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Museu do Estuque Museu Nacional Soares dos Reis 22 de Novembro de 2008 I Encontro Sobre Estuques Portugueses Livro de Actas

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Museu do EstuqueMuseu Nacional Soares dos Reis

22 de Novembro de 2008

I Encontro SobreEstuques Portugueses

Livro de Actas

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Museu do EstuqueMuseu Nacional Soares dos Reis

22 de Novembro de 2008

I Encontro SobreEstuques Portugueses

Livro de Actas

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Ficha Técnica:

Organização

Museu do Estuque

Museu Nacional Soares dos Reis

Coordenação do Encontro

Dr.º Paulo Castro

(Director da Plataforma Museu do Estuque e Gestor de Projectos do Museu do Estuque)

Dr.ª Patrícia Salgado

(Gestora de Projectos do Museu do Estuque)

Edição

Museu do Estuque

Bubok

Coordenação da Edição

Miguel Figueiredo

(Gestor de Projectos do Museu do Estuque)

Concepção Gráfica e Paginação

Raquel Morais

Escola Artística e Profissional Árvore

Tiragem: 100 exemplares

ÍNDICE:

Introdução Página 1

Programa do Encontro Página 3

Abertura Paulo Castro Página 5

História do Estuque Miguel Figueiredo Página 9

Os Estuques No Contexto Das Artes Decorativas Em Portugal Eduarda Moreira da Silva Página 19

O Estuque Na Arquitectura Romana No Norte da Meseta Lino Tavares Dias Página 27

Estuques Decorativos No Centro e Sul de Portugal- Elementos Para a Sua Caracterização Isabel Mayer Godinho Mendonça Página 35

O Andar Nobre Do Palácio dos Carrancas:O Programa de Decoração, Mobiliário e Estuques Paula Carneiro Página 51

Estuques Do Porto – O Contributo Dos Meiras Maria Augusta Marques Página 59 Os Estuques No Século XX No Porto – A Oficina Baganha Maria de São José Pinto Leite Página 69

Inventário do Património Arquitectónico do PortoArquitectura e materiais: registo e catálogo Maria Isabel Pinto Osório Página 75

Em Busca do Tempo Perdido Graça Viterbo Página 83

Conclusões Paulo Castro Página 87

Gonçalo de Vansconcelos e Sousa Página 89

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INTRODUÇÃO

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9h30 Recepção

10h00 Abertura Dr Paulo Castro Dr.ª Maria João Vasconcelos

10h30 História do Estuque Miguel Figueiredo

11h00 Os Estuques No Contexto Das Artes Decorativas Em Portugal Eduarda Moreira da Silva

11h30 – 12h00 – Pausa para café

12h00 O Estuque Na arquitectura Romana No Norte da Meseta Lino Tavares Dias

12h30 Estuques Decorativos No Centro e Sul de Portugal – Elementos Para a Sua Caracterização Isabel Mayer Godinho Mendonça

13h00 Debate

13h15 – 14h15 Almoço

14h30 O Andar Nobre Do Palácio dos Carrancas: O Programa de Decoração, Mobiliário e Estuques Paula Carneiro

15h00 Estuques Do Porto – O Contributo Dos Meiras Maria Augusta Marques

15h30 Os Estuques No Século XX No Porto – A Oficina Baganha Maria de São José Pinto Leite

16h00-16h30 – pausa para café

16h30 Inventário do Património Arquitectónico do Porto Arquitectura e materiais: registo e catálogo Maria Isabel Pinto Osório

17h00 Em Busca do Tempo Perdido Gracinha Viterbo

17h30 Debate

18h00 Encerramento e Conclusão Gonçalo Vasconcelos e Sousa Paulo Castro Patrícia Salgado

PROGRAMA 22 de Novembro de 2008

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ABERTURA

Em Nome da Plataforma Museu do Estuque cabe, desde já, agradecer o

convite que a Exm.ª Sr.ª Directora do Museu Nacional Soares dos Reis,

Doutora Maria João Vasconcelos, fez ao Museu do Estuque para apresentar

a exposição “Estuques no Porto do Séc. XX – a Oficina Baganha”. Esta

exposição, que resulta da Investigação realizada por Maria de São José

Pinto Leite, no contexto do seu Mestrado em Artes Decorativas na Univer-

sidade Católica Portuguesa, não teria sido viável sem a parceria do Museu

Nacional Soares dos Reis e da CRERE – Conservação e Restauro e que,

conjuntamente, criaram a logística necessária à concretização do evento

que decorreu entre 21 de Setembro de 2008 e 6 de Janeiro de 2009. Esta Ex-

posição, depois da parceria realizada entre o Museu do Estuque, a Câmara

Municipal de Cascais, a Universidade Lusíada e o Centro de Investigação

em Património da Universidade Lusíada de Lisboa (“A Presença do Estuque

em Portugal – Do neolítico à época contemporânea. Estudos para uma base

de dados – Lisboa, 2 a 5 de Maio de 2007), foi o passo seguinte do Museu

do Estuque que vem, novamente, evidenciar a sua função como entidade

divulgadora deste património artístico, esquecido e desvalorizado pelos

historiadores de arte e que reclama, para além de um estudo exigente,

uma urgente contextualização no seio das Artes Decorativas portuguesas e

um intenso trabalho de sensibilização à sua correcta protecção. Só assim

podemos criar mecanismos para limitar a perda dos numerosos exemplares

ainda existentes e garantir a continuidade e a função destes artefactos, de-

terminantes para a criação de uma imagem viva da sociedade e dos núcleos

urbanos onde se apresentam.

As novas enunciações de património cultural pela UNESCO, integram a

memória, a salvaguarda, actualização e preservação. Salientam o papel e

interesse que a sociedade civil, pode e deve ter, como instrumento de

mobilização para os valores culturais. O entendimento destes factos levou

o Museu do Estuque, no contexto da exposição já referida, a organizar este

“ I Encontro Sobre os Estuques Portugueses”, uma forma de debater esta

temática, de alertar para a colecção presente na exposição e para toda a

colecção que está presente e espalhada por todo o pais (que urge inventa-

riar e preservar!) e ainda, para promover a partilha da experiência teórica

e prática que é desenvolvida à volta destes artefactos.

Cabe aqui ainda fazer uma chamada de atenção para Flórido de Vasconce-

los, o único historiador de arte que dedicou o seu trabalho de investigação

a esta Arte Decorativa, contribuindo profundamente para o despertar das

mentalidades vigentes para a conservação do trabalho ornamental em estu-

que. Aqui fica expresso o nosso respeito e a justa homenagem que este “I

Encontro” deve fazer ao nome de Florido de Vasconcelos.

Paulo Castro

(Director da Plataforma Museu do Estuque)

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INTERVENÇÕES

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Licenciado pela Universidade Técnica de Lisboa. Formação em conserva-ção e restauro de bronzes artísticos. Desenvolveu a sua actividade na Gestão de Conservação e Restauro. Colaborou activamente na Gestão de intervenções sobre o património móvel/integrado e imóvel e ainda na concepção e execução de projecto de conservação e restauro (destacando-se o Projecto do Teatro Nacional de S. João liderado pelo Drº. Paulo Ludgero e executado para o Arq.º joão Carreira, a intervenção sobre bens artísticos do Palácio do Freixo para o Arqt.º Fernando Távora, o Projecto de intervenção sobre estuque artístico e policromias do Palácio Pombal – Divisão Municipal de Reabilitação Urbana- Uni-dade de projecto do Bairro Alto e Bica – Câmara Municipal de Lisboa e o pro-jecto de intervenção sobre o património integrado da Casa da Ínsua). Desde 2009 dedica-se à colaboração permanente com a CRERE (Centro de Restauro, Estudo e Reabilitação do Espaço), destacando-se os trabalhos de Projecto e Conservação e Restauro das Salas do Piso Nobre do Palacete da Condessa do Rio em Lisboa, as Galerias do Piso Nobre, a Escadaria

“Tutto questo tempio é di pietra triburtina coperta com un sotilissimo stucco, one pare tutto fatto di marmo”.Descrição do “Tempio della Sibilla” na acrópole de Tivoli por

Andrea Palladio

(PALLADIO, Andrea - I Quattro Libri dell´Architettura, Veneza

1570, lib. IV, cap. XXIII, p. 90)

1. Stucco / Estuque

Da tratadistica histórica verifica-se que a definição de estuque não é unívoca. Independentemente da pasta, que varia de acordo com as necessidades, com o ter-mo estuque compreende-se geralmente o trabalho de relevo, apesar de não se entender sempre e exclusi-vamente como a decoração plástica; frequentemente representa o último estrato que tem a função de tor-nar as superfícies murais lisas. Por outro lado o termo também vem usado para indicar as pastas usadas para o preenchimento de descontinuidades e lacunas que possam existir em superfícies. Na generalidade e no início de tudo, o estuque é considerada a amálgama de cal apagada com pó de mármore e areia lavada, adop-tada para revestimento das superfícies arquitectónicas ou para revestimento de obras plásticas. 1Ao longo do tempo esta pasta prestou-se a um papel de “substi-tuição”, ou “evocativo”, respeitante a outros mate-riais pelas mais variadas razões: economia de custos, abreviação de tempo de execução, maior dignificação dos objectos, renovar e valorizar dum artefacto pré existente, efeito de máscara de defeitos e de sinais de transformação e alteração. Indiscutivelmente, ao longo da história, a arte do es-tuque artístico está intimamente ligada à arte na cons-trução; o estabelecimento do seu saber normalizado e as suas variantes são só uma parte registada na tra-tadística que se defronta com esta expressão artística. Esta teorização é uma expressão da cultura territorial e as técnicas e as misturas aplicadas são diferentes da expressão teórica contemporânea. O conhecimento aprofundado destes temas tem de ser visto à luz das fontes de referência: a tratadistica, a partir da medie-val, renascimento e barroco, a manualística oitocen-tesca, os dicionários das artes e comercio, a pratica de obra e de oficina, inicialmente, e posteriormente, a pratica industrial através de catálogos.

2. O Estuque e o Mundo Antigo

O recurso a revestimentos lisos e ornamentais à base de cal e/ ou gesso já é conhecido desde a antiguidade. È um material que aparece por volta de 2000 a. C. entre as grandes civilizações indo-europeias. Aos egípcios deve-se, sobretudo, a ampla difusão que adquiriu a

técnica do escoado em gesso graças ao seu costume de reprodução das máscaras funerárias. Difunde-se entre as civilizações do mediterrâneo; conhece grande im-pulso técnico e artístico no mundo greco-romano que o adopta para a reprodução de estatuária. No mundo Romano o estuque, como arte decorativa, desenvol-veu-se em pleno e difundiu-se a todas as cidades do Império.

História do EstuqueMiguel Figueiredo

de Acesso à Galeria do Salão Árabe e o Salão Árabe do Palácio da Bolsa (Porto).É Mestrando em Gestão do Património Cultural na Universidade Católica Portuguesa e desenvolve tese à volta da gestão do património em estuque artístico (“A Colecção Baganha como ponto de partida à fruição cultural do estuque artístico”).Tem colaborado com a ESAP e com a UCP e ainda com a Câmara Municipal de Aveiro na realização de seminários e workshops.Faz parte do Grupo de Gestão do Museu do Estuque®. Neste contexto tem colaborado na dinamização do processo de progressão e reconhecimento desta organização cujo trabalho mais recente resultou na exposição “ Os Estuques do Século XX no Porto – A Oficina Baganha” e nos “I Encontros Sobre os Estuques Portugueses” Realizados no Museu Nacional Soares dos Reis. Na continuidade deste trabalho, está a organizar o “II Encontro Sobre os Estuques Portugueses: O Restauro do Salão Árabe” e que irá decorrer entre 28 e 29 de Abril de 2010 no salão Árabe do Palácio da Bolsa.

Porto, Fevereiro de 2010

Luís Miguel Paiva Pena Figueiredo

Figura 1: O Mundo Antigo. Templo da Sibila em Tivoli.

Figura 2: O Mundo Antigo. Pormenores de colunas revestidas com estuque. Ercolano / Telefo.

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As origens mais próximas reportam-se às antigas co-lónias gregas do sul da península itálica: Pompeia e Herculano. Quando Lucius Silla em 80 a. C. conduz vitorioso a expedição romana ao sul de Itália, ocorre um invulgar processo de osmose cultural, absorvendo dos colonizados o gosto artístico do mundo helénico destas cidades que se difunde a Roma. Com o desa-parecer de Pompeia e Herculano, desapareceram as “escolas” que praticavam os novos modelos parietais que, pela audácia e beleza, eram imitados em todas as cidades do império. Mas, quem no mundo Antigo latino executava estes trabalhos?

2.1. Tector, Albarius e Gypsarius

No mundo literário latino não há nenhum termo que explique a designação “stucco” (estuque); para o equivalente ao trabalho e à técnica encontramos, pelo menos três termos: opus tectorium, opus albarium e gypsum, cada com a sua particularidade que o torna e o distingue como diferente dos outros dois. No mundo romano a figura do estucador é definido como tector2. É responsável pelo revestimento liso e, também, por um trabalho mais elaborado: as cornijas que os tector corriam ao longo das linhas de separação entre as pa-redes e as abóbadas podiam ser purae (lisas) ou cela-tae (ornadas) com motivos realizados provavelmente à mão e por meio de carimbos3. Vitruvio4 designa de opus albarium o revestimento branco e cuja superfície poderia ser decorada em relevo. Noutras fontes, o ter-mo tector aparece precedido do adjectivo albarius5. A figura do albarius ou do albarius tector, não é uma qualificação diversa da do tector, mas mais uma es-pecificação no tratamento e na decoração com relevos dos rebocos brancos. Gypsum, indicador de gesso, também está classificado como um estuque e deriva do termo gypsarius, que se encontra abundantemente nos textos latinos e habitualmente associado a plastes, ex-pressão que evidencia a capacidade de realizar formas. Os plastae gypsarii seriam as pessoas que produziam decorações em gesso6. Num édito de Diocleciano, en-contramos o termo plastes gypsarius que nos indica a existência de modeladores em gesso7.

2.1.A Dispersão do Estuque Romano Pelo Oriente

O império romano estendeu-se e com ele foram leva-das as técnicas construtivas e artísticas que floresce-ram em Roma, para ocidente e para oriente. O Império Romano do Oriente teve continuidade com o nome de Império Bizantino. Surgiu também no Oriente o Império Árabe, Muçulmano ou Islâmico, com origem na Arábia no século VII, e que se expandiu para o Oriente, ocu-

pando a Pérsia e a Síria, e para o Ocidente, ocupando o Egipto e outros países do norte da África, chegando à Península Ibérica. Ocorre um intercâmbio de técnicas e formas, e que já vinham tomando lugar em resultado da influência da tradição da arquitectura helenística. Isto significava a ambos os mundos a oportunidade para reunir arquitectos e construtores Na pérsia en-contram-se os antecedentes da técnica muçulmana. Do ponto de vista técnico, inicialmente, o estuque é pre-dominantemente estampado com moldes (directamente na parede ou separadamente manufacturado em tijolos ou placas moldadas) enquanto que, posteriormente, há uma predominância da execução com recurso ao enta-lhe livre dos padrões directamente sobre a argamassa ainda húmida8. Entre estes períodos estabelecem-se as bases da futura prática islâmica que unidas à tendência de geometrizar as formas helenísticas e vegetais, e de as repetir indefinidamente, vão ser o claro precedente do arabesco9.

3. Idade Média

Estamos perante um momento que dificilmente permite a fixação de novos modelos estéticos e iconográficos e não se afirmam condições para um contexto socio-económico e cultural, com potencial de concorrer para o advento de novas respostas por parte dos artistas. Todo o filão de pensamento à volta do stucco forte romano fica adormecido nos tratados da antiguidade clássica. Neste momento reporta-se o uso do gesso, sobretudo nas antigas províncias romanas, por ser um material mais barato e de fácil obtenção. Testemunho desta situação está em São Isidoro de León que no seu Etimologias, fala dos plastice ou representações parietais de figuras e imagens modeladas em gesso e depois pintadas10. A decoração em estuque não era uma presença esporádica mas sim um elemento de colocação específica: a ornamentação em gesso era usada num sector intermédio, entre os mosaicos das zonas superiores e os elementos pétreos da zona infe-rior das paredes11.

4. Renascimento e Maneirismo

As referências explícitas ao estuque ocorrem no iní-cio da Renascença, e a melhor menção será sempre a tratadística de Cennino d´Andrea Cennini. Il Libro dell`Arte, é o primeiro ponto de apoio que combina a tratadística moderna com o mundo clássico. A im-portância de Cennini e do seu tratado na história do estuque, revela-se quer na tentativa de refundar a eti-mologia do termo, quer na redescoberta da técnica do stucco forte romano e de reproposta dos sistemas de execução12. Na etimologia do termo estuque, Cennini omite a origem lombarda de stukki como crosta e pro-põe o termo struccare (“pressionar/espremer”) já pre-sente no manual referido13. Na reconstrução da iden-tidade do termo stucco, a expressão lombarda stukki, provavelmente passa ao italiano por uma outra via, através do termo que permanece no alemão: stucki. Literalmente “crosta” que, por sua vez, toma o signifi-cado de revestimento e de reboco14. A raiz etimológica lombarda (stukki) estaria ainda presente no termo ale-mão Stukkatur que significa o relevo em estuque. No Il Libro dell`Arte, descreve-se a aplicação de relevos realizados com gesso tratado em simil mármore e rea-lizada pelo construtor do século XV e completamente substituída pelo stucco forte a partir do século XVI15. O termo só é verdadeira aplicado pela primeira vez, pela mão de Francesco di Giorgio Martini:o Trattato di architettura civile e militare. Mesmo não impresso, à época, foi muito conhecido e testemunha o desenvolvi-mento que, naquele momento, a arte de estucar parece assumir. No seu tratado, de fato, não só é presente o termo stucco mas vem expresso pela primeira vez a técnica, os materiais e as características das misturas. No seguimento deste trabalho, Vannoccio Biringuccio elabora De la Pirothecnia libri X (1534-35), onde des-

História do Estuque Miguel Figueiredo História do Estuque Miguel Figueiredo

Figura 3: O Mundo Islâmico. Pormenores de estuques árabes (Silves).

Figura 4: Estuques da Domus áurea; Sala di Achille a Skyros.

Figura 6: Estuques Maneiristas do Convento da Saudação de Montemor o Novo.

Figura 5: Estuques da Domus Áurea; Sala di Achille a Skyros.

creve a execução de moldes de gesso para a fundição e modelação de figuras16.É neste período que ocorre a descoberta das pinturas e estuques antigos da residência de Nero, a Domus Áurea; como a villa se apresentava totalmente cober-ta pela colina dell´Oppio, era necessário atravessar através de estreitos canais escavados paralelamente ao tecto, que davam a impressão de grutas: é daqui que vem dado o nome de “grottesche” à decoração das abóbadas com frescos e estuques nesta época. Si-multaneamente, produz-se uma reflexão teórica sobre a arte produzida pelos académicos do cinquecento ita-liano e que pode estar intimamente relacionado com a

Figura 7: Estuques Maneiristas do Colégio da Sapiência (Coimbra).

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razão para o esquecimento do estuque enquanto arte de apreço:(i) a análise das fontes técnicas antigas, confirma um detrimento das técnicas de modelação, nomeadamente as de base a estuque, face à estatuária marmórea, de bronze e madeira17; (ii) por outro lado, os académicos do cinquecento italiano abrem o deba-te da distinção dos géneros artísticos, no âmbito dos quais a escultura ocupa posição subalterna à pintura, e entre as várias técnicas da escultura, a actividade do “esculpir” vem, sem razão, privilegiada à da modela-ção. Esta posição continua a manifestar-se na trata-distica do seiscentos que confirma a modelação mais como uma actividade de aproximação, para a execução de modelo e esboços, que se irão realizar e concretizar na escultura verdadeira e própria18.

5. O Barroco e o neoclássico

O Concilio de Trento condena o grottesco como deco-ração pura e, portanto, ausente de qualquer significado e mensagem. A ornamentação em estuque assume duas direcções bem distintas: perde cromatismo e tende a usar só o bicromismo banco e ouro. Por outro lado vem acirrado o uso da Quadratura com o objectivo de fazer prevalecer o aspecto escultórico tridimensional em oposição à decoração gráfica bidimensional do pri-meiro renascimento19.A tratadistica apresenta conteúdo escasso. Desta-cam-se os textos do vicentino Scamozzi, Dell´Idea dell`Architettura Universale (1615) e do padovano Gioseffo Viola Zanini Dell`architettura (1629). Em Sca-mozzi o estuque de cal e o de gesso são reconheci-dos e descritos nas suas característica. Neste contexto aparece pela primeira vez uma mistura, dita bastarda, que recorre ao uso de gesso para a execução de orna-mentações de estuque misturado com pó de mármore e cal, de forma a tentar manter as características do stucco forte juntamente à maior plasticidade do gesso e à sua tendência para acelerar as sobreposições das várias fases20.Neste momento em que o estuque se apodera de todas as superfícies, a prática artesanal de execução do estu-que modifica-se para uma prática com algum carácter semi-industrial21. Na realidade, para além dos proces-sos de obtenção de cal e de gesso se tornarem cada vez mais aperfeiçoados, o melhoramento da execução de ornamentação pré fabricada, posticcie22, inunda os espaços. Os moldes presentes neste processo de semi – industrialização, consistiam em elementos de dupli-cação em madeira, designados de stampo (carimbo). Os processos descritos remetem para sistemas que já eram comummente praticados na renascença, tal como testemunhado nas obras dos Corral de Villalpando, em

Espanha23: sistema de carimbos, molde perdido, ou moldes com materiais maleáveis (cera ou barro) ou moldes em peças (tacelos). Os posticcie uniam-se à parede com uma capa de gesso vulgar e de secagem muito rápida.Na transição do XVII para o XVIII, o trabalho de es-tuque desenvolve um papel particular no seio dos próprios programas decorativos: um publico mais exigente, menos provido de majestade, reclama apar-tamentos mais acolhedores. Luís XV segue esta moda; prefere a intimidade e o conforto de um espaço mais exíguo e mais caloroso: os petits appartements. Nasce o gosto pelo arabesco, sobretudo na área francesa. O estilo rococó mascara, arredonda e amacia as linhas rígidas dos estuques e das madeiras na construção e com o estuque consegue o acordo entre a agradável vertigem e uma intimidade confiante24. Neste momen-to o estuque desenvolve-se principalmente no interior dos edifícios, recobrindo com grafismo quase todo o interior dos grandes salões de representação e das divisões mais íntimas. Esta transformação conduz o estuque a uma espessura menos volumosa e que exalta o sentido gráfico, intensifica um retorno do estuque à base de gesso que convive, lado a lado com o estuque de cal, sobretudo nas áreas com clima prevalentemente seco. O tratado de Francesco Griselini evidência esta transformação e elenca toda uma série de operações realizadas com o gesso. O gesso torna-se o material principal para o estuque, enquanto que o stucco forte permanece uma técnica conhecida mas praticada com dificuldade. No Giornale d ´Italia, Spettante alla scien-za naturale, e principalmente all´agricoltura, alle arti,

Figura 9: Pormenor do tecto da Sala D. João V (Autoria Niccolo Nasoni).

Figura 8: Tecto da Sala D. João V (Palácio do Freixo – Porto).

Figura 11: Estuques neo clássicos da capela do Prado do repou-so (Porto). Autoria: Luigi Chiari.

Figura 10: Tímpano da Capela da Santíssimo da Sé do Porto.

Figura 12: Estuques neo clássicos da igreja dos Grilos (Porto).

História do Estuque Miguel Figueiredo História do Estuque Miguel Figueiredo

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História do Estuque Miguel Figueiredo História do Estuque Miguel Figueiredo

ed al commercio (Veneza, 1773, que a par de Roma era uma das cidades que permanecia ligada à tradi-ção Vitruviana do estuque de cal) é referido que: (i) o estuque é constituído de gesso calcinado fresco, (ii) evidencia a vantagem sobre os tempos de trabalho, e (iii) tem um aspecto símile à pedra25.Fora de Itália, de extremo interesse, é a distinção pro-duzida por Quatremère de Quincy que tende a precisar a diferença entre estuque de Roma e de França, pela presença, neste último, de gesso em substituição da cal; refere ainda a scagliola, ou mischia, na qual se utiliza selenite, trabalhada com cola e com o intuito de imitar a pintura26.O neoclássico atinge o refinamento na manipulação do estuque. Retoma-se o estuque de baixa espessura. A descoberta de centros arqueológicos (Herculano e Pompeia) promove a motivação ornamental clássica nas habitações burguesas, como linguagem decorativa da nova residência na passagem do XVIII para o XIX. Intensifica-se a produção de modelos em gesso conse-quência, sobretudo, do aumento do estudo e análise da estatuária antiga e desenvolvimento dum coleccionis-mo específico27. Paralelamente,(i) o alto grau de conhe-cimento científico impulsiona a experimentação de mis-turas para tornar mais económicas as operações e (ii) a concorrência de materiais do sistema neo industrial estabelecem as premissas da dissolução do stucco forte. Cria-se confusão de terminologias e técnicas que não diferenciam mais as duas praxis: a técnica a “fresco” e a outra “da banco“, que tende a produzir “peças” em ges-so para aplicar a seco, de mais fácil execução e menor risco. Tal hibridação encontra-se nos manuais e tratados elaborados no século XVIII e XIX: os limites das duas técnicas não são mais delineados e levará, para sempre, à confusão entre stucco forte e stucco da gesso28. Si-multaneamente, o facto do estuque permanecer no XVIII como técnica dominada pela sabedoria hermética, ca-racterizada por operações à qual a experimentação não traz particulares revoluções técnicas, pode actuar para a não consideração deste património na Encyclopèdie de Diderot et d´Alambert29 que registou, com rigor cientifico, os vários sectores do artesanato30.Na segunda metade do XVIII a revolta contra o barroco-rococó traz aversão ao estuque; fundamentada na teoria estética que interpreta negativamente a decoração estu-cada. Tal é aplicado por Kant, Winckelman e Francesco Milizia31. O processo de depreciação do estuque é com-plementado, no fim do setecentos, com as revisões e que inserem a arte do estuque entre as artes menores32.

6. A manualistica do século XIX ao XX

No fim do XVIII e início do XIX ocorrerá uma rea-

bilitação desta arte, no sentido de uma maior auto-nomia da escultura e da arquitectura. A progressiva afirmação do estuque como técnica para obras não só de carácter decorativo, está em estreita relação e com o uso de moldes em gesso, emprego que progressi-vamente, do renascimento para a frente, se difunde, sobretudo como meio indispensável para o estudo e análise de obras de estatuária antiga33. A tratadistica do oitocentos é fortemente influenciada pelo tratado de Jean Rondelet: convivem resíduos da prática do seis e setecentos, referências clássicas e indícios de progresso técnicos34. A obra de Cavalieri San Bertolo não se afasta muito das definições dadas pelo arqui-tecto francês para o estuque empregado em Roma. No fim do século XIX, em 1853, é editado o tratado de Gustav Breymann35. Segundo este autor, e em pleno XIX, a técnica do estuque de gesso é a única que pode representar já um desenvolvimento industrial, uma solução mecanizada na produção decorativa. O stucco-forte é visto como um saber quase isolado e praticamente limitado à área italiana. Neste tratado, da maior importância salienta-se a particular atenção que é dada à descrição de trabalhos de estuque propria-mente ditos, e que formam a ornamentação em relevo. É descrito o procedimento de execução dos estuques em obra e fora dela. Enquanto que em obra a pasta é modelada directamente sobre o artefacto, fora de obra recorre-se a formas que reproduzem a decoração em negativo e na qual é colocado o estuque. Descreve-se de modo particularmente detalhado e com ilustrações exemplificativas, dos moldes em lâmina utilizados para definir os perfis das cornijas. Tais formas em madeira, geralmente dura e fina são revestidas com uma lâmina de ferro ou zinco fixa com pregos no flanco da forma, e são guiadas sobre a argamassa na direcção normal à superfície, para que a cornija assuma o relevo en-talhado do perfil36. Estas situações também aparecem descritas de forma semelhante nos escritos de De Ce-sare (La Scienza della Architettura, Napoli, Giovanni Pellizone, 1855) Neste fim do Oitocentos fala-se, pela primeira vez, de “pedra reconstituída”, ”pedra artificial”, a propósito de um material obtido da mistura de uma carga de pedra esmagada e de cal hidráulica, moldada com moldes e carimbos; é o francês M. Bailly que em 1875 apresenta o material à Associação Francesa para o Desenvolvi-mento das Ciências. No entanto, tal como o estuque, também a “pedra artificial” nasce com o intento de imitação da pedra natural mas, diferentemente dos materiais de tradição, para além de imitar não só as características exteriores do material natural (grau, textura, cor), também tenta imitar aquelas que são in-trínsecas do comportamento37.

No manual de Musso e Copperi (Particolari di constru-zioni murale e finimenti di fabbrica. Torino 1888), quer os trabalhos em estuque, quer a pedra artificial, são tratados no grande capitulo relativo aos acabamentos. Evidencia-se que os autores destacam as potencialida-des das pastas cimentícias para a imitação de pedra, pelos aspectos prestacionais, economicos da constru-ção e pela possibilidade “lexical – compositiva”, to-dos eles intrinsecamente ligados a características dos estuques. É por este contexto, e ainda pela similitude da forma de trabalho deste material comparativamente aos estuques, que há autores que também inserem este materiais na designação generalizada de “estuques. Neste momento, a posição incerta entre estuque de cal (stucco forte) e estuque gesso (stucco gesso) continua a registar-se nos vários tratados entre o século XIX e XX. Tal confusão não são devidas ao desaparecimento do saber dos operadores, mas ao:(i) prevalecer das técnicas ligadas à industrialização da produção de de-coração à base de gesso, (ii) às inovações matéricas que vão surgindo e ainda, (iii) ao escasso e insuficiente

relacionamento entre tratadista e saber dos mestres, tendencialmente recusado a favor de um saber cienti-fico elaborado nos centros institucionais38. A crise de-cisiva acontece com o desaparecer da cultura da cal o que ocorrerá por volta dos anos 30/40 do novecentos. A perda da consciência da técnica do estuque de cal, e do estuque de gesso, reflecte-se no desinteresse que a critica artística manifestou a este sector ao inicio do século XIX, e sobretudo nos anos 30 do século XX e na atitude de absoluto desencanto assente num juízo de fundo negativo. Simultaneamente, à condenação da ornamentação decretada pela arquitectura moderna, junta-se a desvalorização de alguns ciclos decorativos barrocos considerados camufladores das antigas arqui-tectura o que leva ao desmantelamento de aparatos decorativos seis e setecentescos39.No primeiro decénio do Novecentos, a decoração a estuque experimenta o processo de industrialização; a produção de carácter artesanal de decoração arquitec-tónica a estuque, dá lugar a uma produção de cópia industrial na qual, a inovação tecnológica – em termos de processo e produto – e organização – produtiva e não produtiva – marcam uma renovada fase dos estu-ques40. Num período transitório entre a tarda expres-são eclética, com a sua peculiaridade marcadamente decorativistica, e o estilo floral intenso (como inter-pretação generalizada da Art Noveu), a arquitectura é caracterizada por programas consistentemente decora-tivos em estuque de grande impacto na imagem urba-na. O critério geral da manualística é o de aprofundar aspectos relativos aos novos materiais e, lentamente, o interesse concentra-se nas novas metodologias que es-tes consentem. No fim do oitocentos e início do nove-centos desenvolve-se a prática de oficina do trabalho de estuque numa nova realidade: é a própria empre-sa que se propõe no mercado oferecendo ao público uma imagem de si através da recolha de ilustrações dos próprios produtos sob a forma de catálogos. O encomendante encontra-se inserido num processo de standartização e perfila-se a perda de contacto com a

Figura 13: Pormenor de estuque oitocentesco (clarabóia na cidade do Porto).

Figura 14: Séc XX. Estudo para o “Amor” e destinado à fachada do Teatro S. João (Porto). (Autoria: Sousa Caldas ou oficina Baganha).

Figura 15: Séc XX. “Amor” (fachada do Teatro S. João - Porto. (Autoria: Oficina Baganha).

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História do Estuque Miguel Figueiredo História do Estuque Miguel Figueiredo

tradição local, com o gosto dos espaços e segue-se o objectivo de prossecução do lucro. Reproduzem-se te-mas iconográficos pós ecléticos que seguem dois filões separados: de uma parte repropõem a decoração bar-roca e neoclássica dos palácios reais; por outro lado seguem o novo e moderno gosto Liberty e Deco. As sugestões vêem dos desenhos dos mestres das Acade-mias das Escolas de Belas Artes.

7. Conclusão

Colocar em jogo toda a complexidade da arte do estu-que, seja do ponto de vista tratadistico seja do ponto de vista do conhecimento dos construtores, permite hoje reconsiderar esta técnica no seu íntimo e assegu-rar que se trata-se de um património frágil e anónimo. Aqui não se desejou uma sistematização tipológica ou taxionómica dos artefactos mas, acima de tudo, pre-tendeu-se ilustrar o progresso e as mudanças na histó-ria deste material, de forma a aceder e compreender a riqueza, o refinamento de soluções construtivas adop-tadas e a importância sobre o plano arquitectónico e a escala urbana que o “fenómeno” estuque apresentou e ainda apresenta na redefinição do espaço urbano, enquanto expressão da adesão ao gosto do momento. Da mesma forma e tal como Clara Palmas Devoti obser-vava relativamente às fachadas pintadas de Génova, os estuques « […] tem a particularidade de não serem um facto puramentedecorativo mas são também substancia da arquitectura, e é este “ser arquitectura” é que torna difícil o problema do restauro»41.

NOTAS DE RODAPÉ:

1 SONZOGNI, Luca - Lo Stucco Lucido. Corponove Bergamo, Bergamo, 2004, p.7. Este autor também define o stucco lucido como equivalente à encaustica.

2 Substantivo derivado do verbo tegere, que significa, cobrir ou recobrir, e do qual provém os termos tectum, tecto, e te-gula, telha.

3 VITRUVIUS POLLIO - De Architectura, VII, 2, 3, 4 e 5 In http: //penélope.uchicago.edu/thayer/E/Roman/Texts/Vitruvius/7*.html

4 Vd. http://penélope.uchicago.edu/thayer/E/Roman/Texts/Vitruvius/7*.html. (20 de Abril 2008)

5 Referência à obra de Tertulliano, De Idololatria. Albarius deri-va do substantivo album, “branco”. In. IDEM – Ibidem. p. 730.

6 Alguns exemplos tratam-se de medalhões octogonais com figuras mitológicas provenientes de uma abóbada de um am-biente termal de Portici, e que se podem observar no Museu Nacional de Napoles. Vd. IDEM – Ibidem. p.732

7 Vd. La Obra en Yeso Policromado de Los Corral de Villalpan-do. Edição do Ministerio de Cultura. Direccion General de Bellas Artes y Archivos. Instituto de Conservacion e Restauracion de bienes Culturales. Madrid, 1994, p. 76

8 No entanto....contrária. Vd. ARCE, Ignacio – The Early Islamic Stucco Techniques and The Parto-Sassanian Tradition.Continuity And Change, In Scienza e Beni Culturali. Lo STUCCO: Cultu-ra, Tecnologia, Conoscenza. Atti del XVII Convegno di Studi. Bressanone 10 – 13 luglio 2001. Edizioni Arcadia Ricerche S.r.l. Venezia, p.108 - 111.

9 In La Obra en Yeso Policromado de Los Corral de Villalpando. Edição do Ministerio de Cultura. Direccion General de Bellas Artes y Archivos. Instituto de Conservacion e Restauracion de bienes Culturales. Madrid, 1994, p. 77.

10 San Isidoro de Sevilla, “Etiomologías”, Cap XIX, trad. Bilingue B. A. C., Madrid, 1982/3, p. 451. In La Obra en Yeso Policromado de Los Corral de Villalpando. Edição do Ministerio de Cultura. Direccion General de Bellas Artes y Archivos. Instituto de Conser-vacion e Restauracion de bienes Culturales. Madrid, 1994, p. 76.

11 Vd. PASQUINI,Laura – La Decorazione a stucco in Itália fra tar-do antico e alto medioevo, Longo Editore,Ravenna, 2002, p9-10

12 Vd. AMENDOLAGINE, Francesco – Le Tecniche Ed I Materiali Dello Stucco Forte Nelle Fonti Dal rinascimento Alla Modernità, In Scienza e Beni Culturali. Lo STUCCO: Cultura, Tecnologia, Conoscenza. Atti del XVII Convegno di Studi. Bressanone 10 – 13 luglio 2001. Edizioni Arcadia Ricerche S.r.l. Venezia, p.2

13 IDEM - Ibidem. p. 16-17.

14 Vd. MAVER, Andrea - La Figura Dello Stuccatore In Epoca Romana Indagata Attraverso Le Fonti Documentarie Antiche. Lo STUCCO: Cultura, Tecnologia, Conoscenza. Atti del XVII Con-vegno di Studi. Bressanone 10 – 13 luglio 2001. Edizioni Arcadia Ricerche S.r.l. Venezia, p. 727.

15 In AMENDOLAGINE, Francesco - Ob. cit. p. 3.

16 SILVA, Hélia Cristina Tirano Tomás da, Giovanni Grossi e a Evolução dos Estuques Decorativos no Portugal Setecentista. Lisboa: Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, 2005. 604 f. Dissertação para obtenção do grau de mestrado em Arte, Património e Restauro, p. 71.

17 Vd. ZACHEO, Maria Itália; VESCOVO, Paola Del – La Tecnica a Stucco di Pietro Canonica. Problematiche Sulle Patina Artificiali Nell´Intervento di Restauro. Lo STUCCO: Cultura, Tecnologia, Conoscenza. Atti del XVII Convegno di Studi. Bressanone 10 – 13 luglio 2001. Edizioni Arcadia Ricerche S.r.l. Venezia, p. 623.

18 IDEM – Ibidem. p.623.

19 Vd. AMENDOLAGINE, Francesco - Ob cit. p. 10.

20 Vd. AMENDOLAGINE, ... e Vd.BARILA, Giuliana – Lo Stucco nella trattatistica: Varianti tecniche e Modalita operative nell ´Italia Dell ´Ottocento. Atti del XVII Convegno di Studi. Bressa-none 10 – 13 luglio 2001. Edizioni Arcadia Ricerche S.r.l. Venezia, p. 428 e 429.

21 Vd. BARILA, Giuliana – Lo Stucco nella trattatistica: Varianti tecniche e Modalita operative nell´Italia Dell´Ottocento. Atti del XVII Convegno di Studi. Bressanone 10 – 13 luglio 2001. Edizioni Arcadia Ricerche S.r.l. Venezia, p. 428.

22 IDEM – Ibidem. p. 428.

23 Vd. La Obra en Yeso Policromado de Los Corral de Villalpan-do. Edição do Ministerio de Cultura. Direccion General de Bellas Artes y Archivos. Instituto de Conservacion e Restauracion de bienes Culturales. Madrid, 1994, p. 81-82.

24 STAROBINSKI, Jean - L ´Invention de la Liberté– 1700 – 1789 – L´espace human du XVIIIe siécle, Editions d´Art Albert Skira S. A, 2ª ed.. Genève 1987, p 22- 23.

25 In AMENDOLAGINE, Francesco - Ob. cit. p. 13.

26 Vd. FANTONE, Monica – Gli Stucchi Tra 800 e 900 Nella Produzione Del Nuovo e Nel Restauro In Piemonte: prescrizioni, trattati e cataloghi. In Scienza e Beni Culturali. Lo STUCCO: Cul-tura, Tecnologia, Conoscenza. Atti del XVII Convegno di Studi. Bressanone 10 – 13 luglio 2001. Edizioni Arcadia Ricerche S.r.l. Venezia, p.404.

27 Vd. ZACHEO, Maria Itália; VESCOVO, Paola Del – La Técnica a stucco di Pietro Canónica: Problematiche sulle patine artificiali nell´intervento di restauro. In Scienza e Beni Culturali. Lo STUC-CO: Cultura, Tecnologia, Conoscenza. Atti del XVII Convegno di Studi. Bressanone 10 – 13 luglio 2001. Edizioni Arcadia Ricerche S.r.l. Venezia, p.623.

28 In AMENDOLAGINE, Francesco - Ob. cit. p. 13.

29 Denis Diderot (Outubro, 5, 1713 – Julho, 31, 1784) e Jean le Rond d’Alembert (Novembro, 16,1717 – Outubro, 29, 1783).

30 Vd. IDEM – Ibidem. p. 12. e www.hti.umich.edu (consultado a 31 Janeiro 2008).

31 MILIZIA, Francesco - Dell´arte di vedere nelle beli arti del disegno secondo i principi di Sulzer e di Mengs, Venezia, Pas-quali, 1781.

32 In ZACHEO, Maria Itália; VESCOVO, Paola Del – Ob. cit. p. 623. e AMENDOLAGINE, Francesco - Ob. cit. p. 13.

33 In ZACHEO, Maria Itália; VESCOVO, Paola Del – Ob. cit. p. 623.

34 Vd. BARILA, Giuliana – Lo Stucco nella trattatistica: Varianti tecniche e Modalita operative nell ´Italia Dell ´Ottocento. Lo STUCCO: Atti del XVII Convegno di Studi. Bressanone 10 – 13 luglio 2001. Edizioni Arcadia Ricerche S.r.l. Venezia, p. 430.

35 BREYMANN, G.A. - Trattato generali di construzioni civili – com cenni speciali intorno alle construzioni grandiose. Quarta Edizione Italiana. Milano, Dottor F. Vallardi Editore, 1926. Volu-me I, capitolo VII, pg 417.

36 In BARILA, Giuliana – Ob cit. p.431-432.

37 In MELE, Caterina – Stucchi e Cementi Decorativi Nelle Ar-chitetture Torinesi Fra Ottocento e Novecento. Lo STUCCO: Cul-tura, Tecnologia, Conoscenza. Atti del XVII Convegno di Studi. Bressanone 10 – 13 luglio 2001. Edizioni Arcadia Ricerche S.r.l. Venezia, p. 82-83.

38 Vd. AMENDOLAGINE, Francesco - Ob cit. p.15.

39 In RAVA, Antonio – Restauro Delle Decorazioni Barocche a Stucco in Piemonte: Colorazioni e Dorature Originali, Ridipinture e Rifacimenti Sucessivi. Lo STUCCO: Cultura, Tecnologia, Conos-cenza. Atti del XVII Convegno di Studi. Bressanone 10 – 13 luglio 2001. Edizioni Arcadia Ricerche S.r.l. Venezia, p. 329.

40 In Payen LENORMAN Nuovo Dizionario Universale Tecnlogi-co o di Arti e Mestieri della Erconomia Industriale e Comerciane, voce “Stuccatore, stucco”, Giuseppe Antonelli, Venezia 1833.

41 Clara Palmas Devoti: Peculiarità construttive ed ambientali delle architetture dipinti genovesi ed aspetti tecnici degli inter-venti restaurativi, in Facciate Dipinte. Conservazione e restauro. Atti del Convegno di Studi. Genoa 15 – 17 Aprile 1982. Sagep Editrice. Genoa, p. 133.

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- Licenciada em Ciências Históricas pela Universidade Livre do Porto (1985).- Pós-graduada em Museologia Social pela Universidade Autónoma de Lisboa (1991).- Pós-graduada em Museologia pela Universidade de Brno (República Checa) – 1996.- Mestre em Recuperação do Património Arquitectónico e Paisagístico pela Univer-sidade de Évora (2003).- Diploma de Estudos Superiores Avançados em Conservação e Restauro do património Histórico-Artístico pela Faculdade de Belas Artes de San Carlos - Universidade Politécnica de Valência (2006).- Doutora em Conservação e Restauro do Património Histórico-Artístico pela Uni-versidade Politécnica de Valência (2009).

Experiência Profissional- Assistente do Departamento de Ciências da Educação e do Património da Universidade Portucalense desde 1986 até Setembro de 2008 com experiência do-cente nas áreas de Arqueologia, História, Património e Conservação e Restauro.- Membro fundador do Centro de Conservação e Restauro da Universidade Portucalense.- Possui grande experiência na orga-nização de conferências, workshops, simpósios, cursos livres e congressos.- Docente em vários cursos de Mestrado (Metodologias de Intervenção no Património Arquitectónico – FAUP) e de pós-graduação (Turismo Cultural, Conservação Preventiva, Arqueologia e Museologia – UPT).- Assistente – regente da Escola das Artes – pólo Regional do Porto na área de Conservação e Restauro de Materiais Inorgânicos, desde 1 de Setembro de 2008.- Secretária Científica do Departamento de Arte, Conservação e Restauro.- Docente do curso de doutoramento em Arte Sacra.- Membro do Conselho de Redacção da Revista ECR – Estudos de Conservação e Restauro.- Membro do Conselho Científico da revista do Grupo Espanhol de Conservação.- Colaboradora da revista espanhola R&R (Restauración &Rehabilitación).

Eduarda Maria Moreira Vieira da Silva Os Estuques no Contexto das Artes Decorativas PortuguesasEduarda Moreira da Silva Vieira

Resumo:Este artigo pretende traçar o percurso evolutivo dos estudos da arte do estuque em Portugal, ao longo do século XX, desde Flórido de Vasconcelos a Avelino Ramos Meira, sem esquecer o recente avanço que a investigação tem vindo a registar já em pleno século XXI, resultado do trabalho sistemático de um reduzido, mas multidisciplinar conjunto de autores.Apontam-se igualmente os principais factores que po-derão estar na base da renovação do interesse por esta arte actualmente.

Palavras-Chave: Estuques; Investigação; História da Arte; Reabilitação; Conservação/Restauro

Abstract:This paper aims to ascertain the evolution of the re-search done in the field of stucco history in Portugal, during the 20th century, since the pioneering work by Flórido de Vasconcelos, until Avelino Ramos Meira, taking also into account the recent breakthroughs whi-ch had already took place in the 21st century, as a re-sult of a multidisciplinary approach by a few authors.We also strive to identify the main factors that may explain the current renewal of interest for this field of study.

Keywords:Stuccos; Research; History of Art; Rehabilitation; Con-servation/Restoration

1. Ponto da situação sobre os estudos da arte do estu-que em Portugal.

Em Portugal, as Artes Decorativas não alcançaram ain-da, no seu conjunto, estatuto de maioridade, circuns-tância que se deve à tradicional hipervalorização de áreas mais nobres como a Arquitectura, a Escultura ou a Pintura. Só muito recentemente é que a História da Arte se foi tornando receptiva ao alargamento do seu objecto de estudo, facto a que não é alheio o alargamento do próprio conceito de património tal como é definido pela Unesco1. À considerável herança em estuques decorativos - nas diversas vertentes técnicas e funcionais – do patrimó-nio histórico – artístico português, que constitui um elemento destacado mesmo para um país pequeno e algo periférico como Portugal, não corresponde, no entanto, o necessário reconhecimento do seu valor de arte por parte dos especialistas. Com efeito, as artes dos gessos quase nunca suscitaram interesse suficien-

te, a ponto de este se reflectir em trabalhos ou estudos publicados. Ao longo das últimas décadas do século XIX e durante quase todo o século XX, são muito escassas as referências bibliográficas e os estudos so-bre o tema.

Figura 1: Fragmento de moldura de cornija com decoração vege-talista no friso inferior; pintura geométrica no friso intermédio e rematada por decoração com óvulos no friso superior. Museu Monográfico de Conímbriga. (Condeixa- a-Velha).

Figura 2: Mihrab da antiga mesquita de Mértola. Decoração com três arcos polilobados rematados por cornija

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Os Estuques no Contexto das Artes Decorativas Portuguesas Eduarda Moreira da Silva Vieira Os Estuques no Contexto das Artes Decorativas Portuguesas Eduarda Moreira da Silva Vieira

Um dos primeiros artigos sobre este assunto é da au-toria do escultor gaiense Diogo de Macedo, que na revista Ocidente, na secção Notas de Arte, publicou uma pequena resenha sobre a Arte do Estuque2, con-siderando-a, já então, em 1942, uma arte extinta. O autor tece também algumas considerações de carácter histórico, justificando o seu texto como uma última homenagem a uma tradição em vias de desaparecer.Três anos mais tarde, coube a Avelino Ramos Meira realizar aquela que podemos justamente considerar a primeira grande referência dedicada a esta temática, com a publicação da sua obra Afife: síntese monográ-fica3. Estucador de profissão e nascido no seio de uma família que tinha por tradição a arte do estuque, Aveli-no Ramos Meira realiza no capítulo IX da sua obra uma análise relativamente pormenorizada sobre a evolução daquela arte em Portugal. Numa tentativa de justificar o surgimento desta tradição na zona de Afife (Viana do Castelo), destaca dois momentos fundamentais: os meados do século XVIII, período dominado por artis-tas italianos, mas onde pontuam já alguns estucadores portugueses naturais de Afife, e o século XIX, quando se destacarão artistas de Afife e alguns artistas ingle-ses, estes últimos muito ligados à tradição neoclássica e à comunidade inglesa da cidade do Porto. A obra termina com um recenseamento detalhado das casas antigas de Afife, grande parte delas propriedade de artistas que se destacaram na arte do estuque em território nacional ao longo do século XIX e do primei-

ro quartel do século XX. Para além destes elementos, o autor fornece igualmente alguns pormenores sobre técnicas artísticas, indicando sempre que possível os locais onde determinados estucadores trabalharam, conferindo particular atenção às intrincadas e comple-xas relações familiares que, com o tempo, se foram estabelecendo entre várias famílias de artistas afifen-ses. Tendo em conta a escassez de fontes documentais para o estudo desta arte e a projecção que os artistas de Afife tiveram, tanto no país como no estrangeiro, a monografia de Ramos Meira constitui ainda hoje uma referência essencial para a compreensão desta actividade nos séculos XIX e XX, assim como para a contextualização do núcleo patrimonial de imóveis antigos de Afife, sem esquecer a atribuição de autorias de alguns programas decorativos existentes em vários edifícios espalhados pelo país. Muito embora o estudo formal dos programas decorativos do século XIX, e a respectiva identificação de autorias esteja ainda por fazer4, o autor lança igualmente algumas pistas so-bre a projecção que certos artistas portugueses terão alcançado fora do país, e sobre a perícia de alguns no domínio de determinadas técnicas decorativas de revestimentos parietais. Apesar do reduzido interesse que quer a História da Arte quer a Arquitectura manifestaram pelo tema, cabe salientar a figura de Flórido de Vasconcelos, que di-rigiu, a partir dos inícios da década de 60 do século XX, a sua atenção para os estuques portugueses. Com

Figura 3: Pormenor do tecto da capela decorado em estilo Adam. Estuques e pintura a óleo na mandorla. Igreja dos Grilos. Porto.

efeito, Flórido de Vasconcelos foi o único historiador de arte a demonstrar um interesse profundo, tanto pela investigação como pela conservação da arte do estu-que. Em 1961 publicou o seu primeiro artigo5, no qual ensaia uma resenha histórica da presença desta arte em Portugal, dissecando as fontes históricas disponí-veis, ao mesmo tempo que tenta contextualizar alguns dos mais antigos exemplares existentes entre nós, numa tentativa de estabelecer um fio condutor entre a tradição renascentista - maneirista e a barroca.Nas décadas subsequentes, seguir-se-iam vários traba-lhos que na actualidade constituem o núcleo de refe-rências bibliográficas mais importantes6 alusivas a este tema no quadro da historiografia da arte portuguesa. Flórido de Vasconcelos acabou por ser uma voz isolada no reconhecimento do valor artístico da arte do estu-que, tradicionalmente desprezada e mal interpretada em Portugal7. Da leitura da sua obra, podemos concluir que Vasconcelos concentrou a sua atenção na visão artística, tentando sempre que possível partir para a leitura formal dos programas decorativos e a respecti-va contextualização cronológica e estilística8. O preconceito que se gerou em torno do estuque de ornato ou relevado, acarretou um atraso na sua con-

versão a objecto patrimonial, o que, por si só, des-poletou uma série de outras consequências de efeitos muito negativos, como sejam o desaparecimento por ruína dos imóveis ou a simples eliminação de progra-mas decorativos em edifícios cujo uso se manteve até aos nossos dias, que nalguns casos afectou conjuntos de grande valor histórico - artístico (como sucedeu, por exemplo, com os estuques da autoria de Nicolau Nasoni no palácio do Freixo, no Porto).

2. A Reabilitação e a Conservação e Restauro

O aparente desinteresse da História da Arte pela Arte do Estuque poderá, em nossa opinião, ter sido moti-vado pela escassez de fontes documentais, condicio-nalismo que dificulta a devida identificação e contex-tualização das produções artísticas. Não esqueçamos que a investigação em História da Arte privilegia o documento escrito como base para o enquadramento cronológico - estilístico da obra de arte, estribando-se nele como referência para o uso do método formalis-ta. No campo das Artes Decorativas somos por vezes, frequentemente forçados a lidar com poucas fontes escritas, o que determina o recurso a outras metodo-logias de interpretação e leitura. Esta situação assume contornos mais nítidos no caso dos estuques de orna-to ou de revestimento, dada a aparente ausência de contratos, salvo uma ou outra excepção, relacionadas com grandes mestres (estucadores, arquitectos ou pin-tores), normalmente coincidindo com o património da Igreja9. Por outro lado, a obra de estuque decorativo (de ornato ou de revestimento) na arquitectura civil, da alta nobreza ou da burguesia, corresponde a inicia-tivas particulares, que em geral não ficavam registadas e ainda mais raramente assinadas. Tudo isto dificulta exponencialmente a identificação rigorosa de artistas, escolas e influências.

Contudo, e apesar de neste campo «estar quase tudo por fazer» como fez questão de assinalar Flórido de Vasconcelos10, os últimos anos registaram uma evolu-ção positiva que conduziu a um novo olhar, propician-do um interesse renovado pelos estudos neste campo. O contínuo desenvolvimento dos sectores da Reabili-tação e da Conservação e Restauro verificado a partir de meados dos anos 90 do século XX, teve entre as principais consequências uma renovação do interesse pelo património construído e pela sua preservação. A conservação urbana e as grandes obras de reabilitação do património11 atraíram a atenção do cidadão comum, que passou a encarar o património não apenas sob uma perspectiva museológica, mas como algo ligado ao passado colectivo e aos valores de identidade.

Figura 4: Estuque Arte Nova. Hall da Casa do Pombal . Afife.

Figura 5: Tecto em estuque pintado a imitar madeira e couro. Casa do Pombal. Afife.

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O desenvolvimento da reabilitação e da conservação monumental determinou o surgimento de um novo conceito: o restauro do património móvel integrado, e com ele, uma maior valorização das artes decorati-vas e o recurso a novos procedimentos metodológicos. Por outro lado, a reabilitação e o restauro implicam a compreensão detalhada das técnicas de produção e dos sistemas construtivos, da tecnologia de materiais, e de todo um sem número de factores. Importa ain-da realçar que em conservação e numa pura acepção brandiana, lidamos sobretudo com a materialidade da obra de arte. Deste modo, a renovação no campo do estudo da arte do estuque deu-se a partir de disciplinas como a ar-quitectura, a engenharia civil ou a conservação. Este novo olhar está vertido num conjunto de trabalhos re-centes da autoria de vários investigadores, que no seu conjunto tentaram contribuir com novas abordagens e metodologias visando os objectivos da conservação patrimonial. Num total de cinco, estes trabalhos assu-mem uma particular relevância na investigação sobre este tema, constituindo todos teses de mestrado que não obstante proporem leituras individuais sobre o património em estuque, não deixam de considerar as questões da conservação como fio condutor. Seguindo uma ordem cronológica, destacamos como pioneiro o trabalho de Paulo Malta da Silveira12 que nos fornece uma visão técnica, na sua qualidade de engenheiro ci-vil, do estuque de ornato articulado com a estrutura arquitectónica que lhe serve de suporte, tentando de-

finir fenómenos de degradação a partir da caracteriza-ção dos materiais constituintes. Por seu lado, e num plano mais relacionado com as tecnologias de produção artística, respectiva iden-tificação e caracterização, cite-se a dissertação da autora deste artigo13. No âmbito da história da arte, e relacionada com a problemática da inventariação, devemos salientar o estudo de Liliana Pereira14, com o qual a autora pretendeu também lançar a ideia de uma possível rentabilização do estuque decorativo como itinerário de turismo cultural. Por último, e num plano conceptual bastante inovador, registe-se a pro-posta de Hélder Cotrim15, um ensaio para a criação de uma metodologia de projecto na recuperação de conjuntos de estuques antigos, com particular ênfase nos tectos ornamentados. Esta proposta metodológica é, em nossa opinião, bastante válida para o restauro de conjuntos ornamentados oitocentistas16. Numa sólida perspectiva de contextualização artística efectuada a partir da compreensão da linguagem plástica e formal dos estuques de ornato setecentistas, ligados ao apo-geu barroco, surge-nos o estudo de Hélia Silva17, que constitui até à data a única obra dedicada ao estuque de ornato ao tempo do Marquês de Pombal, conside-rado a época de arranque desta arte.Por outro lado, há ainda a realçar o trabalho de Maria de São José Pinto Leite18, dedicado ao espólio da Ofici-na Baganha. Este estudo teve por objectivo a inventa-riação dos desenhos e moldes que integram a referida colecção, numa tentativa de estabelecer uma ligação

Figura 6: Fachada principal do Cine Teatro de Fafe (1923) antes das obras de reabilitação (2008). Técnica de simulação de esgrafitos por pintura.

entre aqueles e as obras efectivamente executadas, ainda visíveis em muitos edifícios da cidade do Porto. Por último, importa salientar o contributo de Miguel Figueiredo19 que para além duma experiência profis-sional ligada à reabilitação de edifícios históricos, se tem vindo a dedicar, à divulgação desta arte e à pro-moção iniciativas relacionadas com a colecção Baga-nha. Considerando-a um recurso a todos os níveis (his-tórico, estético, artístico, pedagógico), tem tentando alcançar com a sua reflexão, um modelo de gestão que possibilite a fruição dinâmica da mesma por parte dos diversos públicos-alvo, na sua relação com a história das elites urbanas e da própria cidade do Porto20. Perante este panorama, conclui-se que muito embora se registe uma assinalável sensibilidade para o estu-do das artes dos gessos por parte de diversos grupos profissionais ligados à reabilitação e à conservação, no campo da produção historiográfica não se avançou do mesmo modo, sendo notória a carência de estudos na área da história da arte21. Contudo, a renovação do interesse pelo património em estuque, e não obstante os avanços registados nos domínios da preservação e restauro do mesmo, não foi acompanhada pela implementação de estratégias de salvaguarda, gestão e inventariação sistemáticas que se traduzam em políticas concretas por parte dos órgãos da tutela, situação que se tem vindo a agravar com a crise institucional e financeira que se vive de há alguns anos a esta parte no sector da Cultura22. Em pleno século XXI, num momento em que se assiste à consolidação da carga ideológica do Património, os profissionais das diferentes áreas que integram a ci-ência da conservação, já distanciados das concepções estritamente memoriais caras ao século XIX, mas cons-cientes dos valores de uso e de memória, e também do relevo económico-social daquele, defendem com cres-cente veemência a criação de perfis profissionais mais versáteis, que permitam enfrentar os novos desafios da conservação. A cultura da conservação exige o con-curso de sólidas formações especializadas na área de Património, para que as respostas às necessidades de uma prática dominada pelos valores do funcionalismo e da utilidade possam ser as mais ajustadas.No dizer de Maria Morente del Monte, “(...) Ya no protegemos, conservamos, restauramos, investigamos y difundimos nuestros patrimonios de la misma forma que hace un siglo, pero tampoco con el mismo sentido ni objetivo. Los tradicionales historiadores del arte, arqueólogos, arquitectos o restauradores se han visto en la necesidad de reciclarse. Incluso hemos llegado a formalizar nuevos oficios o profesiones (…)”23.

Os Estuques no Contexto das Artes Decorativas Portuguesas Eduarda Moreira da Silva Vieira Os Estuques no Contexto das Artes Decorativas Portuguesas Eduarda Moreira da Silva Vieira

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Os Estuques no Contexto das Artes Decorativas Portuguesas Eduarda Moreira da Silva Vieira Os Estuques no Contexto das Artes Decorativas Portuguesas Eduarda Moreira da Silva Vieira

investigação produzida nessa direcção encontra-se nas mãos da família e por publicar. Flórido de Vasconcelos faleceu no início do Outono de 2005.

9 O caso dos estuques é mais grave que o do azulejo, mesmo tratando-se de património sacro já que para a obra de azulejo era obrigatória a realização de contratos, tal como para a talha ou para a pintura ou o trabalho de imaginária. É interessante notar que o trabalho do estuque, quando registado em contra-tos, ocorre associado por um lado à construção, ou a outras artes decorativas (azulejo, talha), com as quais convive lado a lado nos programas decorativas, com especial incidência para a época barroca.

10 VASCONCELOS, Flórido de, ob.cit., p. 8.

11 O restauro dos grandes monumentos só foi possível com a generosa injecção de fundos comunitários a partir da década de 80, logo após a adesão de Portugal à Comunidade Económica Europeia, em 1986. O país obteve financiamentos a partir do I Quadro Comunitário de Apoio, que permitiram a implementa-ção de uma política sistemática de recuperação do património, patente na criação do Instituto Português de Património Arque-ológico e Arquitectónico (IPPAR) em 1992. Entre 1995 e 2000, o governo socialista lançou as bases do que ficou conhecido por «Nova Política», tendo sido investidas grandes somas do P.I.D.D.A.C. na recuperação de vários monumentos emblemá-ticos: Mosteiro dos Jerónimos, Torre de Belém, Palácios de Queluz e da Pena, Mosteiro de S. Vicente de Fora, Fortaleza de Sagres, Palácio de Monserrate, Panteão Nacional. Paralela-mente, registaram-se grandes intervenções de recuperação nos conjuntos monásticos de S. João de Tarouca, Pombeiro, Tibães, Alcobaça, Grijó, Vilar de Frades e Mafra, bem como nas Sés Catedrais (Évora), na Igreja de Santa-Clara–a-Velha (Coimbra), nas ruínas arqueológicas de Bracara Augusta (Braga) e na valo-rização do património luso - marroquino.

12 SILVEIRA, Paulo Malta da - Estuques Antigos: caracteriza-ção construtiva e análise patológica, dissertação de Mestrado em Construção, Lisboa, Instituto Superior Técnico, 2002 (texto policopiado).

13 VIEIRA, Eduarda M. M. Moreira da Silva - Técnicas tradicio-nais de fingidos e estuques no norte de Portugal. Contributo para o seu estudo e conservação, dissertação de Mestrado em Recuperação do Património Arquitectónico e Paisagístico, Uni-versidade de Évora, 2002 (texto policopiado).

14 PEREIRA, Liliana Maria Ferreira Figueiredo - Estuques no es-paço doméstico: contributos para um itinerário na arquitectura rústica e nobre do norte de Portugal com particular incidência no Douro Superior, estudo de uma peça o Solar dos Pimentéis em Torre de Moncorvo, dissertação de Mestrado em História da Arte, Lisboa, Universidade Lusíada, 2003 (texto policopiado).

15 COTRIM, Hélder António Coelho - Reabilitação de estuques antigos, dissertação de Mestrado em Construção, Lisboa, Insti-tuto Superior Técnico, 2004 (texto policopiado).

16 Sem retirar mérito à metodologia de Hélder Cotrim, enten-demos que a mesma se adequa melhor, numa perspectiva de projecto de restauro, à reabilitação de estuques do século XIX, uma vez que a industrialização veio introduzir a padronização e a repetição uniforme, por oposição aos séculos anteriores, em que predominou um individualismo criativo muito difícil de contornar num projecto de restauro moderno.

17 SILVA, Hélia - Giovanni Grossi e a evolução dos estuques decorativos no Portugal setecentista, dissertação de Mestrado

em Arte, Património e Restauro, Lisboa, Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, 2005, (texto policopiado).

18 LEITE, Maria de S. José Pinto – A Oficina Baganha e os Estuques no Porto no século XX, dissertação de Mestrado em Arte Decorativas da Universidade católica Portuguesa - Escola das Artes, Porto, 2007 (texto policopiado).

19 Membro do projecto Museu do Estuque (Grupo de Gestão) pós-graduado em Gestão do Património pela Escola das Artes da Universidade Católica Portuguesa – pólo do Porto, investigador que se encontra ainda em fase de elaboração da respectiva dis-sertação de mestrado que incidirá sobre um modelo de gestão da colecção Baganha na sua articulação com o projecto Museu do Estuque.

20 Cf. FIGUEIREDO, Luís Miguel Paiva Pena – A gestão de uma colecção de estuque artístico:a colecção Baganha como ponto de partida à fruição cultural do estuque artístico, in Actas do 1º Seminário Internacional A Presença do Estuque em Portugal: do Neolítico à época Contemporânea. Estudo para uma base de dados., Cascais, 2,3 e 4 de Maio de 2007, ed. Câmara Municipal de Cascais/Universidade Lusíada, Centro de Investigação em Património da Universidade Lusíada/ Museu do Estuque, 2009, pp. 282-309

21 Ressalva-se a este propósito o contributo de Isabel Mendon-ça, historiadora de arte que se tem vindo a interessar, mais recentemente, pela investigação neste domínio, sendo autora de diversas palestras, artigos e livros. Cf. MENDONÇA, Isabel Mayer Godinho – Os Estuques do Palácio de Belém, in Azulejos Estuques e Tectos do Palácio de Belém, Lisboa, Museu da Pre-sidência, 2005, pp. 46-69;“Estuques decorativos em Igrejas de Lisboa. A viagem das for-mas, in Actas do 1º Seminário Internacional A Presença do Estu-que em Portugal: do Neolítico à época Contemporânea. Estudo para uma base de dados., Cascais, 2,3 e 4 de Maio de 2007, ed. Câmara Municipal de Cascais/Universidade Lusíada, Centro de Investigação em Património da Universidade Lusíada/ Museu do Estuque, 2009, pp.162-195; Estuques Decorativos, Lisboa, Ed. Principia, 2009.

22 Uma das medidas mais urgentes a implementar para asse-gurar uma razoável gestão deste tipo de património, consiste na aposta de realização de um inventário sistemático a nível nacional, por forma a evitar perdas contínuas quer por ruína dos edifícios, quer por desconhecimento ou falta de sensibilidade para a conservação.

23 MORENTE DEL MONTE, Maria - Pensando el patrimonio. El concepto de Patrimonio Cultural en nuestros dias, in Boletín del IAPH, Sevilla, IAPH, Ano XIV, nº 58, Maio 2006, p. 40.

NOTAS DE RODAPÉ:

1 A Assembleia Geral da Organização das Nações Unidas, reu-nida em Paris de 17 de Outubro a 21 de Novembro de 1972, declarou os patrimónios natural e cultural como elementos in-tegrantes da herança cultural da Humanidade. A evolução para o alargamento do conceito de património verificou-se durante a Convenção de Paris de 17 de Outubro de 2003 - Convention pour la Sauvegarde du Patrimoine Culturel Imatériel, recentemente ratificada pelos estados membros em Junho de 2006.

2 MACEDO, Diogo de - A arte do estuque, Revista Ocidente, vol. XVII, nº 49 (Maio), 1942, pp. 271-273.

3 MEIRA, Avelino Ramos - Afife: síntese monográfica, Porto, edição do autor, 1945.

4 Perante a escassez ou quase ausência de fontes escritas para a realização de estudos que permitam identificar tipologias de programas decorativos, oficinas e artistas, este trabalho deve-rá, em nossa opinião, incluir a inventariação e o levantamento individual de cada caso, com vista à percepção da linguagem formal subjacente. A identificação correcta do património em estuque que decora a habitação civil de carácter público ou privado é mais difícil de se fazer para o século XIX, altura em que o estuque se industrializou e os programas decora-tivos passaram a ser responsabilidade, em parte ou no todo, de oficinas e ateliers. Contudo, convém não esquecer que o génio criador de alguns dos seus responsáveis acaba por se sobrepor. Se no século XVIII a autoria de um motivo ou de um programa parecem estar ligados a um mestre estucador ou a um arquitecto em particular que dirigiu uma certa obra, no século XIX a identificação de artistas e de oficinas assume a mesma importância, pois só assim se poderá contextualizar a história da produção artística em estuques de ornato em Portugal. Para esta tarefa, será necessário o contributo dos historiadores de arte, especialistas que mais ferramentas de trabalho possuem para levar avante esta tarefa.

5 VASCONCELOS, Flórido de – Três estuques anteriores ao Bar-roco, in Museu, 2ª série, Dez., 1961, pp.5-12.

6 Destacamos, entre a vasta produção do autor, os seguintes trabalhos:- Considerações sobre o Estuque Decorativo, in Boletim do Museu Nacional de Arte Antiga, Lisboa, nº 2, vol.V, 1966, pp. 34-43.- Introdução a um inventário de estuques do Porto, in Studium Generale - Estudo e Defesa do Património Artístico, 1984, (1), pp.39-47.- Notas sobre os Estuques do Porto, in Arppa - Revista, nº 1, 1º semestre, 1987, pp. 8-12.- Estuques portuenses na época barroca, in Arppa, Revista, nº 2, 2º semestre, 1987, pp. 11-13.- Os Estuques do Porto, in Porto Património, Ano I, nº 1, Porto, ed. da Câmara Municipal do Porto, 1997.

7 Recordemos a posição de Robert Smith, figura de proa na historiografia da arte portuguesa e grande especialista da Talha, que não obstante, não escondia certo desprezo pela arte do Estuque, considerando-o uma expressão plástica carregada de superficialidade e exuberância. Opiniões como esta apenas con-tribuíram para gerar preconceito em torno desta arte decorativa, cimentando o desinteresse por parte dos historiadores de arte e até dos arquitectos.

8 Há conhecimento que se terá preocupado com a necessidade de realização de um inventário, tendo solicitado a concessão de uma bolsa à Fundação Calouste Gulbenkian para o efeito. A

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Licenciado em História pela Faculdade de Letras da Universidade do Porto, 1978;Doutor em Arqueologia, Universidade do Porto, distinção louvor unanimidade, 1995

é:Arqueólogo do Ministério da Cultura, coor-denador de Investigação e Gestão da Área Arqueológica de Freixo/Tongobriga;Professor Coordenador e Presidente do Conselho Científico do Instituto Superior Politécnico Gaya.Professor convidado na Faculdade de Arquitectura da Universidade do Porto (mestrado em Metodologias de Interven-ção em Património); Professor convidado na Universidade Católica Porto (mestrado em Gestão Património Cultural);.

foi:Coordenador da Medida Cultura do Plano Operacional da Região do Norte do III QCA entre 2000 e Março de 2006; Director Regional do Norte do Instituto Português do Património Arquitectónico de Dezembro de 1998 a Março de 2006; Director da Escola Profissional de Arque-ologia 1992 a 1998;Director do Serviço Regional de Arqueologia da Zona Norte do IPPC entre 1987 e 1992;Bolseiro da Fundação Calouste Gul-benkian em 1985/1986 e 1993/1994; Bolseiro JNICT em 1986/87.

Lino Tavares Dias (28 março 1951) O Estuque Na Arquitectura Romana No Norte da MesetaLino Tavares Dias

O ESTUQUE NA ARQUITECTURA ROMANA- o caso de Tongobriga

Os responsáveis pelo Museu do Estuque e a Directora do Museu Nacional de Soares dos Reis, desafiaram-me a seleccionar alguns fragmentos de estuque recolhidos nas escavações arqueológicas de Tongobriga (DIAS, 1997) para integrarem a exposição sobre estuques que foi iniciada no dia 22 de Novembro de 2008. Seleccionei alguns “pedaços” de estuque que represen-tam as várias técnicas de “fabrico” e os vários tipos de trabalho artesanal que os estucadores romanos usaram nos revestimentos e nas decorações, assumindo estes dois conceitos na perspectiva em que Vitrúvio os des-crevia (FRIZOT, 3, 1977). Foi nas ruínas das Termas públicas de Tongobriga que recolhemos um grande número de “pedaços” de estu-que, permitindo identificar diversas técnicas e gostos aplicados sobre pastas com composição muito homo-génea e em que se evidencia a grande percentagem de areias graníticas, apesar de ainda não estar terminado o estudo de granulometria. Para construir na época flaviana as termas em Ton-gobriga, arquitecto e engenheiro romanos prepararam um projecto que seguia as orientações então dominan-tes (VITRÚVIO, 5, 11). A partir dos vestígios observados em escavação pode-mos reconhecer o tipo de planta apelidado “pompeiano” (STACCIOLI, 1984, 273; ADAM, 1984, 286; NIELSEN, 1985, 81 - 112), um projecto de cronologia republicana, e que Jorge de ALARCÃO e Robert ÉTIENNE (1986, 126) deno-minam como “pré-augustano” (ÉTIENNE, 1966, 417).É um modelo semelhante ao adoptado, por exemplo, nas Termas ditas Estábias, Termas do Forum e Termas Centrais (BARGELLINI, 1991, 117) em Pompeia e nas Ter-mas Augustanas de Conimbriga, com base numa planta desenvolvida segundo um eixo, linear, que podemos também ver em sítios distintos como, por exemplo, Silchester - fase I, Augst - fase I, nas de Glanum (PERKINS, 1989, 128 ; GROS, 1991, 106 - 7), Glanum - fase II (DELAINE, 1992, 260 - 1), em Volubilis (ZEH-NACKER, 1965, 87), nas Termas de Neptuno em Óstia (MAR, 1990, 31), e nas de Cambodunum (WEBER, 1991, 113), em que a simplicidade do edifício permite uma grande funcionalidade, apesar de não poder acolher, em simultâneo, um grande número de banhistas.A única originalidade que encontramos na planta das Termas de Tongobriga é a inexistência de laconicum.As termas de Tongobriga foram projectadas preven-do uma área coberta de 317m2 e uma descoberta de 594m2. O edifício foi construido no séc. I, num perí-odo pós-Vespasiano, sob o governo dos imperadores flavianos.

Localizada no limite oeste da bacia do rio Douro, cons-tituiu-se à época como a última cidade entre a Serra do Marão e o Atlântico, afirmando a periferia no território do Império durante o século II, ao mesmo tempo que outras periferias também se afirmavam.

A escolha do local para edificar as termas em Tongo-briga foi condicionada pelas características geológicas dos terrenos e também pelas exigências técnicas de adução e evacuação de água.O projecto das termas com a área utilizável de 911m2, dos quais 317m2 cobertos, exigia que os afloramentos graníticos fossem cortados, afeiçoados, aprumados. O projecto foi feito de modo a construir com solidez, subalternizando qualquer pré-existência. Havia necessidade de construir hipocausto, a rede para abastecer de água as banheiras, a cisterna e a caldeira. A rede de esgotos exigia também muito trabalho de afeiçoamento dos afloramentos.Os terrenos graníticos garantiam solidez para os ali-cerces e também para a contrafortagem dos muros a Norte e Oeste do edifício. Este adossamento permitiu, em contrapartida, alguma leveza nas fachadas viradas a Sul, Este e Oeste.O edifício foi orientado segundo o eixo Poente/Nas-cente, permitindo que a fachada principal tivesse boa exposição solar, especialmente durante a tarde. Inte-riormente, correspondia à sucessão de salas, apodyte-rium, frigidarium, tepidarium, caldarium, com a sala mais aquecida construída do lado nascente, parecen-do-nos essa a forma de melhor adaptar os princípios vitruvianos àquele local. Exteriormente as salas eram bem identificadas em todo o volume da construção pois eram as únicas cobertas com telhado.Para as áreas onde trabalhava a criadagem, indispen-sável ao funcionamento das fornalhas, reservaram am-plos espaços cobertos por abóbadas na zona Norte do edifício, e que servia também para armazenamento da muita lenha que aquelas fornalhas consumiam.A palaestra situar-se-ia a Sul, contígua àquela fachada. Era por aí a entrada no edifício. Esta palaestra era por-ticada do lado Sul e o espaço coberto tinha pavimento em opus signinum.Embora a fachada Sul fosse a maior, a entrada prin-cipal nas termas estava a Poente, o que sublinha as orientações para as termas públicas (VITRÚVIO, 5, 10, 1 - 5). O arquitecto, ao projectar as Termas de Tongobriga, seguiu um esquema vulgar noutras termas de então (REBUFFAT, 1991, 3 - 7) com um circuito funcional em que o tepidarium tem a posição central, o caldarium a Nascente e o frigidarium a Poente.

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O Estuque Na Arquitectura Romana No Norte da Meseta Lino Tavares DiasO Estuque Na Arquitectura Romana No Norte da Meseta Lino Tavares Dias

Parece confirmar-se, neste caso, a adopção do percur-so de utilização na sequência frigidarium - tepidarium - caldarium, com provável regresso ao frigidarium. Era este o “percurso romano” recomendado por Plínio o Jovem, apesar da reconhecida influência grega (SUCE-VEANU, 1982, 64), que recomendava o banho quente em primeiro lugar. Independentemente do percurso adoptado por quem as usava, numa atitude meramente pessoal, no pro-jecto das termas flavianas de Tongobriga é vincada a necessidade de responder às exigências do clima difícil da região, especialmente aos Invernos rigorosos, às baixas temperaturas em grande período do ano e ao alto índice pluviométrico.Para controlar as águas da chuva, foram construídas drenagens, a maior parte delas cuidadosamente aber-tas pelos pedreiros nos afloramentos graníticos. Desta forma, evitavam o perigo de alagamento das zonas mais baixas e, simultaneamente, canalizavam-na para os locais onde ela lhes era útil.As termas tinham que dispor de fontes de calor ca-pazes de satisfazer as necessidades das diferentes salas (GRIMAL, 1954, 93), o que levou os arquitectos a imaginar dispositivos muito engenhosos. Atendendo às baixas temperaturas ambientais que se faziam sen-tir em Tongobriga, os projectistas reservaram a maior parte do edifício para as salas do tepidarium e do cal-darium, ambas com praefurnium (VITRÚVIO, 5 , 10) e hipocausto.Um engenhoso sistema de aquecimento das paredes do caldarium servia também como chaminé, o demonstra bem o cuidado posto na construção deste edifício, de modo a que ele servisse as exigências da região e os hábitos dos utentes.A solução encontrada foi em tudo semelhante à aplica-da em muitos outros sítios, de que salientamos Óstia e que afinal mais não era que um conjunto de técnicas que permitiam aquecer algumas salas do edifício a par-tir de fornalhas, lançando o calor no sob o pavimento suportado pelas suspensurae e, ao mesmo tempo, re-solvia o problema da distribuição do calor seco e da evacuação dos fumos e dos gases tóxicos.

A grande quantidade de lenha necessária para alimen-tar os praefurnia e o apreciável número de criados indispensáveis às duras tarefas de manutenção do edifício obrigaram os projectistas a reservar amplos espaços. O abastecimento da lenha devia ser feita por um portão ou janelão situado ao nível do pavimento exterior, provavelmente uma rua. O desgaste que as pedras apresentam na parte interior do muro do cor-redor, do lado nascente e junto da cisterna, indiciam que foram muito desgastadas, o que poderia acontecer

pela abrasão da lenha ao ser descarregada do portão ou janelão que estava num ponto mais alto. Nestas Termas, os dois praefurnia foram projectados para o lado Norte, integrados num espaço amplo, coberto, com cerca de 64m2. Para esta localização não foi cer-tamente estranho o regime de ventos dominantes que naquele sítio empurravam os fumos para longe dos espaços públicos e dos residenciais. Para a cobertura do edifício foram usadas duas solu-ções: estrutura em madeira e telha para as salas apo-dyterium, frigidarium, tepidarium, caldarium e abóba-da em betão para as zonas de serviço.O projecto destas termas estrutura claramente duas zonas funcionais bem diferenciadas, a dos utentes e a do pessoal de serviço.Consideramos como zona de serviço o corredor e o es-paço amplo onde estavam as duas fornalhas (praefur-nia). Enquanto o corredor era coberto com uma única abóbada com o diâmetro de 3,40m, o outro espaço tinha duas abóbadas paralelas com diâmetros de 3,65m, ape-nas com apoio num pilar central, cobrindo assim dois vãos de 4 metros, provavelmente com recurso a traveja-mento de madeira. Os dois praefurnia eram diferentes. O que abastecia o caldarium era uma grande fornalha, de boa construção em pedra, alimentada de lenha, eventu-almente através de portas metálicas que a fechavam, dei-xando o fundo aberto para o hipocausto. O praefurnium do tepidarium seria idêntico embora mais pequeno.

A existência de alguns buracos regularmente abertos nas paredes de opus vittatum desta zona de serviço, podiam indiciar a existência de apoios para uma estru-tura em madeira mas bastava uma pequena estrutura em madeira ou uma escada para permitir o acesso ao corredor da rectaguarda do edifício que dava acesso a uma comporta que permitia o controle do nível de água na cisterna. Esta tinha capacidade para 20 000 litros. A cisterna foi construída com muros de opus vittatum revestidos interiormente com opus signinum e “meias canas” em todas as arestas, e estava adossada ao afloramento granítico abastecedor de água através de lençóis subterrâneos ali existentes. Foi construída sobre afloramento granítico talhado para o efeito, servindo-lhe de alicerce. O fundo desta cisterna estava 1,70m acima dos fundos das banheiras do caldarium e 3,10m acima do fundo do tanque do frigidarium. A água deslocava-se, só pelo efeito da gravidade, através de sistemas de canalizações que incluíam, no percurso, caixas de recolha e de decantação que permitiam en-viar a água em direcção diferente àquela que recebera. Apesar da solidez de todo este sistema de canaliza-ções, exigia certamente uma vigilância permanente por parte do pessoal em serviço no edifício.

A criadagem entrava nas termas por uma porta aberta no topo poente da fachada Sul, descia 5 degraus em pedra, percorria um largo e comprido corredor (15,25m x 3,30m), pavimentado com pequenas pedras, que li-gava à zona das fornalhas. Este espaço “subterrâneo” tem algo de semelhante com o das Termas de Mitra, fase I, Óstia, construidas no início do séc.II d.C. (MAR, 1990, 33-41). Por esta descrição do edifício podemos constatar a boa qualidade do projecto e a boa qualidade construtiva, o que certamente impressionava quem as frequentava. Salientamos mais uma vez o facto de Tongobriga es-tar na periferia geográfica do Império e o apogeu da construção de edifícios públicos ser do início do sécu-lo II, em período muito avançado da “romanização”. Se podemos pensar que a situação periférica poderia diminuir o cuidado na qualidade e rigor construtivo característico dos romanos, a data tardia da construção da cidade permite aproveitar toda a experiência técni-ca e sociológica que a expansão lhes tinha permitido acumular.Os utentes das termas de Tongobriga entravam pela porta na fachada do lado poente e, depois de se de-sembaraçarem do vestuário no apodyterium, passavam directamente ao frigidarium. Era uma sala com cerca de 53m2 (11,80 x 4,50m), com um pé direito mínimo de 4,5m, toda revestida a estuque liso. Era iluminada de Poente por uma janela de 1,70 x 0,80m que salientaria o beije claro do estuque que revestia todas as pare-des. A entrada fazia-se perpendicularmente ao seu eixo maior. No topo Norte da sala um tanque-banheira de 3,50 por 3,50 metros e a capacidade de 1.800 litros. A entrada na banheira fazia-se por cinco estreitos de-graus, dos quais quatro estavam submersos. Era uma sala permanentemente humedecida já que os utentes andariam com os pés molhados pelo que o pavimento em opus signinum era perfeitamente liso e revestido de roda-pé saliente, vulgarmente denominado “meia-cana”. Identificamos nesta sala o uso de técnica de revestimento do interior da banheira que seguiram os princípios técnicos recomendados de sobreposição de cinco diferentes camadas de argamassas.

A passagem desta sala do frigidarium para o tepida-rium era feita por uma abertura existente na parede com a espessura de 3 pés (0,88/0,90m) que separava as salas.O tepidarium era uma ampla sala de 32m2 (6,50 x 4,90m), proporções vitruvianas, com um pé direito que desconhecemos, embora certamente similar ao do frigidarium. As paredes eram revestida com estuques beijes. Toda a sala foi instalada sobre suspensura, cujo aquecimento era garantido por um praefurnium.

O pavimento do tepidarium, por nós recuperado na totalidade, não apresenta indícios de ali ter existido qualquer estrutura fixa. Seria pois uma sala com mobi-liário móvel, usada como transição, entre o frigidarium e o caldarium.Uma parede também com 3 pés de espessura, suporta-da por uma sólida estrutura em pedra separava estas salas. De todo o conjunto de salas parece ser esta a de construção mais elaborada e a mais luxuosa.Com 41m2 de área total, esta sala tem um espaço cen-tral de 21m2 (4,70 x 4,50m) além de dois outros de 9,9 m2 (4,30 X 2,30m), nos topos Norte e Sul, onde se integram duas banheiras idênticas, de 3,80 x 1,60m x 0,66m, com capacidade em uso de 400 litros.Toda a sala apoia sobre um hipocausto abastecido por um grande praefurnium. Na zona central da sala a suspensura tinha a altura de 0,148m, suportada por colunelos fabricados com tijolo.As duas banheiras foram cuidadosamente construídas em pedra sobre suspensurae de 0,40m de espessura. A água para as banheiras era aquecida em caldeira de cobre situada sobre o praefurnium do caldarium. Os bancos interiores da banheira, com a altura de 0,25m, permaneciam submersos e permitiam que os banhistas ali estivessem sentados com água pelo peito. Ao ban-co interior correspondia exteriormente uma estrutura idêntica mas que funcionava como degrau para facilitar a entrada e saída da banheira.O facto do edifício ter sido projectado com dois prae-furnia, um para o caldarium e outro para o tepidarium, poderá justificar-se pelas dimensões das salas, pela al-tura das suspensurae e pelas condições climatéricas da região durante o Inverno.Também o engenhoso sistema encontrado para a cir-culação do ar quente nas paredes desta sala facilitava a criação de um ambiente muito aquecido. Esta sala, abobadada interiormente, tinha paredes e tectos com estuques esculpidos com espátula e carimbados com concha e estuques fabricados com molde. Alguns frag-mentos pintados recolhidos na escavação permitem-nos dizer que, para além dos estuques com motivos decorativos em relevo, as salas destas Termas teriam também estuques de revestimento lisos e pintados. Provavelmente o caldarium e o tepidarium eram ilumi-nados por janelas abertas na fachada Sul, garantindo não só luminosidade nas salas, mas também o areja-mento indispensável (BROISE, 1991, 61) a este tipo de salas aquecidas. Ao construir este edifício em Tongobriga segundo prin-cípios e esquemas tradicionais, mesmo que se aceite a involuntariedade do acto pelo prestígio dos “con-quistadores”, estes impuseram hábitos de higiene e de prazer, passatempos e, no fundo, uma nova forma de

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O Estuque Na Arquitectura Romana No Norte da Meseta Lino Tavares DiasO Estuque Na Arquitectura Romana No Norte da Meseta Lino Tavares Dias

Figura 1: fragmento de estuque esculpido com espátula e carimbado com concha marítima. Recolhido no caldarium das termas.

Figura 2: fragmento de estuque esculpido com espátula, do tecto aboba-dado docaldarium.

Figura 3: fragmento de estuque com decoração feita a molde.

Figura 4: fragmento de estuque do tepidarium. Decoração feita com diversos moldes.

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viver. A existência destes estuques no revestimento das salas salienta o gosto generalizado com que os cons-trutores romanos faziam os edifícios, fosse em Itália ou nas periferias. O tipo, modelo e técnica construtiva dos estuques é semelhante em Tongobriga, em Pompeia e noutras zonas do Império. Este mesmo gosto que atravessava todo o Império é evidenciado em meados do século II, quando foi feita uma grande alteração ao projecto inicial do edifício. O sector Sul do edifício é remodelado e é construída a zona da natatio, criando neste edifício um espaço de ar livre, de cerca de 158m2, com piscina, que o projecto inicial não previra, na medida em que, então, privile-giara os espaços fechados e aquecidos.A piscina de ar livre de 9 x 7,20 x 1,65m, com a capaci-dade, em uso, de cerca de 112 000 litros, era envolvida por um pórtico de doze colunas (com diâmetro entre 0,30 e 0,32m) em granito, com capitéis dóricos, que cobria os lados Norte, Este e Oeste. Tudo indica que o passeio Sul não era coberto, pelo que o pavimento foi revestido com lajeado em granito enquanto os restan-tes receberam opus signinum. Seis degraus, dos quais a maior parte permaneceria submersa, facilitavam a saída da piscina, depois de nela se ter entrado, por exemplo, por mergulho. Com a construção da nata-tio, as termas tornaram-se mais abertas, mais amplas, com inerentes mudanças no funcionamento. Com esta alteração que foi feita ao projecto flaviano, as termas de Tongobriga passaram também a servir para as con-dições climatéricas das épocas quentes do ano. Esta alteração poderá integrar-se na mudança do conceito de termas que se fazia sentir, evidenciado pelas cons-truções então feitas em todo o Império (DELAINE, 1992, 264 - 5). Entendendo-se o alargamento do conceito de higiene e sanidade, as termas passam a ser “os cafés, os clubes das cidades romanas”(GRIMAL, 1954).A construção da natatio implicou um ligeiro levan-tamento de cota dos pavimentos nos espaços envol-ventes, mas principalmente obrigou à mudança da entrada, alterando também ligeiramente o circuito de funcionamento, embora mantendo o eixo dominante de poente para nascente, da zona fria para a aquecida. A entrada passa a fazer-se pela zona da natatio. Esta piscina ao ar livre veio ocupar parte do que seria com certeza a palaestra do projecto inicial (termas I). Terá também sido construído um apodyterium à entrada das termas. O utente, agora, depois do apodyterium, entrava na zona da natatio, passava a uma sala rectan-gular coberta, que poderá ter servido como vestíbulo ou unctorium e que ligava à sala que funcionara como apodyterium nas termas I e cuja função desconhece-mos nas termas II, na medida em que deixou de ser a

sala de entrada e se transformou num espaço interior. Esta remodelação, feita quando reinavam os Antoninos, embora não altere a estrutura das salas existentes no séc. I, vai criar novos espaços, diversificando funções. O espaço de palaestra é modificado e o acesso passa a fazer-se a partir do pórtico do lado nascente da natatio. Curiosamente a redução da palaestra, e até desapareci-mento, é também notada em edifícios idênticos, nomea-damente em Óstia (MAR, 1993, 147). Poderá justificar-se a redução ou desactivação deste espaço, pela proximi-dade do forum, funcionando este como “passeio pú-blico” e, em contrapartida, pelo facto dos utentes das termas preferirem as salas fechadas e a natatio. Pode parecer estranho que em Tongobriga as altera-ções nas termas só sejam feitas para Sul e Oeste, mas tal entende-se na medida em que para Norte a rigidez dos afloramentos é limitativa de qualquer alteração e, para o lado Este existiam as zonas de serviço onde a criadagem garantia o funcionamento das salas aque-cidas. Numa atitude que entendemos como diversifi-cação das fontes de abastecimento de água, a natatio era abastecida pelo lado Sul, provavelmente por um aqueduto subterrâneo em pedra , de que recolhemos algumas peças.O projecto desta natatio previu a remodelação dos esgotos, quer construindo de novo quer adaptando aos já existentes. Nos esgotos construídos de novo, com uma altura interior maior que os anteriores, foi utilizada a técnica de cobertura abobadada feita com cofragem de tábuas. Os restantes continuaram a ter cobertura horizontal em pedra. Teve que ser construí-do um colector para recolha das águas dos esgotos e para aquela que saía da nova piscina. Daqui a água era evacuada por um grande esgoto com o fundo cavado no granito. De facto, todo o sistema de esgotos utili-zado em Tongobriga, pela sua robustez, tinha grandes vantagens sobre os que hoje são utilizados nas nossas cidades, pois não estavam sujeitos aos remendos que os serviços municipalizados permanentemente vão co-locando nos canos. As latrinas continuaram no mesmo espaço a Oeste das termas.

A remodelação feita no edifício transfere aquilo a que podemos chamar o seu “centro de gravidade funcio-nal”. Enquanto nas termas flavianas, o utente tinha uma sequência de salas (frigidarium - tepidarium - calda-rium), nas Antoninas, a nova sala que liga a natatio ao frigidarum transforma-se, então, no “novo centro de gravidade”. A natatio passou a ser um lugar de passagem obrigatória para todos os que frequentavam estas termas.Podemos dizer que em Tongobriga, a partir de meados/finais do séc. II, era nas termas que, à tarde, terminado o

dia de trabalho, os Romanos íam calmamente esperar a hora do jantar. Aí faziam um pouco de ginástica, repou-savam, tagarelavam, conversavam sobre negócios, ami-zades, a vida alheia, e até poderiam petiscar algumas gulodices, provavelmente vendidas por ambulantes.

No séc. IV, após 357, o edifício sofre uma nova altera-ção ao projecto inicial.Com a instalação de um hipocausto no antigo apo-dytério, o edifício passa a ter um caldarium a Poente e outro a Nascente, separados pelo frigidarium e pelo tepidarium.O circuito de utilização do edifício terá, então, muda-do pois a construção deste segundo caldarium poderá justificar-se pela necessidade de responder a um maior número de frequentadores, já que a hipótese de ser uma duplicação para uso separado por mulheres e por homens não parece viável, na medida em que não hou-ve duplicação de frigidarium e de tepidarium, o que era norma nas termas duplas.Seja qual for a justificação para a construção deste caldarium, o sector Poente do edifício passa a ser o mais movimentado, em detrimento das salas mais re-quintadas (frigidarium, tepidarium e caldarium) situa-das a Nascente, construidas no séc I. No quadro anexo apresentamos alguns elementos comparativos entre espaços e salas, salientando as áreas das salas reves-tidas (paredes e tectos) com estuques lisos ou com estuques decorados por modelação, esculpido com es-pátula, carimbado com concha marítima ou fabricado com molde, como eram o caldarium, o tepidarium e o frigidarium construídos em época flaviana aqui identi-ficadas por Termas I.

Termas I Termas II Termas IIIárea total 911m2 911m2 911m2área coberta 317m2 510m2 510m2área descoberta594m2 363m2 363m2 caldarium 41m2 41m2 83m2tepidarium 32m2 32m2 32m2frigidarium 53m2 53m2 53m2natatio --- 158m2 158m2apodyterium 42m2 149m2 144m2unctorium --- 44m2 ---salas de serviço111m2 111m2 111m2cisterna 18m2 18m2 18m2palestra 594m2 205m2 205m2latrina 20m2 20m2 20m2

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O Estuque Na Arquitectura Romana No Norte da Meseta Lino Tavares DiasO Estuque Na Arquitectura Romana No Norte da Meseta Lino Tavares Dias

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• Escola Superior de Artes Decorativas da Fundação Ricardo do Espírito Santo Silva• Instituto de História da Arte da Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa

Encarados como sinónimo de mau gosto e vistos como uma arte menor que não valia a pena preservar, os estuques decorativos foram, durante várias décadas do século passado, quase completamente ignorados pela maioria dos estudiosos e responsáveis pelo Património nacional. O interesse por esta arte em Portugal co-meçou há alguns anos, com os estudos pioneiros de Flórido de Vasconcelos, que, no seu trabalho final de estágio para conservador dos museus e monumentos nacionais, realizado em 1959 e parcialmente publicado num artigo da revista do Museu Nacional de Arte Anti-ga1, chamou a atenção para a importância do estuque de ornato no contexto das Artes Decorativas e para alguns exemplos notáveis que ainda permanecem em Portugal, apesar das perdas irreparáveis ocasionadas quer pela passagem do tempo quer por restauros de-sastrosos. O presente texto pretende traçar de uma forma breve a evolução do estuque decorativo em Portugal entre os inícios do séc. XVI, no reinado de D. Manuel, e os primórdios do séc. XIX, através da análise de alguns dos conjuntos mais significativos realizados em cada uma das épocas, salientando o contributo de mestres estucadores e identificando as influências exercidas so-bre a linguagem ornamental característica de cada um dos períodos considerados.

1. Os estuques manuelinosDurante o reinado de D. Manuel (1498-1521), o estuque decorativo foi utilizado na decoração das paredes da Charola, a capela-mor da igreja do convento de Cristo em Tomar, cobrindo quer o octógono central, quer as paredes do polígono de 16 lados que constitui a primi-tiva rotunda templária.

No octógono central, a estrutura arquitectónica ro-mânico-gótica foi revestida de ornatos de estuque de feição tardo-gótica, prolongando idênticos motivos pintados na abóbada do deambulatório e enquadrando os arcos que rasgam o registo inferior com cogulhos, rosetas e casais de homens selvagens sobrepostos aos capitéis medievais. Tanto o extradorso como o intra-dorso destes mesmos arcos receberam revestimentos em estuque moldado, representando meninos atando troncos podados, vasos platerescos e grinaldas seme-adas de romãs. Nas paredes que delimitam exteriormente o deambu-latório foram aplicados painéis em estuque também moldado, cobrindo quer o vão dos janelões, quer os espaços entre as pinturas murais do registo superior (com passos da vida de Cristo), até à altura do friso de separação dos dois registos. Além dos vasos plate-rescos e das grinaldas com romãs, encontramos aqui composições inspiradas no “padrão ogival”, muito co-muns nos têxteis europeus desde o Renascimento: uma malha definida por ramos curvilíneos, contracurvados, densamente preenchidos por folhas, flores e frutos, colhidos por meninos. O mesmo padrão enquadra, no pano junto ao arco triunfal, figuras de serafins alter-nando com cruzes, aparentemente fruto de um restau-ro de gosto revivalista. Mas a decoração em estuque mais original cobre as meias colunas que separam os 16 panos da Charola até ao nível dos baldaquinos das estátuas dos pro-fetas: meninos tocando flautas, montados em animais híbridos com saiotes de acantos, que mostram já uma actualizada influência dos “grotescos” da Domus au-rea, redesenhados pelos artistas italianos à vista das pinturas e dos estuques das salas do arruinado palácio de Nero em Roma, na transição do séc. XV para o XVI2. Nos capitéis destas meias colunas alternam as grinaldas de romãs com motivos heráldicos manuelinos e folhagem de sabor gótico.A aplicação dos estuques nas paredes da Charola terá

Estuques Decorativos em Portugal - do Manuelino ao NeoclássicoIsabel Mayer Godinho Mendonça

Doutorada em História da Arte pela Faculdade de Letras da Universi-dade do Porto, lecciona na Escola Superior de Artes Decorativas (ESAD) da FRESS, onde também dirige o Centro de Estudos de Artes Decorativas. É investigadora integrada do Instituto de História da Arte da Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, membro do Conselho Científico do Instituto Europeu de Ciências da Cultura Padre Manuel Antunes e representante em Portu-gal do “Fórum Landi”, instituição integrada na Universidade Federal do Pará, Brasil.

Isabel Mayer Godinho Mendonça

Figura 1: A Charola do convento de Cristo, em Tomar, corpo central (entre 1510 e 1516).

Figura 2: A Charola do convento de Cristo, em Tomar, decoração de um dos colunelos (entre 1510 e 1516).

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Estuques Decorativos em Portugal - do Manuelino ao Neoclássico Isabel Mayer Godinho Mendonça

acompanhado a decoração pictórica da abóbada do deambulatório onde aparecem representadas as armas de D. Manuel e de D. Maria, a sua segunda mulher, portanto entre 1510, o ano do casamento real e 1519, a data do falecimento da rainha3.Os restauros recentemente realizados no interior da Charola têm vindo a revelar cores muito distintas nos estuques intervencionados, nomeadamente nos co-lunelos e em alguns dos painéis do registo superior dos alçados exteriores da Charola: em vez das cores violentas, dos dourados ou dos brancos entupidos de cal, surgiram os relevos a branco sobre um fundo azul cinza. Resta saber que outras surpresas nos reservam os futuros restauros que contemplarão toda a recu-peração da decoração interior deste raro espaço qui-nhentista português.

2. Os estuques e o ManeirismoAs novidades da linguagem clássica, renascentista, que na Charola aparecem em paralelo com motivos ainda de matriz gótica, vão surgir de forma autónoma nos estuques relevados da cúpula da capela-mor da igreja do convento da Consolação em Estremoz, realizada possivelmente em meados do século XVI4. A igreja e o convento anexo pertenciam então a uma congregação de freiras clarissas, passando para os agostinhos des-calços já na segunda metade do século XVII5. Nos 64 caixotões desta cúpula foram figurados mo-tivos soltos, candelabra articulados com grotescos e mascarões e ainda o tetramorfo, os três animais sim-bólicos que identificam os Evangelistas, S. Marcos, S. Mateus e S. João (o leão, o touro alado e a águia) e o anjo que representa S. Lucas. Um par de anjos ostenta ainda uma coroa, no eixo da tribuna do altar-mor, sim-bolicamente coroando Nossa Senhora da Consolação, o orago da igreja.A utilização dos candelabra, associados desde a An-tiguidade clássica à Ressurreição e à luz, em paralelo com os símbolos dos Evangelistas, não foi certamente

casual, mantendo-se nesta cúpula a conotação primiti-va com o carácter salvífico das Escrituras Sagradas. Tanto os grotescos como os candelabra vão ser difun-didos através das gravuras de Zoan Andrea, Giovanni Pietro da Birago, Giovanni Antonio da Brescia, Nico-letto Rosex da Modena e Agostino Musi, que rapida-mente divulgam esta linguagem decorativa por toda a Europa6. Uma gravura de um artista alemão, Daniel Hopfer, datada de 1526, estará porventura por trás das figurações dos candelabra da cúpula de Estremoz.Durante o período maneirista, os estuques decorativos adaptaram-se ainda às novidades decorativas trazidas pelas gravuras ítalo-flamengas que impuseram a moda da chamada “obra de laço”. Com origem provável nos pergaminhos e nos rolos que serviam de suporte a inscrições desde a Idade Média, este ornato foi desen-volvido em França na decoração do palácio de Fon-tainebleau (1528/1540) por Rosso e Primaticcio, alunos de Giovanni da Udine, expressamente contratados para o efeito por Francisco I. As grandes cartelas com os característicos enrolamentos, por vezes com faixas me-tálicas (as “bandas furadas”) e pregaria, conjugam-se com as figuras híbridas, os mascarões e os pendurados característicos dos grotescos. A divulgação inicial destes ornatos foi assegurada pelas gravuras de António Fantuzzi, ainda na década de 1540. A estas sucederam-se, na década seguinte, as gravuras publicadas em Antuérpia, sobretudo na oficina de Hie-ronimus Cock, a partir de desenhos de vários autores, divulgando assim por toda a Europa uma linguagem que ficou conhecida como ítalo-flamenga7.Uma colecção gravada por Hieronimus Cock em 1553, a partir de desenhos do florentino Benedetto Battini, serviu de inspiração aos estuques decorativos dos pai-

néis do tecto em masseira da capela-mor da igreja do mosteiro de Santa Marta em Lisboa, como tivemos já ocasião de demonstrar8. O tecto em questão está hoje escondido por um outro tecto mais baixo, em abóbada de aresta, aí colocado em finais do séc. XVII, provavelmente para resolver os problemas criados pela colocação do novo retábulo de estilo nacional, de planta côncava e rasgado por tribuna9, que obrigou a alterações estruturais, nome-adamente à construção de um recesso mais baixo na parede fundeira da capela-mor. Foi através de um vão aí rasgado para correr a tela da tribuna que foi possí-vel detectar o tecto original. À construção da capela-mor superintendeu o arquitecto régio Nicolau de Frias, tendo concorrido para a obra, com avultada doação feita em Junho de 1588, D. Helena de Sousa, em troca da autorização da construção de uma cripta destinada a sua sepultura e de seu marido. Os cinco panos do tecto foram decorados com estu-ques relevados a branco sobre fundos imitando már-more vermelho e pedra liós. O responsável pela obra escolheu três gravuras do álbum de Cock, adaptando-as sabiamente à decoração estucada que fez realizar nas faces oblíquas e no espaço rectangular da esteira central da masseira10.

Outras gravuras quinhentistas oriundas de Antuérpia estiveram por trás de várias cartelas em estuque, onde se conjuga a “obra de laço” com as bandas furadas. Entre os exemplos mais interessantes refiram-se as de-corações da igreja de S. Roque, em Lisboa (na abóbada da capela de S. Roque, da capela do Santíssimo e do transepto), da igreja do convento de S. Domingos de Benfica (na abóbada do retro-coro e sobre os altares laterais da nave), da ante-sacristia da igreja do Espí-rito Santo de Évora e da capela de Nossa Senhora da Conceição do Colégio jesuítico homónimo, hoje sede da Universidade de Évora.Uma outra influência erudita vai dominar o século XVI, prolongando-se até ao último quartel do XVII: o tratado do arquitecto e teórico bolonhês, Sebastiano Serlio (1475/1553-5)11, nomeadamente os desenhos para decoração de tectos que reuniu no Livro IV, onde são discutidas as cinco ordens da Arquitectura e a sua uti-lização na construção contemporânea. Na análise que fizemos de tectos de várias igrejas no Alto Alentejo é notória a inspiração mais ou menos directa em quase todas essas suas propostas de decoração. Na sacristia nova da igreja do Espírito Santo de Évora uma malha geométrica em estuque repetindo um dos desenhos de Serlio - quadrados conjugados com he-xágonos12- serve de enquadramento a uma portentosa decoração pintada, com cenas da vida de S. Francis-co Xavier, a par de grotescos, ornatos auriculares e inovadores motivos de chinoiserie. A obra da sacristia nova estava terminada em 1599, com o patrocínio de D. Maria de Alarcão13. A construção da capela de Nossa Senhora da Concei-ção, integrada no edifício do vizinho Colégio jesuítico, foi iniciada em 164114. O estuque relevado, hoje pintado com cores perfeitamente desajustadas (verde alface, azul bebé e rosa vivo), cobre a abóbada de berço da nave, revestida por uma malha geométrica de formas

Estuques Decorativos em Portugal - do Manuelino ao Neoclássico Isabel Mayer Godinho Mendonça

Figura 3: Capela-mor da igreja do convento da Consolação, em Estremoz, pormenor da cúpula, meados do séc. XVI.

Figura 4: Desenho e gravura de Daniel Hopfer, 1526.Pormenor da cúpula da capela-mor da igreja do convento da Consolação, em Estremoz, meados do séc. XVI.

Figura 5: Tecto escondido da capela-mor da igreja do convento de Santa Marta em Lisboa, c. de 1588.Gravura de Hieronimus Cock a partir de desenho de Benedetto Battini, 1553.

Figura 6: Capela de Nª Sª da Conceição, Colégio do Espírito Santo, Évora, 1641.

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estreladas alternando com cruzes de quatro braços iguais, inspirada num outro desenho de Serlio15.Em Montemor-o-Novo, na igreja do convento de fra-des dominicanos, dedicada a Santo António, sagrada em 158416, uma malha geométrica de estuque branco sobre fundo branco, inspirada em dois dos desenhos para tectos de Serlio, foi utilizada nas abóbadas de berço de duas das capelas que abrem para a nave, a do Senhor Jesus (octógonos alternando com cruzes gregas, tendo hexágonos nos espaços de ligação17) e a de S. João Baptista (quadrados alternando com hexágonos18). Na abóbada de berço da capela-mor, composta por quatro tramos compartimentados por arcos torais em estuque, a composição é marcada pela repetição de uma malha geométrica cujo motivo (uma cruz posta em diagonal) é retirado de outro desenho de Serlio19. No convento da Saudação de Montemor-o-Novo, que pertenceu ao ramo feminino da Ordem de S. Domingos, uma malha de motivos geométricos em estuque rele-vado enquadra uma interessante decoração esgrafitada nas abóbadas de berço da nave e do coro alto das freiras. Na abóbada da nave encontramos novamente uma malha geométrica transposta de um dos desenhos de Serlio para tectos: octógonos alternando com cru-zes gregas e hexágonos nos espaços de ligação20. A decoração foi feita em 1673, data incisa num medalhão sobre o arco triunfal.

coração de grotescos e candelabra), a malha geomé-trica de estuque branco, conjugando octógonos com pontas de diamante da abóbada de berço da nave, repete fielmente outro desenho de Serlio22. O estu-cador utilizou os círculos concêntricos inscritos nos octógonos e apenas substituiu os botões de enquadra-mento das figuras geométricas por pequenas rosetas. Um friso com enrolamentos, centauros e outras figuras híbridas (adaptação de uma das propostas para frisos de Serlio23) percorre os lados maiores da nave, abaixo da abóbada.

Tal como aconteceu com as restantes artes decorativas portuguesas, também o estuque relevado se manteve arreigado aos programas estéticos do Maneirismo até datas muito tardias. As decorações que passámos em revista foram realizadas ao longo de mais de um sé-culo, entre meados de Quinhentos (data provável dos estuques da cúpula da igreja de Nossa Senhora da Consolação em Estremoz) e 1673 (data da decoração da nave da igreja da Saudação), oscilando entre os clássicos candelabra, associados aos grotescos ítalo-flamengos, e uma composição tardia ainda de matriz serliana, já preenchida por elementos decorativos que indiciam os novos rumos do Barroco.

3. Estuques decorativos em Portugal durante o século XVIIIA quase total ausência de estuques decorativos rea-lizados durante a segunda metade do século XVII e os primeiros anos do século XVIII, acompanhando a eclosão e o desenvolvimento do chamado “barro-co nacional”, pode explicar-se pela moda dos tectos pintados de “brutesco” (genericamente caracterizados por grandes enrolamentos de acantos povoados por meninos e pássaros), que durante esse período in-vadiram a decoração dos interiores civis e religiosos

portugueses, e ainda pela persistência da tradição dos tectos de caixotões pintados com temática figurativa e ornamental.

a. Estucadores italianos em PortugalA vinda de estucadores italianos para Portugal durante o reinado de D. João V veio revolucionar a decoração dos interiores, quer civis, quer religiosos, impondo a moda dos tectos estucados. Testemunhos da presença entre nós desses mestres são as elaboradas composi-ções em estuque de relevo que ainda subsistem em muitos interiores setecentistas, mostrando uma actuali-zada linguagem ornamental bebida nos principais cen-tros artísticos da Europa, onde muitos desses mestres trabalharam antes da sua vinda para Portugal.A maioria dos estucadores italianos que trabalharam em Lisboa ou nas suas imediações durante o séc. XVIII terá vindo da zona da Alta Lombardia e sobretudo do cantão suíço do Ticino. Desta região, com fortes tra-dições no trabalho do estuque, saíram ao longo de todo o século XVIII levas sucessivas de artífices, alguns deles fazendo parte de verdadeiras oficinas familiares, rumo a outros Estados e cidades de Itália (Lombardia, Piemonte, Veneza, Roma, Génova, etc.) e às principais cortes da Europa de então, da Áustria à Inglaterra e da Península Ibérica aos países nórdicos24. Os nomes dos estucadores italianos que vieram para Portugal são re-feridos por Cirilo Volkmar Machado, o conhecido me-morialista que em inícios do séc. XIX reuniu nas suas “Memórias” as informações então conhecidas sobre os artistas portugueses e estrangeiros que contribuíram para o desenvolvimento da arte em Portugal25. Na primeira metade do séc. XVIII, Cirilo menciona Salla e Bill que “faziam ornato e figura” e trabalharam no palácio do Provedor (o palácio do arquitecto e Prove-dor dos Armazéns, Fernando Larre, iniciado em 1730, em S. Sebastião da Pedreira), Plura, que estucou uma casa na torre da pólvora, em Alcântara, e uma ermida junto à sé, Francisco Gomassa, “mero ornatista”, que também trabalhou no palácio do Provedor e na facha-da da ermida dos soldados, em Alcântara, e ainda João Grossi, o italiano que viria a revolucionar a arte do es-tuque em Portugal e que terá iniciado a sua actividade em Lisboa no tecto da igreja dos Mártires, em parceria com Plura e com Gomassa. Cirilo afirma ter recebido todas as informações sobre Grossi de um dos alunos do artista italiano, João Paulo da Silva, que conheceu pessoalmente26 e lhe contou os acontecimentos picarescos que teriam rodeado a vinda de Grossi para Portugal: nascido em Milão em 1719, onde aprendeu a modelar cera e barro, traba-lhava em Espanha, como desenhador dos exércitos de Fernando VI, quando se envolveu num duelo, de que

Figura 7: Convento da Saudação, em Montemor-o-Novo, abóba-da da nave, 1673. Desenho de Serlio, Livro IV, fl. 350.

Na abóbada de berço do coro alto observa-se mais uma composição realizada a partir de um desenho de Serlio: grandes quadrados ladeados por hexágonos21. Em vez dos motivos propostos pelo tratadista – gro-tescos e enrolamentos vegetalistas –, encontramos lo-sangos inseridos dentro dos quadrados decorados com medalhões, mas os botões do desenho de Serlio foram repetidos. Abaixo do óculo da parede exterior do coro alto lê-se a data inscrita de 1647. Na nave da igreja de Nossa Senhora da Consolação de Estremoz (em cuja capela-mor encontrámos a de-

Figura 8: Igreja de Nª Sª da Consolação, Estremoz, abóbada da nave, 2ª metade do séc. XVI. Desenho de Serlio, Livro IV, fl. 350.

resultou a morte do sobrinho do coronel da sua unida-de. Fugiu então para Portugal, disfarçado de lavadeira, refugiando-se em Lisboa em casa de um primo, Domin-gos Lepori, comerciante de profissão, que lhe angariou a referida obra na igreja dos Mártires, realizada por volta de 1748 / 174927. Algumas informações documentais, entretanto vindas a lume28, permitiram-nos precisar novas informações sobre a origem e sobre a actividade de Grossi em Por-tugal. Nasceu, não em Milão, mas na freguesia de S. Maurício da cidade de Como29, na fronteira ítalo-suíça, já referida como uma região com grande tradição na formação de estucadores. Não conseguimos confirmar a data de nascimento adiantada por Cirilo (1719), nem obtivemos elementos sobre a sua formação em Itália ou sobre a sua actividade em Espanha, embora, face aos novos elementos recolhidos, seja um dado adqui-rido que Grossi não pode ter trabalhado nos exércitos de Fernando VI, uma vez que este só subiu ao trono espanhol após a morte de Filipe V, ocorrida a 9 de Julho de 1746.A consulta do arquivo da igreja do Loreto (que con-gregava a comunidade italiana residente em Portugal) revelou-nos que Grossi estava já em Lisboa em 1743, cinco anos antes da data adiantada por Cirilo para a sua chegada. Nesse ano encontrámo-lo referido no “Li-vro de Desobriga Pascal” desta igreja. Em 1743 vivia na paróquia de S. Sebastião, no ano de 1745 aos Re-molares, na freguesia de S. Paulo, mudando-se no ano seguinte para S. Caetano aos Mártires30. Também a sua colaboração com Plura e Gomassa no tecto da igreja dos Mártires foi certamente anterior à data adiantada por Cirilo, já que a decoração em estuque, rodeando uma tela alusiva à tomada de Lisboa, da autoria de Vieira Lusitano, é já referida numa descrição datada de 174531. A sua permanência em 1743 (e possivelmente também em 1744, ano em que não comparece no “Rol dos Con-fessados” do Loreto) na freguesia de S. Sebastião da Pedreira poderá estar relacionada com a sua colabora-ção com os outros estucadores italianos na decoração do Palácio do Provedor e arquitecto Fernando Larre. Segundo Cirilo, foi Larre quem apresentou Grossi ao futuro marquês de Pombal, talvez após o seu regresso de Viena, em 1749. Este veio a tornar-se o seu protec-tor, “dando-lhe ou pedindo que lhe dessem a fazer todas as grandes Obras que então se construião, que erão muitas e pagas por altos preços”32.

b. A influência da Regência francesa e do barocchetto italiano A análise estilística de algumas composições em es-tuque relevado ainda existentes em espaços civis e

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religiosos de Lisboa permitiu-nos atribuir à década de 1740 alguns espaços onde poderão ter trabalhado os artistas estrangeiros mencionados por Cirilo. Entre eles refiram-se alguns exemplos na cidade de Lisboa: a cúpula da casa de fresco da Quinta do Meio em Be-lém, conhecida como a “Casa do Veado”, a abóbada de aresta com penetrações da pequena capela do Senhor dos Passos, da irmandade do mesmo nome, no claustro da igreja de Santos-o-Novo, o tecto em forma de mas-seira de planta rectangular na escadaria do convento dos Agostinhos, ou dos Grilos, na zona do Beato e a maior parte das decorações das salas e do oratório do palácio Cabral, na calçado do Combro. Em todos estes tectos dominam os elementos decorati-vos da Regência francesa, conjugados com grande le-veza: ornatos em “C” e em “S”, gradinhas preenchidas por pequenas flores, palmetas, mascarões femininos com toucado de plumas ou coroa de palmetas, lambre-quins, etc.. Estes ornatos, que retiram a sua designação dos interiores característicos do período da Regência francesa (durante o qual o governo da França foi as-segurado pelo regente, Filipe de Orleães, entre 1715 e 1723, durante a menoridade do futuro Luís XV), ditaram a moda em toda a Europa. Este novo gosto, divulgado pelas gravuras realizadas a partir dos desenhos orna-mentais de Jean Bérain (1637/1711), decorador de Luís XIV, chegou a Portugal durante o reinado de D. João V, a partir da década de ’30, presumivelmente através das vinhetas gravadas por François-Laurent Debrie e Pierre Rochefort para várias edições da Academia Real de História33.Exemplos paradigmáticos do gosto Regência são os tectos de uma pequena sala da enfilade do palácio Ca-bral que pertenceu aos Figueiredo Cabral, senhores de Belmonte, descendentes do descobridor do Brasil, Pe-dro Álvares Cabral34, ou a abóbada da pequena capela do Senhor dos Passos no claustro de Santos-o-Velho, onde se conjugam os leves encadeados contracurvados com as características palmetas.Ao gosto Regência associaram-se, em tectos da mesma época, elementos decorativos oriundos do barocchetto de matriz italiana: conchas e gordos concheados assi-métricos de contornos contidos e cartelas ainda com elementos do “estilo auricular” (assim designado pelos ornatos de carácter naturalista que lembram as carti-lagens da orelha52). Nos ornatos do tecto da escadaria do convento dos Grilos, do oratório e do salão nobre do palácio Cabral, os gordos concheados mostram o conhecimento das gravuras realizadas a partir dos desenhos ornamentais do conhecido cenógrafo e arquitecto teatral Ferdinan-do Bibiena, tio de GiovanCarlo Sicinio Bibiena, con-tratado por D. José para a construção do malogrado

teatro da Ópera do Tejo, destruído pelo terramoto de 1755, pouco depois de inaugurado36.A influência da Regência francesa, conjugada com a utilização da “quadratura” - a sugestão de elementos arquitectónicos perspectivados, introduzida em Portu-gal, em inícios do século XVIII, pelo pintor florentino Vincenzo Baccharelli -, está presente nos tectos es-tucados do palácio do Mitelo e da anexa capela do Senhor Jesus dos Perdões, no largo do Mitelo, junto ao Campo de Santana, em Lisboa, realizados por volta de 1752. A capela era sede da Irmandade do Senhor Jesus dos Perdões, da freguesia dos Anjos, e foi erguida em terrenos cedidos pelo Dr. Alexandre Mitelo de Mene-zes, conselheiro de D. João V e diplomata (chefiou a famosa embaixada de D. João V à China), em troca de um acesso directo ao seu palácio37. Os tectos da capela-mor e da nave mostram rasga-mentos centrais enquadrados por uma moldura, na ca-pela-mor, a que se associa, na nave, uma balaustrada perspectivada pintada; colunatas antecedidas de para-peitos de perfil ondulante percorrem longitudinalmente os lados maiores da nave e da capela-mor. Os lados menores do tecto da nave são preenchidos por plintos com gradinhas, enquadrados por volutas contracurva-das. Estão igualmente presentes outros elementos de-corativos da Regência francesa: plumas, fitas, e ornatos em ‘C’ e em ‘S’. A meio dos parapeitos, na nave e na capela-mor, dentro de medalhões ovais, os bustos dos quatro Evangelistas. Nos rasgamentos centrais é figu-rada a pomba do Espírito Santo, na capela-mor, e putti ostentando cruzes e objectos eucarísticos, na nave.

c. Estuques decorativos nos anos a seguir ao terramoto de 1755 O terramoto de 1755 e o incêndio que se seguiu des-truíram ou danificaram seriamente uma boa parte do património edificado da cidade de Lisboa. A construção de tectos em fasquiado de madeira, servindo de su-

porte a pintura ou mesmo a estuque, já utilizados em Lisboa na primeira metade do século XVIII, tornou-se a alternativa rápida e económica às pesadas abóbadas em cantaria ou em abobadilha de tijolo. A presença em Lisboa dos estucadores atrás referi-dos e a vinda de outros após o terramoto, também referida por Cirilo (Chantoforo, Guadri e Toscanelli), permitiram a divulgação desta prática decorativa, que, além da maior rapidez e economia de realização, se adequava muito bem ao gosto rococó que então domi-nava os interiores lisboetas, pela extrema ductilidade da matéria prima utilizada. Em meados do século XVIII o novo estilo estava já im-plantado na arte portuguesa, nas suas duas vertentes: a linguagem decorativa do rocaille de inspiração fran-cesa, com os seus concheados assimétricos ligeiros, divulgado pelas gravuras de Meissonier, Pierre-Edmé Babel, Boucher, entre outros; e a linguagem do roco-có de inspiração alemã, fruto da adaptação ao gosto germânico da linguagem decorativa francesa, com os seus concheados vazados, com contornos irregulares flamíferos, por vezes com sugestões do perfil recorta-do da asa do morcego ou lembrando a água das casca-tas petrificada38. A linguagem característica do rococó germânico vai ter uma ampla divulgação através das gravuras realizadas em Augsburgo e em Nuremberga, a partir de desenhos de Franz-Xavier Haberman, Carl Pier, Emmanuel Eichel e Johann-Isaias Nilson, entre outros, de que existem numerosos exemplares em co-lecções portuguesas provenientes dos fundos dos anti-gos conventos39. A difusão desta linguagem decorativa em Portugal pode estar associada à vinda dos mestres estucadores italianos parentes de Grossi e que a ele se vieram juntar, nomeadamente Guadri, que, segundo Cirilo, trabalhou na Alemanha, Prússia e Holanda antes de vir para Portugal.Duas igrejas em Lisboa, muito danificadas pelo ter-ramoto, receberam novos tectos em estuque releva-do nos anos imediatamente a seguir ao terramoto: a igreja do convento dos Eremitas de S. Paulo, também conhecidos como Paulistas, actual igreja paroquial de Santa Catarina, cujos tectos estucados estavam pron-tos no final de 1757, e a capela da Ordem Terceira de S. Francisco de Jesus, actualmente inserida no Hospital de Jesus e anexa à igreja paroquial das Mercês, cujas obras estavam em curso em Maio de 1758, data de um documento que atesta um pagamento a Grossi pela obra de estuque das paredes da nave40. Na obra de estuque destes dois templos (talvez os mais belos tec-tos da cidade de Lisboa), participaram, segundo Cirilo, Grossi e os seus dois primos Toscanelli e Guadri, e ainda Pedro Chantoforo41.Nas naves destas duas igrejas encontramos compo-

Figura 9: Palácio Cabral em Lisboa, pormenor do tecto de uma das salas, década de 1740. Vinheta de François-Laurent Debrie, década de 1730.

Figura 10: Convento do Grilo em Lisboa, pormenor do tecto da casa da escada conventual, 1749. Gravura de Carlo Buffagnotti, desenho de Ferdinando Bibiena, início do séc. XVIII.

Figura 11: Capela do Senhor Jesus dos Perdões, anexa ao palácio do Mitelo, em Lisboa, abóbada da nave, c. de 1752.

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sições extremamente bem elaboradas, enquadradas lateralmente por quadraturas simulando um parapeito apoiado em mísulas, sobre o qual se erguem frontões. A decoração em estuque dos Paulistas cobre ainda o cruzeiro e os braços do transepto, enquanto na capela da Ordem Terceira de Jesus preenche também a parte média das paredes da nave, logo acima dos silhares de azulejo. Um complexo programa iconográfico foi aplicado, embora mais elaborado, dadas as dimensões, na igreja dos Paulistas: cenas alusivas ao orago ou a

membros da Ordem, alegorias à religião e às virtudes, emblemas marianos e a figuração dos Evangelistas. Os concheados dominam as composições estucadas destas duas igrejas, oscilando entre os motivos de influência do rocaille francês (nas molduras das com-posições alegóricas das paredes da nave da capela da Ordem Terceira) e as formas claramente derivadas das gravuras alemãs, por exemplo na moldura do painel central do tecto desta capela ou nas elaboradas carte-las da nave dos Paulistas.Contemporâneos dos estuques destes dois edifícios religiosos são certamente os tectos do palácio do Correio-Mor junto de Loures, construído de raiz, entre 1735 e 1750, por José António da Mata de Sousa Cou-tinho, o 6º Correio-Mor do reino42. Quatro das salas em enfilade do piso nobre têm tectos estucados com elaboradas composições com quadraturas de enqua-dramento, cartelas de concheados de influência ger-mânica, alegorias, brincadeiras de meninos, bustos e cenas figurativas mitológicas43. As quadraturas da Sala da Fama são idênticas às que encontrámos nos alçados laterais da nave da capela da Ordem Terceira de Jesus, pelas quais Grossi foi pago em 1758, comprovando a sua presença e a da equipa italiana que com ele traba-lhou nas duas igrejas atrás analisadas.

c. A Aula de Desenho e Estuque das Reais Fábricas A necessidade de reconstruir os edifícios arruinados pelo terramoto de 1755 levou à criação, em 1764, da Aula de Desenho e Estuque, inserida na Real Fábrica das Sedas, com a intenção de “formar hum competente numero de Artifices Nacionaes, hábeis para as ditas Obras, com utilidade pública da reedificação da Cida-de de Lisboa”44. A sua direcção foi entregue a Grossi, evitando se assim, segundo Cirilo, o seu regresso a Madrid para trabalhar nas obras de decoração do Pa-lácio Real45. A “Aula de Desenho e Fábrica de Estuques” funcionou entre 28 de Agosto de 1764 e 6 de Outubro de 1777. Grossi recebia pelo ensino e pela direcção da Aula um ordenado de 600$000 réis por ano. Os 15 discípulos “de número”, admitidos anualmente, recebiam como ajuda de custo 100 réis diários. A idade de entrada va-riava entre os dez e os 16 anos, e a aprendizagem de-morava cerca de cinco anos, findos os quais os alunos eram examinados e recebiam carta de oficiais46. Entre os alunos formados na Aula que receberam carta de oficial contam-se António Bernardino da Fonseca, An-tónio Carlos de Almeida, António José Vieira, Francisco Inácio Xavier, Francisco Solano, José Joaquim Xavier, Júlio Vicente Gonela, Leonardo Caetano de Passos e Teodósio Ferreira47.A par dos novos oficiais, receberam carta de mestre, a 18 de Junho de 1773, quatro estucadores com provas dadas na sua profissão, iniciada ainda antes da fun-dação da Aula, muito provavelmente junto de Grossi - Manuel Francisco dos Santos, Paulo Botelho da Silva, José Francisco da Costa e Manuel José de Oliveira48.Durante o período de actividade da Aula foram institu-ídas medidas legais para proteger os estucadores nela formados. A 23 de Dezembro de 1771, um alvará régio proibiu, sob pena de seis meses de cadeia e 40$000 réis de multa, o exercício da profissão de estucador aos pedreiros, carpinteiros, canteiros e moldureiros que não tivessem uma “carta de exame”. Ao mesmo tempo, os novos oficiais eram obrigados a receber nas suas obras dois discípulos aprovados na Aula49. A 3 de Abril de 1772, Grossi conseguiu que aquela determina-ção fosse também alargada aos próprios estucadores, obrigados a obter carta de aprovação como condição para poderem dirigir obras de estuque50.Durante o período de laboração da Aula, Grossi, pro-vavelmente assistido pelos seus alunos, trabalhou em várias obras públicas em Lisboa. Está documentada a sua presença em 1768 e em 1769 na capela de S. Roque, no Arsenal da Marinha, na casa grande da Audiência do Ouvidor da Alfândega51 e na Casa do Despacho, Secre-taria e Casa dos Cofres da Santa Casa da Misericórdia de Lisboa, no antigo Colégio jesuítico de S. Roque52.

Do mesmo período destacam-se ainda os tectos, da igreja da Conceição Velha, concluído em 177053 e de S. Luís dos Franceses. A decoração desta última igreja, sede de uma confraria de franceses que ali tiveram um hospital, é um dos exemplos que bem caracteriza os caminhos da arte em Portugal durante este período. A reconstrução das co-berturas, muito danificadas com o terramoto, decorreu entre 1766 e 1769 e foi dirigida pelo arquitecto portu-guês Francisco Ribeiro. Era então capelão da igreja o abade Garnier, nomeado para esse cargo em 1750. Os seus apontamentos e notas de obras, recentemente re-colhidos em arquivos franceses, permitiram trazer uma nova luz sobre as obras realizadas e os artistas que ali intervieram54. Em 1769 surge na documentação o nome do estucador da obra da sacristia: “Manoel Francisco”, muito prova-velmente Manuel Francisco da Silva, um dos estuca-dores portugueses que em 1773 viriam a receber carta de mestre da mão de Grossi55. É igualmente referido o autor dos desenhos do tecto da capela-mor, Jean-Baptiste Philippe Signol, que deixou duas propostas alternativas para a realização dos estuques da capela-mor, legendadas em francês.Destaca-se a composição central da abóbada de pene-trações da nave, enquadrada por moldura polilobada representando a Glorificação de S. Luís, de belo efeito perspéctico, rodeada por uma invulgar malha geomé-trica centrada por rosetas. S. Luís (Luís IX, rei de Fran-ça) enverga capa de arminho com flores de lis e tem ao pescoço o colar da Ordem do Espírito Santo56. Nos quatro cantos da abóbada, emblemas alusivos ao ora-go e no fecho do arco triunfal uma cartela de conchea-dos centrada pelas armas do reino de França, rodeadas pelo colar da Ordem do Espírito Santo e suportadas por dois anjos tenentes; nas penetrações da abóbada, de um lado uma auréola de luz, do outro, a coroa de espinhos de Cristo, para a qual Luís IX mandou erguer o maior “relicário” da Cristandade: a Sainte Chapelle, em Paris. A moldura que enquadra a cena central tem perfil idêntico ao das duas grandes molduras da nave da igreja dos Paulistas, mas envolvida por simples ele-mentos vegetalistas, em vez dos exuberantes conche-ados desta última. O tecto da capela-mor, em abóbada de esquife, é mais sóbrio, apenas decorado com elementos heráldicos: a pomba do Espírito Santo e quatro flores de lis, dentro de molduras, no pano rectilíneo central; duas cartelas coroadas, enquadradas por plumas e grinaldas de lou-ros, uma com o duplo “L” entrelaçado (de Luís XV); as armas francesas, com o colar da Ordem do Espírito Santo, nos panos oblíquos laterais. Na parede do arco triunfal, ramos floridos, concheados de inspiração ro-

Figura 12: Igreja dos Paulistas, Lisboa, abóbada da nave, 1757, João Grossi, Toscanelli, Guadri e Pedro Chantoforo.

Figura 13: Capela da Ordem Terceira de Jesus em Lisboa, por-menor da decoração da abóbada, 1758, João Grossi, Toscanelli, Guadri e Pedro Chantoforo. Gravura de F. X. Haberman.

Figura 14: Palácio do Correio-Mor, em Loures, abóbada da Sala da Fama. Capela da Ordem Terceira de Jesus, em Lisboa, pormenor da parede da nave, 1758, João Grossi, Toscanelli, Guadri e Pedro Chantoforo.

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caille e grandes flores de lis. Apesar das diferenças da linguagem decorativa, foi aparentemente a mesma equipa que realizou os es-tuques dos tectos da nave e da capela-mor. Embora o estucador Manuel Francisco apareça apenas referido nas obras da sacristia, é provável que também tenha trabalhado na nos tectos da igreja. No interior da sa-cristia já não há vestígios de decoração em estuque relevado, mas subsiste ainda um belo frontão de re-mate da porta de acesso, decorado com os mesmos elementos vegetalistas e concheados que encontrámos no tecto da capela-mor.As composições dos tectos das três igrejas referidas - a de S. Roque do Arsenal, a da Conceição Velha e a de S. Luís dos Franceses - , realizadas durante o período em que funcionou a Aula de Estuque, mostram uma cla-ra simplificação em relação aos tectos do período que antecedeu o terramoto. Do ponto de vista decorativo é também evidente uma diminuição do número e da quali-dade dos elementos decorativos: desapareceram as ela-boradas e inventivas cartelas de ascendente germânico, constituídas por elementos de concheados justapostos, que encontrámos tanto nos Paulistas como na capela da Ordem Terceira de Jesus, substituídas por outras mais contidas, próximas do rocaille francês, enquanto se re-petem as plumas, as fitas e as grinaldas floridas. Esta nova influência do rocaille francês, que vamos também encontrar nas restantes artes decorativas em interiores lisboetas, terá resultado, como mostrou Marie-Thérèse Mandroux-França, da divulgação tardia daquela linguagem, já fora de moda em Paris, mas ilus-trando ainda os tratados então muito difundidos entre nós: o Cours d’Architecture de d’Aviler, o tratado de Blondel, De la distribution des Maisons de Plaisance, e o muito difundido tratado de Briseux, L’Art de Batir des Maisons de Campagne57.

d. Estuques em Lisboa após a extinção da Aula de De-senho e Estuque: do rocaille ao neoclássicoApós a queda do marquês de Pombal e o encerramento da Aula de Desenho e Estuque, foi permitido a Grossi, por especial favor, continuar a residir, a troco de uma renda, nas casas que ocupava na Praça das Águas Li-vres, pertencentes à Real Fábrica das Sedas58. Faleceu cerca de dois anos depois, a 26 de Janeiro de 1780, tendo sido sepultado na igreja do Loreto com o hábito de S. Francisco59 (e não em 1781, como diz Cirilo). Depois da extinção da Aula de Estuque, João Paulo da Silva, um dos alunos de Grossi, e seus “companheiros” pediram à Junta da Administração das Fábricas Reais e Obras das Águas Livres autorização para arrendar um quarto de casas, o que lhes foi concedido a 7 de Janeiro de 177860. Aí terão continuado a formar estu-cadores, mantendo vivo o ensino da profissão até à viragem do século. A actividade de dois estucadores que receberam carta de mestre em 1773, durante o período de laboração da Aula, está documentada em obras que ainda se preser-vam: José Francisco da Costa, na decoração dos tectos da nave e da capela-mor da igreja do convento da Quietação ou das Flamengas, concluída em 1782 e Paulo Botelho da Silva, nas obras da igreja e do convento do Sagrado Coração de Jesus, entre 1781 e 178961. A de-coração em estuque relevado que encontramos nestes dois templos permite-nos datar com alguma segurança a mudança de gosto que ocorre na arte portuguesa entre finais da década de 70 e inícios da década de 80, com a introdução de novos modelos decorativos recuperados da Antiguidade Clássica.A decoração dos tectos da nave e da capela-mor da igreja do convento da Quietação ou das Flamengas estava já concluída em 1782, ano em que José Fran-cisco da Costa recebeu, por conta da obra realizada, a quantia de 124$800 réis, mandada pagar por Porta-ria de 15 de Julho62. As composições dos dois tectos são idênticas, simples mas muito bem delineadas, e organizam-se em função de pinturas centrais atribuídas a Pedro Alexandrino: quatro cartelas com concheados, enquadrando emblemas marianos e marcando os qua-tro lados dos dois tectos. No convento do Sagrado Coração de Jesus, à Estre-la, em Lisboa, de freiras carmelitas, obra de funda-ção régia, construído entre 1779 e 1794, com risco de Mateus Vicente de Oliveira e Reinaldo Manuel dos Santos, participou na decoração de estuques Paulo Botelho da Silva. De 1781 data a sua primeira inter-venção documentada, “em huma Capella do noviciado, teto e paredes”, no valor de 153$600. Trata-se, muito provavelmente da primitiva Sala do Presépio63, uma ampla divisão, no primeiro andar da zona conventual,

Figura 15: Porta de acesso à sacristia da igreja de S. Luís dos Franceses, em Lisboa, obra do mestre estucador Manuel Fran-cisco da Silva, 1769.

com um silhar de azulejos com cenas da Natividade e uma bela decoração de fundo marmoreado nas pa-redes e no tecto, animada por molduras e cartelas de concheados em estuque branco relevado. Nos tectos das Flamengas e da Sala do Presépio do convento do Sagrado Coração de Jesus mantém-se ainda a inspiração do rocaille francês, lembrando al-gumas das cartelas de Meissonier, de Boucher e de Pierre-Edmé Babel.No final da década, em 1789, o mesmo Paulo Botelho da Silva foi pago por outras obras em estuque ainda existentes na igreja e convento, que revelam já a ade-são aos valores estéticos do neoclássico: o “tecto da sacristia da parte do nascente” (a sacristia da igreja), o tecto da “Sachristia da parte do Convento”, termi-nado em Setembro do mesmo ano (ou a actual Sala do Presépio ou a contígua Sala da Roda) e o tecto “da Tribuna de S. Magestade”, por cima da sacristia da igreja. Também a decoração do tecto da Sala da Raínha, concluída em Setembro de 1790, mas sem qualquer indicação do estucador nela interveniente, lhe pode ser atribuída64, bem como os outros tectos de várias dependências deste convento que lhe estão estilisticamente muito próximos65.

Em todas estas composições domina a linguagem es-tilística do neoclássico, com uma compartimentação depurada do espaço, criada por frisos e molduras de ornatos clássicos (óvulos e dardos, conteados, on-das, gregas, festões, grinaldas, fitas e panejamentos, ramos de loureiro e finos enrolamentos de acantos), emoldurando painéis de estuque relevado não muito acentuado, com motivos florais e emblemas, e, sobre-tudo, servindo de enquadramento a painéis pintados figurativos e alegóricos, colocados em posição central, quase todos da autoria de Pedro Alexandrino. Na Sala da Rainha, um belo espaço virado para a fa-chada principal do convento, do lado da igreja, os or-natos em estuque servem de enquadramento a peque-nos painéis alegóricos pintados, repetindo os mesmos motivos utilizados pela pintura decorativa das paredes e pelos silhares de azulejo, inspirados nos chamados grotescos neoclássicos: figuras híbridas de meninos com corpos de acantos com cestos floridos à cabeça, marcando o eixo da composição, vasos com a mesma função axial, ladeados de esfinges, golfinhos, gregas, enrolamentos de folhagem, grinaldas, festões, fitas e laços. Estes motivos combinam se com grinaldas, fes-tões e pássaros pintados. Como fonte de inspiração directa destes motivos e daqueles que encontrámos na Sala da Rainha, esti-veram muito provavelmente as gravuras dos mestres decoradores franceses que ajudaram a divulgar uma linguagem já conhecida, agora renovada por um novo espírito arqueológico. Um dos desenhos de um des-ses decoradores, Jean Démosthène Dugourc66, mostra idênticas figuras híbridas afrontadas, simetricamente dispostas dos lados de um eixo central rematado por vasos floridos. Na capela-mor da Ordem Terceira de Jesus, em cuja nave trabalharam Grossi e os seus parentes italianos a seguir ao terramoto, encontramos um interessante exemplo da utilização dos mesmos grotescos de gosto neoclássico nos relevos em estuque que revestem os

Figura 16: Tecto da antiga Sala do Presépio, 1781, Paulo Botelho da Silva. Gravuras de Juste Aurèle Meissonier, 1733.

Figura 17: Igreja do Sagrado Coração de Jesus, em Lisboa, por-menor do tecto da antiga sacristia das freiras, Paulo Botelho da Silva, 1789.

Figura 18: Convento do Sagrado Coração de Jesus, em Lisboa, pormenor do tecto da Sala da Rainha, 1789. Capela da Ordem Terceira de Jesus, em Lisboa, pormenor da abóbada da capela-mor, 1789?. Gravura de Jean-Démosthène Dugourc, 1782.

Estuques Decorativos em Portugal - do Manuelino ao Neoclássico Isabel Mayer Godinho MendonçaEstuques Decorativos em Portugal - do Manuelino ao Neoclássico Isabel Mayer Godinho Mendonça

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panos da abóbada de arestas: enrolamentos acânticos, meninos e figuras híbridas aladas com caudas de acan-tos, segurando emblemas eucarísticos, simetricamente dispostos em torno de um eixo central, repetindo a organização das candelabra, de inspiração clássica. A decoração em estuque prolonga-se pelas paredes, tal como acontece na nave, mantendo-se o mesmo rigor neoclássico na organização dos motivos decorativos, em torno das pinturas de vários santos associados à Ordem Terceira.O gosto neoclássico está também presente num notável exemplo de arquitectura civil, cujos estuques foram re-alizados em inícios do séc. XIX: o palácio das Laranjei-ras, na Estrada das Laranjeiras, em Lisboa. As obras de remodelação do edifício de raiz seiscentista, herdado em 1802 por Joaquim Pedro Quintela, o primeiro barão de Quintela, de seu tio materno, o desembargador Luís Rebelo Quintela67, foram conduzidas, segundo Cirilo, por um outro tio, o oratoriano Bartolomeu Quintela. Ci-rilo refere igualmente o nome de dois estucadores que aí trabalharam: João Paulo da Silva, o aluno de Grossi a que já nos referimos e que terá continuado responsável pelo ensino do estuque após a morte do seu mestre, e Felix Salla, que em Itália fora discípulo de Giocondo Al-bertolli (1742/1839)68. Salla terá ainda realizado, segun-do Cirilo, “todos os tectos do palacio de Quintela em Lisboa” (ou seja o palácio da rua do Alecrim, mandado edificar por Joaquim Pedro Quintela)69.Nas numerosas salas estucadas do palácio das La-ranjeiras e do palácio Quintela, da rua do Alecrim, confundem-se os contributos de João Paulo da Silva e de Felix Salla, dois artistas com origens diferentes mas com uma formação com muitos pontos de contacto, bebida junto de dois mestres italianos pertencentes a gerações distintas: João Grossi, o artista da povoação de Como responsável pela renovação da arte do es-tuque em Portugal ainda na primeira metade do séc. XVIII, Giocondo Albertolli, estucador com uma intensa

actividade em Milão e Florença70, professor de ornato na Academia de Brera (1776 e 1812) e autor de vários álbuns de ornatos e de decoração. De Felix Salla são apenas conhecidos estes dois contributos, já que após completar a obra de estuque dos palácios do barão de Quintela partiu para Cadiz, acompanhado por dois estucadores portugueses, Domingos Lourenço e José Eloy, para realizar os estuques do “salão dos bailes”, regressando depois “a Milão sua pátria tendo pouco mais de 30 anos”71. As composições decorativas que encontramos nos tec-tos, quer do palácio das Laranjeiras, quer do palácio Quintela na rua do Alecrim, estão ainda muito próxi-mas dos estuques realizados em finais da década de 80 na igreja e convento do Coração de Jesus, mostrando a influência constante da arte italiana sobre os estu-ques lisboetas. Na região do Porto, como é sabido, o estuque neoclássico seguiu caminhos muito diferentes, através da influência directa da Arquitectura inglesa e dos artistas formados na tradição dos irmãos Adam.

***A necessidade de formação na área do estuque voltou a ser equacionada em inícios do século XIX, com a vinda para Lisboa em 1805 do estucador suíço Vicente Tacquesi, discípulo de Canova. Ele e José Francisco Espaventa, referido por Cirilo como um dos estucado-res mais bem sucedidos da época, pediram o restabe-lecimento da Aula dos Estuques, tendo-lhes chegado a ser concedido um espaço para o efeito pela Junta das Fábricas. A queda em desgraça do artista suíço, expulso em 1810 por suspeitas de apoio aos franceses, gorou tal intento72. A arte do estuque na capital acabaria por se renovar com a vinda de estucadores do Norte do país, da re-gião de Afife, no concelho de Viana do Castelo, para trabalharem sobretudo na decoração dos palacetes dos novos capitalistas do liberalismo. José Moreira e António de Amorim, ambos afifenses, terão sido os pri-meiros a chegar a Lisboa, onde trabalharam nas obras do palácio do “Monte Cristo” (como era conhecido o capitalista Manuel Pinto da Fonseca), à Junqueira, em meados do século XIX, no início da Regeneração. Pouco tempo depois chegava a Lisboa Rodrigues Pita, vindo de Carreço (freguesia vizinha de Afife), que montou uma oficina na capital, onde trabalharam João Bandeira e Domingos Meira, oriundos de Afife, o pri-meiro coadjuvando o na obra da Câmara Municipal e o segundo na decoração do palácio do “Monte Cristo”, comprado em 1882 pelo conde de Burnay e por ele restaurado e ampliado. Domingos Meira, que viria a estudar na Academia de Belas Artes, sucedeu na oficina ao seu mestre Rodri-

gues Pita e tornou se um dos mais requisitados mestres estucadores da época, dirigindo a maioria das obras então realizadas em Lisboa e em muitas outras loca-lidades do país. Protegido do rei D. Fernando II, que muito apreciava o seu trabalho, visitou os monumentos árabes da vizinha Espanha, onde encontrou as fontes de inspiração para muitos dos estuques neo-árabes que realizou. Esteve presente em várias exposições nacio-nais e internacionais (França, Estados Unidos e Brasil), tendo recebido prémios por obras aí mostradas. Com ele trabalharam vários artistas da sua terra, entre os quais Francisco Enes Meira, seu primo, António Afonso da Silva, Domingos Ruas e Manuel Joaquim Enes73.A oficina de Domingos Meira foi responsável por mui-tos dos estuques realizados ao longo da segunda me-tade do século XIX, não só na região de Lisboa, mas um pouco por todo o país. Uma vez mais, a dúctil argamassa do estuque se adaptou com grande versa-tilidade às estéticas vigentes, num período essencial-mente dominado por ecletismos e revivalismos da arte do passado.

Figura 19: Palácio Quintela às Laranjeiras, pormenor de uma das salas, João Paulo da Silva e Felix Salla, inícios do séc. XIX.

Estuques Decorativos em Portugal - do Manuelino ao Neoclássico Isabel Mayer Godinho MendonçaEstuques Decorativos em Portugal - do Manuelino ao Neoclássico Isabel Mayer Godinho Mendonça

NOTAS DE RODAPÉ:

1 Flórido de VASCONCELOS, “Considerações sobre o estuque decorativo”, in Boletim do Museu Nacional de Arte Antiga, Lis-boa, nº 2, vol. V, 1966.

2 Vejam-se, por exemplo, os grotescos figurados no fólio 58 do chamado Codex escurialensis [Fig. 2], conjunto de desenhos atribuídos à oficina de Domenico Ghirlandaio ou de Giuliano da Sangallo, realizados por volta de 1505, levados de Roma para Espanha por Don Iñigo Lopez de Mendoza, embaixador espanhol em Veneza, Roma e Siena, e hoje guardados na biblio-teca do Real Mosteiro do Escurial. Cf. L’art décoratif en Europe – Renaissance et Maniérisme (dir. de Alain GRUBER), Paris, Citadelles et Mazenod, 1993.

3 As principais campanhas decorativas da Charola foram reali-zadas entre 1492 e 1515, logo após a construção da nova nave manuelina por Diogo de Arruda e João de Castilho.

4 Túlio ESPANCA, Inventário Artístico de Portugal - Distrito de Évora, vol. VIII, Lisboa, Academia Nacional de Belas-Artes, 1975.

5 Idem, ibidem.

6 Cf. L’art décoratif en Europe - Renaissance et Maniérisme (…).

7 Idem, ibidem.

8 Isabel Mayer Godinho Mendonça, “Um tecto quinhentista na igreja do convento de Santa Marta em Lisboa”, Monumentos, nº 17, Lisboa, DGEMN, Setembro de 2002,.

9 Este retábulo foi transferido em inícios do séc. XX para a igre-ja de Santo António do Estoril, onde ainda se encontra, o mesmo acontecendo com os retábulos dos altares colaterais.

10 Existem exemplares destas estampas na Biblioteca Pública Municipal do Porto, inseridas no Libro d’Antonio Labacco appar-tenente a l’Architettura nel qual si figurano alcune notabili anti-quità di Roma (Y-14-16). A gravura aqui utilizada foi reproduzida a partir do conjunto gravado de H. Cock da Bibliothèque Royale Albert I (Albertine), em Bruxelas.

11 S. SERLIO, De Architectura Libri Quinque quibus cuncta fere Architectonicae facultatis mysteria docte; perspicuè, uberrime-que, explicantur, Veneza, Apud Franciscum de Franciscis Se-nensem, & Ioannem Chrigher, 1569, Livro IV. Arquitecto, teórico e pintor, Serlio foi o autor de um dos tratados de arquitectura que maior influência exerceu sobre a arte de todos os tempos. Natural de Bolonha, estudou em Roma, sofrendo a influência de Bramante e de Baldassare Peruzzi, e trabalhou em Bolonha, Roma, Veneza e em França, na corte de Francisco I. Em Veneza, adaptou temas da arquitectura romana às tipologias construtivas locais, absorvendo mais tarde as características da arquitectura francesa. Os vários livros do seu tratado, amplamente ilustra-dos, alguns publicados postumamente, tiveram uma amplíssima divulgação e tradução para várias línguas.

12 S. SERLIO, ob. cit., fl. 349, desenho inferior à direita, e fl. 351, desenho superior.

13 Veja-se a Ficha de Inventário da DGEMN (actual IHRU), nº IPA PT040705210023, onde está sintetizado o essencial da informação sobre este edifício, em www.monumentos.pt. Cf. também Túlio ESPANCA, “A Igreja do Espírito Santo – sua fundação e origi-nalidade na arte do barroco”, in Cadernos de História e Arte Eborense, XX, Évora, Livraria Nazareth, 1959 e José Alberto Go-

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Estuques Decorativos em Portugal - do Manuelino ao Neoclássico Isabel Mayer Godinho MendonçaEstuques Decorativos em Portugal - do Manuelino ao Neoclássico Isabel Mayer Godinho Mendonça

mes MACHADO, “As pinturas a fresco da sacristia nova da Igreja do Espírito Santo de Évora”, in Barroco, Actas do II Congresso Internacional, Porto, 2001, pp. 281-289.

14 Veja-se a Ficha de Inventário da DGEMN (actual IHRU), nº IPA PT040705210023 (…) e Túlio ESPANCA, “A Igreja do Espírito Santo (...)”

15 S. SERLIO, ob. cit., fl. 349, o desenho em baixo, do lado esquerdo e fl. 351, desenho de baixo.

16 Veja-se a Ficha de Inventário da DGEMN (actual IHRU), nº IPA PT040706040013, onde está sintetizado o essencial da informa-ção sobre este edifício, em www.monumentos.pt e ainda Túlio ESPANCA, “Vida, Morte e Ressurreição do mosteiro de Santo António de Montemor-o-Novo, in A Cidade de Évora, vol. 8, Lisboa, nº 56, 1967, e Julieta MARQUES, Vozes do Silêncio – Es-tudo sobre o convento de Santo António Pregadores da Ordem Dominicana de Montemor-o-Novo, 2005.

17 S. SERLIO, ob. cit., fl. 349, o desenho de cima do lado direito e fl. 350, o desenho superior.

18 Idem, ibidem, fl. 349, o desenho de baixo à direita e fl. 351, desenho superior.

19 S. SERLIO, ob. cit., fl. 349, o desenho inferior, do lado es-querdo.

20 S. SERLIO. ob. cit., fls. 349 e 350, desenho superior.

21 Idem, ibidem, fl. 349 e 351, desenho superior.

22 S. SERLIO, ob. cit., fl. 349 e fl. 350, desenho inferior.

23 Idem, fl. 354.

24 Vejam-se as actas do encontro que reuniu na cidade de Como estudiosos de vários países europeus onde ainda existem nume-rosos exemplos de estuques realizados por esses artistas: Arte e Artisti dei Laghi Lombardi. Gli stuccatori dal Barocco al Rococo (dir. de Edoardo ARSLAN), vol. II, Como, Tipografia Artistica Antonio Noseda, 1962.

25 Cirilo Volkmar MACHADO, Collecção de Memorias Relativas às vidas de pintores, e escultores, e architectos, e gravadores portuguezes, e dos estrangeiros, que estiverão em Portugal, Coimbra, Imprensa da Universidade, 1922, pp. 215, 216 (1ª ed. de 1823).

26 Segundo o próprio Cirilo refere no prefácio da sua Colecção de Memórias: “João Paulo fez-nos scientes do que tocava à aula dos estuques”. Cirilo Volkmar MACHADO, ob. cit, p. 7.

27 Ibidem, pp. 215, 216.

28 Cf. Isabel Mayer Godinho MENDONÇA “Estuques do Palácio de Belém”, Do Palácio de Belém, Lisboa, Museu da Presidência da República, 2005, pp. 247-263. Veja-se também a entrada so-bre João Grossi na nossa obra Estuques Decorativos - a viagem das formas (séculos XVI a XIX), Lisboa, Patriarcado de Lisboa, 2009, pp. 123-134.

29 Arquivo do Loreto (A.L.), Livro Segundo dos Baptizados, fls. 5, 25, 35v, 66, 101v. A naturalidade de Grossi — a cidade de Como — era até à data desconhecida. Cirilo refere a cidade de Milão e o ano de 1719 como o local e a data de nascimento do estucador italiano. Cirilo Volkmar MACHADO, ob. cit., p. 215.

30 A.L., Livro da Dezobrigação do Perceito Annual da Quaresma da Nação Italiana (1739/1744), fls. 30v; Livro da Dezobrigação do Perceito Annual da Quaresma da Nação Italiana (1745/1751), fl. 11.

31 Manuel Ferreira da SILVA, “Igreja dos Mártires”, in Dicionário da História de Lisboa, Lisboa, Câmara Municipal de Lisboa, 1994, pp. 566-569.

32 Cirilo Volkmar MACHADO, ob. cit., p. 215.

33 Veja-se a recolha destas vinhetas em Marie-Thérèse MAN-DROUX-FRANÇA, “L’image ornementale et la littérature artisti-que importées du XVIe au XVIIIe siècles : un patrimoine mécon-nu des bibliothèques et musées portugais”, Boletim Cultural da Câmara Municipal do Porto, Porto, Câmara Municipal do Porto, 1983, 2ª série, nº 1, pp. 412-445, fig. 17.

34 O palácio Cabral passou para a Casa dos viscondes de Mo-çâmedes, pelo casamento da filha de D. Pedro de Figueiredo Ca-bral, D. Francisca da Câmara Meneses, com Manuel de Almeida. Cf. a entrada respectiva do Dicionário da História de Lisboa, de Maria João Madeira RODRIGUES, p. 191.

35 Cf. L’art décoratif en Europe – Classique et Baroque (dir. de Alain GRUBER), Paris, Citadelles et Mazenod, 1992.

36 Cf. Isabel Mayer Godinho MENDONÇA, “Os teatros régios portugueses em vésperas do terramoto de 1755”, in Brotéria, nº 157, Lisboa, Julho de 2003.

37 Norberto de ARAÚJO, Peregrinações, vol. IV, Lisboa, Parceria António Maria Pereira, pp. 45, 46 e Maria Júlia Jorge, “Palácio do Mitelo”, in Dicionário da História de Lisboa, pp. 582/583.

38 Na origem dessa adaptação estão as gravuras ornamentais de François de Cuvilliés, o prolixo decorador da corte da Bavie-ra. Nascido no Hainault (Valónia) mas de nacionalidade alemã, François de Cuvilliés contactou em França directamente com a nova linguagem e adaptou-a aos seus “caprichos”, como inti-tulou os seus desenhos de ornatos, de formas densas, muito distantes dos ornatos estilizados e finos do rocaille francês.

39 Cf. Marie-Thérèse MANDROUX-FRANÇA, ob. cit.

40 Henrique Pinto REMA, “Capela e Hospital da Ordem Terceira de Jesus”, in Dicionário da História de Lisboa, pp. 672, 673.

41 Ibidem.

42 Sobre este palácio veja-se sobretudo o artigo de Matilde TAMAGNINI, “O palácio do Correio-Mor em Loures”, in Belas-Artes, nº 31, Lisboa, 1977, pp. 101-122.

43 Cf. Isabel Mayer Godinho MENDONÇA, “Estuques em Palá-cios Setecentistas”, in Os Interiores em Portugal, Lisboa, IADE, 2008 (no prelo).

44 Veja-se o alvará régio de 24 de Dezembro de 1771 dirigido à Junta do Comércio — Arquivo Histórico do Ministério das Obras Públicas (A.H.M.O.P.), Junta do Comércio, “Avisos e Or-dens (1757/1833)”.

45 O embaixador espanhol em Lisboa tê-lo-á aliciado com o perdão da pena pelo delito que o trouxera a Portugal. Cirilo Volkmar MACHADO, ob. cit., p. 216.

46 Gustavo de Matos Sequeira, Depois do Terramoto, vol. IV, Coimbra, Imprensa da Universidade, 1933, pp. 228-230. Na Torre

do Tombo, fundo Real Fábrica das Sedas, reúnem-se muitas in-formações sobre o funcionamento da Aula. Veja-se o Livro 355, “Balanço demonstrativo da Real Fábrica das Sedas desde 16 de Agosto de 1757 athé 31 de Dezembro de 1769”, e ainda os Livros 422 e 427, onde são referidas atribuições de cartas de oficial a alguns dos alunos da Aula.

47 T.T., Real Fábrica das Sedas, Lº 422, fls. 190, 195, 196, 206 e 242, Lº 427, fls. 17v, 32 e 32v.

48 T.T., Real Fábrica das Sedas, Lº 422, fls. 187-190, 195-198, 206 e 242. Veja-se ainda a carta de mestre de José Francisco da Costa — A.H.M.O.P., Junta do Comércio, JC10.

49 T.T., Real Fábrica das Sedas, Lº 384, fls. 151v e 152.

50 T.T., Ibidem, fls. 159v e 160.

51 Maria Luísa de Oliveira GUIMARÃES, A capela de S. Roque no Real Arsenal da Ribeira das Naus, Lisboa, Ed. Culturais da Mari-nha, 2006, pp. 97-101 e Doc. 11, e Hélia SILVA, Giovanni Grossi e a Evolução dos Estuques Decorativos no Portugal Setecentista, dissertação de Mestrado em Arte, Património e Restauro, Lisboa, Faculdade de Letras, 2005, exemplar policopiado.

52 Cf. Paula NOÉ, “A Casa professa de S. Roque e o convento de São Pedro de Alcântara. Dois modelos arquitectónicos”, Pa-trimónio Arquitectónico. Santa Casa da Misericórdia de Lisboa (dir. de Teresa Freitas MORNA), Lisboa, Santa Casa da Miseri-córdia, 2006, pp. 36-65.

53 Cf. o nosso artigo “Estuques decorativos em Igrejas de Lisboa – A viagem das formas”, in A Presença do Estuque em Portu-gal. Do Neolítico à época contemporânea. Estudos para uma base de dados, Cascais, Câmara Municipal de Cascais, 2009, apresentado no I ciclo de conferências para o estudo dos bens culturais da Igreja, Formas de Religiosidade e Sacralidade nas Artes Decorativas Portuguesas, 2007 (no prelo).

54 Archives diplomatiques: archives de Saint-Louis des Français, liasse 49, nº 3 - Cf. Église de Saint-Louis des Français - Étude Préliminaire, Julho de 2005, relatório policopiado. As pesquisas foram realizadas sob a direcção de Jean Pierre Rochette, Ar-chitecte en Chef des Monuments Historiques. Veja-se também Nuno Daupiás d’ALCOCHETE, “Igreja de S. Luís dos Franceses”, in Dicionário da História de Lisboa (…), pp. 808/810.

55 Veja-se a nota 48.

56 Em francês, Ordre du Saint-Esprit. Trata-se da mais antiga e mais importante ordem honorífica francesa, criada em 1578 por Henrique III.

57 Marie-Thérèse MANDROUX-FRANÇA, “Information Artistique et Mass-media au XVIIIe siècle: la difusion de l’ornement gravé rococo au Portugal“, in A Arte em Portugal no século XVIII, Actas do Colóquio, Bracara Augusta, vol. II. Braga: Câmara Municipal de Braga, 1973, pp. 425-430. A autora comprovou a existência de exemplares destas obras (nomeadamente, provenientes da Casa do Risco das Obras Públicas), em várias colecções portuguesas e a sua divulgação tardia junto dos artistas nacionais.

58 T.T., Real Fábrica das Sedas, Lº 427, fl. 141v. A 7 de Outubro de 1777 Grossi fora sumariamente despejado das casas onde habitava junto à Praça das Águas Livres - idem, Lº 446, fl. 126v -, uma vez que a nova administração das Reais Fábricas, nomeada após a Viradeira, não aceitou a alegação de lhe ter sido concedida pela direcção extinta a assistência de casas até ao fim da vida - idem, ibidem, fl. 109.

59 A.L., Livro Segundo dos Óbitos (1777/1846), fl. 10.

60 Idem, Lº 427, fl. 143. “Livro dos Termos de Arrendamento das Cazas da Administração das Obras Públicas e Outras … donativo dos 4% (1781/1804)” (Antigo Maço 685, nº 1)

61 Veja-se a nota 48 e Isabel Mayer Godinho MENDONÇA, Estu-ques Decorativos em Igrejas de Lisboa, pp. 122-125, 136, 137.

62 Arquivo do Tribunal de Contas (A.T.C.), Erário Régio, Livro 4312 (antigo Maço 689, 1). Registo das Portarias que sobem à assinatura (1781 – 1790).

63 Esta divisão abre, a Sul, para o claustro e a Oeste, para o corredor das celas.

64 Idem, ibidem e T.T., M.O.P.C.I./ I.G.O.P., Livro 304, Igreja do Coração de Jesus – 1789/1801, fl. 25v

65 Na capela da Raínha, contígua à Sala da Raínha, no coro alto, na tribuna das freiras, no coro e retro-coro das freiras, na Portaria, no Torreão Norte e na Sala de Santa Teresa e de S. João da Cruz.

66 Jean Démosthène Dugourc (1749/1825), arquitecto, desenha-dor e gravador, além de ter trabalhado em Paris, foi o respon-sável pela divulgação do estilo neoclássico em Espanha. As suas composições mais interessantes fazem parte dos Arabesques inventés et gravés par J. D. Dugourc, de 1782.

67 Este tinha comprado a quinta e palácio a Francisco de Azeve-do Coutinho em 1779. Veja-se a Ficha de Inventário da DGEMN (actual IHRU), nº IPA PT031106390086, onde está sintetizado o essencial da informação sobre este edifício, em www.monumen-tos.pt.

68 Cirillo Volkmar MACHADO, ob. cit., pp. 217, 218. 69 Cirilo Volkmar MACHADO, ob. cit., p. 218. Veja-se a Ficha de Inventário da DGEMN (actual IHRU), nº IPA PT031106150052, onde está sintetizado o essencial da informação sobre este edi-fício, em www.monumentos.pt.

70 Os seus estuques mais conhecidos foram realizados em Flo-rença, no Poggio Imperiale (apartamentos do Grão-duque), no Palazzo Pitti (sala degli stucchi) e nos Uffizi (sala della Niobe), e em Milão, no Palácio Real e no Teatro della Scala.

71 Cirilo Volmar MACHADO, ob. cit., p. 218. Os dois estucadores referidos por Cirilo, de seu nome completo Domingos Lourenço da Silva e José Eloy de Mendonça, dirigiram em 1825 um reque-rimento a D. João VI, em conjunto com Daniel Félix Amaro dos Santos Campos, retomando a velha questão das prerrogativas dos estucadores, concedidas pelo alvará de 23 de Dezembro de 1771, que proibia aos pedreiros, carpinteiros e moldureiros to-marem por sua conta obras de estuque, sob pena de seis meses de cadeia e uma multa de 40$000. Juntavam ao requerimento documentos que comprovavam a sua qualidade de mestres do ofício de estucador. Cf. Isabel Mayer Godinho MENDONÇA, Es-tuques Decorativos em Igrejas de Lisboa, pp. 65 a 67.

72 Cirilo Volkmar MACHADO, ob. cit, pp. 217 a 219.

73 Avelino Ramos MEIRA, Afife. Síntese monográfica, Porto, ed. do autor, 1945, pp. 108 a 112.

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Aposentos de aparatoSegundo a definição do Dictionnaire d´Architecture, Civile (…), de 1770, os aposentos de aparato eram si-tuados ao nível do primeiro andar, com vista sobre o jardim e compostos por uma sequência de aposentos em enfilade - cada conjunto de salas ou appartement seguia uma sequência linear que percorria todo o com-primento do edifício e que se alcançava através de um olhar: “de parade; est celui qui est au première-étage, ayant vue sur le jardin, & est composé d´un nombre consi-dérable de pièces enfilade, d´une extrémité à l´autre du palais. Cet appartement annonce la grandeur & la majesté, & on donne aux différentes pièces, différentes noms: comme salle de concert, salle du trône, salle de Mars, de Mercure, &tc, galeries”1.

Aos diferentes aposentos eram dados diferentes no-mes podendo a designação dos aposentos ser indicada pelos atributos normalmente induzidos pela escultura e pela pintura dos tectos, ou ainda por alegorias que adornavam as sobreportas, pilastras, fogões de sala e tremós2.

Desde as primeiras décadas do século XVIII em França, que os manuais destinados a alunos de arquitectura, a artistas e artesãos integravam um espaço dedicado ao tema da distribuição e decoração de interiores. Sob uma procura de harmonia e unidade na arquitectura a extensão do projecto era remetida para a organização do espaço interior. Constituíam elementos da decora-ção e alvo a projectar elementos como as estruturas apaineladas das paredes, portas, cornijas, tectos, tape-çarias e ainda mobiliário.O apainelamento das paredes, com painéis de apoio ou de altura, era neste período preferencialmente utiliza-do para revestimento mural dos aposentos, onde eram adicionadas tapeçarias. Era aconselhada a sua utiliza-ção em países frios, como França e países vizinhos do Norte, pois permitia que os aposentos se tornassem mais secos e quentes, e por consequência saudáveis. Razões climatéricas opostas determinariam a escassa utilização de apainelados de madeira em países quen-tes, pois contribuíam para que estes perdessem a sua frescura, facultando ainda a presença de insectos que se alojavam e multiplicavam na madeira3.Diferentes revestimentos utilizados em Portugal e Es-panha recebiam curiosos comentários na tratadística:

“On voit en quelques villes d´Espagne & de Portugal, de compartiments assez bizarres, qui sont imités de ceux des bâtiments des Maures qui ont été autrefois

possesseurs d´une partie de cês royaumes, & qui ont laissé divers monuments dignes de leur magnificen-ce (…). Les compartiments qui ornent les murs, les voûtes, & même le pavé de cês bâtiments, sont formés par un assemblage de carreaux de porcelaine, & autres terres cuites de diverses formes & couleurs dont l´effet est extrêmement brillant (…)”4.

A integração do mobiliário nos aposentos seguindo um planeamento global do espaço, constituía matéria a cuidar pelos arquitectos setecentistas. Pela necessida-de de preservar a simetria na distribuição, os móveis, a par das tapeçarias, deveriam ser adaptados ao es-quema decorativo dos aposentos, contribuindo para o resultado final da decoração. Entre as várias salas de aparato, a sala de jantar cons-tituía um dos locais com decoração mais cuidada. A grandiosidade deste aposento serviria como indicador das faculdades do proprietário5, podendo indiciar o es-tatuto social superior do mesmo.

Palácio dos Carrancas – o andar nobreO Palácio dos Carrancas, construído entre 1795 e 18056 foi mais a importante residência construída nos últi-mos anos do séc. XVIII na cidade do Porto. Igualmente no seu interior a decoração dos aposentos de aparato foi pautada por padrões estéticos elevados, seguindo um movimento internacional em que a apetência por objectos decorativos e pela decoração interior tinha alcançado uma extensão nunca antes vista. Para o es-paço interior eram demandados novos conceitos de conforto e elegância, exigindo uma maior intervenção de artistas e arquitectos neste domínio. A decoração interior deveria estar em harmonia não apenas com a proporção das salas, mas ainda com a qualidade social do destinatário incluindo-se assim entre uma das mani-festações de prestígio e poder.Os primitivos proprietários do Palácio dos Carrancas, a família Morais e Castro7 procuraram os melhores artis-tas existentes no Porto para ornamentação da sua resi-dência8. Na decoração interior terá tido a intervenção o artista italiano Luís Chiari que se encontrava, desde o final do ano de 1797 e início 1798, a trabalhar no Porto9. Durante o breve período de tempo que permaneceu na cidade empreendeu várias obras de decoração interior constituindo o Palácio dos Carrancas, o único espaço civil onde é atribuída a sua actividade. Já no regresso a Lisboa em 1807 abandonou os programas de decora-ção interior, dedicando-se a actividade de cenógrafo e planos de arquitectura10.O andar nobre, situado no primeiro andar e voltado para a fachada principal, seguia princípios construti-vos defendidos pela tratadística setecentista: era assim

O Andar Nobre do Palácio dos Carrancas. O programa de decoração, mobiliário e estuquesPaula Carneiro Museu Nacional de Soares dos Reis

Técnica Superior do Museu Nacional de Soares dos Reis é Pós-graduada em Museologia e encontra-se a preparar a tese de doutoramento sobre espaços interiores. Tem desenvolvido o seu trabalho es-sencialmente nas Artes Decorativas, onde é responsável pelas colecções de Mobiliário e Vidros, e ainda pela colecção de Gravura. Nesse âmbito tem essencialmente aprofundado estudos de mobiliário, interiores e gravura de ornamentação.Esteve ligada à programação da actual exposição permanente de Ar-tes Decorativas do Museu Nacional de Soares dos Reis, 2001, onde tem participado em várias exposições temporárias. Conta com a colaboração em diversos catálogos e é autora de comunicações e vários artigos. Entre as publicações mais recentes conta-se Biombos Namban, Museu Nacional de Soares dos Reis, IMC, Lisboa, 2009.

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precedido de uma ampla escadaria principal e dava acesso a um vestíbulo, espaço que deveria ser aberto, decorado em pedra, e desprovido de mobiliário. Nos topos do edifício foram situadas duas escadarias menores para uso de serviço, destinadas, segundo in-dicava a tratadística, à circulação dos criados pelas es-cadarias secundárias, com o objectivo de não fazerem ruído e sem passar sob os olhos dos senhores 11.

A decoração originalOs aposentos de aparato eram constituídos por cinco salas dispostas em enfilade. Um conjunto de registos fotográficos revela embora em estado de abandono, a decoração original de todas as salas do Andar Nobre 12 (Figs. 1, 3, 4, 5, 6). Trata-se dos únicos vestígios visuais de três das salas intermédias, as quais, pelas obras realizadas, foram despojadas da primitiva decoração. Nos dois aposentos dos extremos do edifício, a Nas-cente e Poente, designadamente a Sala da Música e a Sala de Jantar, subsistiu praticamente de forma integral a decoração original, constituindo um exemplo raro em espaços domésticos neste período em Portugal.

Na Sala de Jantar foi preservada a decoração origi-nal das estruturas apaineladas em estuque, a pintura de ornato nas sobreportas e nos painéis das paredes, as placas de luminária, o fogão de sala, e o trabalho

da parte superior das portas (Fig. 1). No tecto, pode observar-se a ausência de estuques na primitiva deco-ração, hoje existentes, e realizados durante as obras de adequação do imóvel a Museu, empreendidas pela oficina de Domingos Baganha.

A localização da Sala de Jantar num dos extremos da enfilade do edifício, seguia igualmente preceitos defen-didos nos tratados de arquitectura francesa setecentis-ta. A sua situação permitia a interrupção da comunica-ção com os restantes aposentos em enfilade, de forma a não incomodar a utilização das outras salas, pois as salas de jantar encontravam-se ocupadas pelos criados durante muitas horas do dia13.A Sala de Jantar seria precedida de uma sala de trin-chantes e copa14. A localização da copa em zona con-tígua era sugerida igualmente pela tratadística, pois dada a distância que usualmente as salas de jantar se situavam das cozinhas era aconselhada a existência de uma dependência anexa para colocação nos bufetes, de fontes ou cisternas para fornecimento de água15. A colocação de fontes na sala de jantar, para além de constituir uma constante presença de humidade, o que era considerado pouco saudável, igualmente implicava o movimento constante dos criados naquele local, o que era tido como desagradável16.No Palácio dos Carrancas essa dependência deverá ter

Figura 1: Sala de Jantar, Palácio dos Carrancas. Fotografia Domingos Alvão, 1938.

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Figura 3: Sala de Recepção; Palácio dos Carrancas. Fotografia, c. 1908, Arquivo Fotográfico Museu Nacional de Soares dos Reis

Figura 5: Sala de Recepção; Palácio dos Carrancas. Fotografia, c. 1908, Arquivo Fotográfico Museu Nacional de Soares dos Reis.

Figura 4: Salão Nobre; Palácio dos Carrancas. Fotografia, c. 1938.

Figura 2: Nicho (demolido); Extremo norte da Sala de Jantar, Palácio dos Carrancas, Arquivo Fotográfico Museu Nacional de Soares dos Reis.

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Figura 6: Sala da Música; Palácio dos Carrancas. Fotografia, c. 1908. Arquivo Fotográfico Museu Nacional de Soares dos Reis.

tido lugar numa zona imediatamente anexa. Foi conser-vado até recentemente em dependência contígua um nicho (Fig. 2)17 onde deveria ter sido situado a zona do bufete. O arquitecto escocês Robert Adam18, figura artística de renome em Inglaterra e com projecção internacional entre 1775 e 1785, utilizou nichos com referências na Antiguidade na decoração de salas de jantar, situando nesse local o sideboard. Subsiste um desenho assinado por Robert Adam que representa o nicho da Sala de Jantar de Kedleston Hall19. O local foi restaurado conforme o desenho original20, mantendo-se o nicho enquadrado por duas portas colocadas em simetria21, como o que existia no Palácio dos Carrancas. Também uma gravura Design of the side Board table in the Dinning room c. 1767 – 177022, pertencente à sua obra The Works in Archi-tecture, repositório de vários projectos de decoração interior editada em fascículos entre 1773-1779, revela um bufete adornado com estojos de faqueiro, refres-cador, cisternas de água e pedestais para manter os pratos quentes, objectos realizados com inspiração em formas da Antiguidade e habilmente adaptadas por Ro-bert Adam a modernas necessidades de Setecentos.É ainda na sua nomeada obra The Works in Architectu-re que Adam tece curiosas apreciações sobre as salas de jantar, considerando-as como aposentos privilegia-dos entre as salas de conversação, e como locais onde se passava grande parte do tempo, procurando por tal conferir-lhes elegância e esplendor. O arquitecto es-cocês referia a preferência pela utilização de estuques nestes espaços aconselhando este tipo de revestimento e não o de damascos e tapeçarias como seria usual em outros aposentos, de forma a não reterem o odor dos alimentos:

“(…) The eating rooms are considered as the apartments of conversation, in which we are to pass a great part of our time. The renders is desirable to have them fitted up with elegance and splendour, but in a style different from that of other apartments. Instead of being hung with damask, tapestry &c. they are always finished with stucco, and adorned with statues and paintings, that they may not retain the smell of the victuals.23”

A influência da obra de Robert Adam na decoração da Sala de Jantar do Palácio dos Carrancas foi já evoca-da24. Este constituiu o único espaço civil, pelo menos que subsistiu, em que Luís Chiari interveio no Porto e onde o artista italiano poderá ter assimilado de uma forma mais ampla a influência de Adam, uma vez que a obra do arquitecto inglês foi essencialmente realizada em espaços interiores domésticos.

Os painéis de grotescos em estuque foram verdadeiros ex-líbris da obra de Robert Adam. São vários os exem-plos encontrados na sua obra que revelam afinidades formais e estilísticas com os painéis que Luís Chiari terá realizado para a Sala de Jantar do Palácio dos Carrancas, como os painéis de estuque da Sala de Jan-tar em Osterley Park25, ou os da Sala de Recepção em Bowood House (demolida em 1956)26.A reciprocidade de influências processadas em territó-rio italiano neste período, onde Luís Chiari terá rece-bido a sua formação, trazidas pela vivência de Robert Adam em Itália e pelos contactos precoces com Pirane-si e Clérisseau teve ampla repercussão não só naquele país como em outros da Europa. Tido como grande responsável por uma revolução no espaço interior em Inglaterra, Adam alcançou uma ampla homogeneiza-ção de estilo não só no seu país mas igualmente no exterior. A universalidade da obra de Robert Adam traduziu-se num fenómeno novo neste domínio ar-tístico, colocando Inglaterra na liderança da estética da decoração interior neste período, e tornando as-sim possível o entendimento de um espaço com forte presença da influência inglesa sob concepção de um artista italiano. Enquadrado nos painéis de estuque o fogão de sala pontua o centro da sala: de introdução recente na cidade, provavelmente de importação inglesa, este elemento constituía por si só uma componente de modernidade, sendo ainda acrescido pelo respectivo enquadramento com o plano decorativo da sala. Os espelhos integraram a organização original deste es-paço como fundo de placas de luminária. A introdu-ção dos espelhos neste aposento é de realçar: as suas capacidades de reflexão e ampliação da luz tornaram este elemento componente fundamental na decoração interior setecentista.Três das salas de aparato intermédias do Andar Nobre foram totalmente destituídas da sua decoração original pelas obras levadas a cabo pela ex - Direcção-Geral de Edifícios e Monumentos Nacionais iniciadas em 1737.Numa das salas de recepção apenas foram preservadas as pinturas de sobreportas com temática inspirada nas pinturas a fresco das villas da cidade de Herculano e divulgadas pela obra Le Antichità di Ercolano Exposte, publicada entre 1757 e 1792.

Num extremo da enfilade do Palácio dos Carrancas, a Nascente, situa-se a Sala da Música, cujo conjunto decorativo original formado por estuques, mobiliário e pintura ainda persiste. Neste espaço Luís Chiari terá criado um programa de concepção global, caracteri-

zadamente Neoclássico com um planeamento unitário, por tal, harmonioso. Durante o período em que o Palácio foi residência tem-porária da família real27 este aposento foi destinado a “Quarto da Rainha” (Fig. 6), seguindo assim uma tra-dição que desde o século XVII considerava os quartos como os grandes aposentos de aparato.Foi neste espaço seguida a tradição que preconizava ao uso de pintura nos tectos das galerias e salões28, com designação induzida pela temática. A designação deste aposento surge na pintura do tecto com uma “Alegoria à Música”, atribuída ao pintor Francisco Viei-ra Portuense29. Para ornamentação das extremidades arredondadas, eram considerados especialmente orna-mentos em baixo-relevo e em camaieu, ou ainda figu-ras de estuque, como foram aí realizadas30.Na concepção da sala assumem papel preponderante os espelhos pertencentes ao par de tremós, que em conjunto com três mesas circulares completam o mo-biliário realizado em talha dourada para esta sala31. Referimos que os espelhos nos espaços interiores setecentistas constituíam um elemento decorativo de primordial importância. O seu papel no bem-estar e conforto era obtido através da colocação frente a fren-te para uma melhor ampliação da luz, conferindo assim aos aposentos não só o conforto como o aparato ou a grandiosidade desejável.No plano de concepção global vários componentes da

decoração encontram-se em diálogo, entre o par de tremós, os estuques do tecto integrados no plano geral da sala32 ou a pintura em grisaille situada nos ângulos do tecto. A unidade decorativa foi alcançada através da utilização de motivos decorativos iguais, versados em diferentes materiais: nos tremós, ao centro da con-sola, situa-se uma máscara feminina, e no tecto, em linha perpendicular, figura um conjunto ornamental com igual máscara transposta para o estuque. Aí foi encimada por um vaso com chama de onde pendem, em unidade decorativa com o trabalho da talha da con-sola, grinaldas de flores abertas. Seguindo o plano de harmonia entre mobiliário e es-tuques do tecto, encontram-se em cada espelho de tremó, quatro medalhões elípticos de pintura a óleo sobre tela. Superiormente e inferiormente Ninfas com Cupidos, Alegorias às Artes e lateralmente, figuras de Bacantes, estas em unidade decorativa articulada com as figuras de Bacantes das pinturas em grisaille, dis-postas em medalhões de forma igualmente elíptica, nos ângulos em abóbada do tecto. A procura de uniformidade decorativa foi extensiva ao pormenor. Chiari realizou para o tecto em estuque o motivo de “leque”33, ornamento de que a descoberta da Antiguidade trouxe à luz34. O motivo foi interpreta-do parcialmente em estuque no tecto, e em pormenor miniaturizado em talha dourada, ao centro das quatro consolas situadas nos ângulos da sala. Este ornamen-

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to foi preferencialmente utilizado pelo artista como adorno em portas, como no Guarda-vento da Igreja da Lapa35, e na parte superior das portas do Andar Nobre do Palácio dos Carrancas, onde é ainda possível identi-ficar o motivo interpretado de forma estilizada. Se a presença da obra de Robert Adam é fundamental para o entendimento destes espaços interiores, o ar-tista italiano Luís Chiari era todavia sucessor de uma pujante escola em matéria de ornamentação interior.No seu país de origem dividido por reinos e ducados, a influência francesa era dominante, quer pela presença de pensionistas do rei de França na Academia de Fran-ça em Roma, quer por personagens da própria corte francesa. No Ducado de Parma, sob o reinado de D. Filipe de Bourbon e Luísa Isabel, primogénita de Luís XV de França entre 1749 e 1764, um grande incremento artístico gerado em volta da corte com intervenção de grandes nomes, criou na cidade um ambiente artístico de vanguarda36. O estucador Giocondo Albertolli, autor de projectos de decoração interior e qualificado como próximo do gosto francês, foi influenciado pela figura tutelar do arquitecto francês Ennemond Alexandre Petitot durante o seu período de formação na Academia de Parma, tor-nando-se um intérprete junto da aristocracia da deco-ração interior de vários palácios. A sua grande activi-dade como ornamentista foi especialmente exercida em Milão e em outras cidades italianas, mas foi na capital lombarda que realizou as suas mais prestigiadas obras. Nessa cidade exerceu ainda a função de professor na Academia de Belas-Artes de Brera, dirigindo a famosa Aula de Ornato37.Encontramos referências de Giocondo Albertolli na obra de Luís Chiari, muito especialmente no mobiliá-rio, domínio onde trabalhou com uma técnica da talha densa e simultaneamente delicada. A nível ornamen-tal o mobiliário afasta-se um pouco das referências imediatas da Antiguidade, encontrando inspiração na ornamentação de origem francesa e ainda nos mestres quinhentistas.O motivo de máscara feminina que já referimos, utiliza-do na talha das consolas e no estuque do tecto da Sala de Música encontra afinidades com a obra de Albertolli. As grinaldas espessas de flores abertas na talha das consolas podem igualmente associar-se à técnica de Al-bertoli, num estilo vigoroso, de talha profunda. Os tro-féus, originalmente constituídos por armas capturadas ao inimigo e exibidas em marchas triunfais, tornaram-se desde o século XVI um elemento obrigatório nas ar-tes decorativas, muito especialmente na arte francesa, encontrando-se na obra de Albertolli e igualmente na talha realizada por Luís Chiari para os conjuntos escul-tóricos de remate dos tremós da Sala da Música.

Assim, nos dois exemplos analisados das salas que persistem com a decoração original no Andar Nobre do Palácio dos Carrancas, a interpretação ai realizada pode essencialmente caracterizar-se por um cunho in-ternacional, que se cruzou nestes espaços interiores da cidade do Porto em finais do século XVIII.

NOTAS DE RODAPÉ:

1 Le Virloys Roland, Dictionnaire d`Architecture, Civile, Militaire Et Navale, Antique, Ancienne et Moderne, Et De Tous les Termes sont exprimés. Auquel On A Joint Une Notice des Architectes Ingénieurs, Peintres, Sculpteurs Graveurs et autres artistes les plus célèbres, dans on rapporte les principaux Ouvrages. Paris, Chez les Libraires Associés, 1770, vol. I, p. 78.

2 Blondel, De La Distribution des Maisons de Plaisance, et De La Décoration Des Edifices en General, Chez Charles-Antoine Jombert, 1738, II, p. 122, 123.

3 Augustin-Charles D´Aviler, Cours D`Architecture qui Com-prend les Ordres de Vignole (,,,); Par Sieur C.A. D´Aviler, Ar-chitecte. Nouvelle Edition, par Pierre-Jean Mariette., Paris, Chez Charles-Antoine Jombert, 1760, p. 391.

4 D´Aviler, op. cit., p. 378.

5 C.E Briseau, L´Art de Bâtir des Maisons de Campagne où l´on traite de Leur Distribution, de Leur Construction & de leur Décoration, Par de Sieur C. E. Briseau, Architecte. A Paris, Chez Pault Pere, 1743 p. 23.

6 Os primeiros lotes de terreno para a construção foram ad-quiridos em 1795. Em 1805 o Palácio deveria estar concluído. Veja-se in Teresa Viana, Os Carrancas no Porto, Itinerário de uma Família na Cidade entre 1700/ 1800, Porto, Boletim Cultural da Câmara Municipal do Porto, 1989/90, p. 295.

7 Veja-se Viana, op. cit., p.291-350.

8 Maria Clementina Quaresma, “Algumas Obras de Luís Chiari no Porto”, Colóquio, (Fev. 1963), p. 23-25.

9 Quaresma, op. cit., p. 23.

10 Veja-se em Paula Mesquita dos Santos, “Luiz Chiari: Mes-tre entalhador, estucador, cenógrafo e arquitecto em Portugal (1798-1837)”, Museu, IV série, n.º 4, (1995), p. 195-226.

11 Brixeaux, op. cit., p. 20.

12 Em 21 de Julho de 1937 o edifício foi incorporado no Patrimó-nio do Estado para aí ser instalado o Museu Nacional de Soares dos Reis. As obras de adequação do imóvel foram realizadas pela Direcção-Geral de Edifícios e Monumentos Nacionais.

13 Blondel, Architecture Françoise ou Recueil des Plans, Eleva-tions, Coupes et Profils Des Eglises, Maisons Royales, Palais, Hôtels & Edifices les plus considérables de Paris, ainsi que des Châteaux & Maisons plaisance situés auz environs de cette Ville, ou en d´autres endroits de la France, bâtis par les plus célèbres Architectes. & mesurés exactement sur les lieux. Avec la description de ces Edifices, & des dissertations utiles & inté-ressantes sur chaque espèce de Bâtiment. Par Jacques-François Blondel, Professeur d ̀ Architecture. A Paris, rue Dauphine, Chez Charles-Antoine Jombert, Avec Approbation et privilège du Roy, 1752, I, p. 31, 32.

14 Viana, “Os Carrancas e o seu Palácio” [Cat. Exp.] MC/ IPPC, 1984, p.45.

15 Briseaux, op. cit., p. 23.

16 Blondel, op. cit., 1752, I, p. 31, 32.

17 O nicho foi destruído nas obras de renovação do Andar Nobre

para Exposição de Artes Decorativas, realizadas em 2001 sob projecto do Arquitecto Fernando Távora.

18 Robert Adam era natural da Escócia onde nasceu em 1728. Aí estudou arquitectura prosseguindo a sua formação em Itália para onde partiu em 1755 e onde se manteve durante três anos, aí usufruindo de um ambiente intelectual e artístico com contac-tos com personalidades da vanguarda do neoclassicismo como Giovanni Baptista Piranesi e Charles-Louis Clérisseau. De regres-so a Inglaterra estabeleceu-se em Londres, onde trabalhou entre as décadas de 1760 e 1790 para um círculo da aristocracia urbana influenciada pelo Grand Tour e pelo regresso à Antiguidade.

19 Design of the West End of the Dining Room with the Nich & Sideboard, Desenho, Robert Adam, 1762, in Eileen Harris, The Genius of Robert Adam, his interiors, Yale University Press, New Haven and London, 2001, p. 33, il. 43.

20 Harris, op. cit., p. 33, il. 42.

21 Harris, op. cit., p.33, il. 42,43.

22 The Works in Architecture of Robert and James Adam, Henry Hope Reed (Int.), New York, Dover Publications, 2006, pl. 16.

23 Citado por Harris, op. cit., p. 74.

24 Viana, op. cit. 1984, p. 18.

25 Harris, op. cit., p. 162, il. 233.

26 Harris, op. cit., p. 110, il. 165.

27 Entre 1861-1910. Veja-se Paula Carneiro, “O Paço Real do Porto: Interiores, Vivência”, Museu (1995), IV série, n.º 3, p. 59-85.

28 D´Aviler, op. cit., p. 399.

29 Carlos de Passos, Guia Histórica e Artística do Porto, Porto, Editora Figueirinhas, 1935, p. 275.

30 D´Aviler, op. cit., p. 398.

31 Mobiliário atribuído a Luís Chiari por Quaresma, op. cit., p. 23-25.

32 Santos, op. cit., p. 206.

33 Santos, op. cit., p. 206.

34 Ornamento designado como “leque antigo” ou “véu ondu-lado”.

35 Carlos Bastos, Nova Monografia do Porto, Porto, Companhia Portuguesa Editora, 1938, p. 302.

36 Enrico Colle, “Il Ducato di Parma: decorazioni d´interni e manifatture”, in Il Neoclassicismo in Italia, da Tiepolo a Canova, [Cat Exp.], Milão, Skira, 2002, p. 299-300.

37 Colle, “Il Ducato di Milano: decorazioni d´interni e manifattu-re”, in Il Neoclassicismo (…) op. cit., p. 339-342.

38 Disponível na Internet: http://www.monumentos.pt/Monumen-tos/forms/002_C.aspx; 03/02/2008

39 Disponível na Internet: http://www.monumentos.pt/Monu-mentos/forms/002_C.aspx; 03/02/2008

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Maria Augusta Pires Marques Martins

Técnica Superior na Divisão de Pa-trimónio Cultural da Câmara Muni-cipal do Porto desde 1987.

Habilitações literárias.Licenciatura em Artes Plásticas – Pintura, pela Escola Superior de Belas Artes do Porto..Curso de Pós-Graduação em Muse-ologia pela Faculdade de Letras da Universidade do Porto..Curso de Pós-Graduação em Gestão Estratégica do Património na Admi-nistração Pública e Autárquica – IS-PGaya/ IPPAR, 2005.

1. Avelino Ramos Meira

Avelino Ramos Meira, nasceu em Afife, Viana do Cas-telo, a 12 de Janeiro de 1874 e faleceu na freguesia de Miragaia, Porto, a 10 de Agosto de 1953.Frequentou o Curso de Construção Civil no Instituto Industrial e Comercial do Porto, um ensino especiali-zado nas artes aplicadas e nas artes industriais. Alicer-çou então os conhecimentos de desenho, modelação e ornamento, disciplinas balizadoras da sua prática profissional enquanto mestre-estucador.A 12 de Fevereiro de 1908, a Câmara Municipal do Porto confere-lhe o Diploma de Mestre-de-Obras1 e, em 21 de Março de 1925 obtém o registo n.º 37 no Livro de Registo Geral de Técnicos de Construção Civil.Obtém a carteira profissional de Construtor Civil a 1 de Julho de 1941, tornando-se o sócio n.º 110 do Sindicato Nacional dos Construtores Civis.A Câmara Municipal do Porto concede-lhe, a 23 de No-vembro de 1941, a Licença n.º 11 do Registo de Inscrição de Técnicos, permitindo-lhe assinar projectos e dirigir obras no concelho.Nessa qualidade, o seu nome é referido em, pelo me-nos, 23 licenças concedidas pelo Município do Porto entre 1909 e 1937, na maioria para execução de obras de 2ª categoria2. É no Porto que se estabelece fundando a Oficina de Construção Civil “Avelino Ramos Meira”, sedeada no n.º 236 da Rua do Rosário, na freguesia de Cedofeita, a qual se especializou nas artes do estuque e da pintura decorativa. Esta oficina poderá ter iniciado a sua actividade logo nos primeiros anos do século XX, possivelmente ainda sob impulso de seu pai António Pinto Meira3, tendo continuado naquele local com Avelino e onde também fixou residência4. Cumulativamente, Avelino Ramos Meira desempenhou o cargo de Presidente da Junta de Freguesia de Afife nos anos de 1926 até 1942 e de 1947 (?) a 1953, cum-prindo cerca de 22 anos de mandato.Foi autor de Afife (Síntese Monográfica), excelente fonte que nos permite perceber a evolução da arte do gesso, os mestre, as técnicas, etc..Filho de Maria Rosa Alves Ramos Meira e de António Pinto Meira (1847/1904), o qual foi em novo estucador e imitador de mármores e depois mestre-de-obras5, Avelino seguiu uma actividade profissional já enraiza-da no seio familiar. Além do pai, foram também influentes na sua carreira os tios paternos, José Pinto Meira (1847/1900) que fazia quase todos os desenhos e modelações para obras dos diversos empreiteiros do Porto6 e Luís Pinto Meira (1849/1908) grande artista de desenho e modelação de ornatos, contando entre as suas principais obras no

Porto, a decoração da Capela do Cemitério de Agra-monte7 e vários trabalhos no Palácio da Bolsa, onde trabalhou durante 40 anos, primeiro como artista mo-delador e estucador, e por último como empregado, dirigindo os trabalhos de conservação do edifício8. É contudo o Salão Árabe, o mais esplendoroso trabalho executado sob a sua direcção, considerado, segundo o Dr. Flórido a mais espectacular realização romântica do estuque em Portugal9. Outros familiares que se notabilizaram neste ramo ar-tístico foram: Domingos Meira10 (1850/1928), um dos mais importan-tes mestres-estucadores e decoradores portugueses da Escola de Afife11, da segunda metade do século XIX e primeiras décadas do século XX.Em Lisboa, fundou uma das mais importantes oficinas, onde acolhia bons estucadores seus conterrâneos, en-tre os quais podemos destacar Francisco Enes Meira, grande modelador falecido em 1938, sendo portanto sogro e primo de Avelino Ramos Meira.Na capital e arredores, Domingos Meira deixou obra numerosa e de reconhecido mérito, como a do Caste-lo da Pena, que lhe valeu o título de comendador da Ordem de Cristo.No Porto, são-lhe atribuídas as obras do Grande Hotel do Porto e do Palacete Braguinha (actual Faculdade de Belas Artes), sendo que, neste último, as sucessivas renovações e adaptações do edifício, conduziram ao total desaparecimento das decorações em estuque.Os Meira constituíram uma verdadeira dinastia de exí-mios estucadores, que perdurou por mais de um século e meio de actividade, deixando a sua arte disseminada de norte a sul do país.Cabe a Avelino Ramos Meira a derradeira missão de concluir este ciclo de prodigiosos mestres-artífices, prolongando a actividade da oficina até ao fim da vida (1953), transitando nessa altura para a posse do seu sobrinho Avelino Meira Ramos.As pacientes decorações em estuque de excelente qua-lidade técnica deram lugar a soluções simples, em que o trabalho do estucador quase se resumia à prepara-ção do gesso e a correr os ‘contra-moldes’.Assim, neste último período de laboração, esta oficina executou sobretudo trabalhos de conservação e res-tauro nomeadamente na casa de S. João Novo (Museu de Etnografia) e Casa Barbot (actualmente Casa da Cultura da Câmara Municipal de Vila Nova de Gaia).Encerrou portas em Dezembro de 1999, tendo sido a última do seu género no Porto.Por iniciativa de Maria Alina Meira Ramos12 o espólio foi doado à Câmara Municipal do Porto em Julho de 2001, encontrando-se em depósito no Banco de Mate-riais do Departamento Municipal de Museus e Patri-mónio Cultural.

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2. A Oficina

Integrado num conjunto de frente urbana característica do século XIX, o edifício n.º 236 da Rua do Rosário é composto por piso térreo, onde funcionou a oficina, e 1.º andar destinado a habitação, numa área total de cerca de 700 m2 incluindo o logradouro. Vista do lado da Rua, aparenta ser uma casa de habita-ção corrente, sem quaisquer indícios que a relacionem com uma oficina de construção/ornamentação. Aceden-do ao interior via-se um imenso mostruário de peças dependuradas nas paredes, como se de uma página de catálogo se tratasse. Nos seus tempos áureos, era ali que se concebiam os modelos ou protótipos dos ornatos em estuque os quais, depois de repetidos eram levados para as obras e aí aplicados ou ‘corridos’ de forma directa sobre as superfícies dos tectos e paredes.A oficina extrapolava assim a sua área de acção para os locais de trabalho – o lugar onde o desenho e o modelo se transformavam em obra – onde eram cria-das verdadeiras oficinas de modelação. Dentro da sua especialização, esta oficina, foi uma das mais prestigiadas do Porto na primeira metade do século XX, não podendo, contudo, igualar-se, quer em dimensão quer na própria especialização, à sua congénere, propriedade dos irmãos Baganha, como aliás, o podemos comprovar nas palavras de Avelino: Na época moderna, (…) [entre 1910 e 1945], têm-se feito muitos trabalhos de decoração, em estuque, es-tilo Luís XV e XVI, no Pôrto e terras do norte. Nesta época, os melhores modeladores têm sido os irmãos Baganha, António e Joaquim, naturais da freguesia de Areosa (Viana do Castelo), os quais sempre preferiram os estucadores de Afife, para colaborarem com êles nos seus trabalhos13.Os irmãos Baganha executaram muitas obras de par-ticulares e públicas nomeadamente para a Câmara Municipal do Porto, no projecto de melhoramento e embelezamento das avenidas de Montevideu e Brasil e construção da pérgola, nesta última14.Após a morte de António Enes Baganha, ocorrida aci-dentalmente em 1934, a oficina prossegue por mão de Joaquim Enes Baganha, contando entre as suas prin-cipais obras, o desenho e modelação da decoração interior do edifício do Banco de Portugal, na Praça da Liberdade, Porto.Verificámos uma estreita colaboração entre as oficinas dos Baganha e dos Meira, ambas localizadas na Rua do Rosário, executando trabalhos complementares numa mesma obra, consoante a sua área dominante.Assim sucedeu na sede do Banco de Portugal acima re-ferida, onde, aos trabalhos de modelação de Joaquim

Baganha se juntaram as obras de estucador, realizadas por Avelino Ramos Meira, como mestre-de-obras, in-cluindo todos os trabalhos de mármore artificial, em colunas, pilastras e outros motivos decorativos do mesmo género, (…) [que] foram feitos por António Silva, de Afife e por Joaquim Gonçalves, natural do concelho da Maia (Porto)15. O mesmo se verifica em 1951 no Hotel Infante de Sa-gres onde Avelino executou os trabalhos de pintura e estucador cabendo à Oficina Baganha & Irmão Ld.ª o fornecimento de todos os motivos decorativos em gesso para os tectos e paredes16;Avelino Ramos Meira é, como já o dissemos, Mestre-de-Obras e Construtor Civil, sendo porém, na área das

Fotografia 1: Vista do edifício da Rua do Rosário, 236 em 2006.

artes decorativas aplicadas à arquitectura que se espe-cializa, trabalhando com alguns dos melhores arqui-tectos do seu tempo, o que nos confirma a confiança destes arquitectos nos serviços da sua oficina para a materialização dos seus projectos.À sua oficina é atribuída a intervenção em prestigiados edifícios como o do Grande Hotel da Bela Vista (Cal-delas) e as Empresas Termais de Vidago (Melgaço) e Pedras Salgadas. No Porto, além das obras já referidas, temos ainda indicação de ter colaborado em grandes empreendi-mentos públicos e privados tais como: – interior dos Bancos Inglês, Espírito Santo e Nacional Ultramarino, Clínica Dr. Alberto Gonçalves e Colégio Luso-Francês;– Mercado do Bolhão, à época, uma construção de ca-rácter monumental cujo projecto reformulado e apro-vada em 1914, foi subscrito pelo engenheiro Casimiro Barbosa e pelo arquitecto António Correia da Silva.A atitude projectual e construtiva desenvolvida no Mercado do Bolhão demonstra o conhecimento das realidades locais, as possibilidades técnicas e eco-

nómicas, respondendo positivamente aos princípios programáticos e à utilização do Betão Armado, dando preferência a este material, pela sua “rapidez de exe-cução, durabilidade, economia de conservação, e de facilidade de adaptação ao ornamento arquitectural”17. Com o passar dos anos, verificou-se uma progressiva degradação do edifício, nomeadamente dos elementos decorativos e escultóricos, todos levantados em cimento;– Empreitada de acabamento da Maternidade de Júlio Dinis que decorreu entre 1934 e 1938, na qual Avelino Ramos Meira fez parte da Sociedade de Construtores Civis constituída para o efeito, cabendo-lhe a gerência de trolhas e estucadores18. A construção já havia ini-ciado em 1928 sob projecto do arquitecto suíço George Epitaux tendo dirigido as obras os arquitectos Baltazar de Castro e Rogério Azevedo;– Palácio do Comércio (1946) na Rua de Sá da Bandei-ra, da autoria dos arquitectos Maria José Marques da Silva e Moreira da Silva, para onde foram chamadas as mais distintas casas entre as quais a de Avelino Ra-mos Meira a quem foi confiado o honroso e delicado trabalho de intervir nos diferentes trabalhos do seu

Fotografia 3: Grupo de estucadores nas Pedras Salgadas. Col. Maria Alina Meira Ramos.

Fotografia 2: Vista do interior da oficina em 2001.

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«metier»19. Toda a obra de estuque foi contudo re-alizada pela Sociedade Cooperativa dos Estucadores Portuenses; – Edifício sede da Associação dos Comerciantes do Por-to20, na Av. de Rodrigues de Freitas, n.º 200, edificada em 188921 por Casimiro José da Silva a partir do risco do arquitecto José Geraldo da Silva, considerado um dos maiores arquitectos da Escola do Porto da segunda metade do século XIX, onde mais tarde, possivelmen-te em 1909 e na década de 40, Avelino terá realizado obras conforme indicação explícita em dois ‘moldes de correr’ que fazem parte deste nosso espólio.Visitado o edifício, verificámos a identidade dos refe-ridos moldes aplicados no tecto da sala da Direcção, bem como de outros ornamentos no Salão Nobre. Nes-ta dependência, todos os paramentos são exuberante-mente pintados, ora sobre tela, ora directamente sobre o fundo estucado, relegando os ornatos em estuque à função de emolduramento. Destacam-se dois grandes medalhões no tecto, datados de 1909 e assinados pelo artista Paulino Gonçalves22, curiosamente, o mesmo autor de dois “quadros” em azulejo que ladeiam a es-cadaria interior deste mesmo edifício.

Supomos também uma boa relação profissional dos Meira com o arquitecto Marques da Silva (1869-1947). Primeiro, em 1898, com Luís Pinto Meira na decoração do Salão do Tribunal do Comércio e Sala da Direcção do Palácio da Bolsa, na casa Ramos Pinto & Irmão23, na estucagem das paredes e tectos da casa-mãe dos Ra-mos Pinto, em S. Roque da Lameira24 e mais tarde, pro-vavelmente logo a partir da morte de Luís Pinto Meira, em 1908, com o sobrinho deste, Avelino Ramos Meira.Como prova desta ligação, podemos referir a licença requisitada à Câmara Municipal do Porto em 1911 por Avelino Ramos Meira para o levantamento de passeio25 na casa-atelier do próprio arquitecto Marques da Silva, na Praça do Marquês de Pombal, 44.António Cardoso refere também que um Meira (pro-vavelmente já Avelino) executou os tectos de estuque nas casas do Dr. José Domingues de Oliveira e Ernesto Nogueira Pinto, em Leça da Palmeira26, no período en-tre 1906 e 1908, aquando da direcção das obras por Marques da Silva.Ainda segundo o mesmo autor, Avelino Meira também trabalhou com Marques da Silva no Palácio da Brejoei-ra, em Monção, nomeadamente no teatrinho Apolo.Muitas outras obras realizadas por esta oficina ficarão no anonimato por falta de documentação e da realiza-ção de um levantamento que nos permita complemen-tar este nosso esboço.

3. O espólio: “Uma quase infinita multidão de formas nascidas na mente humana (…)27”

3.1 Modelos, moldes e formasO espólio proveniente da Oficina Avelino Ramos Meira é constituído por 872 peças, das quais 784 em estu-que28, onde se incluem modelos para aplicação direc-ta, moldes ou matrizes e formas ou contramoldes, que se destinavam à reprodução em série, consoante a sua adaptação ao local de aplicação, o gosto dos encomen-dadores e a sensibilidade artística dos estucadores.Os ornatos eram modelados em barro, passados a ges-so com moldes de gesso, cera ou de gelatina e depois colados nas superfícies que se pretendia ornamentar.A operação de multiplicação das peças é evidencia-da em alguns moldes através das várias camadas de goma-laca ou de outro tipo de impermeabilizante, o que significa que foram repetidamente contramoldados e utilizados.

Fotografias 4 e 5: Av. de Rodrigues de Freitas, n.º 200 (Salão Nobre).

Já quanto ao seu modelador, fundidor, data de realiza-ção ou locais de aplicação as informações são escas-sas, salvo raras excepções:– um centro de tecto com flores e frutos que refere “Porto 4-9-909/ José e António /enxerto (…)”;– um friso de pérolas com legenda “31-12-944 DM”;– uma peça com a referência a “Narciso/ 6-10-1934 / Afife” .Além das peças em estuque, este espólio integra ainda cerca de 88 ‘moldes de correr’ de diferentes perfis, que se destinavam à execução de sancas e frisos. Estas peças eram constituídas por uma estrutura de madeira formando ângulo recto, onde era fixada uma chapa de zinco com o perfil do desenho que se pre-tendia obter. Tinham ainda uma pega para permitir empurrar e “correr” o gesso até se obter os perfis de-sejados em função do seu desenho. As sancas eram corridas no ângulo formado pelos paramentos com os tectos, enquanto os frisos eram aplicados nas superfícies. (Fotografia 8)

Fotografias 6 e 7: Peças G231 e G771.

3.2 Motivos decorativos e fontes de inspiração

Podemos agrupar as peças desta ‘colecção’ pelo mo-tivo decorativo que representam e pela sua forma, sendo esta condicionada ao espaço que pretende or-namentar.Tal como refere o Dr. Flórido de Vasconcelos, os or-natos de gesso apostos às estruturas dos edifícios dependem, em primeiro lugar, do local em que se in-serem, isto é da forma das superfícies que vestem29.Neste contexto, podem distinguir-se as ornamentações para tectos, onde cabe toda uma panóplia de centros (medalhões), cantoneiras, frisos, toros e faixas.

Fotografia 8: Molde de Correr, peça G808. Fotografias 9, 10 e 11: Peças G112; G108; G056.

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FONTES ARQUIVÍSTICAS:

AGMP/ CMP (Arquivo Histórico Municipal do Porto/ Câmara Municipal do Porto)Livro do Registo Geral de Construtores Civis do Concelho do Porto, n.º 2, Registo n.º 106, fl. 18.

AHMP/ CMP (Arquivo Histórico Municipal do Porto/ Câmara Municipal do Porto)Livro de Licenças de Obras n.º 227, Vol. 15 – Lic.ª 718/ 1909, de 14 de Junho n.º 237, Vol. 36 – Lic.ª 1765/ 1909, de 21 de Dezembro n.º 274, Vol. 109 – Lic.ª n.º 2025/ 1911, de 7 de DezembroLivros de Plantas de Casas n.º CXII – Lic.ª n.º 490/ 1889, de 7 de Agosto,

DMPC/ CMP (Divisão Municipal de Património Cultural/ Câmara Municipal do Porto)Base de Dados de Licenças de ObrasIPAP – Inventário do Património Arquitectónico do Porto. MASSENA, Joaquim Orlando Fonseca – «Relojoaria Mendonça. Parte de um todo – Candidatura ao Prémio João de Almada 2002»

FONTES BIBLIOGRÁFICAS:

GRAÇA, Manuel de Sampayo Pimentel Azevedo – Construções de Elite no Porto (1805-1906). Porto: Edição do Autor, 2004 (Dis-sertação de Mestrado em História da Arte em Portugal apresen-tado à Faculdade de Letras da Universidade do Porto).

MEIRA, Avelino Ramos – Afife (Síntese Monográfica) (2.ª Edi-ção). Afife: Junta de Freguesia de Afife, 2004.

SANTOS, Ana Paula Machado dos – «A Oficina Baganha: Uma colecção no Museu Nacional Soares dos Reis», Museu, Série IV, n.º 4, 1995.

SILVA, Eduarda Moreira da – Técnicas Tradicionais de Fingidos e de Estuques no Norte de Portugal. Contributo para o seu es-tudo e conservação. Évora: Edição do Autor, 2002 (Dissertação de Mestrado em Recuperação do Património Arquitectónico e Paisagístico apresentada à Universidade de Évora).

VASCONCELOS, Domingas Isabel Costeira da Rocha de – A Pra-ça do Marquês de Pombal na Cidade do Porto: das suas origens até à construção da Igreja de Nossa Senhora da Conceição. Porto: Edição da Autora, 2004 (Dissertação de Mestrado em His-tória da Arte em Portugal apresentado à Faculdade de Letras da Universidade do Porto).

VASCONCELOS, Flórido de – Estuques Decorativos no Norte de Portugal» [Catálogo da Exposição de Fotografias do Inven-tário de Estuques Decorativos do Norte de Portugal]. Porto: Fundação Calouste Gulbenkian/ Centro Regional de Artes De-corativas, 1991.

VASCONCELOS, Flórido de – Os Estuques do Porto, Col. «Porto Património – 1». Porto: Câmara Municipal do Porto, Departa-mento de Museus e Património Cultural, Divisão de Património Cultural, 1997.

VASCONCELOS, Flórido de – «Introdução a um Inventário dos Estuques do Porto», Centro de Estudos Humanísticos Studium Generale, n.º 1 – Estudo e Defesa do Património Artístico. Por-to: Ministério da Cultura/ Delegação Regional do Norte, 1984.VASCONCELOS, Flórido de – «Notas sobre Estuques do Porto», Revista ARPPA, n.º 1, 1.º Semestre de 1987.

Vasos e taças, balaústres, monogramas, figurações humanas e de animais fantásticos, sob forma de mas-carão ou carranca complementam esta diversidade de ornatos.Numa última análise, verificámos que muitos dos ele-mentos decorativos desta colecção se encontram re-petidos também no exterior dos edifícios da cidade, neste caso, ‘fundidos’ em bronze, cimento ou copiadas em granito, por serem materiais mais resistentes e du-radouros. A título de exemplo, refira-se uma frente comercial na Rua de Santa Catarina, n.º 250, datada de 1922, em que todos os ornatos foram levantados numa argamassa de cimento e executados com a mesma técnica de cons-trução dos elementos em estuque.

Estuques do Porto - O Contributo dos Meiras Maria Augusta Pires Marques MartinsEstuques do Porto - O Contributo dos Meiras Maria Augusta Pires Marques Martins

Fotografia 12: Peça G061Fotografia 13: R. Santa Catarina, 1316; utilização do modelo G061.

Fotografia 14: Peça G049.

Destinados também às paredes, os frisos e toros têm nesta ‘colecção’ grande variedade de motivos, quase todos de inspiração clássica, como gregas, óvulos, dar-dos, folhas de acanto, ondas, heras, dentículos, denta-dura, pérolas, modilhões, discos, rosário, ziguezague, etc., sendo os que mais se repetem são os de folhas de loureiro (cerca de 25 exemplares), ora simples, ora combinados com folha de carvalho, entrelaces, etc. A preferência pelas folhas do loureiro e carvalho esta-rá associada ao seu significado de glorificação, militar ou civil. Além destes, outros elementos vegetais aparecem mo-delados em gesso como rosas, margaridas e frutos, dispostos em grinaldas, em festões, em taças ou em faixas e também malmequeres, nestes últimos numa estilização próxima da ‘Art Deco’.As poucas referências à Arte Nova estão patentes nos medalhões alusivos às estações do ano, como o Verão e a Primavera30.Surgem ainda combinações com instrumentos musicais que se destinavam às salas de música e salões de baile de edifícios apalaçados e motivos religiosos mais vo-cacionados a locais de culto.

Para as superfícies verticais, encontramos ainda uma gama de peças que embora pertencentes ao vocabulá-rio arquitectónico, quando aplicadas, cumprem apenas uma função estritamente ornamental ou decorativa. Incluem-se aqui, cachorros, mísulas, consolas, tímpa-nos, e capitéis de pilastras e de colunas bem ao estilo clássico.

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Estuques do Porto - O Contributo dos Meiras Maria Augusta Pires Marques MartinsEstuques do Porto - O Contributo dos Meiras Maria Augusta Pires Marques Martins

NOTAS DE RODAPÉ:

1 Cf.: AGMP/ CMP – Livro do Registo Geral de Construtores Civis do Concelho do Porto, n.º 2, Registo n.º 106, fl. 18.

2 Cf.: DMPC/ CMP – IPAP – Inventário do Património Arqui-tectónico do Porto. DMPC/ CMP – Base de Dados de Licenças de Obras.

3 A presença de António Pinto Meira é indicada no Almanaque do Porto e seu distrito entre 1894 e 1896-99 na Rua da Carva-lhosa, 47 e em 1906 no Annuário do Commercio do Porto na Rua. do Rosário, 236 (informação disponibilizada por Maria de São José Pinto Leite).

4 Cf.: AHMP/ CMP – Livro de Licenças de Obras, n.º 227, Vol. 15, fl. 85-95 – Lic.ª n.º 718/ 1909, de 14 de Junho. Licença para construção de moradia na Rua de Guerra Junqueiro, n.º 24, onde o próprio Avelino Ramos Meira assina o termo de respon-sabilidade da obra, indicando por sua morada o edifício n.º 236 da Rua do Rosário. Uma outra licença camarária do mesmo ano refere um pedido de obras de saneamento para aquele edifício pelo próprio Avelino Ramos Meira, na qualidade de constru-tor civil, e pelo proprietário do imóvel – Jacinto de Oliveira. [AHMP/ CMP – Livro de Licenças de Obras, n.º 237, Vol. 36, fl. 311-314 – Lic.ª n.º 1765/ 1909, de 21 de Dezembro].

5 Cf.: MEIRA, Avelino Ramos – Afife (Síntese Monográfica) (2.ª Edição). Afife: Junta de Freguesia de Afife, 2004, p.113.

6 Cf.: IDEM, Ibidem, p.113.

7 Indicação fornecida por Avelino Ramos Meira, contudo, se-gundo o Dr. Flórido de Vasconcelos foi António Almeida Costa que executou os estuques desta Capela. C.: Cf.: VASCONCELOS, Flórido de – Os Estuques do Porto, op. cit., p. 78.

8 Cf.: IDEM, Ibidem, p.113.

9 Cf.: VASCONCELOS, Flórido – Os Estuques do Porto, Col. «Porto Património – 1». Porto: Câmara Municipal do Porto, Departamento de Museus e Património Cultural, Divisão de Pa-trimónio Cultural, 1997, p. 72.

10 Domingos António de Azevedo da Silva Meira [Domingos Meira], natural de Afife, começou a sua actividade artística aos 14 anos de idade, em Lisboa, com Rodrigues Pita, (natural de Carrêco), de quem, à morte, assumiu a chefia do atelier. Traba-lhou com alguns dos melhores arquitectos do seu tempo, como Rambois e Cinatti. Da sua obra, destacam-se: O Castelo da Pena (Sintra), Palácio das Necessidades (Lisboa), Chalet da Rainha D. Maria Pia (Estoril), Sala do Conselho de Estado do Ministério do Interior, Palácios do Duque de Loulé e do Duque de Palmela (ac-tual Procuradoria-Geral da República, Lisboa), do Marquês da Praia e Monforte, do Marquês de Faial, do Marquês de Pombal, do Marquês da Foz, do Conde da Folgosa, da Condessa do Por-to Covo, do Conde de São Marçal, do Conde de Nova Goa, de Cabral, do Conde de Daupias, do Conde da Boavista, do Conde de Geraz do Lima, do Conde de Paço de Lumiar, da Viscondes-sa de Reboredo, do Visconde de Porto Salvo, de Monserrate (Sintra). Câmara Municipal de Beja (1883), Palácio Barahona (Évora, 1884), Teatro Garcia de Resende (Évora, 1889), Palace-te Lima Mayer (Lisboa), e do Conselheiro Morais de Carvalho (galeria). Casas de Alfredo Guedes, do Dr. Manuel de Castro Guimarães, de Francisco Simões Margiochi, de Carlos Eugénio de Almeida, de José e Francisco Ribeiro da Cunha, de Eduardo Coelho, de Alfredo Ribeiro, etc., na Escola Médica de Lisboa (salão nobre e escadaria), Museu de Artilharia (1902), Palácio Sotto Mayor (Figueira da Foz, 1907-1918), Salão do Turf-Club de

Lisboa (Chiado), etc., etc. [Cf.: MEIRA, Avelino Ramos – Afife (Síntese Monográfica), op. cit., p. 110-111].

11 A Escola de Afife é assim chamada por aquela localidade ter sido berço de um conjunto notável de mestres estucadores e decoradores. Por vezes, também recebe o nome de Escola de Viana do Castelo, concelho a que pertence a freguesia de Afife. Destacaram-se, os artistas: José Moreira, o ‘Francês’, um dos primeiros a desenhar e esculpir os ornatos em gêsso que trabalhou no Palácio do Conde de Monte Cristo, em Lisboa, onde, consigo também trabalhou o modelador de estuques An-tónio Amorim; os mestres Bezerras (que, segundo indicações terão trabalhado com Nasoni na Torre dos Clérigos e na Igreja de Santa Marinha, de Vila Nova de Gaia); João Bandeira (que trabalhou na decoração dos tectos da Câmara Municipal de Lis-boa); António e Joaquim Enes Baganha, naturais da freguesia da Areosa; Francisco António Meira (mestre-formador da Escola Industrial de Coimbra), entre os Meiras já citados [Cf.: MEIRA, Avelino Ramos – Afife (Síntese Monográfica), op. cit., p. 105, e 108-110].

12 Maria Alina Meira Ramos, filha de Avelino Meira Ramos e sobrinha-neta de Avelino Ramos Meira.

13 Cf.: MEIRA, Avelino Ramos – Afife (Síntese Monográfica), op. cit., p. 115

14 Cf.: SANTOS, Ana Paula Machado dos – «A Oficina Baganha: Uma colecção no Museu Nacional Soares dos Reis», Museu, Série IV, n.º 4, 1995, p. 306-307.

15 Cf.: MEIRA, Avelino Ramos – Afife (Síntese Monográfica), op. cit., p. 116.

16.[Cf.: «Hotel Infante Sagres», O Comércio do Porto, Sábado, 23 de Junho de 1951, p. 8].

17 Cf.: MASSENA, Joaquim Orlando Fonseca – «Relojoaria Men-donça. Parte de um todo – Candidatura ao Prémio João de Almada 2002», in Arquivo DMPC/ CMP.

18 Cf.: Livro de Actas da Sociedade Particular de Construtores Civis designada Sociedade Saúl & Companhia – Agosto de 1934 a Junho de 1938.

19 Cf.: «A Construção Civil – factor preponderante do desen-volvimento e urbanização da cidade. O seu valor e as suas pos-sibilidades», O Comércio do Porto, Sexta-feira, 13 de Setembro de 1946, p. 5. Segundo informação verbal, Avelino concentrou nesta obra cer-ca de 70 operários, ocupando hierarquicamente as categorias de encarregado de obra, oficial de 1ª, oficial de 2.ª, aprendiz e servente.

20 Integra o conjunto de edifícios com os n.os de polícia 192, 194, 200 e 204, classificado como Conjunto de Imóveis de Inte-resse Público, pelo Decreto 735/ 74 de 21 de Dezembro.

21 Cf.: AHMP/ CMP – Livros de Plantas de Casas, n.º CXII, fl. 4-6 – Lic.ª n.º 490/ 1889, de 7 de Agosto, cit. in GRAÇA, Manuel de Sampayo Pimentel Azevedo – Construções de Elite no Porto (1805-1906). Porto: Edição do Autor, 2004 (Dissertação de Mestrado em História da Arte em Portugal apresentado à Faculdade de Letras da universidade do Porto), Vol. I, p. 149, Vol. II, p. 501-507.

22 Paulino Gonçalves, artista que se especializou na pintura de azulejos na Fábrica do Carvalhinho. É autor de inúmeros painéis figurativos de inspiração nacionalista.

23 Marques da Silva fará arranjos nesta casa, intervindo nos escritórios, na modificação da fachada, desenhando móveis e ornatos (com os estuques de Luís Meira (…) [cf.: CARDOSO, António – O Arquitecto José Marques…, op. cit., p. 589.

24 Cf.: CARDOSO, António – O Arquitecto José Marques da Silva e a arquitectura no Norte do País na primeira metade do séc. XX. Porto: FAUP, publicações, 1997, p 590.

25 Cf.: AHMP/ CMP – Livro de Licenças de Obras, n.º 274, Vol. 109, fl. 101-104 – Lic.ª n.º 2025/ 1911, de 7 de Dezembro, cit. in VASCONCELOS, Domingas Isabel Costeira da Rocha de – A Pra-ça do Marquês de Pombal na Cidade do Porto: das suas origens até à construção da Igreja de Nossa Senhora da Conceição. Porto: Edição da Autora, 2004 (Dissertação de Mestrado em His-tória da Arte em Portugal apresentado à Faculdade de Letras da Universidade do Porto), Vol. II, p. 168.

26 Cf.: CARDOSO, António – O Arquitecto José Marques…, op. cit., p 590.

27 Cf.: VASCONCELOS, Flórido de – Os Estuques do Porto, op. cit., p. 28.

28 Estuque – espécie de argamassa composta geralmente de cal, areia fina, pó de mármore e gesso.

29 Cf.: VASCONCELOS, Flórido de – Os Estuques do Porto, op. cit., p. 26.

30 Foi possível localizar estes motivos decorativos no edifício da Rua de Santa Catarina, 1316, antiga Villa Júlia, construído em 1909 segundo projecto de Avelino Ramos Meira para António Pereira da Silva, capitalista. É actualmente sede da Administra-ção Regional de Saúde do Norte.

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1976 – Licenciatura em Filologia Românica na Universidade de Letras do Porto.

De 1977 a 1986 – Prática pedagó-gica como professora do ensino secundário e como leitora de português, em França (Universida-de de Lyon II).

1992 – Estadia em Londres para frequentar o Atelier de Mrs. June Spinella, com vista a uma formação em Conservação e Restauro de Cerâmica.

1994 – Estágio no Museu de Conimbriga, na área de restauro de cerâmica.

Desde 1994, prática no âmbito da Conservação e Restauro de Cerâmica, tanto para clientes par-ticulares e antiquários como para Instituições. Destas últimas salienta-se colaboração com a Casa Museu dos Patudos em Alpiarça, com a Venerável Ordem Terceira de São Francisco no Porto e contribuições pontuais para a Sé do Porto e para a Diocese de Beja.

2002/2004 – Pós-Graduação em Artes Decorativas na Universidade Católica Portuguesa – Núcleo do Porto.

20 e 21 de Outubro de 2006 – Participação nas «I Jornadas sobre o Estuque em Portugal», realizadas na Universidade Católica Portuguesa, com uma comunicação intitulada «Colecção Baganha».

2 a 5 de Maio de 2007 – Participa-ção no Seminário subordinado ao tema «A Presença do Estuque em Portugal», organizado em parceria, pelo Fórum Unesco, pela Univer-sidade Lusíada, pelo Museu do Estuque e pela Câmara de Cascais, com comunicação intitulada «Os Baganha: uma oficina através do

seu espólio».

2007 – Conclusão do Mestrado em Artes Decorativas na Universidade Católica Portuguesa – Núcleo do Porto, com tese intitulada «A Oficina Baganha e os estuques no séc. XX no Porto».

Fevereiro de 2008 – Artigo publica-do na Revista de Artes Decorativas da UCP, intitulado «Os interiores eclécticos da Casa Barbot, em Vila Nova de Gaia».

Abril de 2008 – Lançamento do li-vro intitulado «A Oficina Baganha e os estuques no séc. XX no Porto» com o patrocínio do CITAR, UCP.

20 de Setembro de 2008 a 6 de Ja-neiro de 2009 – Participação como Comissária Científica na Exposição «A Oficina Baganha e os estuques no séc. XX no Porto», patente no MNSR.

Maria de São José Pinto Leite

No início do século XVIII, e irradiando de Itália, as-sistiu-se na Europa a uma proliferação da decoração estucada. Em Portugal, tal difusão esteve intimamente ligada às reformas levadas a cabo pelo Marquês de Pombal a seguir ao terramoto de 1755 visando, não só a reconstrução de Lisboa, mas também a moder-nização do país e a sua equiparação aos demais pa-íses europeus1. No norte, a introdução e implantação dos estuques fez-se lentamente pela tradição dos revestimentos de madeira e também pela dificuldade de obtenção de matéria-prima devido à composição maioritariamente granítica dos solos2. No entanto, im-plantado o liberalismo, o Porto entrou numa época de desenvolvimento: o século XIX e os primeiros anos do século XX foram de grande vitalidade e a cidade cres-ceu, impulsionada pelas ambições de uma burguesia empreendedora ligada ao comércio e à indústria. Muito relevantes, foram, por um lado, as acções da numerosa colónia inglesa ligada ao negócio do vinho do Porto que fez vir estucadores do seu país de origem para as obras da Feitoria Inglesa, influenciando notoriamente o gosto dos portuenses pela estética neoclássica; por ou-tro lado, o regresso dos brasileiros de «torna-viagem» que encomendaram para habitação própria e para fins assistenciais numerosas construções onde patentearam a sua fortuna e posição. Tal surto construtivo incrementou a abertura de nume-rosas oficinas a que a decoração estucada e a escultura decorativa não foram alheias. Cedofeita foi escolhida por, pelo menos, duas das mais importantes linhagens de mestres estucadores para aí se instalarem: os Ba-ganha e os Meira.É à primeira dessas casas que o Museu Nacional de So-ares dos Reis dedica a exposição patente nas suas ins-talações. Tendo recebido um imenso legado de gessos das mãos do seu último proprietário, Domingos Enes Baganha3, o MNSR congregou esforços com a firma CRERE4 e com familiares, as três entidades depositárias do espólio, para organizar uma exposição que seja o testemunho do talento e do saber fazer dos estucado-res daquela época. Metodologicamente, foi decidido dividir o espaço em núcleos: o 1º, focado na produção oficinal à luz das gramáticas decorativas mais significa-tivas, o 2º, na família e relações, o 3º, na obra estuca-da propriamente dita. Na prossecução deste objectivo, escolheram-se painéis verticais, vitrinas e plintos, nos quais se apresentam, lado a lado, desenhos, moldes em gesso e gravuras, assim como recordações da vida e da produção dos vários membros da família: fotos, ferramentas e documentos. A integração da exposição no espaço museológico total faz-se através de referências colocadas, a primeira, no hall de entrada, onde, numa vitrina, se mostram frag-

Os Estuques no Século XX no Porto - A Oficina BaganhaMaria de São José Pinto Leite

Figura 1: Vitrina com fragmentos de estuque da estação arque-ológica do freixo.

mentos pertencentes ao campo arqueológico de Ton-góbriga (Freixo), próximo do Marco de Canaveses5; a segunda, no 1ºandar, onde dois cavaletes sustentam modelos em gesso com motivos usados na campanha de obras empreendida no Palácio dos Carrancas pela Direcção Geral dos Monumentos Nacionais e levada a cabo pela Oficina Baganha. O périplo pela exposição propriamente dita, inicia-se com a foto do grupo de estucadores que tomaram parte nas obras do Hotel das Pedras Salgadas. Devidamente uniformizados, dão-nos as boas-vindas6 e remeten-nos para a importância que teve o rei D. Fernando II no res-surgir do apreço pela arte do estuque e pela onda de revivalismos que se fez sentir na construção e decora-ção da época7. É a eles que se dedica o 1º momento do

Figura 2: Foto da equipa de estucadores do Hotel das Pedras Salgadas.

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percurso: a produção da Oficina não ficou imune ao es-pírito romântico que fez despertar as gramáticas deco-rativas do passado medieval, embora maioritariamente se tenha dedicado às decorações de cariz neorococó e neoclássico. Para as zonas de receber, a preferência ia para os concheados, os motivos “asa de morcego”, as volutas em S desenvolvendo-se assimetricamente, numa profusão decorativa muito própria da gramática “rocaille”. Nos ambientes íntimos, surgiam decorações mais simples, jogando com grinaldas e hastes floridas, fitas e laços, molduras de óvulos e dardos, de gregas e caneluras, ao gosto clássico. Para documentar as correntes estéticas mencionadas, apresentam-se dese-nhos de motivos soltos e de ambientes decorativos, acompanhados de folhas de álbuns da época e mol-des em gesso, dos quais destacamos centros diversos e um jogo de sobreporta e entreporta. Da biblioteca familiar, e atendendo à influência que os tratados e álbuns estrangeiros terão certamente tido na produ-ção, escolheram-se gravuras que exibem duas salas de jantar, uma neorenascentista e outra neogótica8, um salão «Luís XIV», um quarto «Luís XV» e um último quarto «Luís XVI». Mas o labor oficinal foi contagiado pelos ventos de mudança que sopraram nas Exposições Universais de Paris de 1900 e 1925, trazendo estilos de características inusitadas, a Arte Nova e a Art Déco. O painel seguinte demonstra-o, novamente com gravuras9, desenhos e gessos, representando painéis e elementos decorativos como conchas, tabelas e frisos.Este 1º momento expositivo prolonga-se numa rubrica intitulada «Interpretações», expondo peças com pre-sença relevante nas encomendas da casa. Destaque para desenhos de tectos onde centros muito elabora-dos exibem putti no meio de enrolamentos e ornamen-tos vegetalistas, conjugando-se com frisos sucessivos e de múltiplos motivos. Tal riqueza decorativa encontra eco em alçados interiores com fogões de sala, mísulas, colunas e seus capitéis, sancas e sobreportas profusa-mente decoradas.

Com a abertura das casas para a rua e o aparecimen-to dos jardins frontais, também a ornamentação dos espaços exteriores passou a receber a atenção dos en-comendantes. Assim, segue-se um conjunto de peças destinadas a esses espaços de ar livre, destacando-se carrancas de leão e golfinhos servindo de bica da água, vasos e taças. No 3º núcleo da Exposição, intitulado «Obras na ci-dade», reproduzem-se fotograficamente e através de moldes em gesso, motivos utilizados em edifícios onde trabalharam os vários mestres que levaram o nome Baganha. Mereceram especial atenção uma sobreporta do hotel Infante Sagres, uma mísula do café «A Brasi-leira», uma máscara do Teatro Nacional S. João, uma coluna do café Majestic, uma taça da pérgula instalada na Av. Brasil, na Foz do Douro e um menino em tudo semelhante aos que se expõem no hospital Maria Pia. Num painel com fotografias, apontam-se possíveis per-cursos de estuques a apreciar no grande Porto, com-preendendo espaços públicos com ornamentação que pode ser atribuída à Oficina Baganha.

Falar duma obra sem nos debruçarmos sobre os au-tores da mesma e sobre a clientela que a celebrou é forçosamente limitado. Se para a última, os dados disponíveis são muito raros e incompletos10, os primei-ros são um dos focos importantes da nossa exposição. Estão identificados na assinatura de alguns desenhos e em dois painéis que atestam a formação académi-ca que receberam e a sua contribuição para o labor da Oficina. Em três vitrinas, um conjunto de objectos, documentos e materiais ajudam a essa compreensão11. Destaque para fotos e desenhos rubricados, bilhetes de identidade e diplomas, testemunhos da imprensa e ferramentas, assim como para álbuns de gravuras e livros vários que faziam parte da biblioteca familiar. Desta última, estão visíveis numa vitrina, exemplares do legado de Domingos Enes Baganha, alguns possi-velmente provenientes da casa de seu tio Joaquim12.

Os Estuques no Século XX no Porto - A Oficina Baganha Maria de São José Pinto LeiteOs Estuques no Século XX no Porto - A Oficina Baganha Maria de São José Pinto Leite

Figura 3: Visão geral das «Interpretações» Figura 5: Obras na cidade e vitrina dos amigos

Figura 6: A vitrina da biblioteca e matéria-prima

Ao longo dos sucessivos períodos de laboração, as oficinas da família foram centro de passagem e de en-contro de personalidades da época ligadas às artes e à arquitectura. Lembranças desse convívio encontram lugar na vitrina dedicada aos amigos. Destacamos cabeça de criança de António Teixeira Lopes, retrato autografado de Zeferino do Couto a acompanhar es-tatueta em gesso assinada, carta do Arq.º Marques da Silva, fac-simile duma carta do Arq.º Oliveira Ferreira, bilhetes de José Rosas e carta de Avelino Ramos Meira, todos endereçados a Domingos Enes Baganha.Uma última vitrina remete-nos para os materiais e fer-ramentas utilizados neste mister. Uns são pertença do espólio da Oficina, outros cedidos. Distinguimos mol-des, linhadas, garlopas, ganchetas e tecos, bem como várias amostras de gesso natural de proveniências dis-tintas, com explicações sobre a utilização de cada um, desde a preparação da matéria-prima para o trabalho de estuque até à reprodução dos motivos decorativos.

Uma exibição em Power Point completa a visão do la-bor artístico desta Oficina, alargando algumas rubricas a que a exposição dedicou menor atenção, como a arquitectura funerária ou o desenho de mobiliário e luminária. A terminar, quatro palavras que gostaríamos norteassem a actuação de todos os amantes das artes decorativas e da decoração estucada em particular: documentar, con-servar, restaurar e divulgar. Apelam a que se fotografe, a que se conserve e, quando necessário e possível, se restaure com o merecido respeito pelos materiais e pela época, tendo em vista a difusão do interesse por este património tão rico e tão injustamente subvalorizado – para que as gerações vindouras possam sempre ter contacto, mesmo que limitado, com testemunhos de uma época que alguns estudiosos consideram “das mais fascinantes da história da cidade”13.

Figura 7: Vista da vitrina da família e painel Formação.

Figura 4: Máscara do Teatro S. João

Figura 8: O painel dos percur-sos na cidade.

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NOTAS DE RODAPÉ:

1 Para tal, foi de especial relevância a protecção dada ao mestre italiano João Grossi, convidado a dirigir a Aula de Desenho e Estuque, integrada na Real Fábrica das Sedas, a partir de 1764, não só pelo talento de que deu provas, mas pela geração de artistas que formou e que continuaram o seu labor.

2 Um dos exemplares mais antigos é um tecto em abóbada do Palácio do Freixo, datado de meados do século e atribuído ao italiano Nicolau Nasoni, apesar de se apontar ao mestre lisboeta António Pereira a responsabilidade da iniciação dos estuques no Porto: chamado a trabalhar nas obras da Sé durante o período da Sede Vacante (1717-1741), aí de instalou em 1719 e teve o mérito de formar uma plêiade de alunos que com ele foram os principais divulgadores da decoração estucada

3 Nasceu no dia 7 de Agosto de 1914 na freguesia de Massarelos no Porto, filho de António Enes Baganha e de Maria José Martins de Araújo. Morreu em 1 de Fevereiro de 1994, estando sepultado em jazigo de família no cemitério de Agramonte. Estudou na Escola Industrial Infante D. Henrique; fez ainda o Curso de Arte Aplicada na Escola de Arte Aplicada, depois anexada à Escola de Faria Guimarães, actual Escola de Soares dos Reis. Tal como seu pai, foi mestre de oficina na Escola de Faria Guimarães e ainda ajudante do escultor Sousa Caldas nas cadeiras de modelação e escultura decorativa. Sucedeu a seu pai e tio, na direcção da Oficina por eles fundada, no início do século XX.

4 C.R.E.R.E. – iniciais da firma «Centro de Restauro Estudo e Re-modelação de Espaços, Lda.» criada em 1989 por Paulo Ludgero de Castro com o propósito de conservar e restaurar património no campo das artes decorativas e essencialmente vocacionada para as áreas do estuque e da pintura decorativa. É depositária dos gessos entregues ao MNSR e dona de desenhos, ferramen-tas e parte da biblioteca pertencente à Oficina Baganha.

5 Tais fragmentos atestam do uso do gesso policromado no tempo da civilização romana. Além desta estação arqueológica, têm aparecido fragmentos de estuque argamassado e moldado e painéis de pintura mural sobre estuque de gesso nas estações de Bracara Augusta (Braga), Conímbriga (Condeixa-a-Velha), e Miróbriga (Alcácer-do-Sal).

6 Estes trabalhos foram levados a cabo pela Oficina Meira e a foto cedida por familiares do seu último dono, Avelino Meira Ramos.

7 D. Fernando de Saxe-Coburgo-Gotha, marido da rainha D Ma-ria II, chamou Domingos Meira, de Afife para as obras no Palácio da Pena onde pretendia concretizar um projecto inovador alian-do o gótico ao árabe.

8 As gravuras pertencem ao álbum “Intérieurs d’Appartements de Haut Style vus en perspective d’après les Travaux des Frères Guéret dessinés par Th. Villeneuve”. Paris: Librairie d’Art Déco-ratif Armand Guérinet, Éditeur, [s.d.] que faz parte de espólio.

9 Gravuras retiradas respectivamente, dos álbuns Analypta, [s.l.], [s.n.], [s.d.] e RAPIN, Henri – La Sculpture décorative à l’Exposition des Arts Décoratifs de 1925. Paris: Éd. Charles Moreau, 1925.

10 Nos desenhos expostos, reconhecem-se algumas assinaturas, embora a percentagem com autoria identificada seja diminuta; do mesmo modo, a nomeação dos encomendantes é rara e in-completa. Mas, para a exemplificar, incluímos no 2º núcleo ex-positivo, «Interpretações», uma carranca de leão e golfinhos, da autoria respectivamente de Domingos Enes Baganha e de António

Enes Baganha. Para o primeiro esboço, conhecemos o destinatá-rio, Maria da Costa e Sá da Quinta do Penedo – Santo Tirso.

11 Como já foi dito anteriormente, a colecção que apreciamos hoje foi doada por Domingos Enes Baganha, mas outros mem-bros da família tiveram o seu lugar na saga profissional desta família, quer na 1ª, quer na 2ª geração e estão presentes nesta mostra. Sob o nome Baganha, três casas funcionaram no Porto, na zona de Cedofeita. Dirigidas por diferentes membros da famí-lia, todas se dedicaram à mesma arte, a do estuque e escultura decorativa, para além da actividade de construção civil; no en-tanto, o espólio aqui presente pertence à casa-mãe, fundada por António e Manuel Enes Baganha e gerida nos seus últimos tem-pos por Domingos Enes Baganha, com sede na Rua do Rosário, nº125: é a ela que nos referimos quando utilizamos a expressão «Oficina Baganha». As outras duas pertenceram a Joaquim Enes Baganha, Rua Miguel Bombarda, n.º101 e a António M. Enes Baganha, Rua do Rosário, n.º153, levando esta última o nome de «Atelier de Escultura Decorativa António Enes Baganha».

12 A saber : DALY, César – L’Architecture privée au XIXe. Siècle. Tome I: hôtels privés. Paris: Librairie Générale de l’Architecture et des Travaux Publics, 1870; FARGES, R. (dir. de) – La Décora-tion ancienne et moderne – architecture, ferronnerie, mobilier, décoration murale, motifs d’architecture. Paris: Aulanier & Cie. Ed., [s.d.] ; VIGNOLE– Traité élémentaire pratique d’architecture. Paris: Garnier-Frères, [s.d.] ; DALY, César – Décorations inté-rieures peintes. 1er. volume. Paris: Librairie Générale, [s.d.] e BRISEUX, C.E. – L’Art de bâtir des Maisons de Campagne. Tome second. Paris: Prault Père, 1743.

13 Vd. SOUSA, Gonçalo de Vasconcelos e – Arte e Sociabilidade no Porto romântico. Porto: Citar, 2009, p.13.

Os Estuques no Século XX no Porto - A Oficina Baganha Maria de São José Pinto LeiteOs Estuques no Século XX no Porto - A Oficina Baganha Maria de São José Pinto Leite

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Natural do Porto (1963), licenciada em História/Arqueologia (1984/FLUP), mestra em Arqueologia (1994/FLUP), arqueóloga da Câmara Municipal do Porto desde 1985, foi entre 1996 e 2009 responsável pela Divisão do Património Cultural daquela Autarquia. Entre outros projectos, criou as bases para o lançamento do Inventário do Património Arquitectónico do Porto (IPAP), projecto financiado pelo PRONORTE (1ª fase) e pelo POC (2ª fase). A par da colaboração na de-finição do programa do inventário municipal, coordenou o processo de criação do sistema informático de gestão da informação relativa ao património arquitectónico e arqueológico, LOCVS, projecto que introduz novas abordagens ao problema da produção e gestão da informação em Património. É autora de comunicações e artigos sobre a temática da Arqueologia e salva-guarda do património edificado.

Maria Isabel Pinto Osório Inventário do Património Arquitectónico do Porto - Arquitecturas e materiais: registo e catálogo Maria Isabel Pinto Osório

Divisão M. de património Cultural/DMMPC/DMCPelouro da Cultura, Turismo e Lazer da Câmara M. do Porto

Em boa hora os responsáveis pelo projecto Museu do Estuque, a CRERE, entenderam organizar, juntamente com o Museu Nacional Soares dos Reis, um encontro sobre a temática que dá corpo à colecção do futu-ro Museu do Estuque, convidando outras entidades a partilhar a sua experiência de trabalho no campo da criação, estudo, gestão e conservação desta arte decorativa. O local não poderia ter sido mais apropria-do, porquanto a principal colecção do futuro museu, constituída por um dos mais importantes conjuntos documentais e materiais para trabalho em estuque ar-tístico existente a nível nacional, o espólio da Casa Baganha1, pertence ao Museu Nacional Soares dos Reis, que transferiu para a CRERE a responsabilidade da sua conservação e estudo. Por outro lado, o Palácio dos Carrancas, sede deste museu nacional, conserva na sua arquitectura interior belas ornamentações estuca-das, ao gosto neoclássico, as quais foram restauradas pela oficina Baganha em 1940, no âmbito das obras de instalação do museu na antiga residência e fábrica dos “Carrancas”, a família Morais e Castro, depois adqui-rida pela Casa Real. A Autarquia do Porto não poderia estar à margem desta iniciativa - aceitando o amável convite que lhe foi dirigido para participar – considerando a especi-ficidade da sua missão relativamente ao património cultural, traduzida numa dupla responsabilidade: a de conservar e valorizar os bens culturais existente no seu espaço de actuação, promovendo a correcta preservação dos elementos, arquitecturas e espaços, que concorrem para a sua identidade histórica, e a de dinamizar o estudo em torno desse Património2, criando as condições necessárias para o acesso dos diferentes públicos ao seu conhecimento e fruição. Ou não fosse também a Câmara Municipal do Porto, fiel depositária do importante espólio da antiga oficina Ramos Meira, a qual tem sido objecto de estudo e conservação por uma equipa coordenada pela minha colega Drª Maria Augusta Marques3, responsável pelo Banco de Materiais, um serviço inovador no campo da recolha, tratamento e conservação de diferentes tipo-logias de materiais de construção, com maior ou menor cunho artístico, provenientes de obras particulares e demolições4. A sua pesquisa em torno do trabalho dos estucadores Meira Ramos, conterrâneos dos Baganha e também eles provenientes de Afife, partiu da necessi-dade de classificar e conservar dezenas e dezenas de peças de diferente tipologia e função que integravam a antiga oficina daquela família de estucadores, instalada num edifício da Rua do Rosário, na Cidade do Porto, e que a herdeira deste precioso legado, tendo conhecido

o trabalho desenvolvido no Banco de Materiais, enten-deu ser a reserva apropriada para a sua instalação5.Como todos os que têm a seu cargo a conservação de um acervo cultural bem sabem, a montante da tarefa de preservar uma herança, há, primeiro, que identificar de que é composto o acervo; a identidade está, assim, implícita ao acto de apropriação da herança que cons-titui um processo de inventário. No caso das colecções culturais todo o inventário implica o reconhecimento de um conjunto de atributos a cada peça, por mais su-cinto que seja o rol de descritores. Esta questão leva-nos à temática em que se centra esta comunicação: o tratamento da informação produzida no âmbito dos inventários e dos catálogos do Património, dimensões essenciais quando se trata da gestão de Património Imóvel e Integrado, materializado em construções e materiais que se encontram em grande parte fora da tutela das entidades administrativas responsáveis pela conservação desse Património.

Em nosso entender há diferenças significativas entre um inventário de peças museológicas, e um inventário de elementos de carácter arquitectónico ou arqueo-lógico, integrados em depósitos não definitivos; a inventariação destes últimos obedece a requisitos ne-cessariamente mais flexíveis, visto a sua gestão não se encontrar sujeita às rigorosas normas da tutela museológica, ainda que ambos possam integrar alguns descritores comuns, e ainda que as peças possam ser tipologicamente afins, senão mesmo idênticas6. As diferenças são mais notórias quando se trata de um inventário de bens imóveis, pela capacidade que es-tes têm de interagir com o meio envolvente, no qual adquirem um significado particular, e pela sua maior exposição aos condicionalismos humanos e tempo-rais. Por isso no domínio da Arquitectura um inven-tário quase nunca é inocente. O que está em causa num inventário desta natureza, não é o mero relato de indícios aparentes, visíveis, mas a capacidade de inscrever uma construção, um sítio, um ornato arqui-tectónico, no rol dos bens portadores de qualidade de identidade, seja a nível local, regional, nacional ou mesmo mundial. O que hoje nada vale aos olhos dos concidadãos passa, de um momento para o outro - e porque lhe é atribuído um significado cultural - a estar protegido e a suscitar a curiosidade da comunidade. Pelas consequências que acarreta o reconhecimento do valor cultural num determinado imóvel, um inventá-rio do património arquitectónico7 é sempre palco de discussão quando dá origem a um catálogo, como a chamada Carta do Património, um precioso instrumen-

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Inventário do Património Arquitectónico do Porto - Arquitecturas e materiais: registo e catálogo Maria Isabel Pinto OsórioInventário do Património Arquitectónico do Porto - Arquitecturas e materiais: registo e catálogo Maria Isabel Pinto Osório

to de ordenamento do território e peça integrante dos modernos PDM’s8. Há em muitos inventários do Patri-mónio Imóvel e Integrado um sentido de urgência, de-corrente do desconhecimento generalizado que existe sobre determinados conjuntos urbanos ou tipologias arquitectónicas, situação agravada pelo aspecto de ru-ína ou abandono a que estão votados. O quadro legal que regula a intervenção no Património reconhece esta realidade, permitindo o registo de emergência sempre que está em causa a sobrevivência do imóvel. No caso de um objecto integrado num acervo museológico, está assumida a sua carga cultural pelo que só por decisão técnica fundamentada, e porque o objecto foi “desvalorizado” e perdeu o seu lugar na colecção, se pode justificar o seu desaparecimento.Mas a realidade dos acervos culturais móveis é comple-xa, caracterizada por uma enorme diversidade, sendo tantas as situações quantas as tipologias de “objectos” e os mecanismos e propósitos de quem reuniu as peças ou seleccionou os bens. Há, frequentemente, depósitos cuja constituição de origem é completamente alheia a razões de ordem cultural, nunca tendo estado na men-te do seu promotor a criação de uma colecção para mostra futura num espaço museológico ou expositivo. Como nestes casos, da chamada colecção Baganha e o depósito Meira Ramos, ou Ramos Meira como também é designado: espólios que constituíam, na sua origem, o material de trabalho de duas oficinas de estucado-res9, e só o posterior reconhecimento do seu valor de memória explica o seu “destino cultural”. Valor de memória que a decadência funcional dos ofícios tor-na mais evidente. A incorporação em instituições de vocação cultural, como é um museu nacional e uma direcção de municipal de cultura, teve implícito o re-conhecimento do valor cultural do todo, do conjunto, reconhecendo ambas as entidades que esses espólios eram portadores de valores de memória de antigos ofí-cios e artes decorativas, valores de identidade artística e social de uma determinada época. Contudo, nestes depósitos está implícita uma nova dimensão da função cultural, a da sua utilidade no processo de reabilita-ção das artes tradicionais ao serviço da recuperação arquitectónica, abrindo novos desafios às entidades responsáveis pela sua conservação.

E esta relação entre um passado ainda presente e um futuro que queremos sensível à preservação e reuti-lização da arte do estuque, obriga a um tratamento especial destes depósitos, conciliando a sua – ainda presente - função utilitária, e a sua função cultural, de memória. Este reconhecimento deve implicar uma aten-ção especial na forma como os espólios são tratados, desde a concepção do programa de fruição pública, à

sua inventariação e instalação em reserva, e na forma como é tratada e gerida a informação associada. Um molde de uma roseta ou de um canto de tecto da Ofici-na Ramos Meira poderão ser passíveis de reutilização para produção de um novo elemento decorativo, ou serem utilizados no fabrico de réplicas para uso indus-trial. Apenas dependerá do estado de conservação das peças – devem existir as garantias da boa resistência do objecto ao seu manuseamento - e da política de acesso aos bens, definida pela entidade detentora. Mas de nada servem as políticas sem os instrumentos ade-quados à sua implementação, sendo que a estrutura deve ser capaz de dar resposta às solicitações que a prática política potencia. Neste sentido, a informação que resulta do processo de incorporação, tratamento, exposição, estudo ou movimento das peças, deve ser processada no sistema de informação, devendo este ser capaz de integrar e cruzar os dados que cada uma das etapas produz. O sistema informático não visa apenas dar resposta às necessidades que a gestão da informação coloca, ou permitir um acesso mais rápido aos dados e a sua célere ordenação. Um moderno sistema de informação deve ser uma ferramenta essencial ao desenvolvimento das diferentes operações que a gestão de espólios im-plica – incluídas a sua conservação e valorização - e de quem tem por missão a salvaguarda do património construído, esteja ou não soterrado. A análise que está subjacente à arquitectura do sistema deve considerar os requisitos específicos necessários à implementação das funcionalidades identificadas previamente, caso contrário dificilmente a aplicação terá capacidade de as desenvolver.Não vimos aqui descrever com minúcia as fichas de inventário de peças em gesso estucado ou qualquer outro material afim, disponíveis a quem as quiser consultar, mas abordar, necessariamente ao de leve, o complexo universo dos sistemas de informação que hoje substituíram quase por completo os ficheiros de gavetas apinhadas de fichas que a mão humana ia escrevinhando e manuseando. Um tema da maior oportunidade porquanto a temática do processamento e gestão da informação em património edificado não ocupa ainda o devido lugar nas políticas e programas promovidos pela administração central, nomeadamen-te no campo do património arquitectónico, apesar de se tratar de um vector estruturante ao desenvolvimento deste sector.

O Inventário do Património Arquitectónico do Porto (IPAP)

Antecedentes

Em 1998 a Câmara Municipal do Porto deu início ao projecto-piloto de Inventário do Património Arqui-tectónico do Porto (IPAP), apoiado pelo PRONORTE/FEDER, com vista à elaboração de um programa me-todológico-tipo de inventário municipal do património, e à inventariação de uma parcela do tecido urbano da cidade10. Pouco tempo depois do início dos trabalhos, tornou-se evidente que em função dos objectivos – o conhecimento e protecção dos valores patrimoniais – e atendendo à diversidade das situações (arquitectóni-cas, urbanísticas e paisagísticas), o levantamento teria de ser sistemático e não selectivo. Desta forma o IPAP transformou-se num instrumento de registo sistemático do tecido construído da cidade, condição necessária à identificação dos valores que poderiam ser considera-dos património arquitectónico11. Um dos objectivos da candidatura foi produzir um modelo de inventário passível de aplicação em outros concelhos, definindo-se os princípios e métodos que devem orientar o trabalho de levantamento e pesquisa. Tal como na componente de levantamento e caracteri-zação do tecido edificado (que integra a componente paisagística), também a análise e a arquitectura do sistema informático que apoia a gestão da informação produzida, pode ser explorada por outros projectos afins. Contudo à intenção de disponibilização de sabe-res e instrumentos apôs-se o vazio de uma verdadeira política de inventário, que potenciasse apoio financei-ro aos organismos locais e regionais, nomeadamen-te através da criação de uma plataforma fixa anual a que os municípios pudessem concorrer. Desta forma a obrigatoriedade do inventário dos imóveis, sítios e conjuntos de valor histórico e arquitectónico que a lei determina, poderia ser uma realidade a dez anos, se fossem facilitados aos poderes locais, ou a associações de municípios, as ferramentas e as linhas estratégicas que deveriam nortear a sua acção; num programa in-tegrado todos teriam oportunidade de contribuir para uma missão de interesse local, regional e nacional, produzindo um manancial de dados e informações de utilização múltipla, assente num padrão de requisitos que desse garantia da qualidade da informação produ-zida. Um conhecimento que será também um recurso de enorme potencial para muitas áreas vitais ao pro-cesso de requalificação ambiental e desenvolvimento económico do País.A complexidade do tecido edificado do Porto e das suas múltiplas tipologias, e a necessidade de organizar num único sistema toda a informação considerada útil à prossecução dos objectivos em causa, implicou um for-te investimento no estudo das formas de representação das diferentes realidades territoriais, escalas de análise e suportes de registo, bem como na análise dos conte-

údos específicos de cada nível de análise e na definição das articulações/ligações entre as tabelas do sistema. Uma das principais características do chamado registo de rua/arquivo - com implicações na forma como se estrutura a informação no próprio sistema informático – prende-se com o carácter objectivo, factual, das in-formações produzidas. Por outras palavras, os registos realizados pelos técnicos tendem a ser objectivos, sem margem para descrições ou apreciações qualitativas, diminuindo assim a margem de erro na informação produzida. O princípio da economia de tempo, sempre presente em todos os momentos do projecto, e o prin-cípio da qualidade da informação produzida levaram a que não fossem preenchidos os campos de carácter descritivo, reservando-se o contributo de especialistas no domínio da realidade em causa.Definido e testado o programa metodológico e defini-das as bases da arquitectura do sistema de informação de apoio ao IPAP, foi lançada uma nova candidatura em 2003, desta vez ao POC (Programa Operacional de Cultura/FEDER) que decorreu entre 2004 e 200712, tendo sido inventariadas quatro freguesias da Cidade e criado o novo sistema informático de base SIG, o LOCVS, entre outras acções.

O processo de registo

Na base do registo está o desenho, o qual, como Luís Aguiar Branco consultor do projecto IPAP e principal responsável pelo programa metodológico refere13, “é uma linguagem universal por excelência: directo e objectivo, transmite ideias, pensamentos e emoções, utilizando diferentes processos e meios de execução, variando segundo a finalidade que se procura atingir. O desenho é a génese e o fio condutor de todo o pro-cesso de inventariação.” O inventário inicia-se pelo de-senho de registo das fachadas urbanas do arruamento seleccionado, após pesquisa prévia de fontes diversas, sobretudo cartográficas14, da zona e do arruamento a inventariar. Assim, quando procedem ao desenho dos alçados da rua, os técnicos estão já informados dos antecedentes históricos do local. Este conhecimento de base permite reconhecer muitas vezes indícios de antigos alinhamentos, ou identificar marcas de edifícios que, entretanto desapareceram, mas que estão repre-sentados na cartografia antiga. O registo é feito sobre uma folha de desenho própria, em que são previa-mente assinaladas algumas informações importantes: a largura dos lotes e a extensão do troço a desenhar, para além dos elementos de identificação comuns. Após o desenho das fachadas, regra geral à escala 1:200, em que é feita uma análise crítica dos elementos observados, anotam-se as principais características de

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Inventário do Património Arquitectónico do Porto - Arquitecturas e materiais: registo e catálogo Maria Isabel Pinto OsórioInventário do Património Arquitectónico do Porto - Arquitecturas e materiais: registo e catálogo Maria Isabel Pinto Osório

cada imóvel, nomeadamente os elementos decorativos, o revestimento ou algum pormenor arquitectónico de maior destaque, temas que são depois objecto de cui-dado registo fotográfico.

Partindo do conhecimento adquirido no desenho da rua, dá-se início ao processo de identificação das licen-ças dos respectivos imóveis nos arquivos municipais e outras fontes (no caso dos bairros económicos foi feita a recolha dos dados no antigo IGHAPE), consti-tuindo estes arquivos um manancial de informação de enorme importância para o conhecimento da Cidade. O trabalho de pesquisa em arquivo é também preparado previamente, com elaboração de listas ordenadas por arruamento, a partir dos índices dos livros de licenças de obra, tendo o IPAP investido na informatização de alguns importantes fundos documentais, nomeadamen-te dos serviços de Urbanismo da Autarquia do Porto, facilitando a informação aos novos pedidos de licen-ciamento.Ainda em arquivo é feita a triagem dos elementos grá-ficos mais importantes com vista à sua digitalização, registando-se em ficha própria os elementos cons-tantes no requerimento que se revelam essenciais à compreensão do projecto de arquitectura, desde o seu proprietário/representante, data do pedido, autor do projecto, etc., salvaguardando sempre a possibilidade de não haver uma correspondência entre o nome do técnico responsável pela obra e o autor do projecto; é feita a digitalização das assinaturas presente nos dese-nhos, ficando essa informação registada no sistema. O trabalho de inventário implica o tratamento regular dos dados produzidos, nomeadamente as imagens, facilitando o seu posterior processamento no siste-ma informático. Nesta fase é feito o tratamento dos dados relativos aos materiais arquitectónicos e artísti-cos, que foram registados durante o levantamento de rua. Sempre que possível é feito o registo do interior dos prédios, ainda que as ocasiões sejam raras, com o objectivo de registar as situações patrimonialmente mais interessantes, como é o caso dos elementos de-corativos em gesso. Tal como qualquer outro material decorativo, o estuque denuncia aspectos diversos da cultura arquitectónica e artística das sociedades que o utilizaram. O seu estudo contribui assim para um me-lhor conhecimento das formas de habitar, das modas e hábitos sociais, sendo, por isso, importante o seu inventário num tempo em que a qualidade ambiental do interior de muitos prédios é sacrificada perante uma rentabilização até ao limite, ou para além dele, da área habitável. É urgente contrariar a actual tendência de substituição dos madeiramentos por lajes de cimen-to na reabilitação do tecido histórico, caso contrário

dificilmente se irá conservar a maior parte dos tectos em fasquia com revestimento a estuque. Pela sua na-tureza e contexto em que surge, o estuque decora-tivo apresenta aspectos singulares num programa de inventário e catalogação, sendo praticamente inviável qualquer levantamento sistemático destes elementos decorativos, pela dificuldade de acesso ao interior das habitações. Um inventário de estuques será sempre tendencialmente parcelar, por privilegiar as arquitec-turas de maior prestígio, sobretudo a que têm acesso público15.Esta breve sinopse do trabalho que caracteriza a fase de levantamento de rua, de pesquisa em arquivo e or-ganização dos materiais e documentação produzida, é essencial ao entendimento da arquitectura do sistema LOCVS, na componente relativa ao domínio do patri-mónio arquitectónico, entendido este na sua dimensão mais abrangente16.

O Sistema de Informação LOCVS

Tendo por base um sistema de informação geo-refe-renciado, o LOCVS, procura englobar, num mesmo complexo informativo, todas os dados relativos às diferentes tipologias arquitectónicas, urbanísticas e arqueológicas existentes na Cidade. Não se pretendem apenas registar dados e informações relativos às cons-truções de cariz monumental ou de interesse relevante, mas edifícios, conjuntos, ruas, construções e espaços cujo reconhecimento do valor patrimonial não é ime-diato, e que só através de uma análise detalhada e na relação com a área envolvente, podem ser avaliados. O facto de se tratar de uma aplicação desenvolvida com base na experiência de anos de trabalho, em que foram profundamente analisadas as questões de tra-tamento da informação, na procura de resposta aos problemas suscitados pela gestão dos processos rela-cionados com os domínios do património arqueológico e arquitectónico, dá garantia de maior eficácia e boa adequação à realidade da gestão municipal. Todos os domínios do novo sistema foram objecto de aturada recolha de dados, num processo de debate permanente entre especialistas e técnicos da Autarquia do Porto e da empresa ParadigmaXis, a quem foi adjudicada a criação da nova aplicação, de base SIG17.Pela temática deste “I Encontro Sobre os Estuques Por-tugueses”, iremos tratar apenas o domínio da Arqui-tectura, em cujo âmbito se inscrevem os descritores relacionados com o inventário e catálogo de materiais. São cinco as dimensões do tecido construído, em torno das quais se organiza a arquitectura do sistema, que assenta no entendimento da Cidade como um todo, composto por realidades e espaços que, por sua vez,

de decompõem em outros níveis de análise:• Espaço público - unidade que incorpora os registos relativos à rua considerando neste termo toda a tipolo-gia de espaços de circulação para uso público: praças, largos, vielas, becos, calçadas, etc.• Espaço público-Jardim – unidade relacionada com o espaço público ajardinado, que constitui uma realidade com características distintas do simples arruamento;• Conjunto – unidade de análise relativa a unidades arquitectónicas que incluem mais do que um imóvel principal, frequentemente associadas a espaço público (cemitérios, bairros, passos, etc.) • Lote – unidade relativa à propriedade, privada ou pública, englobando área edificada e logradouro; • Equipamento/mobiliário urbano – unidade de análise em que se inscrevem todas as criações arquitectónicas, artísticas e utilitárias que integram o domínio público.

Numa arquitectura de relações complexas, a tradicio-nal ficha única do monumento dá assim lugar a cinco unidades de análise, completadas por outros níveis e módulos informativos. A análise, hierarquizada, que orienta o inventário no terreno, é transportada para o sistema de informação. Assim, partindo da análise do Espaço Público (Rua e Jardim), ou de um Conjunto, acede-se à informação relativa aos lotes que consti-tuem esse espaço, acesso que pode, naturalmente ser directo, mas que se complementa e ganha significado nesta relação hierárquica. Da ficha de lote acede-se às unidades informativas relativas às realidades que estão associadas ao lote: o logradouro, os sistemas cons-trutivos, os elementos arquitectónicos e decorativos. Por sua vez, a ficha de mobiliário/equipamento urbano está estreitamente associada à ficha de espaço público, ainda que se possa associar também a um lote, na me-dida em que algumas materializações deste património urbano ocorrem em espaços privados, como as fontes e outros elementos de água, os pequenos pavilhões de jardim, etc. Partindo destas cinco unidades podemos aceder a ou-tros sectores informativos essenciais ao conhecimento da realidade construída, integrando a arquitectura do sistema outros módulos que sendo independentes em termos de processamento e acesso ao sistema, com-plementam a informação que as unidades de análise contêm, interagindo entre si. Destacam-se, para efei-to de exemplificação, o módulo Autores e o módulo Acontecimentos, servindo o primeiro para registar to-das as informações que a pesquisa em arquivo e fontes documentais e bibliográficas revela sobre a identidade e obra dos indivíduos e instituições que participam, através da sua obra, na construção da cidade, seja

ao nível do desenho urbano ou das arquitecturas, sem limites cronológicos ou tipologias profissionais. O re-gisto abrange todos os que têm o seu nome associado à construção/alteração de imóveis, arruamentos ou jar-dins, quiosques ou equipamentos, toda a diversidade tipológica que podemos encontrar num aglomerado, e todos os ofícios e profissões interessam, do mestre de obras ao estucador, do entalhador ao arquitecto. No módulo Acontecimentos, registam-se todos os factos que fazem a história de cada espaço ou arquitectura ou os factos de maior relevo para a história da Cidade e que, por regra, se podem associar a um espaço público ou a um edifício, dados que se cruzam com as cinco unidades de análise que constituem as células centrais do sistema. Neste processo de tradução simplista da orgânica do sistema, destaque para a existência de uma ferramenta de trabalho inovadora e da maior utilidade; os Catá-logos, banco de dados destinados a receber e gerir a informação dos materiais que marcam as arquitecturas do Porto - azulejos, cantarias, guarnições em ferro, estuques, etc. – visando a criação de um corpus de enorme importância para o seu conhecimento e va-lorização. Cada peça ou material (como o estuque) é registado no sistema enquanto elemento tipo (con-ceptual) no Catálogo, sendo igualmente registadas as suas ocorrências (existências), seja num imóvel ou num depósito como o Banco de Materiais. Reconhe-cido o carácter repetitivo de muitos destes materiais, como sucede com os ornatos dos estuques, a figura do “elemento tipo” permite a caracterização do ele-mento uma única vez, independentemente das suas materializações, e o registo sumário das ocorrências. Em estreita relação com o trabalho desenvolvido pelo Banco de Materiais, o sistema dá apoio a todas as cadeias operativas implicadas na incorporação, gestão e movimento das peças, incluindo a sua conservação e tratamento laboratorial, de que foi exemplo o trata-mento do espólio da Oficina Ramos Meira.Relacionado com todo este universo de análise que acabamos de descrever, servindo os domínios do pa-trimónio arquitectónico e arqueológico, encontra-se o módulo Unidades Documentais, um arquivo digital aberto a inúmeras interacções com os dois subsistemas, e que além de conservar, classificar e organizar todo o tipo de documento digital (peças gráficas, imagens, vídeos, etc.), permite a gestão dos arquivos físicos dos serviços, de carácter documental e bibliográfico. Por último, refira-se que a aplicação informática recorre a ferramentas ArcView (ESRI), em ambiente Windows NT. Por razões de escalabilidade, eficiência e versatilidade, os dados são organizados num Sistema de Gestão de Bases de Dados relacional (ORACLE).

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Inventário do Património Arquitectónico do Porto - Arquitecturas e materiais: registo e catálogo Maria Isabel Pinto OsórioInventário do Património Arquitectónico do Porto - Arquitecturas e materiais: registo e catálogo Maria Isabel Pinto Osório

A utilidade de um inventário depende da sua credibili-dade, do rigor com que se desenvolvem as diferentes etapas e se utilizam os instrumentos de reconhecimen-to e análise. É fundamental que as ferramentas de tra-balho sejam aplicadas com critério e por profissionais competentes. No caso, por exemplo, de um inventário de estuques do séc. XIX, para além do domínio dos instrumentos de registo – seja na forma como se fo-tografam ou descrevem os elementos estucados – é fundamental que o olhar de quem orienta, tenha a experiência dos problemas que esse registo suscita, conhecendo as fontes e os recursos úteis à sua realiza-ção. Um inventário deve ser, antes de mais, útil, pelo que deve ser muito mais ambicioso do que a simples descrição dos atributos de um elemento ou de um edi-fício, e aberto a todo o tipo de utilizações.

BIBLIOGRAFIA SUMÁRIA:

D. P. C. (2001) – “IPAP: a cidade desenhada rua a rua”. Portus. Boletim de Arqueologia Portuense. 1 (Dez. 2001). Porto: Câmara Municipal.

FARINHA MARTINS, A. J. (2004) – Administração de Sistemas de Informação I. Primeira parte. Lins (SP): Faculdade de Ciências Administrativas e Contábeis de Lins. Curso de Administração – FACAC. Disponível em http://www.codilon.oi.com.br/bd/bdaula23.pdf. Consul-ta em 15.09.2009

OSÓRIO, Maria Isabel P.; AGUIAR BRANCO, Luís M. (2002) – “Inventário do património arquitectónico do Porto”. In VV.AA. – Património edificado. Novas tec-nologias, inventários. Comunicações apresentadas na XIII Semana de Estudos dos Açores. Lisboa/Angra do Heroísmo: IAC/IPPAR, p. 167-90

OSÓRIO, Maria Isabel P.; AGUIAR BRANCO, Luís M. (2003) – “LOCVS – Manual de Inventário Municipal do Património Arquitectónico e Sistema de Informação do Património Arquitectónico”, ed. policopiada, Porto: Câmara Municipal.

VASCONCELOS, Florido de (1997) – “Estuques do Por-to”, Col. Porto Património, Ano 1, Nº 1, Porto: Câmara Municipal.

NOTAS DE RODAPÉ:

1. Prestigiada família de estucadores com obra espalhada um pouco por todo o País, que sendo originária de Afife teve no Porto a sua principal oficina; vd VASCONCELOS(1997)

2 Lei 107/2001 de 8 de Setembro (I Série-A, nº209)

3 A Drª Maria Augusta Marques, apresentou uma comunicação a este Encontro intitulada Estuques do Porto – O contributo dos Meiras, a propósito da pesquisa que realizou sobre esta oficina, depois da transferência do espólio para o Banco de Materiais da Câmara Municipal do Porto, para efeitos de inventariação.

4 Com o objectivo de constituir um banco de materiais arquitec-tónicos e construtivos, que possam ser reutilizados na recupe-ração de fachadas do Porto.

5 O depósito foi transferido para o Banco de Materiais na Casa Tait, no Verão de 2001, sendo à data responsável pelo Departa-mento de Museus e Património Cultural da Câmara Municipal do Porto, a actual Directora do MNSR, Drª Maria João Gagean de Vasconcelos, incansável dinamizadora deste serviço.

6 Os serviços municipais responsáveis pela conservação do de-pósito de materiais arqueológicos – Gabinete de Arqueologia Urbana - e o Banco de Materiais, têm uma intervenção directa na esfera de licenciamento de obras particulares e outras, sem-pre que estão em causa áreas e imóveis ou conjuntos assinala-dos na Carta do Património do PDM do Porto.

7 Por Património Arquitectónico entende-se toda a realidade construída pelo homem ao logo dos tempos, no sentido amplo preconizado pela Convenção de Granada, de 1985, no seu artº1 (Convenção de Granada, Conselho da Europa, 1985).

8 A Carta do Património publicada no âmbito do último Plano Director Municipal do Porto, foi realizada com o apoio do IPAP, estando na origem do projecto Carta dos Valores Arquitectó-nicos, uma cartografia SIG disponível na página electrónica da Autarquia do Porto, tendo recentemente incluído a Arte Pública, adoptando a designação Carta dos Bens Patrimoniais (acesso através de http://sigweb.cm-porto.pt/mipwebportal/ )

9 Uma observação: enquanto não especialistas no domínio da museologia, entendemos como próximos os termos colecção ou depósito, e ainda que se reconheça naquele um maior sentido de unidade, no presente artigo o seu uso é indistinto.

10 Em 1997, um ano antes do início do projecto apoiado pelo PRONORTE, a Câmara Municipal do Porto, a através da Divisão do Património Cultural do DMMPC, constituiu um grupo de tra-balho para análise e discussão do projecto de inventário para a Cidade do Porto. A análise então realizada foi fundamental para a definição das linhas estratégicas do projecto IPAP, dos seus objectivos e metodologia; integravam essa equipa, além da signatária deste artigo, o Prof. Arquitecto Bernardo Ferrão, da FAUP, a Arqª Ângela Melo, da então DRN do IPPAR hoje Direcção Regional da Cultura do Norte, e o Arqº Luís Aguiar Branco, arquitecto diplomado pelo FAUP, investigador e profun-do conhecedor dos arquivos municipais.

11 “Património Arquitectónico: do inventário ao sistema de in-formação”: candidatura ao Programa Operacional da Cultura, Maio de 2001.

12 A candidatura apresentada à Medida 2.2. Eixo 2, Favorecer o acesso a bens culturais do POC.

13 Branco, Luís Maria Aguiar, in “LOCVS – Manual de Inventário Municipal do Património Arquitectónico e Sistema de Informação do Património Arquitectónico”, ed. policopiada, CMP, 2003.

14 A Cidade do Porto orgulha-se de possuir um instrumento de análise histórica de enorme valor, editado em 1892, a chamada Planta de Telles Ferreira (Arquivo Histórico Municipal do Porto), nome que homenageia o responsável pela equipa que proce-deu ao levantamento, à escala 1.500, do actual espaço urbano, durante o último quartel do séc. XIX; trata-se de um projecto pioneiro na época, contra o qual se levantaram vários entraves colocados por um poder central que tardava em reconhecer à representação cartográfica, o papel fundamental que viria a de-sempenhar na gestão e ordenamento dos territórios concelhios.

15 Os estudos publicados sobre o tema, revelam uma análise centrada em arquitecturas mais emblemáticas, pelos condicio-nalismos que se levantam a um registo tendencialmente siste-mático desta arte decorativa, mas tal não diminui o seu interesse e importância para o conhecimento da arte, de que é exemplo o trabalho “Estuques do Porto”, do Dr. Florido de Vasconcelos, levado à estampa pela Autarquia do Porto (Vasconcelos, 1999)

16 ao projecto IPAP, e que serve de base à intervenção dos serviços municipais, abrange toda a tipologia construtiva que o homem foi capaz de edificar ao longo dos tempos, tal como define a Convenção de Granada, de 1985, aprovada, para ratifi-cação, pela Resolução da Assembleia da República n.º 5/91, em 16 de Outubro de 1990, publicada no Diário da República, 1.ª série-A, n.º 19, de 23 de Janeiro de 1991, tendo depositado o seu instrumento de ratificação em 27 de Março de 1991, conforme o Aviso n.º 74/91, de 29 de Maio.

17 A criação da aplicação esteve a cargo da firma ParadigmaXis, e participaram nesta empresa, do lado da firma, o Engº Auré-lio Pires (coord.) e os Engºs Hugo Ferreira e Hugo Almeida; a equipa do município teve a participação de vários técnicos da Divisão M. do Património Cultural e elementos afectos ao projecto IPAP, destacando-se, pelo seu especial contributo, os Arqº Luis Aguiar Branco e Arqº Paulo Sousa, do IPAP, a Arqª Marta Cunha, os arqueólogos Drº António Manuel Silva (coor-denador do GAU/DPC) e Drª Manuela Ribeiro, bem como a Drª Maria Augusta Marques (coordenadora do Banco de Materiais/DPC) e Drª Orquídea Félix; saliente-se ainda o empenho da Engª Armanda Carvalho, nas fases iniciais, estruturantes, do projecto LOCVS, em representação da Direcção Municipal de Sistemas de Informação, mais tarde substituída pelo Engº Pedro David daquela direcção municipal.

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GraçaViterbo

Membro do I.I.D.A (Internacional Interior Designers Association)Gracinha Viterbo é uma Designer de Interiores Portuguesa. Gosta de criar projectos de vida além dos espaços. Talvez por isso tenha vindo a construir um estilo próprio, gerado em torno da sua experiência de vida e profissional.Formada em Londres, onde iniciou a sua carreira profissional, voltou para Portugal em 2000 onde integrou a equipa do Atelier Graça Viterbo.O seu Portfolio inclui projectos em Portugal e no Estrangeiro, tendo também colaborado em inúmeros projectos de cinco estrelas em Hotelaria e Restauração.Tem referências e bases Clássicas que alia à sua curiosidade Actual.Aposta na qualidade, arrisca na novidade.A sua palavra preferida é Vazio, talvez por ser o ponto de partida de tudo...

FORMAÇÃO ACADÉMICAInchbald School of Design (Lon-dres).1999/2000 Especialização em Artes Decorativas (MA)

Chelsea College of Art & Design,University of the Arts (Londres)1996/1999 “Honours in Interior & Spatial Architecture”

Central Saint Martins College of Art,University of the Arts (Londres) 1995 / 96 “Foundation course” Arte & DesignLycée Français Charles Lepierre (Lisboa)1980/95 Bachalauréat Literatura e Artes,

Cursos adicionaisViterbo Imaginação2005: Design de Iluminação2003: Gestão de Projectos2002: VitrinismoA.R.C.O.2001: fotografiaCentral Saint Martins College of Art and Design1997-98: fotografiaVictoria &Albert Museum,1998: História de Arte e Mobiliário

Central Saint Martins College of Art & Design1997: book bindingCentral Saint Martins College of Art and Design1995: desenho modelo nu

EXPERIÊNCIA PROFISSIOALPRIVADOS:-Desde 2000 projectou várias casas em Portugal, resto Europa, Angola.-Desde 2007 Atelier Graça Viterbo tem uma parceria e escritório em Angola sobre supervisão e criaçãod e Gracinha Viterbo.

PÚBLICOS:-2001: empresa de Eventos,(Quinta da Rosa, Belém)-2002 : festa de apresentação Swa-rovski ( Porto , Casa do Ribeirinho)-2002: Hotel Solar do Castelo, Lisboa (Hotel Héritage) - premiado na revista Condé Nast Traveller americana como um dos 80 me-lhores novos hotéis do mundo de 2003. – nº maio2003-2001/02: Hotel As Janelas Verde, Lisboa (Hotel Héritage) .-2001/03: Hotel Plaza, Lisboa (Hotel Héritage) - renovação de zonas públicas, acesso a salas de con-gressos e suites, Varanda Chill-Out.-2002- Remodelação escritórios de administração PT-2002/2003- Hotel Real Palácio, Lisboa-2002/2003- Hotel Real Oeiras.-2004/ 2005: responsável de deco-ração de montras da loja HERMÈS, Lisboa- 2003/2004- Hotel Real Santa Eulália, Algarve-2003/2004- Hotel Vila Sol, Algarve- 2007- Hotel Real Villa Itália, Cascais-2008- Execução projecto para cadeia de 61 Hóteis em Angola.-2009- Hotel Bela Vista Portimão – projecto em execução-2009-2010- Hotel Real Olhão, Algarve – projecto em excuçãoOUTROS-2010-Participação na “campanha Internacional Star Alliance”-2010- Criação de cenário para programa “ Imagens de Marca” na SIC NOTICIAS-2010- lançamento de linha de loiça Sanitaria Valadares “EGG” assinada

por Grainha Viterbo-Particiapção na Fil no “Hotel Ideal” com Suite Presidencial-2009- lançamento livro Lifestyle-2007-2008- Direcção de livro “Lifestyle”, de Gracinha Viterbo , Primebooks Editora.-2006-2007 Direcção de livro “Aprenda a decorar com Graça Viterbo, de Graça Viterbo, Prime-books Editora-2007-Participação na Casa Ideal , FIL ,Liboa-2005- Participação na Casa Ideal , FIL, Lisboa-2004-2005- Direcção de livro de livro “História de Ambientes”, de Graça Viterbo por Bertrand Editora.-2004- Participação Casa Décor/ Estoril Sol-2004 – Participação FIL HOREXPO-2003- Participação “elas em Marte”, SIC MULHER-2003- Participação FIL INNOVA-2002: direcção 2 aulas sobre “Ambientes e Receber” na Viterbo Arte e Design-2001- Participação LUXDECO-2000: Kelly Hoppen Interiors, Londres-1997: British Interior Design Exhibi-tion, Londres-1995-97: criativa ,“South Ken Florist”, Londres.

PALESTRAS-2008- “Em Busca do Tempo Perdido- a descoberta no Antigo da Novidade. “I Encontro Sobre os Estuques Portugueses”- Museu do Estuque.-2004- “ vitrinismo: a nova Arte?”, VAD-2002-“Decorações efémeras.”, VAD.-2002- “a Arte de Receber” ,VAD-2002- “sala de jantar.”VAD

Em Busca do Tempo PerdidoGraça Viterbo

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CONCLUSÕES

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No entendimento e na consciência do que a arte do estuque artístico representa, o Museu do Estuque tinha um principal objectivo: lembrar e chamar a atenção a todos para este bem da cultura artística do país.Enquanto Museu do Estuque era nossa função, através das comunicações, abranger a história desta matéria desde os primórdios do homem até aos dias de hoje. E um ponto que é logo de assinalar e alertar, é a va-lência semântica do termo estuque; na realidade, este termo apresenta múltiplos planos de leitura e que se apresentam integrados no conhecimento matérico com a designação generalizada de estuque. Consequente-mente, tornou-se também nosso objectivo permitir a individualização matérica do que é o “estuque”: indis-pensável para a orientação das operações de manu-tenção, conservação, restauro e reabilitação, sem as quais perde-se a memória do construir, o que cons-tituiria, mais tarde ou mais cedo, a perda do objecto construído ou a perda da percepção da representação do original. Conforme confrontados com as comunicações, aperce-bemo-nos que é uma tecnologia, de facto, sedimentada em operações principalmente artesanais e, por isso, raramente fixadas em formulações codificadas e apro-fundadas. No entanto, também nos foi permitido con-cluir que, enquanto país periférico, Portugal absorveu os movimentos e os estilos que fluíam pela Europa, revelando por muitos dos exemplos abordados, a im-portância deste movimento no contexto das Artes De-corativas, assim como dos grandes mestres e artesãos perfeitamente desconhecidos e que urge relembrar.Também foi nosso objectivo criar um ponto de par-tida para uma reflexão da sociedade em geral, e dos agentes culturais em particular, que permita indagar as razões pelas quais e de que modo, foram realizados os estuques; não com o objectivo central de responder a interrogações de carácter historiográfico mas, sobre-tudo, como contributo a uma pratica de conservação, restauro e de recuperação destes artefactos mais cons-cienciosa. Assim, estamos conscientes de que podere-mos imprimir um alento em prol da gestão da manu-tenção e da continuidade desta arte que, é também testemunho social e cultural da presença portuguesa no mundo. A protecção dos estuques impõem-se não só pela exigência de conservar ramos da nossa cultura material e figurativa, e cujas técnicas construtivas não resultam actualmente reempregáveis por uma série de motivos não repetíveis, tais como, a capacidade manual dos mestres, a difícil obtenção e manipulação das matérias primas tradicionais mas, também, pela necessidade de salvaguarda de todas aquelas carac-terísticas ambientais que a sua presença determina e no contexto no qual são colocadas e das quais fazem, imprescindivelmente, parte.

Como premissa à sensibilização da opinião pública e profissional sobre a importância e a fragilidade deste património, o Museu do Estuque desenvolveu e parti-cipou nas actividades seguintes:

• Oficinas de Estuque ( workshop realizado na Escola das Artes no Pólo da Foz da Universidade Católica Portuguesa: 14 Março – 27 Abril de 2006)• I Jornadas sobre o Estuque em Portugal ( 20 a 21 de Outubro de 2006) Pólo da Foz da Universidade Cató-lica Portuguesa.• Participação no II SIMPÓSIO CONSERVAÇÃO E INTER-VENÇÃO em Sítios Arqueológicos e Monumentos His-tóricos (18 e 19 de Outubro de 2007) e que decorreu na Universidade Portucalense Infante D. Henrique (Porto) e a convite da organização (Universidade Portucalense Infante D. Henrique -Porto).• I Seminário Internacional “A Presença do Estuque em Portugal – do Neolítico à Época Contemporânea” (2,3, 4 e 5 de Maio de 2007) no Centro Cultural de Cascais e organizado conjuntamente com a Universidade Lusíada de Lisboa, Centro Lusíada de Estudos Tecnológicos de Arquitectura e pela Câmara Municipal de Cascais.• “I Encontro Sobre os Estuques Portugueses” realiza-do dia 22 de Novembro de 2008 no Auditório do Museu Nacional Soares dos Reis (Porto).• Colaborador na acção de formação subordinada ao tema: “Aveiro 2009: Meandros do Património” e que decorreu a 7 de Janeiro de 2009 no auditório do Museu da Cidade e a convite da organização (Câmara Munici-pal de Aveiro – Vereação da Cultura)..• Participação no Encontro: “A Autenticidade e a Iden-tidade nas Intervenções no Património Construído” e que decorreu de 26 a 28 de Novembro de 2009 no Centro Cultural de Cascais e a convite da organização: Universidade Lusíada de Lisboa e Câmara Municipal de Cascais. • Lançamento do Livro de Actas: “ A PRESENÇA DO ESTUQUE EM PORTUGAL” no âmbito do Seminário “A Autenticidade e a Identidade nas Intervenções no Património Construído” e que decorreu de 26 a 28 de Novembro de 2009 no Centro Cultural de Cascais ( conjuntamente com a Universidade Lusíada de Lisboa, Centro Lusíada de Estudos Tecnológicos de Arquitectu-ra e Câmara Municipal de Cascais). Estas acções tem permitido e promovido o estudo, cursos de formação e trabalhos de difusão onde se pretendeu estimular a reflexão precedente à gestão, ao projecto, à reavaliação e à actuação sobre este patri-mónio, frágil e anónimo à escala urbana.

Paulo Castro

ConclusãoPaulo Castro

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DINAMIZAR A INVESTIGAÇÃO NO DOMÍNIO DOS ESTUQUES EM PORTUGALGonçalo de Vasconcelos e Sousa

Director do Departamento de Arte e Restauro Escola das Artes da UCP

Ao longo deste I Encontro sobre Estuques Portugueses, assistiu-se a um conjunto de comunicações que eviden-ciam o apreço que os estuques vêm alcançando por parte de um painel de investigadores e de empresas que se dedicam a esta arte, seja na sua aplicação em termos da decoração contemporânea, seja em termos de con-servação e restauro dos espécimes sobreviventes.Os estudos das mais diversas Artes Decorativas co-meçam a situar-se, em Portugal, numa plataforma de cientificidade, de rigor e de sistematização, que apenas eram observáveis em alguns dos trabalhos publicados nestes domínios até há alguns anos. Nos últimos tem-pos surgiram diversas investigações académicas que permitiram demonstrar, em termos de pesquisa, aqui-lo que há muito os apreciadores da sumptuária e das artes aplicadas defendiam, ou seja, que em Portugal existem peças, artes e ambientes que necessitam de um aprofundado estudo, contextualização e correcta pre-servação, de forma a poderem ser disponibilizados a visitantes e a diversos tipos de públicos. A ligação com o Brasil é fundamental em algumas das Artes Decorativas, entre as quais se situa a dos estuques, pelas notórias proximidades formais e estéticas obser-váveis em muitas das obras executadas. A emigração de artífices lusos para terras além-Atlântico efectivou essa passagem de testemunho artístico, sendo importante conhecê-los, perceber as regiões de onde provinham e as obras que executaram, de forma a podê-las compa-rar com as que se executavam em Portugal. O contacto internacional com as obras francesas, ale-mãs, inglesas, italianas e espanholas, numa perspecti-vação da dialéctica centro(s)-periferia(s), impele-nos a estabelecer fontes de influência e das matrizes estéticas e ornamentais, fundamentais para a correcta caracteri-zação das obras de estuques portuguesas. Essa leitura alargará os horizontes de investigação dos estudos a realizar e permitirá encontrar pistas para leituras muito mais interessantes e aprofundadas das obras estucadas em Portugal.No estudo dos estuques, não podemos desligar as en-comendas dos diversos grupos socioeconómicos que garantiram o seu desenvolvimento. Se a Corte Setecen-tista e a Igreja são indissociáveis da obra de Grossi, os trabalhos de Oitocentos encontram-se ligados a uma nova Nobreza e, sobretudo, a uma Burguesia em ex-pansão, que se socorrem da arte dos estuques para enriquecer decorativamente os ambientes das entradas dos seus palácios, palacetes e casas, numa evocação de grandeza que assumiu distintas paletas e concreti-zações nas diversas regiões do País.

Por outro lado, constatamos a existência de opções de distinta grandeza dentro das obras estucadas pro-movidas pelos diversos grupos sociais, pois do pala-cete à casa de habitação da média burguesia, situada em zonas de nova expansão urbana, ia uma distância acentuada, tanto em termos de quantidade como de qualidade de execução. Se não podemos entender esta ideia como uma regra, ela assume-se como generica-mente perceptível em algumas localidades, como Lis-boa e Porto.Esta leitura socioartística dos estuques torna-se de-terminante para o seu devido entendimento, enquanto expressão de poderio económico, e dele não devem dissociar-se as matrizes estéticas em voga, de pendor revivalista e ecléctico, que, por vezes, transformaram os ambientes decorativos em emaranhados de solu-ções, cuja unidade se concretiza, precisamente, na sua opção pela diversidade. Para um apuramento mais pre-ciso desta ideia há que realizar, ainda, muito labor de recolha, investigação e comparação, de forma a identi-ficar modelos decorativos e o grau de adesão por parte de estucadores e da respectiva clientela.O programa decorativo destes novos grupos sociais e, também, de muitas outras transformações operadas em edifícios mais antigos, associam o estuque à mo-bilidade do género social do Portugal de Oitocentos e das primeiras décadas de Novecentos, não sendo raros encontrá-lo, igualmente, nas edificações cemiteriais, nomeadamente nas capelas dos cemitérios e das sec-ções privativas, como sucede na cidade do Porto.Das artes decorativas móveis às artes decorativas de aplicação arquitectónica, entre as quais se situam os estuques, passando pelas artes decorativas de figura-ção humana, há todo um conjunto de domínios que carecem ainda de uma pesquisa concreta, sendo que sobre alguns deles mais não há do que breves elemen-tos conhecidos. Não devemos, igualmente, esquecer a perspectiva da transversalidade da investigação e compreensão das Artes Decorativas, nomeadamente dentro do interior dos três grupos enunciados supra e, inclusivamente, entre eles, porque essa visão é um eixo fundamental para um maior apuramento das investigações a reali-zar. O estuque surge associado à pintura decorativa, de melhor ou mais deficiente qualidade, aos têxteis, e até a um projecto decorativo de ambientes, que pode incluir peças de mobiliário, objectos de iluminação, como lustres e candeeiros de tecto, papéis de parede, peças de mobiliário, bronzes, ferragens, espelhos e pu-xadores de porta, entre diversas outras manifestações

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artísticas. Falta, pois, alcançar essa visão de conjunto em alguns dos estudos que seria desejável surgissem nos meios académicos em Portugal.A arte do estuque não foi apenas obra de Giovanni Grossi, dos Meira e dos Baganha; há ainda que iden-tificar muitas outras oficinas, buscando espólios onde menos se imagina. A experiência de investigação vai-nos ensinando que a persistência acaba, em geral, por dar os seus frutos, e aquilo que parecia totalmente destruído acaba por ser encontrado. Talvez não já na sua totalidade ou numa dimensão razoável, mas há sempre quem fique com vestígios – ao jeito de re-cordações –, que escapam de uma inexplicável fúria destruidora dos vestígios materiais do passado, que aniquila os desenhos, apontamentos de trabalho, fac-turas comerciais, entre tantos outros aspectos deste mester, cuja preservação poderia fornecer, actualmen-te, dados inestimáveis para a compreensão da vida dos estucadores portugueses.Há, portanto, todo um conjunto de edificações por inventariar, de oficinas por identificar e de mestres por relacionar, tarefas que ocuparão muitos investiga-dores, segundo diversas perspectivas, podendo levar bastantes anos a concretizar. Diríamos esta frase com serenidade, se não estivesse em causa a degradação de muitos edifícios e, consequentemente, dos respectivos estuques, tendo por pano de fundo o custo elevado da sua preservação. Daí a urgência da sua inventaria-ção, a par do que sucede com o plano exterior. Não pretendemos, com isso, afirmar que toda e qualquer manifestação estucada deva ser preservada como re-presentação de um património em perigo, mas, quando a qualidade da expressão artística ou patrimonial o justificar, é importante que as gerações vindouras pos-suam elementos para conhecer os diversos cambiantes que esta arte atingiu em Portugal.Com o desenvolvimento da investigação sobre os es-tuques em Portugal, haverá certamente novos motivos para nos encontrarmos, para debater ideias, partilhar experiências teóricas e práticas, e apurar, numa visão cada vez mais concreta, o que foram os distintos tra-balhos da arte do estuque em Portugal, com especial evidência entre os séculos XVIII e XX.

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