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Literatura Brasileira II
Florianpolis - 2012
Marco Antonio de Mello Castelli
5Perodo
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Equipe de Desenvolvimento de Materiais
Produo Grfica e Hipermdia
Design Grfico e Editorial:Ana Clara Miranda Gern; Kelly Cristine Suzuki
Coordenao: Thiago Rocha Oliveira, Laura Martins RodriguesAdaptao do Projeto Grfico: Laura Martins Rodrigues, Thiago Rocha Oliveira
Diagramao:Pedro Augusto Gamba & Raquel Darelli Michelon
Capa: Raquel Darelli Michelon
Tratamento de Imagem: Pedro Augusto Gamba & Raquel Darelli Michelon
Design Instrucional
Superviso do Design Instrucional:Ane Girondi
Designer grficos:Pedro Augusto Gamba & Raquel Darelli Michelon
Designer Instrucional:Daiana da Rosa Acordi
Copyright , Universidade Federal de Santa Catarina/LLV/CCE/UFSC
Nenhuma parte deste material poder ser reproduzida, transmitida e gravada, por qualquer
meio eletrnico, por fotocpia e outros, sem a prvia autorizao, por escrito, da Coordena-
o Acadmica do Curso de Licenciatura em Letras-Portugus na Modalidade a Distncia.
Ficha Catalogrfica
C348l Castelli, Marco Antonio de Mello
Literatura brasileira II / Marco Antonio de Mello Castell i. Florian-
polis : LLV/CCE/UFSC, 2008.
93p. : 28cm
ISBN 978-85-61482-08-4
1. Literatura brasileira. 2. Modernismo. 3. Ensino de literatura . I. Ttulo
CDU 869.0(81)
Catalogao na fonte pela Biblioteca Universitria da
Universidade Federal de Santa Catarina
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Apresentao
Literatura Brasileira II, ou Fragmentos para um Mosaico
Este livro-texto no se traa em linha reta. Seguir com ele o con-
tedo inerente Literatura Brasileira II como um passeio atravs
de caminhos incertos. Como aqueles em que a gente sai pelas ruas
da cidade distraidamente procurando-olhando um no-se-sabe-o-qu; como
um dndi, moda Joo do Rio, a borboletear seu pouso inconfessvel sobre
cada passante. Assim: um livro livre em sua geometria difusa, sinuosa apenas
aparentemente anti-lgica.
Distante de uma abordagem estruturalista, este livro-texto no se preocupa
com a ordem cronolgica que convencionalmente caracteriza os livros didti-
cos. Prope-se, na verdade, a estabelecer elos entre as correntes de criao e
produo literrias brasileiras. Nesse sentido, enfocaremos parte da histria
do pensamento brasileiro a que se desenvolveu entre fins do sculo XIX e
meados do XX alinhavando manifestaes esttico-literrias e escritores re-
fletindo acontecimentos e inquietaes de seu tempo. Antes, cotejaremos au-
tores de perodos histricos e estticos diferentes. No nos parece fundamental
seguir a linha cronolgica que insiste nos rompimentos entre o antes e o agora,
o velho e o novo. O importante o laivo do permanente e sua transformao
caleidoscpica. Os vestgios de um tempo no outro, de uma obra dentro da
outra. No se trata de continusmo, mas sim de continuidade feita de novos
lances, novos dados que, todavia, jamais aboliro o acaso, bem lembrando,
assim, o poeta francs Stphane Mallarm por seu poema Um lance de dados
jamais abolir o acaso.
Desta feita, ora estaremos nos anos dez do sculo passado, ora na contem-
poraneidade, com os olhos nos anos 60 e seus reflexos tecnolgicos na boca
do presente sculo, ora nos anos 20 e 30. Noutro momento, retomaremos aos
meados do sculo XIX to romntico quanto revolucionrio e passaremos
ao cientificismo finissecular para, quem sabe, entendermos as contradies da
sociedade brasileira. A testemunha, claro, ser sempre a obra literria.
Dividido em duas unidades As Entradas e As Bandeiras, referncia aos pri-
meiros sertanistas , este livro busca, na verdade, os ladrilhos para que o aluno
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componha, aos poucos, o mosaico que forma a cultura brasileira. Da viria
um ttulo adequado para este programa de Literatura Brasileira II: Fragmentos
para Um Mosaico.
Por meio deste livro, identificaremos os fragmentos concernentes LiteraturaBrasileira II, objetivando um mural, um quadro, enfim, uma composio har-
moniosa ao termo do semestre. Nosso princpio pode ser tomado s rapsdias
da Odissia, de Homero, que os alunos de Teoria da Literatura I tiveram a opor-
tunidade de conhecer atravs das tramas de Penlope. A mulher de Ulisses ter
sido a mais emblemtica das personagens da literatura no que se refere fatura
esttica, porquanto tecia e destecia at que as aventuras do marido guerreiro se
completassem. H que tomarmos, ainda, a rapsdia do prprio povo brasileiro
representado nas estripulias do protagonista homnimo de Macunama, a obra
de Mrio de Andrade: uma colcha de retalhos da cultura brasileira.
No presente, Fragmentos Para Um Mosaico, voc j sabe, no incio, qual a
ltima tarefa a ser realizada, aquela que encerrar o Curso do semestre. Acom-
panhando o livro diretriz da Disciplina , voc se colocar como um artis-
ta plstico que, pela palavra escrita, cumprir a tarefa de ordenar a grande
quantidade de fragmentos escolhidos para este livro e para este Curso. A, en-
to, caber a voc, aluno, a complementao do processo interativo que deve
nortear o ensino. No caso, mostrar o corpo da civilizao brasileira, em toda a
sua expresso esttica, moral, poltica, social.
Mas, para bem entender quais ferramentas so necessrias para compor o mo-
saico, h que se passar por muitos de nossos estudiosos Alfredo Bosi, Antonio
Cndido, Cavalcanti Proena, Roberto Schwarz, Otto Maria Carpeaux, Silvi-
ano Santiago, Benedito Nunes, Affonso vila, J. Guinsburg. vila, por exem-
plo, oferece uma abordagem crtica bastante apropriada sobre a lngua como
ferramenta maior para a formao da linguagem literria. Especialmente no
caso brasileiro, oriundos que somos de um longo processo de colonizao e de
influncias profundas de vrias outras culturas, desde a marcha das imigraes
no sculo XIX, at os tempos atuais, com a forte presena da lngua inglesa de
origem estadunidense.
Convenhamos: uma lngua se deforma para se conformar. Assim est nas falas,
assim est nas escritas que as formam, ora em intenes lingsticas como a
estria inventada pelo fillogo Joo Ribeiro, em 1944, ora pela licena poti-
ca para a mesma palavra, trazida no linguajar inventivo de Guimares Rosa,
tambm nos anos 40 do sculo passado.
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Literatura o exerccio da inteligncia a servio
da sensibilidade nostlgica ou revoltada.
(Albert Camus)
Atravs da arte, distanciamo-nos e
ao mesmo tempo aproximamo-nos da realidade.
(Goethe)
To be, or not to be: that is the question.
(Hamlet Shakespeare)
Tupy, or not tupy that is the question.
(Oswald de Andrade)
Eu sou trezentos, trezentos e cinqenta.
(Mrio de Andrade)
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Unidade AAs Entradas
BRASIL
UFSC
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Primeiro Fragmento
Dando incio busca de nossos ladrilhos, vamos aos ttulos que compem
a matria-prima do programa, seguidos de um coquetel sobre a conformaoda lngua a partir do Barroco at a era da tecnologia.
Ento, isso, pessoal. Vocs vo encarar essas obras a citadas em
seguida, o que, alis, pouco para que vocs se aprontem como pro-
fessores de Portugus. No adianta torcer o nariz, fazer bocas ou caras
como artista de novela, nem xingar. Afinal, literatura tudo o que h
de mais importante na formao de um povo. Na verdade, de um ser
humano, de um cidado se a gente pensar em termos amplos (globali-
zantes, para usar uma expresso da hora).
Textos para leitura obrigatria:
1) Jos de Alencar: Iracema.
2) Machado de Assis: Dom Casmurro. Contos (Coleo Grandes
Leituras. FTD).
3) Raul Pompia: O Ateneu.
4) Alusio Azevedo: O Cortio.
5) Euclides da Cunha: Os Sertes A terra (cap. I, IV, V) O ho-
mem (cap. II e III).
6) Lima Barreto: Triste Fim de Policarpo Quaresma. O Destino da
Literatura.
7) Joo do Rio: O Homem da Cabea de Papelo (ler na WEBTE-
CA).
8) Mrio de Andrade:Macunama.
9) Oswald de Andrade:Manifestos Pau-Brasil e Antropofgico. Me-
mrias Sentimentais de Joo Miramar. O Rei da Vela.
10) Graciliano Ramos: Vidas Secas.
11) Guimares Rosa:A Hora e a Vez de Augusto Matraga.
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12) Srgio Buarque de Holanda: Razes do Brasil.
13) A potica romntica:
a) Gonalves Dias: A Cano do Exlio (in: Primeiros Can-
tos), Cano do Tamoio (in: ltimos Cantos).
b) Castro Alves: Vozes dfrica (in: Os Escravos).
14) A potica parnasiana:
a) Alberto de Oliveira: Fantstica (in: Meridional: Poesias. 4.
srie. Francisco Alves, 1927).
b) Olavo Bilac: Profisso de F (in: Poesias 26. ed. FranciscoAlves, 1956).
15) A potica simbolista:
a) Cruz e Sousa: Antfona (in: Broqueis: Poesia Completa. Ed.
da UFSC, 1985), Da Senzala..., Dilema (in: O Livro Derra-
deiro: Poesia Completa. Ed. da UFSC, 1985).
16) A potica modernista:
a) Manuel Bandeira: Os Sapos (in: Carnaval), Potica (in: Li-
bertinagem).
b) Carlos Drummond de Andrade: Quadrilha (in: Alguma
Poesia), poro, O Elefante, Morte do Leiteiro (in: A Rosa
do Povo).
c) Jorge de Lima: Essa Negra Ful (in: Novos Poemas).
d) Ceclia Meirelles. Lamento do Oficial por seu Cavalo Mor-to (in: Mar Absoluto e outros poemas).
e) Vincius de Moraes: A Rosa de Hiroshima (in: Antologia
Potica. Companhia das Letras, 1992).
Pense s uma coisa (ah, bom avisar: ao longo de nossa conversa, es-
tarei sempre alternando o tratamento quanto ao nmero - voc/vocs):
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Estes conceitos so, na verdade, meras transcries lexicais quevoc encontra em qualquer dicionrio de lngua portuguesa. Alis, esse
tema voc j tirou de letra em Histria dos Estudos Lingsticos, Estu-
dos Gramaticais e Teoria da Literatura I.
Mas vamos reflexo. A lngua que a gente fala e usa para a comu-
nicao entre ns cidados brasileiros, aqui nascidos ou no a
lngua que tomamos aos portugueses. Essa tomada da lngua aos portu-
gueses configura-se literariamente e devemos entend-la como um longo
processo, que se estende desde os primeiros tempos da colonizao. Esse
processo, ns o acompanharemos atravs da abordagem apresentada por
Affonso vila em Do Barroco ao Modernismo: o desenvolvimento ccli-
co do projeto literrio brasileiro (VILA, 1975: 29-38), que voc deve ler
logo aps passar pelos prximos itens, todos referentes linguagem. Des-
tes itens, os trs primeiros foram retirados do texto de vila:
1) A tomada principia quando a colonizao comeara a se fir-
mar quase ao fim do sculo XVII e primeira metade do sculo
XVIII, tempo em que se d o chamado perodo Barroco da his-
tria literria brasileira. Naquele momento, a obra potica de
Gregrio de Matos oferecia elementos a uma anlise formal,
lingstica e ideolgica como indicativos de um processo de
apropriao da linguagem e apropriao da realidade.
2) Face Independncia do Brasil, a lngua dos portugueses se
transforma em coisa nossa, ao longo do sculo XIX. Ela ganha
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Mas o que eu percebo que o ingls no fator de influncia abso-
luta. Antes, vm desta lngua expresses que se conformam em uma lin-
guagem prpria e especfica. Em verdade, trata-se de expresses oriun-
das das fibras ticas que, por sua vez, abrem-se em pginas de um livro
de ningum: o computador.
Este fenmeno lingstico define o que chamamos de perodo Ps-
Utpico, o qual, por sua vez, englobaria as demais terminologias utiliza-
das at aqui. Trata-se de termos como ps-modernismo, ps-colonialis-
mo, ps-industrialismo termos usados e gastos com a rapidez de um
chip ligando nosso computador.
Pois isso: tal fenmeno lingstico estabeleceu um novo processo
literrio de linguagem inventiva (como pensava Oswald de Andrade),porm exacerbado em seu incontrolvel desenvolvimento. Tempos de
hiper: hipertexto, hiper-linguagem, hiper-realismo.
A lngua do agora traz mltiplas linguagens nela embutidas para
determinar o pensamento moderno e as atitudes ticas e estticas da
metade do sculo XX para c. Que o digam as mais recentes geraes de
escritores e artistas. Eles tm na mdia a matria-prima mais urgente de
sua fatura esttica ou de sua performance artstica. A tev, a fotografia,
o cinema, o outdoor, a imagem, enfim, formam a grade dos elementos
para a composio esttica. Quanto ao contedo, este no raro se assen-
ta na referncia ao j visto, ao j dito, ao j pensado em obras anteriores
e em outros tempos. Os temas abordados so marcadamente urbanos,
primam pela fragmentao semelhante aos clipes das mais variadas cor-
rentes do rockn roll.
Olha a, minha gente, isso assunto que no acaba mais e nos leva
busca da gerao dita 90 e 00 (1990 e 2000), e da em diante. Isto ,
os escritores que vieram na esteira dessa transubstanciao lingstica,
cujos fenmenos eclodiram com a gerao baby boom, ou seja, os nas-
cidos ao tempo da exploso atmica em Hiroshima e Nagasaki; com a
gerao easy-rider, desdenhosa do sistema american way of life, que
teve em Jack Kerouak seu mais expressivo representante; com a gerao
rockn roll de Elvis Presley e Os Beatles; com a gerao hippie e beatnik
da liberao sexual dos anos 70; a nova ordem econmica instaurada
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nos anos 80 e embasada no neo-liberalismo ingls de Margareth Ta-
tcher e referendada pelo ex-ator hollywoodiano Ronald Reagan, ento
presidente dos EUA; com, enfim, a queda do muro de Berlim em 1989,
curiosamente h exatos 200 anos aps a queda da Bastilha, exaurindo
o perodo iluminista calcado na trade libert-egalit-fraternit, que
tanto ajudou a fundar os movimentos libertrios do sculo XIX, como
a abolio dos escravos e a proclamao da repblica onde grassava o
sistema monarquista.
Hoje, pois, fim das utopias. No existe aquele pas, aquela socieda-
de em que tudo est organizado de modo a haver graa e felicidade nas
relaes humanas. Hoje, h o reinado da hipermdia e da lei de merca-
do. Era da tecnologia exacerbada. E ponto.
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2 Segundo Fragmento
Vamos a duas abordagens de reflexo em torno de questes cientfico-
tecnolgicas para percebermos a modernidade em dois autores marcantes denossa literatura. Contemporneos entre si, porm de fases e estilos diferentes,
Machado de Assis e Joo do Rio so os pilares do presente fragmento.
Bem. No d para pr um ponto final no assunto do Fragmento
anterior, assim, sem mais nem menos. claro que a tecnocincia um
assunto do hoje, do agora, e que vai, no mnimo, atravessar esse XXI. Mas
no possvel falar do hoje sem que nos reportemos ao passado. No caso,
voltemos cem anos (fins do XIX incio do XX) quando, ento, toda uma
era cientfica se esgotava. Comeava o tempo dos grandes inventos tec-
nolgicos: o automvel chegava pela primeira vez em solo brasileiro (S.
Paulo) em 1893, Santos Dumont (1873-1932) inaugurava a era da avia-
o, o cinematgrafo dos irmos Lumire estreava em 1896, Karl Marx
(1818-1883) j era texto sagrado do socialismo-comunismo que sacudia
a Europa e Sigmund Freud (1856-1939) teorizava sobre as neuroses hu-
manas, enquanto Machado de Assis (1839-1908)j havia posto muita
gente em seu div de analista (basta lembrar o velho Simo Bacamarte, o
Alienista, que botou uma cidade inteira no manicmio da Casa Verde).
2.1 Machado de Assis
E por falar em Machado de Assis, vamos traz-lo j para o nosso
Curso. Vamos com ele abordar um de seus temas mais preciosos, ou
seja, os deslizes psquicos do ser humano. Por meio desta abordagem,
Machado se coloca como dos mais avanados escritores de seu tempo.
Como dissemos acima, ele se antecipa a Freud: enquanto este pesquisaa mente e o comportamento humanos, o brasileiro vai direto ao ponto,
porquanto transfere para o plano esttico-literrio o drama das desor-
dens mentais. S que com refinada ironia.
Vamos ao texto longo conto O Alienista, que , sem dvida, uma
jia da literatura mdica. Mdica? Isso mesmo, porm sem compromis-
so com a cincia, mesmo porque o texto , na verdade, pea de crtica ao
excesso de cientificismo que marcou o fim do XIX. Entretanto, parte de Machado de Assis
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uma das preocupaes mais profundas de Machado, pois a epilepsia, doen-
a nervosa que o acometera, nele se manifestava na forma de convulses.
Moderno esse conto que, de certa maneira, inaugura matria ca-
racterstica da ps-modernidade: a exposio de dramas psicopatolgi-
cos vividos por seus personagens, manipulados pelo psiquiatra Simo
Bacamarte em sua busca obsessiva dos limites entre a razo e a loucura.
Da pena irnica machadiana no escapa o cruel retrato dos manic-
mios brasileiros semelhantes aos nossos atuais presdios. Outro ingre-
diente importante o fato de refletir a ordem poltico-social brasileira
por meio do micro universo representado pela provinciana cidade de
Itagua. Publicado pela primeira vez em 1881, O Alienistaentrou para a
galeria dos cnones na qualidade de obra fonte da literatura brasileira.
Agora, vamos trazer baila outro conto cabea (duplo sentido:
mexe com o tema cabea e mexe com a cabea do leitor). Trata-se de
O Homem da Cabea de Papelo, do antenado Joo do Rio, autor que,
embora sem o mesmo refinamento literrio de Machado, soube fazer
o retrato do Rio de Janeiro de seu tempo sem nunca perder de vista as
mazelas e contradies humanas.
Antes, porm, para que voc tenha certa noo da modernidade de
Joo do Rio e compreenda como pode um texto significar igualmentedois tempos to distantes (os anos dez do sculo XX e do XXI), ocupe-
se com as Abordagens Reflexivas I e II:
2.1.1 Abordagem I
Para entendermos a modernidade de Joo do Rio e sua cabea de
papelo, passemos reflexo assomada a abaixo, que espicha aquela
do quadro logo acima. Esta vem na forma de parfrase, quando no
com palavras tomadas integralmente a Adauto Novaes (O Estado de SoPaulo, D6, 19/8/07), intelectual que se aprimorou em juntar cabeas
pensantes do Brasil em conferncias que discutem temas de capital im-
portncia para esse nosso tempo de mutaes. Uma dessas confern-
cias justamente a que trata do Silncio dos Intelectuais, como se eles
houvessem sido tomados por uma paralisia ante as situaes de risco,
porque no dizer ante as barbries de uma sociedade perplexa face
quebra dos tradicionais conceitos sobre poltica, crenas e pensamen-
to. Mais do que crise, estes fenmenos poderiam ser entendidos como
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um processo de mutao que germina no nada da revoluo tcnico
cientfica dos ltimos tempos e aponta para a igualdade entre crebro
humano e artificial, aquele dos computadores.
Esse assunto no tem ponto final, como pretendi acima. Entretanto,
no vamos muito alm. Apenas um pouquinho mais de reflexo sobre
o tema a que chamamos Ps-Utopias, no qual linguagens, conceitos
e crenas entram em crise. Crise no seria o termo adequado, melhor
falar em mutao.
Em tempos de avanadssima tecnologia, em que os biotecnlo-
gos prevem, ainda para meados deste sculo XXI, a equivalncia total
da inteligncia artificial (a de computadores) inteligncia humana, a
mutao o processo marcante. No se trata do conceito em seu sen-tido tradicional, em que a mutao era precedida de grandes sistemas
filosficos, polticos, culturais, artsticos. A mutao que vivemos atu-
almente feita no vazio do pensamento, na esteira da grande revoluo
tcnico-cientfica das dcadas recentes. A tecnocincia tem autonomia
face s cincias humanas que tm precedentes na histria do pensamen-
to. Como a tecnocincia no tem em que se apoiar, o resultado que
precisamos inventar muita coisa.
Vivemos em uma poca crtica, em que concepes polticas, cren-as e idias, que antes pareciam dar sentido, agora perdem valor. O fato
que estamos passando por uma grande mutao que, embora consiga-
mos identificar, no conseguimos definir.
Fala-se muito em uma grande revoluo da informao, mas como
trabalhar com informaes provisrias que se tornou uma grande
questo. A informao apenas a mostra do imediato pnico, do fato
em si, puro e simples. Ela a imagem do caos e, como tal, apenas o
caos. Portanto, haveramos de nos ocupar com a reviso dos fatos, o queno conseguimos fazer no calor da hora. Assim que no administra-
mos a poltica dos fatos e nos deixamos levar por esse caos assustador
em que se desvaloriza a idia do tempo histrico. Ou seja, vivemos em
um tempo que definido pelo aqui e agora, destroando-se, com isso, as
duas maiores invenes da humanidade, que so o passado e o futuro.
como se a gente pensasse: j que somos mortais e, por certo, desapare-
ceremos, que se dane o futuro, e o passado j era!
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Estampa-se no presente o mal pensado da morte da civilizao.
Qual seria, ento, outra perspectiva (se houver)?
Hoje as coisas no podem ser pensadas isoladamente e est mui-
to claro que h uma interdependncia entre os mais variados assuntos.Convergem os temas entre si: a nanotecnologia com a biotecnologia, a
infotecnologia com as cincias cognitivas. Est cada vez mais evidente
que o pensamento no existe isoladamente. Assim pensam intelectu-
ais como Srgio Paulo Rouanet, para quem o homem tem a necessidade
de voltar a ser o sujeito do processo de gerao e aplicao do conheci-
mento, com a capacidade plena de ter uma viso de conjunto das ativi-
dades cientficas e tecnolgicas contemporneas.
2.1.2 Abordagem II
Voc assistiu ao filme de Ridley Scott, O Caador de Andrides, ou
Blade Runner(1982), seu ttulo em ingls? Pois bem, um filme que um
espanto. Quanto mais o vemos, mais descobrimos ngulos a serem ana-
lisados. Nele, o ator Harrison Ford faz um detetive duro que sai caa
de pobres andrides, seres criados em laboratrio de biotecnologia, que
eram enviados para terrveis guerras interplanetrias e que, pior, tinham
um tempo de vida delimitado. Alguns desses trans-humanos lograram
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fugir da guerra e vm para uma Los Angeles catica em busca do Pai,
ou seja, daquele que os criara para to desgraada finalidade. Sobretudo,
eles no queriam morrer!
A fico se adianta realidade. Sempre foi assim: o artista criador,muito tempo antes da realidade, prev em traos, letras, formas um fu-
turo distante a ser realizado pela cincia. Assim se deu, atravs das hist-
rias em quadrinhos, a criao de Flash Gordon, a prenunciar as viagens
espaciais; o Superman, dubl de homem e mquina. Porm, antes deles,
a literatura genial de Jlio Verne, com seus personagens em viagens ex-
traordinrias ao fundo do mar e ao centro da terra; e, antes de todos, o
Franksteinde Mary Shelley, estranha criatura urdida nas nvoas densas,
toda sombras do ultra gtico romntico, expresso mesma da iminente
decadncia de uma Europa cansada de sua prpria civilizao.
Frankstein se saiu um monstro. Os robs de hoje trazem mlti-
plos disfarces, inclusive para esconderem candidamente o assassino que
neles poder existir. Foi o caso de outra pea de fico anterior a Bla-
de Runner. Hall 2000, personagem robtico/computador inteligente,
que protagoniza uma das cenas antolgicas do melhor cinema de fico
cientfica. Em 2001, uma Odissia no Espao, Stanley Kubrick, baseado
no romance homnimo de Arthur C. Clark (1918-2008), mostra-nos a
agonia e morte do rob. Trata-se de Hall, nas cenas em que desligado
pelo nico tripulante que sobreviveu srie de assassinatos tecnologica-
mente praticados pelo prprio rob.
Anos 60. Ainda assistia-se supremacia do homem sobre a mqui-
na. Ser assim em 2045, tempo para o qual est prevista a ocorrncia
daquilo a que os biotecnlogos chamam de Singularidade Tecnolgica,
ou seja, o momento exato em que a inteligncia artificial (a de computa-
dores) se igualar dos humanos?
Enfim, chegou o tempo daquilo tudo que era urdidura, trama, in-
veno ficcional tornar-se realidade. Assustadora em meio a um noti-
cirio de pnico, complexa diante de uma sociedade que s faz pensar
narcisicamente no presente como se no houvesse a morte que vir, sem
querer lembrar o passado que poderia ter sido.
Que fazer, enquanto so tantos os homens e pior, homens com
investidura poltica que tm cabea de papelo?
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(Voc pensou em algum poltico, em algum cartola ou em algum seu
vizinho-amigo-colega espertalho, sempre pronto para levar vantagem em
tudo? Ento, voc pensou certo!)
2.2 Joo do Rio
Pois agora chega de bl e vamos ao nosso personagem o Antenor
inventado pelo extravagante Joo do Rio. Ou Godofredo de Alencar,
ou Jos Antonio Jos, ou Joe, ou Claude, ou Joo Paulo Emlio (Crist-
vo) Coelho Barreto, seu verdadeiro nome, dado pelos pais um gacho
e uma mulata desde seu nascimento em 05/08/1881, no Rio de Janeiro,
onde morreu em 23/06/1921. Foi redator de jornais importantes, como
O Pas e Gazeta de Notcias, fundando depois um dirio que dirigiu at o
dia de sua morte,A Ptria. Contista, romancista, autor teatral (condio
em que exerceu a presidncia da Sociedade Brasileira de Autores Tea-
trais), tradutor de Oscar Wilde, foi membro da Academia Brasileira de
Letras, eleito na vaga de Guimares Passos. Entre outros livros, deixou
Dentro da Noite, A Mulher e os Espelhos, Crnicas e Frases de Godofredo
de Alencar, A Alma Encantadora das Ruas, Vida Vertiginosa, Os Dias
Passam, As religies no Rio eRosrio da Iluso, que contm como pri-
meiro conto a admirvel stira O homem da cabea de papelo.
A obra literria deste contemporneo de Machado de Assis no se
encaixa facilmente no Realismo finissecular, nem na esttica modernis-
ta j em andamento, quando, em 1922, se v confirmada na Semana de
Arte Moderna, em So Paulo.
Joo do Rio se situa naquele entre-tempo, entre-caminho a que se
convencionou chamar de Pr-Modernismo, em companhia de Euclides da
Cunha, Afonso Henriques de Lima Barreto, Monteiro Lobato, para citaralguns dos mais importantes nomes que j apontavam para as grandes pre-
ocupaes nacionais e literrias das trs primeiras dcadas do sculo XX.
Dedique-se agora leitura de O Homem da Cabea de Papelo.
Joo do Rio
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Bah, tch! (L vem o gacho admirado de confirmao).
Pois isso. Veio a fala. A gente se comunicou. Desde a mais remo-
ta antigidade que se contam histrias que encerram as mais variadas
experincias vividas, como anotou Walter Benjamin para pensar a nar-rativa, no livroMagia e Tcnica, Arte e Poltica (BENJAMIN: 1987, 197-
221). Mas o que era literatura oral e no foi grafado perdeu-se. Assim
como h muitas lnguas que desaparecero porque no tm literatura.
No tm a memria documentada, grafada, escrita.
Orra, meu! (O paulistano macarrnico, bem depois do jeito que
Antnio de Alcntara Machado flagrou a fala da italianada no formid-
vel Brs, Bexiga e Barra Funda).
Claro que vocs, curiosas e curiosos, movidos pelo esprito de pesquisa
de que todo professor deve se imbuir, havero de buscar confirmao para
o assunto em livros como Presena da Literatura Portuguesa das origens
ao Realismo, de Antonio Soares Amora e Segismundo Spina, pela Editora
Bertrand. Portanto, uma lngua s desde que tenha literatura. Afinal, o
texto documenta um momento histrico e at mesmo os aspectos scio-
lingsticos de uma gente, de uma sociedade, de uma nao. Correria o
risco de desaparecimento toda riqueza da memria de um povo, por sua
literatura oral, caso no fosse grafada. Eis a a funo da literatura.
E a? (Pergunta todo o Brasil como quem quer saber o que que
eu fao com isso?).
Bom, se para entender o que Lingstica, conforme o professor
Castilho, tem que ficar pegando em elefante, digo que para entender de
literatura (um pouco) tem que pegar em livros na forma e no conte-
do. Vamos l!
Conferindo Conceitos
Literatura: o que e quais alguns conceitos que podero deixar
clara sua importncia para uma sociedade como a brasileira, que, alis,
no l, malgrado o alerta feito por Monteiro Lobato (aquele do Stio do
Pica-pau Amarelo?):
Um pas se faz com homens e livros.
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4 Quarto Fragmento
Colhendo este quarto fragmento, voc ter uma idia sobre as razes
culturais brasileiras, principalmente a partir das reflexes modernistas. Tais
reflexes aparecem aqui por meio de um recurso que bem poderia ser entendi-
do como um dilogo entre Srgio Buarque de Holanda, Oswald de Andrade e
Mrio de Andrade. Entretanto, para aodar o assunto, havemos de nos remeter
ao indianismo de Jos de Alencar e malandragem braslica, esta correndo
solta pelas novelas de tev.
Onde comea o Brasil?
Essa uma boa pergunta. Porm, antes de mais nada, d uma olha-
dinha no esplndido quadro A Primeira Missa do Brasil, pintado em
1861 pelo catarinense Vitor Meireles.
A Primeira Missa do Brasil, Vitor Meireles
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Ento, se voc logo se puser a ler Razes do Brasil, de Srgio Buar-
que de Holanda, vai descobrir de cara a ponta do novelo para entender
quem somos ns, os brasileiros. Vai descobrir de onde veio toda essa
preguia, o desleixo com a coisa pblica, o anseio por buscar o meio mais
fcil para atingir um fim, o levar vantagem em tudo, as relaes de favo-
res, a facilitao s prticas corruptas, o gostoso sentimento da saudade.
Se voc pensou no colonizador portugus, acertou em cheio. In-
sisto: leia Razes do Brasil e o assunto lhe parecer muito claro. Outra
obra de grande importncia para entender a nossa nao Retratos do
Brasil, cujo autor, Paulo Prado, trouxe-o a lume no efervescente ano de
1928, o mesmo ano do Macunama de Mrio de Andrade e do definitivo
Manifesto Antropfago, do agitador cultural Oswald de Andrade.Quer saber de uma coisa? Pegue uma folha de papel almao pauta-
da (ops! coisa mais antiga!), abra o Word e j v escrevendo sua primeira
redao sobre o assunto O Brasil: o que era e no que deu para que
j faa um arquivo para consulta posterior sobre o aproveitamento que
voc tirou dessas paradas.
Agora vamos encarar a cozinha brasileira, preparando uma comi-
dinha cultural.
Pegue os seguintes ingredientes:
1) um suco bem concentrado de Razes do Brasil;
2) uma poro bem escolhida de Iracema;.
3) uma medida esperta de Paraso Tropical (ou qualquer outra te-
lenovela equivalente).
4.1 Da Telenovela
Lembra daquela telenovela do ano passado na Globo, em que a sa-
fadeza, a bandidagem e o mau-caratismo corriam soltos? Era a tal Para-
so Tropical, em que personagens com aquelas qualidades aqui citadas
faziam a catarse da nao brasileira. Era o Olavo (personagem vivido
por Wagner Moura) e a Bebel (vivida por Camila Pitanga). ta, dupla de
cafajestes! Mas cafajeste era o que no faltava naquela novelinha, no
Este assunto ser retoma-do logo frente.
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mesmo? (Alis, mau carter o que no pode faltar em novela alguma,
caso contrrio, no d ibope.)
Despreze aqueles personagens xaropes feitos de caras e bocas, ba-
lanando a cabeorra tal aqueles bichinhos de R$ 1,99 que muitos mo-toristas gostam de pr no painel do automvel s pra ver aquelas coisi-
nhas balanarem ao movimento do carro. Estou falando de personagens
clichs como a Lcia, feita pela atriz Rene de Vilemond: s ela no en-
xerga que o marido a trai e toda bondade! Depois da grande desiluso
em saber-se enganada, descobre, toda pudores, o grande amor de sua
vida. Trata-se de um jovem com idade para ser seu filho e com quem,
para delrio dos telespectadores, adota uma criana. Mais politicamen-
te corretos impossvel. Telenovela isso: o abuso da inverossimilhana.Dane-se. A audincia a-do-ra!
A propsito, se voc no viuParaso Tropical, serve qualquer outra,
pois ingrediente de novela sempre o mesmo. E, pelo jeito, ser sempre
assim.
Mas vale aqui indicar as origens da malandragem braslica que
debandou, lamentavelmente, em cafajestice generalizada. Refiro-me
necessria leitura deMemrias de um Sargento de Milcias, de Manuel
Antnio de Almeida, que focalizou os costumes fluminenses dentro domomento histrico de um Rio de Janeiro transformado em sede do im-
prio portugus, com D. Joo VI. Para se aprofundar no tema, voc deve
mergulhar no precioso ensaio de Antonio Candido, intitulado Dialti-
ca da Malandragem (1993).
4.2 De Iracema
AIracema do Alencar era aquela ndia bonita, toda bondade e todaentregue ao portugus desbravador, com o intuito ideolgico de mos-
trar a miscigenao das raas ndia e branca para a boa formao do
carter nacional. Mas s que, voc bem observou, o danado do bravo
portugus pegou o filhinho dele feito com a pobre ndia que, coitada,
morreu, e levou pra criar e educar em Portugal. Direitinho como faziam
as famlias de grandes recursos em relao aos seus rebentos, seus filhos,
que voltariam de Coimbra diplomados em Direito para continuar a ge-
Lembretinho chato: seainda no leu, corra!
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Bom mesmo para entrar nesse assunto e entend-lo com segurana
e qualidade dar uma boa lida (isto quer dizer: fazer uma leitura crite-
riosa) nas poucas pginas (apenas dez) em que Affonso vila apresenta
o projeto literrio brasileiro entre o Barroco e o Modernismo. O texto
se encontra em O Modernismo, editado pela Perspectiva, que contm
vrios ensaios sobre o tema, assinados por Benedito Nunes, Silviano
Santiago, Affonso Romano de Santanna, entre outros, e foi o prprio
Affonso vila quem coordenou e organizou essa importante edio em
comemorao aos 50 anos da Semana de Arte Moderna. Bom, sobre o
texto de Affonso vila, apontarei algumas dicas mais adiante.
O negcio o seguinte: 1928 foi o ano da publicao, nada mais
nada menos, de trs ttulos de fulcral importncia para o entendimento
do Brasil. Vejam s:
1) Manifesto Antropfago, de Oswald de Andrade.
2) Macunama, de Mrio de Andrade.
3) Retratos do Brasil, de Paulo Prado.
mole? Ento vamos voltar quatro anos, 1924, para bem entender
o esprito da coisa. Quer dizer, do Modernismo. E comecemos pelo seu
grande mestre de cerimnias. Como em um picadeiro, assim diramos: Senhoras e senhores, com vocs, para animar a festa:
4.4 Oswald de Andrade!
Para bem compreender o Modernismo do Brasil, cumpre sejam
feitas algumas leituras. Os Manifestos de Oswald de Andrade Pau-
Brasil, de 1924, eAntropfago, de 1928 so bandeiras apontando para
um novo pensamento que abraa a um s tempo as artes, a poltica e asociedade.
Importantssima foi a obra de Oswald. Seus dois romances,Mem-
rias Sentimentais de Joo Miramar(1924) e Serafim Ponte Grande(1933),
sua poesia inscrita do Primeiro caderno do aluno de poesia Oswald de
Andrade(1927), bem como sua pea teatral O Rei da Vela, escrita em
1933, publicada em 1936 e levada ao palco apenas em 1963 na ence-
nao fundadora do Tropicalismo, criada por Jos Celso Martinez no Oswald de Andrade
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Teatro Oficina de So Paulo, radicalizam as conquistas da liberdade de
criao artstica propugnadas pelo Modernismo.
Vamos pegar a seguir alguns versos comentados desse aluno mes-
tre que, no dizer de Dcio Pignatari (bem ao final do documentrio daTV Cultura), mais do que vanguarda de seu tempo, Oswald foi moder-
no, mais que moderno, eterno.
4.4.1 Pau-Brasil
No livro Pau-Brasil, Oswald de Andrade pe em prtica as propos-
tas do Manifesto de mesmo nome. Na primeira parte do livro, Histria
do Brasil, ele recupera documentos da nossa literatura de informao,
dando-lhes um vigor potico surpreendente. Na segunda, Poemas dacolonizao, rev alguns momentos de nossa poca colonial.
A descrio da paisagem brasileira, as cenas do cotidiano e o uso de
metalinguagem so constncias entre os poemas de Pau-Brasil, marca-
dos, ainda, pelo verso livre, pelo tom de prosa, pela simplicidade da lin-
guagem e pela extrema condensao. Pau-Brasil sugere a idia da poesia
como ingenuidade, surpresa e tambm imaginao, inveno, magia,
liberdade. Associado ao universo infantil, o livro rompe as fronteiras
entre sonho e realidade, propondo uma potica de renovao estticaque aponta para a redescoberta da poesia.
Passemos a alguns dos poemas de Pau-Brasil, pincelando pequenos
comentrios:
Pronominais
D-me um cigarro
Diz a gramtica
Do professor e do aluno
E do mulato sabido
Mas o bom negro e o bom branco
Da nao brasileira
Dizem todos os dias
Deixa disso camarada
Me d um cigarro
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Os versos apontam para uma potica da coloquialidade e da na-
cionalidade. Da miscigenao racial negros e brancos , forma-se o
mulato, ou seja, uma outra cor, uma nova raa. Esta raa, por sua vez,
altera a cultura do colonizador e faz valer sua prpria inveno lings-
tica. Em processo, pois, a miscigenao cultural. O poema remete a um
dos baluartes da formao cultural brasileira. Trata-se de Gregrio de
Matos, que, juntamente com Machado de Assis e Euclides da Cunha,
forma o que Oswald chamava de base literria do Brasil.
O Capoeira
Qu apanh sordado?
O qu?
Qu apanh?
Pernas e cabeas na calada
A idia de luta sugerida apenas por um dilogo-relmpago, ti-
picamente popular (note que o texto escrito copia a oralidade) e pela
metonmia (pernas e cabeas na calada a parte pelo todo), que ilustra
o estilo telegrfico, extremamente sinttico, de Oswald de Andrade. Se-
gundo Antonio Candido, Oswald foi o inaugurador, em nossa literatura,
da transposio de tcnicas de cinema montagem de cenas, tentativade descontinuidade para causar a impresso de imagens simultneas
para o texto literrio.
Relicrio
No baile da corte
Foi o conde dEu quem disse
Pra Dona Benvinda
Que farinha de Suru
Pinga de Parati
Fumo de Baependi
com beb pit e ca
Este poema representativo da proposta Pau-Brasil de poesia de
exportao. Trata-se de recontar momentos significativos da histria
da colonizao do Brasil de maneira irnica, crtica, como na cena de
Relicrio. Nela, um personagem histrico, o Conde dEu, no baile da
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Corte, conversa com Dona Benvinda uma conversa de cozinha: rt-
mica, folclrica, engraada, surpreendente para o contexto do baile da
Corte. Note que o relicrio significa recinto ou lugar especial, prprio
para guardar objetos de estimao. Veja-se, pois, a impropriedade con-tida no poema ele mesmo um relicrio para essas coisas to prosaicas
e pndegas do Brasil monarquista. Poema marcadamente oswaldiano: a
conversa, a ironia, a piada.
Cano de Regresso Ptria
Minha terra tem palmares
Onde gorjeia o mar
Os passarinhos daquiNo cantam como os de l
Minha terra tem mais rosas
E quase que mais amores
Minha terra tem mais ouro
Minha terra tem mais terra
Ouro terra amor e rosas
Eu quero tudo de l
No permita Deus que eu morra
Sem que eu volte para l
No permita Deus que eu morra
Sem que eu volte para So Paulo
Sem que eu veja a rua 15
E o progresso de So Paulo
Esta a primeira pardia modernista da Cano do Exliode Gon-
alves Dias, poeta romntico. Hino nacionalidade, o poema original
apresenta uma viso ufanista, idealizadora da ptria. Em sua pardia,
Oswald de Andrade troca palmeiras por palmares, mostrando, assim, o
nacionalismo crtico dos modernistas: minha terra tem opresso, escra-
vido, dominao e tambm lutas pela libertao. Palmares o nome do
mais famoso quilombo para onde fugiam os escravos.
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H, tambm, uma referncia clara ao progresso de So Paulo sm-
bolo do desenvolvimento econmico do pas , que se ope valoriza-
o da natureza presente no poema de Gonalves Dias.
Ao dizer que os passarinhos daqui, isto , do estrangeiro, no can-tam como os de l os do Brasil , Oswald relativiza a idia da superio-
ridade de nossa fauna e de nossa flora em relao Europa, afirmando
a diferena em oposio ao que se encontra em Gonalves Dias. O ver-
so E quase que mais amores acentua a relativizao do patriotismo
romntico a que nos referimos. Finalmente, a ausncia de pontuao,
especialmente em Ouro terra amor e rosas, acaba de configurar a mo-
dernidade da Cano de Regresso Ptria. Trata-se, pois, de um poema
pardico que, aparentemente imitando o texto a partir do qual foi escri-to, faz, na verdade, inverter seus sentidos atravs da stira.
Leitura:
Manifesto da Poesia Pau-Brasil
A poesia existe nos fatos. Os casebres de aafro e de ocre nos verdes da
Favela, sob o azul cabralino, so fatos estticos.
O Carnaval no Rio o acontecimento religioso da raa. Pau-Brasil. Wagner
submerge ante os cordes de Botafogo. Brbaro e nosso. A formao tni-ca rica. Riqueza vegetal. O minrio. A cozinha. O vatap, o ouro e a dana.
Toda a histria bandeirante e a histria comercial do Brasil. O lado doutor,
o lado citaes, o lado autores conhecidos. Comovente. Rui Barbosa: uma
cartola na Senegmbia. Tudo revertendo em riqueza. A riqueza dos bailes
e das frases feitas. Negras de Jockey. Odaliscas no Catumbi. Falar difcil.
O lado doutor. Fatalidade do primeiro branco aportado e dominando
politicamente as selvas selvagens. O bacharel. No podemos deixar de
ser doutos. Doutores. Pas de dores annimas, de doutores annimos. OImprio foi assim. Eruditamos tudo. Esquecemos o gavio de penacho.
A nunca exportao de poesia. A poesia anda oculta nos cips malicio-
sos da sabedoria. Nas lianas da saudade universitria.
Mas houve um estouro nos aprendimentos. Os homens que sabiam
tudo se deformaram como borrachas sopradas. Rebentaram.
A volta especializao. Filsofos fazendo filosofia, crticos, critica, donas
de casa tratando de cozinha.
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A Poesia para os poetas. Alegria dos que no sabem e descobrem.
Tinha havido a inverso de tudo, a invaso de tudo : o teatro de tese e a
luta no palco entre morais e imorais. A tese deve ser decidida em guerra
de socilogos, de homens de lei, gordos e dourados como Corpus Juris.gil o teatro, filho do saltimbanco. gil e ilgico. gil o romance, nascido
da inveno. gil a poesia..
A Poesia Pau-Brasil. gil e cndida. Como uma criana.
Uma sugesto de Blaise Cendrars : - Tendes as locomotivas cheias, ides
partir. Um negro gira a manivela do desvio rotativo em que estais. O me-
nor descuido vos far partir na direo oposta ao vosso destino.
Contra o gabinetismo, a prtica culta da vida. Engenheiros em vez de
jurisconsultos, perdidos como chineses na genealogia das idias.
A lngua sem arcasmos, sem erudio. Natural e neolgica. A contribui-
o milionria de todos os erros. Como falamos. Como somos.
No h luta na terra de vocaes acadmicas. H s fardas. Os futuristas
e os outros.
Uma nica luta - a luta pelo caminho. Dividamos: Poesia de importao.
E a Poesia Pau-Brasil, de exportao.
Houve um fenmeno de democratizao esttica nas cinco partes s-bias do mundo. Institura-se o naturalismo. Copiar. Quadros de carneiros
que no fosse l mesmo, no prestava. A interpretao no dicionrio
oral das Escolas de Belas Artes queria dizer reproduzir igualzinho... Veio
a pirogravura. As meninas de todos os lares ficaram artistas. Apareceu a
mquina fotogrfica.
E com todas as prerrogativas do cabelo grande, da caspa e da misteriosa
genialidade de olho virado - o artista fotgrafo.
Na msica, o piano invadiu as saletas nuas, de folhinha na parede. Todasas meninas ficaram pianistas. Surgiu o piano de manivela, o piano de
patas. A pleyela. E a ironia eslava comps para a pleyela. Stravinski.
A estaturia andou atrs. As procisses saram novinhas das fbricas.
S no se inventou uma mquina de fazer versos - j havia o poeta
parnasiano.
Ora, a revoluo indicou apenas que a arte voltava para as elites. E as
elites comearam desmanchando. Duas fases: 1) a deformao atravs
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do impressionismo, a fragmentao, o caos voluntrio. De Czanne e
Malarm, Rodin e Debussy at agora; 2) o lirismo, a apresentao no
templo, os materiais, a inocncia construtiva.
O Brasil profiteur. O Brasil doutor. E a coincidncia da primeira constru-o brasileira no movimento de reconstruo geral. Poesia Pau-Brasil.
Como a poca miraculosa, as leis nasceram do prprio rotamento di-
nmico dos fatores destrutivos.
A sntese
O equilbrio
O acabamento de carrosserie
A inveno
Uma nova perspectiva
Uma nova escala.
Qualquer esforo natural nesse sentido ser bom. Poesia Pau-Brasil
O trabalho contra o detalhe naturalista - pela sntese; contra a morbidez
romntica - pelo equilbrio gemetra e pelo acabamento tcnico; con-
tra a cpia, pela inveno e pela surpresa.
Uma nova perspectiva:
A outra, a de Paolo Ucello criou o naturalismo de apogeu. Era uma ilu-
so tica. Os objetos distantes no diminuam. Era uma lei de aparncia.
Ora, o momento de reao aparncia. Reao cpia. Substituir a
perspectiva visual e naturalista por uma perspectiva de outra ordem:
sentimental, intelectual, irnica, ingnua.
Uma nova escala.
A outra, a de um mundo proporcionado e catalogado com letras nos li-
vros, crianas nos colos. O redame produzindo letras maiores que torres.
E as novas formas da indstria, da viao, da aviao. Postes. Gasmetros
Rails. Laboratrios e oficinas tcnicas. Vozes e tiques de fios e ondas efulguraes. Estrelas familiarizadas com negativos fotogrficos. O corres-
pondente da surpresa fsica em arte.
A reao contra o assunto invasor, diverso da finalidade. A pea de tese
era um arranjo monstruoso. O romance de idias, uma mistura. O quadro
histrico, uma aberrao. A escultura eloquente, um pavor sem sentido.
Nossa poca anuncia a volta ao sentido puro.
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Brbaros, crdulos, pitorescos e meigos. Leitores de jornais. Pau-Brasil. A
floresta e a escola. O Museu Nacional. A cozinha, o minrio e a dana. A
vegetao. Pau-Brasil.
OSWALD DE ANDRADE
Correio da manh, 18 de maro de 1924.
(In: Revista do Livro. Rio de Janeiro: INL, n 16, dezembro, 1959.
APUD: Gilberto Mendona Teles. Vanguarda Europia e Modernismo
Brasileiro. Petrpolis: Vozes, 1978, p. 266-271.)
Agora que voc fez este ligeiro contato com a potica do mais ino-
vador dos modernistas, passemos ao texto que contm todas as cha-
ves para o entendimento do pensamento moderno brasileiro. Oswaldo publicou no jornal paulistano Correio da Manh, na edio de 18 de
Maro de 1924. Leia oManifesto Pau-Brasile os poemas de Oswald de
Andrade. Boa leitura!
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Unidade BAs Bandeiras
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Quinto Fragmento
Este fragmento tem a propriedade de acentuar o grande tema das preo-
cupaes estticas e polticas do Modernismo entre ns. Por isso ele remete adois textos tidos como bandeiras que avanam no mbito das discusses para a
compreenso da cultura brasileira.
5.1 Retomando 1928
Macunama, do outro Andrade, o Mrio, apresenta uma nova pers-
pectiva da nao brasileira, porquanto alude formao de um carter
nacional que se revela indefinido. Tal observao aponta para o heri
sem nenhum carter como personagem universal, e no exclusivamente
brasileiro. No entanto, possvel pesar os fatos do nascimento e cres-
cimento do heri: Macunama nasce no fundo do mato-virgem e vive
num mocambo numa clara referncia sua origem indgena , era
preto retinto e filho do medo da noite (ANDRADE, 1993, p. 9). No Ca-
ptulo IV, toma banho numa gua encantada, tornando-se [...] branco
louro e de olhos azuizinhos (ANDRADE, 1993, p.30). Assim, Mrio
nos apresenta o heri, resultado da fuso de trs raas, sendo todas elas
ao mesmo tempo e, portanto, tipicamente brasileiro.
Quanto a Retratos do Brasil, Paulo Prado o escreveu em 1928, tra-
zendo como subttulo Ensaio Sobre a Tristeza Brasileira. A tristeza, o
romantismo, a luxria e o vcio da imitao eram apontados como os
maiores problemas da nacionalidade. Naquela poca, mais precisamen-
te em 1931, dois outros livros, O Pas do Carnaval, de Jorge Amado, e
Maquiavel e o Brasil, de Otvio de Farias, expressavam o clima intelec-
tual da poca, marcado pela idia de crise e incerteza.
Leitura:
Manifesto Antropfago
S a Antropofagia nos une. Socialmente. Economicamente.
Filosoficamente.
nica lei do mundo. Expresso mascarada de todos os individualismos, de
todos os coletivismos. De todas as religies. De todos os tratados de paz.
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Tupy, or not tupy that is the question.
Contra todas as catequeses. E contra a me dos Gracos.
S me interessa o que no meu. Lei do homem. Lei do antropfago.
Estamos fatigados de todos os maridos catlicos suspeitosos postos em
drama. Freud acabou com o enigma mulher e com outros sustos da
psicologia impressa.
O que atropelava a verdade era a roupa, o impermevel entre o mundo
interior e o mundo exterior. A reao contra o homem vestido. O cinema
americano informar.
Filhos do sol, me dos viventes. Encontrados e amados ferozmente, com
toda a hipocrisia da saudade, pelos imigrados, pelos traficados e pelos
touristes. No pas da cobra grande.
Foi porque nunca tivemos gramticas, nem colees de velhos vegetais.
E nunca soubemos o que era urbano, suburbano, fronteirio e continen-
tal. Preguiosos no mapa-mndi do Brasil.
Uma conscincia participante, uma rtmica religiosa.
Contra todos os importadores de conscincia enlatada. A existncia pal-
pvel da vida. E a mentalidade pr-lgica para o Sr. Lvy-Bruhl estudar.
Queremos a Revoluo Caraiba. Maior que a Revoluo Francesa. A unifi-cao de todas as revoltas eficazes na direo do homem. Sem n6s a Eu-
ropa no teria sequer a sua pobre declarao dos direitos do homem.
A idade de ouro anunciada pela Amrica. A idade de ouro. E todas as
girls.
Filiao. O contato com o Brasil Caraba. Ori Villegaignon print terre.
Montaig-ne. O homem natural. Rousseau. Da Revoluo Francesa ao
Romantismo, Revoluo Bolchevista, Revoluo Surrealista e ao br-
baro tecnizado de Keyserling. Caminhamos..
Nunca fomos catequizados. Vivemos atravs de um direito sonmbulo.
Fizemos Cristo nascer na Bahia. Ou em Belm do Par.
Mas nunca admitimos o nascimento da lgica entre ns. Contra o Padre
Vieira. Autor do nosso primeiro emprstimo, para ganhar comisso. O
rei-analfabeto dissera-lhe : ponha isso no papel mas sem muita lbia.
Fez-se o emprstimo. Gravou-se o acar brasileiro. Vieira deixou o di-
nheiro em Portugal e nos trouxe a lbia.
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A fixao do progresso por meio de catlogos e aparelhos de televiso.
S a maquinaria. E os transfusores de sangue.
Contra as sublimaes antagnicas. Trazidas nas caravelas.
Contra a verdade dos povos missionrios, definida pela sagacidade de umantropfago, o Visconde de Cairu: mentira muitas vezes repetida.
Mas no foram cruzados que vieram. Foram fugitivos de uma civiliza-
o que estamos comendo, porque somos fortes e vingativos como o
Jabuti.
Se Deus a conscinda do Universo Incriado, Guaraci a me dos viven-
tes. Jaci a me dos vegetais.
No tivemos especulao. Mas tnhamos adivinhao. Tnhamos Poltica
que a cincia da distribuio. E um sistema social-planetrio.
As migraes. A fuga dos estados tediosos. Contra as escleroses urba-
nas. Contra os Conservatrios e o tdio especulativo.
De William James e Voronoff. A transfigurao do Tabu em totem.
Antropofagia.
O pater famlias e a criao da Moral da Cegonha: Ignorncia real das
coisas + falta de imaginao + sentimento de autoridade ante a prole
curiosa. preciso partir de um profundo atesmo para se chegar idia de Deus.
Mas a caraba no precisava. Porque tinha Guaraci.
O objetivo criado reage com os Anjos da Queda. Depois Moiss divaga.
Que temos ns com isso?
Antes dos portugueses descobrirem o Brasil, o Brasil tinha descoberto
a felicidade.
Contra o ndio de tocheiro. O ndio filho de Maria, afilhado de Catarina
de Mdicis e genro de D. Antnio de Mariz.
A alegria a prova dos nove.
No matriarcado de Pindorama.
Contra a Memria fonte do costume. A experincia pessoal renovada.
Somos concretistas. As idias tomam conta, reagem, queimam gente
nas praas pblicas. Suprimamos as idias e as outras paralisias. Pelos
roteiros. Acreditar nos sinais, acreditar nos instrumentos e nas estrelas.
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Contra Goethe, a me dos Gracos, e a Corte de D. Joo VI.
A alegria a prova dos nove.
A luta entre o que se chamaria Incriado e a Criatura ilustrada pela
contradio permanente do homem e o seu Tabu. O amor cotidiano eo modus vivendi capitalista. Antropofagia. Absoro do inimigo sacro.
Para transform-lo em totem. A humana aventura. A terrena finalidade.
Porm, s as puras elites conseguiram realizar a antropofagia carnal, que
traz em si o mais alto sentido da vida e evita todos os males identifica-
dos por Freud, males catequistas. O que se d no uma sublimao do
instinto sexual. a escala termomtrica do instinto antropofgico. De
carnal, ele se torna eletivo e cria a amizade. Afetivo, o amor. Especulativo,
a cincia. Desvia-se e transfere-se. Chegamos ao aviltamento. A baixa
antropofagia aglomerada nos pecados de catecismo a inveja, a usura,a calnia, o assassinato. Peste dos chamados povos cultos e cristianiza-
dos, contra ela que estamos agindo. Antropfagos.
Contra Anchieta cantando as onze mil virgens do cu, na terra de Irace-
ma, o patriarca Joo Ramalho fundador de So Paulo.
A nossa independncia ainda no foi proclamada. Frase tpica de D. Joo
VI: Meu filho, pe essa coroa na tua cabea, antes que algum aventu-
reiro o faa! Expulsamos a dinastia. preciso expulsar o esprito bragan-
tino, as ordenaes e o rap de Maria da Fonte.
Contra a realidade social, vestida e opressora, cadastrada por Freud a
realidade sem complexos, sem loucura, sem prostituies e sem peni-
tencirias do matriarcado de Pindorama.
OSWALD DE ANDRADE
Em Piratininga Ano 374 da Deglutio do Bispo Sardinha.
(Revista de Antropologia, Ano 1, No. 1, maio de 1928.)
Passemos agora apreciao do Manifesto Antropfago, de Oswald
de Andrade.
Este Manifesto constitui-se numa sntese de alguns pensamentos
do autor sobre o Modernismo Brasileiro. Inspirava-se explicitamente
em Marx, em Freud, Breton, Montaigne e Rousseau e atacava explici-
tamente a missionao, a herana portuguesa e o padre Antonio Vieira.
Antes de os portugueses descobrirem o Brasil, o Brasil tinha descoberto
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Lembrando de Literatura I
Mas nunca admitimos o nascimento da lgica entre ns. Contra
o Padre Vieira. Autor do nosso primeiro emprstimo, para ga-nhar comisso. O rei-analfabeto dissera-lhe: ponha isso no papel
mas sem muita lbia. Fez-se o emprstimo. Gravou-se o acar
brasileiro. Vieira deixou o dinheiro em Portugal e nos trouxe a
lbia.
Qual a relao que este trecho doManifesto Antropfagotem com os
sermes de Vieira e com o texto Vieira ou a cruz da desigualdade,
de Alfredo Bosi, que voc leu na Disciplina de LBI (LLV9002)?
Resposta:
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Sexto Fragmento
Com este Fragmento, passamos ao estudo de um de nossos maiores
poetas, Carlos Drummond de Andrade, cotejando-o, porm, com outraslinguagens poticas. Alm de dois ensaios esclarecedores sobre a obra do poeta
mineiro, o Fragmento remete prtica da interdisciplinaridade, referindo-se a
um dos cantos de Os Lusadas, matria da Disciplina Literatura Portuguesa I.
6.1 Uma Fatia de Poesia: Augusto dos
Anjos, Carlos Drummond de
Andrade e Adlia Prado
Para a presente aula, voc vai encarar trs tempos literrios dife-
rentes por meio de trs poetas com alguns pontos em comum. Voc
comprovar algumas coisas importantes:
1) que a gente pode ensinar e estudar literatura agrupando pocas
bem distintas e autores diferentes entre si.
2) que ns, professores, no precisamos (e nem devemos) progra-
mar o ensino seguindo uma linha horizontal, como nos im-pem os livros didticos tradicionais.
3) que escritores e artistas de diferentes tempos cumprem estti-
cas diferentes, porm se alinham em torno de temas comuns de
maneira grandiosa.
4) que fases literrias diferentes so muito relativas, pois no se
joga fora o passado de um momento a outro.
Os trs tempos so:
a) Simbolismo, Decadentismo, Impressionismo, cujo pero-
do ficaria definido entre as ltimas dcadas do sculo XIX e a
Semana de Arte Moderna de 1922, em So Paulo. O processo
literrio se d nos anos 80 e 90 daquele sculo, quando o ne-
gro catarinense, Joo da Cruz e Sousa, surge com uma potica
que se afasta pouco a pouco da dos parnasianos, indo na dire-
o de uma mais profunda, tal qual a dos franceses Baudelaire,
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6.2 Anlise 1
Para o bom entendimento destas duas obras da literatura brasileira,
escolhemos a anlise em termos comparativos feita pelo escritor, jorna-
lista, compositor paraibano Brulio Tavares.
A Mquina do Mundo / As Cismas do Destino
Uma Anlise Comparativa entre Drummond e dos Anjos
Brulio Tavares
Quero comparar dois poemas famosos de nossa literatura: As Cismas do
Destino, de Augusto dos Anjos (1908), e A Mquina do Mundo, de Carlos
Drummond de Andrade (em Claro Enigma, 1948-1951). So tantas as se-
melhanas entre os dois poemas (em tema, em linguagem, em estrutura)que no h dvida de que o segundo uma citao deliberada do pri-
meiro. Penso que a inteno de Drummond foi de recompor em termos
prprios a experincia da viso csmica, registrada no texto de Augus-
to. Podemos dizer, com alguma liberdade potica, que ambos os poetas
funcionaram como stuntminds, como mentes de aluguel que correram
o risco de receber o Claro emitido pela Verdade Oculta do Universo (ou
coisa equivalente) para transmitir em palavras o seu plido reflexo.
So numerosos os relatos de indivduos que declaram haver experi-
mentado em algum momento um vislumbre visionrio em que o mun-do inteiro parecia estar presente diante de si, e em que todas a coisas
pareciam embebidas de significao. Ao emergir de uma experincia
desse tipo, as pessoas de ndole religiosa a consideram uma iluminao
mstica, um sinal da presena da Divindade. Freud chamou a isso ex-
perincias ocenicas, Jung experincias numinosas, Abraham Maslow
experincias culminantes (peak experiences). As interpretaes variam,
mas parece claro que esto todos se referindo mesma coisa.
Os poemas As Cismas do Destino (Augusto) e A Mquina do Mundo
(Drummond) descrevem experincias desse tipo. Em ambos, o poeta
faz a ss uma caminhada, e comea a ser dominado pela sensao cada
vez mais intensa da presena (quase que da aproximao) do Mundo.
Ele tem a impresso de que o mundo se personifica, o mundo lhe dirige
a palavra; segue-se uma torrente de imagens que procuram, de modo
fragmentrio, exprimir esse recado do Mundo. A viso fugaz e logo se
desvanece; o poeta constata a impossibilidade de apreender o Mundo,
cuja complexidade transcende o intelecto e os sentidos.
Ele pode ser lido maisamide nos sites: www.
jornaldaparba.globo.com
e tambm na revista ele-trnica Cronpios www.cronpios.com.br
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As Cismas do Destino um poema longo: 105 quadras em decassla-
bos (420 versos). A Mquina do Mundo se compe de 32 tercetos em
decasslabos (96 versos). Para efeito desta anlise, tambm bom con-
siderar o poema Relgio do Rosrio ( 22 dsticos em decasslabos, num
total de 42 versos), que o prprio Drummond considerou complemen-
tar ao outro -- os dois juntos compem a Parte VI (intitulada A mquina
do mundo) do Claro Enigma.
As Cismas do Destino puro Augusto dos Anjos: uma catadupa de
imagens desconexas e inesquecveis (o poema abre com as famosas li-
nhas: Recife. Ponte Buarque de Macedo. / Eu, indo em direo casa do
Agra, / assombrado com a minha sombra magra, / pensava no Destino,
e tinha medo!). Augusto era um poeta obsessivo, que gostava de vivisse-
cionar uma imagem no papel at livrar-se dela. Em As Cismas do Desti-
no, essa reiterao dos prprios lugares comuns acaba desequilibrando
o poema, ao inchar em demasia suas duas primeiras partes e retardar
o momento da Viso: Augusto dedica 40 linhas imagem do escarro
(quadras 19 a 28 ), 64 linhas s formas de vida rudimentares (quadras 35
a 50), 28 linhas prostituio (quadras 51 a 57). visvel nesses trechos
(como de resto ao longo de toda sua obra) que ele no escrevia para
produzir emoes no leitor, e sim para dren-las de si prprio.
Surge a Revelao, que menos visual que auditiva. Augusto ouve uma
impressionadora voz interna / o eco particular do meu Destino. Essa vozo interpela diretamente (Homem!); zomba da sua ambio de entender
os cosmos, e faz depois uma extensa enumerao de todas as coisas que
o terrqueo abismo encerra. Esta enumerao catica se desenrola ao
longo de quase cem versos (quadras 70 a 83), e caracterstica de Augus-
to: ele sempre d a impresso de que poderia prolong-la indefinidamen-
te, sem nunca se dar por satisfeito. Concluda (ou melhor: interrompida)
a enumerao, a Voz ainda joga umas derradeiras ps-de-cal no poeta, e
cala-se. O texto se interrompe logo frente, como se o poeta tivesse de
repente largado a pena e se erguido da mesa, dizendo: Chega.
Comparado ao poema de Augusto dos Anjos, A Mquina do Mundo
um texto de notvel frieza. O texto de Augusto pontilhado de excla-
maes e de exageros; o de Drummond todo nostalgia e voz baixa,
como um entomlogo relatando a um colega de laboratrio uma ex-
perincia levada a efeito tempos atrs, e no muito bem sucedida. Em
ambos os poemas, entretanto, esto presentes os mesmos elementos:
a Caminhada; a contemplao da Paisagem; a brusca Revelao; o Re-
cado do Mundo.
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A revelao colhida por Drummond lcida, apolnea: a revelao
dada aos olhos de um homem maduro, por volta dos 50, e difere da
que recebida pelo rapaz neurtico de 24 que escreveu As Cismas do
Destino. O Mundo, para Drummond, uma mquina ou algo cuja
natureza tem parentesco com a natureza das mquinas. A mquina se
desvela, majestosa e circunspecta; o poeta reconhece que o fez sem
voz alguma / ou sopro ou eco ou simples percusso, mas recebe a re-
velao como uma mensagem pessoal, e no hesita em abrir aspas para
a mquina e atribuir-lhe palavras.
A mquina de Drummond tambm menos loquaz do que a voz ou-
vida por Augusto: fala-lhe durante treze linhas (a de Augusto precisou
de 140); cala-se logo, e a enumerao catica dada ao leitor atravs
dos olhos do prprio poeta. Encerrada a viso, o poeta no precisa da
zombaria csmica para saber que a verdade lhe vedada: ele rejeita a
oferta como se antevisse nela uma armadilha, e se dispensa de solver o
mistrio. No mais o Cosmos que repele a pergunta humana sobre o
seu significado, como em Augusto: o Homem, agnstico, que declina
de formular essa pergunta ao Cosmos.
Todo ms, em algum lugar do mundo, um sujeito de olhos injetados e
barba por fazer desembarca num hospcio, esperneando s mos dos
enfermeiros e gritando: Larguem-me, seus idiotas! Estou lhes dizendo
que decifrei o Segredo do Universo! Por outro lado, muitos indivduostiveram revelaes desse tipo, mas foram discretos o bastante para
guard-las consigo, ou ento encontraram uma maneira inteligvel de
transmiti-la: Kepler intuiu uma harmonia bsica na mecnica celeste,
Descartes vislumbrou a natureza fundamentalmente matemtica do
mundo material, Edgar Poe (no Eureka) antecipou em quase um scu-
lo algumas idias da cosmologia contempornea. Experincias seme-
lhantes foram relatadas por Jung, Aldous Huxley, Philip K. Dick e muitos
outros autores.
Esses vislumbres podem levar perplexidade, beatitude, a revoluescientficas ou camisa-de-fora; mas a sua universalidade nos permite
acreditar que correspondem a uma possibilidade de funcionamento de
nosso crebro. possvel provoc-los deliberadamente atravs de est-
mulos fsicos: jejum, fadiga, exerccios, tcnicas de concentrao, drogas
alucinginas. Muitas vezes, no entanto, eles se manifestam de modo es-
pontneo e inesperado. Mesmo quando essas vises so atipicamente
longas (o poeta Robert Graves dizia ter experimentado uma que durou
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um dia inteiro), persiste a impresso de que houve uma compresso
temporal, de um ano em um s dia, um dia em um s minuto. Num livro
intitulado The Timeless Moment, Warner Allen refere-se a uma viso que
teve, durante uma execuo da 7 Sinfonia de Beethoven: Primeiro, o
misterioso evento em si mesmo, que ocorreu numa frao infinitesimalde um segundo ( ... ); depois, a Revelao, um fluxo sem palavras de
sentimentos complexos ( ... ); finalmente, a Luz, a tranqila lembrana de
toda a complexidade da Experincia, como que preservada em palavras
e formas de pensamento. Allen registra que tudo isto deve ter ocorrido
no intervalo entre duas fusas.
bom lembrar que tais experincias nem sempre so de carter jubilo-
so ou deslumbrante. Muitos indivduos, quando arrebatados por vises
dessa natureza, vem-se projetados num mundo onde tudo carece de
sentido, onde tudo ameaador ou repugnante, ou simplesmente vazio.Nesses momentos, ele tem acesso ao que parece ser o universo habitual
dos esquizofrnicos, dos usurios de droga que entram numa bad-trip.
Sartre relata experincias similares em A Nusea, que em grande parte
se baseou em suas viagens com a mescalina. E podemos conjeturar
que indivduos como Kafka, Strindberg ou Samuel Beckett eram sujeitos
a mergulhos randmicos, involuntrios, em situaes desse tipo.
As Cismas do Destino e A Mquina do Mundo verbalizam uma experin-
cia de iluminao pessoal (e do ponto de vista literrio no interessa
se os poetas experimentaram de fato uma iluminao ou se apenas a
imaginaram), mas so iluminaes frustradas, onde o sentido ltimo
do universo se entremostra e logo a seguir se evade. So experincias
msticas abortadas, nas quais teve incio a fuso do Poeta com alguma
realidade superior, transcendente, mas o processo desandou a meio.
Drummond era um agnstico convicto, sem propenso para a viso
mstica pura. Quanto a Augusto, lcito supor que, depois de doses ma-
cias de Pencer, Schopenhauer e Haeckel, sua f crist conhecia limites.
Seu mtodo era de um visionrio, e o prazer com que descreve imagensmonstruosas lembra Lovecraft, Brueghel ou Lautramont. Suas leituras
cientficas (nem sempre bem assimiladas) deram-lhe informao e vo-
cabulrio, mas seu temperamento foi sempre o de um alucinado, um
vidente. Talvez tivesse (como sugere com benevolncia seu bigrafo
Raimundo Magalhes Jr.) uma telha fora do lugar; textos como Poema
negro e Tristezas de um quarto minguante so certamente retratos
fiis das madrugadas insones em que metrificava seus delrios. No de
admirar que declarasse sentir, no momento de criar seus versos, uma
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srie indescritvel de fenmenos nervosos, acompanhados muitas vezes
de uma vontade de chorar. Em seu hoje clssico estudo sobre o poeta,
Ferreira Gullar observa com propriedade que Augusto, em que pese a
aparncia cientificista e racionalizante de seus poemas, sobretudo um
criador de atmosferas, nisso residindo talvez a fora principal de sua lin-guagem gtica e teatral.
Mesmo assim, que outro poeta, em pleno parnasianismo bilaqueano,
ousou falar em Raio X, universo radioativo, ons, energia intra-atmi-
ca, hidrognio incandescente, anlise espectral? Talvez por isso, em
sua viso, a Voz ironize sua cincia louca e reitere que o mundo in-
cognoscvel, inalcanvel ao intelecto humano. Mesmo a dor, realidade
ltima que veio e vai desde os tempos mais transatos / para outros tem-
pos que ho de vir ainda, inabarcvel conscincia individual, e para
compreend-la seria necessrio ser a prpria humanidade sofredora,porque seu todo no reside no quociente isolado da parcela.
O mundo de Carlos Drummond menos gtico. um mundo crepus-
cular, uma estrada pedregosa de Minas. As pupilas continuam gastas,
a mente exausta de mentar. O mundo se desdobra, oferecendo-lhe
uma sabedoria capaz de seduzir qualquer Prometeu, qualquer Fausto:
uma cincia sublime e formidvel, mas hermtica, a total explicao
da vida, o nexo primeiro e singular das coisas. O poeta, no entanto,
no se deixa seduzir por essa viso, a qual lembra uma utopia de fico
cientfica que inclui as mais soberbas pontes e edifcios e os recursos
da terra dominados. Drummond, como se j tivesse presenciado a viso
do poeta paraibano, declina desse reino augusto, dessa ordem geo-
mtrica que se abria gratuita a meu engenho. Ele tambm opta pela
dor individual, dor primeira e geral, dor de tudo e de todos, dor da
coisa indistinta e universal e o complemento dessa dor, o amor, o alvo
divino, motor de tudo e nossa nica fonte de luz (ecos do Paraso de
Dante). O poeta recusa as revelaes da cincia, e escolhe aquilo que a
Augusto dos Anjos tinha sido imposto como castigo: o destino indivi-
dual, sem comunho mstica com um Deus, sem fuso pantestica como Cosmos. Escolhe o indissolvel par dor/amor de simplesmente existir,
pois nada de natureza assim to casta / que no macule ou perca sua
essncia / ao contato furioso da existncia.
Seria interessante mapear na literatura brasileira outras pginas que te-
nham afinidade com estas, pginas que tambm sugiram o vislumbre
csmico, o breve descerrar dos vus que encobrem a Realidade mais
profunda... Talvez o episdio do hipoptamo no Brs Cubas, de Macha-
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do de Assis; talvez a viagem mental-interplanetria do narrador de H
Dez Mil Sculos, de Enas Lintz (1926), o qual passeia pelo interior do
tomo e atravs do Sistema Solar; talvez a barata que funciona como
Aleph e Zahir para a narradora de A Paixo Segundo G. H., de Clarice Lis-
pector (1964). Nossa literatura tem sido extremamente competente emrecriar o Brasil e os brasileiros, mas nada nos impede de fazer o mesmo
com o Universo e a humanidade.
Braulio Tavares ([email protected]) poeta e escritor,
autor de O que fico cientfica(Brasiliense) eA Mquina
Voadora(Rocco). Copyright 1998 Jornal da Tarde, 28.11.1998
Mquina do Mundo com Cames, Augusto dos Anjos e Carlos Drummond de Andrade
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Agora, a respeito do tema, observe, a seguir, um ligeiro aponta-
mento de uma das fontes mais importantes de literatura de lngua por-
tuguesa. Trata-se deA Mquina do Mundo, parte final do Canto X, l-
timo canto de Os Lusadas, a epopia escrita em 1556 por Luiz Vaz de
Cames.
Aps as muitas aventuras e desventuras pelos mares nunca dantes
navegados, Vasco da Gama e sua tripulao so recebidos com honras e
deleites pelas ninfas da Ilha dos Amores. Terminado o festim de recep-
o de esplndido banquete, Ttis, a ninfa maior, convida Gama para o
espetculo da Mquina do Mundo: o espetculo nico das esferas ce-
lestes de Ptolomeu (estrofes 77 a 144). Aqui vemos que, ao gnio e aos
conhecimentos de Cames sobre geografia, histria, mitologia, religio,guerra, comportamento humano e navegao, junta-se a astronomia a
do sculo XVI, naturalmente.
Includas neste episdio, temos ainda mais profecias sobre os por-
tugueses. Trata-se da histria dos milagres de So Tom, evangelizador
da ndia (estrofes 108 a 118), com uma breve, mas arriscada crtica aos
Jesutas na estrofe 119; depois, na estrofe 128, uma referncia ao naufr-
gio de Cames, do qual se salvou a nado com Os Lusadas; por fim, uma
curiosa previso de que a sua Lira sonorosa Ser mais afamada queditosa (a sua obra seria mais famosa do que a sua vida afortunada).
Depois disto, vem o Eplogo, quando os portugueses desembarcam
novamente e chegam sem mais problemas a Lisboa, onde recebem as
glrias que lhes so devidas.
A partir deste momento, atentem para mais este poema de
Drummond:
O Elefante
Fabrico um elefante
de meus poucos recursos.
Um tanto de madeira
tirado a velhos mveis
talvez lhe d apoio.
E o encho de algodo,
de paina, de doura.
Assunto abordado pelaDisciplina Literatura Portu-guesa I, com a prof SalmaFerraz.
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A cola vai fixar
suas orelhas pensas.
A tromba se enovela,
a parte mais feliz
de sua arquitetura.
Mas h tambm as presas,
dessa matria pura
que no sei figurar.
To alva essa riqueza
a espojar-se nos circos
sem perda ou corrupo.
E h por fim os olhos,
onde se deposita
a parte do elefantemais fluida e permanente,
alheia a toda fraude.
Eis o meu pobre elefante
pronto para sair
procura de amigos
num mundo enfastiado
que j no cr em bichos
e duvida das coisas.
Ei-lo, massa imponente
e frgil, que se abana
e move lentamente
a pele costurada
onde h flores de pano
e nuvens, aluses
a um mundo mais potico
onde o amor reagrupa
as formas naturais.
Vai o meu elefante
pela rua povoada,
mas no o querem ver
nem mesmo para rir
da cauda que ameaa
deix-lo ir sozinho.
todo graa, embora
as pernas no ajudem
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e seu ventre balofo
se arrisque a desabar
ao mais leve empurro.
Mostra com elegncia
sua mnima vida,
e no h cidade
alma que se disponha
a recolher em si
desse corpo sensvel
a fugitiva imagem,
o passo desastrado
mas faminto e tocante.
Mas faminto de serese situaes patticas,
de encontros ao luar
no mais profundo oceano,
sob a raiz das rvores
ou no seio das conchas,
de luzes que no cegam
e brilham atravs
dos troncos mais espessos.
Esse passo que vaisem esmagar as plantas
no campo de batalha,
procura de stios,
segredos, episdios
no contados em livro,
de que apenas o vento,
as folhas, a formiga
reconhecem o talhe,
mas que os homens ignoram,pois s ousam mostrar-se
sob a paz das cortinas
plpebra cerrada.
E j tarde da noite
volta meu elefante,
mas volta fatigado,
as patas vacilantes
se desmancham no p.
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Ele no encontrou
o de que carecia,
o de que carecemos,
eu e meu elefante,
em que amo disfarar-me.
Exausto de pesquisa,
caiu-lhe o vasto engenho
como simples papel.
A cola se dissolve
e todo o seu contedo
de perdo, de carcia,
de pluma, de algodo,
jorra sobre o tapete,
qual mito desmontado.Amanh recomeo.
6.3 Anlise 2
A propsito de O Elefante, observe este curto ensaio que fiz publi-
car no nmero 2 da Revista Travessia, do Curso de Ps-Graduao em
Literatura Brasileira da UFSC:
A Remontagem do Mundo
A socialidade primria feita de coisas simples e arranjadas, de vizi-
nhana e solidariedade est perdida no tempo. Nessa socialidade o ser
humano no tem medida, ele visto pela criatura que verdadeiramente
, na sua essncia. Na sociedade de homens inteiros as sofisticaes no
existem. No deve haver complexidades. O homem trabalha e divide o
trabalho, ele sustenta e divide o sustento. No h que armazenar porque
sente segurana ao lado de seu semelhante. Esta sociedade, infelizmen-
te, est num passado remoto (se que alguma vez existiu). Porm, ela
no se perdeu na memria do poeta.
ento que o poeta procura por esse homem e o conclama a uma
sociedade em que o amor e o belo se sacralizam. A sacralizao da for-
ma ingnua de viver e de pensar. O poeta fala do seu tempo, do hoje,
abraando o lirismo das coisas para represent-las atravs da memria
rica da linguagem quebrando o senso comum, aquilo que est sob o
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domnio do ideologizado, contrapondo-se ao que pr-moldado e sub-
vertendo a ordem dos valores estabelecidos de
Um mundo enfastiado
Que j no cr nos bichos...
(e na poesia) para reavivar a memria empedernida na tentativa
incansvel de sacralizar os valores mais profundos da vida humana:
onde h flores de pano
e nuvens, aluses
h um mundo mais potico
onde o amor reagrupa
as formas naturais.
Lucidez e esprito crtico perpassam a obra de Drummond. Lucidez
e esprito crtico, mostrando a carga de perplexidade ante uma socieda-
de tecida de fraudes e vazio, atravs da singeleza e, ao mesmo tempo,
prosasmo, em O Elefante.
To alva riqueza
A espojar-se nos circos
Sem perda ou corrupo.
E h por fim os olhos,
Onde se depositaA parte do elefante
Mais fluida e permanente,
Alheia a toda fraude.
O sentimento de amor que emana dO Elefante o sentimento com
o tempo do poeta procurando recompor, reavivar atravs do prprio
poema, chamando a ateno do leitor para os verdadeiros valores da
vida. O elefante o seu smbolo de coisas que so simples, mas como a
prpria tentativa de recomposio, ao mesmo tempo complexas. O ele-fante o seu smbolo de luta. O poeta recria os objetos e o clima em que
esses objetos se realizam, dando-lhe o verdadeiro carter, valor e funo,
contudo sem idealiz-los, pois eles existem porque existe a linguagem
potica, a nica arma imune aos efeitos da coero social. justamente
essa linguagem potica um dos seus poucos recursos para fabricar o
seu elefante, o seu personagem-brinquedo que o transporta memria
da infncia, ao mundo da recriao.
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Um tanto de madeira
tirado a velhos mveis
talvez lhe d apoio.
E o encho de algodo,
de paina, de doura.A cola vai fixar
suas orelhas pensas.
A tromba se enovela,
a parte mais feliz
de sua arquitetura.
Mas h tambm as presas,
dessa matria pura
que no sei figurar
A montagem do elefante feita dos pedaos tomados aqui e ali na
memria do poeta. feita de elementos simples que se movimentam
alm da concepo fraudulenta do mundo de hoje que , em contrapar-
tida, um mundo morto, sem graa, sem felicidade, feito de coisas vs.
Um mundo cuja complexidade tenta soterrar os valores humanos mais
profundos.
nesse passo que vemos a conscincia crtica do homem e do poe-
ta Drummond que busca a recomposio rdua do universo mgico que
os novos tempos renegam:
Mas faminto de seres
e situaes patticas,
de encontros ao luar
no fundo do oceano,
sob a raiz das rvores
ou no seio das conchas,
de luzes que no cegam
e brilham atravsdos troncos mais espessos.
Esse passo que vai
sem esmagar as plantas
nos campos de batalha,
procura de stios,
segredos, episdios
no contados em livro,
de que apenas o vento,
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a folha ou a formiga
recolhem o talhe.
Drummond tenta recolher as verdadeiras formas naturais, mos-
trando que so os elementos mais simples que recompem a verdade;assim, na construo do objeto do poema, os pedaos mais primitivos
da memria, ao mesmo tempo a prpria linguagem potica, representa-
dos pelos velhos mveis (madeira), algodo, paina, cola, pano estampa-
do de flores, pluma, etc.
V-se, portanto, que ao montar seu elefante o poeta retira da me-
mria um processo da infncia reinventa no brinquedo sua forma de
amor: o poema e, ao reinvent-la, regrupa as formas naturais. Ento
costura o poema com um lirismo mtico cheio de encantamento, o quefaz exatamente supor o seu desencantamento com o mundo reificado,
justa forma de condenar a sociedade de seu tempo. a respeito disso o
argumento de Alfredo Bosi: A resposta ao ingrato presente , na poesia
mtica, a ressacralizao da memria mais profunda da comunidade. A
poesia trabalhar, ento, a linguagem da infncia recalcada....
Drummond traz implcito ao poema o mito da infncia, que s se
aclara e se insurge como tempo imorredouro no momento presente-
maduro e inquisitivo. Embora o seu Elefante seja to presente, o poema, na verdade, uma representao do passado: o tempo da criana que
junta os pedaos de sua intimidade e constri o seu mundo cheio de dis-
farces, justamente para resguardar a inveno. Assim como a criana ao
passar o seu eu para o brinquedo-verdade, dando-lhe existncia cheia
de simplificao, eis o poeta passando o seu eu para o bicho-persona-
gem no mesmo processo. Justifica-se dessa forma sua postura diante
de Criana e Brinquedo: No lhe dem brinquedo caro, porque logo o