Literalidade: A compreensão da ficção como experiência real

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    Literalidade: a compreenso da fico

    como experincia real. Gilles Deleuze eJean Rouch

    ------------------------------------------------------------------------------------------------Marta Filipe Mendes

    ------------------------------------------------------------------------------------------------Escola Superior de Teatro e Cinema - IPL / Faculdade de Cincias Sociais e Humanas -UNL

    ------------------------------------------------------------------------------------------------martafmendes@hotmail.com

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    RESUMO

    A base do corpo relativamente recente de ideias acerca da narrativa e da narratologia, ainda quediscretamente heterognea, uma base cujas teorias fundamentais (de Vladimir Propp a Paul Ricoeur)tendem a associar a narrativa a um enunciado, concebendo a narrativa como uma forma que representaum estado de coisas. A potica da narrativa guarda, desde Aristteles, uma relao estrita com a retrica eo seu sistema verdico de juzo, definindo um universo ficcional cuja tica, universal e necessria, descurao acidental e o contingente.

    Configura-se, neste artigo, uma abordagem da narrativa e dos modos de narrar, em que estes deixam

    de assentar numa relao de designao ou narrao com um estado de coisas, mas cuja relaoprimordial se estabelece com o sentido ou sentidos que se exprimem. Trazer o sentido para primeiroplano trazer o acontecimento para primeiro plano, redefinir o prprio relato o relato comoacontecimento, em vez do relato de qualquer coisa, uma aco ou um estado de coisas.

    A luta permanente contra a metfora e as vrias insistncias de que se est a falar de qualquer coisade literal, marcam, ao longo da obra de Gilles Deleuze, um vasto terreno de pensamento abrangido poruma palavra de ordem: literalidade. A caracterizao deste conceito permitir avaliar a possibilidade domesmo abarcar ou no qualquer coisa como uma fico enquanto experincia real, procurando, ao mesmotempo, determinar as consequncias de um acontecimento ficcional deste tipo e abrindo-se para o campo

    da narrao cristalina. Quando o relato uma fico porque a envolve necessariamente no seu ato - equando a fico tambm, e necessariamente, uma experincia, a questo da distintino entredocumentrio e fico deixa de fazer sentido, pois o prprio real, enquanto potncia e emergncia donovo, que se torna determinante. neste contexto que trazemos para esta anlise o filme Eu, um Negro (1958), do cineasta e etnlogo francs Jean Rouch, cuja obra, cara a Gilles Deleuze, foi comentada emCinema 2: Imagem-Tempo.

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    PALAVRAS-CHAVE

    Literalidade. Fico. Real. Possvel. Narrao cristalina. Potncia do Falso. Gilles Deleuze. Jean Rouch.

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    comum falar-se de sentido literal. Dizemos que falamos literalmente ou que algo literal quandoqueremos referir-nos ao sentido prprio de uma palavra ou de uma expresso, sem remeter para umsentido que lhe seja exterior, como um sentido figurado ou metafrico, por exemplo. Quando Jean-LucGodard, relativamente questo sobre o sangue no seu filme Pierrot le Fou (1965), responde: No sangue, vermelho (BERGALA, 1985, 264) ele est a apelar para o conceito de literal, no sentido quederam Gilles Deleuze e Flix Guattari a este conceito1. O que est no filme (tomado textualmente, porGodard), no aquilo que o vermelho significa, o significado sangue, mas a qualidade sensvel e materialvermelho - pura potncia. Todas as imagens so literais e devem ser tomadas literalmente (DELEUZE,

    2003, 199), diz Deleuze, sendo que o conceito de literalidade, apesar de ter qualquer coisa do uso literrio ecomum da noo de literalidade, como aquilo que est no texto e no fora dele, bem mais do que isto,sobretudo, porque envolve toda uma outra aceo do real, diferente do real enquanto estado de coisas. Anoo de literalidade envolve uma experincia ficcional particular: uma potncia de falso ou fabulaocriadora.

    A distino entre verosmil e verdadeiro, que encontramos na Potica de Aristteles, uma distinoque, ao mesmo tempo que instaura a autonomia da poesis face histria e sua busca pela verdade, associao ato potico a uma tica universal e necessria. Segundo Aristteles, o historiador diz as coisas quesucederam, enquanto o poeta as que poderiam suceder [ARISTTELES, 2000, 115]. A distino entre o

    real e o possvel - o real como categoria histrica e o possvel como categoria potica determina adistncia radical entre o ponto de vista do poeta e o ponto de vista do historiador. A fico, tal como aconcebemos ainda hoje maioritariamente, herda de Aristteles o facto de laborar no mbito desse vastodomnio do possvel. O campo da poesis aristotlica, enquanto campo do ficcional, um campo depossibilidades simblicas que, no sendo a verdade, tem a verdade como referente, ou seja, verosmil enecessrio. Neste sentido, o possvel apresenta-se como aquilo que pode ser imaginado, concebido ouesperado, a partir de um determinado ponto de referncia: uma poca histrica, uma conscincia, enfim,um plano predeterminado a partir de um estado de coisas.

    Gilles Deleuze, com Flix Guattari, desenvolveu uma outra conceo do possvel, no como o

    conjunto de alternativas reais ou imaginrias (ou isto, ou aquilo), mas no presente enquantoemergncia dinmica denovo2. No uma relao de decalque entre uma imagem predefinida ou clich e um

    1 So vrias as referncias ao conceito de literal/literalidade na obra de Gilles Deleuze, relacionando-se, em grande medida, com a distinofundamental entre os conceitos de possvel e de virtual e com o conceito de devir. Algumas referncias fundamentais : Diffrence et repetition (1968): pp. 235, 246, 257; Kafka. Pour une littrature mineure, em colaborao com Flix Guattari (1975): pp. 40, 65, 83; Dialogues avec Claire Parnet (1977), pp. 134, 140; Mille Plateaux Capitalisme et schizophrnie 2 (1980), em colaborao com Flix Guattari:245-246, 286-292, 336, 567; L'image-temps. Cinma 2 (1985): pp. 32, 78;Critique et Clinique (1993): pp. 89 e sgs; Deux rgimes de fous. Textes et entretiens ( 2003): p. 199. 2 A noo deleuziana de possvel envolve duas acepes: uma positiva e outra negativa. A aceo negativa do possvel, herana dacrtica bergsoniana do possvel, que encontramos exposta por Henri Bergson no seu ensaio publicado em 1930, Le possible et le rel,

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    real, mas uma experincia propriamente real, que implica afirmar a relao radical com aquilo que aindano pensamos (expresso herdada de Heidegger). Trata-se de uma experincia de estranheza (no sentidoque lhe deu Viktor Chklovsky 3) radical. Todo o pensamento poltico de Deleuze, eminentemente esttico,reside nesta conceo do possvel que envolve, num salto existencial, uma profunda transformao do real.H ento uma diferena de estatuto fundamental entre o possvel que se realiza, a partir de um plano

    predefinido, e o possvel que se cria: E aqueles que pretendem transformar o real imagem daquilo que jest previamente concebido no tm em vista a transformao em si mesma [ZOURABICHVILI, 2007,531].

    Gilles Deleuze definiu, na sua obra sobre cinema (1985) um regime da imagem a que chamouregime cristalino da imagem, no qual a narrao falsificante e fabuladora4. Este regime da imagem spode ser amplamente compreendido se se compreenderem estas duas noes fundamentais que lhe soinerentes: a noo de possvel e a noo de literalidade. A noo de possvel definida como potncia dofalso princpio de produo das imagens, no romance e no cinema5. Sintetizemos os principais aspetos doregime cristalino da imagem, no que se refere funo narrativa. O regime cristalino da imagem distingue-

    se de um regime orgnico da imagem em quatro pontos-chave, que dizem respeito, esquematicamente: 1)s descries; 2) relao entre o real e o imaginrio; 3) narrao; 4) noo de verdade. Vejamos, antes de mais, estes quatro aspetos, para depois os relacionarmos com o trabalho de Jean

    Rouch. O primeiro aspeto tem a ver com as descries. O regime orgnico envolve uma descrioindependente do seu objeto, ou seja, aquilo que est a ser descrito na imagem (o objeto) distingue-se dadescrio que a cmara faz desse objeto (a forma como se descreve). Temos ento, no regime orgnico, doisplanos distintos: o da descrio e o de uma realidade supostamente preexistente descrio, que eladecalca. O regime cristalino, por sua vez, envolve uma descrio que no se distingue de qualquer objeto ouque o substitui, que o cria e apaga ao mesmo tempo, como diz Robbe-Grillet [DELEUZE, 1985, 165] e no

    qual as descries podem contradizer-se, sobrepor-se, deslocar-se, modificar as precedentes. Este primeiroaspeto implica uma dissoluo da distino clara entre sujeito que representa um mundo e mundorepresentado, pois o que temos uma descrio em que estes termos se misturam ou interpenetram atdissolverem as suas fronteiras.

    O segundo aspeto tem a ver com a relao entre o real e o imaginrio e decorre do primeiro. Noregime orgnico, o real sempre reconhecvel, independentemente das interrupes que possa envolver,atravs de inseres de imagens irreais, de sonho ou imaginrias, ou seja, o estatuto das imagens orgnicas sempre localizvel, mesmo se passar do real para o imaginrio ou para o sonho e depois novamente para oreal, por exemplo, numa relao de oposio, sabemos sempre dizer qual o estatuto das imagens. No regime

    cristalino, os dois estatutos da imagem tornam-se indiscernveis: o real e o imaginrio ou o real e o sonhono s so indiscernveis, como a necessidade da distino entre real e imaginrio no se faz sentir e no

    [BERGSON, 1999, p. 109-111], toma-o como um ideal que preexiste o real, que no compatvel com o possvel concebido no sentidopositivo, enquanto potncia de criao do novo.3 Tornar estranho como procedimento de tornar visvel o meio como tal, um procedimento desenvolvido por Viktor Chklovsky[CHKLOVSKY1999]4 Tomaremos, para este artigo, como base de fundamentao ao regime da imagem cristalina, o captulo sexto de Cinema 2: Imagem-Tempo, As

    potncias do Falso [DELEUZE, 1985, pp. 165-202]5 Em Francis Bacon Lgica da Sensao [DELEUZE,2002], Deleuze apresenta-nos tambm (ainda que a partir de outros conceitos) a potncia dofalso como princpio de produo na pintura. Diz Deleuze, relativamente ao estudo de Bacon sobre o Papa Inocncio X de Vlasquez, que no setrata de contar a histria do grito, mas de fazer passar a sensao, ou seja, no se trata de ilustrar o horror do grito, mas de captar uma intensidade.

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    pode fazer-se sentir, pois apenas nesse pequeno circuito em que o estatuto das imagens e o seu papel setorna indiscernvel que o acontecimento da imagem pode emergir. a isto que Deleuze chama umaimagem-cristal coalescncia e indiscernibilidade de uma imagem virtual e da sua imagem atual, mascoalescncia e indiscernibilidade de duas imagens distintas no h identificao entre as duas imagens.

    O terceiro aspeto diz respeito narrao. A narrao orgnica desenvolve-se a partir de esquemas

    sensrio-motores, segundo os quais as personagens reagem a situaes ou agem de forma a apresentar asituao [DELEUZE, 1985,167], ou seja, a sua ao uma ao (ou reao) sempre como resposta a umasituao determinada, num espao e num tempo localizveis, definida essencialmente pela tenso de forasopostas e pela resoluo dessas oposies numa via nica, de acordo com um princpio de economia (ocaminho mais simples, a palavra mais eficaz, o menor meio para um mximo de efeito, etc.). A personagemda narrao orgnica reconhece a situao e o espao em que se encontra, tem um objetivo e confronta-secom os obstculos necessrios, no sentido de o alcanar. Na narrao cristalina, o esquema sensrio-motordesaba: as personagens no so capazes de reagir situao6, ou porque no querem ou porque no podem,mas sobretudo porque lhes mais necessrio ver o que h na situao. No se trata de um ver meramente

    orgnico. Por vezes, apenas a cegueira orgnica permite esta tipo de viso, como acontece a dipo Rei e emgeral, na mitologia grega, aos profetas. A viso cristalina no qualquer coisa que possibilita a ao, umasua condio. A viso ocupa tudo, ocupa o lugar da ao, ocupa toda a imagem. Uma viso cristalina necessariamente uma imagem fragmentria a nica capaz de se adequar ao possvel enquanto tal tudo possvel, mas apenas na medida em que esses fragmentos ou pedaos do real ou da situao que ovidente v no so organizados antecipadamente. O possvel surge nesta viso, como a abertura de umcampo de criao a partir do qual tudo est por fazer. O espao da narrao cristalina fragmentado edesconectado, como o espao de Pickpocket de Bresson, por exemplo, em que se perdem as coordenadasespcio-temporais (h muitas outras tipologias de espao no localizvel).

    O quarto aspeto tem a ver com a noo de verdade e um aspeto que decorre de todos os outros, se bem que todos estes pontos se entrelacem de forma constitutiva. No regime orgnico, reina o primado da verdade, ou seja, parte-se de uma petio de verdade de base: a de que existe uma nica verdade que nossalva (Deus ou as Ideias platnicas ou o Real emprico ou a realidade objetiva que se distingue dasdescries) e que se distingue do nosso conhecimento sobre ela, que apenas uma representao que delase faz. Deleuze sublinha sobretudo, no paradigma orgnico da verdade, o facto de seruma verdade, umaunidade . O que o regime cristalino apresenta a crise desta unidade orgnica, que se tem vindo amanifestar, de tempos a tempos, na histria da filosofia, mas revelando-se particularmente desenvolvidoem Leibniz, com a ideia de que possvel existirem acontecimentos contrrios em simultneo (DELEUZE,

    1985) em dois mundos possveis, ainda que estes mundos no sejam compossveis entre eles7. Interessa-nos

    6 Deleuze desenvolve tambm esta ideia da personagem que se torna evidente na sua conferncia O que o ato de Criao[DELEUZE, 2002].7 No o lugar para desenvolver este aspeto essencial da filosofia de Leibniz. Retenhamos apenas que a noo de compossibilidadepermite a Deleuze o desenvolvimento da dimenso do virtual, sem a qual nenhuma realidade existe. Mas em Leibniz, h um Deus quepr-estabelece a harmonia entre os mundos, funcionando como um narrador omnisciente. Deleuze acaba por recorrer a Borges, comoresposta a Leibniz. No conto O jardim onde os caminhos se bifurcam, somos levados a uma histria labirntica (a obra de Tsui Pen)em que nos confrontamos com vrios acontecimentos paralelos, divergentes ou convergentes (Fang pode matar o intruso, o intrusopode matar Fang, os dois podem escapar, os dois podem morrer, etc.). este tambm, o tipo de labirinto probabilitrio deO ano passado em Marienbad (1963), de Alain Resnais e Robbe-Grillet.

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    particularmente este aspeto da simultaneidade que compe uma viso fragmentria e que , como vimos,um dos traos que define o campo do possvel.

    O regime cristalino da imagem cria um modo de discurso que afeta, ao mesmo tempo, a fico e arealidade e que encontramos no cinema de Jean Rouch. Trata-se de um cinema que critica a ficoenquanto modelo de verdade preestabelecida, ou seja, enquanto possvel a realizar, que exprime

    necessariamente as ideias dominantes ou o ponto de vista do colonizador. fico, tomada nesta aceo,Deleuze e Rouch opem, no o real, mas a fabulao ou a potncia do falso, que funo fabuladora de umacultura menor, colonizada e pobre. Aquilo que o cinema deve alcanar no a identidade de umapersonagem, real ou ficcional, atravs dos seus aspetos objetivos ou subjetivos. o devir da personagemreal, quando ela se pe ela prpria a ficcionar [DELEUZE, 1985, 196], contribuindo, assim, para ainveno do seu povo. O que determinante na fabulao a passagem de um antes a um depois dapersonagem, as suas transformaes ou transies: o tornar-se um outro para si mesma. Tambm ocineasta se torna outro, quando toma a voz das personagens reais. O cineasta e as personagens, comunicamassim, no processo de inveno de um povo e de criao de uma lngua estrangeira, numa lngua

    dominante. Jean Rouch era antroplogo e cineasta e realizou a maior parte dos seus filmes na frica ocidental,filmando os rituais e as formas de vida do povo Songhai. Apresenta-nos como seus totems, Robert Flahertye Dziga Vertov, [ROUCH, 1973] e os seus filmes caracterizam-se por aquilo que ele definiu em A cmara eos homens [ROUCH, J., 1973] como uma antropologia partilhada e uma etno-fico, em que a cmara sedefine como uma cmara participativa [ROUCH, 1973]. O cinema de Rouch repensou profundamente tantoa prtica antropolgica, como cinematogrfica, apagando a distino clssica, nestes dois campos, entre osujeito que estuda ou filma e o objeto estudado ou filmado, entre o ponto de vista subjetivo e o ponto de vista objetivo.

    Em Eu um negro ( Moi, un noir, 1958), assistimos criao de uma lngua ou de uma vozpartilhada, no s entre Jean Rouch e Edward G. Robinson (Oumarou Ganda) o protagonista narradordeste filme -, mas entre Oumarou Ganda (ator) e Edward G. Robinson (personagem). Trata-se sempre deum fenmeno de duplicao ou espelhamento. Logo no incio de Eu, um negro as primeiras palavras so deJean Rouch: Segui durante seis meses um pequeno grupo de jovens do Nger em Treichville. Propus-lhesfazer um filme em que eles representariam os seus prprios papis ou teriam o direito de tudo fazer e detudo dizer. Foi assim que improvismos este filme. Pouco depois destas palavras, Jean Rouch passa apalavra a Edward G. Robinson, que diz no se chamar Edward G. Robinson, e este ser um nome que lhechamam porque ele se parece com um certo Edward G. Robinson que aparece nos filmes americanos.

    Robinson nunca diz o seu verdadeiro nome, o seu nome aparece no seio de um jogo e este jogo sempre um jogo de espelhos. As duas vozes do filme, distintas e irredutveis uma outra, constituem-se no entantocomo um nico ato de fala, numa espcie de monlogo partilhado, em que o motor ou desencadeador ofenmeno da alteridade ou da estranheza. A viso desdobra-se e este desdobramento feito atravs de umdispositivo a que, na literatura, se chamou, discurso indireto livre, que aproxima num mesmo enunciado, oponto de vista do narrador e o da personagem, tornando-os indiscernveis8. Eu no digo o meu verdadeiro

    8 Para a noo de discurso indireto livre e sua aplicabilidade ao cinema, ver o texto de Pasolini, O Cinema de Poesia, PASOLINI,1982

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    nome (de Robinson) e ele no diz o seu verdadeiro nome (de Rouch) tornam-se um s enunciado, duplopor natureza.

    Eu, um negro uma improvisao em direto, mas improvisao em direto dupla. Num primeiromomento, os atores so filmados a representar os seus prprios papis como diz Rouch, sem som. Depois,grava-se, em estdio, o comentrio emoff . Tal como em Jaguar (filme anterior de Jean Rouch, de 1954), a

    ideia singular e nova de Eu, um negro, foi a de serem os prprios atores a improvisar, na projeo do filme,o dilogo e comentrio dos protagonistas. Nesta improvisao em direto sobre as imagens, a personagemdescreve-se a si mesma, revelando-se como o seu duplo. Descreve-se, em vez de interpretar ou de explicar aimagem, sendo que a assincronia que resulta, entre as imagens e o comentrio no acidental e cria umespaamento entre eles que define, precisamente, a autonomia da descrio que se mistura com a imagemou que dela faz parte.

    Os limites e as implicaes destas escolhas cristalizaram-se volta do filmeOs Mestres Loucos [ Les Matres Fous, 1955]. Neste filme, Rouch filma, em Accra (atual Ghana), um ritual de possesso dosHaouka. Haouka significa mestres da loucura e esta seita nasceu entre as populaes Songhay, com o

    impacto do poder colonial e da tcnica moderna sobre a cultura dos Songhay. A seita, composta porhomens e mulheres que habitam naquela cidade e que, durante o dia, como nos diz Rouch, so estivadores,contrabandistas, carregadores, pastores, vendedores de gado, etc., e que, todos os domingos noite serenem para este ritual. No ritual, cada pessoa interveniente desdobra-se, incarnando, atravs do transe,num outro, que personifica uma figura do poder colonizador: o governador, a mulher do capito, ocondutor da locomotiva... No final do ritual acontece o sacrifcio de um co, animal sagrado para oseuropeus, como sabemos. No comemos ces. O sacrifcio do co uma exibio de foras. Neste ritual osHaouka medem foras, trazem as foras subterrneas superfcie e despertam-nas. Trata-se de exibir a suafora sobre os outros homens, quer eles sejam negros ou brancos: pem fogo na boca, esto insensveis

    dor. Rouch procura com este filme descolonizar o nosso pensamento, descolonizar-nos [STOLLER, 1992,160]. Durante o ritual noturno dos Haouka, as figuras profanas dos colonizadores que se apropriaram deuma sociedade so possudas pelas foras sagradas dos Haouka. Os filmes de Jean Rouch so sempre sobreeste chamamento das foras e sobre o jogo ficcional (que pode assumir a forma de um ritual ou a forma deuma fico) que este chamamento envolve.

    Quando as personagens do ritual, possudas, bbedas, a espumar, em transe, so, primeiro,mostradas na sua realidade quotidiana, depois em transe e depois novamente no quotidiano a passagemdo plano profano para o plano sagrado, do quotidiano para o excecional, do real para o simblico (no jogoda representao ou da possesso). Tambm em Eu, um negro, primeiro aparecem as personagens reais

    que vemos mostradas atravs dos papis de fabulao (Dorothy Lamour, a prostitutazinha, Lemmy Cation,o desempregado de Treichville...), ainda que depois eles mesmos comentem e corrijam a funo quedesempenharam. Ora, como refere Deleuze em Imagem-Tempo, o que de facto interessa a Rouch no sotanto as condutas, os sonhos ou os discursos subjetivos, mas a mistura indeterminada que os liga uns aosoutros.

    Aquilo a que Rouch chamou um cinema-verdade no um cinema da verdade ou uma narrativa da

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    verdade, mas um cinema que destri qualquer modelo de verdade, um discurso sempre duplo, indireto-livre, um discurso sempre de duas cabeas ou de mil cabeas. Um cinema produtor de muitas verdades,mltiplas faces. A potncia do falso tem a ver com este cinema que apresenta uma descrio que sempredupla, de espelhamento ou dupla-face.

    Numa curta metragem de Dominique Dubosc: Jean Rouch, premier film: 1947-1991, Jean Rouch

    fala dos seus primeiros tempos como cineasta e das imagens do seu primeiro filme etnogrfico, No pasdos Magos Negros [ Au Pays des Mages Noirs, 1947], que revemos na ntegra durante o filme de Dubosc.O primeiro filme de Jean Rouch, no , na verdade, o seu primeiro filme. Ele foi terminado pelas

    Atualidades Francesas, montado a partir das imagens por ele filmadas em 1947, que mostram a descida dorio Nger, a caa ao hipoptamo dos Songhay e os rituais de possesso ligados ao ritual da caa (e maisalgumas, extra, de uns crocodilos ferozes). Foi montado numa ordem que no era a de Rouch eacompanhado por um comentrio racista dito por um reprter desportivo de rdio e por uma msica picaa condizer. um filme dos colonizadores e para os colonizadores, que apresenta o etnlogo como um herique secretamente filma um conjunto de seres primitivos em rituais extremamente perigosos. Neste filme, o

    comentrio comanda, as imagens ilustram. Finalmente, Rouch termina o seu primeiro filme, dentro dofilme de Dubosc, com um comentrio improvisado perante as imagens projetadas, devolvendo s imagens asua verdade.

    Quando, em 1955, Jean Rouch projecta asrushes de Os Mestres Loucos, no Museu do Homem, aprimeira reao que ouviu ao filme foi: preciso destruir este filme imediatamente! O comentrio foi deMarcel Griaule, antroplogo, professor e orientador de Jean Rouch. Todos estavam de acordo com ele. Paraos negros na sala o filme era um insulto e para os brancos era um filme de selvagens. O aspeto bruto e acrueldade (no sentido que deu Artaud a este termo) das imagens foi considerada inaceitvel. Jean Rouchdecide, apesar da receo s imagens do ritual, montar e comentar o filme. A montagem segue a ordem do

    ritual, para isso a equipa regeu-se pelo som que a cmara fazia de cada vez que comeava a filmar - (umbrr-brr de uma Bell & Howell a que era preciso dar corda de 25 em 25 segundos). No que se refere aocomentrio, como os Haoukas falavam uma lngua que Jean Rouch tinha tentado transcrever, mas cujo vocabulrio no conhecia o suficiente, Moukayla, O homem tranquilo do filme, disse-lhes que podiaperfeitamente explicar-lhes o que exprimiam os Haoukas e eles gravaram a descrio de Moukayla, frasepor frase. Jean Rouch, que costumava dizer que os Haoukas falavam uma lngua artificial, percebeufinalmente que afinal a lngua que falavam era uma espcie de lngua de Pentecostes, ou, como lhe chamamos linguistas, uma glossolalia, ou seja, uma lngua formada no momento da mistura das lnguas. Trata-se deuma lngua cujo sentido se pode procurar, mas que impossvel traduzir palavra a palavra. Rouch, tornou-

    se, sem saber, diz ele, um campeo do estudo da glossolalia [MAYET-GIAUME,1996, 83] e elesobtiveram, graas a Moukayla um texto que dava a interpretao Songhay daquilo que estava filmado. Foi apartir desta interpretao que Rouch trabalhou o seu comentrio em francs. O resultado, depois daprimeira exibio do filme, diz Rouch, foi sentir que toda gente olhava para ele como para um maluco quecomia ces. Ora, precisamente, a polmica deste filme reside no tipo de comentrio e de montagem. Amontagem segue a ordem pela qual as imagens foram filmadas. O comentrio, como dissemos, ocomentrio baseado na interpretao de um dos intervenientes no ritual. Chega-nos, o mais possvel, em bruto, digamos, o ritual dos Haouka. O problema , como afirmou o cineasta senegals Sembne Ousmane,

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    num confronto histrico com Jean Rouch, em 1965: Tu olhas-nos como a insetos[CERVONI, 2006, 104-106]. O que Sembne Ousmane critica a Jean Rouch a sua viso sobre a cultura africana. Para ele, nodomnio do cinema, no basta ver, preciso analisar. O que interessa o que est antes e o que est depoisdaquilo que ns vemos, diz Ousmane [ CERVONI, 2006, 104-106], quer dizer, no basta ver que umhomem anda, preciso saber de onde vem epara onde vai. Ousmane critica sobretudo os filmes puramente

    etnogrficos de Rouch, em que se mostra a vida tradicional, sem se mostrar o contexto e a evoluo. Htodo um trabalho da etnografia que Ousmane julga pobre e Rouch fundamental, de recolha e testemunhode uma cultura ritual em frica que estava em vias de desaparecer. Esse trabalho pobre, consideraOusmane, e a recolha dos contos e das lendas dosgriots vazia, se no houver uma explicao e anlisemuito clara daquilo que se passa. O teor desta anlise exaustiva ser, partida, um absoluto destrutivo queno desenvolveremos aqui. Jean Rouch considera que para estudar uma cultura, para captar a verdade, sempre necessrio ver como um outro, um estranho, um estrangeiro. H todo um sentido das imagens quens no podemos apreender como um Songhay, mas que pode ser essencial para um estrangeiro, e para omundo em geral; h toda uma potncia gestual que as imagens carregam e que nenhum comentrio pode

    traduzir ou explicar.O elemento da estranheza constitui a literalidade das imagens, quer estejamos na esfera da fico,quer estejamos na esfera da etnografia mais pura. Qualquer coisa irredutvel a um comentriointerpretativo, a uma traduo por palavras. O comentrio de Rouch descritivo, tambm ele literal. Defacto, no h meias medidas, quer dizer, ou realidade ou fico, diz Godard num texto sobre Eu, umnegro [GODARD, 1959], mas todos os grandes filmes de fico tendem para o documentrio e todos osgrandes documentrios tendem para a fico. Ora, Jean Rouch filma da mesma maneira quando filma umritual de possesso, de caa, ou quando filma um filme de fico. a abertura do possvel enquantocategoria de produo do novo que importa aqui: a fabulao como experincia criadora. A cmara a

    mesma cmara atenta e ativa - capaz de captar a surpresa, o imprevisvel. Se no houver surpresa perante acmara, no h filme. E a surpresa sempre um elemento estranho, um Outro absoluto. Tudo se passa, diz-nos Godard, como se a famosa frase de Nietzsche: temos a arte para no morrermos de verdade, fosse afrase mais falsa do mundo [GODARD,1959].

    BIBLIOGRAFIA

    ARISTTELES, Potica, Traduo, Prefcio e Introduo de Eudoro de Sousa, Imprensa Nacional Casa daMoeda, Lisboa, 2000

    BERGALA, A. Jean-Luc Godard par Jean-Luc Godard, Cahiers du cinma-ditions del'toile, 1985BERGSON, H. La pense et le mouvant , Paris, PUF, 14e d., 1999CERVONI, A., Une confrontation historique en 1965 entre Jean Rouch e Sembne Ousmane: Tu nousregardes comme des insectes, In: Coletnea de Ren Predal, CinmaAction, Jean Rouch ou le cin-plaisir,150 F, N 81, 4 trimestre, 1996, p. 104CHKLOVSKY, V., A arte como processo, In: TODOROV, Tzvetan. Teoria da Literatura I., Lisboa, Edies70, 1999

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    FILMOGRAFIA

    DUBOSC, Dominique, Jean Rouch, premier film: 1947-1991. 1990. Documentrio, 16 mm, cor e preto e

    branco, 27.Https://vimeo.com/60328865https://vimeo.com/60328865 ROUCH, J., Les Matres Fous (Niger). 1955-1956. Documentrio, 16 mm, cor, 28. DVD: ObrasDocumentais de Jean Rouch. Legendado em portugus. Costa do Castelo Filmes.ROUCH, J., SAUVY, J. e PONTY, P., Au Pays des Mages Noirs (Niger). 1946-1947 (Frana). Documentrio,16 mm, preto e branco, 13. In:http://www.ina.fr/video/AFE04020801http://www.ina.fr/video/AFE04020801

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    10/10

    ROUCH, J., Moi, un Noir (Costa do Marfim). 1957-58. Etnofico, 16 mm, cor 1h12. Com OumarouGANDA, Petit TOURE, Alassane MAIGA, Dorothy LAMOUR. DVD: DVD: Obras Documentais de JeanRouch. Legendado em portugus. Costa do Castelo Filmes.

    BIO

    Marta Mendes lecciona no departamento de cinema da ESTC-IPL, nas reas de Esttica do cinema, Teoriada Narrativa e Cinematografias. Est a finalizar uma tese de Doutoramento, dentro da mesma rea, naFCSH-UNL, sendo os pensamentos de Gilles Deleuze e de Walter Benjamin as referncias de base para asua reflexo sobre a imagem cinematogrfica.