é que o mapa serve para nos situar em relações de distância e escala muito amplas, enquanto que em buracos estes parâmetros são confortavelmente reduzidos aos de nossa experiência cotidiana. Isto é suficiente para suspender a utilidade funcional de um mapa e estabelecer outros parâmetros de correspondência que não os de localização. O que é 70 SMITHSON. Discussões com Heizer, Oppenheim, Smithson. in FERREIRA, Glória; COTRIM, Cecília (orgs). Escritos de artistas: anos 60/70. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2006. p. 279. 71 SMITHSON. Op. cit. p. 280.

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sobreposto ao local são especulações, desenhos de fragmentos possíveis naquele ou em outros tempos, nas instâncias do conceito que envolve este lugar (a construção, o projeto gráfico, a idéia abstrata e os estágios intermediários e cambiantes entre elas).

Mas gostaria de destacar que nesta sobreposição de camadas as partes envolvidas não são autônomas. O processo envolve aderência para lidar com os fragmentos (de memória, da arquitetura, de discursos, de desenhos, etc.). Em buracos o desenho instalado se vincula ao espaço por ser percebido nele e também por transpô-lo, ao representá-lo, para o plano de uma imagem suscetível de ser percebida como um fragmento narrativo, projeto ou registro de ação. Não compreendendo o desenho como uma espécie de pólo oposto ao espaço em uma relação de ficção/não-ficção, mas sim como elemento coextensivo a ele, o trabalho não busca o estabelecimento de um espaço resultante, um terceiro elemento conclusivo ou sintético.

Neste sentido, além da articulação entre desenho instalado e espaço expositivo, a imagem do buraco traz consigo uma carga de instabilidade, de perturbação que pode problematizar o modelo perceptivo de se relacionar com o espaço. Para discorrer mais sobre o buraco recorro a algumas considerações da filósofa e escritora Anne Cauquelin, que propõe analisar questões como o vazio, o intemporal e o virtual na produção artística contemporânea através do conceito de incorporais dos estóicos72.

72 Os incorporais da doutrina estóica são quatro: o tempo, o lugar, o vazio e o exprimível. Elementos físicos, lógicos (especialmente o exprimível), não corpóreos, indeterminados, ilimitados e indissociáveis, em relação constante com os elementos corpóreos. CAUQUELIN, Anne.

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Interessa aqui especialmente as definições que a autora faz de lugar, vazio e suas inter-relações, ao esclarecer sobre os incorporais. A doutrina estóica compreendia o lugar como uma espécie de tributário do vazio: “existe lugar quando há corpo ali onde antes havia nada; mas se o corpo se retirar, o lugar retorna ao vazio”73. O vazio, por sua vez, se caracteriza apenas e unicamente por sua capacidade de admitir corpos em si mesmo74. Desta forma lugar e vazio se complementam em alternância.

Esta dinâmica está em consonância com os referenciais artísticos e teóricos aqui trabalhados para pensar as séries. O lugar “sempre prestes a se esvanecer na medida do movimento dos corpos, de suas idas e vindas”75, parece refletir as condições do espaço expositivo, das instâncias do functional site76. Lugar compreendido como ente efêmero e indeterminado, por isso incorporal, que surge e se dissolve conforme “as determinações dos corpos” que enquadra. Esta noção retira o lugar de sua condição autônoma, estável, sólida e determinada, sempre relacionando-o a um vazio de fundo, uma ameaça de indefinição e incerteza.

Freqüentar os incorporais – contribuição a uma teoria da arte contemporânea. São Paulo: Martins Fontes, 2008. 73 Isto é especialmente observável em uma dimensão cósmica, na qual o universo (holos) é circundado por um vazio que paradoxalmente não deixa de sê-lo mesmo contendo o mundo. A união do holos com este vazio que o contém e permeia constitui o todo (pan). Cauquelin. Op. cit. p. 37. 74 Ibidem. p. 36. 75 Ibidem. p. 38. 76 Cauquelin afirma que hoje não são mais as galerias, museus, locais na cidade ou desertos os lugares em questão nas discussões artísticas, mas “o deslocamento em si”. Ibidem. p. 73.

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Esta digressão conduz às considerações de Cauquelin sobre o vazio na arte contemporânea sob a forma do buraco: um vazio em um dado dispositivo.

Há algo negativo lá dentro, há uma falta [...], um defeito de fabricação, um erro em algum lugar. Nesse caso, o vazio (buraco) sempre sobrevém em um dispositivo que já está aí, já está formado, e que o vazio vem interromper, enviesar, ou até mesmo aniquilar.77

Esta concepção de um buraco provocador pode ser

situada no contexto apontado pela crítica de arte norte-americana Lucy Lippard de desmaterialização da arte nos anos 60-70 como estratégia engajada na crítica à obra de arte autônoma, monumental e subordinada a uma estrutura de gênero e técnicas oficiais.

Cauquelin evoca Placid Civic Monument, de Claes Oldenburg, como obra que evidencia o buraco como estratégia. O trabalho foi desenvolvido para a exposição de 1967 Sculpture in Environment que ocorreu no Central Park, Nova Iorque, e contou com o serviço de coveiros. Sob supervisão do artista foi escavado um buraco de dimensões semelhantes a uma cova rasa, em seguida preenchido com o mesmo volume do material retirado. Diferentemente das outras obras de perfil monumental expostas na ocasião, Placid Civic Monument quase não foi visto e foi realizado em três horas. Um buraco passageiro que questiona a noção de exposição enquanto evento público e urbano, assim como a de monumento, por apresentar-se como ausência: “um monumento oco como ilustração da forma do vazio”78.

77 Ibidem. p. 66. 78 Ibidem. p. 67.

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Buracos não se remete diretamente a esta discussão que está vinculada à tradição escultórica. Por outro lado, os buracos apresentados nos desenhos abrem as estruturas da arquitetura, violam as superfícies que constituem determinado lugar. Os buracos, neste caso, não são da ordem dos cortes em diagramas, dos recursos de visualização de estruturas. São buracos opacos e escuros, que abrem zonas de indeterminação nestes espaços, que os desorganizam e os deixam em um estado intermediário: os buracos estão abertos, o material removido ocupa o vazio que viabiliza o sentido do lugar. Este volume, o corpo do lugar, de carga objectual e configurado conforme um desenho, é o que diferencia o lugar do vazio. Removê-lo, revirá-lo, é desestabilizar o lugar. O volume escavado, assim como em Placid Civic Monument, evidencia a transitoriedade entre lugar e vazio, mas no plano da representação gráfica.

A relação entre desenho e espaço expositivo em buracos trabalha diretamente com sobreposições. Os elementos sobrepostos, ao se referirem mutuamente e em alternância, implicam deslocamentos de sentido, de percepção, de escalas. O deslocamento é outro elemento que Cauquelin destaca na produção artística contemporânea vinculado à noção de vazio e, portanto, em relação ao buraco. Remover o material é deslocá-lo para dar vez ao buraco.

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Robert Smithson. Non-site, Franklin, New Jersey, 1968.

Retornando à obra de Smithson podemos perceber

a participação do buraco como integrante desta operação de deslocamento. Em Non-site, Franklin, New Jersey, 1968, é apresentado no espaço expositivo um conjunto de 25 fotografias deste site, um texto explicativo, um mapa rasgado em forma trapezóide e recipientes que compõem esta mesma forma preenchidos com rochas coletadas no site.

Os cacos de materiais encontrados no fundo do buraco são instalados na galeria, que passa a ser por isso um lugar, mas um lugar trabalhado por seu negativo, o vazio; [...]79

79 Ibidem. p. 71-72.

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Um buraco foi feito no site e seu conteúdo deslocado até o non-site: o vazio no lugar preenche o não-lugar. Cauquelin comenta:

[...] vazio que, nessa circunstância, subsiste no interior do lugar como aquilo que o ameaça, e cujo rastro se expõe concretamente no paralelepípedo preenchido por fragmentos.80

Em buracos, não há o deslocamento efetivo de

matéria, não se revolve a estrutura física do local. Através da imagem que reflete um fragmento do lugar, o que se desloca é a atenção sobre as instâncias do lugar: a física, a gráfica, a abstrata e seus estados intermediários transitórios, remissões temporais ou espaciais específicas. A atenção a um ponto lança os outros no vazio pela impossibilidade de apreensão dos fragmentos. Neste sentido, o desenho instalado funciona como agente deste deslocamento ao evidenciar e manipular fragmentos e distâncias.

Buracos também foi montado no final de 2008 na exposição O Mistério da Rua Idalina Pereira dos Santos, 81, realizada no Centro Cultural Arquipélago, em Florianópolis. A curadoria de Fernando Lindote recorreu a uma licença autoral, escolhendo e organizando os trabalhos convidados, sem abandonar a ironia, dentro de uma atmosfera de literatura de mistério detetivesca, à moda da escritora Agatha Christie. Conforme o texto de apresentação da exposição, texto este uma ficção com referência neste gênero literário, buracos supostamente permitiu a abertura da galeria após um misterioso encerramento de suas passagens de acesso. Este isolamento 80 Ibidem. p. 72.

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da sala a transformaria em um espaço expositivo ideal, autônomo, isolado, por isso inacessível e conseqüentemente inútil, o que envolve questões que serão abordadas no sub-capítulo seguinte.

Apoiado pelo texto da curadoria, instalei um desenho no lado externo das duas portas de acesso à sala expositiva. Cada desenho se referia à vista externa de onde se localiza a porta oposta de acesso, contígua ao outro desenho, gerando uma distância para o olhar dos visitantes que requisitava seu deslocamento para poder contemplar cada parte do trabalho. Um sistema de remissão alternante. Nestes desenhos, o detalhe do lugar mostrava um buraco que foi feito onde as portas teriam sido bloqueadas, anuladas pela continuidade da parede.

Assim, cada visitante, ao se posicionar diante de uma entrada da galeria, podia ver através da galeria a outra porta e, na parede próxima a si, o desenho da vista externa de onde seria esta outra porta “substituída” por uma parede esburacada.

Esta montagem de buracos diferenciou-se das outras anteriores por vincular o trabalho diretamente com um texto ficcional acessível na exposição e que a justificava. Isto gerou o que considerei um amortecimento de algumas tensões possíveis causadas pelos deslocamentos envolvidos no trabalho. Tensões relativas às incertezas sobre as condições do lugar e à concepção e elaboração da obra. Me questiono se buracos, neste caso, não deveria ter considerado o texto um espaço a ser trabalhado ao invés da sala – ou através da sala. O trabalho requisitou o espaço físico, mas antes disso foi requisitado pelo espaço estabelecido pelo texto enquanto ficção e instrumento curatorial. Se buracos constitui-se da sobreposição de fragmentos, deslocamentos e distâncias de elementos de

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um determinado espaço sobre ele mesmo, teria sido adequado propor uma dobra também sobre o caráter abertamente ficcional do texto curatorial sobre si, e não apenas sobre a galeria.

Esta experiência também teve repercussão na montagem seguinte de buracos, na exposição Contin[g]ente, por se situar no mesmo espaço expositivo. A curadoria do crítico Guy Amado reuniu obras de artistas que envolviam uma noção de insularidade e contingência, refletindo não apenas a condição geográfica da cidade, mas também a resistência da produção diante do isolamento do Estado de Santa Catarina em relação ao circuito artístico nacional e uma espécie de predomínio de referências à paisagem nas obras. Pensar uma nova proposta para a galeria do Arquipélago confirmou a vontade de trabalhar uma série de observações feitas na montagem da exposição anterior e que não haviam sido utilizadas até aquele momento.

A exposição ocupou a galeria principal e a secundária. Desta vez, o contraponto entre dois desenhos se deu entre as duas salas: os desenhos foram realizados em localizações muito próximas, mas em pavimentos diferentes. Cada um mostrava o que à primeira vista parecia uma ruína da construção: a fachada e as paredes que organizam os ambientes do centro cultural foram removidas. Mas apenas as que impediriam a visualização do espaço daquele determinado ponto de vista.

Nestes desenhos, o prédio, que é uma casa reformada para servir de residência e abrigar o centro cultural, foi apresentado como um objeto isolado, suspenso, contra o fundo branco da parede. Em cada imagem foi adotado um ponto de vista externo diferente que mostrava a fachada e uma das laterais, ignorando as construções vizinhas mesmo quando geminadas. As

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paredes removidas deixavam vestígios de sua estrutura, atentando para detalhes de seus materiais e uma suposta obra de remoção. Em contraste a estes indícios da materialidade do prédio, a falta de todas estas partes não demonstrava comprometimento da estrutura restante, como, por exemplo, o telhado, forro e seu vigamento.

Aqui os buracos não se estabeleceram nas paredes apenas condicionados por suas dimensões, mas no próprio edifício. A remoção das paredes desconfigurou o lugar, que possui divisões um tanto truncadas, exibindo o espaço como um todo vazio e apontado para uma apreensão do lugar que nos escapa na imersão de cada situação criada em seus ambientes internos.

Outro caso que pode contribuir para esta reflexão é o das obras Cherry Tree e Time Well, realizadas em 1971 por Gordon Matta-Clark. Na primeira obra, Matta-Clark cavou um buraco de dimensões significativas no subsolo do famoso espaço de arte situado na Rua Greene 11281. No interior do buraco plantou uma cerejeira que definhou após alguns meses, quando após, no mesmo lugar, Matta-Clark plantou uma colônia de fungos. Seis meses depois foi realizado Time Well. O buraco foi preenchido e passou a abrigar uma peça de chaminé cerâmica com o comprimento equivalente à profundidade total escavada. Neste duto foi depositada uma garrafa com os “restos” da árvore. O duto foi lacrado com uma tampa retangular no

81 Matta-Clark habitou o porão deste endereço em 1970, sendo amigo pessoal de seu proprietário e fundador do espaço Jeffrey Lew. Em entrevista à Liza Bear na revista Avalanche de dezembro de 1974 o artista situa neste lugar a origem pelo seu interesse em trabalhar com construções: após algumas experiências não relacionadas à estrutura, Matta-Clark afirma que começou a pensar o lugar como um todo, como um objeto. Lee. Op. cit. p. 59-62.

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nível do solo. Nas bordas do que foi o buraco, ao redor do piso reconstituído, o artista delimitou uma linha com chumbo fundido, formando uma “peça plana de dimensões antropomórficas que lembrava um túmulo”82. O resultado é um trabalho em condição negativa, uma obra sem visibilidade, subterrânea em um porão, cuja dimensão é a do volume removido, do vazio.

Como analisa Lee, Matta-Clark desejava atingir o que está sob o edifício, algo inacessível, como no caso da obra Fake Estates, com o intento de “mostrar que o que é fundamental para a arquitetura é uma ausência virtual, aqui representada pela figura do buraco”83. Este trabalho, inaugural dos processos do artista de reflexão sobre a arquitetura, encontra no buraco (e em suas operações correlatas como cortar, perfurar, vazar) uma imagem para problematizar e desconstruir este objeto.

Se Time Well é um meio de “estender um cômodo além de seus limites comuns”84, buracos, neste caso, buscou mostrar os limites do espaço expositivo em relação ao edifício. O que resta do prédio nos desenhos é apenas a parte que constitui as paredes de fundo, que o preservam de sua anulação e que também delimitam a parte destinada à residência da proprietária do imóvel. Logo o espaço expositivo, de acesso público, só pode se tornar visível por esta operação do desenho em oposição ao espaço privado e inacessível, ou não pertencente aos trânsitos da galeria. O sistema de referências contemplou não apenas detalhes do lugar, da sala expositiva, mas também sua relação com o edifício, com o que define os limites entre ambos.

82 Lee. Op. cit. p. 65. 83 Ibidem. p. 67. 84 Matta-Clark apud Lee. Op. cit. p. 65.

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O que parece possível dentro destas perspectivas é a ativação de uma relativização das reações automatizadas de experiência com o lugar. Com recursos que não envolvem uma noção de choque ou contraste, buracos procura infiltrar nesta experiência com um lugar específico dados que possibilitem algum grau de estranhamento, que apontem para um outro tipo de percepção diferenciada da cotidiana.

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outros espaços Desenho de nanquim instalado (vista e detalhes), 2009. Exposição Um espelho no acervo, Museu de Arte de Santa Catarina, Florianópolis.

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Outros espaços

No início de 2009, convidado a participar da mostra Um espelho no acervo, comecei a trabalhar na série outros espaços. A exposição foi uma proposta curatorial de Fernando Lindote para o Museu de Arte de Santa Catarina.

Lindote, que possui uma atuação ativa em todo o Estado através de diversos projetos, concebeu a exposição partindo da produção de jovens artistas para estabelecer relações com obras de artistas do acervo da instituição. Propôs um diálogo entre minha produção recente e a da artista Jandira Lorenz, referência regional por sua trajetória de pesquisa com desenho como artista e professora.

Diante desta proposta, refleti sobre a forma como continuaria as investigações que vinha fazendo com relação ao espaço e desenho, confiando ao curador o estabelecimento da interlocução entre esta proposta e a de Lorenz.

Sabendo que a exposição ocorreria no MASC, o museu com maior espaço físico da capital, e considerando que teria uma área restrita a uma ou duas paredes para trabalhar, pensei em explorar a amplitude e fragmentação do local expositivo, repleto de paredes falsas, dutos de ventilação, corredores e passagens improvisadas entre a área expositiva e a área reservada às atividades técnicas e administrativas.

Pensando neste lugar ao fazer esboços em um caderno, comecei a elaborar alguns desenhos nos quais as linhas que delimitam o encontro dos planos das estruturas arquitetônicas ortogonais se estendiam além deste conjunto de linhas, até configurar-se como uma linha de função semelhante de outro conjunto contíguo.

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Estes esboços estabeleciam uma estrutura, na qual pequenos núcleos que se detinham em um fragmento, um ponto de vista do lugar, se conectavam a outros núcleos por várias destas linhas estendidas. Ou seja, uma ou mais das linhas que marcam o encontro entre paredes, piso e teto de determinado desenho seguem além da área que poderia ser percebida como necessária para delimitar um enquadramento, confundindo-se com linhas que atuam da mesma forma em desenhos vizinhos. Enquanto o olhar se detém a observar cada núcleo, a linha que foge tensiona o olhar para fora. Ao segui-la, o olhar por um instante vaga no plano até esbarrar novamente em outro núcleo, outro conjunto figurativo. Neste vagar, o eixo dos planos tratados pela linha em cada núcleo pode inverter-se.

O aspecto geral do desenho se assemelha a uma teia que ocupa o local expositivo de forma distinta das outras séries. Nos trabalhos desenvolvidos anteriormente, a ocupação envolvia já uma idéia de rede, não evidente, que se estabelecia na dispersão pelo espaço e concisão gráfica de cada interferência. As intervenções das séries homens-de-nada e homens-parede, ao serem percebidas, abriam a possibilidade de uma busca pelo local expositivo por outras possíveis interferências. Ainda que dialogando com a estrutura arquitetônica, estes desenhos pontuais demandavam um tipo de atenção na qual o local era ainda uma espécie de plano de fundo. O lugar podia ser investigado em função destes desenhos.

Por outro lado, em buracos e especialmente em outros espaços, a intervenção gráfica acionava o local de forma diferente. Como uma espécie de mapa, o desenho remetia continuamente para fora de seu campo imediato, apontado para as referências de identificação com o espaço arquitetônico. O lugar podia ser investigado, muito mais

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do que para se encontrar outros desenhos, para se conhecer o próprio lugar, os diferentes espaços sugeridos pelos desenhos e que o constituem85.

Outra característica a se destacar, e que estabelece diferença com uma constante desenvolvida nas séries anteriores, é que nesta primeira experiência de outros espaços, a mancha gráfica se concentrava em uma parede apenas. O conjunto dos núcleos se endereçava a outros pontos do lugar através da semelhança com suas características arquitetônicas, apontando alguns pontos verificáveis, de identificação mais clara, diferentemente de outros pontos que se situavam em áreas inacessíveis deste espaço, se dirigiam a momentos temporalmente distantes nestes pontos, ou ainda eram especulações ficcionais.

Ao iniciar a execução do trabalho, fiz uma pequena excursão pelo museu em sua interessante condição de montagem em todas salas expositivas. A atividade intensa da equipe técnica e dos diversos artistas presentes na exposição coletiva favorecia uma circulação livre pelas diferentes divisões do prédio, diferente do ritmo que se estabelece na calmaria dos períodos de visitação, nos quais qualquer movimentação chama atenção e está muito mais sujeita à monitoração. Após deter-me nos acessos entre galeria e setores internos, na estrutura dos dutos de condicionamento climático da sala, atentei para sinais que indicavam a recente remoção e reposição de uma parte do painel em um canto de parede. Conversando com funcionários, descobri que o painel fora aberto e a parede externa parcialmente demolida para a passagem da obra A

85 Entre as contribuições da Professora Doutora Regina Melim na banca de qualificação da presente dissertação, agradeço especialmente as observações precisas sobre este aspecto do trabalho.

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Primeira Missa no Brasil, 1860, de Victor Meirelles, exposta no ano anterior no mesmo local. Externamente, a parede ainda mostrava sinais da reforma para a passagem da obra de grande porte, mas internamente apenas alguns vestígios superficiais na camada de pintura e nos parafusos de fixação do painel denunciavam o movimento.

Este evento chamou a atenção para algumas operações da concepção predominante da galeria enquanto espaço conflituoso no qual “a obra de arte é individualizada e apresentada em ambiente homogêneo que sublima as nuances arquitetônicas do edifício”86. Um aspecto que está presente nas séries analisadas, em grau mais ou menos efetivo, é a possibilidade de responder a esta homogeneização do lugar. De apontar o quanto o lugar traz de irregular, de impreciso; o quanto acumula contingências e eventualidades em múltiplas escalas, a maior parte delas quase sempre ignoradas.

As obras site-specific Cherry Tree e Time Well de Matta-Clark, já citadas no capítulo anterior, apresentam um acentuado caráter processual e a condição particular da experimentação combinada ao momento da transição daquele lugar em espaço expositivo. Mesmo considerando estes aspectos, diferentemente de uma obra menos vinculada ao seu local expositivo e em um espaço de uma institucionalização já consolidada, estes trabalhos 86 Martin Grossmann, na apresentação para a versão brasileira de O’DOHERTY, Brian. No Interior do Cubo Branco – A ideologia do espaço da arte. São Paulo: Martins Fontes, 2002, sintetiza assim a condição do espaço expositivo moderno e seu legado no conjunto dos quatro ensaios de O’Doherty, p. XIII. Estes textos abordam parte do amplo e complexo panorama do questionamento aos modelos institucionais feito pelos artistas especialmente no último século. Procurando não exceder o recorte desta pesquisa, esta discussão aqui procurará se restringir ao contexto específico das obras analisadas.

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explicitam um tipo de relação na qual a obra intervém e se confunde com o espaço. Esta relação provoca a demanda por uma atenção diferenciada a esta situação arquitetônica que pode ser percebida quando o artista declara sua vontade em tornar visível, através do buraco, “as fundações, os espaços ‘removidos’ sob a fundação”87.

Refletindo sobre a montagem deste trabalho, e dos outros já comentados em capítulos anteriores, percebi a relação importante entre as séries buracos e outros espaços na atenção que elas prestam a certas situações não privilegiadas dos lugares. Situações de espaços residuais que contrariam insistentemente noções como clareza, objetividade, funcionalidade, eficiência, controle e organização da concepção arquitetônica. Para compreender melhor que situações são estas, recorro ao conceito de zona proposto pelo historiador da arte e crítico Yve-Alain Bois88.

Bois, conjuntamente com Rosalind Krauss, desenvolveu a curadoria da exposição L’informe: mode d’emploi, realizada no Centre Georges Pompidou em 1996. Nesta exposição, orientada pelo conceito de informe do escritor Georges Bataille, as obras foram agrupadas seguindo quatro vetores que proporiam uma desconstrução das categorias consagradas pela história da arte como tema, estilo e cronologia89. O vetor entropia parte 87 Lee, p. 67 88 BOIS, Yve-Alain; KRAUSS, Rosalind. L’informe: mode d’emploi. Paris: Éditions du Centre Georges Pompidou, 1996. p. 212-218. 89 Ibidem p. 16. Os vetores horizontalidade, baixo-materialismo, pulsação e entropia estariam, respectivamente, em oposição à verticalidade, visualidade pura, atemporalidade e plenitude, quatro postulados da interpretação modernista que entendia os movimentos da arte moderna como uma “jornada ontológica”, na qual a arte justificaria a sua existência na busca pela própria essência. Ibidem. p. 9-37.

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de uma concepção que Bois define como uma espécie de “termodinâmica ao contrário” desenvolvida por Bataille, que “parece, à primeira vista, repousar sobre uma lei inversa daquela que descreve a entropia”90. Dentro desta concepção, toda a produção acarreta um excedente que é regulado por diversos mecanismos cíclicos periódicos, como a guerra por exemplo, que envolvem um grande gasto improdutivo, uma liberação de um excedente energético. O crescimento incessante destes “resíduos inassimiláveis” acarreta uma forte ação de mecanismos opressores, exemplificada pela batalha diária e incessante de cientistas e empregadas domésticas contra a poeira, compreendida por ambos como “fantasma injurioso”, abominável para a limpeza e a lógica91.

Seguindo esta reflexão, a cidade, dispositivo da “sociedade do útil”, procura combater a “proliferação entrópica” que ela mesma gera, buscando re-assimilar todo o elemento que lhe escapa, seja este elemento um detrito material ou um resíduo abstrato. Um exemplo deste caso é o que permite a Gordon Matta-Clark realizar Reality Properties: Fake Estates: a compra e documentação de terrenos intersticiais, virtualmente não ocupáveis e, portanto, sem valor imobiliário. Matta-Clark compra estes terrenos por valores irrisórios, como destaca Bois, não para combater a entropia urbana, mas para evidenciar os mecanismos de repressão que buscam regulá-la, uma vez

90 Ibidem. p. 212 “[...] semble à première vue repouser sur une loi inverse de celle qui décrit l’entropie”. Esta concepção foi desenvolvida em La notion de déspense (1933) e La part maudite (1949). 91 BATAILLE, Georges et al. Encyclopedia Acephalica. In: Documents of avant-garde. Londres: Atlas Press, 1995. p. 42-43. A poeira é o emblema deste excedente, com seu insistente processo entrópico de acumulação e caráter indicial ligado à temporalidade. Bois. Op. cit. p. 213-214.

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que estes lotes foram leiloados pela prefeitura de Nova Iorque92.

Matta-Clark manifestava nestes casos seu interesse por terrenos que não podiam ser vistos ou ocupados, algo que podia ser possuído, mas não experimentado, falsas mercadorias exemplificadas na propriedade de Fake Estates – Little Alley, Block 2497, Lot 42 de 1973: um terreno inacessível de relevo irregular e dimensões discrepantes (aproximadamente 0,3 m de testada por 315 m de comprimento). Esta proposta questiona principalmente o entendimento comum do valor de posse, geralmente determinado pela utilidade93.

Os lotes adquiridos nestes trabalhos teriam sido ignorados por arquitetos e planejadores urbanos e tomados pela prefeitura de seus proprietários originais por falta de pagamento de impostos94. São sobras de um projeto de ocupação e regulação social, que menos perturbam o cotidiano dos moradores da cidade do que, como coloca Bois, ameaçam a “ordem do cadastro urbano”95.

Estes terrenos, assim como outros espaços intersticiais, caracterizam a zona, que “é, na escala da cidade, o que é a poeira na escala do apartamento: o resíduo que acompanha necessariamente a produção”96. Bois estende este conceito para além da óbvia proliferação entrópica de espaços como estacionamentos colossais ou o crescimento voraz das periferias analisando obras do artista norte-americano Ed Ruscha, afirmando que “a cidade, ela mesma enquanto megalópole, tornou-se um 92 Bois. Op. cit. p. 215. 93 Lee. Op. cit. p. 103. 94 Ibidem. p. 99. 95 Bois. Op. cit. p. 215. 96 Ibidem. p. 214.

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ruído, uma zona”97. Mas no caso desta pesquisa, mais do que levar o conceito de zona para uma escala macroscópica, é apropriado trazê-la para uma escala menor, que quase coincida com a da poeira98.

A montagem de outros espaços volta-se para uma situação interna, própria da maioria dos espaços expositivos que procuram isolar-se das influências externas. De certa forma, o modelo de espaço expositivo proposto pelos modernistas, e que ainda é aplicado de forma mais ou menos transigente em diferentes lugares, traz consigo os valores de verticalidade, visualidade pura, atemporalidade e plenitude, cujas fragilidades Bois e Krauss procuraram evidenciar com sua curadoria. Mesmo enquanto espaço arquitetônico fechado sobre si, com intuito de auto-regulação, a manutenção da galeria constata a ameaça constante desta falência, desta impossibilidade. É possível tratar as situações apontadas nesta pesquisa enquanto zonas do espaço expositivo; espaço que apresenta montantes entrópicos mais evidentes 97 Bois. Op. cit. p. 216. O autor traz esta consideração ao falar sobre Ruscha que parte da teoria da informação predominante nos mass media do capitalismo avançado, segundo a qual a entropia de uma mensagem é inversamente proporcional ao seu conteúdo informativo. Logo tudo o que é “repetido, previsível, provável, chavão” é poeira, aplicando a mesma lógica ao refletir sobre a cidade. 98 Se Bois destaca a sobreposição, ou doble, indicial da entropia na foto da criação de poeira de Duchamp feita por Man Ray ou no texto de Bataille que descreve a poeira invadindo absoluta escombros abandonados, ele estabelece uma tensão entre as diferentes condições destes índices, diferença que permite observar a sobreposição. Aproximar, em um duplo índice, a escala de uma zona arquitetônica e da poeira que a assedia não anula a diferença destas condições, mas pode gerar uma tensão diferente da que existe entre comparações com escalas muito distantes.

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ou discretos, materiais, funcionais ou simbólicos e seus respectivos mecanismos de regulação. Considerando-se a busca por compensação em um sistema como este, quanto mais crítico for o acúmulo do resíduo, quanto mais incômoda for a presença da zona, maior será a resposta repressora e, conseqüentemente, mais excedente ela produzirá posteriormente.

Como esta discussão sobre espaço expositivo já irrompeu há décadas no circuito artístico, atualmente fica bastante evidente as iniciativas da instituição na repressão de algumas de suas zonas99. Os esforços para isso acabam por constituir e caracterizar o espaço: as soluções na ocultação do sistema elétrico, de iluminação e condicionamento climático, na neutralização de piso e teto, na homogeneização das paredes e no controle e manutenção aos índices temporais (desgaste natural, umidade, sujidades, etc.) que afetam estes elementos.

Apesar das remissões imediatas que estes aspectos podem nos gerar, é importante lembrar que seu conjunto extrapola o mero caráter material, físico e objectual de um lugar, trazendo implicações que poderíamos associar ao contexto de functional site de Meyer, mantendo as correspondências deste com o contexto do literal site. Logo estes espaços residuais, estas zonas em escala indoor, também transitariam entre os vetores materiais e discursivos do espaço expositivo.

O desenho em outros espaços estaria articulando estes dois vetores, como um elemento que acompanharia 99 Obras como Measurement room, 1969, de Mel Bochner e a exposição Six sites, realizada em 1967 na Dwan Gallery, de William Anastasi, são emblemáticas para esta discussão, especialmente por utilizarem dispositivos que desdobram e sobrepõem o lugar da galeria e referências gráficas.

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este trânsito ao inscrever-se no espaço apontando-lhe situações que referenciam suas zonas. Conjuntamente, estão relacionadas aqui as considerações levantadas no sub-capítulo homens-parede sobre as correspondências entre lugar e desenho. Logo, pela sobreposição e coexistência, pelo jogo de correspondências, o espaço no desenho e o desenho no espaço se alternariam perpassando o local concreto, físico e singular assim como as instâncias abstratas, transitórias e relativas de um espaço.

Assim como no caso de Reality Properties: Fake Estates, considero que outros espaços não procura resgatar estas zonas ao referir-se a elas. Elas não são evidenciadas com uma intenção de valorização. Também não se promove sua repressão ou qualquer possibilidade de sublimação, e o uso de elementos ficcionais e especulativos também não permite afirmá-las. Outros espaços, mantendo coerência com as outras séries analisadas, procura trabalhar de forma econômica, aproveitando seus recursos com discrição. Sua baixa visibilidade compreende que o trabalho pode não ser visto, e, quando visto, também não há garantia da identificação com o espaço expositivo ou com o entendimento destas cenas com o que seriam as zonas: estas não são alteradas efetivamente, explicitadas ou organizadas.

Os espaços residuais, as sobras do planejamento arquitetônico, dos interesses administrativos institucionais, da mentalidade instrumental e utilitarista, quando não são resgatadas pelos mecanismos que as produziu (como a indústria recicla o próprio lixo que produz), contam com os mecanismos reguladores convencionais dos seus usuários. Estes, de maneira geral, estão em consonância com a mentalidade que gera estas sobras, pois de tão rechaçadas acabam tornando-se alienígenas quase invisíveis, apesar de

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nosso convívio diário com elas. São espaços reprimidos, automaticamente eliminados de nosso fluxo de atenção.

Quando afirmo que outros espaços não procura resgatar as zonas, é porque não lhes confere uso, função ou sentido dentro do sistema das quais restaram. Apontar para as zonas não as redime de sua natureza incômoda de denunciadoras da falência de um projeto ordenador, apenas as reapresenta em um contexto que supostamente continuaria a ignorá-las. Evidenciá-las desta forma talvez permita percebê-las como constituintes presentes de um lugar que resulta de um projeto e suas contingências, pelo menos no tempo de duração da exibição do trabalho.

A estrutura em teia propõe uma leitura não seqüencial que favorece o deslizamento da percepção de um núcleo para outro, não orientando um trajeto ou método para se percorrer o espaço circundante. Não são estabelecidas hierarquias ou classificações. O conjunto não se afirma enquanto discurso unívoco, aproximando-se das possibilidades do desenho enquanto estudo ou projeto. As imagens não estabelecem uma linearidade narrativa ou uma identificação em um contínuo temporal100. A inscrição do desenho na parede soma a estes aspectos temporais uma dimensão indicial ligada à eventualidade. O desenho assim concebido reconhece a sua transitoriedade na manutenção sistemática da brancura do espaço expositivo. O trabalho, após ser exposto, é desfeito como um resíduo, uma sobra produzida pela própria realização.

100 A respeito das noções de tempo trabalhadas em anotações de projeto, Cristina Freire afirma que “a dimensão de projeto dos desenhos implica tempo e supera a dicotomia presente/ausente, pois supõe um constante vir a ser”. FREIRE, Cristina. O desenho como partitura na arte contemporânea. In Derdyk. Op. cit. p. 148.

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Considerações Finais O historiador norte-americano Anthony Vidler

analisa o conceito de estranho familiar (unheimlich) de Sigmund Freud e seus desdobramentos na reflexão contemporânea. O pesquisador, que tem sua atenção voltada principalmente para a arquitetura, destaca a vinculação intrínseca do estranho familiar com a espacialidade. Isto nos permite pensar sobre os trabalhos em questão não apenas pela sua relação entre desenho e espaço, mas também pela presença crescente de relações entre percursos, referências e deslocamentos da experiência espacial.

A identificação do unheimlich com a espacialidade já está compreendida na afirmação sobre o assustador que remete ao familiar (heimlisch - doméstico). Doméstico, caseiro, familiar, íntimo, reservado, oculto, dissimulado, são características que se desenvolvem no espaço. Processos que transitam tanto no espaço físico quanto no psicológico (ou entre os dois), na escala do indivíduo ou da sociedade. Vidler afirma que “a explanação teórica (do estranho) por Freud, e posteriormente por Heiddegger, o colocam em local de destaque entre as categorias que podem aduzir para a interpretação da modernidade e especialmente suas condições de espacialidade”101. Apesar das dimensões políticas e sociais que as reflexões sobre o estranho adquiriram na passagem do século, abordando problemas diretamente relacionados à domesticidade, desabrigo, segurança e nostalgia, não serão estes os 101 Vidler. Op. cit. p. 12. “Its theoretical exposition by Freud, and later by Heidegger, places it centrally among the categories that might be adduced to interpret modernity and specially its conditions of spatiality [...]”

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enfoques privilegiados nesta pesquisa. O estranho aqui é apropriado por permitir relacionar ao espaço um conjunto de conceitos como o duplo, o sentido de pertencimento ou não a um lugar, a tensão entre ocultação e descoberta, entre outros conceitos que tornem significativa e possível a transição entre o que é familiar e ameaçador.

Sempre próximo desta ênfase literária, Vidler desenvolve reflexões sobre o estranho arquitetônico em The Architectural Uncanny – Essays in the modern unhomely102. Como Vidler afirma não haver nenhuma expressão ou configuração arquitetônica comprovadamente capaz de despertar o estranhamento, ele explica a associação recorrente do estranho com as casas mal-assombradas da literatura gótica como imagens emblemáticas deste conceito, não sendo estranhas em si mesmas, mas atuando como imagens de representação em um período histórico específico. Antes desta interpretação literária, estas construções traziam outro conjunto de valores próprios de sua história. Este tipo de dinâmica que revisita e interpreta uma manifestação cultural justifica a abordagem do Architectural Uncanny como algo ambíguo, que compartilha aspectos ficcionais, psicológicos e culturais, evidenciando que na verdade não existe um estranho arquitetônico, mas a atribuição do estranho a certas manifestações arquitetônicas em determinados períodos103. Cada contexto

102 Vidler. Op. cit. p. 22-23. O termo unheimlich foi traduzido para o inglês por uncanny, “sinistro, perturbador, suspeito, estranho; ele é melhor definido por pavor (dread) do que por terror, devendo sua força à impossibilidade de explicação, ao sentido de um desconforto oculto, mais do que a uma fonte claramente definida de medo. [...] literalmente ‘além de ken’ (knowledge – conhecimento), derivado de ‘canny’, possuidor de conhecimento ou perícia ”. 103 Ibidem. p. 11-12.

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acaba atribuindo estranhamento a uma situação ao considerar uma série muito ampla de elementos específicos e dinâmicos. Por isso, em sua série de ensaios, Vidler trata de conceitos específicos como transparência, antropomorfismo, memória e ruína, relativos ao estranho na arquitetura nos últimos três séculos.

Este tipo de abordagem é importante nessa análise, pois não busca definir o estranho enquanto um valor em si, mas como um arranjo complexo de diversas características. Elas variam conforme a especificidade de cada área de conhecimento e experiência humana, em cada época, como manifestações do familiar e do ameaçador, do conforto e do assombro, da repressão e seus mecanismos. Uma vez empregada em torno das questões da arquitetura, a mesma estratégia pode ser utilizada para pensar a maneira como os artistas e o público, tantas vezes co-autor da obra, se aproximam, intervêm, projetam, e constroem o espaço. A contribuição do estudo de Vidler sobre o estranho arquitetônico, portanto, não possui pertinência apenas em relação às situações específicas das séries abordadas, mas também diante da importante relação entre arte e arquitetura.

As referências literárias são essenciais na explanação de Freud sobre o estranho. Ele dedica um significativo espaço em seu artigo para as análises das obras O Homem de Areia e O Elixir do Diabo do escritor alemão Ernst Theodor Amadeus Wilhelm Hoffmann (1776-1822), também citando brevemente obras de Shakespeare, Schiller, Schaeffer, Goethe, Hauff, Schnitzler, Nestroy, e narrativas mitológicas e de contos de fadas. Ele destaca as diferenças do estranho na “vida real” e na ficção. Conclui que na literatura, apesar de se encontrar muito mais facilmente recursos para gerar o estranho, muitos dos

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elementos não necessariamente estranhos de suas narrativas seriam considerados estranhos na “vida real” 104, comparação que confirma a orientação estética de sua argumentação, e não apenas psicanalítica.

Esta recorrência à literatura, tanto no artigo de Freud quanto nos ensaios de Vidler, confere destaque ao grau de interlocução possível entre ficção e não-ficção, especialmente no artigo de Freud. Nas duas análises a abordagem realizada parece dispensar a literatura da possível e incômoda posição de apenas descrever imagens, de ilustrar, no sentido mais restrito da palavra, as teorias que norteiam a discussão. As imagens literárias contribuíram muito na formação de um manancial que permite caracterizar o que é um lugar estranho, um locus suspectus, não apenas de forma emblemática e estática, mas sim complexa e dinâmica, através de redes de relações entre situações, narrativas e personagens.

As relações que se dão nesta forma de rede, de referências, de retomadas entre operações de distanciamento e proximidade, permitem um paralelo com a questão da referencialidade discutidas nos sub-capítulos buracos e outros espaços. Os elementos ficcionais e não-ficcionais articulados nesta série desencadeiam processos de endereçamentos imprecisos na sobreposição do representado e do experimentado. Se o trabalho envolve um local e os desenhos deste próprio local, podemos concluir que nesta sobreposição é onde se situa o trabalho.

O espaço físico daquele lugar, por si mesmo, não se confunde com o trabalho até que os desenhos se voltem para ele, o reivindiquem, ativando a relação entre os dois,

104 Freud. Op. cit. p. 310.

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da mesma forma que o vazio e outros sentidos são ativados em um desenho quando linhas e fundo se encontram.

Os desenhos, enquanto mancha gráfica apenas, também não constituem o trabalho. Se pensados independentemente possuem sentido diferente do que se pensados em conjunto e, especialmente, em relação ao lugar. São desenhos que consideram e surgem motivados por estes lugares. Mesmo que não estejam exibidos no lugar ao qual se referem, não perdem o vínculo com ele, apenas reorganizam o funcionamento do trabalho, suspendendo certas reações e processos e ativando outros. Se os desenhos são exibidos mostrando detalhes de uma sala na própria sala, a percepção do imediatismo destas instâncias do lugar fica favorecida; se estas imagens estão na sala vizinha, ou na outra ala do edifício, este imediatismo pode ser ignorado, dependendo de recursos de endereçamento e identificação mais complexos, trazendo mais ou menos evidências da correspondência. As formas como eles são exibidos podem ser desconstruídas e reconstruídas, o que altera sua percepção, mas assim como um mapa, uma anotação de um lugar, uma lembrança, estes desenhos referem-se originalmente a um contexto, por mais fragmentário, frágil e provisório que ele possa ser.

Tanto o local quanto os desenhos podem “ativar” o unheimlich. Ambos apresentam possibilidades singulares para isso. As cenas presentes na maior parte dos desenhos apresentam as escavações que dão nome a uma das séries. Ainda que estas imagens possuam uma possibilidade de identificação maior com certas figuras emblemáticas ligadas ao estranho, como a ruína e o subterrâneo, elas são a princípio imagens ficcionais, cenas desenhadas em um suporte. Vistos isoladamente estes desenhos apresentam

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potencialidades para o estranho dentro do universo que eles mesmos constroem, relembrando o comentário de Freud a respeito das diferenças entre estranho na “vida real” e na ficção. Ou seja, ainda que possuam mais recursos para abrigar o estranho, as obras ficcionais, por sua própria natureza, tendem a neutralizar os efeitos destes recursos. Porém, o que interessa aqui não é intensificar os mecanismos de distinção entre os lugares e os desenhos envolvidos na série, atribuindo respectivamente valores de ficção e não-ficção que se opõem. Mais interessante aqui é a possibilidade de investigar como se articulam no trabalho as relações de confluência entre desenho e espaço considerando os aspectos ficcionais da obra.

Observar os desenhos dispostos na parede com cenas de escavações pode ser estranho quando se percebe que estes desenhos parecem retratar o espaço onde se está? Geralmente esta constatação não é imediata, considerando o depoimento de visitantes nas ocasiões em que o trabalho foi apresentado. A situação da escavação parece chamar mais a atenção do que os detalhes que permitem identificar o lugar desenhado. Porém, quando o local é identificado, esta espécie de espelhamento é estranha?

Um dos elementos relacionados à conceituação do unheimlich é o duplo. Freud parte do estudo do psicanalista vienense Otto Rank, O Duplo, de 1914, que analisa este conceito vinculado aos reflexos, sombras e crenças em espíritos e na alma, assim como ao temor diante da morte. Freud concorda com a interpretação psicanalítica de Rank que o duplo foi um recurso do homem primitivo para se proteger da incompreensão e medo de morrer. Na medida em que o homem desenvolve outros recursos para lidar com a fatalidade (como a racionalização), o duplo acaba funcionando como um mensageiro da morte, estando

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vinculado originalmente a ela e deflagrando a falsa superação desta “crença primitiva”105. Freud inicia o assunto comentando a obra O Elixir do Diabo de Hoffmann, e Vidler lembra Os Duplos do mesmo autor106: estória na qual a obra do homem ganha autonomia e atinge uma dimensão ameaçadoramente real ao ganhar vida através da pintura, uma espécie de Pigmalião. Também são conhecidos o William Wilson de Poe, O Horla de Maupassant, a sombra de Peter Schlemihil de Chamisso e mesmo as lendas anglo-saxônicas de Doppelgängers. O que estas obras exploram é a crise de consciência do eu, instaurada ou personificada pelo contato com um reflexo, uma sombra ou outra figura de semelhança. Em relação ao duplo, é curioso notar o emprego popular do termo Nêmesis para designar em uma narrativa um forte e implacável antagonista. A deusa grega da justa retribuição que empresta o nome a esta figura era especialmente sensível a atitudes desmedidas e punia severamente quem as executava. Nos casos das obras acima, todos os encontros entre os protagonistas e estes seus duplos conduzem a um desfecho trágico. O duplo é um artifício excessivo que, mesmo ligado intimamente à sua referência original, não pode coexistir com ela. Assim, este acaba cumprindo o papel do reprimido que retorna, confirmando seu caráter ameaçador.

Apesar destas considerações abordarem aspectos mais específicos da literatura, como a noção de personagem e um desenvolvimento narrativo, associadas a alguns aspectos psicanalíticos, esta via de argumentação procura buscar a relevância conceitual do duplo na

105 Freud. Op. cit. p. 293-295. 106 Vidler. Op. cit. p. 34-35.

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pesquisa sobre o estranho sem a sua submissão exclusiva de uma disciplina, servindo-se do trânsito de imagens que as atravessam.

O espelhamento do lugar no desenho procura estabelecer uma tensão entre o que é verificável em uma experiência no espaço concreto a partir de desenhos, sendo que estes não se posicionam definitivamente enquanto projetos, anotações ou registros. Os desenhos, enquanto imagens especulativas pensadas em uma correspondência com o pensamento e a construção referente, potencialmente estendem as possibilidades de relacionamento com nosso espaço cotidiano, este em parte condicionado por modelos estabelecidos por concepções instrumentalizadas e tecnicistas de desenho.

Esta questão conduz novamente ao que se desenvolveu no capítulo outros espaços sobre as zonas residuais. A dialética entre os mecanismos de regulação e as conseqüências entrópicas dos resíduos acumulados de um dado sistema de produção evocam novamente o estranho familiar por se basear em mecanismos repressivos. Estes mecanismos não apenas tratam de remover, resgatar as zonas, como também de identificá-las e estão, em um primeiro momento, ligados às instâncias que as produziram: o que é familiar, gerado no seio do seguro e do doméstico, em algum momento e de forma sutil pode irromper como ameaça ao seu contexto original. Devolver esta ameaça à sua condição familiar requer um esforço elaborado e constante, uma vez que ele pode sempre reincidir do familiar que o gera e “exclui”. Esta exclusão merece parêntesis, pois, se fosse total e eficiente, pressuporia a possibilidade de aniquilação da zona. Sua condição problemática parece residir justamente na

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natureza constitutiva daquilo que se sente ameaçado por ela.

Neste contexto podemos pensar sobre a pouca visibilidade, dimensão e durabilidade das séries aqui tratadas. Estas características procuram uma freqüência mais próxima possível da manifesta por estes mecanismos, no limite que possa anteceder uma indistinção. Defino esta opção, na verdade tomada ao longo de uma série de opções no processo, como uma alternativa a gerar um contraste, uma resistência direta e opositiva a estes mecanismos (e, por conseguinte, a todo o sistema do qual ele provém e constitui) que demandaria um aumento considerável de esforço. Isso, além de parecer um desvio dos processos pelo qual as séries passaram, não soa justificável diante da perspectiva econômica apresentada por Bataille, a qual esta reflexão sobre as zonas é tributária.

Diante do unheimlich, as zonas, enquanto territórios transitórios entre a continuidade coerente do espaço e o vazio da falta de segurança ou sentido, podem ser associadas à imagem do buraco. Talvez uma das maiores manifestações do potencial unheimlich do buraco tenha sido realizado na literatura por Kafka em A construção, conto inacabado de 1923. Nesta obra o protagonista não possui atividade ou pensamento que não sejam orientados pela preocupação com a segurança de seu lar. Mas a preocupação é proporcional aos seus esforços por superá-la, lembrando que este seu lar é um complexo de galerias e câmaras escavadas por ele mesmo na terra, um sistema de buracos, sob a ameaça constante de ser descoberto e violado. A imersão constante nesta situação, no buraco da toca, não pode conduzir a outro fim que não seja um colapso do lugar e de seu habitante.

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Diferente desta constante inserção no buraco, sua presença enquanto elemento dinâmico pode estabelecer ritmos mais suportáveis. Como afirma o filósofo e escritor Donaldo Schüler, quando Perséfone cai no buraco sua existência torna-se unheimlich, pois “pisando no vazio, ela perdeu o lar (Heim)”107. Desde o momento em que é resgatada e devolvida à sua mãe, Perséfone está condenada a um retorno constante ao subterrâneo por ter provado o alimento infernal em sua estadia. Não foi um evento único que lhe tirou a “segurança do solo”, isto passa a ser uma constante em sua “existência entre a vida e a morte”108. O buraco aqui é imagem de uma potente desestabilização. Aplicado ao solo desconfigura o eixo vertical-horizontal, abala as bases sobre a qual se constroem os projetos de segurança e sentido. Sua condição de ameaça e retorno constante confirma a consonância com o conceito de unheimlich.

Pamela Lee ao abordar Cherry Tree e Time Well por um viés metafórico, aponta para uma sensibilidade atávica, entrópica e “uncanny”109 nestas obras de Matta-Clark por sua condição subterrânea. Assim como no Placid Civic Monument de Oldenburg, a remissão direta à imagem do túmulo é evidente. Em uma leitura voltada para os aspectos arquitetônicos, Lee destaca a importância das fundações sob os edifícios para Matta-Clark. Nestas abordagens, o subsolo é considerado tanto o local de origem e fim das coisas quanto um ponto a ser explorado na relativização entre o artístico e o arquitetônico, uma fronteira de ambigüidade. 107 SCHÜLER, Donaldo. Por uma filosofia do buraco. Zero Hora, Porto Alegre, 25 de agosto de 2007. Caderno de Cultura, p. 2. 108 Schüler. Op. cit. 109 Lee. Op. cit. p. 65.

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Relembrando o comentário de Cauquelin sobre o Non-site, Franklin, New Jersey de Smithson, o vazio do buraco “subsiste no interior do lugar como aquilo que o ameaça”. Para as séries buracos e outros espaços, creio que a imagem do buraco não se porte de forma tão perturbadora. O registro mínimo de sua inscrição se articula com outros elementos do trabalho como os endereçamentos e referências, e mesmo com a fragilidade material do desenho. Apesar disso, espero que estes mesmos aspectos situem estas obras em uma posição que explore a acessibilidade que o desenho permite ao público nos sentidos de honestidade e imediatismo que Dexter descreve, sem esquecer todas as camadas, operações e intermediações que um desenho desta ordem envolve.

Encerro estas conclusões com um excerto de Kafka:

[...] nenhuma ponderação é suficientemente forte para me estimular à tarefa de escavar. Será que este fosso vai me trazer certeza? Cheguei a um ponto em que não quero absolutamente ter certeza.110

110 KAFKA, Franz. Um artista da fome e A construção. São Paulo: Brasiliense, 1994. p. 104.

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