LENICE AMÉLIA DE SÁ MARTINS - sapientia.pucsp.br AMELIA... · Esboço teórico ... mundo...

176
PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO - PUC/SP LENICE AMÉLIA DE SÁ MARTINS O DISCURSO DA “VIDÊNCIA”: CRUZAMENTO VOCAL NA INTERLOCUÇÃO ENTRE “CÉU E TERRA” DOUTORADO EM LÍNGUA PORTUGUESA SÃO PAULO 2007

Transcript of LENICE AMÉLIA DE SÁ MARTINS - sapientia.pucsp.br AMELIA... · Esboço teórico ... mundo...

Page 1: LENICE AMÉLIA DE SÁ MARTINS - sapientia.pucsp.br AMELIA... · Esboço teórico ... mundo espiritual e o temporal. ... paternidade, embora ele e sua esposa Isabel, que era estéril,

PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO - PUC/SP

LENICE AMÉLIA DE SÁ MARTINS

O DISCURSO DA “VIDÊNCIA”: CRUZAMENTO VOCAL NA INTERLOCUÇÃO ENTRE “CÉU E TERRA”

DOUTORADO EM LÍNGUA PORTUGUESA

SÃO PAULO

1

2007

Page 2: LENICE AMÉLIA DE SÁ MARTINS - sapientia.pucsp.br AMELIA... · Esboço teórico ... mundo espiritual e o temporal. ... paternidade, embora ele e sua esposa Isabel, que era estéril,

PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO - PUC/SP

LENICE AMÉLIA DE SÁ MARTINS

O DISCURSO DA “VIDÊNCIA”: CRUZAMENTO VOCAL NA INTERLOCUÇÃO ENTRE “CÉU E TERRA”

DOUTORADO EM LÍNGUA PORTUGUESA

Tese apresentada à Banca Examinadora da Pontifícia

Universidade Católica de São Paulo como exigência

parcial para a obtenção do grau de Doutor em Língua

Portuguesa, sob a orientação da Professora Doutora

Leonor Lopes Fávero

São Paulo

22007

Page 3: LENICE AMÉLIA DE SÁ MARTINS - sapientia.pucsp.br AMELIA... · Esboço teórico ... mundo espiritual e o temporal. ... paternidade, embora ele e sua esposa Isabel, que era estéril,

BANCA EXAMINADORA

_________________________________________________

_________________________________________________

_________________________________________________

_________________________________________________

3

_________________________________________________

Page 4: LENICE AMÉLIA DE SÁ MARTINS - sapientia.pucsp.br AMELIA... · Esboço teórico ... mundo espiritual e o temporal. ... paternidade, embora ele e sua esposa Isabel, que era estéril,

Dedico: A meus pais, Waldemar e Libúrcia, “in memorian”, pelo amor que me dedicavam.

A Neuricléa Regina, filha muito amada, pelo afeto filial e apoio, nesta longa

caminhada acadêmica.

A Geovânia, filha do coração, por todo carinho que me consagra.

4

A Paulo Cesário “in memorian”, a quem Deus me uniu pelo Sacramento do

matrimônio, pela admiração que por mim nutria.

Page 5: LENICE AMÉLIA DE SÁ MARTINS - sapientia.pucsp.br AMELIA... · Esboço teórico ... mundo espiritual e o temporal. ... paternidade, embora ele e sua esposa Isabel, que era estéril,

Minha gratidão:

Ao Deus Uno e Trino, Criador, Salvador e Santificador, por ter me oportunizado

galgar a escada do edifício do saber até chegar a este degrau – o doutorado.

À Virgem Maria, Mãe amada e sempre presente em minha vida, cujo desvelo pela

Igreja de seu Filho constitui a razão deste trabalho.

À Professora Doutora Leonor Lopes Fávero, mestra sábia e dedicada, que me

orientou com zelo e profissionalismo, aclareando trevas, preenchendo vales e

aplainando montes.

À minha sempre mestra, Professora Doutora Vanda de Oliveira Bittencourt, que me

introduziu, com sabedoria e dedicação no mundo da pesquisa e do trabalho

científico, como orientadora do Mestrado, e grande incentivadora nesse processo de

Doutoramento.

Aos meus colegas, do Campus X – UNEB (Teixeira de Freitas), pela indiscutível

amizade e importante incentivo nesse árduo, mas prazeroso trajeto.

À Lúcia, grande colega e amiga, presente que recebi do céu, no período dos

créditos.

A Cacilda, bibliotecária do Campus em que trabalho (Campus X – UNEB) que,

dedicadamente fez a revisão das referências bibliográficas.

A Terezinha, irmã querida do meu Grupo de Oração (Jesus Eucarístico) que, com

muita habilidade digitou toda esta tese.

Aos meus primos Mário e Kátia e aos amigos Arnaldo e Jacira que durante esses

quatro anos me acolheram com muito carinho em suas casas.

5

Page 6: LENICE AMÉLIA DE SÁ MARTINS - sapientia.pucsp.br AMELIA... · Esboço teórico ... mundo espiritual e o temporal. ... paternidade, embora ele e sua esposa Isabel, que era estéril,

Ao Padre Tito, sacerdote da Congregação de São Vicente de Paula, que me fez

acreditar, desde o período da seleção, que eu estava iniciando uma obra sob a

proteção da Mãe de Jesus e nossa Mãe, a Virgem Maria.

Aos professores que me assistiram nesse processo acadêmico, ajudando-me, com

seu comprovado profissionalismo, a aprofundar mais neste mundo claro e obscuro,

simples e complexo; temível e fascinante conhecido como linguagem.

À Lourdes, secretária do Programa, pela notável delicadeza e, pelas vezes que

efetivou minha matrícula, colaborando para que eu pudesse evitar desgaste físico e

despesas com a longa viagem de Teixeira de Freitas à capital paulista.

A Pontifícia Universidade Católica de São Paulo por ter me proporcionado um

estudo de qualidade, oferecendo-me profissionais de comprovada competência.

A Universidade do Estado da Bahia – UNEB que, além de me liberar das atividades

acadêmicas para a realização desse curso, agraciou-me com uma bolsa que ajudou

a minorar o peso das despesas com mensalidades e passagens.

Aos meus queridos irmãos da Renovação Carismática Católica da Diocese de

Teixeira de Freitas, por suas orações em prol do sucesso desse projeto que tem

como objetivo primordial a honra e a glória de Jesus Cristo, Homem e Deus,

Salvador e Senhor da História.

6

Page 7: LENICE AMÉLIA DE SÁ MARTINS - sapientia.pucsp.br AMELIA... · Esboço teórico ... mundo espiritual e o temporal. ... paternidade, embora ele e sua esposa Isabel, que era estéril,

Movimento dos sentidos, errância dos sujeitos, lugares

provisórios de conjunção e dispersão, de unidade e de

diversidade, de indistinção, de incerteza, de trajetos, de

ancoragem e de vestígios: isto é o ritual da palavra.

(Orlandi, 1999, p. 10)

7

Page 8: LENICE AMÉLIA DE SÁ MARTINS - sapientia.pucsp.br AMELIA... · Esboço teórico ... mundo espiritual e o temporal. ... paternidade, embora ele e sua esposa Isabel, que era estéril,

RESUMO Autor: Lenice Amélia de Sá Martins Título: O Discurso da “Vidência”: Cruzamento Vocal na Interlocução entre “Céu e Terra”

Este trabalho consiste numa análise do jogo polifônico instalado no discurso da

“vidência”. Para tal realização, procuramos alicerçar-nos nas propostas propugnadas

pela Teoria da Enunciação e da Análise do Discurso que concebem a linguagem

como atividade executada por sujeitos concretos inseridos em determinado tempo e

espaço. As fontes documentais que forneceram o material para este exame são

obras carreiantes do produto deste “diálogo” entre céu e terra. O “corpus” extraído

de tais fontes compõe-se de quatro textos relativos às aparições de Fátima

(Portugal); dois referentes às de Angüera (Bahia); um alusivo às de Itaperuna (Rio

de Janeiro), e um último que faz menção às “vidências” de Jacareí (São Paulo). Com

este exercício, objetivamos, especialmente, mostrar, na materialidade lingüística, o

modo como é constituída a polifonia instaurada nessa interlocução entre

protagonistas de duas esferas diferentes: material e espiritual. Mergulhando nesta

ação discursiva, foi-nos possível perceber que ela é constituída de um

entrelaçamento vocal formado pela multiplicação de sujeitos (polifonia “stricto

sensu”, de acordo com Ducrot, 1987) e por vozes externas oriundas da Sagrada

Escritura e da Igreja Católica (intertextualidade). O estudo revelou ainda que esses

discursos apresentam uma perceptível identidade no tocante ao aspecto ideológico,

pois todos eles, os produzidos em território brasileiro e aqueles de além mar refletem

a ideologia da Igreja Católica, Apostólica Romana. O desvendar do imbricamento

das vozes ecoadas desses dois mundos dissimétricos encontra sua justificativa na

possibilização de ampliamento do estudo do discurso religioso em cuja abrangência

se insere o aqui contemplado, ou seja, o discurso da “vidência”.

8

Palavras-chave: Discurso da vidência; Jogo polifônico; Intertextualidade

Page 9: LENICE AMÉLIA DE SÁ MARTINS - sapientia.pucsp.br AMELIA... · Esboço teórico ... mundo espiritual e o temporal. ... paternidade, embora ele e sua esposa Isabel, que era estéril,

ABSTRACT

This paper consists of an analysis of the polyphonic interplay embodied in the

discourse of “clairvoyance”. In preparing it, we sought to use as a foundation the

propositions set out in Enunciation Theory and Discourse Analysis, which conceive of

language as an activity performed by concrete subjects within a particular time and

space. The documentary sources that furnished the material for this examination are

works representing the product of this “dialog” between heaven and earth. The

corpus taken from such sources is comprised of: four texts relating to the apparitions

at Fatima (Portugal); two relating to those at Angüera (Bahia); one about those in

Itaperuna (Rio de Janeiro); and the last one concerning the “incidents of

clairvoyance” in Jacareí (São Paulo).

With this exercise, we aim especially to demonstrate, in terms of linguistic materiality,

the way in which the polyphony is constituted in this interlocution between two

disparate spheres: the material and the spiritual. Going deeper into this discursive

action, we were able to perceive that it is made up of a vocal intertwining formed by

the multiplication of subjects (polyphony strictly speaking, according to Ducrot, 1987)

and by external voices originating with Holy Scripture and the Catholic Church

(intertextuality). The study further revealed that these discourses are marked by a

perceptible identity as regards ideological aspects since all of them, whether

produced in Brazilian territory or coming from abroad, reflect the ideology of the

Roman Catholic Apostolic Church. The unveiling of the intimate link between the

voices echoing from these two dissymmetric worlds finds justification in that they

make it possible to amplify the study of religious discourse, of which this topic is a

part, namely the discourse of “clairvoyance.”

Key words: Discourse of clairvoyance; polyphonic interplay; intertextuality

9

Page 10: LENICE AMÉLIA DE SÁ MARTINS - sapientia.pucsp.br AMELIA... · Esboço teórico ... mundo espiritual e o temporal. ... paternidade, embora ele e sua esposa Isabel, que era estéril,

PRINCIPAIS SIGLAS

AC - Alocutário Coletivo

AD - Análise do Discurso

AP - Alocutário enquanto Pessoa no mundo

D - Delocutário

DA - Delocutário Angelical

DC - Delocutário Coletivo

DCL - Delocutário Celeste

DE - Delocutário Eclesial

DH - Delocutário Humano

DV - Delocutário Divino

DEST - Destinatário

DESTC - Destinatário Coletivo

E - Enunciador

EB - Enunciador Bíblico

EC - Enunciador Coletivo

EE - Enunciador Eclesial

L - Locutor

LC - Locutor Coletivo

LP - Locutor enquanto Pessoa no mundo

10

SE - Sui Enunciador

Page 11: LENICE AMÉLIA DE SÁ MARTINS - sapientia.pucsp.br AMELIA... · Esboço teórico ... mundo espiritual e o temporal. ... paternidade, embora ele e sua esposa Isabel, que era estéril,

LISTA DE ILUSTRAÇÔES

FIGURA 1 – Estrutura polifônica do discurso da “vidência” ........................................................22

FIGURA 2 – Multiplicidade de sujeitos na descrição da Figura Celeste, na 1ª “aparição de Fátima”....................................................................................................................92

FIGURA 3 – Jogo polifônico na primeira ação discursiva das “Aparições de Fátima”................96

FIGURA 4 – Multiplicação de sujeitos no discurso da segunda “aparição” de Fátima. ............108

FIGURA 5 – Processo interlocutório no discurso da Terceira Aparição de Fátima. .................118

FIGURA 6 – Cruzamento vocal no processo enunciativo do primeiro discurso de Angüera. ...130

FIGURA 7 – Imbricamento vocal na mensagem de Angüera de nº 68. ....................................139

FIGURA 8 – Cruzamento vocal no discurso das mensagens de Itaperuna..............................150

FIGURA 9 – Multiplicação de sujeito nas mensagens de Nossa Senhora Rainha da Paz em Jacareí (São Paulo) ..............................................................................................158

FIGURA 10 – Níveis de interação no discurso da vidência ......................................................164

11

Page 12: LENICE AMÉLIA DE SÁ MARTINS - sapientia.pucsp.br AMELIA... · Esboço teórico ... mundo espiritual e o temporal. ... paternidade, embora ele e sua esposa Isabel, que era estéril,

S U M Á R I O

I N T R O D U Ç Ã O

Objeto de estudo - delimitação e justificativa ...............................................................................14 Objetivos ......................................................................................................................................22 Objetivo Geral ..............................................................................................................................23 Objetivos Específicos ...................................................................................................................23 Hipóteses .....................................................................................................................................23 Procedimentos metodológicos .....................................................................................................24 O “corpus” ....................................................................................................................................24 Esboço teórico..............................................................................................................................26 Estrutura do trabalho ....................................................................................................................27

C A P Í T U L O 1

FUNDAMENTAÇÃO TEÓRICA

1.1 Concepções a respeito da linguagem ....................................................................................30 1.2 A ideologia..............................................................................................................................38

1.2.1. Tipologia discursiva......................................................................................................40 1.3 A questão da polifonia ............................................................................................................41

C A P Í T U L O 2

O DISCURSO RELIGIOSO

2.1. Caracterização ......................................................................................................................50 2.2. Tipologia................................................................................................................................53 2.3. Discurso teológico e discurso religioso..................................................................................54 2.4. Maria no Contexto Bíblico-Eclesial ........................................................................................62

C A P Í T U L O 3

RELATO DAS PRINCIPAIS “APARIÇÕES” DA VIRGEM MARIA E ANÁLISE DA POLIFONIA DO DISCURSO DE FÁTIMA

3.1. Aparições da Virgem Maria: mito ou realidade?....................................................................66 3.2. Nossa Senhora de Guadalupe (México – 1531)....................................................................70 3.3. Nossa Senhora das Graças – Medalha Milagrosa (Paris - França - 1830) ...........................71 3.4. Nossa Senhora de Lourdes (França – 1858) ........................................................................72 3.5. Rainha da Paz (Medjugorje – 1981) ......................................................................................72 3.6. Condições de Produção ........................................................................................................73 3.7. As Mensagens de Fátima – Relato introdutório.....................................................................78 3.8. Jogo Polifônico das Mensagens de Fátima ...........................................................................89

3.8.1. Descrição da Figura Celeste .......................................................................................89 3.8.2. Primeira “Aparição”: 13 de maio de 1917....................................................................92 3.8.3. Segunda “aparição”: 13 de junho de 1917 ..................................................................99 3.8.4. Terceira “aparição”: 13 de julho de 1917 ..................................................................109

C A P Í T U L O 4

CRUZAMENTO VOCAL NOS DISCURSOS DE ANGÜERA, ITAPERUNA E JACAREÍ

4.1. Multiplicidade Vocal nas Mensagens de Angüera ...............................................................121 4.1.1. Mensagem nº 1 .........................................................................................................124 4.1.2 Mensagem nº 62 ........................................................................................................130

4.2. O Discurso das Mensagens de Nossa Senhora Mãe do Infinito Amor – Rio de Janeiro .....140 4.3. A Discursividade das Mensagens da Rainha da Paz em Jacareí – São Paulo ...................150

CONCLUSÃO ............................................................................................................................162

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁGICAS .........................................................................................168

12

ANEXOS ....................................................................................................................................176

Page 13: LENICE AMÉLIA DE SÁ MARTINS - sapientia.pucsp.br AMELIA... · Esboço teórico ... mundo espiritual e o temporal. ... paternidade, embora ele e sua esposa Isabel, que era estéril,

13

I N T R O D U Ç Ã O

Page 14: LENICE AMÉLIA DE SÁ MARTINS - sapientia.pucsp.br AMELIA... · Esboço teórico ... mundo espiritual e o temporal. ... paternidade, embora ele e sua esposa Isabel, que era estéril,

14

Objeto de estudo - delimitação e justificativa

Na Sagrada Escritura, não são raros os relatos de interatividade entre o

mundo espiritual e o temporal. Tanto o Antigo como o Novo Testamento contêm não

poucas referências de homens e mulheres que se comunicaram com Deus,

diretamente, ou através de seus embaixadores. Dentre tantos outros, merecem

destaque na Antiga Aliança:

a) O chamado a Abraão para deixar sua terra natal e partir para outra por ele

desconhecida, com a promessa de torná-lo pai de uma descendência tão

numerosa quanto a areia da praia e as estrelas do céu (cf.Gn 12,1-3);

b) A manifestação de Deus a Moisés numa sarça (em chamas, sem se

consumir) de onde lhe deu a ordem de libertar os israelitas escravizados

no Egito (Ex 3,5-8.10)

E a Bíblia Sagrada registra que o Senhor Deus libertou o povo da

escravidão dos egípcios, realizando prodígios, através de Moisés, e os

conduziu e alimentou, no deserto, durante quarenta anos (cf. Ex, Lv, Nm e

Dt).

c) A palavra dirigida aos profetas, sobressaindo-se dentre eles: Davi, Isaías e

Miquéias que tiveram “revelações” detalhadas sobre o futuro Messias (cf.

Sl 15,8-11; 21; Is 7,14; 53; Mq 5,1-4).

d) No liame entre a Antiga e a Nova Aliança, sobreleva-se a “visão” do

sacerdote Zacarias do Arcanjo Gabriel, que lhe anunciara sua breve

paternidade, embora ele e sua esposa Isabel, que era estéril, já

estivessem idosos. E como o “vidente” duvidou das palavras do Arcanjo,

foi punido com o mutismo até o nascimento de seu filho, João Batista, o

Precursor do Messias (cf. Lc 1,5-25. 57-79).

e) A revelação mais importante, porém, neste alvorecer do Novo Testamento,

foi aquela que tem como protagonistas o mesmo Arcanjo Gabriel e a

Virgem de Nazaré, pois a mensagem transmitida encerra o anúncio do

nascimento do Messias aguardado por Israel, segundo a fé dos cristãos.

No sexto mês, o anjo Gabriel foi enviado por Deus a uma cidade da Galiléia, chamada Nazaré, a uma virgem desposada com um homem que se chamava José, da casa de Davi, e o nome da Virgem era

Page 15: LENICE AMÉLIA DE SÁ MARTINS - sapientia.pucsp.br AMELIA... · Esboço teórico ... mundo espiritual e o temporal. ... paternidade, embora ele e sua esposa Isabel, que era estéril,

15

Maria. Entrando o anjo, disse-lhe: “Não temas Maria, pois encontraste graça diante de Deus. Eis que conceberás e darás à luz um filho, e lhe porás o nome de Jesus. Ele será grande e chamar-se-á filho do Altíssimo (...) – (Lc 1,26-32ª - Bíblia Sagrada: 1345.1346).

Nas páginas do Novo Testamento, deparamo-nos com várias manifestações

do Senhor Jesus, após ter deixado o sepulcro. A primeira é a que ocorreu, na manhã

do domingo da Ressurreição, quando foi visto por Maria Madalena e outras

mulheres que tinham ido ao sepulcro, naquela madrugada, com a intenção de

embalsamar o seu corpo, conforme Mt 28,1-10; Mc 16,1-10; Lc 24,1-12 e Jo 20,1-18.

Neste mesmo dia, ele caminha com dois discípulos que se dirigiam para a aldeia de

Emaús (que não o reconheceram) a quem explica as Escrituras durante o trajeto e,

chegando à aldeia, revela-se-lhes, na ceia, ao partir o pão (cf. Lc 24, 12-34). Ainda

no mesmo domingo, à tarde, o Ressuscitado atravessa as portas fechadas do

Cenáculo onde se encontravam os apóstolos e, apresentando-se a eles, (com

exceção de Tomé), mostrou-lhes as chagas das mãos e dos pés abertas pelos

cravos na crucificação (cf. Lc 24,36-49; Jo,20,19-23). No domingo seguinte a esse

da Ressurreição, Jesus se manifestou a seus discípulos novamente no mesmo

lugar, mas desta vez, com a presença de Tomé. Como este havia declarado que só

acreditaria na ressurreição do Senhor se lhe tocasse nas chagas, o Mestre ordena

ao discípulo incrédulo que realize a desejada comprovação:

Oito dias depois, estavam os discípulos outra vez no mesmo lugar e Tomé com eles. Estando trancadas as portas, veio Jesus, pôs-se no meio deles e disse: “A paz esteja convosco”. Depois, disse a Tomé: “Introduz aqui o teu dedo, e vê as minhas mãos. Põe a tua mão no meu lado, não sejas incrédulo, mas homem de fé”. Respondeu-lhe Tomé: “Meu Senhor e meu Deus!” Disse-lhe Jesus: “Creste porque me viste. Felizes aqueles que crêem sem ter visto.” (Jo 20, 36-39 - Bíblia Sagrada, p. 1413).

Outra manifestação do Senhor Ressuscitado aconteceu às margens do lago

de Tiberíades, na Galiléia, quando confirmou o primado de Pedro, após tê-lo

conduzido a confessar que o amava, por três vezes (cf. Jo 21, 1-17).

Finalmente, decorridos quarenta dias após a Ressurreição, Jesus ascende

aos céus à vista de muitos discípulos, conforme a narração do autor de Atos dos

Apóstolos:

Assim, reunidos, eles o interrogavam “Senhor, é por ventura, agora que ides restaurar o reino de Israel?”. Respondeu-lhes ele: “Não vos pertence a vós saber os tempos nem os momentos que o Pai fixou

Page 16: LENICE AMÉLIA DE SÁ MARTINS - sapientia.pucsp.br AMELIA... · Esboço teórico ... mundo espiritual e o temporal. ... paternidade, embora ele e sua esposa Isabel, que era estéril,

16

em seu poder; mas descerá sobre vós o Espírito Santo e vos dará força, e sereis minhas testemunhas em Jerusalém, em toda a Judéia e Samaria e até os confins do mundo”. Dizendo isto, elevou-se (da terra) à vista deles, e uma nuvem o ocultou aos seus olhos. (At 1,6-9 - Bíblia Sagrada: P.1413/1414).

Com a ascensão do Senhor ao céu, porém, não cessaram as teofanias.

Assim é que, no capítulo nono do mesmo livro de Atos dos Apóstolos, encontramos

o relato da conversão de Paulo, perseguidor dos cristãos, após ouvir a voz: “Saulo,

Saulo, por que me persegues?... Eu sou Jesus, a quem tu persegues” (At 9,4 -

Bíblia Sagrada: p.1423/1424).

Nestes vinte e um séculos de Cristianismo, a igreja Católica tem reconhecido

inúmeras manifestações de Jesus Cristo e de sua mãe, a Virgem Maria,

oficializando, a partir delas, devoções, como por exemplo:

a) A devoção ao Sagrado Coração de Jesus que teve origem nas aparições

do Senhor a Santa Margarida Maria Alacoque, em Paray-le-Monial, na

França. Essa devoção consiste especialmente, na participação da Santa

Missa nas primeiras sextas-feiras do mês e na comunhão reparadora, ou

seja, em desagravo ao Santíssimo Coração de Jesus pelos pecados da

humanidade. A prova mais autêntica do reconhecimento da Igreja dessa

teofania consiste na canonização da “vidente” pelo papa Bento XV, a 13

de maio de 1920, e na instituição da Festa do Sagrado Coração de Jesus,

celebrada, na primeira sexta-feira, depois de Corpus Christi.

b) O culto ao Imaculado Coração de Maria cuja gênese está na “aparição” do

dia 10 de dezembro de 1925 da Virgem Maria à Irmã Lúcia, em Pontvedra,

Espanha, no convento das Dorotéias. Esse culto, além de outras práticas,

envolve a comunhão eucarística nos primeiros sábados de cada mês e a

Festa Litúrgica celebrada pela Igreja, no sábado após a solenidade do

Sagrado Coração de Jesus.

c) A devoção à Misericórdia Divina que teve sua procedência nas

“revelações” de Jesus à santa Faustina, polonesa. O culto à Divina

Misericórdia, entre outros exercícios, compreende:

• A entronização da imagem da Divina Misericórdia, nos lares, na forma

como o Senhor se “apresentou” à Irmã Faustina, na noite de 22 de

Page 17: LENICE AMÉLIA DE SÁ MARTINS - sapientia.pucsp.br AMELIA... · Esboço teórico ... mundo espiritual e o temporal. ... paternidade, embora ele e sua esposa Isabel, que era estéril,

17

fevereiro de 1931: de túnica branca, com uma das mãos erguidas no

gesto de bênção e a outra sobre o peito de onde saiam dois grandes

raios: um vermelho e outro pálido (cf Padres Marianos, 1987, p.107).

• O Terço da Misericórdia, rezado, especialmente, às quinze horas;

• A Festa Litúrgica comemorada no primeiro domingo, após a Páscoa.

d) A devoção da Medalha Milagrosa cuja origem remonta às “aparições” da

Virgem (Nossa Senhora das Graças) a Catarina Labouré, na França, no

ano de 1830.

É do conhecimento de todos que a Igreja Católica jamais negou as revelações

pós-bíblicas (quando devidamente comprovadas) como apregoa a Comissão

Episcopal de Doutrina – CED - CNBB (2.000, p. 21): As manifestações extraordinárias não cessaram com a primeira geração do Cristianismo. Francisco de Assis recebeu a mensagem divina a partir de uma cruz. Santa Matilde de Magdeburgo diz ter tido várias visões de Jesus. Santa Gertrudes, como São Francisco, foi distinguida com os estigmas de Cristo e teve diversas visões e revelações. Santa Brígida, também, teve muitas revelações de Cristo, a favor da volta dos papas de Avinhão para Roma. O mesmo se diga de Santa Catarina de Sena.

As primeiras teofanias, ou seja, aquelas da Sagrada Escritura, são

denominadas pela Igreja de revelações públicas e as últimas, de revelações particulares.

Dentre as manifestações particulares, destacam-se as atribuídas à Virgem

Maria. Roman (2003) apresenta, do século I, aos nossos dias, setenta e oito dessas

revelações:

a) Do século I ao IX, doze, merecendo destaque, neste período, Nossa

Senhora do Pilar, no ano 41;

b) Do século X ao XII, seis;

c) Do século XIII ao XIV, oito;

d) Século XV: cinco;

e) Século XVI: sete. Dentre essas, sobressai a de Guadalupe, no México, em

1531;

Page 18: LENICE AMÉLIA DE SÁ MARTINS - sapientia.pucsp.br AMELIA... · Esboço teórico ... mundo espiritual e o temporal. ... paternidade, embora ele e sua esposa Isabel, que era estéril,

18

f) Século XVII: nove. Nas manifestações desse século, destaca-se o milagre

ocorrido no ano de 1640, em Calanda (Espanha). O jovem Miguel Juan

Pellicer, que tivera uma das pernas amputada, em virtude de uma

gangrena, costumava ir ao Santuário de Nossa Senhora do Pilar de quem

era devoto. Nessas visitas, além das orações, o jovem passava no local

onde a perna fora mutilada, óleo das lamparinas que se acendiam na

Capela da Virgem. No dia 29 de março, deitou-se na sala de sua casa e

se cobriu com um manto. Ás 22:00h, porém, seus pais o acordaram

estupefatos, pois notaram que, debaixo do manto, apareciam os dois pés.

Exames posteriores comprovaram que a perna era a mesma que fora

amputada. (cf. Roman, 2003, p 51/52).

g) Século XVIII: quatro. Neste século, ocupam lugar de destaque as

manifestações que se iniciaram no ano de 1717, no Brasil. Os pescadores

Domingos Garcia, João Alves e Felipe Pedroso pescaram durante muitas

horas sem conseguirem um único peixe. Ao chegarem, porém, ao Porto

Itaguaçu, no Rio Paraíba, João Alves lançou a rede e, ao puxá-la, viram

nela uma imagem de Nossa Senhora da Conceição sem a cabeça. Mais

abaixo, arremessando novamente a rede, apanharam a cabeça da mesma

imagem. Depois disto, obtiveram tão grande quantidade de peixes que

decidiram voltar para casa. Em virtude das curas consideradas milagrosas

e de outros fatos extraordinários atribuídos a essa imagem, as autoridades

eclesiásticas viram nela um sinal da intervenção de Deus, por meio da

Virgem Maria, especialmente para o povo brasileiro. Assim, com o título de

Nossa Senhora da Conceição Aparecida, a Mãe de Jesus foi proclamada

em 1931, Rainha e Padroeira do Brasil.

h) Século XIX: nove. Neste século, sobrelevam-se a da Medalha Milagrosa,

em 1830; a de Nossa Senhora da Salete, em 1846, e a de Nossa Senhora

de Lourdes, em 1854;

i) Século XX: dezoito. Entre essas últimas, estão as de Fátima (que farão

parte do “corpus” deste trabalho), em 1917; a da Rosa Mística, que

“apareceu” em 1946, à enfermeira Pierina Gilli (Lombardia – Itália) e a de

Medjugorje, na Iugoslávia que teve início em junho de 1981.

Page 19: LENICE AMÉLIA DE SÁ MARTINS - sapientia.pucsp.br AMELIA... · Esboço teórico ... mundo espiritual e o temporal. ... paternidade, embora ele e sua esposa Isabel, que era estéril,

19

Aqui, no Brasil, são várias as narrativas de aparições e outras manifestações

da Mãe de Jesus; por exemplo:

a) Em “locução interior” Fortaleza (Ceará), de 1985 a 1987 - Nossa Senhora Medianeira de Todas as Graças.

b) Em Piedade dos Gerais, (Minas Gerais), desde 1987, onde foi formada

uma comunidade composta por pessoas que decidiram viver radicalmente

as “mensagens” da Virgem – Imaculada Conceição.

c) Angüera (Bahia), a partir de 1987 (parte do “corpus”) - Nossa Senhora Rainha da Paz.

d) Jacareí (São Paulo), que teve início em 1991 (integrante do “corpus” -

Rainha da Paz.

e) Itaperuna (Rio de janeiro), de 1995 a 1996 (integrantes do “corpus”) -

Nossa Senhora Mãe do Infinito Amor.

f) As revelações ao artista plástico Raymundo Lopes, em Belo Horizonte

(Minas Gerais), desde o ano de 1992 - Nossa Senhora do Rosário.

Quanto aos fatos extraordinários ocorridos no seio da Igreja Católica, alguns

deles já foram comprovados cientificamente, sendo os mais notáveis, o milagre de

Lanciano, o de Guadalupe, no México, e o Sudário. Em Lanciano, cidade da Itália,

um monge, ao celebrar a Missa, no ano de 1700, foi surpreendido por um fato

inédito: a hóstia que estava em suas mãos, repentinamente transformou-se em

carne e o vinho, no cálice, em sangue. Profundamente comovido, o sacerdote, volta-

se para os fiéis e lhes apresenta o milagre de que eles também eram testemunhas.

Essa carne e esse sangue foram submetidos a exames de laboratório cujos

resultados foram:

1°) A carne e o sangue são humanos.

2º) Não existe, neles, presença de qualquer elemento químico que os

tenha preservado da decomposição.

3º) Tanto a carne quanto o sangue são de pessoa viva.

Page 20: LENICE AMÉLIA DE SÁ MARTINS - sapientia.pucsp.br AMELIA... · Esboço teórico ... mundo espiritual e o temporal. ... paternidade, embora ele e sua esposa Isabel, que era estéril,

20

4°) O grupo sanguíneo de ambos é do tipo AB (o comum na raça

judia) - (cf. Gambarini, 2005, p. 104 - 108).

No tocante a Guadalupe (cujo histórico será apresentado na introdução do

“corpus”), segundo pesquisas realizadas, os sinais mais evidentes são:

a) tipo de tinta da pintura da imagem que não tem similar na Terra;

b) os olhos da imagem fotografaram o “vidente” e outras pessoas

que estavam, na sala onde ele expôs sua tilma (espécie de

avental) com a pintura da Virgem (cf.

http://www.enignasonline.com/htm/passado121001.htm, 205 p: 1-

2).

O Sudário é um lençol de linho que contém a imagem de um homem morto

por crucificação, revelado no negativo de uma fotografia. As pesquisas realizadas,

nesse lençol, mostram que esse homem foi flagelado com 140 chicotadas, coroado

com espinhos, carregou aos ombros uma das partes da cruz e morreu por asfixia.

Após sua morte, teve o coração perfurado por uma lança. Seu corpo, além de não

conter sinais de putrefação, só permaneceu no lençol durante setenta e duas horas,

de onde saiu sem ser retirado por mãos humanas.

As ”revelações” em terras brasileiras têm sido acolhidas pelo povo que acorre,

em massa, aos locais onde se processam esses fenômenos, geralmente para

solicitar cura, conversão, libertação ou até mesmo por curiosidade. É também mais

uma expressão do carinho e da confiança que os filhos da Terra de Santa Cruz

depositam na Mãe do Senhor, pois as orações do Rosário (atualmente vinte Pai-

Nosso e duzentas Ave Maria), do Oficio da Imaculada Conceição e da Ladainha, os

inúmeros títulos atribuídos a ela como ainda a veneração de suas incontáveis

imagens, já atestam esta singular veneração.

A Igreja clerical, porém, sempre se tem mostrado cautelosa frente às

revelações particulares. Essa prudência da Igreja Católica vem sendo reconhecida

por membros de outras igrejas como assegura o seguinte excerto do Documento da

Igreja Luterana sobre Maria:

Em Lourdes, em Fátima e em outros Santuários marianos, a crítica imparcial se encontra diante de fatos sobrenaturais, que têm relação direta com a Virgem Maria, seja mediante as aparições, seja por causa das graças milagrosas solicitadas por sua intercessão. Estes

Page 21: LENICE AMÉLIA DE SÁ MARTINS - sapientia.pucsp.br AMELIA... · Esboço teórico ... mundo espiritual e o temporal. ... paternidade, embora ele e sua esposa Isabel, que era estéril,

21

fatos são tais que desafiam toda a explicação natural. Sabemos ou deveríamos saber que as curas de Lourdes e Fátima são examinadas com elevado rigor científico por médicos católicos e não-católicos. Conhecemos a praxe da Igreja Católica, que deixa transcorrer vários anos antes de declarar uma cura milagrosa… (file://c:\home\afs15794\ art. relig \PROT.SENHORA.htm)

Este trabalho, porém, conforme já referido, não consiste no exame dos

fenômenos cuja verbalização foi tomada como “corpus”, sob o enfoque religioso,

uma vez que aqui não se trata de ciência da Religião e nem tão pouco de

Sociologia. Ele tem como alvo a análise da atividade lingüística que aí se processa,

polifonicamente, ou seja, o adentramento na superposição de vozes e na

multiplicação dos sujeitos dessa ação enunciativa. No dizer de Koch (1995, p. 107),

nesse tipo de discurso, instauram-se “diferentes processos de figuração”, uma vez

que a expressão verbal se amolda às peculiaridades ou objetivos de cada uma

dessas manifestações. Assim é que o discurso de Angüera, por exemplo, difere

consideravelmente do de Itaperuna, que, por sua vez, não é o mesmo de Jacareí,

embora os três sejam contemporâneos e produzidos no português do Brasil. Sendo

assim, só temos que concordar com Orlandi (1983, p 101), quando ressalta que,

mudadas as condições de produção, tem-se outra manifestação discursiva. Essas

mudanças implicam instauração de diferentes sujeitos discursivos, embora

materializados, diversas vezes, num mesmo falante ou ouvinte. Eis por que, no dizer

da autora (p. 176), “o sujeito da linguagem não é um sujeito em si, mas tal como

existe socialmente”.

O discurso da “vidência”, em sua própria estrutura interna, constitui um

entrelaçamento de vozes que formam uma orquestra dirigida, ora por maestros que

se revezam, ora por um único regente. Cabe, portanto, ao analista averiguar como

se processa a atividade lingüística no interior desse discurso de caráter místico.

Convém esclarecer, porém, que a materialidade lingüística dos textos

constituintes do corpus é que norteia a atividade aqui proposta. Concentrando-nos

na ação discursiva dessas “vidências”, temos como meta debruçar-nos sobre o

modo como esses sujeitos se introduzem e se entrelaçam na enunciação

constituindo a tessitura polifônica.

A estrutura desse concerto está representada na figura seguinte:

Page 22: LENICE AMÉLIA DE SÁ MARTINS - sapientia.pucsp.br AMELIA... · Esboço teórico ... mundo espiritual e o temporal. ... paternidade, embora ele e sua esposa Isabel, que era estéril,

22

Temporal Vidente

Celeste Virgem MariaCeleste

Virgem Maria

E N U N C I A Ç Ã O

ALOCUTÁRIO

DELOCUTÁRIO

Temporal Vidente

LOCUTOR

Espiritual Temporal FIGURA 1 – Estrutura polifônica do discurso da “vidência”

Por compreendermos que o lingüístico é o espaço que dá materialidade às

idéias e ás temáticas das quais o homem se faz sujeito, pretendemos usar esse

instrumento para melhor desvendarmos as características desse discurso que se

constrói na interação entre dois mundos assimétricos: o transcendental e o temporal.

Já que, como Brandão (1995: p. 62), consideramos que “o centro das relações não

está nem no eu nem no tu, mas no espaço discursivo criado entre ambos”,

entendemos que o discurso da “vidência”, tanto no tocante às estratégias de

manifestação e escamoteamento do sujeito, quanto no que se refere às vozes intra e

extra discursivas que, nele, ressoam, nos oferece uma valiosa oportunidade para

ampliarmos o conhecimento do discurso religioso no qual ele está inserido.

Objetivos

Centrando a nossa investigação na atividade de algumas “vidências”,

processadas em língua portuguesa, este estudo tem como objetivos:

Page 23: LENICE AMÉLIA DE SÁ MARTINS - sapientia.pucsp.br AMELIA... · Esboço teórico ... mundo espiritual e o temporal. ... paternidade, embora ele e sua esposa Isabel, que era estéril,

23

Objetivo Geral

Contribuir para a ampliação dos estudos do discurso religioso com a análise

do jogo polifônico instalado na interlocução que envolve sujeitos da esfera espiritual

e temporal, ou seja, o discurso da “vidência”.

Objetivos Específicos

a) buscar nas marcas lingüísticas, a rede polifônica construída pelos agentes

da enunciação:

b) apontar, por meio de índices lingüísticos presentes na superfície textual, a

multiplicidade de funções exercidas pelos sujeitos das variadas ações

discursivas;

c) indicar, via materialidade lingüística, o efeito de sentido provocado pela

incorporação de outros discursos (intertextualidade), na instância

enunciativa central;

d) mostrar que a intertextualidade, no discurso religioso, opera como

estratégia argumentativa, no sentido da difusão da ideologia por ele

veiculada.

Hipóteses

Para a Análise do Discurso todo “dizer” está necessariamente relacionado a

sua exterioridade, ou seja, às condições de produção. No discurso religioso uma

dessas exterioridades diz respeito à espiritualidade, pois ,segundo Orlandi (1987, p.

89), “o discurso religioso é a territorialização da espiritualidade”. E a forma como se

dá tal relação implica vários discursos religiosos, como apregoa a mesma autora (p.

8): Na multiplicidade de suas manifestações – há vários discursos religiosos e há

vários modos pelos quais esses discursos se configuram não só no discurso

cotidiano como em outros (...).

Essas manifestações (conforme deslindado no segundo capítulo), na

concepção adotada neste trabalho, constituem instâncias do discurso religioso: o

discurso bíblico, o discurso teológico, o discurso popular e o discurso da “vidência”.

Page 24: LENICE AMÉLIA DE SÁ MARTINS - sapientia.pucsp.br AMELIA... · Esboço teórico ... mundo espiritual e o temporal. ... paternidade, embora ele e sua esposa Isabel, que era estéril,

24

Essas expressões de discursos caracterizam-se fundamentalmente pelo

interdialogismo, ou seja, cada um deles é atravessado pela voz do outro. Portanto,

uma de suas marcas altamente significativas é a intertextualidade. E, como, de

acordo com Koch (1998, p. 57), “todo caso de intertextualidade é um caso de

polifonia”, podemos asseverar que qualquer tipo de discurso religioso é um discurso

polifônico. Se nele essas vozes dialogam entre si, embora com suas peculiaridades,

é evidente que elas falam de um mesmo lugar. Mas como identificar esse lugar?

Ora, já que sabemos que a Igreja regula, determina e avalia o discurso religioso (cf.

Orlandi, 1996, p. 246), podemos entender que qualquer uma de suas micro-

instâncias constitui um eco dessa mesma Igreja. Assim sendo, consideramos que o

discurso da “vidência”, na incorporação das vozes bíblicas e teológicas como

também na multiplicação de seus sujeitos, reduplica a voz da Igreja Católica,

instituição que, de alguma forma, a delega.

Nesta linha de pensamento, assumimos, portanto, como hipótese, no

presente trabalho, que o discurso da “vidência”, embora tendo, como protagonistas

da esfera temporal, sujeitos sem conhecimento teológico (na maioria das vezes), no

processo enunciativo, tanto na polifonia “stricto sensu” (Ducrot, 1987) quanto na

intertextualidade, veicula a ideologia da Igreja Católica Apostólica Romana.

Procedimentos metodológicos

O “corpus”

Para a análise aqui proposta, procuramos compor uma amostra do “corpus”

que compreende os seguintes textos:

a) Quatro referentes às aparições de Fátima (o da descrição da Mulher,

objeto de visões das três crianças: Lúcia, Francisco e Jacinta e os três

primeiros que encerram a “interlocução” entre a Bela Senhora e Lúcia – 13

de maio, 13 de junho e 13 de julho de 1917, conforme Machado, (1983) e

Dias (1999).

b) Dois que dizem respeito aos fenômenos de Angüera – Bahia: 10 de

outubro de 1987 e 04 de janeiro de 2000, de acordo com a obra – Apelos

Page 25: LENICE AMÉLIA DE SÁ MARTINS - sapientia.pucsp.br AMELIA... · Esboço teórico ... mundo espiritual e o temporal. ... paternidade, embora ele e sua esposa Isabel, que era estéril,

25

Urgentes de Nossa Senhora Rainha da Paz em Angüera na Bahia,

(1993).

c) Um alusivo às “aparições” em Itaperuna (Rio de Janeiro): 15 de junho de

1995, consoante a obra – Nossa Senhora Mãe do Infinito Amor (2001).

d) Um relativo aos fenômenos místicos de Jacareí (São Paulo): 19 de março

de 1993, segundo Marcos Tadeu (2000).

De acordo com esses relatos, tais fenômenos acontecem quase sempre em

lugares, dias e horários determinados, como por exemplo, Fátima: na Cova da Iriia,

de 13 de maio a 13 de outubro, próximo ao meio dia (cf. Dias, 1999, p. 20), e,

geralmente, são acompanhados de sinais na natureza (sol, lua, árvores) (cf. as

obras citadas).

Quanto à figura contemplada pelos videntes, nos quatro casos, é descrita

como uma mulher extremamente bela, aparentando uns vinte anos de idade.

Apresenta-se, geralmente com veste branca, manto azul, descalça, envolta numa

intensa luz e traz às mãos um rosário. Sempre paira a pouca distância do solo sobre

uma nuvem luminosa.

No tocante à identidade dos videntes, no início dos fatos, eram crianças

(Fátima), adolescentes (Jacareí) e jovens (Angüera e Itaperuna) e de origem

humilde (cf. as obras mencionadas).

No que se refere aos fiéis que acorrem a esses locais são eles das mais

diversas profissões (médicos, padres, professores, operários) e de variados níveis

sociais e econômicos, mas há uma certa predominância das camadas populares.

Em relação ao registro dessas interações, com exceção de Fátima que

ocorreu vinte anos depois (conforme será explicado no item “condições de

produção), as três “processadas” em solo brasileiro foram consignadas no momento

mesmo de sua ocorrência, como será esclarecido na introdução de cada ação

analítica.

Cumpre esclarecer que a escolha dessas “vidências” não ocorreu de modo

aleatório: foi determinada por critérios, que apresentam real importância para os

objetivos deste trabalho.

Page 26: LENICE AMÉLIA DE SÁ MARTINS - sapientia.pucsp.br AMELIA... · Esboço teórico ... mundo espiritual e o temporal. ... paternidade, embora ele e sua esposa Isabel, que era estéril,

26

As aparições de Fátima, além de serem as únicas, fora do Brasil, em Língua

Portuguesa codificadas em livros, constituem discurso relatado e tem como

“videntes” três sujeitos, embora a interlocução aconteça apenas com um deles.

Essas singularidades em relação aos outros discursos contemplados determinam

uma análise, em certos aspectos, diferenciada.

Quanto às três últimas, a escolha foi motivada por acontecerem no Brasil e

ainda pela farta presença da intertextualidade bíblico-teológica em sua enunciação.

No tocante à seleção mais específica, ou seja, dos textos que constituem o

objeto de exame, seu norteamento está apresentado no prefácio de cada produção

analítica.

Esboço teórico

Em conseqüência do próprio objeto de análise, ou seja, a polifonia do

discurso da “vidência” e do empenho em adentrar a linguagem como ação que se

realiza entre dois sujeitos ou como “ritual social”, no dizer de Maingueneau (1989, p.

30), ação essa determinada pelas inter-relações e pelo contexto situacional,

elegemos como quadro de referência teórica a Análise do Discurso (AD) de origem

francesa e a Teoria da Enunciação (TE). Essa última, tendo Bakhtin (1929/1981,

1986) como precursor, desenvolveu-se no campo da Lingüística com os trabalhos de

Benveniste (a966/1988, 1974/1989) que aqui procuramos seguir com a devida

complementação e reorientação de estudos como os de Pêcheux (1969), Ducrot

(1987), Maingueneau (1984, 1989, 1997), Authier – Revuz (1982), Brandão (1995,

1998), Citelli (1995), Fiorin (1988, 1994, 1996), Koch (1995, 1996, 1997, 1998),

Orlandi (1983, 1986, 1987, 1988, 1999), dentre outros.

O cerne do pensamento dos analistas do discurso é que o enunciado

(produto) não se limita ao material lingüístico que o constitui, mas envolve o ato

enunciativo (produção) do qual é resultante.

Um dos aspectos polêmicos dos estudiosos da AD é a questão da

subjetividade lingüística concebida e apregoada por Benveniste (1988). Para ele, a

subjetividade seria a principal característica da linguagem, constituindo-se o sujeito-

locutor em fonte e centro de todos os atos lingüísticos. Assim sendo, ao apropriar-se

Page 27: LENICE AMÉLIA DE SÁ MARTINS - sapientia.pucsp.br AMELIA... · Esboço teórico ... mundo espiritual e o temporal. ... paternidade, embora ele e sua esposa Isabel, que era estéril,

27

da linguagem, o locutor instaura-se como Eu, ou seja, como fonte de seu dizer, ao

mesmo tempo que institui o outro como TU, isto é, como seu interlocutor.

Para a AD, porém, o sentido produzido pela linguagem não se restringe aos

protagonistas (eu e tu) e ao ser referido (ele), mas leva em consideração o espaço

situacional imediato e o contexto histórico, social e cultural no qual os sujeitos se

acham inseridos.

Prosseguindo em seus estudos, os analistas do discurso passam a conceber

na ação enunciativa não um sujeito único, mas uma dispersão de sujeitos. Assim

sendo, a polifonia passa a ser concebida como a principal característica dos atos

discursivos.

A partir de uma visão mais ampla de polifonia, discutida cuidadosamente no

capítulo teórico, nesta pesquisa, procuramos examinar o modo como se constitui

esse processo polifônico no discurso da vidência.

Estrutura do trabalho

Além desta introdução, em que procuramos apresentar a delimitação do

objeto de estudo, os objetivos, os procedimentos metodológicos e a ancoragem

teórica da pesquisa aqui empreendida, este trabalho contém mais quatro capítulos.

O primeiro abrange os pressupostos teóricos que, conforme alusão anterior,

fundamentam-se na Teoria da Enunciação, abarcada e complementada pela Análise

do Discurso.

O segundo capítulo contém os aspectos teóricos que dizem respeito ao

Discurso Religioso em geral e aos da vidência, em particular, a partir das

concepções, principalmente, de Orlandi (1996, p. 239-262).

O terceiro capítulo abarca um breve relato das principais “aparições” da

Virgem Maria e a análise das Mensagens de Fátima.

O quarto compreende a apreciação analítica das mensagens de Angüera,

Itaperuna e Jacareí. Nesses dois últimos capítulos, que constituem o núcleo desta

tese, por serem aqueles que contêm a análise dos dados, procuramos averiguar

como se constrói o jogo polifônico detectado, nas “vidências” elencadas.

Page 28: LENICE AMÉLIA DE SÁ MARTINS - sapientia.pucsp.br AMELIA... · Esboço teórico ... mundo espiritual e o temporal. ... paternidade, embora ele e sua esposa Isabel, que era estéril,

28

Por fim, na conclusão que encerra um balanço geral da análise efetuada,

apontamos os princípios que regem a rede polifônica tecida no interior do discurso

da “vidência” e sua relação com a instância contenedora, a Igreja Católica.

Em anexo, são transcritos o “corpus” e todos os demais textos relativos a

“revelações” e “milagres” que, embora não-integrantes dos “dados”, foram citados

neste trabalho investigativo.

Page 29: LENICE AMÉLIA DE SÁ MARTINS - sapientia.pucsp.br AMELIA... · Esboço teórico ... mundo espiritual e o temporal. ... paternidade, embora ele e sua esposa Isabel, que era estéril,

C A P Í T U L O 1

FUNDAMENTAÇÃO TEÓRICA

29

Page 30: LENICE AMÉLIA DE SÁ MARTINS - sapientia.pucsp.br AMELIA... · Esboço teórico ... mundo espiritual e o temporal. ... paternidade, embora ele e sua esposa Isabel, que era estéril,

30

Neste capítulo buscamos apresentar as principais teorias que deram

embasamento à análise aqui empreendida. Já que o objeto selecionado para este

estudo é o modo como se processa a linguagem no cruzamento vocal instaurado

nas falas da “vidência”, procuramos guiar-nos, principalmente, pelos princípios da

Teoria da Enunciação e Análise do Discurso.

Antes de abordar esses princípios, tecemos algumas considerações a

respeito da concepção da linguagem, no decorrer dos estudos lingüísticos.

A seguir, fazemos alusão às linhas de pensamento acerca da ideologia,

fenômeno constante em todo ato discursivo.

Prosseguindo na reflexão dos pressupostos teóricos, procuramos deter-nos

especialmente naquele que constitui o fundamento principal deste trabalho analítico

que é a polifonia.

E como o discurso, aqui examinado, é o religioso, apresentamos também as

linhas de pensamento que dizem respeito a este tipo de discurso pertinentes a

especificidade dessa análise – cruzamento das vozes instaladas na “vidência”.

1.1 Concepções a respeito da linguagem

Segundo Koch (1992: p.09-10), no decorrer da história dos estudos

lingüísticos, as diversas concepções a respeito da linguagem podem ser sintetizadas

em três grandes vertentes:

a) de acordo com a tradição gramatical iniciada na antiguidade greco-latina, a

linguagem é vista como expressão do pensamento e como representação

do mundo exterior. Portanto, ela é considerada pelo homem como

“espelho” de seus pensamentos e do conhecimento que ele tem do

mundo;

b) na concepção de lingüistas como Jakobson, a linguagem é um instrumento

de comunicação. Neste caso, a língua é considerada um código, por meio

do qual um emissor transmite a um receptor uma ou várias mensagens;

c) segundo a Análise do Discurso, a linguagem é o lugar de interação entre os

membros de uma comunidade e os atos lingüísticos, um espaço onde

Page 31: LENICE AMÉLIA DE SÁ MARTINS - sapientia.pucsp.br AMELIA... · Esboço teórico ... mundo espiritual e o temporal. ... paternidade, embora ele e sua esposa Isabel, que era estéril,

31

ocorre a heterogeneidade, ou seja, o cruzamento de vozes, uma vez que,

nesse espaço, os sujeitos da enunciação são atravessados por vozes

alheias.

Essa última concepção advogada pela AD, teve como pioneiro o francês

Benveniste (1988 e 1989). Esse lingüista entendia a linguagem como atividade

interacional que envolve protagonistas inseridos no contexto situacional e sócio-

cultural, co-responsáveis pela realização do ato lingüístico.

Nesta concepção de linguagem como atividade, a AD leva em conta as

manifestações lingüísticas produzidas por indivíduos reais, concretos, alocados em

determinado tempo e espaço e dotados de certas intenções. Assim sendo, a AD

considera não serem as condições sócio-históricas elementos secundários; ao

contrário, elas são constitutivas da própria significação do texto. Comungando

dessas mesmas idéias, Orlandi (1983, p. 106 – 107) assevera que o texto é uma

unidade cujo processo de significação se realiza não só pelos elementos lingüísticos

como também pelos contextos situacional e histórico-social que funcionam como

ingredientes de sua efetivação. No dizer de Koch (1992, p.13 -14): (...) as condições

de produção (tempo, lugar, papéis representados pelos interlocutores, imagens

recíprocas, relações sociais, objetivos visados na interlocução) são constitutivos do

sentido do enunciado.

Essa concepção de linguagem como ação que se realiza na interlocução e

pela interlocução, como já referido, começou a germinar, no terreno lingüístico, a

partir de Benveniste (1996/1988, 1974/1989), que, tomando-a de Bakthin inaugura a

Teoria da Enunciação. Seu princípio norteador é que, no estudo da linguagem, o

lingüista não pode parar no enunciado, ou seja, no produto, mas é necessário que

ele volva o seu olhar para a enunciação, uma vez que é no processo enunciativo

que se dá a determinação do sentido.

Nessa nova abordagem, Benveniste (1988) prioriza a subjetividade lingüística,

apresentando, como índice dessa subjetividade, os pronomes pessoais que, no

sistema pronominal francês, de acordo com a sua proposta, ramificam-se em dois

grupos distintos: os pronomes que exprimem pessoa (primeira e segunda) e os que

indicam não-pessoa (referenciais). Os primeiros expressam os sujeitos (emissor e

receptor) envolvidos na interlocução: eu e tu (dêiticos). Os de não pessoa: ele, ela,

Page 32: LENICE AMÉLIA DE SÁ MARTINS - sapientia.pucsp.br AMELIA... · Esboço teórico ... mundo espiritual e o temporal. ... paternidade, embora ele e sua esposa Isabel, que era estéril,

32

eles, elas (anafóricos) indicam os referentes, ou seja, os elementos do mundo extra-

lingüístico, aqueles que se situam à margem da interlocução.

Na ação enunciativa, Benveniste distingue dois planos: o discurso e a história.

O primeiro é expresso pelo presente, pretérito perfeito composto (“passé composé”)

e futuro do presente, e o segundo, pelos pretéritos perfeito, imperfeito, mais que

perfeito e futuro do pretérito.

O discurso constitui uma enunciação caracterizada pela presença de um

locutor e um ouvinte. Já na história, tem-se um relato de fatos passados, mas sem o

envolvimento do locutor. É como se os fatos se narrassem a si próprios.

Mergulhando mais na questão da linguagem como atividade, o lingüista

francês aponta um tipo de verbo que, quando empregado na primeira pessoa do

presente do indicativo, não apenas descreve a ação que exprime, mas tem o poder

de realizá-la. São chamados verbos performativos. Como exemplos de

performativos, podem ser citados os verbos batizar e declarar. O primeiro realiza o

batismo, quando enunciado por pessoas abalizadas, na fórmula: “Eu te batizo em

nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo”. O segundo, quando inserido na fórmula

cristalizada: “Declaro aberta / fechada a sessão”. Assim como Benveniste, Austin

(1965) reconhece esses verbos executores da ação que nomeiam, em sua Teoria

dos Atos de Fala. Nela identifica três tipos de atos: ato locucionário (sempre que o

sujeito se apossa da língua); ato ilocucionário (atribui-se ao ato determinada força:

asserção, pergunta, ordem, etc); ato perlocucionário (exerce certos efeitos sobre o

interlocutor: convencê-lo, assustá-lo, etc). Segundo ele, o performativo ocorre

quando o ato ilocucionário se realiza de forma explícita (Ex: “Eu te louvo, Senhor!”)

ou quando, estando o performativo implícito, é possível recuperá-lo (Ex: No

enunciado “Louva ao Senhor”, há possibilidade de tal recuperação, na forma: “Eu te

ordeno que louves ao Senhor!”)

Nessa percepção da linguagem como interação, Benveniste (1988) distingue

dois sujeitos básicos: o “locutor” e o “receptor”. Para ele, o primeiro é a fonte da

linguagem, o centro do ato lingüístico. Nesse caso, o enunciado pode conter marcas

que denotam a relação do sujeito com o seu dizer e, por meio desse dizer, com o

mundo onde está inserido. Já que, para esse autor, a subjetividade é a marca

fundamental da linguagem, apropriando-se da língua, o sujeito-locutor instaura-se

Page 33: LENICE AMÉLIA DE SÁ MARTINS - sapientia.pucsp.br AMELIA... · Esboço teórico ... mundo espiritual e o temporal. ... paternidade, embora ele e sua esposa Isabel, que era estéril,

33

como eu e institui, ao mesmo tempo, o seu ouvinte como tu. E é a partir do eu que

são caracterizadas as outras duas categorias do processo enunciativo: aqui e

agora, ou seja, o espaço e o tempo.

Nesse processo, eu e tu são sempre reversíveis, isto é, o eu pode passar a

ouvinte e o tu a locutor.

De acordo com Benveniste, conforme já referido (op. cit., p. 82), é o locutor

que instala a enunciação. Ao assumir a língua, “ele implanta o outro diante de si,

qualquer que seja o grau de presença que atribua a esse outro”. Para ele (1989, p.

84), “toda enunciação é, explicita ou implicitamente, uma alocução que postula um

alocutário” (grifo nosso).

Considerando que, na enunciação, a língua se acha empregada para a

expressão de uma certa relação com o mundo, Benveniste (op.cit., p.84), completa o

tripé de seu “aparelho formal” com a referência, que, segundo ele, significa “para o

locutor, a necessidade de referir pelo discurso, e, para o outro, a possibilidade de co-

referir identicamente, no consenso pragmático que faz de cada locutor um co-

locutor”.

Analisando a estrutura das relações de pessoa no verbo francês, Benveniste

(1988, p.247-249), mostra que esses três elementos possuem um estatuto locutório

diferente, o que implica tipos distintos de inter-relacionamentos. Num primeiro nível

de oposição denominado pelo autor de correlação de personalidade, evidenciam-se

a actorização (termo empregado por Fiorin, 1996, p.58) e a referência, ou pessoa x

não pessoa. A actorização envolve as pessoas do discurso: eu que, de acordo com

Benveniste, se faz sujeito na e pela apropriação da linguagem, instituindo, ao

mesmo tempo, o tu como seu parceiro. Esses dois sujeitos eu e tu são únicos e

irreversíveis no processo enunciativo. Já o referido ou terceira pessoa – ele – tem a

possibilidade de encarnar uma infinidade de seres e objetos(ou nenhum) e não é

passível de reversibilidade. No dizer de Fiorin (1996, p.60),

a terceira pessoa é a única com que qualquer coisa é predicada verbalmente. Com efeito, uma vez que ela não implica nenhuma pessoa, pode representar qualquer sujeito ou nenhum e esse sujeito, expresso ou não, não é jamais instaurado como actante da enunciação.

Page 34: LENICE AMÉLIA DE SÁ MARTINS - sapientia.pucsp.br AMELIA... · Esboço teórico ... mundo espiritual e o temporal. ... paternidade, embora ele e sua esposa Isabel, que era estéril,

34

O segundo nível de oposição ao qual Benveniste chama de correlação de

subjetividade abrange os sujeitos da interlocução. Segundo o autor, tal correlação

estabelece oposição entre a primeira pessoa, eu e a segunda, tu, ou seja, pessoa

subjetiva x pessoa não subjetiva. Por conseguinte, o autor confere ao eu uma

posição de transcendência em relação ao tu, o que fica bem patente no excerto

abaixo:

Quando o individuo se apropria dela, a linguagem se torna em instância de discurso, caracterizada por esse sistema de referências internas cuja chave é eu, e que define o indivíduo pela construção lingüística particular de que ele se serve quando se enuncia como locutor (Benveniste, 1988, p. 281) - (grifos do autor).

Alguns teóricos, como por exemplo, Brandão (1995), no entanto, insurgem-

se contra essa supervalorização do eu e a despessoalização do ele, na visão

benvenistiana, argumentando que a subjetividade está presente em qualquer tipo

de discurso, mesmo naquele em que o “eu” não está explicito, não se enuncia. De

acordo com essa autora (p.48), os “discursos que utilizam formas indeterminadas,

impessoais, como o discurso científico ou o esquizofrênico, em que o locutor

utiliza o ele para se referir a si mesmo, mascaram sempre o sujeito”. Para

Brandão,

(...) essa estratégia de mascaramento é também uma forma outra de constituição da subjetividade. Só que nela, o sujeito perde seu eixo então centralizado no eu todo poderoso, monalítico, descentralizando-se e dispersando-se ou para outras formas do paradigma da pessoa ou para outros papéis que assume no discurso (Brandão, 1995, p.48).

O próprio Bakhtin (1929/1986) assume uma concepção de sujeito diferente da

de Benveniste, atestando que, como produtor de sua fala, o sujeito se constitui como

elemento sócio-histórico. Assim, para os adeptos da AD, o sujeito, ao produzir o seu

discurso, projeta-se numa rede ininterrupta de interações, o que torna difícil a

fixação de limites radicais entre o eu e o outro ou entre um determinado discurso e

outros já produzidos no decorrer da história.

O estudo da ação discursiva, em virtude de sua unicidade, é feito através de

seu produto – o enunciado – cujas marcas de produção transparecem na superfície

verbal. Em face desse espelhamento, Ducrot (1987, p. 168), define a enunciação

como “acontecimento constituído pelo aparecimento de um enunciado”.

Page 35: LENICE AMÉLIA DE SÁ MARTINS - sapientia.pucsp.br AMELIA... · Esboço teórico ... mundo espiritual e o temporal. ... paternidade, embora ele e sua esposa Isabel, que era estéril,

35

Partilhando desse mesmo pensamento, assumimos aqui que a linguagem se

constitui discurso por meio das categorias de pessoa, tempo e espaço, numa

intersubjetividade histórico-social. Por conseguinte, emissor e receptor interagem

simultaneamente na cena enunciativa. Assim sendo, a interação se realiza em

parceria, na especificidade de cada sujeito e numa articulação de forma cúmplice.

No tocante à “formação discursiva” em apreço, ou seja, o discurso da

“vidência”, podemos prever um complexo jogo de protagonistas. Dirigida (segundo a

fé), por um locutor celeste que fala em nome de Deus, ela tem seu processamento

agenciado por um sujeito que é, ao mesmo tempo, locutor, alocutário e enunciador.

Considerando que o locutor celeste é também enunciador de uma mensagem

“provinda” de Deus, como se constata na 44ª alocução, do dia 07 de junho de 1988,

em Angüera - Bahia (“Queridos filhos, vós ainda não compreendestes o significado

das mensagens que o Senhor vos transmite por meu intermédio...”) e que os

ouvintes são também referentes e co-alocutários, é certo que temos ai um quadro de

grande mobilização nesse processo interlocutório.

No que se refere ao produto da ação enunciativa desenvolvida na linguagem

e pela linguagem, Benveniste (1989, p. 58) estabelece uma distinção entre frase e enunciado. A primeira se caracteriza como uma unidade formal, estruturada em

consonância com os princípios da gramática e está sujeita a inúmeros modos de

realizações. Já o enunciado, este configura-se como a efetivação de uma ou mais

frases, no decorrer da interlocução.

Essa diferença entre frase e enunciado é apresentada por Ducrot (1987:

p.164):

O que eu chamo de frase é um objeto teórico, entendendo por isso que ele não pertence, para o lingüista ao domínio do observável, mas constitui uma invenção desta ciência particular que é a gramática; o que o lingüista pode tomar como observável é o enunciado, considerado como a manifestação particular, como a ocorrência hic et nunc de uma frase.

Alguns estudiosos da Língua consideram a frase suporte do enunciado,

atribuindo a esse último valor argumentativo. Para eles, as frases permitem prever o

valor argumentativo contido nos enunciados. Fávero e Koch (1988, p.48), por

exemplo, consideram que a orientação argumentativa realizada pelas frases (ou a

maioria delas) é freqüentemente veiculada por marcas lingüísticas explicitas, como:

Page 36: LENICE AMÉLIA DE SÁ MARTINS - sapientia.pucsp.br AMELIA... · Esboço teórico ... mundo espiritual e o temporal. ... paternidade, embora ele e sua esposa Isabel, que era estéril,

36

ainda, aliás, também, mesmo, até, mas, embora, já que, logo, porque, etc. Como, de acordo com tais lingüistas, “as frases são entidades construídas para dar

conta dos enunciados” (p.48), sua função consiste em direcionar a descoberta do

sentido desses mesmos enunciados.

É mister, porém, não nos esquecermos de que, embora o ato discursivo se

realize na enunciação, esta não pode ocorrer sem o enunciado, visto ser ela o

evento que se constitui pela própria produção de um enunciado. Ambos são duas

faces da mesma instância lingüística. Impossível é que haja enunciação sem

enunciado, mas também é inevitável que seja produzido um enunciado sem que,

concomitantemente, seja desencadeado o processo enunciativo. O primeiro,

portanto, é fator imprescindível para a realização do segundo.De acordo com

Foucault (1979, p.247), o enunciado acontece sempre que um sujeito emite um

conjunto de signos, ao passo que a enunciação tem como característica a

singularidade, uma vez que ela jamais se repete. Esse conceito da enunciação

como ação irrepetível é compartilhado por Benveniste, Ascombre e Ducrot. O

primeiro (1974, p.80) diz que “a enunciação é essa colocação em funcionamento

da língua por um ato individual de utilização”. Já Ascombre e Ducrot (1976, p.18)

afirmam:

A enunciação será para nós a atividade linguageira exercida por aquele que fala no momento em que fala. Ela é, portanto, por essência histórica, da ordem do acontecimento e, como tal, não se reproduz nunca duas vezes idêntica a si mesma.

Analisando a visão dos discursivistas acerca do processo enunciativo, Ducrot

(1987, p. 164-168) distingue três grandes tendências:

a) a que o considera como atividade psicofisiológica que tem implicação na

produção do enunciado, acrescentando-lhe o jogo de influências sociais

que, eventualmente, o condiciona;

b) aquela que o toma como produto da atividade do sujeito falante, ou seja,

como um segmento do discurso;

a) outra que o vê como um acontecimento que se constitui pelo

aparecimento de um enunciado.

Tomando o ato enunciativo como uma atividade psico-fisiológica, a primeira

vertente opera fundamentalmente não apenas com a noção de enunciação como

Page 37: LENICE AMÉLIA DE SÁ MARTINS - sapientia.pucsp.br AMELIA... · Esboço teórico ... mundo espiritual e o temporal. ... paternidade, embora ele e sua esposa Isabel, que era estéril,

37

também com a de frase e enunciado, uma vez que ela supõe o elemento formal, ou

seja, a frase (oral ou escrita) produzida por um falante constituído em sua

individualidade externa e psíquica. Na instância psíquica, a frase ultrapassa para o

nível do enunciado e, conseqüentemente, para a enunciação. Acrescentando-se

uma possível atuação das condições histórico-sociais que envolvem os sujeitos da

cena discursiva, leva-se tal conceito ao quadro da Análise do Discurso.

As idéias de Benveniste, no tocante à subjetividade, conforme comentamos,

vêm sendo revistas e até questionadas por vários teóricos da linguagem, dentre os

quais os estudiosos da Análise do Discurso que, como já foi aludido, tal qual o

lingüista francês, sustentam a relevância do processo da ação verbal sobre o

produto, ou seja, da enunciação sobre o enunciado. Dentre esses podem ser

citados: Maingueneau (1981, 1984, 1989 e 1997); Pêcheux (1979); Ducrot (1987);

Authier – Revuz (1982); Parrett (1988); Kerbrat-Orechioni (1980), no grupo dos

estrangeiros, e Brandão (1995), Orlandi (1983, 1986, 1987, 1988), Fiorin (1992,

1994, 1996) na ala dos lingüistas brasileiros. O questionamento desses autores à

subjetividade benvestiana fundamenta-se na realidade de que, no estudo da

linguagem, não se pode deixar à margem as condições de produção, uma vez que

elas são responsáveis não só pela constituição do sentido como também pela

identificação do sujeito em sua relação consigo próprio, com o outro e com o mundo

(natureza, cultura, animais, objetos, semelhantes, etc.). Orlandi (1983, 9. 19), por

exemplo, ressalta que não se pode estudar a linguagem sem se levar em

consideração a sociedade em que ela é produzida, pois os processos que entram

em sua constituição são processos histórico-sociais. Como Orlandi, Lopes (1988, p.

108) também apresenta posição contrária à centralização do ato lingüístico no

sujeito falante, conforme o seguinte enunciado:

Embora concorde com a noção de enunciação produzida por uma ação do enunciador e reconheça o grande salto efetuado na passagem de uma visão meramente estrutural da língua para uma percepção discursiva do fenômeno, penso que falta à teoria benvestiana a discussão do processo de instauração das enunciações que ocorre na interação entre as várias instâncias enunciativas no discurso.

Page 38: LENICE AMÉLIA DE SÁ MARTINS - sapientia.pucsp.br AMELIA... · Esboço teórico ... mundo espiritual e o temporal. ... paternidade, embora ele e sua esposa Isabel, que era estéril,

38

1.2 A ideologia

Na opinião de Orlandi (1983, p. 121), o discurso é “o modo de existência

social da linguagem: lugar particular entre língua (geral) e fala (individual)”. O

discurso é, portanto, o espaço onde se encontram língua e fala, ou seja, o geral e o

individual. Nesse espaço se articulam saber e poder, uma vez que o indivíduo que

se apropria da linguagem não age isoladamente, mas fala de um lugar que lhe foi

concedido pela instituição que representa: Escola, Estado, Igreja, etc. Assim sendo,

todo discurso configura-se como ponto de articulação entre o ideológico e o

lingüístico, visto que, ao se inscreverem no espaço discursivo, os interlocutores

operam de acordo com a sua formação ideológica. Por conseguinte, todo discurso

gera poder. Por essa razão, para muitos estudiosos do discurso, esse discurso nada

mais é do que uma prática social que materializa uma ideologia. Ele é o espaço

onde toda ideologia é, ao mesmo tempo, formada e difundida.

Já que, segundo essa teoria, o sujeito não se apropria da linguagem

individualmente, mas o faz realizando um movimento social, ao produzir essa

linguagem, ele também está nela reproduzido. Isso quer dizer que, embora o sujeito

tenha a impressão de ser a fonte de seu discurso, na realidade, ele está retomando

discursos preexistentes. Esse fenômeno da linguagem, Orlandi (1988, p. 19) chama-

o de a “ilusão discursiva do sujeito”. No processo de interlocução, segundo essa

lingüista, o indivíduo é constituído eu pela língua, mas interpelado como sujeito pela

ideologia.

De acordo com essa concepção, todo sentido é determinado pelas posições

ideológicas dos interlocutores, ou, como afirma a autora (1988: p. 58): “as palavras

recebem seu sentido da formação discursiva na qual são produzidas”. Os sentidos,

portanto, são partes de um processo e se realizam dentro de um contexto sócio-

histórico.

Com base no fato de que é a ideologia que determina o discurso, Orlandi

(1986: p. 115) considera a linguagem como “ação transformadora, como mediação

entre o homem e sua realidade natural e social. Para ela, a palavra é um ato social e

todo discurso é um continuum. Assim sendo, não pode haver unicidade discursiva.

Todo discurso tem sua gênese em outro, chamado discurso “fundador” e se projeta

Page 39: LENICE AMÉLIA DE SÁ MARTINS - sapientia.pucsp.br AMELIA... · Esboço teórico ... mundo espiritual e o temporal. ... paternidade, embora ele e sua esposa Isabel, que era estéril,

39

para um futuro, numa rede de inter-relações contínuas. Na língua, tem-se, pois, a

intertextualidade e jamais a unicidade textual.

Transportando essas idéias para o discurso da “vidência”, podemos

considerar os textos bíblicos como seu discurso fundador, o que denota ser o

discurso em apreço produto do entrelaçamento daqueles textos (os bíblicos) com a

atividade discursiva processada na interação entre o mundo espiritual e o temporal,

prática essa que implica uma ruptura dos limites de tempo e espaço, uma vez que o

passado presentifica-se no presente.

A ideologia não surge do vazio: ela é constituída pela realidade e, ao mesmo

tempo, é constituinte da realidade que envolve os grupos sociais. Essa ideologia,

porém, só pode ser identificada, através da “formação discursiva”, que, segundo

Orlandi e Guimarães (1988, p.58), pode ser definida como “aquilo que a partir de

uma certa posição em uma conjuntura sócio-histórica dada, determina o que pode e

deve ser dito”.

As “formações discursivas”, no dizer dos mesmos autores, são constituídas

por duas forças opostas: a paráfrase e a polissemia , De acordo com Brandão (1995,

p.39), na paráfrase “os enunciados são retomados e reformulados, num esforço

constante de fechamento de suas fronteiras”, enquanto que a polissemia, “opondo-

se a esse fechamento, rompe com a mesmice” e desloca-se da unicidade para a

pluralidade de sentido, gerando o movimento de tensão entre o mesmo e o novo;

entre o institucionalizado e o não-garantido; entre a estabilidade e a instabilidade, ou

como no dizer de Orlandi (1999, p. 36). (...) é nesse jogo entre paráfrase e

polissemia, entre o mesmo e o diferente, entre o já-dito e o a se dizer que os sujeitos

e os sentidos se movimentam, fazem seus percursos, (se) significam.

No tocante ao discurso da “vidência” podemos inseri-lo na “formação

discursiva católica” que, por sua vez, consubtancia uma “ideologia católica”, mas ao

mesmo tempo, ele representa o novo, o não-institucionalizado, visto tal discurso

partir sempre do povo e não da Instituição.

Page 40: LENICE AMÉLIA DE SÁ MARTINS - sapientia.pucsp.br AMELIA... · Esboço teórico ... mundo espiritual e o temporal. ... paternidade, embora ele e sua esposa Isabel, que era estéril,

40

1.2.1. Tipologia discursiva

Considerando a heterogeneidade discursiva, Maingueneau (1984) apresenta

um quadro que contém diferentes tipos de “matrizes” discursivas, a saber: universo discursivo, campo discursivo e espaço discursivo. O primeiro é formado pelo

conjunto das formações discursivas que, numa conjuntura dada, estão em interação

(p.27). Esse universo discursivo serve apenas como um marco, a partir do qual são

construídas esferas que podem ser analisadas. Tais esferas constituem os campos

discursivos (p.28) que são organizados por um conjunto de formações discursivas.

Essas formações discursivas fixam limites dentro de um determinado espaço do

universo discursivo e se encontram em concorrência, como é o caso dos discursos

político, religioso, filosófico, etc.

Como um campo discursivo, em geral, não pode ser analisado em sua

totalidade, ele é recortado em subcampos, os quais constituem os espaços discursivos, nos termos de Maingueneau (1984, p.117):

O espaço discursivo delimita um subconjunto do campo discursivo, ligando, pelo menos, duas formações discursivas que mantêm (supõe-se) relações privilegiadas, cruciais para a compreensão dos discursos considerados, sendo definido a partir de uma decisão do analista, em função de seus objetivos de pesquisa.

De acordo com esse autor, tanto o “campo discursivo” como o “espaço

discursivo” não resultam de uma divisão espontânea, mas são delimitados pelo

analista, a partir de hipóteses explicitadas segundo as metas visadas em sua

análise.

Trabalhando com o “espaço discursivo, o lingüista compreende que tem

diante de si não uma “formação discursiva”, mas uma interação entre “formações

discursivas”. Já que a linguagem é uma realidade heterogênea, o analista lida não

com um discurso, mas com a interdiscursividade. Eis por que, no dizer de

Maingueneau (1989, p. 119), “a identidade discursiva está construída na relação

com o outro”.

Tendo em vista o modo de relação entre os atores da cena discursiva e o jogo

entre polifonia e paráfrase, Orlandi (1983, p.32) identifica três tipos básicos de

discurso: o lúdico, o polêmico e o autoritário. É o grau de reversibilidade (troca

de papéis entre os interlocutores) que determina a caracterização desses tipos.

Page 41: LENICE AMÉLIA DE SÁ MARTINS - sapientia.pucsp.br AMELIA... · Esboço teórico ... mundo espiritual e o temporal. ... paternidade, embora ele e sua esposa Isabel, que era estéril,

41

Caso a reversibilidade tenda a anular-se, há o predomínio da paráfrase, tendo-se um

discurso mais monossêmico. Se, porém, a reversibilidade ocorrer em grau maior, o

predomínio é da polissemia, em virtude de em tal discurso haver a possibilidade de

múltiplos sentidos. Mas se, no discurso, os interactantes exercem o controle da

reversibilidade, ter-se-á o jogo entre paráfrase e polissemia e tal discurso será, ao

mesmo tempo, monossêmico e polissêmico.

Eis como a respeito desse assunto se expressa Orlandi (1988, p.24):

Essa tipologia que elaborei (...) tem como critérios a interação (a reversibilidade, a troca de papéis ou de estatuto entre os interlocutores) e a relação entre polissemia e paráfrase (a possibilidade, ou não, de múltiplos sentidos).

Para Orlandi, portanto, no discurso autoritário, ocorre a polarização da

paráfrase; no lúdico, a da polissemia, mas, no discurso polêmico, existe uma

alternância entre o mesmo e o diferente, ou seja, o jogo entre paráfrase e

polissemia.

Segundo a mesma autora (op. cit), o discurso dominante em nossa sociedade

é o autoritário, uma vez que se trata de um discurso oficializado. Já o polêmico é

apenas tolerado e o lúdico só no escamoteamento da linguagem pode encontrar

espaço.

No tocante ao discurso da “vidência”, sendo ele um discurso religioso, dentro

dessa taxonomia, é possível considerá-lo com tendência ao autoritário, já que sua

voz é a voz de Deus, seu verdadeiro Sujeito, o qual se manifesta ora como

LOCUTOR, ora como ALOCUTÁRIO e ora como DELOCUTÁRIO, conforme será

mostrado na análise dos dados.

1.3 A questão da polifonia

No dizer de Maingueneau (1976, p. 39), “um discurso não vem ao mundo

numa inocente solitude, mas constrói-se através de um já – dito em relação ao qual

toma posição”. Para ele, portanto, o intertexto é uma condição definitiva para que

haja produção.

Page 42: LENICE AMÉLIA DE SÁ MARTINS - sapientia.pucsp.br AMELIA... · Esboço teórico ... mundo espiritual e o temporal. ... paternidade, embora ele e sua esposa Isabel, que era estéril,

42

De acordo com esse autor (1997, p. 78), “a problemática da polifonia põe em

causa a unicidade do sujeito falante, inscrevendo-se, pois, na problemática mais

geral da heterogeneidade discursiva”.

Nesta mesma linha de pensamento, Bakhtin (1929/1986) compreende a

atividade verbal quer oral, quer escrita, como essencialmente dialógica, divergindo,

portanto, de Benveniste para quem a ação do locutor é determinante no processo

enunciativo. Para Bakhtin (1986, p. 126):

A verdadeira substância da língua não é constituída por um sistema abstrato de formas lingüísticas, nem pela enunciação monológica isolada, nem pelo ato psicofisiológico de sua produção, mas pelo fenômeno social da interação verbal realizada através da enunciação ou das enunciações. A interação verbal constitui assim a realidade da língua.

Constatamos, pois, que, para o autor, é na ação dialógica que acontece a

linguagem.

Essa concepção interativa da linguagem aparece de modo mais contundente,

no enunciado seguinte:

Qualquer desempenho verbal inevitavelmente se orienta por outros desempenhos anteriores na mesma esfera, tanto do mesmo autor como de outros autores originando um diálogo social e funcionando como parte dele. (Bakhtin, 1986, p.123).

Autores, por exemplo, como Authier – Revuz (1982), Ducrot (1987), Foucault

(1971/1979), Maingueneau (1984) e Orlandi (1983/1986/1988), trilhando esse

mesmo caminho, sustentam a idéia de que a polifonia é a marca fundamental do

discurso. Maingueneau (1989, p.120), esclarecendo que nem sempre a

manifestação polifônica é marcada explicitamente, assevera:

Mesmo na ausência de qualquer marca de heterogeneidade mostrada, toda unidade de sentido, qualquer que seja seu tipo, pode estar inscrita em uma relação essencial com outra, aquela do ou dos discursos em relação aos quais o discurso de que ela deriva define sua identidade.

Nos lingüistas contemporâneos está muito presente esta noção de

heterogeneidade da linguagem. Barthes (1974), por exemplo, assegura que:

(...) o texto redistribui a língua. Uma das vias dessa reconstrução é a de permutar textos, fragmentos de textos que existiram ou existem ao redor do texto considerado, e, por fim, dentro dele mesmo; Todo

Page 43: LENICE AMÉLIA DE SÁ MARTINS - sapientia.pucsp.br AMELIA... · Esboço teórico ... mundo espiritual e o temporal. ... paternidade, embora ele e sua esposa Isabel, que era estéril,

43

texto é um intertexto; outros textos estão presentes nele, em níveis variáveis, sob formas mais ou menos reconhecíveis.

Para esse autor, portanto, todo texto está relacionado com outros textos com

os quais dialoga aludindo, confirmando, ironizando ou simplesmente retomando-o.

Dentro deste raciocínio, Pêcheux (1969) afirma:

Deste modo, dado discurso envia a outro, frente ao qual é uma resposta direta ou indireta, ou do qual ele “orquestra” os termos principais, ou cujos argumentos destrói. Assim é que o processo discursivo não tem, de direito, um inicio: o discurso se estabelece sempre sobre um discurso prévio.

E Kristeva (1974, p. 60) é mais incisiva ao afirmar que “qualquer texto se

constrói como um mosaico de citações e é a absorção e transformação de um outro

texto”.

Todas estas considerações apontam para o naipe vocal ou polifonia.

O conceito de polifonia foi introduzido na lingüística por Bakhtin (1929) para

caracterizar o romance de Dostoievski. No dizer desse autor,

(...) a palavra é o produto da relação recíproca entre falante e ouvinte, emissor e receptor. Cada palavra expressa o um em relação com o outro. Eu me dou forma verbal a partir do ponto de vista da comunidade a que pertenço. EU se constrói constituindo o EU do outro e por ele é constituído.

Para ele, pois, a linguagem é constituída pelo dialogismo. Explorado,

principalmente por Ducrot (1980) e retomado por Koch (1984), o termo polifonia

designa a incorporação ao próprio discurso das vozes de outros enunciadores: os

interlocutores, terceiros, a opinião pública em geral ou o senso comum, ou seja, o

coro de vozes que se manifesta, normalmente, em cada ação discursiva. Já que o

pensamento do emissor é constituído do pensamento do receptor e vice-versa, a

produção do sentido é absolutamente condicionada à alteridade.

Nas palavras de Koch (1992, p.58), polifonia é o “fenômeno pelo qual, num

mesmo texto, se fazem ouvir ‘vozes’ que falam de perspectivas ou pontos de vista

diferentes com os quais o locutor se identifica ou não”. E para essa autora, todo

caso de intertextualidade o é de polifonia, conforme expressão seguinte:

Page 44: LENICE AMÉLIA DE SÁ MARTINS - sapientia.pucsp.br AMELIA... · Esboço teórico ... mundo espiritual e o temporal. ... paternidade, embora ele e sua esposa Isabel, que era estéril,

44

a meu ver, o conceito de polifonia recobre o de intertextualidade, isto é, todo caso de intertextualidade é um caso de polifonia, não sendo, porém, verdadeira a recíproca: há casos de polifonia que não podem ser vistos como manifestações de intertextualidade (Koch: 1998, p.57).

Compartilhando o pensamento dessa autora , consideramos como polifônicas

as vozes que, provindas de outros textos incorporam-se ao discurso construído no

Encontro de Oração da Renovação Carismática Católica (cf. Martins, 1999, p.50) e,

por conseguinte, também o discurso da vidência.

Entendemos, pois, polifonia como interação verbal efetuada pelos sujeitos

discursivos: o do discurso relatado, o da multiplicação de sujeitos e o da

interdiscursividade.

Numa concepção oposta à de Benveniste (1988) e em conjunção com as

idéias de Bakhtin (1929, 1981 e 1986), Ducrot (1987, p. 142-188) já mencionado

nesta exposição, identifica a presença de várias vozes, na enunciação, vozes essas

executadas pelos seus protagonistas aos quais ele designa locutor e alocutário. O

primeiro é o ser que se identifica como eu e o segundo, o que é por este

reconhecido como tu.

Na emissão, esse lingüista apresenta o locutor desdobrado em: locutor – P,

pessoa do mundo empírico e locutor – L, ser interno ao discurso e um outro sujeito

que exprime as atitudes do locutor, enunciador (E).

Orlandi, Guimarães e Tarallo (1989, p. 46-47) apresentam uma taxonomia

complementar, identificando entre os sujeitos do discurso, três níveis de

processamento das interlocuções:

• O primeiro nível considera-os em sua dimensão física, na cadeia falante-ouvinte;

• o segundo pondera-os na relação entre as entidades do discurso: locutor (L) e alocutário (AL). O locutor, na enunciação, assume o paradigma do

eu e se representa como o ser responsável por ela. Já o segundo, o

alocutário, instaurado no discurso pelo locutor, exprime o tu e se

apresenta em correlação com esse mesmo locutor. Esses autores,

seguindo a trilha de Ducrot (1987), desdobram o locutor em locutor – L,

Page 45: LENICE AMÉLIA DE SÁ MARTINS - sapientia.pucsp.br AMELIA... · Esboço teórico ... mundo espiritual e o temporal. ... paternidade, embora ele e sua esposa Isabel, que era estéril,

45

“que se representa como fonte do dizer” (p.46) e locutor – P, que se faz

representar como “o locutor-enquanto-pessoa-socialmente constituída”

(p.46). No plano da recepção, correlatamente ao locutor – L, há o

alocutário AL, e ao locutor-enquanto-pessoa-socialmente constituída,

corresponde o alocutário AL P (p.47);

• o terceiro nível representa a perspectiva do recorte enunciativo,

considerando os sujeitos discursivos na dimensão enunciador(E) e destinatário (D), o seu correlato (p.47).

Esses autores (1988, p. 48-49) estendem a sua análise em torno da

heterogeneidade vocal, apontando as seguintes possibilidades de expressão do

enunciador.

a) enunciador individual: que pode coincidir com o locutor (L ou LP);

b) enunciador genérico: é a representação da voz do senso comum e traz

para o texto as crenças historicamente constituídas;

c) enunciador universal: esse é a voz que se apresenta como se os fatos

falassem por si, podendo, portanto, serem enunciados por todos e pelo

indivíduo. É o enunciador representado, por exemplo, no discurso

científico e filosófico;

d) enunciador coletivo: representa a voz de uma comunidade específica,

como por exemplo, o discurso da “vidência”, objeto deste estudo.

Já Brandão (1988, p. 50-52), na análise da propaganda da Petrobrás,

apresenta o locutor num tríplice desdobramento:

a) L1 – responsável pela totalidade do discurso, voz delegada, isto é, porta-

voz da instituição (Petrobrás);

b) L2 – voz mencionada por L1, numa perspectiva genérica (E2 geo);

c) L0 – ser referido pelo discurso (= ela), mas que se identifica com o autor

empírico do enunciado (Petrobrás).

Quanto ao alocutário, ela o aponta, como um ser assujeitado pelo locutor,

que, ao trazê-lo para a sua esfera, produz representações nas quais o sujeito da

Page 46: LENICE AMÉLIA DE SÁ MARTINS - sapientia.pucsp.br AMELIA... · Esboço teórico ... mundo espiritual e o temporal. ... paternidade, embora ele e sua esposa Isabel, que era estéril,

46

recepção se vê refletido. Assim, entre o locutor e alocutário demarca-se um espaço

comum onde as crenças são compartilhadas.

Nesse seu trabalho, Brandão faz alusão ao sujeito da referência ou

delocutário, que não foi contemplado pelos autores citados, enunciando-o como

desdobramento de L1: “quem fala e quem é falado constituem uma só identidade”

(p. 52-53). Temos aí, então, uma enunciação sui-referencial, pois a voz do locutor se

dobra sobre si mesma, ou seja, a Petrobrás fala de si mesma não como eu explícito,

mas como referente (= ela), criando assim uma ilusão de objetividade: L1 = L0 = D

(Delocutário).

Essa forma de funcionamento do delocutário, segundo a autora, contraria a

posição de Benveniste para quem o ele é não-pessoa. Diz ela (p. 53), textualmente:

“No nosso caso, o ele é pessoa e, mais do que isso, exerce o papel de locutor,

podendo nomear-se eu”.

Nessa linha de pensamento, Bittencourt (1950), em sua análise do discurso

do anúncio de videntes, identifica um delocutário que se assenhora do lugar de

locutor, confirmando, portanto, a posição de Brandão.

No discurso da “vidência”, tema deste trabalho, constatamos também casos

de su-referenciamento (como será mostrado na análise do “corpus”), visto que o

sujeito da esfera celeste, em algumas alocuções, fala de si mesmo como se fosse

outra pessoa, conforme podemos comprovar no exemplo abaixo:

Quero que venham aqui no dia 13 do mês que vem, que continuem a rezar o terço em honra de Nossa Senhora do Rosário para obter a paz do mundo e o fim da guerra, porque só ela lhes poderá valer (grifo nosso). (Terceira Aparição de Fátima – 13 de julho de 1917)

Nessa ação discursiva, tem-se, pois, um delocutário – D (Nossa Senhora do

Rosário) que é o mesmo locutor – L.

EU (L) = ELA (D)

Neste discurso, comprovamos, pois, o princípio de que é possível ao “ele”

estatuir-se pessoa uma vez que pode exercer a função de sujeito.

Conforme mostrado nesta seção, a linguagem é essencialmente heterogênea,

pois, além da plurivocalidade instaurada pelos protagonistas da cena interlocutória,

Page 47: LENICE AMÉLIA DE SÁ MARTINS - sapientia.pucsp.br AMELIA... · Esboço teórico ... mundo espiritual e o temporal. ... paternidade, embora ele e sua esposa Isabel, que era estéril,

47

qualquer ação discursiva admite a incorporação de vozes provindas de outras

instâncias enunciativas – intertextualidade.

A esse caráter heterogêneo da linguagem Pires (1997, p. 156) faz a seguinte

alusão:

Cada discurso se revela heterogêneo, na medida em que, além da voz de seus enunciadores, incide vozes de outros enunciadores, de forma mais ou menos explícita. (...) Vale lembrar que todo discurso,por natureza plurivocal, pressupõe, no mínimo, um destinatário, que reconstitui as suas vozes heterogeneamente (...).

Já, de acordo com Orlandi (1999, p.31-33), o discurso tem duas dimensões:

“horizontalidade” e “verticalidade”. Para ela, a interdiscursividade se configura como

vertical por representar o pré-construído, o já-dito. Nele estão todos “os dizeres já

ditos — e esquecidos — em uma estratificação de enunciados que, em seu

conjunto, representa o dizível, enquanto.´no eixo horizontal, está o intradiscurso

que é o eixo da formulação”, ou seja, o que se diz naquele momento (p.33).

Segundo a autora, todo dizer parte desses dois eixos: o da memória

(constituição) e o da atualidade (formulação).

A verticalidade comprova que não existe unicidade discursiva, mas que todo

discurso tem sua gênese em outro (discurso fundador) e se projeta para um discurso

futuro. Isso significa que os sentidos de um texto não estão, necessariamente, na

superfície de seus enunciados, mas podem advir da alteridade nele manifestada.

É na intertextualidade que se estabelece a unidade textual. Nesse sentido, a

relação do sujeito com o texto (o produto) e com o discurso (a manifestação verbal)

é o responsável pelo alcance da completude do enunciado.

Page 48: LENICE AMÉLIA DE SÁ MARTINS - sapientia.pucsp.br AMELIA... · Esboço teórico ... mundo espiritual e o temporal. ... paternidade, embora ele e sua esposa Isabel, que era estéril,

C A P Í T U L O 2

O DISCURSO RELIGIOSO

48

Page 49: LENICE AMÉLIA DE SÁ MARTINS - sapientia.pucsp.br AMELIA... · Esboço teórico ... mundo espiritual e o temporal. ... paternidade, embora ele e sua esposa Isabel, que era estéril,

49

Neste segundo capítulo, procuramos votar-nos à questão do discurso

religioso, tecendo preliminarmente, porém, uma abordagem a respeito da influência

da religião na vida das pessoas e das sociedades. Uma vez que este trabalho tem

sua centralização na esfera religiosa, julgamos oportuno mostrar como o sagrado

para os humanos parece ser algo vital.

Segundo o Catecismo da Igreja Católica, o ser humano é naturalmente

impelido para Deus, em virtude de ter sido criado por ele e para ele. (cf. Catecismo da Igreja Católica, 1993: p.23). Essa mesma concepção tinha Santo Agostinho,

como testificam as palavras seguintes:

És grande, Senhor, e infinitamente digno de ser louvado; grande é teu poder e incomensurável tua sabedoria. E o homem, pequena parte de tua criação, quer louvar-te (...). Tu mesmo o incitas ao deleite no teu louvor, porque nos fizeste para ti, e nosso coração está inquieto enquanto não encontrar em ti descanso. (Confissões de Santo Agostinho, 2002, p. 29).

Para Israel, o povo da Antiga Aliança, não havia diferença entre história e

religião, pois, em cada fato histórico, ele via a ação de Deus protegendo-o ou

punindo-o por sua infidelidade.

Após a vinda de Jesus Cristo, o Deus que entrou na História pela

Encarnação, a força do Cristianismo tem movido indivíduos e sociedades. Basta

lançarmos um olhar para Francisco e Clara de Assis; Inácio de Loyola e Tereza

D´Ávila, dentre tantos outros homens e mulheres que renunciaram à riqueza e ao

conforto, a fim de se consagrarem inteiramente a Deus, para constatarmos essa

realidade. Ordens, instituições e comunidades religiosas têm surgido, nestes vinte e

um séculos de Cristianismo, com o objetivo de acolher, amparar e confortar os

excluídos, como por exemplo, os Vicentinos, as Irmãs de Caridade, os Salesianos, a

Congregação de Madre Tereza de Calcutá, a Pastoral da Criança, a Toca de Assis,

as Obras de Irmã Dulce, dentre outras.

Até mesmo nossa educação (no caso do Brasil) tem sido fortemente marcada

pelo caráter religioso. E essa inegável onipresença do Cristianismo na cultura

ocidental é assinalada por Orlandi (1987, p. 9):

Esse atravessamento da religião – eu ousaria dizer sob a forma paradigmática do cristianismo – atua em todas as nossas formas culturais. Não é por acaso que a primeira obra impressa foi a Bíblia. Nem se deve estar indiferente ao fato de que nossa educação, ou

Page 50: LENICE AMÉLIA DE SÁ MARTINS - sapientia.pucsp.br AMELIA... · Esboço teórico ... mundo espiritual e o temporal. ... paternidade, embora ele e sua esposa Isabel, que era estéril,

50

seja, a ação pedagógica em nossa cultura, está ligada, desde suas origens, à esfera do religioso.

Esse forte poder que a religião exerce sobre os indivíduos e as culturas tem

sido mais evidente, nos dias atuais, num movimento que surgiu na Igreja Católica,

em 1967, conhecido como Renovação Carismática Católica. Tendo como

características principais o Batismo no Espírito Santo e a prática dos carismas, essa

micro-instância, nesses seus trinta e nove anos de existência, tem transformado

pessoas e mobilizado multidões. Nele, pastores (bispos e padres) e fiéis; ricos e

pobres; profissionais liberais e operários; intelectuais e não-escolarizados formam

comunidades de caráter especialmente ideológico.

Os valores pregados pelo cristianismo, como por exemplo, o altruísmo; o

respeito ao próximo, aos animais e à natureza; a solidariedade e a igualdade, são

apregoados mesmo por aqueles que o criticam.

Partindo, pois, da constatação de que o discurso religioso atravessa todas as

nossas formas culturais, neste trabalho, debruçar-nos-emos sobre uma de suas

expressões – o discurso da vidência.

2.1. Caracterização

O discurso religioso, segundo Citelli (1995, p. 48) “é um dos mais

explicitamente persuasivos, pois a fala do enunciador se constrói não como verdade

sua, mas do Outro“ (Deus). É por isso que tal discurso tende para a não-reversibilidade, na concepção de Orlandi (1996: p. 240). E, como para essa autora,

a reversibilidade, ou seja, a troca de papéis, é condição para que haja discurso, na

formação discursiva religiosa, por ser inquestionável a voz do locutor, ocorre o que

ela chama de ilusão da reversibilidade.

Para Althusser (1974), Deus se define como sujeito por excelência, pois Ele é

aquele que É; aquele que nomeia e jamais é nomeado. Segundo esse autor, Deus é

o Sujeito, enquanto os homens são os sujeitos, seus interlocutores – interpelados,

seus espelhos. Althusser considera a ideologia da estrutura religiosa duplamente

especular: ela submete os sujeitos ao Sujeito e, nele, dá-lhes a certeza de que é de

ambos que se fala.

Page 51: LENICE AMÉLIA DE SÁ MARTINS - sapientia.pucsp.br AMELIA... · Esboço teórico ... mundo espiritual e o temporal. ... paternidade, embora ele e sua esposa Isabel, que era estéril,

51

Essa ideologia duplicada garante então:

a) a interpelação dos sujeitos e a submissão ao Sujeito;

b) a garantia de que o bem consiste no conhecimento do Sujeito pelos

sujeitos e no auto-reconhecimento dos últimos.

De acordo com o autor, o indivíduo é interpelado como sujeito para aceitar

livremente a sua submissão.

Partindo das idéias de Althusser, Orlandi (p.241), assinala que a definição de

sujeito aponta para duas direções:

a) uma subjetividade livre, ou seja, um ser autor, responsável por seus atos,

centro de iniciativa;

b) um ser assujeitado a uma autoridade superior e que desfruta de uma

única liberdade – aceitar a sua sujeição.

E essa relação de sujeitos submetidos, de acordo com os dois autores, é

próprio do discurso religioso. Para Orlandi, o discurso religioso é “aquele em que se

fala a voz de Deus”. Ela considera a voz do padre, do pregador ou de qualquer

pessoa que fale em nome de Deus como voz do próprio Deus (p. 243). Em virtude

de tal caracterização, no dizer de Orlandi (p. 243), no discurso religioso, há um

desnivelamento fundamental entre locutor e ouvinte, pois, enquanto o locutor (Deus)

é eterno, imortal, infalível, infinito e onipotente, os ouvintes (homens) são efêmeros,

mortais, falíveis, finitos e de poder limitado. Sendo assim, no discurso religioso, a

interlocução é caracterizada essencialmente pela assimetria.

Ora, se no discurso religioso é Deus quem fala pelo seu representante, nele

existe um mecanismo de incorporação de vozes a que Orlandi (p. 244) chama de

mistificação ou, em termos de discurso, subsunção, subsunção esta que, como

assinala a mesma autora, é regulamentada pela Sagrada Escritura e pela Igreja

Católica (no Catolicismo). Essa relação entre Criador e criatura pode se dar também

através dos mediadores: os anjos e santos e, principalmente, por Nossa Senhora.

Já Jesus Cristo, o mediador por excelência entre o homem e o Pai, ocupa um lugar

à parte, pois, embora sendo homem, é também verdadeiro Deus, a Segunda Pessoa

da Santíssima Trindade (cf. Orlandi, p. 246), como mostra a Escritura Sagrada:

Page 52: LENICE AMÉLIA DE SÁ MARTINS - sapientia.pucsp.br AMELIA... · Esboço teórico ... mundo espiritual e o temporal. ... paternidade, embora ele e sua esposa Isabel, que era estéril,

52

O Verbo era a verdadeira Luz, que vindo ao mundo, ilumina todo homem. Estava no mundo, e o mundo não o conheceu. Veio para o que era seu, mas os seus não o receberam (...). E o Verbo se fez carne e habitou entre nós (...) – (Jo 1,9-11,14ª - Bíblia Sagrada: p. 1384)

Essa articulação, porém, entre o infinito (Deus) e o finito (homem) só é

possível mediante o dom da FÉ. É ela que possibilita a interlocução entre o plano

espiritual e plano temporal, ou seja, a ultrapassagem de um plano para o outro: a fé

eleva o homem a Deus e traz Deus até o homem.

A Escritura Sagrada, na carta aos Hebreus, apresenta uma definição de fé

assim:

A fé é o fundamento da esperança, é uma certeza a respeito do que não se vê (...). Pela fé reconhecemos que o mundo foi formado pela palavra de Deus e que as coisas visíveis se originaram do invisível. (Hb. 11, 1.3 – Bíblia Sagrada, p. 1335).

Segundo Orlandi, embora a fé seja a única via pela qual o ser humano pode

ter acesso ao sagrado, ela não altera a irreversibilidade do discurso religioso, uma

vez que essa mesma fé é um dom que vem de Deus.

Quanto às formas de ultrapassagem no dizer da autora (p. 251), são: a

visão, a profecia, a revelação, e a performatividade das fórmulas religiosas. É a

esses mecanismos de interação entre o plano divino e o humano que ela chama de

ilusão da reversibilidade. Para ela, essa ilusão pode direcionar-se em dois

sentidos: de cima para baixo (Deus vem até o homem) e de baixo para cima (o

homem alça até Deus).

Segundo a mesma autora, a profecia e a revelação constituem mecanismos

de ascensão do homem a Deus. No nosso entender, porém, pela profecia e pela

revelação, é Deus quem desce até o homem, pois, na primeira, é o próprio Deus

quem fala pela boca do profeta e, na revelação, ele se manifesta pelo dom de

ciência e pelos demais carismas.

No que diz respeito ao processo de ascendência do homem a Deus,

compreendemos que ele ocorre por meio da oração, da adoração, da meditação, da

contemplação e, principalmente, pela prática do mandamento do amor, conforme 1

Jo 3, 14: Nós sabemos que fomos transladados da morte para a vida, porque

Page 53: LENICE AMÉLIA DE SÁ MARTINS - sapientia.pucsp.br AMELIA... · Esboço teórico ... mundo espiritual e o temporal. ... paternidade, embora ele e sua esposa Isabel, que era estéril,

53

amamos nossos irmãos. Quem não ama permanece na morte. (Bíblia Sagrada, p.

1551. 1552). Nestes casos sim, é a criatura que procura se elevar até o Criador.

Mas é na primeira forma de ultrapassagem, ou seja, na verticalidade, de cima

para baixo, que se pode conceber a possibilidade da “vidência”: “Deus vem ao

encontro do ser humano, seja diretamente na pessoa do Verbo Encarnado e

Ressuscitado, seja indiretamente, através da Virgem Maria, dos anjos e dos santos”.

E é exatamente na análise da variedade de vozes instaladas nesses discursos que é

nosso intento neste trabalho.

2.2. Tipologia

Orlandi (1996, p. 244) considera o discurso religioso como “uma voz que se

fala na outra da qual é representante”, e estabelece um paralelo entre esse discurso

e outros, como por exemplo, o político, o pedagógico, o terapêutico e o da história:

• no primeiro desses discursos é a voz do povo que ecoa no político;

• no pedagógico, a voz do saber fala no povo;

• no terapêutico, a voz da saúde se manifesta no médico;

• no da história, a voz dos fatos se exprime pelos historiadores;

• no religioso é a voz de Deus que faz eco no padre.

Acrescenta a autora que o apagamento da forma como o representante se

apropria da voz do “outro” é que constitui o que ela chama de mistificação ou de

subsunção. Segundo a mesma autora, essa apropriação é o “como se”, da ordem

do simbólico, diferente do “faz-de-conta” que pertence ao estatuto do imaginário.

No primeiro, ou seja, no simbólico, Orlandi (p. 245:246) distingue diferentes graus de

autonomia. Assim, no tocante ao discurso político, existe uma independência maior

em relação à voz do povo, uma vez que ele pode não só representar tal voz como

até mesmo criá-la, “desde que lhe seja atribuída legitimidade”.

Em referência ao professor, há uma autonomia relativa, pois, ao incorporar o

saber, ele “pode elaborar, manipular e modificar relativamente o saber estabelecido”.

No discurso religioso, porém, o grau de autonomia em relação à voz

representada é zero, pois esta voz jamais poderá ser modificada por aquele que

Page 54: LENICE AMÉLIA DE SÁ MARTINS - sapientia.pucsp.br AMELIA... · Esboço teórico ... mundo espiritual e o temporal. ... paternidade, embora ele e sua esposa Isabel, que era estéril,

54

está no lugar de Deus. A subsunção, neste caso, é regulada pela Sagrada Escritura

e pelo magistério da Igreja. Até mesmo a interpretação dos textos bíblicos é

regulamentada pelas autoridades eclesiásticas e se constitui numa ciência chamada

hermenêutica. Esse princípio evidencia, portanto, que o discurso religioso tende para

a monossemia.

Considerando essa assimetria, Orlandi aponta duas espécies de agentes da

interpretação, no catolicismo: uma do plano temporal e outra, do espiritual. No

primeiro, figuram os representantes da Igreja: o Papa, os Bispos e os Presbíteros. Já

da esfera espiritual, fazem parte os mediadores: a Virgem Maria e os Santos. E a

estes, eu acrescento os anjos, pois de acordo com o ensinamento da Igreja, eles

também são intercessores, conforme consignado no Catecismo da Igreja Católica:

A existência dos seres espirituais, não-corporais, que a Sagrada Escritura chama habitualmente de anjos, é uma verdade de fé (...). Desde a infância até a morte, a vida humana é cercada pela sua proteção e sua intercessão. Cada fiel é ladeado por um anjo como protetor e pastor para conduzi-lo à vida (...). (Catecismo da Igreja Católica, 1993, p. 87.88).

Quanto a Jesus Cristo, no dizer da autora, não é nem representante e nem

mediador, pois “embora seja a parte acessível de Deus, ele é o próprio Deus1”.

2.3. Discurso teológico e discurso religioso

Discorrendo a respeito da possibilidade de caracterização dessas ações

enunciativas, Orlandi (p. 246-249) aponta possíveis marcas diferenciais entre o

discurso teológico e o religioso: o primeiro (o teológico) seria um discurso formal e

aquele em que a mediação entre o crente e o sagrado ocorreria por meio de “uma

sistematização das verdades religiosas e cujo mediador seria o próprio teólogo”. Já

no discurso religioso, o informal, a relação do sujeito com o sagrado dar-se-ia

espontaneamente, ou seja, sem sistematização e sem intervenção do teólogo.

No entanto, mais adiante (p. 247), ressalta a autora que não vê necessidade

de distinguir, para seus objetivos, entre discurso teológico e discurso religioso, uma

1 Por “parte acessível de Deus”, entenda-se, o Verbo Encarnado, a Pessoa da Trindade que assumiu a natureza humana sem deixar de ser Deus. Convém esclarecer ainda que no tocante à salvação do ser humano e o seu relacionamento com o Pai, Jesus é o único mediador (cf. Lumen Gentium (2003, p. 127), de acordo com a fé dos cristãos.

Page 55: LENICE AMÉLIA DE SÁ MARTINS - sapientia.pucsp.br AMELIA... · Esboço teórico ... mundo espiritual e o temporal. ... paternidade, embora ele e sua esposa Isabel, que era estéril,

55

vez que a não-reversibilidade se mantém quer o eu-cristão fale diretamente com

Deus, quer a interação se processe de modo indireto. Se a própria informalidade é

ritualizada, no dizer de Orlandi, como acontece com as orações espontâneas que

apresentam formas mais ou menos cristalizadas, (como por exemplo: “Ó meu Deus”,

“Eu te louvo, Senhor”), tanto na interação direta quanto na indireta, o estatuto

jurídico do locutor não se altera. Nessa sua reflexão, Orlandi ainda comenta o

pensamento de Gramsci (1966) que, identificando na religião uma heterogeneidade

social e ideológica, assinala que, no âmbito de tal heterogeneidade, é possível

distinguir-se a teologia e a religião popular. A primeira, a teologia, no catolicismo, se

manifesta como a filosofia da religião: é a concepção dos intelectuais, da

hierarquia eclesiástica, enquanto da religião popular fazem parte o folclore e o

senso comum.

Prosseguindo nessas suas reflexões, a autora, porém, volta a afirmar (p. 249)

que não faz distinção entre discurso teológico e religioso ou popular, mas acentua

que a forma como um e outro lidam com os representantes e mediadores é

diferente: enquanto a religião popular tende à busca de milagres e à prática de

promessas e ex-votos, os teólogos têm posições diferentes. No entanto, não

esclarece qual seja essa posição.

Neste trabalho, consideramos todas as expressões verbais do sagrado como

sendo discurso religioso. Para tal posicionamento, baseamos nos elementos

caracterizadores do discurso religioso apresentados por essa mesma autora (p. 256-

259), que são:

a) Não-reversibilidade entre os planos espiritual e temporal, ou seja, o

representante de Deus jamais poderá apropriar-se do lugar de onde fala.

E é essa propriedade que gera dissimetria;

b) Antítese: traço textual; corresponde à forma semântica da dissimetria;

c) Negação: mecanismo gramatical; tem efeito invertido – negando-se o

pecado, afirma-se a adesão à graça, à salvação. A essa negação da

negação (pecado), Orlandi (p. 257) chama de a retórica da denegação.

Já que o pecado é o “não” a Deus, é preciso que esse pecado seja

rejeitado (negado) pelo homem, para que possa acontecer a interação

entre os dois mundos: espiritual e temporal;

Page 56: LENICE AMÉLIA DE SÁ MARTINS - sapientia.pucsp.br AMELIA... · Esboço teórico ... mundo espiritual e o temporal. ... paternidade, embora ele e sua esposa Isabel, que era estéril,

56

d) intertextualidade: um discurso faz sempre remissão a outros discursos;

e) Uso do imperativo e do vocativo;

f) Emprego de sintagmas cristalizados;

g) Uso de metáforas.

A não-reversibilidade e a retórica da denegação são marcas fundamentais

do discurso religioso: a primeira, em virtude de o estatuto jurídico do locutor jamais

se alterar, nesse tipo de enunciação (a voz de Deus); e a segunda, a denegação,

por que, conforme já explicado, a possibilidade de interação entre céu e terra só

existe na recusa ao pecado. Ora, já que todo discurso que envolve o sagrado é

afetado por essas marcas, todos eles podem ser considerados discurso religioso. No

nosso entender, discurso religioso, especialmente o católico, é uma macro-instância

que abrange outras expressões ou subtipos, quais sejam: o discurso bíblico ou

discurso fundador, o discurso teológico, o discurso popular e o discurso da “vidência”.

O primeiro deles, o discurso bíblico, é o único considerado em si mesmo pela

Igreja palavra de Deus, como podemos constatar no Concílio Vaticano II: Dei Verbum (1998, p. 355):

A Igreja sempre honrou as Escrituras como o corpo do Senhor, especialmente na santa liturgia (...) Inspiradas por Deus e definitivamente escritas, nos comunicam de maneira imutável a palavra do próprio Deus e nos fazem ouvir a voz do Espírito, através dos escritos proféticos e apostólicos (...) Nos livros Sagrados, o Pai que está no céu vem amorosamente falar a seus filhos.

O discurso bíblico é constituído pelos textos dos livros do Antigo Testamento

(Pentateuco, Históricos, Sapienciais e Proféticos) e do Novo Testamento

(Evangelhos, Atos dos Apóstolos, Epístolas e Apocalipse).

A respeito da fé que a Igreja Católica deposita nas Sagradas Escrituras como

sendo palavra de Deus, eis como se expressa o Catecismo da Igreja Católica:

Na condescendência de sua bondade, Deus, para revelar-se aos homens, fala-lhes em palavras humanas (...) Através de todas as palavras da Sagrada Escritura, Deus pronuncia uma só palavra, seu Verbo único, no qual se expressa por inteiro (Catecismo da Igreja Católica, 1993, p. 39)

Page 57: LENICE AMÉLIA DE SÁ MARTINS - sapientia.pucsp.br AMELIA... · Esboço teórico ... mundo espiritual e o temporal. ... paternidade, embora ele e sua esposa Isabel, que era estéril,

57

Nesse discurso, detectam-se a não-reversibilidade e a denegação, dentre

outras marcas, pois é sempre a voz de Deus que fala pelos autores bíblicos, e o

tema do pecado e da redenção, nele, é uma constante, como podemos observar nos

seguintes textos do Antigo Testamento:

a) Consolai, consolai meu povo, diz vosso Deus. Animai, Jerusalém, dizei-lhe

bem alto que suas lidas estão terminadas, que sua falta está expiada (...)

– (IS. 40, 1-2 – Bíblia Sagrada, p. 989).

b) Rejeitai, pois toda impureza e todo vestígio de malícia e recebei com

mansidão a palavra em vós semeada, que pode salvar as vossas almas

(Tg. 1, 21 – Bíblia Sagrada, p. 1539)

A segunda expressão do discurso religioso, o teológico, constitui-se dos livros

da Patrística (escritos dos antigos padres da Igreja), dos documentos conciliares,

das encíclicas papais, dos textos litúrgicos, dos livros doutrinários, etc. Tem suas

raízes no discurso bíblico, como afirma o Concílio Vaticano II: Dei Verbum (1998, p.

356): O fundamento inabalável da teologia é, juntamente com a tradição, a palavra

de Deus escrita. Ela tira sua força e constante rejuvenescimento desse fundamento.

Também o discurso teológico é fortemente marcado pela irreversibilidade e

pela denegação, como podemos observar na Oração pela Paz que integra o Rito da

Comunhão, na Missa:

Senhor Jesus Cristo, dissestes aos vossos apóstolos: Eu vos deixo a paz, eu vos dou a minha paz. Não olheis os nossos pecados, mas a fé que anima a vossa Igreja; daí-lhes, segundo o vosso desejo, a paz e a unidade. Vós, que sois Deus, com o Pai e o Espírito Santo.

Outro traço marcante do discurso teológico é a intertextualidade com o

discurso bíblico, como exemplifica o texto acima onde aparecem explicitamente, as

palavras de Jesus, em Jo. 14, 27: “Deixo-vos a paz, dou-vos a minha paz”. É esse

traço que move Orlandi (p. 259), a definir o discurso teológico como “um discurso

sobre outro discurso”, ou seja, “como um comentário ao texto de origem”.

E já que, no presente trabalho, estamos tomando o discurso teológico como

uma micro-instância do discurso religioso, consideramo-lo discurso da Igreja,

enquanto instituição, ou seja, ele é a voz da autoridade eclesiástica (Papa, Bispos,

Presbíteros, etc). É essa, portanto, a sua especificidade: a característica que o

identifica, na sua instância abrangedora – o discurso religioso.

Page 58: LENICE AMÉLIA DE SÁ MARTINS - sapientia.pucsp.br AMELIA... · Esboço teórico ... mundo espiritual e o temporal. ... paternidade, embora ele e sua esposa Isabel, que era estéril,

58

Quanto ao discurso religioso popular2, considero-o, aquele expresso pelo

povo, mas que tem sua gênese nos discursos bíblico e teológico. Ele é constituído

pelas orações do rosário, o ofício da Imaculada Conceição, as ladainhas, certas

novenas, as orações espontâneas, o exercício dos carismas, etc. É a voz da Igreja

Povo, ou seja, a voz das ovelhas, voz essa reconhecida e incentivada pelos

pastores, conforme se lê na Lumen Gentium:

O povo de Deus participa da função profética de Cristo (...) Mas não é só pelos sacramentos e pelos mistérios que o

Espírito Santo santifica, dirige e fortalece o povo de Deus. “Distribuindo os seus dons a cada um conforme quer” (1 Cor. 12, 11), o Espírito Santo distribui graças especiais aos fiéis das mais variadas condições, tornando-os aptos e dispostos a assumir os trabalhos e funções úteis à renovação e ao maior desenvolvimento da Igreja, de acordo com o que está escrito: “cada um recebe o dom de manifestar o Espírito, para utilidade de todos” (1 Cor. 12, 7). (Concílio Vaticano II: Lumem Gentium, 1998, p. 196).

Como exemplo de discurso religioso popular, podemos apresentar a oração

espontânea seguinte gravada na Igreja Santa Luzia, na cidade de Teixeira de Freitas

(Bahia),

Eu quero te louvá, Senhor, por cada uma das pessoas que vieram aqui hoje, Jesus! Por cada participante dessa comunidade. Senhô Jesus, tome posse dos corações das pessoas, restaura os corações (...) Hoje tu falaste conosco que muitos põem a confiança em seus carros, no trabalho, mas nós temos você, Jesus, e nós podemos confiar em você, Jesus! Todo brilho que vai acontecê ainda aqui, hoje, Jesus é para honra e glória do teu nome, porque só tu mereces glória e louvô (...)

Podemos destacar as seguinte características:

a) não-reversibilidade: é Jesus, o centro e o autor da participação dos fiéis,

de sua restauração e de “todo brilho que acontece”;

b) denegação: a idéia da negação ao pecado está implícita na palavra

“restauração”;

c) intertextualidade bíblica: por exemplo, Apo. 5, 12b: Digno é o Cordeiro

Imolado de receber o poder, a riqueza, a sabedoria, a força, a glória, a

honra e o louvor.

2 Estamos considerando aqui discurso popular, aquele que é a voz do povo (não apenas dos intelectuais da Igreja).

Page 59: LENICE AMÉLIA DE SÁ MARTINS - sapientia.pucsp.br AMELIA... · Esboço teórico ... mundo espiritual e o temporal. ... paternidade, embora ele e sua esposa Isabel, que era estéril,

59

Mas aí estão bem vivas certas marcas do discurso popular, como

espontaneidade e forma de linguagem não-padrão.

Convém que se ressalte que os próprios eclesiásticos quando se apossam da

língua, na informalidade, produzem discurso popular, pois, nestas circunstâncias,

eles falam como povo e não como autoridade. É o caso do excerto, abaixo, extraído

de um ensinamento proferido por um sacerdote, na Igreja São Francisco de Assis de

Teixeira de Freitas (Bahia):

A primeira coisa que devemos reconhecê que somos pecadores. Mas, por nós mesmos, nada podemos. Se Jesus, diante da multidão disse: “Eu sou o Pão vivo que desci do céu”, muitos vacilaram, e nós quantas vezes falhamos em nossa fé, diante de Jesus que vem a nós? Por isso, eu peço a vocês abrirem seus corações (...), vocês vão agora escancarar os portões de seus corações (...) para pedir todo perdão a Jesus pelos seus pecados e também dos outros (...)

O discurso popular é, pois, a voz da Igreja Povo de Deus, mas que reflete a

voz da Igreja hierárquica.

O último discurso aqui considerado como religioso é o da “vidência”, tema

deste trabalho analítico.

Antes, porém, de iniciarmos a reflexão sobre essa instância do discurso

religioso, convém apresentarmos a visão da Igreja Católica a esse respeito, que

difere daquela adotada por outros credos. Por exemplo, para o espiritismo, a

“revelação” ocorre por meio de pessoas falecidas cujo espírito, incorporado pelo

“médium” fala, escreve, cura, através desse “médium”; na cartomancia, os fatos e as

pessoas são mostradas à cartomante através das cartas (baralho); na quiromancia,

a mesma percepção é obtida pelas linhas da palma das mãos.

Mas, para a Igreja Católica, “vidente” é aquele que tem uma experiência com

o sobrenatural, através da visão e audição, no pleno domínio de sua consciência. O

objeto dessa percepção: Jesus, Nossa Senhora, anjo ou santo fala e age fora

dele. Mesmo no caso da “locução interior” em que só a voz celeste é perceptível,

não ocorre “transe” ou incorporação, pois de acordo com a doutrina católica,

nenhum espírito que não sejam as pessoas da Santíssima Trindade pode penetrar

no ser humano. E mesmo Deus jamais se apossa de sua criatura, tirando-lhe a

consciência para agir no lugar dela.

Page 60: LENICE AMÉLIA DE SÁ MARTINS - sapientia.pucsp.br AMELIA... · Esboço teórico ... mundo espiritual e o temporal. ... paternidade, embora ele e sua esposa Isabel, que era estéril,

60

Este é o ensinamento da Igreja Católica e devemos esclarecer que é segundo

esta concepção que, neste trabalho, compreendemos “discurso de vidência”, ou

seja, a interlocução sensível (no dizer dos videntes) entre dois sujeitos de planos

diferentes (céu e terra), e absolutamente distintos.

No Antigo Testamento, os profetas eram chamados videntes, como pode ser

comprovado em 1 Sm 9, 9: Antigamente, em Israel, todo que ia consultar a Deus,

dizia: “Vinde, vamos ao vidente”. Chamava-se, então, vidente ao que hoje se chama

profeta. (Bíblia Sagrada, p. 312).

Tal denominação explica-se pelo fato de o profeta sempre proclamar o que

“via” e “ouvia”. É o que nos mostra Is. 6, 18:

No ano da morte do rei Ozias, eu vi o Senhor sentado num trono bem elevado (...) Ouvi, então, a voz do Senhor que dizia: “Quem enviarei eu? E quem irá por nós? “Eis-me aqui, disse eu, envia-me” (...). (Bíblia Sagrada, p. 947).

Como as demais instâncias de discurso religioso, o da “vidência” é afetado

pela não-reversibilidade, pela denegação e pela intertextualidade.

A primeira característica é nele claramente percebida, pois, mesmo quando o

locutor é da esfera celeste, ele fala do lugar de Deus, mas não é Deus, (com

exceção de Jesus Cristo), conforme revela o episódio do anúncio do nascimento de

João Batista: Eu sou Gabriel, que assisto diante de Deus, e fui enviado para te falar

e te trazer esta feliz nova. (Lc. 1, 19 – Bíblia Sagrada, p. 1345), e as mensagens de

Angüera cujo fechamento quase sempre é: Esta é a mensagem que hoje vos

transmito em nome da Santíssima Trindade.

Quanto à segunda característica, a denegação, ela é facilmente identificável,

visto o tema do pecado e da salvação ser uma presença forte em toda essa micro-

instância discursiva como podemos exemplificar pela mensagem de Itaperuna, do

dia 24 de março de 1996:

Filhos, convertam-se com urgência! Venho a vocês, para que a conversão de fato aconteça. Quero que procurem converter-se diariamente, confessando os seus pecados (...). Filhos, quero que sejam perfeitos na santidade (...)

No tocante à intertextualidade, esta é uma característica inerente a todo

processo enunciativo, uma vez que nele se imiscuem, naturalmente, o discurso

Page 61: LENICE AMÉLIA DE SÁ MARTINS - sapientia.pucsp.br AMELIA... · Esboço teórico ... mundo espiritual e o temporal. ... paternidade, embora ele e sua esposa Isabel, que era estéril,

61

bíblico e o teológico, como podemos constatar, no exemplo citado, onde aparecem

os temas da conversão e da confissão (ambos bíblico e teológico).

Mas qual a especificidade do discurso da “vidência”? Em que ele se distingue

dos demais discursos religiosos?

Em relação ao discurso bíblico, a diferença consiste em ser este do âmbito

das revelações normativas, além de ser a raiz de qualquer discurso religioso,

enquanto o da “vidência” pertence às revelações particulares e constitui,

essencialmente, uma atualização do primeiro.

No que se refere ao discurso teológico, além de ser este produzido pelos

intelectuais da religião (cf. Orlandi, 1996, p. 248), independe do contexto imediato; já

o da “vidência”, em sua enunciação, tem sujeitos escolarizados e não-escolarizados

e, esta mesma enunciação, é dependente também do contexto imediato.

Do discurso popular ele também se distingue porque, enquanto este é

produzido por sujeito do plano temporal (Igreja militante), que interage com o céu,

espiritualmente apenas, o da “vidência” traz em sua ação dialógica sujeitos de dois

mundos (Igreja militante e Igreja triunfante3) que têm os sentidos também como

canal de interação (sempre sob o ponto de vista do sujeito vidente).

Dentro dessa visão, as aparições do Ressuscitado a seus discípulos também

estão inseridos, no discurso da vidência, uma vez que em tal condição, Jesus não

pertencia mais ao mundo temporal.

Como micro-instância que é do discurso religioso, o da “vidência” traz marcas

de sua instância contenedora e mais aquelas que lhe são peculiares.

Dentro da concepção aqui adotada, podem ser apontadas como

peculiaridades do discurso da “vidência” as seguintes características:

1º o sujeito da esfera terrestre (vidente) tem percepção visual e auditiva de

seu interlocutor, ou seja, o sujeito da esfera celeste;

2º o discurso da “vidência” é uma atualização do discurso bíblico, sua

gênese;

3 Conforme a sua própria doutrina, a Igreja é constituída de três estâncias: Igreja Militante formada pelos fiéis que ainda estão neste mundo; Igreja Padecente integrada pelos mortos que expiam suas faltas no Purgatório e Igreja Triunfante composta pelos santos, ou seja, por aqueles que estão no céu. (cf. O caminho, 1986, p. 192).

Page 62: LENICE AMÉLIA DE SÁ MARTINS - sapientia.pucsp.br AMELIA... · Esboço teórico ... mundo espiritual e o temporal. ... paternidade, embora ele e sua esposa Isabel, que era estéril,

62

3º as mensagens sempre contêm a doutrina e a moral ensinadas pela Igreja

Católica (Eucaristia, confissão, santidade, obediência à Igreja, caridade);

4º essas mensagens têm, na maioria das vezes, um certo cunho

apocalíptico: punição dos pecados , a volta de Jesus, etc;

5º trilogia sintetizadora: persuasão a respeito da santidade e do amor de

Deus, convite à oração e chamado à penitência;

6º a enunciação depende do contexto mediato (Sagrada Escritura, católicos,

hierarquia eclesiástica) e imediato(“vidente”, diocese, paróquia,

peregrinos, etc);

7º os interlocutores, no dizer dos “videntes”, ocupam espaço físico;

8º além dos sujeitos envolvidos na interlocução (locutor e alocutário), no

processo enunciativo, sempre aparece o da referência (delocutário);

9º a multiplicação dos sujeitos da ação dialógica ocorre freqüentemente,

nesse tipo de discurso.

De acordo com a concepção aqui adotada, o discurso da “vidência” interage,

em seu processo enunciativo, com os discursos bíblico e teológico e é caracterizado,

em sua essência, pela interlocução entre sujeitos da esfera espiritual e terrestre,

mas dentro de circunstâncias que envolvem o plano temporal, uma vez que, no dizer

dos videntes, eles vêem e ouvem (sensivelmente) o seu interlocutor. Em termos de

fé, seria a Jerusalém Celeste que desce a Jerusalém Terrestre, ou seja, a Igreja

triunfante interagindo com a Igreja militante.

É o cruzamento de duas vozes que estão em esferas dissimétricas: a do céu

e a da terra.

2.4. Maria no Contexto Bíblico-Eclesial

Segundo Murad (2006, p. 21), “os textos no Novo Testamento sobre Maria

foram escritos com os olhos centrados em Jesus”. Portanto, só podemos encontrá-

la, nos Evangelhos, no contexto cristocêntrico. Marcos, o primeiro evangelista, fala

de Maria colocando-a no meio dos familiares de Jesus (Mc 3,31-35/6,1-6). Já

Mateus, apresenta-a como a mãe virginal do Senhor (Mt 1,18-23;2,11.13-14.20),

Page 63: LENICE AMÉLIA DE SÁ MARTINS - sapientia.pucsp.br AMELIA... · Esboço teórico ... mundo espiritual e o temporal. ... paternidade, embora ele e sua esposa Isabel, que era estéril,

63

profundamente unida a seu Filho. Em Lucas, Maria é apresentada como perfeita

discípula de Jesus, uma vez que ela ouve, com fé, a Palavra de Deus, guarda-a no

coração e a põe em prática (Lc 1,26-38;2,19.51). No quarto evangelho, João

apresenta Maria como uma figura especial. No casamento em Caná da Galiléia, ela

aparece como a mãe atenta às necessidades dos filhos, pronta a buscar a solução

naquele que pode oferecê-la (Jo 4) e, no Calvário, ela é apresentada como a mulher

forte e corajosa que assiste de pé o martírio do filho (Jo 19).

De acordo ainda com o autor citado, os textos bíblicos norteiam a descoberta

dos traços básicos de Maria. Auxiliam a manter a centralidade cristológica da

experiência de Deus, pois Jesus é o autor e realizador de nossa fé (...). A reflexão

sobre ela, no entanto, vai além dos dados bíblicos, ao incorporar a memória coletiva

e seletiva da Tradição. (Murad, 2006, p. 91.92).

No dizer do mesmo autor, para a maioria dos exegetas é legítimo aceitar

interpretações que extrapolem os dados bíblicos, uma vez que o sentido originário

do texto não esgota o seu processo de interpretação e a produção de sentido

continua com a história. É preciso, porém, que tais interpretações sejam analisadas

com senso crítico.

Portanto, com base no texto bíblico, o povo realiza processos de interpretação

da Palavra de Deus. Dentro dessa perspectiva, é que a figura de Maria vem sendo

ampliada na comunidade eclesial. Os católicos a respeitam como rainha, amam-na

como mãe e nela confiam. Expressam esse amor, por exemplo, pela oração do

terço, a coroação de suas imagens no mês de maio, a romaria aos santuários a ela

dedicados.

A mãe de Jesus tornou-se tão importante para os católicos que muitos a

chamam de “Nossa Senhora”.

Quanto às aparições, no dizer de Murad (p. 151), não constituem uma nova

revelação, mas são uma experiência mística vivida pelo vidente, na qual é recordada

a única revelação de Deus em Jesus Cristo.

A Igreja Católica, porém, na sua sabedoria, apresenta critérios rígidos e

objetivos que ajudam no discernimento das revelações particulares ou aparições,

que serão mostradas no próximo capítulo.

Page 64: LENICE AMÉLIA DE SÁ MARTINS - sapientia.pucsp.br AMELIA... · Esboço teórico ... mundo espiritual e o temporal. ... paternidade, embora ele e sua esposa Isabel, que era estéril,

64

Nestes dois primeiros capítulos, no intuito de desvendar as marcas

constitutivas da linguagem construída na “interlocução” entre os chamados videntes

e a Virgem Maria (não-reversibilidade, denegação, intertextualidade, emprego do

imperativo e do vocativo, argumentatividade, estratégias de persuasão e

heterogeneidade subjetiva), procuramos apresentar os postulados e conceitos

propugnados pela Teoria da Enunciação e pela Análise do Discurso, linhas de

abordagem adotadas neste trabalho.

Nesta trilha teórica, foi mencionada a proposta de Benveniste (1988, 1989)

que advoga a incorporação do estudo da enunciação como parte fundamental dos

estudos lingüísticos. Os trabalhos desse autor, embora amplamente questionados

por sua centralização no eu, continuam importantes para as atuais pesquisas sobre

a linguagem.

Foram também apresentados os pilares teóricos relativos à rede polifônica na

constituição das instâncias enunciativas engendradoras da ação dialógica realizada

na “vidência”, seguindo as esteiras principalmente de teóricos como Ducrot (1987),

Brandão (1995, 1998) e Orlandi (1983, 1986, 1988 e 1996). Partilhando, em linhas

gerais, do pensamento da última autora sobre o discurso religioso, especialmente o

católico, objeto específico desse seu estudo, mostramos os princípios por ela

abordados, princípios esses que, para a análise aqui proposta, representam um

significante embasamento.

Por fim, já que o foco desta tese é a “interação” entre um ser temporal e a

Mãe de Jesus, consideramos conveniente fechar essa abordagem teórica mostrando

os traços da personagem celeste consignados nos Evangelhos e na Tradição da

Igreja. Nesse aparato teórico, ressaltamos que é na Tradição que se inserem os

estudos da vidência, no âmbito da Teologia Católica, especialmente aquelas

constitutivas da tipologia selecionada para a composição de nosso “corpus”, ou seja,

as relativas à Virgem Maria.

Page 65: LENICE AMÉLIA DE SÁ MARTINS - sapientia.pucsp.br AMELIA... · Esboço teórico ... mundo espiritual e o temporal. ... paternidade, embora ele e sua esposa Isabel, que era estéril,

C A P Í T U L O 3

RELATO DAS PRINCIPAIS “APARIÇÕES” DA VIRGEM MARIA E ANÁLISE DA POLIFONIA DO

DISCURSO DE FÁTIMA

65

Page 66: LENICE AMÉLIA DE SÁ MARTINS - sapientia.pucsp.br AMELIA... · Esboço teórico ... mundo espiritual e o temporal. ... paternidade, embora ele e sua esposa Isabel, que era estéril,

66

3.1. Aparições da Virgem Maria: mito ou realidade?

De acordo com a Sagrada Escritura e a doutrina da Igreja, no Senhor Jesus,

existem duas naturezas: a divina e a humana, mas uma única Pessoa – a do Verbo

Encarnado, conforme esclarece a Carta aos Colossenses:

Ele é a imagem de Deus invisível, o primogênito de toda a criação. Nele foram criadas todas as coisas nos céus e na terra, as criaturas visíveis e as invisíveis(...). Pois nele habita corporalmente toda a plenitude da divindade (Cl 1, 15-16ª; 2, 9 – Bíblia Sagrada, p. 1508. 1509).

Essa unidade, chamada união hipostática, tem implicação na maternidade de

Maria, pois sendo Mãe de uma Pessoa que é verdadeiro Deus e verdadeiro Homem,

ela é, conseqüentemente, mãe do homem e também Mãe de Deus.

A maternidade divina é o mais alto privilégio concedido à Virgem Maria. Por

ser constituída Mãe de Deus, ela ultrapassa em dignidade todas as outras criaturas,

inclusive os próprios anjos, conforme declara a Lumen Gentium (2003, p. 118).

A Virgem Maria, que na anunciação do anjo recebeu o Verbo de Deus no seu coração e no seu corpo (...) é reconhecida Mãe de Deus e do Redentor (...). Com este dom de graça sem igual, ultrapassa de longe todas as criaturas celestes e terrestres.

Para investi-la de tal dignidade, segundo a doutrina da Igreja, Deus ornou a

sua eleita de prerrogativas excepcionais. A primeira delas é a isenção de toda culpa,

até mesmo do pecado original, como ressalta o dogma da Imaculada Conceição,

proclamado no ano de 1854, pelo Papa Pio IX:

A Beatíssima Virgem Maria, no primeiro instante de sua Conceição, por singular graça e privilégio de Deus Onipotente, em vista dos méritos de Jesus Cristo, Salvador do gênero humano, foi preservada imune de toda mancha de pecado. (Catecismo da Igreja Católica, 1993, p. 122;491).

Outro dom concedido a Maria, segundo os Padres da Igreja, é a sua perpétua

virgindade. Para eles, a Mãe de Jesus que era virgem antes do parto, conservou

essa integridade biológica durante e após o parto. Nesta linha, afirma o mesmo

Catecismo (p. 124; 499) o aprofundamento de sua fé na maternidade virginal levou a

Igreja a confessar a virgindade real e perpétua de Maria, mesmo no parto do Filho

de Deus feito homem.

Page 67: LENICE AMÉLIA DE SÁ MARTINS - sapientia.pucsp.br AMELIA... · Esboço teórico ... mundo espiritual e o temporal. ... paternidade, embora ele e sua esposa Isabel, que era estéril,

67

Por ser Mãe de Jesus Cristo, Cabeça da Igreja, esta mesma Igreja ensina que

Maria é mãe também de todos os seres humanos. Por isso, no Corpo Místico, ela

ocupa o lugar mais alto depois de Cristo e o mais perto de nós (cf. Lumen Gentium,

2003, p. 119).

Na condição de Mãe de Jesus, o Salvador, e mãe dos membros de seu

Corpo, Maria, afirma a Igreja, também participa da obra salvífica do Filho de Deus.

Essa visão está patente no Catecismo da Igreja Católica (idem p. 233):

De modo inteiramente singular, pela obediência, fé, esperança e ardente caridade, ela (Maria) cooperou na obra do Salvador para a restauração da vida sobrenatural das almas. Por este motivo, ela se tornou para nós, Mãe na ordem da graça.

É em virtude dessa missão de “colaboradora na obra do Salvador”, que

podem ser entendidas as suas constantes “intervenções”. Crendo que a Virgem

Maria se encontra no céu em corpo e alma e que como Mãe, procura sempre o bem

dos filhos, os católicos aceitam, com muita tranqüilidade, as suas “aparições”, como

esclarece Roman (2003, p. 5):

Se Nossa Senhora apareceu certamente não foi para brincar. Ela veio porque nós tínhamos necessidade de seu auxílio. Nossa Senhora é Mãe. Sempre acompanha seus filhos. Por isso, temos aparições, desde o início da era cristã.

As “aparições” de Nossa Senhora e outras (Jesus, Santos, Anjos), a Igreja

denomina-as de Revelações Particulares. Nessas revelações não há

obrigatoriedade de aceitação, pois toda a verdade necessária à salvação está

centrada na Bíblia Sagrada, nas chamadas Revelações Normativas, que se

encerraram com a morte do apóstolo São João, autor do quarto Evangelho. As

primeiras têm como finalidade recordar aos crentes o que já foi revelado em Jesus

Cristo e por Jesus Cristo, a Palavra Encarnada, conforme asseveram os Membros

da Comissão Episcopal de Doutrina da CNBB (1990, p. 17).

Jesus Cristo, plenitude da Revelação, é o único mediador. As muitas mediações adquirem sentido a partir dele e nele. Revelações e aparições particulares nada acrescentam à revelação pessoal e insuperável do Pai, em Cristo, pelo poder do Espírito.

O Concílio Vaticano II, na Constituição Dei Verbum (sobre a revelação divina),

declara:

Page 68: LENICE AMÉLIA DE SÁ MARTINS - sapientia.pucsp.br AMELIA... · Esboço teórico ... mundo espiritual e o temporal. ... paternidade, embora ele e sua esposa Isabel, que era estéril,

68

Quis Deus na sua bondade e sabedoria revelar-se a si mesmo e manifestar o mistério de sua vontade (cf. Ef 1,9): os homens têm acesso ao Pai e se tornam participantes da natureza divina por Cristo, Verbo encarnado, no Espírito Santo (Concílio Vaticano II: Dei Verbum, 1998, p. 345)

É nessa perspectiva que se fundamenta a possibilidade de aparições, do

milagre.

A tradição judaico-cristã está repleta de relatos que dizem respeito à

experiência do homem com o mistério de Deus.

A história do Cristianismo registra, desde os seus primórdios, especiais e

particulares teofanias. Por exemplo: antes de entrar em Damasco, conforme já

aludido, Paulo tem “um encontro com Jesus Ressuscitado” que o transforma

radicalmente: de ferrenho perseguidor dos cristãos, passa a ardoroso pregador e

defensor da doutrina que tanto combateu (cf. At 9, 3-9). Ao ser apedrejado, Estevão,

o primeiro mártir do Cristianismo, tem a “visão” da glória de Deus e do Senhor Jesus

à direita do Pai. (cf. At. 7,55).

Essas manifestações extraordinárias, porém, não aconteceram apenas com a

primeira geração de cristãos. Nesses vinte e um séculos da Igreja, elas têm

“ocorrido” até com uma certa freqüência. Como exemplo, podemos citar: Francisco

de Assis, Santa Brígida, Santa Catarina de Sena, Santa Margarida Maria Alacoque

e, mais recentemente, Santa Faustina e São Pio. Todos esses afirmaram ter

recebido mensagens diretas de Jesus e de sua Mãe. (cf CED – CNBB, 1990, p. 21).

Mas como o nosso propósito, neste trabalho, é o estudo da linguagem contida

nas mensagens que alguns usuários de língua portuguesa dizem ter recebido da

Mãe de Jesus, não nos deteremos em outras “revelações”.

Para a avaliação da autenticidade das revelações particulares, a Comissão

Episcopal de Doutrina da CNBB apresenta uma síntese dos critérios estabelecidos

pelo Papa Bento XIV, no século XVIII. (p. 52-54):

a) O primeiro deles diz respeito à pessoa do vidente. É necessário que seja

examinada a sua saúde psicofísica por profissionais competentes, a fim de

que não se confunda “visão” com alucinação. Sua conduta também é

altamente importante. Embora compreenda o Papa que Deus pode se

revelar a pecadores, considera improvável a persistência no erro, após as

Page 69: LENICE AMÉLIA DE SÁ MARTINS - sapientia.pucsp.br AMELIA... · Esboço teórico ... mundo espiritual e o temporal. ... paternidade, embora ele e sua esposa Isabel, que era estéril,

69

“aparições”. Bento XIV julga ainda fundamental para o discernimento, em

tais questões, a obediência à Igreja e afirma que se o fato for verídico, o

vidente será, ao mesmo tempo, obediente, humilde e firme.

b) As mensagens não podem contradizer nem a razão humana, nem a

revelação bíblica e nem a doutrina da Igreja.

c) Um outro critério apontado é a forma da “aparição”. Já que Deus é

perfeição, jamais se manifestará com uma imagem deformada, imperfeita.

d) A finalidade da revelação é também, de acordo com Bento XIV, outro

critério de discernimento: a vivência do Evangelho, conversões, amor à

Igreja são elementos que não podem faltar na autêntica “aparição”.

e) O critério decisivo, no dizer do mesmo Papa, são os milagres. Esses,

quando comprovados pela Igreja, asseguram a autenticidade das

revelações particulares.

A CED-CNBB (p. 220) esclarece que “o fenômeno das revelações particulares

parece fazer-se notar, no quadro de uma religião popular, como forma de um

profetismo possível no mundo cristão”. E acrescenta que algumas dessas

revelações obtiveram o reconhecimento das autoridades eclesiásticas, como no

caso de Guadalupe, Lourdes, Fátima e outras.

Roman (2001, p. 5) postula que as aparições da Virgem Maria constituem

novos comandos para chamar os homens à conversão, à prática do Evangelho.

Gambarini (s.d. p. 61) diz que a primeira “aparição” de Nossa Senhora de que

temos conhecimento, ocorreu em Saragoça (Espanha), na noite do dia 2 de janeiro

do ano de 40 d.C. quando a Mãe do Senhor teria aparecido a São Tiago Maior,

irmão de João Evangelista. Tanto o apóstolo como seus discípulos teriam ouvido

vozes de anjos que cantavam Ave-Maria gratia plena e, ao mesmo tempo, viram a

Virgem de pé, sobre um pilar de mármore. Ela pedira a Tiago que lhe construísse

uma igreja naquele local, o que foi imediatamente realizado pelo apóstolo e seus

discípulos. Em virtude de a Virgem Santíssima ter-se manifestado aí sobre um pilar,

ficou sendo chamada Nossa Senhora do Pilar.

A CED-CNBB (p. 22) atesta que, “entre os séculos XIX e XX, contam-se cerca

de 310 aparições de Nossa Senhora”. Mas, como já foi dito, nosso objetivo neste

Page 70: LENICE AMÉLIA DE SÁ MARTINS - sapientia.pucsp.br AMELIA... · Esboço teórico ... mundo espiritual e o temporal. ... paternidade, embora ele e sua esposa Isabel, que era estéril,

70

trabalho não é propriamente a análise das aparições, e sim da linguagem das

“mensagens” proferidas em língua portuguesa. Assim sendo, nesta introdução,

faremos uma breve abordagem das “revelações” da Santíssima Virgem de maior

repercussão no mundo, como Guadalupe, Medalha Milagrosa, Lourdes e

Medjugorje. As “aparições” de Fátima serão incluídas no corpus do trabalho, já que

constituem objeto de estudo desta tese.

3.2. Nossa Senhora de Guadalupe (México – 1531)

Em 1531, um índio asteca chamado Juan Diego, passava pela colina de

Tepeyac, quando “viu” uma Senhora bela, em pé, majestosa e cercada de luz, que

lhe falou:

Juanito, menor dos meus filhos, fica sabendo que sou Maria, sempre Virgem, Mãe de Deus verdadeiro (...). Eu desejo que seja construído um templo para mim neste lugar, onde o teu povo possa experimentar a minha compaixão, auxílio e proteção. Todos os que sinceramente pedirem a minha ajuda em suas tribulações e dores conhecerão meu Coração Maternal neste lugar (...). Por isso, corre agora a Tenochtittan e conta ao Bispo tudo o que aqui viste e ouviste.

Solícito ao pedido da bela Senhora, o índio foi imediatamente transmiti-lo ao

Senhor Bispo, Frei Juan de Zummarroga. Esse, porém, não deu crédito às palavras

do mensageiro, embora o tenha recebido delicadamente. Retornando à colina, Juan

Diego teve nova experiência com a Virgem que o instruiu a voltar a D. Frei Juan e

repetir o pedido. Obedecendo à ordem da Senhora, Juan Diego foi novamente à

presença do prelado. Nesta segunda audiência, o Bispo diz-lhe para solicitar um

sinal Àquela que lhe aparecia. Relatando à Santa Virgem o pedido do Bispo, num

terceiro encontro, Ela lhe ordena para cortar rosas na colina e colocá-las em seu

avental. Era inverno e, portanto, seria impossível que houvesse essas flores na

região. No palácio, diante do Bispo e de vários de seus assessores, Juan Diego

abriu o manto, deixando cair as rosas. Tanto o Prelado quanto todos os presentes

caíram de joelhos não diante das flores, mas da imagem da Santíssima Virgem

impressa no manto do mensageiro.

A capela que ela pedira foi construída e inaugurada em 26 de dezembro de

1531. (cf. Gambarini, s.d. p. 68-71).

Page 71: LENICE AMÉLIA DE SÁ MARTINS - sapientia.pucsp.br AMELIA... · Esboço teórico ... mundo espiritual e o temporal. ... paternidade, embora ele e sua esposa Isabel, que era estéril,

71

3.3. Nossa Senhora das Graças – Medalha Milagrosa (Paris - França - 1830)

Às 22h30 de 18 de julho de 1830, Catarina Labouré, Filha da Caridade de

São Vicente de Paulo, “é acordada” por alguém que a chama: “Irmã, irmã, irmã”.

Olhando para o lado de onde vinha a voz, “viu” um menino vestido de branco que lhe

dissera: “Venha à capela; a Santa Virgem te espera.” Catarina vestiu-se rapidamente

e seguiu a criança em quem identificara seu Anjo da Guarda. Durante o trajeto da

cela à capela, as luzes se acendiam à medida que a Irmã e o Anjo iam passando. Ao

chegarem à Capela, a porta se abriu, mal o mensageiro lhe tocou com o dedo. E, em

seu interior, todas as luzes estavam acesas. Catarina aguardou por meia hora, no

Santuário para onde o Anjo a conduzira. Após esse tempo, o Anjo exclamou: “Eis a

Santíssima Virgem”. Catarina “viu”, então a Virgem Maria que descia do altar. Após

ajoelhar-se diante do Santíssimo Sacramento, sentou-se na cadeira do sacerdote.

Num ato repentino, a religiosa atirou-se aos seus pés, apoiando os braços nos

joelhos da Mãe, que lhe falou de uma missão que Deus queria a ela confiar.

A segunda “aparição” ocorreu no dia 27 de novembro do mesmo ano, às

17h30, no momento em que a Irmã Catarina fazia meditação na capela. Nessa

ocasião, a Virgem Maria “aparece” de pé, vestida de uma seda branca como a

aurora. Tinha nas mãos um globo de ouro encimado por uma cruz. Esse globo

desaparece depois de suas mãos que se enchem de raios. Ao mesmo tempo, em

torno da Santíssima Virgem, formou-se uma figura oval na qual se lia: Ó Maria concebida sem pecado, rogai por nós que recorremos a vós.

A Virgem Maria “solicitou” à religiosa que mandasse fazer uma medalha

conforme o modelo apresentado: Manda cunhar uma medalha por este modelo. As

pessoas que a trouxerem receberão grandes graças; as graças serão abundantes

para as pessoas que tiverem confiança.

Catarina transmitiu esse pedido ao seu confessor, o Padre Gian Maria Abdel

que, por sua vez, levou-o ao Bispo da Diocesse. Em 1832, foi, então, cunhada a

medalha de acordo com as “instruções” da Mãe de Jesus que, em virtude das

inúmeras graças das quais tem sido instrumento, recebeu o título de Medalha Milagrosa. (cf. Roman, 2001, p. 57-58; Gambarini, s.d. p. 73-75).

Page 72: LENICE AMÉLIA DE SÁ MARTINS - sapientia.pucsp.br AMELIA... · Esboço teórico ... mundo espiritual e o temporal. ... paternidade, embora ele e sua esposa Isabel, que era estéril,

72

3.4. Nossa Senhora de Lourdes (França – 1858)

Bernadette Soubirous, menina pobre e analfabeta, no dia 11 de fevereiro de

1858, numa quinta-feira, buscava lenha para o fogo de sua casa, quando “viu” à

entrada da gruta de Massabielle, às margens do rio Gave, uma “Senhora nova e

bela, bela mais que todas as criaturas”. A Senhora trazia um terço no braço direito

que o passou para as mãos. Em seguida, fez o sinal da cruz, gesto que Bernadete

interpretou como um convite à oração do terço o que foi imediatamente posto em

prática. E, assim, “ambas”, a Bela Senhora e sua privilegiada, rezaram a terça parte

do rosário. A primeira, porém, só orava o Pai Nosso e o Glória. Terminada a oração,

a Virgem desapareceu, mas volta a se revelar a Bernadette muitas vezes, como por

exemplo, no dia 25 de março de 1858, na festa da Anunciação, quando confirma o

dogma da Imaculada Conceição, dizendo: Eu sou a Imaculada Conceição.

A mensagem de Nossa Senhora, em Lourdes, resume-se em: convite à

oração pela conversão dos pecadores; chamado à penitência e amor à Igreja. (cf.

Gambarini, s.d. p. 75-77).

3.5. Rainha da Paz (Medjugorje – 1981)

No dia 24 de janeiro de 1981 a Virgem Maria “aparece” a seis pessoas: quatro

moças e dois rapazes. São: Vicka Ivankovic, filha de colonos; nasceu no dia 3 de

julho de 1964; Mirjana Drajicevic que nasceu no dia 18 de março de 1965 e é filha

de médico; Marija Pavlovic que, como Vicka é filha de colonos e nasceu no dia 1º de

abril de 1965; Ivanka Ivankovic que viera ao mundo no dia 21 de abril de 1966 e

cuja mãe falecera dois meses antes das aparições; Ivan Dragicevic, também filho de

colonos. Seu nascimento ocorrera no dia 25 de maio de 1966; Jakov Colo, órfão de

mãe, como Ivanka, nascido em 3 de junho de 1971.

Essas “aparições” são as mais longas e as mais intensas de que temos

registro e ocorrem diariamente, às 17h40.. No princípio duravam 30 minutos e até

mais, mas atualmente têm a duração de três a quatro minutos. A esses videntes,

Maria “se apresenta” trajando uma longa veste de cor cinza argênteo, tendo na

cabeça um véu branco que lhe cai até os pés. Os cabelos são pretos e um pouco

ondeados. Seus olhos têm a cor azul; as faces são róseas, os lábios vermelhos e a

Page 73: LENICE AMÉLIA DE SÁ MARTINS - sapientia.pucsp.br AMELIA... · Esboço teórico ... mundo espiritual e o temporal. ... paternidade, embora ele e sua esposa Isabel, que era estéril,

73

boca pequena. À altura da cabeça, vê-se um círculo de doze estrelas. Sua altura é

de aproximadamente 1,65m e a idade de mais ou menos 20 anos.

De março de 1984 até janeiro de 1987, Nossa Senhora deixava uma curta

mensagem todas as quintas-feiras. A partir de 1987, porém, as mensagens são

transmitidas apenas no 25º dia de cada mês.

Em Medjugorje a Virgem Santíssima “apresenta-se” como Rainha da Paz.

Suas mensagens são um apelo à paz, à conversão, oração, jejum e vida

sacramental.

Atualmente essas mensagens são divulgadas em todos os países, inclusive

no Brasil, através de diversos boletins e jornais. (cf. Roman, 2001, p; 99-113).

Roman (2001, p. 15) acentua que os videntes da Nova Aliança têm como

missão recordar aos homens o compromisso com esta Aliança selada com o

Sangue do Filho de Deus e, ao mesmo tempo, avivar a fé na sua segunda vinda.

Feitas essas considerações, daqui em diante passaremos à análise dos

textos que compõem o corpus, análise essa que será precedida da apresentação

das condições de produção dos discursos veiculados em tais textos (Fátima,

Angüera, Itaperuna e Jacareí).

3.6. Condições de Produção

Na exposição dos “episódios” de Fátima, temos um discurso relatado, uma

vez que os fenômenos que ali se processaram têm como protagonista (terrestre)

uma criança de 10 anos e não-alfabetizada. Embora os textos que encerram a fala

dos sujeitos envolvidos na ação discursiva sejam uma transcrição dos manuscritos

de Lúcia, como testifica o seguinte enunciado:

Os diversos relatos redigidos pela Irmã Lúcia são habitualmente designados como memórias I, II, III e IV (...). Para satisfazer o desejo dos leitores de uma maior autenticidade quanto ao conteúdo das mensagens de Fátima, revimos a versão anterior deste trabalho com base nos manuscritos da Irmã Lúcia ora publicados (...) (Machado, 1983, p. 23-28),

é certo que ela só teve condições de registrar suas experiências, após ter sido

alfabetizada. Portanto, trata-se de uma enunciação enunciada que tem como sujeito

Page 74: LENICE AMÉLIA DE SÁ MARTINS - sapientia.pucsp.br AMELIA... · Esboço teórico ... mundo espiritual e o temporal. ... paternidade, embora ele e sua esposa Isabel, que era estéril,

74

da emissão um locutor que relata fatos por ele “vivenciados” e um enunciador que se

apresenta na perspectiva desse mesmo locutor.

Já nos discursos das “vidências” ocorridas em terras brasileiras, temos uma

produção “em se fazendo” (cf. Koch, 1995, p. 69), pois eles são escritos ou

enunciados durante o processo mesmo da “alocução”.

Em todos eles, porém, há um processo enunciativo onde figura um locutor da

esfera celeste que interage, no plano da fé, com um alocutário do plano terrestre

cujo “objeto de dizer” é um sujeito ou delocutário, ora do plano temporal, ora do

plano espiritual.

No que se refere ao perfil sócio-cultural e religioso dos “videntes” de Fátima,

urge esclarecer que:

1º. As três crianças eram filhas de camponeses, como atesta o seguinte

enunciado:

As três crianças moravam (...) em Aljustrel, lugarejo da freguesia de Fátima. As aparições se deram numa pequena propriedade dos pais de Lúcia, chamada Cova da Iria, a dois quilômetros e meio de Fátima, pela estrada de Leiria (Machado, 1983, p. 35).

2º. Além de analfabetas levavam uma vida de muita simplicidade, segundo o

depoimento abaixo:

Antes de mais nada, a própria vida e cultura dos pastorinhos depõe a favor deles. Seu nível de instrução era nulo. Nenhum deles aprendera a ler e escrever e nem sequer sabiam quem era o papa. Ademais, eram um tanto tímidos e ressabiados pela falta de contacto com gente estranha. (Dias, 1999, p. 61)

3º. No tocante ao grupo familiar, existe indicação de que, pelo menos no

início, as crianças não desfrutavam de credibilidade quanto aos fenômenos em que

se diziam envolvidas. É o que atesta o seguinte excerto:

A Irmã Lúcia pôs-se a escrever, entre os dias 7 e 21 de novembro daquele ano (1937) – após nova ordem de D. José Alves Correia da Silva – a história de sua vida (...); as críticas e zombarias surgidas (...) e as repreensões severas de sua mãe, induziram-na sempre a uma grande cautela e discrição. (Machado, 1983, p. 25).

4º. Tiveram de enfrentar desconfianças e perseguições não só da família

como também de autoridades religiosas, civis e militares, de acordo com Dias (1999,

p. 58):

Page 75: LENICE AMÉLIA DE SÁ MARTINS - sapientia.pucsp.br AMELIA... · Esboço teórico ... mundo espiritual e o temporal. ... paternidade, embora ele e sua esposa Isabel, que era estéril,

75

Embora já fossem boas, normais e piedosas, essas crianças após as aparições do Anjo e da Virgem, têm tal maturidade espiritual (...) que tiveram fortaleza para fazer frente aos familiares, sacerdotes, policiais, autoridades e, inclusive, estiveram dispostas ao martírio; prudência para saber o que responder ou calar nos múltiplos interrogatórios que suportaram.

5º. Considerando que os três videntes (especialmente Lúcia que já estava

com a idade de 10 anos) ainda não estavam alfabetizados, não é difícil inferir que

seus pais eram também analfabetos, algo comum nas famílias camponesas da

época.

6º A devoção ao Imaculado Coração de Maria surgiu, na Igreja Católica, a

partir dos episódios de Fátima (Segunda Aparição).

Em relação a Angüera, o “vidente” tinha 18 anos, quando do início dos

“acontecimentos”. Fez o curso de magistério e nunca estudou teologia. Seu nível de

linguagem não é o padrão, como comprova o seguinte excerto de uma entrevista

gravada no dia 21 de abril de 2001:

Falá pra professores, já pensou? Pobre de Pedro, né? Mais uma vez eu fui convidado pra falá na Universidade Federal de Aracaju, parece. É Federal aquela Universidade, né? Aí eu fui lá falá de muitos professores. É interessante porque depois de todo o meu falá, depois de duas horas e meia ou três, rezamos o terço e Nossa Senhora apareceu... Ajudem a divulgá os apelos de Nossa Senhora... Nosso maior valô, a gente descobrirá olhando pra Jesus na cruz.

Num cotejo deste discurso com outro que o “vidente” diz ser da Mãe de

Jesus, produzido no mesmo dia, percebemos que os dois apresentam notáveis

diferenças.

Queridos filhos, vós sois importantes para a realização dos meus planos. Sois os maiores tesouros de Deus na terra. E se soubésseis o quanto sois amados, choraríeis de alegria. Peço-vos que fujais do pecado por menor que seja, e se vos acontecer cair, chamai por Jesus, que é a vossa força e salvação. Deus não quer condenar a humanidade, mas peço-vos que estejais atentos para não cairdes nas mãos do inimigo. Hoje o pecado se alastrou como a pior de todas as epidemias, causando estragos em muitas almas. Arrependei-vos depressa. Confiai na misericórdia do Senhor. Ele deseja o vosso retorno. Não recueis. Pedirei ao meu bom Jesus por vós e pelas vossas necessidades. Coragem! Esta é a mensagem que hoje vos transmito em nome da Santíssima Trindade. Obrigada, por me terdes permitido reunir-vos aqui por mais uma vez. Eu vos abençôo em nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo. Ficai em paz.

Page 76: LENICE AMÉLIA DE SÁ MARTINS - sapientia.pucsp.br AMELIA... · Esboço teórico ... mundo espiritual e o temporal. ... paternidade, embora ele e sua esposa Isabel, que era estéril,

76

Esse último discurso, no dizer dos compiladores das mensagens não é

escrito, mas ditado, como testifica, Apelos Urgentes de Nossa Senhora de Angüera

Rainha da Paz em Angüera, Bahia (2000, p. 05):

Como Nossa Senhora pediu, todos os sábados Pedro volta ao lugar das aparições, onde foi erguida uma cruz a pedido Dela, e Maria dita uma mensagem. No início não tinha energia, mas a luz que irradiava de Nossa Senhora possibilitava que Pedro enxergasse o papel em que ele escrevia as mensagens ditadas pela Mãe de Jesus.

Vendo por esse prisma, tal discurso, pode ser considerado como língua oral

com as peculiaridades do registro culto padrão.

Quanto aos pais do “vidente”, trata-se de pessoas simples, donos de uma

pequena fazenda agropecuária – a Fazenda Malhada – palco das “aparições”, e

residência da família (pais e filhos), conforme consignado na mesma obra (p. 06):

Pedro tem 14 irmãos, todos católicos praticantes que foram sempre orientados pelo seu pai, Sr. Jonas e sua mãe, Dona Amália. São pessoas simples, acolhedoras que vivem do cultivo do feijão, do milho, da mandioca e da providência divina. (Alves, 2000, p. 06)

Do “vidente” de Itaperuna, podemos assinalar que é filho de pais católicos,

mas sem significantes conhecimentos teológicos. Seu pai é pequeno comerciante e

a mãe, professora, conforme testifica o excerto abaixo:

Rodrigo Ladeira Carvalho, 18 anos, solteiro, estudante e escriturário (...) Pais: Roberto da Silva Carvalho (comerciante) e Nilva de Pinho Ladeira Carvalho (professora). Tudo começou numa manhã nublada, do dia 24 de maio de 1995, quando o Rodrigo ia para o trabalho de bicicleta. Em locução interior (sem saber o que era), ouviu algo que lhe afirmava (não era intuição): “Hoje o sol irá raiar”. (Nossa Senhora Mãe do Infinito Amor, 2001, p. 9).

Já o “vidente” de Jacareí, na época em que os acontecimentos tiveram início,

tinha apenas 14 anos. É de família pobre e não possuía nenhuma inclinação para

qualquer intensidade espiritual, pois segundo sua própria afirmação, só sabia rezar o

Pai Nosso e a Ave Maria (cf. Marcos Tadeu, 2000, p. 130).

No tocante à direção espiritual dos “videntes”, é importante ressaltar que ela

não interfere no conteúdo das mensagens. Sua função é exatamente ajudar essas

pessoas que se dizem depositárias de revelações particulares, no discernimento

desses fenômenos.

Page 77: LENICE AMÉLIA DE SÁ MARTINS - sapientia.pucsp.br AMELIA... · Esboço teórico ... mundo espiritual e o temporal. ... paternidade, embora ele e sua esposa Isabel, que era estéril,

77

Em sua autoridade (Papa, Bispos, Presbíteros), a Igreja Católica sempre age

com muita cautela diante desses casos, como testemunham as palavras abaixo:

Os critérios de veracidade para se discernir se os fenômenos místicos são de origem divina ou meramente humana, há que se usar de certas normas imprescindíveis: Quando tais manifestações se apresentam com imposições, com datas marcadas para algum acontecimento, com elementos evasivos e alheios mesmo à própria revelação, elas são de origem diabólica, assinaladas pelo orgulho e soberba dos que as impõem aos outros. Quando são doentias, causadas por desvios psíquicos, falta-lhe objetividade, falta-lhes o senso do real e do realizável; são vagas, muito vagas. Quando são de procedência divina, elas são lindas, harmônicas, causam paz e gozo interiores (...); combinam com perfeição ao evangelho, e submissas á autoridade religiosa, seguem os critérios de santidade da Igreja. Nada acrescentam à Revelação, mas com agudeza e luminosidade incríveis aclaram partes de doutrina que nem mesmo bons teólogos chegam a intuir. (DELFINA, Gilberto Maria. As revelações particulares. São Paulo, 24/02/93. IN GOMES, Dr. Luiz. O terceiro segredo de Fátima, 1993, p. 10).

Esses depoimentos atestam que nem a família dos “videntes” e nem as

autoridades eclesiásticas têm qualquer responsabilidade no conteúdo ou na

estrutura lingüístico-discursiva das mensagens que integram o “corpus” deste

trabalho. No que se refere à Igreja, notamos que é examente o especular dos

ensinamentos bíblicos e eclesiásticos que a Igreja toma como um dos critérios de

julgamento da autenticidade das Revelações Particulares, conforme já mostrado na

introdução desse capítulo (p 69). Quanto às famílias, trata-se de pessoas simples,

sem qualquer profundidade no campo da teologia.

Antes de proceder à atividade analítica, convém esclarecer que todos os

textos que constituem o “corpus” desta tese foram coletados das obras:

1. As aparições e a mensagem de Fátima conforme os manuscritos da Irmã

Lúcia (MACHADO, Antônio Agusto Borelle (1993) – Fátima.

2. Apelos urgentes de Nossa Senhora Rainha da Paz em Angüera, na Bahia

(CERCHIAARI, Maria do Socorro Chaves, 1993) – Angüera.

3. Jesus e Maria nas aparições de Jacareí (MARCOS TADEU, 2000) –

Jacareí.

4. Nossa senhora Mãe do Infinito Amor (2001) – Itaperuna.

Page 78: LENICE AMÉLIA DE SÁ MARTINS - sapientia.pucsp.br AMELIA... · Esboço teórico ... mundo espiritual e o temporal. ... paternidade, embora ele e sua esposa Isabel, que era estéril,

78

3.7. As Mensagens de Fátima – Relato introdutório

Era o dia 13 de maio do ano de 1917. Em Ajustrel, lugarejo da freguesia de

Fátima, Portugal, três crianças, que cuidavam de ovelhas da família, Lúcia de Jesus

de 10 anos (prima), Francisco de 9 e Jacinta de 7 (Irmãos), brincavam numa

propriedade do pai da primeira, quando, de acordo com a própria Lúcia, avistaram

dois clarões semelhantes a relâmpagos. Após este fenômeno, as três crianças

“visualizaram” sobre um arbusto, conhecido por azinheira, uma mulher de extrema

beleza.

Fascinados por essa visão, os três aproximaram-se da azinheira, “entrando”

no circulo de luz que envolvia a Bela Senhora. Foi esta quem “deu início” à

interlocução, dizendo:

Não tenhais medo. Eu não vos faço mal.

Essas palavras tornaram os “videntes” repletos de paz e alegria. Assim, Lúcia

toma a iniciativa de interrogar a Senhora a respeito de sua procedência:

Donde é Vossemecê?

A resposta veio imediatamente:

Sou do céu.

De posse dessa resposta, Lúcia quer saber o que deseja deles a Figura

Celeste.

E que é que eVossemecê me quer?

E dos lábios da “mulher do céu”, veio o esclarecimento:

Vim para vos pedir que venhais aqui seis meses seguidos, no dia 13 a esta

mesma hora. Depois vos direi quem sou e o que quero.

Page 79: LENICE AMÉLIA DE SÁ MARTINS - sapientia.pucsp.br AMELIA... · Esboço teórico ... mundo espiritual e o temporal. ... paternidade, embora ele e sua esposa Isabel, que era estéril,

79

Após essa alocução, estabeleceu-se uma “interação dialógica” entre os dois

protagonistas:

- E eu também vou para o céu?

- Sim, vais.

- E a Jacinta?

- Também.

- E o Francisco?

- Também, mas tem que rezar muitos terços.

- A Maria das Neves está no céu?

- Sim, está.

- E a Amélia?

- Estará no purgatório até o fim do mundo. Quereis oferecer a Deus para

suportar todos os sofrimentos que ele quiser enviar-vos em ato de

reparação pelos pecados com que ele é ofendido e de súplica pela

conversão dos pecadores?

- Sim, queremos.

- Ides, pois, ter muito que sofrer, mas a graça de Deus será o vosso conforto.

Ao enunciar “mas a graça de Deus será o vosso conforto”, de acordo com a

mesma Lúcia, algo de muito singular aconteceu. Eis como o descreve a testemunha:

Foi ao pronunciar estas últimas palavras, que abriu pela primeira vez as mãos, comunicando-nos uma luz tão intensa, que penetrando-nos no peito e no mais íntimo da alma, fazia-nos ver a nós mesmos em Deus, que era essa luz, mais claramente do que nos vemos no melhor dos espelhos. (...) (cf. Machado, 1783, p. 38.39).

Em seguida, disse ainda a “Senhora do Céu”:

- Rezem o terço todos os dias para alcançarem a paz para o mundo e o fim

da guerra.

Page 80: LENICE AMÉLIA DE SÁ MARTINS - sapientia.pucsp.br AMELIA... · Esboço teórico ... mundo espiritual e o temporal. ... paternidade, embora ele e sua esposa Isabel, que era estéril,

80

Terminando esse discurso, relata Lúcia: Começou a elevar-se, serenamente,

subindo em direção ao nascente, até desaparecer na imensidade da distância. A luz

que a circundava ia como que abrindo um caminho no cerrado dos astros.

No mês seguinte, junho, dia 13, fiéis ao pedido da Virgem, os três escolhidos

voltaram ao local da “aparição”, isto é, à Cova da Iria, vale situado na pequena

propriedade do pai de Lúcia, como já foi dito. Desta vez, porém, as crianças estavam

acompanhadas de cerca de umas cinqüenta pessoas, pois a “novidade” já se

divulgara por toda a região. Como da primeira vez, o clarão parecido com

relâmpago, anunciou a “chegada” da ilustre visitante. Mas desta vez, a ação

dialógica foi iniciada por Lúcia:

- Vossemecê que me quer?

- Quero que venhais aqui no dia 13 do mês que vem, que rezeis o terço todos

os dias, e que aprendais a ler. Depois direi o que quero.

À intercessão de Lúcia pela cura de uma pessoa doente, a resposta foi:

- Se converter-se, curar-se-á durante o ano.

Após essa resposta, a vidente intervém com outra solicitação que reatou o

diálogo:

- Queria pedir-lhe para nos levar para o céu.

- Sim, a Jacinta e o Francisco, levo-os em breve. Mas tu ficas cá mais algum

tempo. (...)

E novamente, ao enunciar as últimas palavras, diz Lúcia, que, pela segunda

vez, comunica-lhes a luz misteriosa.

Desvanecida esta visão, segundo a relatora, a Senhora envolta numa luz que

dela própria irradiava, elevou-se da azinheira, na direção do leste, até desaparecer

completamente.

A terceira “visita” da Senhora do Céu em Fátima, ocorreu no dia 13 de julho. Os

sinais de sua aproximação foram: uma nuvenzinha acinzentada que pairava sobre a

Page 81: LENICE AMÉLIA DE SÁ MARTINS - sapientia.pucsp.br AMELIA... · Esboço teórico ... mundo espiritual e o temporal. ... paternidade, embora ele e sua esposa Isabel, que era estéril,

81

azinheira; a ofuscação solar e o sopro suave de uma aragem, embora fosse época de

verão. As crianças “viram” a costumeira luz e, logo em seguida, a Bela Senhora.

Como da segunda vez, agora também é Lúcia que dá início à

interlocução.

- Vossemecê que me quer?

- Quero que venham aqui no dia 13 do mês que vem, que continuem a rezar o

terço todos os dias em honra de Nossa Senhora do Rosário para obter a paz

do mundo e o fim da guerra, porque só ela lhes poderá valer.

- Queria pedir-lhe para nos dizer quem é, e fazer um milagre com que todos

acreditem que vossemecê nos apareceu.

- Continuem a vir aqui todos os meses. Em outubro direi quem sou, o que

quero, e farei um milagre que todos hão de ver para acreditarem.

Após Lúcia ter-lhe apresentado vários pedidos de conversões, de curas e de

outras graças, a Virgem “prosseguiu”.

- Sacrificai-vos pelos pecadores e dizei muitas vezes e em especial sempre

que fizerdes algum sacrifício: “Ó, Jesus, é por vosso amor, pela conversão

dos pecadores e em reparação pelos pecados cometidos contra o Imaculado

Coração de Maria”.

Ao final dessa última alocução, a Senhora apresenta-lhes a “visão” do inferno,

conforme comenta Lúcia.

Assustadas, as crianças ergueram os olhos para a Senhora, que lhes disse:

- Vistes o inferno, para onde vão as almas dos pobres pecadores. Para as

salvar, Deus quer estabelecer no mundo a devoção ao meu Imaculado

Coração. (...)

- Vossemecê não quer mais nada?

- Não, hoje não te quero mais nada.

Page 82: LENICE AMÉLIA DE SÁ MARTINS - sapientia.pucsp.br AMELIA... · Esboço teórico ... mundo espiritual e o temporal. ... paternidade, embora ele e sua esposa Isabel, que era estéril,

82

Assim, terminava a terceira “visita” da Mãe de Jesus aos três pastores de

Fátima. E, como de costume, foi-se elevando em direção ao nascente, até

desaparecer na imensidão do firmamento.

O quarto “encontro” da Senhora com os pequenos pastores não aconteceu no

dia 13 de agosto como estava determinado, pois, tendo sido, neste dia,

seqüestrados pelo Administrador de Ourém, não puderam comparecer à Cova da

Iria. No entanto, muita gente dirigiu-se ao local e presenciou vários fenômenos, no

momento costumeiro das aparições como: um trovão seguido de um relâmpago;

uma pequena nuvem que pairou, durante alguns minutos, sobre a azinheira; cores

diversas no rosto e nas roupas das pessoas e nas folhagens das árvores.

No dia 15 do mesmo mês, Lúcia e Francisco encontravam-se em Valinhos,

propriedade de um de seus tios, quando às 16 horas, notaram as alterações

atmosféricas que precediam as aparições: a brisa suave e a redução da luz solar.

Identificando tais fenômenos como sinais da vinda da Virgem, Lúcia mandou chamar

Jacinta, às pressas, a qual chegou a tempo do “celeste encontro”. A Senhora

aparecera sobre uma azinheira, pouco maior do que aquela da Cova da Iria.

Ainda foi Lúcia a tomar a iniciativa do diálogo.

- Que é que Vossemecê me quer?

- Quero que continueis a ir à Cova da Iria, no dia 13 e que continueis a rezar o

terço todos os dias. (...)

Em seguida, voltou ao céu, elevando-se em direção ao nascente, como das

outras vezes.

A Quinta “visita” da Virgem a Fátima, aconteceu no dia 13 de setembro,

conforme ela mesma determinara. Desta vez, compareceram ao local, de quinze a

vinte mil pessoas. Os fenômenos que anunciaram a chegada da ilustre Senhora

foram: o frescor da atmosfera, o diminuir da luz solar, a tal ponto que as estrelas

puderam ser vistas, flocos de neve em forma de pétalas e um globo luminoso que,

lentamente, se movia pelo céu, do nascente para o poente, no início da aparição e,

em sentindo contrário, no final.

Desta vez, foi a nobre Senhora quem deu inicio à interlocução:

Page 83: LENICE AMÉLIA DE SÁ MARTINS - sapientia.pucsp.br AMELIA... · Esboço teórico ... mundo espiritual e o temporal. ... paternidade, embora ele e sua esposa Isabel, que era estéril,

83

- Continuem a rezar o terço para alcançarem o fim da guerra. Em outubro, virá

também Nosso Senhor, Nossa Senhora das Dores e do Carmo, São José

com o Menino Jesus, para abençoarem o mundo. Deus está contente com os

vossos sacrifícios, mas não quer que durmais com a corda, trazei-a só

durante o dia.

- Têm-me pedido para lhe pedir muitas coisas: cura de alguns doentes, de um

surdo-mudo.

- Sim, alguns curarei, outros não. Em outubro farei um milagre para que todos

acreditem.

Depois, como de costume, começou a elevar-se rumo ao céu.

Como anunciara, a Virgem “voltara” a Fátima pela sexta vez, no dia 13 de

outubro ainda do ano de 1917. Sua chegada, assim como aconteceu nas outras

aparições, foi anunciada pelo reflexo de uma luz intensa. E o local exato de sua

presença continuou sendo a azinheira.

- Que é que Vossemecê me quer?

- Quero dizer- te que façam aqui uma capela em minha honra, que sou a

Senhora do Rosário, que continuem a rezar o terço todos os dias. A guerra

vai acabar e os militares voltarão em breve para suas casas.

- Eu tinha muitas coisas para lhe pedir. Se curava uns doentes e se convertia

uns pecadores.

- Uns sim, outros não. É preciso que se emendem, que peçam perdão de

seus pecados, não ofendam mais a Deus, Nosso Senhor, que já está muito

ofendido.

Em seguida, abrindo as mãos, Nossa Senhora “fez” que elas fossem

refletidas no sol e, enquanto se elevava, o reflexo de sua própria luz continuou a

projetar-se no astro-rei.

Após a figura da Virgem Maria “desaparecer” no firmamento, aos olhos das

três crianças, desenrolaram-se, sucessivamente, três quadros representando os

mistérios gozosos, os dolorosos e os gloriosos.

Page 84: LENICE AMÉLIA DE SÁ MARTINS - sapientia.pucsp.br AMELIA... · Esboço teórico ... mundo espiritual e o temporal. ... paternidade, embora ele e sua esposa Isabel, que era estéril,

84

Ao lado do sol, “apareceram” também São José, o Menino Jesus e Nossa

Senhora do Rosário. A Virgem Maria trajava um vestido branco e um manto azul.

São José também se vestia de branco e o Menino Jesus, de vermelho claro. O

Menino Jesus e São José traçaram o sinal da cruz, abençoando o povo.

Após estas imagens, apareceram o Senhor Jesus e Nossa Senhora das

Dores, acabrunhados no caminho do calvário. Nesta visão, Jesus abençoou

novamente seu povo, traçando sobre ele o sinal da cruz.

A seguir, surgiu Nossa Senhora do Carmo, gloriosa, como Rainha do Céu e

da Terra, tendo em seu colo, o Menino Jesus.

Durante todo o tempo em que a virgem Maria conversava com Lúcia, chovia.

Quando ela começou a ascender ao céu, gritou Lúcia: “Olhem para o sol!”

Este se apresentava como um imenso disco de prata e, apesar de exibir um brilho

jamais visto, não cegava. Em seguida, a grande bola, semelhante a roda de fogo,

começou a girar rapidamente. Suas bordas tornaram-se escarlates e, como um

redemoinho, deslizou no céu, espargindo chamas vermelhas. Sua luz refletia-se no

rosto e nas roupas dos presentes, nas árvores e nos arbustos, que tomavam cores

brilhantes e diversificadas. Houve um momento em que o globo de fogo pareceu que

tremia e ia precipitar-se, em ziguezague sobre a multidão que já estava aterrorizada.

Finalmente, em ziguezague, o sol voltou ao seu brilho e tranqüilidade normais.

Este milagre foi testemunhado também por várias pessoas residentes em

locais distantes da Cova de Iria, até 40 quilômetros. (cf. Machado, 1983, p. 58/59)

E assim, terminava este ciclo das visitas da Mãe de Jesus à Terra.

No entanto, segundo depoimentos de Lúcia, as três crianças continuaram a

vê-la isoladamente, conforme o enunciado:

No pouco tempo que passaram na terra, depois das aparições, e mesmo no período abrangido por estas, Francisco e Jacinta, mas sobretudo esta última, tiveram isoladamente diversas visões. (cf. Machado, 1983, p. 61)

Nestes “encontros” individuais, de acordo com o mesmo autor, Jacinta foi

agraciada com visões relativas a fatos futuros.

Certa vez, junto ao poço dos pais de Lúcia, Jacinta perguntou à prima:

Page 85: LENICE AMÉLIA DE SÁ MARTINS - sapientia.pucsp.br AMELIA... · Esboço teórico ... mundo espiritual e o temporal. ... paternidade, embora ele e sua esposa Isabel, que era estéril,

85

- Não viste o Santo Padre?

- Não

- Não sei como foi, eu vi o Santo Padre numa casa muito grande, de joelhos

diante de uma mesa, com as mãos no rosto a chorar. Fora de casa, estava

muita gente e uns atiravam-lhe pedras, outros rogavam-lhe pragas e diziam-

lhe muitas palavras feias. Coitadinho do Santo Padre; temos que pedir muito

por ele. (p. 62)

Em fins de outubro do ano de 1918, Francisco e Jacinta adoeceram. Lúcia ia

visitá-los freqüentemente. Numa dessas visitas, encontrou Jacinta irradiando alegria.

A causa de tanta felicidade foi explicada.

- Nossa Senhora veio-nos ver e disse que vem buscar o Francisco muito

breve para o céu. E a mim perguntou-me se queria ainda converter mais

pecadores. Disse-lhe que sim. Disse-me que ia para um hospital, que lá

sofreria muito. Que sofresse pela conversão dos pecadores, em reparação

dos pecados contra o Imaculado Coração de Maria e por amor de Jesus.

Perguntei-lhe se tu ias comigo. Disse que não. Isto é o que me custa mais.

Disse que ia minha mãe levar-me, e, depois, fico lá sozinha. (p. 63)

Em outra oportunidade, a menina disse o seguinte:

- Já me falta pouco para ir para o céu. Tu ficas cá para dizeres que Deus quer

estabelecer no mundo a devoção ao Imaculado Coração de Maria. Quando

for para dizeres isso, não te escondas, dize a toda gente que Deus nos

concede graças por meio do Coração Imaculado de Maria. Que peçam a paz

ao Imaculado Coração de Maria, que Deus lha entregou a ela. Se eu pudesse

meter no coração de toda a gente o lume que tenho cá dentro no peito a

queimar-me e a fazer-me gostar tanto do Coração de Jesus e de Maria. (p.

63)

Nos últimos dias de dezembro de 1919, a Santa Virgem lhe “apareceu” e ela

relatou, assim, essa visita:

Page 86: LENICE AMÉLIA DE SÁ MARTINS - sapientia.pucsp.br AMELIA... · Esboço teórico ... mundo espiritual e o temporal. ... paternidade, embora ele e sua esposa Isabel, que era estéril,

86

- Disse-me que vou para Lisboa, para outro hospital; que não te torno a ver,

nem a meus pais; que depois de sofrer muito, morro sozinha, mas que não

tenha medo, que me vai lá ela a buscar para o céu. (p. 64)

Jacinta foi transportada para Lisboa, ficando primeiramente em um orfanato

próximo à Igreja Nossa Senhora dos Milagres, onde foi assistida pela Madre da

Purificação Godinho (Religiosa desse mesmo orfanato).

Do orfanato, Jacinta foi transferida para o Hospital Dona Estefânia e durante

sua permanência, neste local, foi visitada por Nossa Senhora que lhe comunicou o

dia e a hora de sua morte. Quatro dias antes de seu falecimento, a Virgem tirara-lhe

todas as dores.

Inquerida, na véspera de sua morte, se gostaria de ver a mãe, Jacinta

respondeu:

- A minha família durará pouco tempo e, em breve, se encontrarão no céu...

Nossa Senhora aparecerá outra vez, mas não a mim, porque com certeza

morro, como ela me disse... (p. 68)

Antes de Jacinta partir para a eternidade, Francisco empreendeu esta

viagem, que ocorreu no dia 4 de abril de 1919. A partida de Jacinta foi no dia 2 de

fevereiro de 1920. Francisco foi sepultado no cemitério de Fátima e sua irmã, no

cemitério de Vila Nova Ourém. No dia 12 de setembro de 1935, os restos mortais

dos dois irmãos foram transladados para um jazigo novo, construído especialmente

para os dois “videntes”. Na lápide, lia-se: Aqui repousam os restos mortais de

Francisco e Jacinta a quem Nossa Senhora apareceu.

Estes despojos, porém, não continuaram no jazigo, pois em 1951 e 1952

foram levados para a crípita da Basílica de Fátima onde se encontram.

Quanto a Lúcia, desde a segunda visita da Virgem (cf. Machado, 1983, p 68-

69), ficou patente que ela permaneceria na Terra, para propagar a devoção ao

Imaculado Coração de Maria. Assim, a 17 de junho de 1921, com 14 anos de idade,

a “vidente” deixa Aljustrel e vai para Porto, para estudar, como aluna interna, no

colégio das Irmãs Dorotéias. Em 24 de outubro de 1925, aos 18 anos de idade, é

admitida como postulante dessa Congregação, em Tuy, Espanha. Aos 2 de outubro

Page 87: LENICE AMÉLIA DE SÁ MARTINS - sapientia.pucsp.br AMELIA... · Esboço teórico ... mundo espiritual e o temporal. ... paternidade, embora ele e sua esposa Isabel, que era estéril,

87

de 1926, ingressa no noviciado; aos 3 de outubro de 1928, pronuncia os primeiros

votos e, no dia 3 de outubro de 1934 emite os votos perpétuos, tomando o nome de

Irmã Maria das Dores. Mas, por ocasião da revolução comunista na Espanha, por

motivo de segurança, é transferida para o colégio do Sardão, em Vila Nova de Gaia.

Em 25 de março de 1948, porém, a Irmã Lúcia deixou a congregação das

Dorotéias para ingressar no Carmelo de São José, em Coimbra, recebendo o nome

de Irmã Maria Lúcia do Coração Imaculado. A 13 de maio do mesmo ano, foi

investida do hábito de Santa Tereza e, no dia 31 de maio de 1949, professou como

Carmelita descalça.

A “mensagem” de Fátima, porém, não estava definitivamente encerrada, no

dia 13 de outubro de 1917. Lúcia ainda continuou como depositória das expressões

do amor da Virgem Santíssima pela humanidade.

No dia 10 de dezembro de 1925, no Convento das Irmãs Dorotéias, a Virgem,

tendo ao lado Jesus Menino lhe “apareceu” e pousando-lhe uma das mãos no

ombro, mostrou-lhe um coração coroado de espinhos que trazia na outra, dizendo-

lhe:

- Tem pena do Coração de tua Santíssima Mãe, que está coberto de espinhos

que os homens ingratos a todos os momentos lhe cravam, sem haver quem

faça um ato de reparação para os tirar. Olha, minha filha, o meu coração

coroado de espinhos que os homens ingratos a todos os momentos me

cravam com blasfêmias e ingratidões. Tu, ao menos, vê de me consolar e

dizer que todos aqueles que, durante cinco meses, no primeiro sábado, se

confessarem, recebendo a Sagrada Comunhão, meditando nos quinze

mistérios do Rosário com o fim de me desagravar, eu prometo assisti-los na

hora da morte com todas as graças necessárias à salvação dessas almas.

(cf. Machado, 1983. p. 74).

Aos 15 de fevereiro de 1926, ainda como Religiosa Dorotéia, o Menino Jesus

“manifesta-se” a Lúcia e pergunta-lhe se já havia divulgado a devoção à sua

Santíssima Mãe. A Irmã Lúcia diz-lhe que o confessor estava dificultando seu

trabalho, mas que a Madre superiora dispusera-se a realizar tal propagação. No

entanto, o mesmo confessor dissera que a Superiora sozinha nada poderia fazer. A

Page 88: LENICE AMÉLIA DE SÁ MARTINS - sapientia.pucsp.br AMELIA... · Esboço teórico ... mundo espiritual e o temporal. ... paternidade, embora ele e sua esposa Isabel, que era estéril,

88

esta fala do sacerdote, “advertiu” o Senhor – É verdade que a tua superiora só nada

pode, mas com a minha graça pode tudo.

Neste “encontro” com o Senhor Jesus, a Religiosa pediu-lhe para que a

confissão da semana anterior ao primeiro sábado fosse também aceita como

preparação à comunhão reparadora, visto muitas pessoas terem dificuldades para

receberem aquele sacramento no mesmo dia determinado pela Virgem Maria.

“Respondeu-lhe”, então o Senhor:

- Sim, pode ser de muitos dias ainda, contanto que, quando me receberem,

estejam em graça e tenham a intenção de desagravar o Imaculado Coração

de Maria. (cf. Machado, 1983, p. 75).

A “visão” mais esplêndida, porém, com que foi agraciada a Irmã Lúcia,

aconteceu no dia 13 de junho de 1929, pois segundo o seu relato, foi a Santíssima

Trindade quem a ela se manifestou:

Eu tinha pedido e obtido licença das minhas superioras e do confessor para fazer a Hora Santa das onze à meia-noite, de quinta para sexta-feira. Estando uma noite só, ajoelhei-me entre a balaustrada, no meio da capela, a rezar prostrada as orações do Anjo. Sentindo-me cansada, ergui-me e continuei a rezá-las com os braços em cruz. A única luz era a da lâmpada. De repente iluminou-se toda a capela com uma luz sobrenatural, e sobre o altar apareceu uma Cruz de luz que chegava até o teto. Numa luz mais clara, via-se na parte superior da Cruz, uma face de homem com corpo até à cintura, sobre o peito uma pomba de luz, e pregado na Cruz o corpo de outro homem. Um pouco abaixo da cintura, suspenso no ar, via-se um cálice e uma Hóstia grande, sobre a qual caíam algumas gotas de sangue que corriam pelas faces do Crucificado e de uma ferida do peito. Escorregando pela Hóstia, essas gotas caíam dentro do cálice. Sob o braço direito da Cruz estava Nossa Senhora (era Nossa Senhora de Fátima com o seu Imaculado Coração na mão esquerda, sem espada, sem rosas, mas com uma coroa de espinhos e chamas) (...) Sob o braço esquerdo, umas letras grandes, como se fossem de água cristalina que corresse para cima do altar, formavam estas palavras: “Graça e Misericórdia”. Compreendi que me era mostrado o Mistério da Santíssima Trindade, e recebi luzes sobre este Mistério que não me é permitido revelar. Depois Nossa Senhora disse-me: “É chegado o momento em que Deus pede para o Santo Padre fazer, em união com todos os Bispos do mundo, a consagração da Rússia ao meu Imaculado Coração, prometendo salvá-la por este meio. São tantas as almas que a Justiça de Deus condena por pecados contra Mim cometidos, que venho pedir reparação: sacrifica-te por esta intenção e ora.” (cf. Machado, 1983, p. 78).

Page 89: LENICE AMÉLIA DE SÁ MARTINS - sapientia.pucsp.br AMELIA... · Esboço teórico ... mundo espiritual e o temporal. ... paternidade, embora ele e sua esposa Isabel, que era estéril,

89

A Irmã Lúcia, a última dos três “videntes” de Fátima, viveu 97 anos. Faleceu

no dia 13 de fevereiro de 2005, após ter cumprido a missão que “recebeu” do céu de

divulgar a devoção ao Imaculado Coração de Maria.

Depois desta breve introdução, daremos início à análise do “corpus” com as

mensagens de Fátima, conforme delineado no título deste capítulo.

3.8. Jogo Polifônico das Mensagens de Fátima

3.8.1. Descrição da Figura Celeste

O texto que dá abertura à análise aqui proposta é o que apresenta as

características da principal Figura desse místico cenário, abaixo transcrito:

(1.) Era uma Senhora vestida toda de branco, mais brilhante que o sol, espargindo luz mais clara e intensa que um copo de cristal cheio de água cristalina, atravessado pelos raios do sol mais ardente. Sua face era de indescritível beleza. Tinha as mãos juntas como a rezar. Da mão direita pendia um rosário; as vestes pareciam feitas só de luz; a túnica era branca e branco o manto, orlado de ouro, que cobria a cabeça daVirgem e lhe descia aos pés. Não se lhe viam os cabelos e as orelhas (cf. Machado, 1983, p. 36)

Por ser de caráter descritivo, na superficialidade lingüística desse discurso,

não há a explicitação dos atores da cena enunciativa: eles podem ser definidos, a

partir de um interdiscurso implícito, conforme Maingueneau (1993, p. 45)

Vamos considerar esta heterogeneidade em dois planos diversos (...): a heterogeneidade mostrada (...) e a heterogeneidade constitutiva. A primeira incide sobre as manifestações explícitas, recuperáveis a partir de uma diversidade de fontes de enunciação, enquanto a segunda aborda uma heterogeneidade que não é marcada em superfície, mas que a AD pode definir, formulando hipóteses, através do interdiscurso, a propósito da constituição de uma formação discursiva. (grifos do autor)

Considerando que o sujeito do discurso escrito não é o mesmo que

“contemplou” a figura apresentada, visto Lúcia ter registrado sua “experiência” com o

sobrenatural 20 anos depois, ou seja, em 1937, como foi mostrado anteriormente (p.

73), temos, nessa cena discursiva uma enunciação enunciada. Logo, duas vozes

ecoam inicialmente aí: a do locutor (L) a quem cabe a responsabilidade do

enunciado e a do enunciador (E) que se apresenta segundo o ponto de vista do

primeiro. Expressões como “espargindo luz”, “água cristalina”, “indescritível beleza”,

Page 90: LENICE AMÉLIA DE SÁ MARTINS - sapientia.pucsp.br AMELIA... · Esboço teórico ... mundo espiritual e o temporal. ... paternidade, embora ele e sua esposa Isabel, que era estéril,

90

“orlado de ouro” denunciam um falante que não só galgara uma certa maturidade

cognitiva, mas que também tem conhecimento das normas da língua padrão. O

primeiro sujeito, o locutor, é uma criança de 10 anos, camponesa, não-alfabetizada

e tímida (cf. p. 74). Já o segundo, é uma religiosa, consagrada na Congregação das

Dorotéias, com idade de 30 anos (cf. p75. ). Como sabemos que essas irmãs

dedicam-se especialmente à educação, não é difícil deduzirmos que elas procuram

empenhar-se na própria formação humano-religiosa e também lingüística. Eis por

que a forma de expressão do discurso em apreço não condiz com a personagem

que “vivenciou” os fatos.

Como ocorre no nível da produção, no da recepção, não existe qualquer

marca lingüística que identifique o interlocutor. Mas, se o “discurso é qualquer

atividade produtora de sentidos entre interlocutores”, conforme Travaglia (2001, p.

68), existe aí um sujeito implícito que representa o “tu” discursivo.

Embora a Irmã Lúcia tenha escrito suas “visões” por ordem do Bispo D. José

Alves Correia da Silva, em 1937, como foi anteriormente exposto, é o leitor,

especialmente o católico, que acredita na ascenção da Virgem Maria ao céu em

corpo e alma e, em tal conseqüência, em suas “aparições”, que figura como

alocutário, na correlação do locutor, e de destinatário, na de enunciador, conforme

Ducrot (1987) complementado por Orlandi, Guimarães e Tarallo (1989),

mencionados na página 4 4 . E já que todos os católicos, povo e clero, formam a

Igreja, é essa mesma Igreja que nesse discurso está exercendo função de ouvinte,

ou seja, de alocutário e de destinatário.

O enunciador, porém, duplica-se em sui-enunciador (SE) ou auto-enunciador,

colocando-se na perspectiva de um locutor pessoal, e enunciador bíblico (EB), ao

assumir a voz da Sagrada Escritura, nos enunciados.

a) “Era uma Senhora vestida toda de branco, mais brilhante que o sol,

aspergindo luz (...)”

que nos remete a:

• Cântico dos Cânticos: Quem é esta que avança como a aurora, bela como

a lua, brilhante como o sol, terrível como um exército em ordem de

batalha? (Bíblia Sagrada, p. 832)

Page 91: LENICE AMÉLIA DE SÁ MARTINS - sapientia.pucsp.br AMELIA... · Esboço teórico ... mundo espiritual e o temporal. ... paternidade, embora ele e sua esposa Isabel, que era estéril,

91

• Apo 12, 1: Apareceu um grande sinal no céu, uma mulher revestida de sol,

a lua debaixo dos pés, e na cabeça uma coroa de doze estrelas (Bíblia Sagrada, p. 1566)

b) “Sua face era de indescritível beleza (...) e branco o manto, orlado de

ouro, que cobria a cabeça da Virgem e lhe descia aos pés;”

que lembra:

• Sl 44, 10-14: Posta-se à vossa direita a rainha, ornada de ouro de Ofir (...)

De tua beleza se encantou o rei: toda formosa entra a filha do rei com

vestes bordadas de ouro (Bíblia Sagrada, p. 691)

Já na instância referida ou enunciada, o sujeito ou delocutário (D) na

concepção de Brandão (1988, p. 50-52), corroborada por Bittencourt (1950),

conforme mostrado na página 46 deste trabalho, vem expresso pelos epítetos:

Senhora (Era uma Senhora vestida toda de branco...) e Virgem (... cobria a cabeça

da Virgem) e pelas formas pronominais se e lhe (não-se lhe viam os cabelos e as

orelhas (cf. Bittencourt, 1992, 1995)

Embora de caráter persuasivo, na superfície textual, encontra-se somente

uma estratégia retórica – a comparação: mais brilhante que o sol: mais clara e

intensa que um copo de cristal.

Quanto à função da linguagem, neste processo discursivo, o predomínio é da

emotiva, caracterizada especialmente pela lexicografia nominal e verbal: mais

brilhante que o sol; espargindo luz; água cristalina; indescritível beleza.

No tocante aos níveis de linguagem, conforme já foi comentado, temos, neste

discurso, um nível formal, elitizado como podemos constatar pelos seguintes sinais:

a) concordância nominal e verbal: Era uma Senhora vestida toda de branco;

tinha as mãos juntas: ... as vestes pareciam feitas só de luz.

b) Emprego estilístico do gerúndio e do infinitivo: espargindo luz; as mãos

juntas a rezar.

c) Elipse do verbo (zêugma): a túnica era branca e branco, o manto.

O jogo de vozes aqui apreciado apresenta-se configurado no diagrama a

seguir:

Page 92: LENICE AMÉLIA DE SÁ MARTINS - sapientia.pucsp.br AMELIA... · Esboço teórico ... mundo espiritual e o temporal. ... paternidade, embora ele e sua esposa Isabel, que era estéril,

EMISSÃO RECEPÇÃO

LOCUTOR(L) ENUNCIADOR(E) ALOCUTÁRIO(AL) DESTINATÁRIO(DEST)

SE EB

Vidente Ir. Lúcia Ir. Lúcia Igreja Igreja (implícito) (implícito)

PROCESSO ENUNCIATIVO

INTERLOCUÇÃO

R E F E R Ê N C I A

DELOCUTÁRIO

Senhora Celeste

FIGURA 2 – Multiplicidade de sujeitos na descrição da Figura Celeste, na 1ª “aparição de Fátima”

As linhas contínuas apontam para os sujeitos da interação – locutor e

enunciador, na emissão e, alocutário e destinatário, na recepção. Já a linha

pontilhada indica aquele sujeito que está à margem da interlocução, mas que é o

objeto de dizer dos interlocutores – o delocutário.

3.8.2. Primeira “Aparição”: 13 de maio de 1917

O segundo discurso a ser analisado constitui a primeira interlocução que se

processa entre os principais protagonistas dessa cena que teve como palco a Cova

da Iria, em Fátima, Portugal, aqui transcrito sem os comentários:

(2 ) - Não tenhais medo. Eu não vos faço mal.

- Donde é vossemecê?

92

Page 93: LENICE AMÉLIA DE SÁ MARTINS - sapientia.pucsp.br AMELIA... · Esboço teórico ... mundo espiritual e o temporal. ... paternidade, embora ele e sua esposa Isabel, que era estéril,

93

- Sou do céu.

- E que é que vossemecê me quer?

- Vim para vos pedir que venhais aqui seis meses seguidos, no dia 13 a

esta mesma hora. Depois vos direi quem sou e o que quero.

- E eu também vou para o céu?

- Sim vais.

- E a Jacinta?

- Também.

- E o Francisco?

- Também, mas tem que rezar muitos terços.

- A Maria das Neves está no céu?

- Sim, está.

- E a Amélia?

- Estará no purgatório até o fim do mundo. Quereis oferecer-vos a Deus

para suportar todos os sofrimentos que ele quiser enviar-vos em ato de

reparação pelos pecados com que ele é ofendido e de súplica pela

conversão dos pecadores?

- Sim, queremos.

- Ides, pois, ter muito que sofrer, mas a graça de Deus será o vosso conforto.

Estamos diante de uma ação dialógica informal, embora realizada por atores

pertencentes a esferas dissimétricas: céu e terra, conforme Orlandi (1996, p. 243):

Partindo, então da caracterização do discurso religioso como aquele em que fala a voz de Deus, começaria por dizer que, no discurso religioso, há um desnivelamento fundamental da relação entre locutor e ouvinte: o locutor é do plano espiritual (...) e o ouvinte é do plano temporal (...), isto é, locutor e ouvinte pertencem a duas ordens de mundo totalmente diferentes e afetadas por um valor hierárquico, por uma desigualdade em sua relação: o mundo espiritual domina o temporal (...)

Focalizando o jogo interacional, percebemos que é o sujeito do plano

espiritual quem o inicia. Esse sujeito entra na enunciação como locutor, inscrevendo,

nela, seu parceiro, como alocutário, para depois marcar-se subjetivamente (Não

tenhais medo. Eu não vos faço mal).

Mesmo experimentando esse desnivelamento de que fala Orlandi, o ouvinte

inverte as funções dialógicas. Instalando-se como locutor no segundo ato,

Page 94: LENICE AMÉLIA DE SÁ MARTINS - sapientia.pucsp.br AMELIA... · Esboço teórico ... mundo espiritual e o temporal. ... paternidade, embora ele e sua esposa Isabel, que era estéril,

94

conseqüentemente seu ouvinte é inscrito na função de alocutário, como ocorre em

qualquer interação em que a alternância de papéis cria a dialogicidade.

Na superfície textual, os locutores estão assinalados pelos pronomes de

primeira pessoa (eu, me) e pelas formas verbais (faço, sou, vim, direi, quero, vou,

queremos), e o alocutário, por dêiticos pronominais pessoais e possessivos (vos,

vossemecê, vosso) e pelas desinências verbais de segunda pessoa (tenhais,

venhais, vais, quereis, ides).

Na instância referencial, temos sujeitos humanos (Jacinta, Francisco, Maria das Neves, Amélia) e divino (Deus), representados pela nominalização e pelo

anafórico ele (...com que ele é ofendido).

No que diz respeito ao jogo polifônico stricto sensu (cf. Orlandi, Guimarães e

Tarallo, 1989, p. 46), identificamos uma intrincada superposição vocal: a personagem

celeste, além de inscrever-se, nessa trama, como locutor L, fonte do dizer e locutor P,

pessoa socialmente constituída (Sou do céu), representa uma outra voz – aquela que

tem o direito de receber sacrifícios em desagravo pelas ofensas que lhe fazem os

pecadores, ou seja, a voz de Deus, exercendo, portanto, nessa instância, a função de

enunciador divinal (EDV). Outra voz também ecoa nesta instância emissora: a da Igreja

Católica. Ao afirmar que a “Amélia estará no Purgatório, até o fim do mundo”, o

protagonista celeste confirma a doutrina do catolicismo sobre esse estágio por que,

segundo ela, passam certas pessoas antes de chegarem ao céu. Portanto, embora

reconhecida e proclamada pela Igreja como aquela que ocupa o lugar mais alto depois

de Cristo (cf. Lumen Gentium, 2003, p. 1119), a personagem celeste exerce ai a função

de seu enunciador – enunciador eclesial (EE).

No nível da recepção, o sujeito terrestre é instalado como alocutário AL pelo

locutor L e alocutário ALP pelo locutor P, na instância locutória; mas na do

enunciador, o ouvinte é inscrito, como destinatário DEST (cf. Orlandi, Guimarães e

Tarallo, 1989, p. 47). Como a mensagem, porém, é dirigida não apenas ao

interlocutor, mas aos “três videntes”, temos aí um destinatário coletivo – DESTC.

Nessa trama, o tu não é somente aquele que dialoga: nela, existe uma

pluralidade receptora revelada por marcas lingüísticas, como a flexão verbal

venhais e o pronome vos:

Page 95: LENICE AMÉLIA DE SÁ MARTINS - sapientia.pucsp.br AMELIA... · Esboço teórico ... mundo espiritual e o temporal. ... paternidade, embora ele e sua esposa Isabel, que era estéril,

95

2.1Vim para vos pedir que venhais aqui seis meses seguidos, no dia 13 a esta mesma hora. Depois vos direi quem sou e o que quero.

Tais sinais indicam que a voz locutora dirige-se aos três figurantes desse

cenário “desenrolado” naquele recôndito lugarejo da nação portuguesa. Logo,

Jacinta e Francisco são, com Lúcia, sujeitos no nível da recepção o que constitui um

alocutário coletivo (ALC).

No tocante à personagem terrestre, esta entra no discurso como locutor L,

mas, logo em seguida, assume a função de locutor LP, pessoa do mundo, que crê,

busca certezas e tem decisões firmes:

2.2 Eu vou para o céu?

2.3 E a Jacinta?

2.4 E o Francisco?

2.5 A Maria das Neves está no céu?

2.6 E a Amélia?

2.7 Sim, queremos.

Exercendo a função de locutor L, seu parceiro, o sujeito celeste, é inscrito

como alocutário AL. Ao assumir o papel de locutor P, o sujeito terrestre inscreve seu

ouvinte como alocutário ALP. Por conseguinte, o sujeito da esfera celeste, na

recepção exerce também duas funções – AL e ALP.

O protagonista terrestre fala também de outros lugares: a pergunta relativa à

salvação eterna de Jacinta e Francisco exprime a voz dos dois primos, e a que diz

respeito a Maria das Neves e a Amélia, a da família e amigos de ambas as falecidas.

Percebemos aí uma voz pluralizada que caracteriza um enunciador coletivo (EC).

Por outro lado, como já foi esclarecido, o sujeito da interação face –a - face é

um e o do discurso escrito outro. Portanto a Irmã Lúcia, relatora, exerce a função de

enunciador de Lúcia “vidente”, caracterizando-se, pois, como sui enunciador (SE), ou seja, auto-enunciador (cf. página 74).

No processo enunciativo outro sujeito figura na referência – o delocutário, que

se desdobra em delocutário divino (DV): Deus, e delocutário humano (DH): Jacinta, Francisco, Maria das Neves, Amélia e pecadores.

Page 96: LENICE AMÉLIA DE SÁ MARTINS - sapientia.pucsp.br AMELIA... · Esboço teórico ... mundo espiritual e o temporal. ... paternidade, embora ele e sua esposa Isabel, que era estéril,

Ocorre nessa enunciação uma evidente superposição vocal, uma vez que um

mesmo indivíduo acumula várias funções, como:

a) Sujeito Celeste (SCl = L, (locutor); LP (locutor pessoa do mundo); EDV

(enunciador divinal); EE (enunciador eclesial); AL (alocutário); ALP

(alocutário pessoa do mundo);

b) Lúcia (La) = L (locutor); LP (locutor pessoa do mundo); SE (sui-

enunciador); AL (alocutário); ALP (alocutário pessoa do mundo);

c) Lúcia mais comunidade (La + C) = enunciador coletivo;

d) Lúcia igual a videntes = (La = V) = ALC (alocutário coletivo); DESTC

(destinatário coletivo;

No esquema abaixo, temos a representação diagramática do jogo de vozes

aqui analisado.

T R A M A P O L I F Ô N I C A

L O C U T O R ENUNCIADOR ALOCUTÁRIO DESTINATÁRIO COLETIVO

L LP EDV SE EC AL ALP ALC (La + V)

96

SCl La SCl La SCl La La(+C) SCL SCL (La + V)

D E L O C U T Á R I O

Deus Francisco pecadores

Maria das Neves

INTERLOCUÇÃO

Jacinta Amélia FIGURA 3 – Jogo polifônico na primeira ação discursiva das “Aparições de Fátima”

Page 97: LENICE AMÉLIA DE SÁ MARTINS - sapientia.pucsp.br AMELIA... · Esboço teórico ... mundo espiritual e o temporal. ... paternidade, embora ele e sua esposa Isabel, que era estéril,

97

Além dessas vozes que ressoam no processo da interlocução, outras se

instalam no espaço da intertextualidade. O anúncio de que Amélia estará no

Purgatório até o fim do mundo remete:

a) a Mt, 5, 25-26.

Entra em acordo sem demora com o teu adversário, enquanto estás em caminho com ele, para que não suceda que te entregue ao juiz, e o juiz te entregue ao seu ministro e sejas posto em prisão. Em verdade te digo: dali não sairás antes de teres pago o último centavo (Bíblia Sagrada, p. 1289)

b) à Igreja Católica, na sua doutrina sobre o purgatório, como está expresso

no Catecismo.

Os que morrem na graça e na amizade de Deus, mas não estão completamente purificados, embora tenham a garantia da salvação eterna, passam, após a morte, por uma purificação, a fim de obterem a santidade necessária para entrarem na alegria do céu. A Igreja denomina Purgatório esta purificação final dos eleitos, que é completamente distinta do castigo dos condenados (...) – (grifo dos autores) – (Catecismo da Igreja Católica, 1993, p. 247 – nº 1030 – 1031)

Já a prenunciação dos sofrimentos que estes eleitos terão de suportar,

sustentados pela graça de Deus, aponta para Jo 16,33: Referi-vos estas coisas para

que tenhais a paz em mim. No mundo haveis de ter aflições. Coragem! Eu venci o

mundo. (Bíblia Sagrada, p. 1407)

Ainda a ação discursiva relativa às dores que sofrerão os videntes como ato

de reparação pelas ofensas a Deus e de súplica a esse mesmo Deus, pela

conversão dos pecadores, lembra os ensinamentos da Igreja a respeito da

comunhão dos santos, como se pode constatar na seguinte consignação:

Nós rezamos e sacrificamo-nos uns pelos outros. Ninguém poderá ser esquecido. Ninguém vive para si. A fidelidade dos crentes, a paciência dos que sofrem, o sacrifício dos mártires, nos une a uma comunidade, à comunhão dos santos. (grifo nosso) – (O Caminho, 1986, p.192).

Os próprios protagonistas da enunciação, aliados à referência, trazem à tona

o dogma da Igreja Católica relativo às três instâncias de sua constituição: TERRA,

PURGATÓRIO e CÉU, que pode ser constatado, a seguir:

Alguns dos discípulos de Cristo peregrinam na terra (Igreja peregrina), outros já passados desta vida estão se purificando (Igreja padecente, sofredora) e outros já vivem glorificados contemplando o

Page 98: LENICE AMÉLIA DE SÁ MARTINS - sapientia.pucsp.br AMELIA... · Esboço teórico ... mundo espiritual e o temporal. ... paternidade, embora ele e sua esposa Isabel, que era estéril,

98

próprio Deus (Igreja triunfante). Mas todos, em geral, comungam na mesma caridade com Deus e o próximo, pois todos os que são de Cristo, tendo o mesmo espírito, formam uma só Igreja e eles estão unidos entre si. (Idem)

No jogo interlocutório, aqui em apreço, constatamos a presença de

performativos implícitos em proposições imperativas, como: Não tenhais medo;

assertivas do tipo: Ides, pois, ter muito que sofrer (...); ou interrogativas, como:

Donde é vossemecê? que tornam os enunciados verdadeiras ações. Nos dois

primeiros exemplos, a forma desenvolvida seria: “Eu te digo: não tenhais medo. Eu

te declaro: ides, pois, ter muito que sofrer (...)”, respectivamente. Já a interrogativa,

ficaria: “Eu pergunto: donde é vossemecê?”.

Em todos esses exemplos, temos um ato ilocucionário, exatamente, por

conterem força de ordem, asserção e pergunta (cf. Austin, 1990, p. 85, 86)

Quanto à função da linguagem, a predominância é da conativa. Os dêiticos

pronominais de segunda pessoa, o possessivo, a flexão verbal e a forma imperativa

atestam a presença dessa função centrada no TU, no receptor.

No tocante ao nível de linguagem, percebemos que, nos dois interlocutores,

ele é diferenciado: o locutor celeste (Lcl) emprega uma linguagem mais formal, cujos

sinais lingüísticos são, por exemplo:

a) concordância da flexão verbal com a forma pronominal usada:

2.8 Não tenhais medo

2.9 Sim, está (ela, a Maria das Neves)

2.10 Ides, pois, ter muito que sofrer, mas a graça de Deus será o vosso

conforto.

b) emprego da forma verbal simples do futuro, índice de uma linguagem mais

elitizada:

Depois vos direi quem sou (...)

Já o locutor terrestre (L T) faz uso de uma linguagem informal, marcada na

superfície textual pela forma pronominal vossemecê e pela construção sintática E

que é que vossemecê me quer?

Page 99: LENICE AMÉLIA DE SÁ MARTINS - sapientia.pucsp.br AMELIA... · Esboço teórico ... mundo espiritual e o temporal. ... paternidade, embora ele e sua esposa Isabel, que era estéril,

99

A própria linguagem do discurso apreciado, portanto, comprova que, nele,

existem dois sujeitos cuja fala tem características diferentes.

3.8.3. Segunda “aparição”: 13 de junho de 1917

No segundo “encontro” da Virgem Maria com os pastores de Fátima,

conforme declaração de Lúcia, havia no local cerca de cinqüenta pessoas.

Antes de a mãe de Jesus “fazer-se presente“, alguns notaram que a luz solar

diminuíra de intensidade e outros perceberam que, durante o tempo da interlocução,

o topo da azinheira onde as crianças “viam” a Imagem Celeste, parecia estar

curvada.

Desta vez, a ação dialógica foi iniciada pelo protagonista terrestre:

(3) Vossemecê que me quer?

- Quero que venhais aqui no dia 13 do mês que vem, que rezeis o terço

todos os dias e aprendais a ler. Depois direi o que quero.

Após a interlocução inicial, Lúcia dá continuidade ao diálogo pedindo pela

cura de uma pessoa, cuja resposta foi:

(3.1) -Se se converter, curar-se-á durante o ano.

E é ainda a personagem terrestre quem dá prosseguimento à interação.

(3.2) -Queria pedir-lhe para nos levar para o céu.

- Sim, à Jacinta e ao Francisco, levo-os em breve. Mas tu ficas cá mais

algum tempo. Jesus quer servir-se de ti para me fazer conhecer e

amar. Ele quer estabelecer no mundo a devoção ao meu Imaculado

Coração. A quem a abraçar, prometo a salvação; e serão queridas de

Deus estas almas, como flores postas por mim a adornar o seu trono.

- Fico cá sozinha?

- Não, filha. E tu sofres muito? Não desanimes. Eu nunca te deixarei. O

meu Imaculado Coração será o teu refúgio e o caminho que te

conduzirá até Deus.

Page 100: LENICE AMÉLIA DE SÁ MARTINS - sapientia.pucsp.br AMELIA... · Esboço teórico ... mundo espiritual e o temporal. ... paternidade, embora ele e sua esposa Isabel, que era estéril,

100

Terminada a interlocução, a “vidente” faz a explanação de uma nova

experiência:

(3.3) - Foi no momento que disse estas últimas palavras, que abriu as mãos

e nos comunicou, pela segunda vez, o reflexo dessa luz imensa. Nela

nos víamos como que submergidos em Deus. A Jacinta e o Francisco

pareciam estar na parte dessa luz que se elevava para o céu e eu, na

que se espargia sobre a terra. À frente da palma da mão direita de

Nossa Senhora estava um coração cercado de espinhos que

pareciam estar nele cravados. Compreendemos que era o Imaculado

Coração de Maria, ultrajado pelos pecados da humanidade, que

queria reparação.

Nessa segunda cena discursiva, como já se comentou, a interlocução foi

iniciada pelo protagonista da esfera terrestre:

(3.4) - Vossemecê que me quer?

Instaurando-se na enunciação como locutor, conseqüentemente, seu ouvinte

(o sujeito celeste) é instalado como alocutário.

Mas como é próprio de toda ação intersubjetiva, ao assumir a língua, o “tu”

converte-se em “eu”, conforme apregoa Benveniste (1995, p. 286):

Eu não emprego eu a não ser dirigindo-me a alguém, que será, na minha alocução, um tu. Essa condição de diálogo é que é constitutiva da pessoa, pois implica em reciprocidade – que eu me torne tu na alocução daquele que por sua vez se designa por eu. (grifos do autor)

Por conseguinte, ao apossar-se da palavra, o sujeito celeste inscreve-se

como locutor e instaura seu parceiro na função de alocutário.

(3.5) - Quero que venhais aqui no dia 13 do mês que vem, que rezeis o terço

todos os dias e que aprendais a ler. Depois direi o que quero.

Por se tratar de uma ação dalógica, em todo o jogo enunciativo, ocorre a

alternância de papéis, visto que “eu” e “tu”, na alocução, são sempre reversíveis.

Na superfície textual, o locutor celeste está assinalado pelos pronomes

pessoais (me, mim, eu) e possessivo (meu) como também pelos morfemas verbais

indicadores de 1ª pessoa (quero, direi, levo, prometo, deixarei); as marcas

Page 101: LENICE AMÉLIA DE SÁ MARTINS - sapientia.pucsp.br AMELIA... · Esboço teórico ... mundo espiritual e o temporal. ... paternidade, embora ele e sua esposa Isabel, que era estéril,

101

lingüísticas do locutor terrestre são os dêiticos pessoais (me, nos, eu) e flexões

verbais (fico, víamos, compreendemos).

Na instância receptora, o alocutário celeste está identificado pelos pronomes

(vossemecê e lhe); o alocutário terrestre pelos pronomes pessoais (tu, te, ti) e

possessivo (teu), pelas desinências verbais (rezeis, aprendais, ficas, sofre, desanimes) e ainda pelo nome vocativo (filha),

Na referência figuram delocutários:

- Da esfera temporal:

a) Uma pessoa doente

(3.6) Se se converter, curar-se-á durante o ano.

b) Jacinta e Francisco

(3.7) Á Jacinta e ao Francisco, levo-os em breve (...);

c) As futuras almas devotas do Imaculado Coração:

(3.8) A quem a abraçar, prometo a salvação; e serão queridas de Deus estas

almas;

- Da esfera espiritual:

a) Jesus:

(3.9) Jesus quer servir-se de ti para me fazer conhecer e amar.

b) Deus Pai:

(3.10) ... e serão queridas de Deus estas almas.

c) O Imaculado Coração:

(3.11) Ele quer estabelecer no mundo a devoção ao meu Imaculado Coração.

As marcas lingüísticas desse sujeito são os lexemas (Jacinta, Francisco, almas, Jesus, Deus, Imaculado Coração) e os dêiticos pronominais (se, ele, quem, os, a)

Na última enunciação, não ocorre o ato dialógico (cf. Koch, 1995, p. 71). O

sujeito falante, o locutor terrestre, tem como parceiro agora não um alocutário que

interage com ele face-a-face, mas a Igreja, especialmente a hierarquia, pois,

Page 102: LENICE AMÉLIA DE SÁ MARTINS - sapientia.pucsp.br AMELIA... · Esboço teórico ... mundo espiritual e o temporal. ... paternidade, embora ele e sua esposa Isabel, que era estéril,

102

conforme já enunciado, Lúcia escreve essas memórias em obediência ao Prelado D.

José Alves Correia da Silva (cf. p. 75). Logo, é a Igreja que tem a função de ouvinte,

ou seja, de alocutário eclesial (AE).

(3.12) Foi no momento que disse estas últimas palavras que abriu as mãos e

nos comunicou pela segunda vez o reflexo dessa luz imensa.

Já na referência, como o locutor faz alusão a Deus, a Nossa Senhora, a

Jacinta, a Francisco, à humanidade pecadora e a si própria, são eles o delocutário

(D).

(3.13) Nela nos víamos como que submergidos em Deus. A Jacinta e o

Francisco pareciam estar na parte dessa luz que se elevava para o céu

e eu, na que se espargia sobre a terra. À frente da palma da mão

direita de Nossa Senhora estava um coração cercado de espinhos que

pareciam estar nele cravados. Compreendemos que era o Imaculado

Coração de Maria, ultrajado pelos pecados da humanidade, que queria

reparação.

Essa entidade discursiva está marcada por lexemas nominais (Deus, Jacinta, Francisco, Nossa Senhora, Coração, Imaculado Coração de Maria, humanidade pecadora) e pelos pronomes pessoais (eu e nós) que, no caso, estão identificando

não o locutor e, sim, o referente.

No jogo polifônico instaurado tanto na primeira como segunda enunciação,

são bem diversificadas as vozes que aí se imiscuem.

A pergunta que introduz o diálogo: (Vossemecê que me quer?) revela que o

sujeito falante reconhece o desnivelamento que existe entre ele e o ouvinte: é uma

atitude de obediência, de submissão. Trata-se daquela hierarquização à qual alude

Orlandi (1996, 243):Locutor e ouvinte pertencem a duas ordens de mundo

totalmente diferentes e afetados por um valor hierárquico, por uma desigualdade em

sua relação: o mundo espiritual domina o temporal.

Apossando-se do discurso como responsável pela enunciação, o sujeito terrestre o faz na função de locutor (L). Mas no íntimo dessa entidade ressoa uma

outra voz que exprime carência, medo, angústia – Fico cá sozinha? É o grito do ser

humano, da criança que teme ficar sem os amigos e companheiros, “figurantes”

Page 103: LENICE AMÉLIA DE SÁ MARTINS - sapientia.pucsp.br AMELIA... · Esboço teórico ... mundo espiritual e o temporal. ... paternidade, embora ele e sua esposa Isabel, que era estéril,

103

junto com ela dessa peça teatral que “tivera início” no dia 13 de maio: é a voz do

locutor pessoa do mundo (LP), aquele que se desnuda, que revela a sua

individualidade (cf. Ducrot (1987, p. 142 – 188).

Mas como o sujeito falante é ainda intérprete dos sentimentos dos primos

igualmente agraciados com a “celeste visão”, sua voz é também a de Jacinta e de

Francisco, o que caracteriza um locutor coletivo (LC).

Uma outra voz, porém, ecoa, na intercessão pela cura de uma pessoa: é a

voz de alguém que torna a “vidente” mediadora junto àquela que ambas acreditam

ser a Mãe do Senhor. É, portanto, como enunciador individual (EI) que, nessa

instância discursiva, fala o protagonista terrestre.

Como sabemos, porém, que o sujeito vidente é um e o da enunciação escrita

outro, Lúcia do memorial é enunciadora de Lúcia vidente – sui-enunciador (SE).

Como correlato do enunciador, figura a Igreja, na função de destinatário

eclesial (DESTE), pois é a ela que a mensagem é dirigida.

No que diz respeito ao protagonista celeste, acontece também o mesmo

fenômeno lingüístico: ele fala de diversos lugares. Ao entrar na enunciação, essa

personagem se apresenta como quem tem autoridade para exigir que o seu querer

seja cumprido.

(3.14) Quero que venhais aqui no dia 13 do mês que vem, que rezeis o terço

todos os dias e que aprendais a ler. Depois direi o que quero.

Esta é, portanto, a voz do locutor (L) daquele a quem é imputada a

responsabilidade do que diz.

Há uma outra voz, porém, que emana de um coração de mãe:

(3.15) Não, filha. E tu sofres muito? Não desanimes. Eu nunca te deixarei. O

meu Imaculado Coração será o teu refúgio e o caminho que te

conduzirá até Deus.

É a expressão do amor materno que quer proteger a pequena filha,

envolvendo-a na sua ternura, no seu carinho. Identificamos aí, pois, um locutor pessoa do mundo espiritual, mas que tem emoções, que tem sentimentos.

Esse sujeito, porém, fala ainda de outros lugares:

Page 104: LENICE AMÉLIA DE SÁ MARTINS - sapientia.pucsp.br AMELIA... · Esboço teórico ... mundo espiritual e o temporal. ... paternidade, embora ele e sua esposa Isabel, que era estéril,

104

Ao enunciar:

(3.16) Jesus quer servir-se de ti para me fazer conhecer e amar. Ele quer

estabelecer no mundo a devoção ao meu Imaculado Coração,

o falante incorpora a voz de Jesus que se revela pela expressão de sua

vontade. Nesse caso, o personagem que o representa exerce a função de seu

enunciador – EDF (Enunciador de Deus Filho).

Uma outra voz divina ainda se faz ouvir no enunciado:

(3.17) A quem a abraçar, prometo a salvação; e serão queridas de Deus

estas almas, como flores postas por mim a adornar o seu trono.

É a voz do Pai que acolhe com prazer os devotos do Imaculado Coração.

Portanto, o protagonista celeste atua aí como enunciador de Deus Pai – (EDP).

No nível da recepção, a personagem terrestre é instalada:

a) como alocutário coletivo (ALC) nas cenas discursivas em que as marcas

lingüísticas revelam um sujeito plurarizado.

(3.18) Quero que venhais aqui no dia 13 do mês que vem, que rezeis o terço

todos os dias e que aprendais a ler (...)

O outro, o tu aí inscrito não é apenas o que interage expressamente, mas os

três “videntes”, pois são eles três que deverão executar o “querer” manifesto:

voltarem à Cova da Iria, rezarem o terço e alfabetizarem-se.

b) Na correlação do locutor L, o receptor é inserido como alocutário AL.

(3.19) Mas tu ficas cá mais algum tempo. Jesus quer servir-se de ti para me

fazer conhecer e amar.

c) Como correspondente do locutor LP, é implantado como alocutário ALP:

(3.20) Não, filha. E tu sofres muito? Não desanimes. Eu nunca te deixarei. O

meu Imaculado Coração será o teu refúgio (...)

Quanto ao alocutário celeste, ele também é instalado pelo locutor L e pelo

locutor LP.

Ao primeiro, corresponde o alocutário AL.

(3.21) Vossemecê que me quer?

Page 105: LENICE AMÉLIA DE SÁ MARTINS - sapientia.pucsp.br AMELIA... · Esboço teórico ... mundo espiritual e o temporal. ... paternidade, embora ele e sua esposa Isabel, que era estéril,

105

E ao segundo, o alocutário ALP:

(3.22) Fico cá sozinha?

Já na segunda enunciação, não é mais à personagem celeste que se dirige a

protagonista da esfera temporal, mas aos crentes, àqueles que integram as

gerações que proclamam a Virgem de Nazaré bem aventurada (cf. Lc 1,48 – Bíblia Sagrada, p. 1346). Portanto, instala-se aí um alocutário eclesial (ALE), ou seja, a

Igreja Católica, que venera e honra a mãe de Jesus, conforme reza a Lumen

Gentium (2003, p. 117-118):

Quando Deus sumamente benigno e sábio, quis realizar a salvação do mundo (...) “mandou o seu Filho” (...) “o qual, por amor de nós homens e para nossa salvação, desceu dos céus e se encarnou pelo Espírito Santo no seio da Virgem Maria”. Este mistério da salvação revela-se-nos e continua na Igreja que o Senhor constituiu como seu corpo, e na qual os fiéis – unidos a Cristo, sua cabeça, e em comunhão com todos os santos – devem também (...) venerar a memória da gloriosa sempre Virgem Maria, mãe de Deus, de Nosso Senhor Jesus Cristo.

No nível da referência, temos delocutário divino – DV (Deus); delocutário celeste – DCL (Nossa Senhora), e delocutário humano – DH (Jacinta, Francisco, Lúcia e a humanidade pecadora).

Essa cena discursiva traz em seu bojo um ato profético previsivo, pois o espaço

ocupado pelos “videntes”, na luz que os envolvia, prenunciava o destino dos três:

Jacinta e Francisco deveriam ir em breve para o céu e Lúcia teria como missão difundir

a devoção ao Imaculado Coração e, portanto, ficaria mais algum tempo na terra.

Além da marcação de pessoa, destacam-se, no texto, dêitico demonstrativo

(estas), locativos (aqui, cá, no mundo, à frente da palma da mão direita) e

temporais (no dia 13 do mês que vem, todos os dias, mais algum tempo, durante o ano, nunca).

No tocante aos recursos retóricos, distinguem-se na superfície textual, casos

de:

a) metáfora

(3.23) ... e serão queridas de Deus estas almas, como flores postas por mim.

(3.24) O meu Imaculado Coração será o teu refúgio e o caminho que te

conduzirá até Deus;

Page 106: LENICE AMÉLIA DE SÁ MARTINS - sapientia.pucsp.br AMELIA... · Esboço teórico ... mundo espiritual e o temporal. ... paternidade, embora ele e sua esposa Isabel, que era estéril,

106

b) pleonasmo:

(3.25) Sim à Jacinta e ao Francisco, levo-os em breve...

c) Inversão:

(3.26) e serão queridas de Deus estas almas.

d) Interrogação dialética:

(3.27) E tu sofres muito?

No que diz respeito às funções da linguagem, existe uma equivalência entre

as funções emotiva e conativa:

A primeira pessoa, expressa pelos pronomes (eu, me, mim, nos, meu) e

pelos morfemas verbais (quero, direi, levo, prometo, deixarei) aliados aos dêiticos

que exprimem proximidade (aqui, cá, estas) e aos nomes que carreiam emotividade

(filha, querida, flores, refúgio, etc) atesta uma linguagem centrada no falante.

Mas a segunda pessoa consignada pelos pronomes (vossemecê, tu, te, ti, lhe, teu) e pelas desinências verbais (venhais, rezeis, sofres, etc) e mais o

vocativo (filha) são sinais de um discurso que tem como centro, o ouvinte.

Além dessas duas funções preponderantes, é notória também a referencial,

nessa última enunciação, pois os verbos no passado (foi, comunicou, víamos, etc)

e a predominância de índices referenciais (dessa, nela, se, nele) evidenciam a

centralização da linguagem no “ele”, naquele que, no dizer de Benveniste (1995, p.

250), é o ausente da enunciação.

Nessa trama enunciativa, além dessa superposição vocal, temos uma

polifonia inscrita pela intertextualidade bíblica e católica:

a) A proposição:

(3.28) Se se converter, curar-se-á durante o ano,

remete ao Salmo 23,3-5a:

Quem será digno de subir ao monte do Senhor? Ou de permanecer no seu lugar santo? O que tem as mãos limpas e o coração puro, cujo espírito não busca a vaidade nem perjura para enganar seu próximo. Este terá a bênção do Senhor e a recompensa de Deus, seu Salvador. (Bíblia Sagrada, p. 673).

b) A referência à luz que os envolveu lembra:

Page 107: LENICE AMÉLIA DE SÁ MARTINS - sapientia.pucsp.br AMELIA... · Esboço teórico ... mundo espiritual e o temporal. ... paternidade, embora ele e sua esposa Isabel, que era estéril,

107

• O Salmo 26.1: O Senhor é a minha luz e a minha salvação, a quem

temerei? (Bíblia Sagrada, p. 675).

• 1 Jo. 1.5: A nova que dele temos e vos anunciamos é esta: Deus é luz e

nele não há treva alguma. (Bíblia Sagrada, p. 1550).

• A teologia da Igreja sobre o Espírito Santo que apresenta a luz como um

de seus símbolos, conforme atestam diversos cânticos de adoração,

louvor e invocação à Terceira Pessoa da Santíssima Trindade, como

exemplificamos no seguinte excerto do hino intitulado A nós Descei Divina Luz:

A nós descei, divina luz (2x) em nossas almas acendei o amor, o amor de Jesus (2x)

Vinde, Santo Espírito, e do céu mandai

de tua luz um raio! (2x)

(Louvemos o Senhor, 2005, p. 2;18)

c) A promessa de salvação àqueles que abraçarem a devoção ao

Imaculado Coração confirma a doutrina católica a respeito da mediação da

Santíssima Virgem, como assinala a Lumen Gentium (2003, p. 125.126):

A função maternal de Maria para com os homens, de nenhum modo obscurece ou diminui esta mediação única de Cristo; antes mostra qual é a sua eficácia. Na verdade, todo o influxo salutar da Santíssima Virgem em favor dos homens não é imposto por nenhuma necessidade, mas sim, por livre escolha de Deus, e dimana da superabundância dos méritos de Cristo (...)

Na composição dessa orquestra discursiva, ecoam vozes diversas

executadas por um mesmo indivíduo. Assim o protagonista celeste ora está

exercendo o papel de locutor L, ora o de locutor LP; ora o de alocutário AL ora o

de alocutário ALP, ora o de Enunciador de Deus Pai (EDP) e de Deus Filho

(EDF), como ainda o de delocutário (D).

Da mesma forma, o sujeito terrestre que, além de funcionar como locutor L, locutor (LP), locutor (LC), alocutário AL, alocutário ALP, enunciador eclesial (EE) e enunciador coletivo (EC), também figura no nível da referência, como

delocutário (D).

É, portanto, uma evidente polifonia que se instaura, nessa cena discursiva.

Page 108: LENICE AMÉLIA DE SÁ MARTINS - sapientia.pucsp.br AMELIA... · Esboço teórico ... mundo espiritual e o temporal. ... paternidade, embora ele e sua esposa Isabel, que era estéril,

No diagrama, a seguir, encontra-se representada a multiplicidade vocal que

procuramos mostrar, nesse processo discursivo:

M U L T I P L I C I D A D E V O C A L

L O C U T O R E N U N C I A D O R

SCl ST SCl ST LL LP LL LP LC EDP EDF EI SE EC

A L O C U T Á R I O DESTINATÁRIO COLETIVO

ST SCL ST = caólicos

AL ALP ALC AL ALP

D E L O C U T Á R I O

DV DCL DH

DP DF IC VS PD HP

FIGURA 4 – Multiplicação de sujeitos no discurso da segunda “aparição” de Fátima.

1) PRODUÇÃO:

a) Sujeito Celeste = locutor (L), locutor pessoa do mundo (LP); enunciador

divinal (EDV) que se duplica em enunciador de Deus Pai (EDP) e

enunciador de Deus Filho (EDF).

b) Sujeito Terrestre (ST) = locutor (L), locutor pessoa do mundo (LP);

c) Sui-enunciador (SE), enunciador coletivo (EC).

108

Page 109: LENICE AMÉLIA DE SÁ MARTINS - sapientia.pucsp.br AMELIA... · Esboço teórico ... mundo espiritual e o temporal. ... paternidade, embora ele e sua esposa Isabel, que era estéril,

109

2) RECEPÇÃO

a) Sujeito terrestre (ST) e Sujeito Celeste = alocutário (AL) e alocutário

pessoa do mundo (ALP);

b) Sujeito Terrestre (ST) = alocutário coletivo (ALC);

3) REFERÊNCIA

a) Delocutário Divino (DV) desdobrado em Deus Pai (DP) e Deus Filho (DF);

b) Delocutário Celeste (DCl) = Imaculado Coração (IC);

c) Delocutário Humano (DH), triplicado em videntes (ST), pessoa doente (PD)

e humanidade pecadora (HP)

3.8.4. Terceira “aparição”: 13 de julho de 1917

Como no segundo “encontro”, neste, é também o protagonista do plano

temporal quem inicia o ato dialógico:

(4) Vossemecê que me quer?

Por conseguinte, é ele o locutor e o actante celeste, o “tu”, o alocutário.

Neste discurso, o emissor repete a postura do sujeito que reconhece seu lugar do

qual só pode ecoar uma única voz – a da obediência, conforme Orlandi (1996, p.

243), já referido.

A resposta do ouvinte que o translada da recepção para a emissão, ou seja,

converte-o de alocutário em locutor, exprime as mesmas ordens da visita anterior

(com exceção da referente à busca da habilidade da leitura): voltarem à Cova da Iria

no dia 13 do mês seguinte e rezarem diariamente o terço. Essa locução imperativa,

porém, vem acrescida do objetivo da oração do terço – obter o fim da guerra e a paz

do mundo e, ainda, da indicação do ser em cuja honra tal oração deverá ser

realizada – Nossa Senhora do Rosário.

(4.1) - Quero que venham aqui no dia 13 do mês que vem, que continuem a

rezar o terço todos os dias em honra de Nossa Senhora do Rosário

para obter a paz do mundo e o fim da guerra, porque só ela lhes

poderá valer.

Page 110: LENICE AMÉLIA DE SÁ MARTINS - sapientia.pucsp.br AMELIA... · Esboço teórico ... mundo espiritual e o temporal. ... paternidade, embora ele e sua esposa Isabel, que era estéril,

110

- Queria pedir-lhe para nos dizer quem é, e para fazer um milagre com

que todos acreditem que vosssemecê nos aparece.

- Continuem a vir aqui todos os meses. Em outubro direi quem sou, o

que quero e farei um milagre que todos hão de ver para acreditarem.

Neste espaço discursivo, o protagonista celeste exerce função duplicada,

pois, referindo-se a si mesmo como Nossa Senhora do Rosário, coloca-se, sob

essa denominação, no nível da referência, ou seja, no papel de delocutário (D), constituindo, pois, uma sui-referenciação, conforme Brandão (1988, p. 53), já

mostrado, neste trabalho (p. 46): EU (L) = ELA (D).

Considerando o processo interlocutório, vimos que, na sua introdução, o

protagonista terrestre assume a palavra, instalando-se como locutor L, ao mesmo

tempo em que inscreve a personagem celeste no papel de alocutário AL. No

segundo ato, as posições são invertidas: o que era “eu” transmuda-se em “tu” e este,

em “eu”: a personagem celeste é quem exerce a função de locutor L e o terrestre, a

de alocutário AL. E neste revezar-se de ações, vão-se construindo as cenas

discursivas desse “diálogo” entre céu e terra.

Retomando o discurso, o protagonista do plano temporal faz dois pedidos ao

interlocutor:

a) revelar quem ela é (Queria pedir-lhe para nos dizer quem é);

b) realizar um milagre que confirme a sua presença ali (e para fazer um

milagre que todos acreditem que vossemecê nos aparece).

Percebemos que essa súplica parte da aflição provocada pelas críticas dos

céticos. Portanto, temos, nesta instância, um locutor pessoa do mundo – LP, que

tem emoções e quer ser respeitada e acreditada. Esse sujeito, porém, apresenta-se

ainda pluralizado, falando não só em seu nome, mas do lugar de seus primos

também, como evidencia o dêitico pronominal “nos” (... nos dizer ...nos aparece),

que caracteriza um locutor coletivo – LC.

Assumindo novamente o turno, a personagem celeste realiza atos de fala ou

ato ilocucionário, conforme Searle (1969): ordem, promessa e súplica:

(4.2) Continuem a vir aqui todos os meses. Em outubro direi quem sou, o que

quero, e farei um milagre que todos hão de ver para acreditarem...

Page 111: LENICE AMÉLIA DE SÁ MARTINS - sapientia.pucsp.br AMELIA... · Esboço teórico ... mundo espiritual e o temporal. ... paternidade, embora ele e sua esposa Isabel, que era estéril,

111

Sacrificai-vos pelos pecadores e dizei muitas vezes e em especial

sempre que fizerdes algum sacrifício: “Ó Jesus, é por vosso amor, pela

conversão dos pecadores e em reparação pelos pecados cometidos

contra o Imaculado Coração de Maria.

Instalando-se como locutor, a personagem celeste inscreve o ouvinte na

função de alocutário coletivo AC, já que esse sujeito é tríplice (os três videntes);

como comprovam os verbos que indicam um ouvinte pruralizado: venham e

continuem (vocês).

O locutor está marcado pelos dêiticos pronominais: me e nos e verbais:

quero, direi, sou e farei, venham e o alocutário pelos pronomes: vossemecê e

lhes, lhe e pelas desinências verbais: continuem4 (vocês), sacrificai, dizei, fizerdes.

O referente, ou seja, o delocutário, vem representado pelos lexemas: pecadores,

Imaculado Coração de Maria, Jesus e pelo pronome substantivo todos (os

habitantes de Fátima).

Além de inscrever-se como locutor, a personagem celeste, nesta última

locução, figura novamente como delocutário (D) investida do título de Coração Imaculado de Maria, ao lado de todos (os habitantes de Fátima) e pecadores.

Esses últimos são o motivo da penitência solicitada aos “videntes”, pois é para

reparar suas ofensas e para que eles não se percam eternamente que as crianças

deverão sofrer voluntariamente.

O discurso seguinte não é um ato dialógico, mas a apresentação da “visão”

do inferno. Numa linguagem altamente dramática, o protagonista terrestre entra

nessa cena discursiva na qualidade de porta-voz de seus companheiros,

configurando-se, portanto, como locutor coletivo – LC, assinalado apenas pela

flexão verbal “vimos”.

(4.3) - Ao dizer estas últimas palavras, abriu de novo as mãos como nos dois

meses passados. O reflexo de luz que elas expediam pareceu

penetrar a terra e vimos como que um grande mar de fogo e

mergulhados nesse fogo os demônios e as almas como se fossem

brasas transparentes e negras ou bronzeadas, com forma humana,

4 A mesclagem das pessoas gramaticais “vocês” e “vós” revela uma linguagem informal, própria da interação face-a-face.

Page 112: LENICE AMÉLIA DE SÁ MARTINS - sapientia.pucsp.br AMELIA... · Esboço teórico ... mundo espiritual e o temporal. ... paternidade, embora ele e sua esposa Isabel, que era estéril,

112

que flutuavam no incêndio levadas pelas chamas que delas mesmas

saiam juntamente com nuvens de fumo, caindo para todos os lados –

semelhante ao cair das fagulhas nos grandes incêndios – sem peso

nem equilíbrio, entre gritos e gemidos de dor e desespero que

horrorizavam e faziam estremecer de pavor. Os demônios distinguiam-

se por formas horríveis e asquerosas de animais espantosos e

desconhecidos, mas transparentes como negros carvões em brasa.

Nesta instância, como a mensagem é dirigida a toda a comunidade católica, o

ouvinte ou alocutário é a Igreja – alocutário eclesial – ALE.

A personagem celeste é inscrita aí no nível da referência; portanto, como

delocutário – D (ao dizer estas palavras, abriu de novo as mãos (...).

Outros referentes são também instalados, neste espaço discursivo: os demônios – delocutário satânico – DST e as almas condenadas – delocutório condenado - DCD (... e vimos como que um grande mar de fogo e mergulhados

nesse fogo os demônios e as almas como se fossem brasas transparentes (...)).

Desvanecida a imagem assustadora, é retomada a ação dialógica pela

personagem celeste que, imediatamente, passa do papel de locutor L para o de

locutor LP, como aquele que tem poder para impedir a guerra, converter a Rússia e

trazer a paz ao mundo.

(4.4) - Vistes o inferno para onde vão as almas dos pobres pecadores. Para

as salvar, Deus quer estabelecer no mundo a devoção ao meu

Imaculado Coração. Se fizerem o que eu vos disser, salvar-se-ão

muitas almas e terão paz. A guerra vai acabar, mas se não deixarem

de ofender a Deus, no reinado de Pio IX começará outra pior. Quando

virdes uma noite alumiada por uma luz desconhecida, sabei que é o

grande sinal que Deus vos dá de que vai punir o mundo de seus

crimes, por meio da guerra, da fome e de perseguições à Igreja e ao

Santo Padre. Para a impedir, virei pedir a consagração da Rússia ao

meu Imaculado Coração e a comunhão reparadora nos primeiros

sábados. Se atenderem a meus pedidos, a Rússia se converterá e

terão paz; se não, espalhará seus erros pelo mundo, promovendo

guerras e perseguições à Igreja; os bons serão martirizados, o Santo

Page 113: LENICE AMÉLIA DE SÁ MARTINS - sapientia.pucsp.br AMELIA... · Esboço teórico ... mundo espiritual e o temporal. ... paternidade, embora ele e sua esposa Isabel, que era estéril,

113

Padre terá muito que sofrer, várias nações serão aniquiladas; por fim o

meu Imaculado Coração triunfará. O Santo Padre consagrar-me-á a

Rússia, que se converterá, e será concedido ao mundo algum tempo

de paz. Em Portugal se conservará sempre o dogma da fé. Isto não o

digais a ninguém. Ao Francisco, sim, podeis dizê-lo.

Do lugar de locutor, o sujeito celeste instala como alocutário os videntes –

alocutário coletivo – AlC.

No nível enuncivo, há uma multiplicidade de sujeitos:

a) Deus: delocutário divino – DV (Deus Pai e Jesus Eucarístico)

b) Imaculado Coração: delocutário celeste – DCL (sui-referenciação);

c) Os pecadores: delocutário infrator – DIF;

d) O Santo Padre em cujo título estão incluídos os Papas que conviveram

com o início e o desenrolar das duas guerras mundiais (Pio XI, Bento XV,

Pio XII e ainda João Paulo II) – delocutário pontifical – DP: o último

papa, ou seja, João Paulo II foi quem realizou a consagração solicitada;

e) A Igreja: delocutário eclesial – DE;

f) As nações que sofrerão com a guerra e o povo russo: delocutário coletivo – DC;

g) Francisco, individualmente: delocutário individual - DI.

Essa referência é altamente significativa, visto que nela se manifestam

diversas realidades perceptíveis apenas pela fé:

a) A misericórdia de Deus que vai ao encalce do pecador para oferecer-lhe o

perdão;

b) O poder de intercessão concedido à Virgem Maria;

c) A implantação, por vontade divina, da devoção ao Imaculado Coração;

d) A menção de que as calamidades, como a guerra, a fome e até as

perseguições ao povo de Deus são conseqüências dos pecados da

humanidade (cf. Gn 19, 1-29: Bíblia Sagrada: p. 64 – 65; Jr 5-6: Bíblia

Sagrada: p. 1038 – 1044).

Page 114: LENICE AMÉLIA DE SÁ MARTINS - sapientia.pucsp.br AMELIA... · Esboço teórico ... mundo espiritual e o temporal. ... paternidade, embora ele e sua esposa Isabel, que era estéril,

114

e) Anúncio de fatos futuros, como o fim da Primeira Guerra Mundial (1914 –

1918); implantação do Comunismo (1918); deflagração da Segunda

Guerra Mundial (1939 – 1945); perseguição aos cristãos; sofrimento do

Papa, principalmente Bento XV (1914 – 1922) e Pio XII (1939 – 1958) que

conviveram com o flagelo da primeira e segunda guerra mundial,

respectivamente; a consagração da Rússia ao Imaculado Coração de

Maria, efetuada pelo papa João Paulo II, em 1984; a queda do bloco

soviético, em 1989.

f) A reparação dos pecados por meio da recepção de Jesus na Eucaristia.

A visão do inferno e o relato dos fatos futuros constituem as duas primeiras

partes do chamado Segredo de Fátima redigidos pela Irmã Lúcia em 1941.

Quanto às tribulações que a Igreja teria de sofrer, na pessoa do Papa, de

todo o clero, dos religiosos e dos fiéis, em geral, temos delas uma imagem em

Cechinato (1996, p. 410;414;415)

Durante os anos de conflito o Papa não saiu de Roma. Ele teve a tristeza de ver destruído o antiqüíssimo Mosteiro de Monte Cassino (...) Mais do que os edifícios bombardeados, era a Igreja que se encontrava danificada (...): templos destruídos, mosteiros e seminários fechados, padres dispersos, famílias sem casas, crianças órfãs (...) gente desajustada, pastoral desorientada (...). Houve muitos mártires. Líderes da Igreja foram duramente perseguidos (...)

Na referência, percebemos ainda que Francisco, embora “visse” a Bela

Senhora, não a ouvia. Do contrário não teria sentido a permissão para revelar-lhe o

que para o mundo ainda era segredo:

(4.5) Isso não o digais a ninguém. Ao Francisco, sim, podeis dizê-lo.

Nesta terceira fase desse processo enunciativo, o protagonista celeste marca-

se lingüisticamente com cinco elementos que exprimem emissão: meu, eu, virei pedir, meus, me.

Quanto à dimensão receptora, na esfera temporal, o sujeito está indicado

pelas desinências verbais: vistes, virdes, sabei, digais, podeis dizê-lo e pelo

dêitico pronominal vós.

Em se tratando das marcas do delocutário, elas são constituídas pelos

lexemas: pecadores, Deus, Imaculado Coração, almas, guerra, Pio X, Santo

Page 115: LENICE AMÉLIA DE SÁ MARTINS - sapientia.pucsp.br AMELIA... · Esboço teórico ... mundo espiritual e o temporal. ... paternidade, embora ele e sua esposa Isabel, que era estéril,

115

Padre, Rússia, Imaculado Coração, Igreja, várias nações, Portugal, Francisco, comunhão reparadora e pelos dêiticos pronominais: as, outra, seus, se, a, meu, meus, ninguém, seu, isto, lo e verbais: salvar-se-ão, vai acabar, deixarem de ofender, etc.

É nesta terceira “aparição” que é ensinada a jaculatória hoje repetida em cada

mistério do terço por aqueles que o rezam:

(4.6) Quando rezardes o terço, dizei depois de cada mistério: “ó meu Jesus,

perdoai-nos, livrai-nos do fogo do inferno, levai as almas todas para o

céu, principalmente aquelas que mais precisarem”.

No que diz respeito às funções da linguagem, percebemos uma equivalência

entre a função conativa e a expressiva. A primeira, atestam-na o desiderativo querer (quero que venham aqui no dia 13 de mês que vem (...) e a forma imperativa

(continuem a vir (...); Sacrificai-vos (...); Isto não o digais a ninguém) que exprimem

autoridade, ordem, como ainda os pronomes: vossemecê, vos, vosso e

desinências verbais: sacrificai, vistes, perdoai, levai que comprovam a

centralização da linguagem no receptor.

A função expressiva, tanto na voz do sujeito celeste quanto na do sujeito da

esfera temporal, recebe as seguintes marcas:

a) formas pronominais (eu, me, meu, meus – sujeito celeste; me, nos –

sujeito terrestre) e verbais (direi, sou, quero, farei, virei – sujeito celeste;

vimos – sujeito terrestre) que exprimem uma linguagem centrada no

emissor;

b) nomes e expressões que denunciam emotividade e julgamento do locutor:

grande mar de fogo, brasas transparentes, gritos, gemidos, dor, desespero, pavor, formas horríveis e asquerosas, pobres pecadores, guerra, fome, etc.

Mas além dessas duas funções predominantes, notamos também a presença

da função referencial, especialmente nos discursos de caráter descritivo (descrição

do inferno) e narrativo (elevação ao céu do protagonista do mundo espiritual). Esta

última função está assinalada pelos pronomes (ela, lhes, eles, etc) e flexões verbais

Page 116: LENICE AMÉLIA DE SÁ MARTINS - sapientia.pucsp.br AMELIA... · Esboço teórico ... mundo espiritual e o temporal. ... paternidade, embora ele e sua esposa Isabel, que era estéril,

116

(abriu, flutuavam, terão, etc) que apontam para o sujeito ausente, o que está à

margem da interlocução, na visão de Benveniste, já mencionado.

No foro da intertextualidade, outras vozes se imiscuem no discurso, além

daquelas inscritas na atividade interlocutória:

a) Ao referir-se a si mesma sob o título de Nossa Senhora do Rosário como

aquela que poderá trazer a paz ao mundo, a personagem celeste introduz-

nos na doutrina católica, segundo a qual a Virgem Maria, depois de Jesus,

ocupa o primeiro lugar na economia da graça, como apregoa a Lumen

Gentiun (2003: p. 126.127):

A Maternidade de Maria, na economia da graça perdura sem cessar (...) De fato, depois de elevada ao céu, não abandonou esta missão salutar, mas pela sua múltipla intercessão, continua a obter-nos os dons da salvação eterna. Com seu amor de mãe, cuida dos irmãos de seu Filho que ainda peregrinam e se debatem entre perigos e angústias, até que sejam conduzidos à Pátria Feliz. (...)

b) A visão do inferno remete-nos a diversos textos bíblicos e ao magistério da

Igreja.

- Mt 13,41.42

O Filho do Homem enviará seus anjos que retirarão do seu reino todos os que

fazem o mal e os lancará na fornalha ardente, onde haverá choro e ranger de

dentes, (Bíblia Sagrada: p. 1300)

- Mt 25,41

Voltar-se-á em seguida para os da sua esquerda e lhes dirá: retirai-vos de

mim malditos! Ide para o fogo eterno destinado ao demônio e ao seus anjos.

(Bíblia Sagrada, p. 1316)

- Ap 21,8

Os tíbios, os infiéis, os depravados, os homicidas, os impuros, os malfeitores,

os idólatras e todos os mentirosos terão como quinhão o tanque ardente de

fogo e enxofre, a segunda morte. (Bíblia Sagrada, p. 1575)

- Catecismo da Igreja Católica (1993: p. 249):

As almas dos que morrem em estado de pecado mortal descem

imediatamente depois da morte aos infernos, onde sofrem as penas do

Page 117: LENICE AMÉLIA DE SÁ MARTINS - sapientia.pucsp.br AMELIA... · Esboço teórico ... mundo espiritual e o temporal. ... paternidade, embora ele e sua esposa Isabel, que era estéril,

117

inferno “o fogo eterno”. A pena principal do inferno consiste na separação

eterna de Deus, o Único em que o homem pode ter a vida e a felicidade para

as quais foi criado e as quais aspira.

c) A oração que, a partir do episódio de Fátima, é repetida por todos os

católicos, na recitação do terço:

Ó meu Jesus, perdoai-nos, livrai-nos do fogo do inferno, levai as almas todas

para o céu e socorrei principalmente as que mais precisarem,

aponta para as palavras que cada sacerdote, na missa, fazendo eco a João

Batista (Jo 1, 29b – Bíblia Sagrada, p. 1385), pronuncia antes da Sagrada

Comunhão: Eis o Cordeiro de Deus: Eis aquele que tira o pecado do mundo.

Esse imbricamento de vozes comprova a observação de Orlandi (1986, p.

115) de que todo discurso é um “continuum” que nasce em um discurso precedente

e aponta para um futuro.

Quanto aos atores das cenas “desenroladas” neste misterioso teatro, como já

foi observado, eles preenchem múltiplas posições. Os protagonistas tanto o da

esfera espiritual quanto o da temporal ocupam lugar na interlocução e na referência.

No primeiro nível, ora como locutor L, ora como locutor LP, ora como LC, ora como

variados enunciadores; ou ainda como alocutário AL, alocutário ALP, ALC, e, no

segundo, como sui-referenciador.

Page 118: LENICE AMÉLIA DE SÁ MARTINS - sapientia.pucsp.br AMELIA... · Esboço teórico ... mundo espiritual e o temporal. ... paternidade, embora ele e sua esposa Isabel, que era estéril,

O diagrama, abaixo, resume configuracionalmente esse jogo interlocutório:

P R O C E S S O I N T E R L O C U T Ó R I O L O C U T O R A L O C U T Á R I O

“VM” LÚCIA VD “VM” LÚCIA VD

LL LP LL LP LC AL ALP AL ALP ALC

D E L O C U T Á R I O

DV DCL DIF DP DC DI DE

Deus Jesus Imaculado Pecadores PAPAS POVOS FRANCISCO IGREJA

Pai Eucarístico Coração de Maria (sui-referente)

FIGURA 5 – Processo interlocutório no discurso da Terceira Aparição de Fátima.

As mensagens das três últimas “aparições” (agosto, setembro e outubro) não

serão analisadas, pois conforme enunciado no início deste capítulo, nem todos os

textos referentes às “aparições” integralizam o “corpus”. No entanto, elas figurarão

também nos anexos deste trabalho.

O “encontro” do mês de agosto não ocorreu no dia 13 como estava

determinado, nem tão pouco na Cova da Iria como os demais. O palco onde esta

cena foi desenrolada foi Valinhos, uma propriedade de um dos tios das crianças.

Quanto à data, não sabemos se foi o dia 15 ou 19, pois a própria Lúcia não se

lembrava dela com exatidão. Essa alteração de dia e local deveu-se à prisão que

sofreram os três “videntes” operada pelo administrador de Ourém, exatamente no

dia 13 do mês em questão, conforme Machado (1983, p. 51-54).

No último “encontro”, 13 de outubro, a Bela Senhora denominou-se Nossa

Senhora do Rosário e realizou o milagre prometido: o sol girou sobre si mesmo com

grande velocidade e seus raios refletiram-se em multicores nas pessoas e nas

118

Page 119: LENICE AMÉLIA DE SÁ MARTINS - sapientia.pucsp.br AMELIA... · Esboço teórico ... mundo espiritual e o temporal. ... paternidade, embora ele e sua esposa Isabel, que era estéril,

119

árvores, provocando espanto e medo numa multidão de mais ou menos setenta mil

pessoas. (cf Machado, 1983, p. 54 – 58).

As atividades aqui consideradas se desenvolveram por meio de um jogo

interacional que abrange instâncias de natureza diferente – temporal e espiritual,

envolvendo vozes resultantes dos diferentes papéis discursivos, exercidos pelos

atores do ato enunciativo e pela instância referida e ainda vozes tomadas a outros

discursos que foram incorporados ao discurso central. Todas essas vozes, porém,

entrelaçadas formam um concerto maestrado por alguém que, segundo o

testemunho da Ir. Lúcia, é a própria mãe de Jesus, o Deus que se fez Homem (de

acordo com o cristianismo).

Page 120: LENICE AMÉLIA DE SÁ MARTINS - sapientia.pucsp.br AMELIA... · Esboço teórico ... mundo espiritual e o temporal. ... paternidade, embora ele e sua esposa Isabel, que era estéril,

C A P Í T U L O 4

CRUZAMENTO VOCAL NOS DISCURSOS DE ANGÜERA, ITAPERUNA E JACAREÍ

120

Page 121: LENICE AMÉLIA DE SÁ MARTINS - sapientia.pucsp.br AMELIA... · Esboço teórico ... mundo espiritual e o temporal. ... paternidade, embora ele e sua esposa Isabel, que era estéril,

121

4.1. Multiplicidade Vocal nas Mensagens de Angüera

Terminada a análise dos textos referentes às três primeiras “aparições” da

Virgem Maria em Fátima (Portugal), debruçar-nos-emos sobre alguns que dizem

respeito a determinadas “vidências” processadas em terras brasileiras: Angüera

(Feira de Santana-Bahia); Itaperuna (Rio de Janeiro); e Jacareí (São Paulo).

Conforme já enunciado, as mensagens de Angüera intituladas Apelos Urgentes de Nossa Senhora Rainha da Paz em Angüera na Bahia serão as

primeiras contempladas.

Os fenômenos que ocorrem naquele município baiano, tiveram início no dia

29 de setembro de 1987. O jovem Pedro, que havia completado 18 anos, no dia 29

de julho, voltava do colégio onde fazia o curso de magistério, quando foi acometido

de um desmaio, caindo sobre um formigueiro. Enquanto um colega que o

acompanhava foi comunicar o incidente aos pais do jovem, na Fazenda Malhada

(onde residem), segundo o próprio Pedro, uma moça vestida de branco tomou-o

pela mão, dizendo: Vou tirar-te das formigas.

Ao chegarem ao local, os pais do jovem Pedro encontraram-no deitado à

porta da escola Capitão Domingos Marques, tendo, a seu lado, os livros que trazia

consigo. Conduzido para casa, ao recobrar os sentidos, perguntou pela Irmã que o

havia socorrido, pois julgava ter sido assistido por uma freira da cidade de Feira de

Santana.

No dia seguinte, Pedro foi submetido a exames de ordem neurológica,

psiquiátrica e cardiológica que não acusaram qualquer distúrbio de ordem mental ou

psicológica.

Dois dias depois (1º de outubro), conversando com duas de suas irmãs em

um dos quartos de sua casa, Pedro sofreu novamente a síncope. Passado o

desmaio, disse que a jovem que o livrara das formigas encontrava-se ali, e

solicitava-lhe que rezasse o terço com sua família. Depois, segundo ele, prometendo

voltar, desapareceu.

Por volta das 18h00 do dia 03 do mesmo mês, quando rezava o terço junto

com a família, Pedro “ouviu” alguém chamá-lo no exterior da casa. Reconhecendo a

voz da “moça” que o visitara, saiu e “deslumbrou”, à distância de uns cinqüenta

Page 122: LENICE AMÉLIA DE SÁ MARTINS - sapientia.pucsp.br AMELIA... · Esboço teórico ... mundo espiritual e o temporal. ... paternidade, embora ele e sua esposa Isabel, que era estéril,

122

metros, uma intensa luz em forma de arco. Dirigindo-se a esse local, seguido da

mãe e das irmãs (elas julgavam que ele estava louco), parou diante da luz e

ajoelhou-se repentinamente. É que envolta nesta luz, “via” a mesma jovem que lhe

aparecera anteriormente. Disse-lhe ela: - Não tenhas medo, eu sou a mãe de Jesus.

Estou aqui para ajudar os meus pobres filhos que precisam do meu auxilio.

Ditas essas palavras, sumiu inesperadamente.

Daí por diante, as “aparições” acontecem toda semana, sempre às 21h00. A

principio, somente aos sábados, mas depois, passaram a ocorrer também às terças-

feiras.

Por determinação da “visitante”, foi erguida uma cruz numa pequena elevação

junto à fonte. E é precisamente nessa elevação que ela se apresenta ao “vidente”.

Segundo Pedro, a personagem celeste manifesta-se na forma de uma jovem

de 20 anos. Seus olhos são azuis, os cabelos pretos. Quanto à cor da pele, ele não

sabe definir, pois diz jamais ter visto, na terra, algo parecido. Traja-se quase sempre

de branco e, às vezes, porta um manto azul. Não usa calçados.

É uma mulher de extrema beleza!

Paira sempre a uns 30 metros do chão, cingida por uma luz de intenso brilho.

Olha para todos, mas, às vezes, fixa o olhar em determinadas pessoas. Fala o

português culto padrão. Abençoa os peregrinos e seus objetos (terços, água,

imagens, etc).

As mensagens são escritas pelo “vidente”, em folhas de papel oficio presas

numa prancheta, durante a locução e lidas por ele mesmo, logo após o

desaparecimento da personagem.

Alguns fenômenos costumam ocorrer, antes do ocaso solar, nos dias da

“celeste visitação”, como por exemplo: o sol realiza um movimento ora de pulsação,

ora de rotação e toma a forma de objetos sacros (cálice, âmbola, hóstia, etc).

Atualmente, Pedro Regis está casado e tem uma filha. Próximo à fonte onde

acontece a “mística visão”, foi erguida uma igreja com a colaboração dos crentes

que, de toda a nação brasileira, acorrem a Angüera todas as semanas,

especialmente aos sábados.

Page 123: LENICE AMÉLIA DE SÁ MARTINS - sapientia.pucsp.br AMELIA... · Esboço teórico ... mundo espiritual e o temporal. ... paternidade, embora ele e sua esposa Isabel, que era estéril,

123

Muitas conversões e curas consideradas milagrosas têm acontecido naquele

espaço da Bahia. Algumas delas serão apresentadas, no final deste trabalho.

Quanto às autoridades eclesiásticas, essas permanecem em silêncio no

tocante aos fatos de Angüera. Embora inúmeros sacerdotes tenham visitado o local

e até celebrado a Santa Missa, o Bispo Diocesano e a Cúria ainda não se

manifestaram sobre o assunto. Esta prudência é a atitude habitual da Igreja, quando

se trata de “revelações particulares” (cf. Apelos Urgentes de Nossa Senhora Rainha da Paz em Angüera na Bahia, 1993).

Feita essa breve introdução sobre as “aparições” de Angüera, aplicar-nos-

emos à análise do discurso de duas de suas mensagens. Selecionamos aquelas que

apresentam maior evidência em intertextualidade bíblica e eclesial e também com as

proferidas em Fátima (que integram esse “corpus”) e em Medjugorje. Essas últimas,

não obstante serem em língua croata, consideramos indispensável mostrá-las, no

espaço do intertexto, pela estreita relação que existe entre elas e aquelas da

Fazenda Malhada (Angüera).

A estrutura discursiva dos textos de Angüera difere dos de Fátima. Enquanto

nos últimos existe uma ação dialógica, nos primeiros ela se processa sem

alternância de turnos, uma vez que o “vidente” não assume turno, ou seja, ele não

se apossa da fala.

Os discursos produzidos pelo protagonista celeste, na Fazenda Malhada, têm

início e final com um mínimo de variabilidade. São, em geral, introduzidos pelo

epíteto vocativo: Queridos filhos e finalizados com a indicação da fonte das

mensagens (a Santíssima Trindade) seguida de agradecimento, da bênção aos

presentes e da expressão do desejo de paz; como por exemplo esta mensagem de

nº 313 (14/07/90):

Queridos filhos, sou a mãe do Belo Amor (...) Esta é a mensagem que hoje vos transmito em nome da Santíssima Trindade. Obrigada por me terdes permitido reunir-vos aqui por mais uma vez. Eu vos abençôo em Nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo. Amém. Ficai em paz.

Page 124: LENICE AMÉLIA DE SÁ MARTINS - sapientia.pucsp.br AMELIA... · Esboço teórico ... mundo espiritual e o temporal. ... paternidade, embora ele e sua esposa Isabel, que era estéril,

124

4.1.1. Mensagem nº 1

Iniciaremos este estudo com o primeiro texto, dentre aqueles que integram a

longa série dos publicados em livros, que é exatamente um dos que fogem ao

padrão introdutório e conclusivo de cada ação dialógica – o do dia 10 de outubro de

1987 (nº 1)

(5) Sou a rainha da paz e quero que todos os meus filhos estejam ao meu

lado, para vencermos um grande mal que pode abater-se sobre o mundo.

Mas para que esse mal não aconteça, deveis rezar e ter fé. Meus filhos,

desejo a conversão de todos, o mais rápido possível. O mundo corre

grandes perigos e, para livrar-vos desses perigos, deveis rezar,

converter-vos e crer na palavra do Criador, pois rezando, encontrareis a

paz para o mundo. Meus filhos, muitos de vós vão à Igreja, mas não vão

de coração limpo, vão sem fé. Muitos vão apenas para mostrar-se

católicos e estão em grave erro. Deveis seguir um só caminho: o da

verdade. Há filhos que não aprenderam a perdoar, mas deveis perdoar o

vosso próximo. A inimizade é obra de Satanás, e ele sente-se feliz

quando consegue separar um irmão do outro.Por isso, peço de todo o

meu coração que arde em chamas: convertei-vos, rezai e aprendei a

amar o vosso próximo.

As marcas da recepção (os dêiticos pronominais e verbais: vós, vos; deveis rezar, deveis seguir e o vocativo meus filhos) atestam que estamos perante uma

ação interlocutória. O sujeito falante introduz-se no discurso, na qualidade de

locutor L com a auto-identificação – Eu sou a Rainha da Paz, instalando

simultaneamente, o seu parceiro na função de alocutário AL. Esse sujeito ouvinte,

porém, não é apenas aquele que recebe “fisicamente” a mensagem, mas todos os

filhos, ou seja, os católicos (e quero que todos os meus filhos estejam ao meu lado),

entidade essa identificável pela expressão vocativa: Meus filhos (Meus filhos,

desejo a conversão de todos o mais rápido possível).

Ao transpor o limiar da enunciação, o locutor L transfigura-se em locutor LP,

pois se apresenta revestido de volitividade e de ternura maternal (...quero que todos

os meus filhos estejam ao meu lado)I.

Page 125: LENICE AMÉLIA DE SÁ MARTINS - sapientia.pucsp.br AMELIA... · Esboço teórico ... mundo espiritual e o temporal. ... paternidade, embora ele e sua esposa Isabel, que era estéril,

125

Além disso, a presença do operador argumentativo mas, equivalente a e

(mas para que esse mal não aconteça (...)), denuncia um outro locutor (cf.

Nascimento, 1990, p 87), ou seja, o locutor LP, que é mãe e deseja que os filhos

sejam crentes, orantes e se convertam, a fim de que possam livrar-se dos perigos

que ameaçam o mundo. Ao convocar, porém, os cristãos (os filhos) para a luta

contra o mal, o protagonista da esfera celeste assume o discurso coletivamente (...

para vencermos o mal), configurando-se, portanto, como locutor coletivo LC.

O sujeito ouvinte, por sua vez, além de alocutário AL é instalado como

alocutário ALP (pessoa no mundo), pois ele:

a) não tem coração limpo, é fingido, é descrente, não perdoa.

b) mas precisa converter-se, crer, rezar, perdoar, ser autêntico e amar.

E esse sujeito ouvinte são todos os filhos, ou seja, os católicos. Logo, um

alocutário coletivo ALC.

(5.1) Meus filhos, muitos de vós vão à Igreja, mas não vão de coração limpo,

vão sem fé (...). Há filhos que não aprenderam a perdoar, mas vós

deveis perdoar o vosso próximo

No tocante à referência, temos delocutários diversificados:

a) delocutário divino - DV: Deus Pai e Deus Filho

b) delocutário humano - DH: os cristãos

c) delocutário satânico - DST: satanás

Os sinais da emissão são constituídos pela flexão verbal (sou, quero, vencermos, etc) e pelo possessivo (meus); na recepção, as marcas são: os

morfemas verbais (deveis, encontrareis, convertei, etc), os dêiticos pessoais (vós,

vos) e possessivo (vosso) e o vocativo (meus filhos).

Já o delocutário, está assinalado:

a) pelos lexemas:

(5.2) Criador: O mundo corre grandes perigos e, para livrar-vos desses

perigos, deveis rezar, converter-vos e crer na palavra do Criador.

Page 126: LENICE AMÉLIA DE SÁ MARTINS - sapientia.pucsp.br AMELIA... · Esboço teórico ... mundo espiritual e o temporal. ... paternidade, embora ele e sua esposa Isabel, que era estéril,

126

(5.3) Verdade: Deveis seguir um só caminho; o da Verdade.

(5.4) Próximo: Há filhos que não aprenderam a perdoar, mas deveis perdoar

o vosso próximo.

(5.5) Satanás / irmão: A inimizade é obra de satanás e ele sente-se feliz

quando separa um irmão do outro.

b) pelos pronomes pessoais ele, se, outro (5.5) Quanto às funções de linguagem, a predominância é da conativa, embora a

expressiva esteja também evidente, identificada pelos pronomes e flexão verbal de

1ª pessoa (meus, meu, sou, quero, etc,) e pelos signos que exprimem emotividade,

especialmente, os que figuram na primeira parte do enunciado: Por isso, peço-vos

de todo o meu coração que arde em chamas.

A centralização da linguagem no “tu” se manifesta pela expressão vocativa

(meus filhos), pelos dêiticos verbais (deveis, rezai, etc) e pronominais (vós, vos -

pessoais; vosso - possessivo) de 2ª pessoa.

(5.6) Meus filhos, muitos de vós vão à Igreja, mas não vão de coração limpo,

vão sem fé(...). Convertei-vos, rezai e aprendei a perdoar o vosso

próximo

e, principalmente, pelo emprego do imperativo cuja idéia de cominação é

intensificada pelo verbo “dever” que aparece quatro vezes:

(5.7) Mas para que esse mal não aconteça, deveis rezar e ter fé (...). O

mundo corre grandes perigos e, para livrar-vos desses perigos, deveis

rezar, converter-vos e crer na palavra do Criador (...). Deveis seguir um

só caminho: o da Verdade. Há filhos que não sabem perdoar, mas vós

deveis perdoar o vosso próximo (grifo nosso).

Outro fato discursivo que merece ser apontado é o valor performativo de

verbos que, enunciados na 1ª pessoa do singular, realizam a ação que exprimem,

conforme Austin (1990, p 85 - 86) citado anteriormente:

(5.8) Quero que todos os meus filhos estejam ao meu lado (...);

(5.9) ... desejo a conversão de todos o mais rápido possível (...);

(5.10) ... peço de todo o meu coração que arde em chamas (...).

Page 127: LENICE AMÉLIA DE SÁ MARTINS - sapientia.pucsp.br AMELIA... · Esboço teórico ... mundo espiritual e o temporal. ... paternidade, embora ele e sua esposa Isabel, que era estéril,

127

Assim sendo, o querer, o desejar e o pedir são atos que se tornam efetivos,

no momento de sua emissão.

No que concerne ao uso da linguagem, são perceptíveis as marcas do dialeto

culto padrão,

a) na concordância (verbal e nominal):

(5.11) Sou a Rainha da Paz e quero que todos os meus filhos estejam ao

meu lado, para vencermos um grande mal que pode abater-se sobre

o mundo.

(5.12) Convertei-vos, rezai e aprendei a perdoar o vosso próximo.

(5.13) Há filhos que não aprenderam a perdoar (...)

(5.14) Meus filhos, muitos de vós vão à Igreja, mas não vão de coração

limpo, vão sem fé.

b) Na colocação dos pronomes átonos “se” e “vos” enclíticos, (pode abater-se;

para livrar-vos;), (sente-se feliz; convertei-vos).

Além disso, embora se trate de uma interação face a face, pois consoante o

“vidente”, ele escreve o que ouve durante o processamento da locução, o texto tem

características de língua escrita, ou seja, não apresenta reiterações, digressões,

paráfrases, etc como acontece com freqüência na estruturação do texto oral (cf.

Fávero 2003, p, 89-95).

No tocante à polifonia, no espaço da intertextualidade, são diversas as vozes

que se introduzem no discurso.

O epíteto “Rainha da Paz” remete às “aparições” de Medjugorje, onde a

personagem celeste se identifica como Rainha da Paz, conforme o excerto abaixo:

Numa das aparições, algum tempo depois, os videntes perguntavam a Nossa

Senhora qual era o seu nome particular, quer dizer, naquelas circunstâncias,

como gostaria de ser chamada:

- “Eu sou a Rainha da Paz. O meu desejo é que se celebre a festa da paz, no

dia 25 de junho”. (Rainha da Paz: Medjugorje: Dez anos de Aparições,

1991, p. 6)

Page 128: LENICE AMÉLIA DE SÁ MARTINS - sapientia.pucsp.br AMELIA... · Esboço teórico ... mundo espiritual e o temporal. ... paternidade, embora ele e sua esposa Isabel, que era estéril,

128

A referência ao “coração que arde em chamas” lembra o título de um livreto:

Chama de Amor do Imaculado Coração de Maria como também uma das orações

que ele contém:

Mãe de Deus, derramai sobre a humanidade inteira as graças eficazes da

vossa chama de amor, agora e na hora da nossa morte. Amém.

Ressoam também, na enunciação, vozes provindas da Sagrada Escritura.

a) O apelo à conversão e à oração alude a:

- Eclo 17,21-22

Converte-te ao Senhor, abandona os teus pecados. Ora diante dele e diminui

as ocasiões de pecado; volta para o Senhor, afasta-te de tua injustiça e

detesta o que causa horror a Deus (Bíblia Sagrada, p 886).

- Os 14, 1

Volta Israel, ao Senhor teu Deus, porque foi teu pecado que te fez cair (Bíblia Sagrada, p. 1224).

- Mt 3,1-2;4,17

Naqueles dias, apareceu João Batista, pregando no deserto da Judéia. Dizia

ele: Fazei penitência porque está próximo o reino dos céus

Desde então, Jesus começou a pregar: fazei penitência, pois o reino dos céus

está próximo (Bíblia Sagrada, p 1286 e 1287).

A exortação para que se busque só o caminho da verdade remete a:

- Jo 8, 31- 32; 14, 5-6

E Jesus dizia aos judeus que nele creram: se permanecerdes na minha

palavra, sereis meus verdadeiros discípulos, conhecereis a verdade e a

verdade vos libertará.

- Disse-lhe Tomé: Senhor, não sabemos para onde vais. Como podemos

conhecer o caminho? Jesus lhe respondeu: Eu sou o caminho a verdade e a

vida; ninguém vem ao Pai senão por mim. (Bíblia Sagrada: p 1396. 1404.

1405).

Page 129: LENICE AMÉLIA DE SÁ MARTINS - sapientia.pucsp.br AMELIA... · Esboço teórico ... mundo espiritual e o temporal. ... paternidade, embora ele e sua esposa Isabel, que era estéril,

129

A intertextualidade mais evidente, porém, ocorre com as mensagens de

Medjugorje, tanto no tocante à penitencia e ao perdão quanto no que diz respeito

aos perigos que ameaçam a humanidade, conforme podemos perceber no discurso

do dia 25 de junho de 1981 (2ª mensagem):

Paz, paz, paz! Reconciliem-se. O mundo está à beira de uma catástrofe. Se quiser a salvação, deve recuperar a paz, mas a paz tê- la-ão os homens, se se voltarem para Deus (...). Convertam-se! A paz só virá com a conversão. Eis o caminho: comecem a rezar e a jejuar. (Cf. Rainha da Paz – Medjugorje: Dez anos de Aparições, p 6. 7).

Do âmago da enunciação, portanto, emergem as vozes do Eclesiástico, do

profeta Oséias, de João Batista, dos apóstolos Mateus e João e a do próprio Jesus

que se entrelaçam, no cruzamento, de uma outra que se identifica como

“Mensageira da Paz”, tanto na língua croata (Medjugorje) quanto no português

brasileiro (Angüera – Bahia).

Na heterogeneidade “stricto sensu” os sujeitos desempenham as seguintes

funções discursivas:

a) Na emissão: locutor L, locutor LP e locutor LC

b) Na recepção: alocutário AL, alocutário ALP, alocutário ALC.

c) Na referência: delocutário divino DV, delocutário humano DH e delocutário

satânico DST.

Nesta cena discursiva não existe a presença do enunciador e,

consequentemente, do destinatário. A ausência desses sujeitos deve-se ao fato de o

falante usar o discurso em seu próprio nome e não no nome de outro.

Page 130: LENICE AMÉLIA DE SÁ MARTINS - sapientia.pucsp.br AMELIA... · Esboço teórico ... mundo espiritual e o temporal. ... paternidade, embora ele e sua esposa Isabel, que era estéril,

A heterogeneidade vocal, aqui examinada apresenta-se configurada no

esquema seguinte.

P R O C E S S O E N U N C I A T I V O

L O C U T O R A L O C U T Á R I O

130

Rainha da Paz Católicos

LL LP LC AL ALP ALC

D E L O C U T Á R I O

DV DH DST

FIGURA 6 – Cruzamento vocal no processo enunciativo do primeiro discurso de Angüera.

4.1.2 Mensagem nº 62

A segunda mensagem de Angüera selecionada para análise é a de nº 68, do

dia 04 de janeiro do ano 2000 – terça feira:

(6) Queridos filhos, fazei a vontade de Deus em cada momento de vossa

existência. Esforçai-vos para que a vossa vida aqui na Terra seja de

contínuos encontros com Jesus. Podeis encontrá-lo no vosso dia-a-dia

na Eucaristia em Corpo, Sangue, Alma e Divindade; na Sagrada

Escritura como palavra de Deus; nos seus ministros como Mestre,

Sacerdote e Pastor e no próximo que encontrais no vosso dia-a-dia.

Deixai que os vossos corações se encham de amor, pois somente assim

a humanidade poderá encontrar o caminho da salvação. Rezai muito

para poderdes aceitar a vontade de Deus. Tende coragem, fé e

esperança. Esta é a mensagem que hoje vos transmito em Nome da

Page 131: LENICE AMÉLIA DE SÁ MARTINS - sapientia.pucsp.br AMELIA... · Esboço teórico ... mundo espiritual e o temporal. ... paternidade, embora ele e sua esposa Isabel, que era estéril,

131

Santíssima Trindade. Obrigada por me terdes permitido reunir-vos aqui

por mais uma vez. Eu vos abençoo em Nome do Pai, do Filho e do

Espírito Santo. Ficai em paz.

Inaugurando esta instância enunciativa, o sujeito assume a função de locutor

e instala os cristãos católicos como alocutários, instando-os a portarem-se sempre

de conformidade com o querer divino:

(6.1) Queridos filhos, fazei a vontade de Deus em cada momento de vossa

existência.

Discurso centrado no receptor, desde seu prólogo, traz linearmente a marca

da enunciação religiosa que tem, como uma de suas características, a

irreversibilidade. No dizer de Orlandi (1983, p. 22 – 24), o discurso religioso é do tipo

monossêmico ou autoritário, pois, nele, o grau de reversibilidade tende a anular-se,

o que o distingue do polêmico em que há equilibro entre monossemia e polissemia e

do lúdico cujo predomínio é da polissemia. Trata-se de um discurso persuasivo que,

de acordo com Citelli (1995, p 32), está revestido de uma força capaz de convencer

o ouvinte e mudar-lhe comportamentos já estabelecidos.

Convém, porém, esclarecer que a autoridade do discurso religioso não

significa autoritarismo. Neste (autoritarismo), a obediência é imposta e, por

conseguinte, a liberdade do interlocutor não é respeitada. No discurso religioso, a

inquestionabilidade provém do fato de ser ele o eco de Deus de quem o locutor é

apenas porta-voz, como assevera o mesmo Citelli (op. Cit: p.48):

Uma das formações discursivas mais explicitamente persuasivas é a religiosa: aqui o paroxismo autoritário chega a tal grau de requinte que o enunciador não pode ser questionado (...). A voz de Deus plasmará todas as outras vozes, inclusive a daquele que fala em seu nome (...)

Ora, se de acordo com esse autor, todo sujeito do discurso religioso fala do

lugar de Deus, o que dizer então, quando esse lugar é ocupado, numa visão de fé,

por um locutor da esfera espiritual? Neste caso, podemos afirmar que sua voz é

altamente autorizada, já que ela vem de cima, conforme atesta a Sagrada Escritura

em Jo 3, 31 -34:

Aquele que vem de cima é superior a todos. Aquele que vem da terra é terreno e fala de coisas terrenas. Aquele que vem do céu é superior a todos. Ele testemunha as coisas que viu e ouviu (...)

Page 132: LENICE AMÉLIA DE SÁ MARTINS - sapientia.pucsp.br AMELIA... · Esboço teórico ... mundo espiritual e o temporal. ... paternidade, embora ele e sua esposa Isabel, que era estéril,

132

Aquele que recebe o seu testemunho confirma que Deus é verdadeiro. Com efeito, aquele que Deus enviou fala a linguagem de Deus porque ele concede o Espírito sem medidas. (Bíblia Sagrada, p. 1387)

É o discurso da competência: intransferível e inquestionável como apregoa

Chauí (1980, p. 7).

A centralização do discurso no “tu” está bem perceptível nas marcas

lingüísticas dos dois protagonistas. Enquanto o alocutário é dezenove vezes

assinalado e com variados índices:

a) epíteto vocativo (queridos filhos);

b) morfemas verbais (fazei, esforçai, podeis, deixai, etc.)

c) dêiticos pronominais: pessoais (vos) e possessivos (vosso, vossa,

vossos);

d) largo emprego de imperativos (fazei, rezai, tende, deixai, etc),

o locutor marca-se apenas quatro vezes, no final do discurso, por meio de

duas flexões verbais (transmito, abençoo) e de dois pronomes (me, eu) que

exprimem o “eu”. Tal procedimento constitui evidência do predomínio de uma

linguagem conativa, ou seja, de um discurso persuasivo ou autoritário.

Quanto à dimensão enunciva, figura nela um duplo delocutário divino – (DV)

Jesus e a Santíssima Trindade – e um humano coletivo (DHC) – a humanidade. O

delocutário Jesus, por ter presença multifacetada, apresenta-se numa multiplicidade

de sujeitos:

a) Delocutário Eucarístico (DET), cuja presença em forma de Pão e de Vinho

pode ser não só adorada, mas ainda tomada como alimento, de acordo

com

• as palavras do próprio Jesus:

Eu sou o Pão vivo que desci do céu (...). A minha carne é

verdadeiramente uma comida e o meu sangue verdadeiramente uma

bebida. Quem come a minha carne e bebe o meu sangue permanece em

mim e eu nele. Jo 6,51.55-56 – Bíblia Sagrada, p. 1392),

Page 133: LENICE AMÉLIA DE SÁ MARTINS - sapientia.pucsp.br AMELIA... · Esboço teórico ... mundo espiritual e o temporal. ... paternidade, embora ele e sua esposa Isabel, que era estéril,

133

• o magistério da Igreja, codificado no catecismo:

- No Santíssimo Sacramento da Eucaristia estão contidas verdadeiramente

e substancialmente o Corpo e Sangue juntamente com a alma e a

divindade de Nosso Senhor Jesus Cristo e, por conseguinte, o Cristo todo

(Catecismo da Igreja Católica, 1993, p. 339)

- Na liturgia da Missa, exprimimos nossa fé na presença real de Cristo

sob as espécies de pão e de vinh;, entre outras coisas, dobramos os

joelhos ou inclinamo-nos profundamente em sinal de adoração ao

Senhor. (Catecismo da Igreja Católica, p. 330)

• e diversos cânticos, como por exemplo:

- Glória a Jesus na Hóstia Santa que se consagra sobre o altar e aos

nossos olhos se levanta para o Brasil abençoar.

Que o Santo Sacramento que é o próprio Cristo Jesus.

Seja adorado e seja amado nesta Terra de Santa Cruz (...) (Louvemos

o Senhor – 2005, nº 698, p.80)

- Deus de amor, nós te adoramos neste Sacramento, Corpo e Sangue

que fizeste nosso alimento.

És o Deus escondido,vivo e vencedor. A teus pés depositamos todo o

nosso amor. (Louvemos o Senhor – 2005, nº 754, p.86)

b) Delocutário-Palavra (DP) cuja voz que emana da Sagrada Escritura é

atestada por ela própria, conforme:

• - Jo 1,1-2.9-10.14

No principio era o Verbo e o Verbo estava junto de Deus e o Verbo era

Deus. Ele estava no principio junto de Deus(...) e o Verbo era a

verdadeira Luz que, vindo ao mundo, ilumina todo homem. Estava no

mundo e o mundo foi feito por ele, e o mundo não o conheceu (...)

E o verbo se fez carne e habitou entre nós, e vimos a sua glória, a glória

que um Filho único recebe de seu Pai, cheio de graça e de verdade

(Bíblia Sagrada, p. 1384)

Page 134: LENICE AMÉLIA DE SÁ MARTINS - sapientia.pucsp.br AMELIA... · Esboço teórico ... mundo espiritual e o temporal. ... paternidade, embora ele e sua esposa Isabel, que era estéril,

134

• Hb 1, 3a

Muitas vezes e de diversos modos outrora falou Deus aos nossos pais

pelos profetas. Ultimamente nos falou por seu Filho, que constituiu

herdeiro universal, pelo qual criou todas as coisas. Esplendor de sua

glória (de Deus) e imagem do seu ser sustenta o universo com o poder de

sua palavra. (Bíblia Sagrada, p. 1527)

c) Delocutário-ministro (DM), ou seja, presença naqueles que exercem, na

Igreja, a função de ensinar (mestre), de celebrar o culto, administrar os

Sacramentos (Sacerdote) e de pastorear: cuidar do rebanho, dos fiéis

(Pastor), uma vez que eles atuam em nome de Jesus, de acordo com o

dizer do mesmo Cristo em Lc 10,16: Quem vos ouve, a mim ouve; e

quem vos rejeita, a mim rejeita; e quem me rejeita, rejeita aquele que me

enviou (Bíblia Sagrada, p.1361)

Essa tríplice função do Ministro Ordenado (Papa, Bispos e Presbiteros) como

voz do próprio Cristo está consignada no Catecismo da Igreja Católica (1993, p.

366.367):

No serviço eclesial do ministro ordenado é o próprio Cristo que está presente

à sua Igreja enquanto Cabeça de seu corpo, Pastor do seu rebanho, Sumo

Sacerdote do sacrifício redentor, Mestre da Verdade. A Igreja expressa isso

dizendo que o sacerdote, em virtude do sacramento da ordem, age “in

persona Christi Capitis” (na pessoa de Cristo – Cabeça).

d) Delocutário-Irmão (DI) (próximo)

Essa presença de Jesus no próximo é sustentada por ele mesmo,

especialmente em Mt 25, 31-46, ao considerar-se alimentado no faminto,

dessedentado no sedento, vestido no nu, visitado no preso e no enfermo ou não

assistido em tais carências, como também em:

• Jo 17, 22 – 23.

Dei-lhes a glória que me deste, para que sejam um, como nós somos um. Eu

neles e tu em mim, para que sejam perfeitos na unidade, e o mundo

reconheça que me enviaste e os amaste como amaste a mim (Bíblia

Sagrada,: p. 1408),

Page 135: LENICE AMÉLIA DE SÁ MARTINS - sapientia.pucsp.br AMELIA... · Esboço teórico ... mundo espiritual e o temporal. ... paternidade, embora ele e sua esposa Isabel, que era estéril,

135

• At 9, 3-5

Durante a viagem, estando já perto de Damasco, subitamente o cerca uma

luz resplandecente vinda do céu. Caindo por terra, ouviu uma voz que lhe

dizia: “Saulo, Saulo por que me persegues?” Saulo disse: “Quem és,

Senhor?” Respondeu ele: “Eu sou Jesus a quem tu persegues.” (Bíblia

Sagrada, p. 1423)

Como sabemos, Paulo perseguia os seguidores de Jesus e não a ele

propriamente, pois, no episódio da estrada de Damasco, o Mestre de Nazaré já não

se encontrava mais em seu corpo mortal. Portanto, eram seus irmãos que o fanático

fariseu prendia, torturava e assassinava como ocorreu com Estevão (cf. At 7, 58;

8,1).

O outro sujeito divino da referência é a Santíssima Trindade, em nome de

quem é anunciada a mensagem e o povo é abençoado.

Mas além do delocutário divino, existe outro que é o objeto de dizer: aquele

que precisa ser salvo - a humanidade. Esse sujeito que engloba todos os homens

(cristãos e não cristãos), inclusive os fiéis presentes (alocutário) é um delocutário

coletivo (DHC).

Lingüisticamente, esse sujeito da dimensão enunciva está assinalado pelos

lexemas (Jesus, Santíssima Trindade, Pai, Filho, Espírito Santo, humanidade) e

pelos dêiticos pronominais (lo e seus).

É importante ressaltarmos que o signo “Deus”, nessa ação discursiva, não

indica apenas o Pai, como é comum acontecer, mas está exprimindo a Família

Divina, já que a discursividade se processa em nome da Trindade.

Além dessa rede vocal interlocutória, nesse ato discursivo, temos ainda a

manifestação de um jogo de vozes “stricto sensu”, ou seja, a multiplicação dos seus

sujeitos, conforme Ducrot (1987), já enunciado. Assim, o protagonista celeste

instalando-se na enunciação como locutor L, responsável pela ação enunciativa,

assume, ao mesmo tempo, a função de locutor LP, visto entrar no discurso

apresentando-se como mãe (Queridos filhos). Desse lugar, ele realiza um ato

injutivo que se traduz pelo sêxtuplo emprego do imperativo.

Page 136: LENICE AMÉLIA DE SÁ MARTINS - sapientia.pucsp.br AMELIA... · Esboço teórico ... mundo espiritual e o temporal. ... paternidade, embora ele e sua esposa Isabel, que era estéril,

136

(6.2) ... fazei a vontade de Deus em cada momento de vossa existência.

(6.3) Esforçai-vos para que a vossa vida aqui na Terra seja de contínuos

encontros com Jesus

(6.4) Deixai que os vossos corações se encham de amor (...)

(6.5) Rezai muito para poderdes aceitar a vontade de Deus.

(6.6) Tende coragem, fé e esperança.

(6.7) Ficai em paz.

Outra superposição vocal assentada, nessa ação discursiva, é que, embora o

sujeito falante se instale como locutor, na verdade ele fala do lugar de um Sujeito

Maior – A Santíssima Trindade (cf. Orlandi, 1983, p. 217). Portanto, esta voz que

ressoa na materialidade lingüística não é outra senão a de um enunciador da

Santíssima Trindade (EST), como testificam os enunciados:

(6.7) Esta é a mensagem que hoje vos transmito em nome da Santíssima

Trindade.

(6.8) Eu vos abençoo em nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo.

Por sua vez, os ouvintes inscritos no discurso primeiramente como alocutário AL e, logo em seguida, na função de alocutário pessoa – do mundo ALP, já que

têm necessidade de esforço pessoal para permanecerem em sintonia com o

Emanuel (Deus Conosco) e de vivenciarem a oração a fim “de fazerem a vontade de

Deus”, nessa instância, são transladados para o papel de destinatário (DEST), visto

serem correlatos do enunciador. São eles, pois, o destinatário da mensagem.

Por se tratar de uma ação discursiva não dialogada, a segmentação desse

discurso em supertópico, tópico e subtópico é facilmente perceptível (cf. Koch,

1995, p. 72). Tendo como supertópico a “obediência a Deus”, o texto abrange a

seqüência de tópicos que constituem instrumentos de adequação da vontade do

sujeito (homem) àquela do Sujeito (Deus) ou de assujeitamento, conforme Orlandi

(1996: p. 242):

... podemos entender que a definição de sujeito aponta para duas direções: a de ser sujeito e a de assujeitar-se. No sujeito se tem, ao mesmo tempo, uma subjetividade livre- - um centro de iniciativa, autor e responsável por seus atos – e um ser submetido – sujeito a

Page 137: LENICE AMÉLIA DE SÁ MARTINS - sapientia.pucsp.br AMELIA... · Esboço teórico ... mundo espiritual e o temporal. ... paternidade, embora ele e sua esposa Isabel, que era estéril,

137

uma autoridade superior, portanto desprovido de toda liberdade salvo a de aceitar livremente a sua submissão.

Podem ser citados os seguintes tópicos:

a) Contínuos encontros com Jesus, cuja forma de presença constitui os

subtópicos abaixo relacionados:

- Eucaristia: presença em corpo, alma, Sangue e Divindade;

- Sagrada Escritura: como Verbo de Deus;

- Ministros (clero): como Mestre, Sacerdote e Pastor;

- Próximo (irmão) – presença no Corpo Místico;

b) Prática das virtudes teologais5: amor (caridade), fé e esperança.

c) Oração (forma de interação com as pessoas divinas)

d) Coragem (disposição para o exercício da obediência a Deus)

Nesses tópicos e subtópicos podemos, observar uma sinfonia constituída por

vozes que, oriundas da Sagrada Escritura e do Magistério da Igreja, cruzam-se, no

foro da intertextualidade, com aquelas inscritas no processo de interlocução.

No espaço da intertextualidade, merecem destaque as vozes que dizem

respeito ao amor ou caridade, pois no tocante a esse mandamento, são bem

incisivas as palavras de Jesus e de seus apóstolos, como podemos constatar nos

exemplos abaixo:

a) Jo 15, 12

Este é o meu mandamento: amai-vos uns aos outros, como eu vos amo.

(Bíblia Sagrada, p 1405)

b) 1 Cor 13

Ainda que eu falasse as línguas dos homens e dos anjos, se não tiver

caridade, sou como o bronze que soa, ou como o sino que retine... Mesmo

que eu tivesse o dom da profecia e conhecesse todos os mistérios e toda

ciência; mesmo que eu tivesse toda a fé, a ponto de transportar montanhas,

se não tiver caridade não sou nada. (...) (Bíblia Sagrada, p. 1477). 5 De acordo com a Igreja Católica, as virtudes teologais são dadas por Deus, no Batismo, para capacitar o

cristão no sentido de agir como seus filhos e são em número de três: a fé, a esperança e a caridade.

Page 138: LENICE AMÉLIA DE SÁ MARTINS - sapientia.pucsp.br AMELIA... · Esboço teórico ... mundo espiritual e o temporal. ... paternidade, embora ele e sua esposa Isabel, que era estéril,

138

c) 1 Pe 1,22

Em obediência à vontade de Deus, tendes purificado as vossas almas para

praticardes um amor fraterno e sincero. Amai-vos, pois, uns aos outros,

ardentemente e do fundo do coração. (Bíblia Sagrada, p. 1543)

d) 1 Jo 4,7-8

Caríssimos, amemo-nos uns aos outros, porque o amor vem de Deus, e todo

o que ama é nascido de Deus e conhece a Deus. Aquele que não ama não

conhece a Deus porque Deus é amor. (Bíblia Sagrada, p. 1552)

É, portanto, a voz de Jesus, dos escritores sagrados (evangelistas e

epistólogos) e da Igreja que, de acordo com os teólogos, dá sentido àquela com a

qual se imbrica, conforme: Comissão Episcopal de Doutrina – CED – CNBB

(2000, p. 27)

Aparições e revelações, no contexto da tradição judeo-cristã, não têm sentido por si mesmas. O sentido vem de sua ligação com o plano salvífico de Deus. Portanto, para escapar de uma visão subjetiva da questão é fundamental ver esses fatos à luz da Revelação Normativa.

Comungando com o pensamento de Koch (1984) de que polifonia é

a incorporação, no próprio discurso, das vozes de outros enunciadores (...), ou seja, o coro de vozes que se manifesta normalmente em cada discurso, visto ser o pensamento do outro constitutivo do nosso,

ousamos afirmar que o discurso em questão constitui uma autêntica orquestra

maestrada por uma batuta que, para os que crêem, provém do céu.

Page 139: LENICE AMÉLIA DE SÁ MARTINS - sapientia.pucsp.br AMELIA... · Esboço teórico ... mundo espiritual e o temporal. ... paternidade, embora ele e sua esposa Isabel, que era estéril,

A tessitura da superposição de papéis executados pelos sujeitos dessa ação

discursiva aqui considerada, acha-se representada no seguinte gráfico:

J O G O E N U N C I A T I V O

NÍVEL DA EMISSÃO NÍVEL DA RECEPÇÃO

LOCUTOR ENUNCIADOR ALOCUTÁRIO DESTINATÁRIO

“VIRGEM MARIA” “VIRGEM MARIA” CATÓLICOS (filhos) CATÓLICOS

LL LP AL ALP

NÍVEL DA REFERÊNCIA

D E L O CU T Á R I O

DIVINO HUMANO

CATÓLICOS HUMANIDADE

SANTÍSSIMA JESUS TRINDADE EUCARÍSTICO CORPO MÍSTICO (irmãos)

VERBO MINISTRO

FIGURA 7 – Imbricamento vocal na mensagem de Angüera de nº 68.

139

Page 140: LENICE AMÉLIA DE SÁ MARTINS - sapientia.pucsp.br AMELIA... · Esboço teórico ... mundo espiritual e o temporal. ... paternidade, embora ele e sua esposa Isabel, que era estéril,

140

4.2. O Discurso das Mensagens de Nossa Senhora Mãe do Infinito Amor – Rio de Janeiro

A terceira instância do corpus deste trabalho analítico tem como base um dos

cinqüenta e dois discursos da “vidência” de Itaperuna, Rio de Janeiro, onde, de

acordo com o “vidente”, a Virgem Maria denomina-se Mãe do Infinito Amor.

Os fenômenos sobrenaturais ocorridos, naquela cidade fluminense, tiveram

início, numa manhã nublada do dia 24 de maio de 1995. Rodrigo Ladeira Carvalho

(18 anos), filho de Roberto da Silva Carvalho e Nilva de Pinho Ladeira Carvalho,

dirigia-se para a loja de seu pai onde trabalhava, de bicicleta, quando ouviu

interiormente uma voz: Hoje o sol irá raiar. Sem entender o que estava acontecendo,

o jovem continuou seu caminho. Ao chegar ao trabalho, após alguns instantes,

sentiu um frio intenso e tremores no corpo. Julgando estar com febre, Rodrigo foi

procurar seu pai para pedir confirmação daquilo que suspeitava. Mas o senhor

Roberto ao tocar o filho, afirmou que sua temperatura estava normal. Envolto ainda

nessa sensação de calafrio, o jovem Rodrigo ouviu novamente a voz interior. Desta

vez, porém, além de identificar-se como sendo Maria, a mãe de Jesus, a mesma voz

pediu a Rodrigo que se reunisse com sua família para orar pela cura da prima

Luciana, de seis anos, que estava com depressão. A Senhora solicitou ainda que,

durante todo o dia, rezassem a jaculatória: Ave cheia de graça.

Às 17h00 do mesmo dia, Rodrigo reuniu-se com seus pais, sua irmã Ana Paula

(que recebeu mensagens em locução interior de Jesus), Luciana (a criança doente)

e sua mãe, Nelma, e mais uma pessoa chamada Perissência, para, de acordo com a

solicitação da “celeste voz”, intercederem pela cura de Luciana. Era o dia de Nossa

Senhora Auxiliadora.

Durante a oração, o grupo foi envolvido por uma profunda emoção e todos

sentiram perfume de rosas e um vento forte que lhes soprava os pés. Ana Paula,

porém, teve ainda uma “visão” da Mãe do Senhor na forma de uma estampa que

entrava pela janela da sala onde oravam. Neste espaço de tempo, a voz

“comunicou” a Rodrigo que a cura da criança Luciana seria gradativa e que os pais

da mesma teriam que colaborar com o processo, não só com constante oração, mas

ainda confessando-se e participando da Sagrada Eucaristia, durante sete dias

consecutivos. Essas determinações foram postas em prática e a cura aconteceu

Page 141: LENICE AMÉLIA DE SÁ MARTINS - sapientia.pucsp.br AMELIA... · Esboço teórico ... mundo espiritual e o temporal. ... paternidade, embora ele e sua esposa Isabel, que era estéril,

141

como fora anunciada. A Virgem pediu ainda a Rodrigo que ele e Ana Paula

jejuassem, por três dias, tomando apenas água. Neste período, indicou nomes de

pessoas que deveriam formar um grupo de oração o qual, mais tarde, recebeu o

nome de “Corações Unidos”. Este grupo reunia-se todos os dias na casa do

“vidente” para a oração do terço. Nestes encontros, Rodrigo “via” a Senhora em

forma de imagem e ouvia as mensagens em seu interior, proferindo-as,

simultaneamente, para serem copiadas.

A partir de 24 de agosto, Ana Paula começou a “visualizar” o Senhor Jesus, em

forma estática e a ouvi-lo também em locução interior.

Ao contrário de Angüera em que as “aparições” acontecem já há mais de 20

anos às terças-feiras e sábados, as de Itaperuna ocorreram num período

relativamente curto: de maio de 1995 a outubro de 1996.

Nos dois últimos “encontros” envolvendo a personagem do céu e as da terra

(em Itaperuna) que ocorreram nos dias 24 de setembro e 24 de outubro,

respectivamente (na fazenda Boa Esperança), a Mãe do Senhor “apresentou-se” a

Rodrigo não mais como uma estampa, mas em forma humana.

De acordo com o dizer do vidente, ela é extremamente bela. Segundo Rodrigo,

em setembro, a Bela Senhora trajava uma vestimenta de cor marfim claro e um

manto marfim mais escuro, com contornos dourados e com pequenos desenhos de

ramos e corações. Amarrado à cintura, trazia uma faixa dourada. Sua cabeça estava

levemente inclinada para a esquerda e, entre as mãos postas à altura do peito, tinha

um terço. Os pés estavam descalços e, embaixo deles, havia uma nuvem ladeada

por pequenos anjos. Já no dia 24 de outubro, a Senhora vestia-se de branco e na

cabeça tinha um véu azul. Trazia nas mãos seu próprio coração, que pulsava,

envolto num rosário de madeira. Presa à cintura portava uma faixa dourada e, na

cabeça, uma coroa de intenso brilho. Sob seus pés descalços, havia uma nuvem

encimada por rosas vermelhas, brancas e amarelas. Todo seu corpo estava

circundado por uma luz tão brilhante que ofuscava os olhos. Seus lábios rosados,

abertos levemente num sorriso, contrastam com a alvura da sua pele. Seu olhar

penetrante transmite paz profunda. Apresentou-se numa nuvem que pairava sobre

uma árvore.

Page 142: LENICE AMÉLIA DE SÁ MARTINS - sapientia.pucsp.br AMELIA... · Esboço teórico ... mundo espiritual e o temporal. ... paternidade, embora ele e sua esposa Isabel, que era estéril,

142

Durante o período das “aparições”, o fato foi acompanhado pela Igreja na

pessoa do frei Jorge da Paz (OFM) e líderes da Renovação Carismática Católica.

Esses delegados, tanto o sacerdote quanto os membros do Movimento Carismático

foram incumbidos de tal missão pelo Bispo da Diocese de Campos da qual faz parte

a Igreja de Itaperuna, D. Roberto Gomes Guimarães.

Os irmãos Rodrigo e Ana Paula foram examinados por psicólogo e psiquiatra

(também indicados pelo Bispo) que não encontraram neles qualquer sinal de

distúrbio mental ou emocional.

Atualmente, Rodrigo se encontra no Seminário dos Padres Redentoristas onde

se prepara para professar os votos de pobreza, castidade e obediência e,

posteriormente, para a ordenação sacerdotal.

Quanto à Ana Paula, essa continua sua vida de esposa, mãe, profissional e

cristã engajada nas atividades pastorais de sua paróquia.

Embora tenham cessado as mensagens de Itaperuna, no 4º domingo de cada

mês, os fiéis se reúnem na Fazenda Boa Esperança, próximo à cidade, para a

oração do terço e a reflexão das mensagens recebidas e também para pedir graças

a Nossa Senhora do Infinito Amor.

As fontes dessas informações foram:

• a obra – Nossa Senhora Mãe do Infinito Amor – Itaperuna, RJ. 2001;

• a mãe dos videntes Rodrigo e Ana Paula, a professora aposentada, Nilva de

Pinho Ladeira Carvalho, numa conversa por telefone, no dia 25 de maio de

2005, mais ou menos, às 10h00.

Após esse breve relato introdutório, deter-nos-emos na apreciação analítica de

uma das “mensagens” de Nossa Senhora do Infinito Amor. Optamos pela proferida

no dia 1º de julho de 1995, em virtude do notável cruzamento vocal ai instalado:

(7) Filhos, entreguem suas vidas a mim e eu as conduzirei. Consagrem tudo

aquilo que faz parte de suas vidas ao meu coração; todas as casas,

todos os seus carros, as suas vidas; entreguem-nas a mim. Louvem o

meu Filho a cada segundo de suas vidas. Dito-lhes agora uma oração e

peço que no momento em que estiverem em apuros que me invoquem

nestes termos: “Ó minha mãe, sei que tu és a imaculada, a auxiliadora.

Page 143: LENICE AMÉLIA DE SÁ MARTINS - sapientia.pucsp.br AMELIA... · Esboço teórico ... mundo espiritual e o temporal. ... paternidade, embora ele e sua esposa Isabel, que era estéril,

143

Por isso, elevo a minha voz até teus ouvidos e te peço: vem em meu

auxílio, mãe. Meu coração se estremece só de ouvir o teu santo nome.

Por isso, tenho certeza de que irás acolher este meu pedido... Louvo-te ó

mãe, porque és bondosa e porque sei que teu coração está sempre

aberto a me acolher e ajudar”. Filhinhos, o terço é a arma maior que eu

deixei para vocês. Sempre tenham um à mão. Não quero que somente

leiam a Bíblia; quero que ponham cada palavra deste livro em prática.

Assim, alcançarão o céu. O Senhor vive e reina para sempre. Glórias e

graças sejam dadas a cada momento ao Santíssimo Sacramento!

Amém! Aleluia! Amém!

Assim como nas mensagens de Angüera, também nas de Itaperuna, temos

um discurso assimétrico, uma vez que ele é direcionado por um dos interlocutores,

ou seja, o sujeito da esfera celeste cf. Fávero, Andrade e Aquino (1999, p. 15/16). O

sujeito falante já se apossa do discurso transportando-se do lugar de locutor L,

responsável pelo dizer para o de locultor LP, pessoa socialmente constituída, visto

entrar na enunciação como mãe que fala a filhos. Assim, o ouvinte é igualmente

transladado da função de alocutário AL (correlato do locultor L), para a de

alocutário ALP (parceiro do locutor LP).

(7.1) Filhos, entreguem suas vidas a mim e eu as conduzirei.

As marcas do alocutário perpassam toda a superfície textual, desde o vocativo

(filhos, filhinhos) até o emprego dos dêiticos pessoais (lhes, vocês), possessivo

(suas) e verbais (estiverem, invocarem, leiam, ponham, alcançarão). Tais marcas

aliadas ao uso do imperativo (entreguem, consagrem, entreguem, e louvem),

acusam a centralização da linguagem no ouvinte, revelando a presença da função

conativa.

O locutor está assinalado pelos dêiticos de 1º pessoa: pessoais (eu, me, mim),

possessivo (meu) e verbais (conduzirei, dito, deixei, quero) que, associados aos

epítetos vocativos e a outros signos (vida, coração, apuro) que, como esses

vocativos, portam uma forte carga emocional, atestam que a função expressiva da

linguagem tem, no discurso, uma significativa presença. É notória, portanto, a

equivalência entre as duas funções.

Page 144: LENICE AMÉLIA DE SÁ MARTINS - sapientia.pucsp.br AMELIA... · Esboço teórico ... mundo espiritual e o temporal. ... paternidade, embora ele e sua esposa Isabel, que era estéril,

144

Ao introduzir o alocutário no processo enunciativo, o sujeito locutor realiza uma

interação com um “tu” coletivo, uma vez que se dirige a “filhos”. Essa pluralização

está sinalizada em toda a enunciação, quer pela flexão dos verbos (invoquem,

ponham, alcançarão, etc), quer pelos pronomes: seus, suas, lhes que, no caso,

não exprimem a terceira pessoa e sim, a segunda, ou seja, identificam o sujeito da

recepção e não o da referência. Portanto, temos aí um alocutário pessoa-do-mundo-coletivo: ALPC.

Na dimensão enunciva, temos um delocutário divino – DV: Jesus,

apresentado com tríplice função:

a) como Filho:

(7.2) Louvem o meu Filho em cada segundo de suas vidas;

b) como Rei e Senhor:

(7.3) O Senhor vive e reina para sempre;

c) como o Santíssimo Sacramento

(7.4) Glórias e graças sejam dadas ao Santíssimo Sacramento.

Digno de especial apreciação é a prece que, embora seja um encaixamento

discursivo não é uma enunciação reportada, uma vez que realizada por um sujeito in

praesentia e não in absentia. Assim sendo, deixa de ser um simulacro de

enunciação, conforme Fiorin (1996, p.40-41), para constituir-se numa enunciação

dentro de outra enunciação. Já que o processo discursivo acontece in loco, aí não

pode existir uma enunciação enunciada. Esse, porém, é um in loco que se projeta

para um futuro indefinido, visto tratar-se de uma prece que será voz de todos os

sujeitos que a ela tiverem acesso e acreditarem na veracidade dos fatos. Por

conseguinte, o que temos aí é, literalmente, um continuum discursivo. E já que é um

discurso-prece, uma de suas características é a performatividade, pois,

indubitavelmente, toda oração, seja louvor, súplica ou agradecimento, constitui uma

ação. Com isso, ampliamos a caracterização atribuída por Orlandi (1996, p. 252) a

certos textos sagrados:

Se tomarmos, por exemplo, os performativos, veremos que há regras estritas para que esses atos de linguagem se constituam efetivamente em performativos: as formas religiosas, para ter validade, têm que ser usadas em situação apropriada e bem

Page 145: LENICE AMÉLIA DE SÁ MARTINS - sapientia.pucsp.br AMELIA... · Esboço teórico ... mundo espiritual e o temporal. ... paternidade, embora ele e sua esposa Isabel, que era estéril,

145

configurada. Para realizar esses atos, é preciso estar investido de uma autoridade dada (...) em situações sociais bastante ritualizadas, como acontece nas situações em que se diz: “Eu te batizo” ou “Estão casados”, ou então, em relação a orações que, para ter validade, devem ser feitas em condições precisas.

No nosso entender, não são apenas as fórmulas rituais dos sacramentos e as

orações tradicionais da Igreja que são atos, mas todo discurso cristalizado ou

espontâneo enunciado como prece, pois sempre que um sujeito se apossa da língua

dizendo: “Eu te louvo...” “Eu te adoro...” ou “Eu te peço...” está realizando

verdadeiramente, atos lingüísticos, como mostramos na dissertação de mestrado (cf.

Martins, 1999, p. 92).

Tomada em seu contexto, essa oração assemelha-se ao Pai Nosso e às

orações ensinadas na “terceira aparição” de Fátima (já contemplada neste trabalho),

no que diz respeito à assunção das vozes,

- Eis como deveis rezar: “Pai Nosso que estais no céu, santificado seja o

vosso nome...” Mt 6, 9 – Bíblia Sagrada, p. 1290.

- ... dizei muitas vezes... “Ó Jesus, é por vosso amor, pela conversão dos

pecadores...” (Machado, 1983, p. 43 – Fátima)

- Quando rezais o terço, dizei depois de cada mistério: “Ó meu Jesus,

perdoai-nos, livrai-nos do fogo do inferno...” (Machado, 1983, p. 48-49 –

Fátima.

- Dito-lhe agora uma oração e peço... que me invoqueis nestes termos: “Ó

minha mãe, sei que tu é a imaculada...” (Itaperuna).

pois, enquanto na enunciação reportada, o sujeito falante incorpora a voz de

um locutor ausente, tornando atual um fato passado, na oração de Jesus e nas três

atribuídas a Maria, o locutor empresta sua voz a um sujeito inserido num aqui e

agora indeterminados. Esses discursos, porém, são diferentes no que se refere ao

sujeito da referência: no “Pai Nosso”, o delocutário é Deus Pai e nas orações de

Fátima, Jesus, o Deus Filho. Portanto, em ambos os casos, o delocutário não se

confunde com o locutor. No discurso-prece, em análise, porém, há uma fusão do eu

com o ele o que caracteriza, uma sui-referenciação.

Estamos, pois, diante de uma enunciação em cujo bojo está instalado um

coral formado por vozes que emergem de vários lugares. O protagonista da esfera

Page 146: LENICE AMÉLIA DE SÁ MARTINS - sapientia.pucsp.br AMELIA... · Esboço teórico ... mundo espiritual e o temporal. ... paternidade, embora ele e sua esposa Isabel, que era estéril,

146

celeste que se apossa do discurso como locutor L, introduzindo o interlocutor na

função de alocutário Al translada-se, já no limiar da enunciação, para o lugar de

locutor P (locutor pessoa-do-mundo), transportando assim o “tu”, o protagonista

terrestre, para a função de alocutário ALP (alocutário-pessoa-do-mundo). Mas, ao

ditar a prece, o mesmo protagonista assume também a função de delocutário:

EU(L) = ELA (D) – (cf. pg. 46). Por sua vez, o protagonista da esfera temporal, além

de ocupar o lugar de alocutário AL e o de alocutário ALP (alocutário pessoa-do-

mundo), no discurso intercalado, funciona também como alocutário coletivo, pois o

vidente está representando todos os filhos do locutor, como comprova o pronome

lhes e os verbos do enunciado que introduz a prece: Dito-lhes agora uma oração e

peço que no momento que estiverem em apuros que me invoquem nestes termos...

Além dessas vozes, no espaço da intertextualidade, outras se inserem, neste

processo enunciativo:

a) O enunciado “Louvem o meu Filho a cada segundo de suas vidas” que

expressa a maternidade divina remete às vozes que proclamam Maria, mãe

de Jesus, como por exemplo:

- Lc 1, 30-31:

O anjo disse-lhe: não temas, Maria, pois encontrastes graça diante de Deus.

Eis que conceberás e darás à luz um filho e lhe porás o nome de Jesus.

(Bíblia Sagrada, p. 1346).

- Lc1, 41-43:

Ora, apenas Isabel ouviu a saudação de Maria, a criança estremeceu no seu

seio, e Isabel ficou cheia do Espírito Santo e exclamou em alta voz: Bendita

és tu entre as mulheres e bendito é o fruto de teu ventre. Donde me vem esta

honra de vir a mim, a mãe do meu Senhor? (Bíblia Sagrada, p. 1341).

b) A consideração a respeito do terço lembra as “aparições”, em Fátima –

Portugal, pois em todas elas sempre há a recomendação de orar o terço

(cf. Machado, 1983).

- Quero que venhais aqui no dia 13 do mês que vem, que rezeis o terço

todos os dias, e que aprendais a ler... (segunda “aparição”)

Page 147: LENICE AMÉLIA DE SÁ MARTINS - sapientia.pucsp.br AMELIA... · Esboço teórico ... mundo espiritual e o temporal. ... paternidade, embora ele e sua esposa Isabel, que era estéril,

147

- Quero que venhais aqui no dia 13 do mês que vem, que continuem a rezar

o terço todos os dias em honra de Nossa Senhora do Rosário... (terceira

“aparição”)

c) Temos remissões a:

- Dt 17, 19:

Conservará esta cópia consigo e a lerá todos os dias de sua vida para

aprender a temer o Senhor, seu Deus e a observar todos os artigos desta lei,

pondo em prática todas as suas prescrições. (Bíblia Sagrada, p. 234).

- Js 1,8:

Traze sempre na boca as palavras deste livro da lei, medita-o dia e noite,

cuidando de fazer tudo o que nele está escrito; assim prosperarás em teus

caminhos e serás bem sucedido. (Bíblia Sagrada, p. 253).

- Mt 7,24:

Aquele, pois que ouve estas minhas palavras e as põe em prática é

semelhante a um homem prudente, que edifica sua casa sobre rocha. (Bíblia Sagrada: p. 1291).

- Tg 1,22:

Sede cumpridores da palavra e não apenas ouvintes; isto equivaleria a vos

enganardes a vós mesmos. (Bíblia Sagrada: p. 1539);

no enunciado:

(7.5) Não quero que somente leiam a Bíblia; quero que ponham cada

palavra deste livro em prática. Assim, alcançarão o céu.

Já a afirmação: O Senhor vive e reina para sempre faz emergir diversidades

de vozes bíblicas e eclesiais que proclamam o reinado e o senhorio eterno de Jesus.

A primeira é a do mensageiro Gabriel ecoada pela voz do evangelista Lucas:

1, 32-33: Ele será grande e chamar-se-á Filho do Altíssimo e o Senhor Deus lhe

dará o trono de seu pai Davi, e reinará eternamente na casa de Jacó, e o seu reino

não terá fim (Bíblia Sagrada, p. 1346).

Page 148: LENICE AMÉLIA DE SÁ MARTINS - sapientia.pucsp.br AMELIA... · Esboço teórico ... mundo espiritual e o temporal. ... paternidade, embora ele e sua esposa Isabel, que era estéril,

148

Outra é a voz do próprio Jesus que, no seu julgamento, diante de Pilatos

proclama solenemente o seu reinado – Jo 18, 37:

Perguntou-lhe então Pilatos: “És, porventura Rei?” Respondeu Jesus: “Sim, eu sou Rei. É para dar testemunho da verdade que nasci e vim ao mundo. Todo o que é da verdade ouve a minha voz”. (Bíblia Sagrada, p. 1409).

No contexto eclesial, merece destaque a festa de Jesus Cristo, Rei do Universo, celebrada pela Igreja Católica, no último domingo litúrgico. Como

exemplo desta aclamação da realeza de Jesus, podem ser citadas as duas primeiras

estrofes do hino das Vésperas I, rezadas por todo clero, religiosos e muitos leigos,

no sábado que antecede o domingo de Cristo Rei:

Cristo rei, sois dos séculos Príncipe,

Soberano e Senhor das nações!

O´ juiz, só a vós é devido

Julgar mentes, julgar corações.

Multidões reverentes no céu,

Vos adoram e cantam louvores.

Nós também proclamamos que sois

Reis dos Reis e Senhor dos Senhores.

(Oração das Horas, 1996, p. 726)

Quanto ao enunciado:

(7.6) Glórias e graças sejam dados a cada momento ao Santíssimo

Sacramento,

é ele o louvor comum a todo católico, desde o Sumo Pontífice ao fiel não-

escolarizado, diante da Hóstia e do Vinho consagrados, ou seja, a todos os que

acreditam no milagre da transubstanciação (mudança da substância do pão e do

vinho no Corpo e Sangue de Jesus Cristo).

Outro fato relevante é o nome assumido pela celeste personagem – Nossa Senhora Mãe de infinito Amor. Este título representa o “novo”, pois em todos

aqueles dados pela igreja à Virgem Maria ou ouvidos por “videntes”, ele não

figurava. É um “novo”, porém, que parafraseia aquele que exprime a mais alta

Page 149: LENICE AMÉLIA DE SÁ MARTINS - sapientia.pucsp.br AMELIA... · Esboço teórico ... mundo espiritual e o temporal. ... paternidade, embora ele e sua esposa Isabel, que era estéril,

149

prerrogativa da Virgem de Nazaré – Mãe de Deus. Sim, porque somente Deus foi, é

e será sempre amor infinito.

Notável também, neste processo enunciativo, são os diversos traços do

discurso religioso, como:

a) Emprego do imperativo e do vocativo.

(7.7) Filhos, entreguem suas vidas a mim e eu as conduzirei. Consagrem tudo

aquilo que faz parte de suas vidas ao meu coração (...)

b) A presença de metáfora, como: “conduzirei” e “coração” (na citação acima).

c) Uso de uma expressão, mais ou menos cristalizada: O´ minha mãe” (cf.

Orlandi, 1996, p. 247. 529).

No que diz respeito ao nível de linguagem, é perceptível o uso do registro

formal que se manifesta, principalmente:

a) pela harmonização entre signos determinantes e determinados. Ex.:

(7.8) Louvem (vocês) a meu Filho a cada segundo de suas vidas.

(7.9) Sei que tu és a Imaculada.

b) pelo emprego da forma pronominal nas (entreguem-nas a mim), alomorfe

de os;

c) pelo uso da preposição de no enunciado:

(7.10) Por isso, tenho certeza de que irás atender este meu pedido.

Page 150: LENICE AMÉLIA DE SÁ MARTINS - sapientia.pucsp.br AMELIA... · Esboço teórico ... mundo espiritual e o temporal. ... paternidade, embora ele e sua esposa Isabel, que era estéril,

Quanto ao jogo polifônico stricto sensu instalado, neste processo discursivo,

apresentamo-lo, configurativamente, no esquema abaixo:

E N U N C I A Ç Ã O

C R U Z A M E N T O V O C A L

150

LOCUTOR ALOCUTÁRIO

L LP AL ALP ALPC N. S. Mãe N. S. Mãe Católicos Católicos Católicos do Infinito do Infinito Amor Amor

D E L O C U T Á R I O

JESUS N. S. Mãe do Infinito Amor (Sui-referenciação)

Filho Rei e Senhor Eucarístico

FIGURA 8 – Cruzamento vocal no discurso das mensagens de Itaperuna.

4.3. A Discursividade das Mensagens da Rainha da Paz em Jacareí – São Paulo

Os fenômenos místicos que se realizam na cidade de Jacareí, desde 1991,

têm muita semelhança com os de Fátima, Angüera e Medjugorje, já referidos neste

trabalho.

Na cidade paulistana, o “vidente” é um jovem chamado Marcos Tadeu, cujo

nascimento ocorreu no dia 12 de fevereiro de 1977.

Page 151: LENICE AMÉLIA DE SÁ MARTINS - sapientia.pucsp.br AMELIA... · Esboço teórico ... mundo espiritual e o temporal. ... paternidade, embora ele e sua esposa Isabel, que era estéril,

151

Cinco dias antes de completar 14 anos, ou seja, no dia 7 de fevereiro de

1991, numa quinta-feira, o adolescente Marcos Tadeu, voltando do centro da cidade

onde fora fazer algumas compras, entrou na Matriz da Imaculada Conceição.

Ajoelhou-se e, ao terminar as orações do Pai Nosso, Ave Maria e Glória que,

segundo ele, eram as únicas que sabia rezar, sentiu uma brisa suave que agitava

sua roupa, ao mesmo tempo em que viu acima do altar uma cruz mais clara que o

sol, em forma de globo, e ouviu uma voz feminina doce e terna:

Meu filho, meu filho! É preciso santificar-se. A santidade é um caminho difícil,

mas o seu fim é real e glorioso.

Assustado, sem entender o que estava acontecendo, Marcos Tadeu, dirigiu-

se para sua casa, prometendo a si mesmo jamais revelar a ninguém a experiência

que tivera. No entanto, daí por diante, começou a notar que algo diferente estava

ocorrendo em seu interior: sentia-se envolvido numa intensa paz e fortemente

impelido para a oração. Encontrando, então, um terço em uma das gavetas de sua

mãe, passou a rezá-lo várias vezes por dia.

Doze dias após o fenômeno a que assistiu na Matriz, Marcos Tadeu rezava o

terço na sala de sua casa, quando vislumbrou novamente aquela luz “mais brilhante

que o sol” e, saindo do interior, dessa luz, uma jovem aparentando uns 18 anos que

lhe fazia sinal para aproximar-se dela. Mas, como o medo o retinha imóvel, a

jovem encaminhou-se até o adolescente sorrindo. Tomando coragem, Marcos

Tadeu, perguntou-lhe: “Quem é a senhora?” Mas, ao invés de dar a resposta

esperada, a “visitante” apenas sorriu. O adolescente fez, então, nova pergunta:

“Deseja que eu esteja aqui com a senhora?” Desta vez, a resposta foi dada: “Sim,

meu filho, porque eu o amo. Mas não quero que venha sozinho; traga aqui muitos

dos meus filhos que eu amo”. Em seguida, a personagem desapareceu e tudo voltou

ao normal. Dessa vez, porém, Marcos Tadeu, não suportando mais conservar em

segredo tudo o que “vira” e “ouvira”, contou para uma tia. Esta aconselhou-o a

aspergir a personagem misteriosa com água benta, caso ela voltasse. E em agosto

do mesmo ano, a “Figura Luminosa” voltou, parando diante do “vidente” que,

seguindo o conselho da tia, respingou-a com a água benta que trazia num pequeno

vidro, dizendo: “Se vem de Deus, fique! Senão, vá embora!” A Bela jovem, porém,

Page 152: LENICE AMÉLIA DE SÁ MARTINS - sapientia.pucsp.br AMELIA... · Esboço teórico ... mundo espiritual e o temporal. ... paternidade, embora ele e sua esposa Isabel, que era estéril,

152

reagiu sorrindo e disse: “Meu filho, eu não sou do mal. Eu vim do céu!” Ditas essas

palavras, desapareceu.

Na quarta “aparição” que se deu no dia 18 de setembro do mesmo ano, às

22h30m, quando Marcos Tadeu voltava da escola, a Personagem Celeste apenas

sorriu e desapareceu sem nada dizer.

Na quinta, que ocorreu na véspera do Natal do mesmo ano de 1991, ela

pediu ao “vidente” para consagrar-se ao Imaculado Coração de Maria e para trilhar o

caminho da penitência e da oração, o que foi posto em prática, imediatamente, por

aquele adolescente.

Após o Natal, passaram-se cinco meses sem que a nobre “visita”

acontecesse. No dia 07 de maio de 1992, porém, a Jovem Celeste voltou a se

comunicar com Marcos Tadeu. Mas, nesta sexta visita e nas outras que a seguiram,

até a décima quinta, ela não revelou sua identidade, embora o jovem continuasse

perguntando o seu nome. Somente no décimo quinto encontro que aconteceu no dia

19 de fevereiro de 1993, foi que, surgindo durante a oração que o “vidente” fazia

com alguns amigos, disse:

Sou a Senhora da Paz. Sou a mãe de Jesus. Meus filhos, desejo-lhes a

minha paz! Rezem! Rezem! Peçam perdão pelos pecadores. Rezem com o

coração. ”Abram-se a Deus e ao seu amor! Vivam felizes e que a paz encha

suas vidas. Plantem a paz em vós mesmos e difundam aos outros esta paz.

Eu os amo e quero dar-lhes a minha paz do céu. Eu os abençoo..

De posse da confirmação de que a pessoa que o “visitava” era realmente a

Mãe do Senhor Jesus, Marcos Tadeu sentiu-se mais seguro não só para falar sobre

o assunto como também para reunir-se em oração com aqueles que foram tocados

pelas mensagens.

Como acontece em Medjugorje e em Angüera, de acordo com o vidente, os

fenômenos místicos em Jacareí continuam e são muitos os sinais que os confirmam.

Elencaremos aqui alguns dos mais notáveis:

• No dia 05 de março de 1993, uma roseira da casa de Marcos Tadeu

amanheceu florida, embora na noite anterior ela estivesse totalmente

desprovida de flores. Esse fenômeno havia sido anunciado por “Nossa

Page 153: LENICE AMÉLIA DE SÁ MARTINS - sapientia.pucsp.br AMELIA... · Esboço teórico ... mundo espiritual e o temporal. ... paternidade, embora ele e sua esposa Isabel, que era estéril,

153

Senhora”, no dia 27 de fevereiro, ou seja, uma semana antes de sua

realização.

• Na festa dos Anjos da Guarda do mesmo ano, dia 02 de outubro, a Virgem

se fez presente num monte próximo à casa do “vidente”, como havia

notificado. Era noite, quando Marcos Tadeu e um grupo de fiéis

começaram a galgar a encosta do monte, rezando o rosário. À certa altura,

ouviram vozes confusas e agitadas. Chegando ao cume do monte, onde

iriam aguardar a “ Excelsa Visitante”, foram agredidos com palavras e

pedradas por um estranho grupo que foi identificado como constituído por

protestantes. De repente, às 22h30m, surge a “Rainha do Universo” e,

apontando para o céu, ordenou que todos olhassem para a lua. Esse astro

tomou uma coloração avermelhada e, aumentando consideravelmente o

seu diâmetro, parecia vir descendo em direção à Terra. O espetáculo

provocou pânico na maioria dos presentes: os protestantes saíram

correndo morro abaixo e muitos católicos rezavam e choravam de medo.

Em seguida, a “Rainha” apontou novamente para a lua e tudo voltou à

normalidade. Essas “aparições” no monte continuam acontecendo todas

as quintas-feiras, às 22h30m.

No dia 21 de novembro de 1999, no novo local das “aparições” que foi

denominado de Santuário das aparições de Jesus e Maria (Marcos Tadeu tem

visões também de Jesus Cristo), a Virgem “aparece” sobre uma colina. Além do

“vidente” e de um grupo de devotos de Jacareí, estavam presentes vários peregrinos

de outros municípios.

Segundo o “vidente”, a Virgem Maria é belíssima. Apresenta ter uns 18 anos.

Seu rosto é suave e sereno. Tem os cabelos negros e seus olhos são de um azul

fulgurante. A voz é melodiosa, carinhosa e materna. Traja um vestido cor de cinza

azulado e um manto de intensa alvura. Na cintura traz uma larga faixa branca atada

à frente e, na cabeça, uma coroa de doze estrelas. Tem sempre nas mãos um longo

terço de contas luminosas. Durante o tempo de sua permanência na Terra, fica

sobre uma nuvem branca que não toca o chão. De seu corpo exala um delicioso

perfume de rosas.

Page 154: LENICE AMÉLIA DE SÁ MARTINS - sapientia.pucsp.br AMELIA... · Esboço teórico ... mundo espiritual e o temporal. ... paternidade, embora ele e sua esposa Isabel, que era estéril,

154

De acordo com Marcos Tadeu, ele pode tocá-la e até beijá-la, pois a Mãe de

Jesus lhe “aparece” em seu corpo glorioso (cf. Marcos Tadeu, 2000).

Após este breve relato introdutório, fixar-nos-emos na análise de uma das

mensagens que tem, como palco, a cidade de Jacareí. Escolhemos a do dia 19 de

março de 1993, festa de São José, por ter um conteúdo diferente daquelas já

contempladas, neste trabalho. Enquanto as outras tratam de conversão, de

penitência, da oração, essa última exalta o justo esposo de Maria Virgem e pai

adotivo do Homem Deus:

(8) Meus queridos filhos, hoje a Igreja celebra a festa do meu esposo São

José. O´como São José era fiel! Eu o via com amor, dedicado no trabalho

e na guarda da nossa sagrada família. Via-o no seu trabalho humilde,

pobre e penoso, ensinando a Jesus o seu oficio de carpinteiro. O primeiro

exemplo de José é a confiança em Deus. Ele não ousou difamar-me ante

a minha gravidez miraculosa. Retirou-se à parte e se entregou à

meditação e à oração, até que veio o Anjo do Senhor e lhe explicou o

plano divino. Depois, recebeu-me como esposa, dando-me o amor e

educando e guardando a vida de Jesus. Ele foi o sustentáculo precioso no

nascimento de Jesus em Belém, na fuga para o Egito e na perda no

templo. Nenhuma reclamação sua ao longo do caminho! Sigam o exemplo

de José! Recolham-se à parte para orar e meditar. Só assim poderão

saber o plano que Deus tem para cada um. Imitem José, dedicado

operário! Cumpram com amor todos os seus trabalhos por mais pequenos

e insignificantes que sejam (...), pois o trabalho feito com amor comove o

coração de Deus. Hoje na Festa de São José, meu castíssimo esposo, eu

os abençôo em Nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo.

No jogo enunciativo aqui instanciado, o sujeito falante, instaurando-se como

locutor, e o seu parceiro na função de alocutário, inscreve ao mesmo tempo, um

duplo sujeito da referência (a Igreja e São José ).

(8.1) Meus queridos filhos, hoje a Igreja celebra a festa de meu esposo São

José.

Diferente dos outros discursos já analisados cuja concentração está no

locutor ou no alocutário, neste é a figura do delocutário que aparece em relevo.

Page 155: LENICE AMÉLIA DE SÁ MARTINS - sapientia.pucsp.br AMELIA... · Esboço teórico ... mundo espiritual e o temporal. ... paternidade, embora ele e sua esposa Isabel, que era estéril,

155

Embora recheado de descrições, o discurso não se apresenta envolto numa

atmosfera de estaticidade, por se tratar de caracterização relativa ao passado. O

emprego abundante de verbos no pretérito (era, via, ousou, etc) confere-lhe o

dinamismo da narração sem deixar de projetar a cena descrita. Portanto, podemos

caracterizar essa estrutura discursiva como narrativo- descritiva.

Uma vez que a linguagem está centrada no referente, no tocante às suas

funções, a proeminência é da função referencial. Confirmam-na, os dêiticos

pronominais (o, seu, ele, se, lhe) e verbais (retirou, entregou, recebeu, ousou,

difamar, foi). Não obstante tal predominância, as funções emotiva e conativa

marcam também significativamente o discurso. A primeira representa-se pelos

pronomes pessoais (eu, me) e possessivos (meus, meu, nossa, minha) e pela

desinência verbal (abençoo).

Já a função conativa, está sinalizada:

a) pela expressão vocativa que abre o discurso (Meus queridos filhos);

b) pelos dêiticos pronominais (se, os);

c) pela forma imperativa (Sigam, Recolham-se, Imitem, Cumpram);

d) pela flexão do auxiliar “poderão” (poderão saber).

É na referência também que se concentra a intertextualidade bíblico-eclesial,

claramente perceptível na superfície do texto, como por exemplo:

- A alusão ao ensinamento da profissão de carpinteiro a Jesus por José

encontra eco nas duas primeiras estrofes do Hino de Laudes (Liturgia das Horas)

da Festa de São José Operário, em 1º de maio:

Anuncia a aurora o dia,

Chama todos ao trabalho;

Como outrora em Nazaré,

Já se escutam serra e malho.

Salve, ó chefe de família!

Que mistério tão profundo

Ver que ensinas teu oficio

A quem fez e salva o mundo.

(Oração das Horas, p.1243).

Page 156: LENICE AMÉLIA DE SÁ MARTINS - sapientia.pucsp.br AMELIA... · Esboço teórico ... mundo espiritual e o temporal. ... paternidade, embora ele e sua esposa Isabel, que era estéril,

156

- A referência à postura assumida por José perante a concepção milagrosa

de Jesus, remete-nos a Mt. 1,18-25:

Eis como nasceu Jesus Cristo: Maria, sua mãe, estava desposada com José.

Antes de coabitarem, aconteceu que ela concebeu por virtude do Espírito

Santo. José seu esposo, que era homem de bem, não querendo difamá-la,

resolveu rejeitá-la secretamente. Enquanto assim pensava, eis que um anjo

do Senhor lhe apareceu em sonhos e lhe disse: “José; filho de Davi, não

temas receber Maria por esposa, pois o que nela foi concebido vem do

Espírito Santo. Ela dará à luz um filho a quem porás o nome de Jesus,

porque ele salvará o seu povo de seus pecados (...)” Despertando, José fez

como o anjo do Senhor lhe havia mandado e recebeu em sua casa sua

esposa (...). __ (Bíblia Sagrada, p. 1285)

- O excerto

(8.2) Ele foi sustentáculo precioso no nascimento de Jesus em Belém, na

fuga para o Egito e na sua perda no templo,

reporta a: Lc 2,1 – 7 (Bíblia Sagrada, p. 1347 - 1348); Mt 2, 13 – 15 (Bíblia Sagrada: p. 1285 – 1286); Lc 2, 41 – 52 (Bíblia Sagrada, p.1349), respectivamente

Já as palavras:

(8.3) -Recolham-se à parte para orar e meditar

fazem alusão a um dos ensinamentos de Jesus inserido no Sermão da

Montanha: Quando orardes, entra no teu quarto, fecha a porta e ora ao teu Pai em

segredo; e teu Pai que vê num lugar oculto, recompensar-te-á (Mt 6,6 – Bíblia

Sagrada, p. 1290).

No tocante à polifonia “stricto sensu”, podemos perceber, nesta cena

discursiva, um curioso imbricamento de vozes. A personagem celeste,

apresentando-se como esposa e mãe, além da função de locutor L, assume

também o papel de locutor LP e instala seu interlocutor primeiro como alocutário AL e depois, como alocutário ALP: meus queridos filhos...

Mas, ao enunciar que a igreja celebra a Festa de São José, esse protagonista

celeste fala do lugar da Igreja militante, o que o caracteriza como enunciador eclesial – EE: ...hoje a Igreja celebra a festa do meu esposo São José.

Page 157: LENICE AMÉLIA DE SÁ MARTINS - sapientia.pucsp.br AMELIA... · Esboço teórico ... mundo espiritual e o temporal. ... paternidade, embora ele e sua esposa Isabel, que era estéril,

157

Fechando o discurso,o sujeito celeste abençoa o alocutário “em nome do Pai,

do Filho e do Espírito Santo”. Ora, se a bênção é concedida em nome da Santíssima

Trindade, é dela que procede. Neste caso, pois, o sujeito da esfera celeste

configura-se como enunciador da Santíssima Trindade – EST.

Na referência, além de José - delocutário sagrado (DS) e da Igreja -

delocutário eclesial (D E) aparecem ainda o Anjo – delocutário angelical (DA), além

de Deus Pai e Deus Filho – delocutário divino (DV).

O sujeito da emissão está sinalizado pelos pronomes pessoais: eu e me (Eu

o via com amor; Eu os abençoo; ele não ousou difamar-me; Depois recebeu-me

como esposa, dando-me amor) e possessivos: meus, nossa, minha (Meus queridos

filhos; meu esposo; nossa sagrada família; minha gravidez miraculosa) e ainda pela

flexão verbal: abençoo.

Quanto ao alocutário, ele está representado lingüisticamente pelo vocativo:

(Meus queridos filhos), pela forma imperativa que ocorre quatro vezes (Sigam o

exemplo de José; Recolham-se à parte; Imitem José; Cumpram com amor todos os

seus trabalhos) e também pela flexão do verbo poderão saber e dos dêiticos

pessoais: se e o (Recolham-se; eu os abençoo) que, no contexto, estão

identificando o sujeito da recepção e não o da referência.

No tocante ao delocutário, as marcas que o identificam são os lexemas

(Igreja, José, Deus, Anjo do Senhor, Jesus) e os dêiticos pronominais: o (Ex: via o); seu (Ex: seu ofício); ele (Ex: Ele não ousou); se (Ex: Retirou-se); lhe (Ex: lhe

explicou); sua (sua perda; reclamação sua).

Apenas o determinante do nome “perda” refere-se a Jesus: a perda de Jesus

no Templo; todas as demais são alusivas ao delocutário José o que comprova ser

ele o centro do discurso.

No diagrama, a seguir, apresentamos, configuracionalmente, o cruzamento

vocal analisado.

Page 158: LENICE AMÉLIA DE SÁ MARTINS - sapientia.pucsp.br AMELIA... · Esboço teórico ... mundo espiritual e o temporal. ... paternidade, embora ele e sua esposa Isabel, que era estéril,

LOCUTOR ENUNCIADOR ALOCUTÁRIO

E M I S S Ã O R E C E P Ç Ã O

J O G O E N U N C I A T I V O

L LP EE EST AL ALP N. Sra. Rainha N.Sra. Rainha N.Sra Rainha N.Sra. Rainha Filhos Filhos

da Paz da Paz da Paz da Paz

158

DS DA DE DV

José Anjo Igreja Santíssima Trindade Pai Filho Espírito Santo

R E F E R Ê N C I A

D E L O C U T Á R I O

FIGURA 9 – Multiplicação de sujeito nas mensagens de Nossa Senhora Rainha da Paz em

Jacareí (São Paulo)

O objeto de dizer, o delocutário sagrado (José), é alvo de encômios. Por

isso, vários recursos retóricos são empregados na orientação de argumentos que

testificam as virtudes do pai adotivo de Jesus.

O primeiro deles é a lexicografia atributiva, pois conforme afirma Bellenger

(1987, p.27), “Todos os qualificativos têm sobre as palavras o papel do martelo que

desce sobre o prego.”

Portanto, a adjetivação aplicada a José aponta-o como senhor de um caráter

sedimentado:

a) na fidelidade - Ó como São José era fiel!

Page 159: LENICE AMÉLIA DE SÁ MARTINS - sapientia.pucsp.br AMELIA... · Esboço teórico ... mundo espiritual e o temporal. ... paternidade, embora ele e sua esposa Isabel, que era estéril,

159

b) na dedicação ao trabalho e à família - Eu o via com amor, dedicado no

trabalho e na guarda de nossa sagrada família;

c) na intrepidez e responsabilidade - Via-o em seu trabalho humilde, pobre

e penoso ensinando a Jesus o seu oficio de carpinteiro;

d) numa firme confiança – O primeiro exemplo de José é a confiança em

Deus;

e) no altruísmo - ele não ousou difamar-me (...);

f) no recolhimento místico – Retirou-se à parte e se entregou à oração e

meditação;

g) na escuta à voz de Deus – Depois, recebeu-me como esposa;

h) na generosidade – Ele foi o sustentáculo precioso;

i) no silêncio – Nenhuma reclamação(...).

O segundo recurso é o do testemunho, mais significativo que o anterior, pois

no dizer de Pedrini (1995, p. 101),

... o testemunho é uma grande força para convencer, para confirmar. Um testemunho convence mais, muito mais do que palestras, livros ou escritos. Exatamente porque o testemunho é prova, é fato, e traz a força da experiência pessoal, da certeza experimentada, de verdade presenciada, comprovada pessoalmente.

É exatamente o que acontece em relação às virtudes do delocutário sagrado

(José): o locutor fala do que viu, ou seja, de uma verdade pessoalmente

comprovada: Eu o via.

Essa firmeza e autenticidade do sujeito da referência provoca no sujeito

falante um efeito de retorno ao passado que se apresenta imerso numa atmosfera

de enlevo, atmosfera esta que se manifesta, principalmente em três enunciados:

a) Naquele que revela o envolvimento afetivo do locutor – Eu o via com

amor;

b) No enunciado exclamativo – Ó como José era fiel!

c) No enunciado de estrutura nominal – Nenhuma reclamação sua ao longo

do caminho!

Page 160: LENICE AMÉLIA DE SÁ MARTINS - sapientia.pucsp.br AMELIA... · Esboço teórico ... mundo espiritual e o temporal. ... paternidade, embora ele e sua esposa Isabel, que era estéril,

160

Os dois últimos enunciados produzem uma sensação de estaticidade como

acontece com a fotografia, o que resulta numa fixação no objeto rememorado ou

numa prazerosa contemplação.

O argumento, porém, mais forte, mais significante em prol da magnanimidade

de José é, sem duvida, a paternidade (segundo a lei) do Verbo Encarnado e o fato

de ser esposo Daquela que concebeu , deu à luz e amamentou o Filho de Deus.

Outra realização lingüística digna de destaque diz respeito ao emprego do

performativo explicito consignado no ato de abençoar:

(8.4) - Hoje, na festa de José, meu castíssimo esposo, eu os abençôo em

Nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo!

O quadro vocal aqui apresentado, como aconteceu nos discursos apreciados

anteriormente, constitui-se de vozes acionadas pelos diferentes papéis assumidos

pelos sujeitos da enunciação.

Com a análise de umas das mensagens que tem como cenário a paulistana

cidade de Jacareí, chegamos ao fim de um mergulho na tecelagem vocal de

algumas das “mensagens” da Virgem Maria codificadas em Língua Portuguesa.

Neste último capítulo, procuramos examinar quatro discursos de “vidências”

da contemporaneidade e produzidos em solo brasileiro: dois em Angüera

(1987/2000); um de Itaperuna (1995) e um em Jacareí (1993). Embora esses

discursos originados no Brasil distem, de modo considerável, diacrônica e

geograficamente daqueles de além-mar, existem notáveis semelhanças entre eles,

no tocante:

a) ao jogo polifônico aí engendrado (polifonia “stricto sensu” e

intertextualidade);

b) ao conteúdo central das mensagens (amor, oração, penitência e

conversão);

c) aos interactantes (“vidente” e a “Virgem Maria”) e sujeitos da referência

mais freqüentes (Deus em suas Tríplices Pessoas, Igreja, o ser humano

= pecadores, devotos, filhos);

Page 161: LENICE AMÉLIA DE SÁ MARTINS - sapientia.pucsp.br AMELIA... · Esboço teórico ... mundo espiritual e o temporal. ... paternidade, embora ele e sua esposa Isabel, que era estéril,

161

d) à doutrina da Igreja Católica (céu, inferno e purgatório; maternidade e

poder de intercessão de Maria, a Mãe de Jesus; Eucaristia).

e) Ao eco à voz da Sagrada Escritura, especialmente do Novo Testamento.

No entanto, um cotejo entre os discursos dos dois países, sob outro olhar,

revela que há neles algumas diferenças, embora sem muita signicação, como por

exemplo: nos discursos contemporâneos, a interação se processa sem alternância

de turnos, enquanto nos lusitanos ocorre a dialogicidade . Esses últimos têm como

sujeito da recepção os três videntes (Lúcia, Francisco e Jacinta), como testifica a

locução: Vim para vos pedir que venhais aqui seis meses seguidos (...). Depois vos

direi quem sou e o que quero (Cf. p. 91); já no Brasil, o alocutário são todos os

católicos, ou seja, os filhos do locutor, conforme atesta o vocativo “filhos” que

aparece nas quatro mensagens (cf. ps. 123, 131, 143 e 155).

Todas essas características, porém, tanto as comuns aos discursos das duas

nações, quanto aquelas peculiares a cada um deles apontam para o objeto que

constitui a hipótese desta tese – o discurso da “vidência”, em qualquer época ou

nação, reflete e propaga a ideologia da Igreja Católica.

Page 162: LENICE AMÉLIA DE SÁ MARTINS - sapientia.pucsp.br AMELIA... · Esboço teórico ... mundo espiritual e o temporal. ... paternidade, embora ele e sua esposa Isabel, que era estéril,

162

CONCLUSÃO

Nesta atividade investigativa norteada pelo tema: O Discurso da Vidência –

Cruzamento Vocal na Interlocução entre Céu e Terra, assumimos como meta

prioritária mostrar o “rosto” dessa interlocução, extraindo do discurso as vozes

internas que aí se cruzam, quer seja na interação (locutor/enunciador X

alocutário/destinatário), quer seja na referência (delocutário) como também aquelas

externas que se imiscuem na enunciação pela via da intertextualidade.

O elemento desencadeador desse percurso analítico foi a hipótese de que o

discurso da “vidência” espelha o da Igreja Católica, em sua ideologia, uma vez que

tal discurso está impregnado da doutrina e dos ensinamentos dessa Instituição. Para

fundamentar essa suposição, procuramos demonstrar que a crença na possibilidade

de um diálogo entre os mundos espiritual e temporal tem suas raízes no Antigo

Testamento e atravessa o povo da Nova Aliança, destacando dentre essas

teofanias, a vocação do patriarca Abraão, a anunciação do nascimento do Messias e

as manifestações de Jesus, após a sua ressurreição. E, como herdeira dessa fé

bíblica, a Igreja pós-apostólica sempre aceitou que céu e terra podem interagir não

só no plano espiritual, mas visivelmente também. Sendo assim, ela estabelece

critérios para o julgamento da autenticidade de tais fenômenos e, a partir de sua

comprovação, institui devoções (Sagrado Coração de Jesus, Medalha Milagrosa,

Imaculado Coração de Maria, Divina Misericórdia), constrói Santuários (Fátima,

Lourdes, Guadalupe,) canoniza videntes (Margarida Alacoc, Bernadete Soubirous ).

No transcurso rumo aos objetivos visados, elegemos como procedimentos

metodológicos:

1) entrevista com alguns dos personagens envolvidos nos fenômenos

expostos nos textos que compõem o “corpus” do trabalho;

2) leitura reflexiva de livros, revistas, páginas da internet e fitas (cassete e de

vídeo) que têm tais fenômenos como conteúdo;

3) leitura atenta da Bíblia e de obras da literatura católica (Catecismo da

Igreja Católica, Concílio Vaticano II, etc), na busca de pistas para

comprovação da hipótese;

Page 163: LENICE AMÉLIA DE SÁ MARTINS - sapientia.pucsp.br AMELIA... · Esboço teórico ... mundo espiritual e o temporal. ... paternidade, embora ele e sua esposa Isabel, que era estéril,

163

4) estudo de obras referentes à teoria aqui adotada, Teoria da Enunciação e

Análise do Discurso, na demanda de subsídios para fundamentar a

análise dos dados, os quais se constituem de:

a) quatro textos alusivos às “aparições” de Fátima (Portugal): o primeiro

referente à descrição da figura “percebida” pelos três pequenos pastores

(Francisco, Jacinta e Lúcia) e os três primeiros da interlocução entre a

“Bela Senhora” e Lúcia: 13 de maio (1ª aparição); 13 de junho (2ª

aparição) e 13 de julho (3ª aparição);

b) dois que dizem respeito às aparições de Angüera (Bahia) – 10 de outubro

de 1987 e 04 de janeiro do ano de 2000;

c) um alusivo aos fenômenos de Itaperuna (Rio de Janeiro) – 1º de julho de

1995;

d) um referente às “aparições” de Jacareí (São Paulo) – 1º de julho de 1995;

Dentre os postulados teóricos nas quais nos alicerçamos, priorizamos os

pontuados pela Análise do Discurso, em virtude de essa ciência ocupar-se com as

expressões lingüísticas de sujeitos concretos que atuam sob determinadas

condições de produção, como: tempo, lugar, papéis representados pelos

interlocutores, sua vinculação histórico-social e os objetivos a que visam.

No âmbito da Análise do Discurso dedicamos um capítulo ao Discurso

Religioso, uma vez que é nele que se enquadra este trabalho. Mas como o seu foco

é o adentramento na urdidura vocal (polifonia) do discurso das “vidências” aqui

selecionadas, procuramos investigar, na materialidade lingüística:

a) o imbricamento das várias vozes inscritas nas ações discursivas;

b) os papéis executados pelos sujeitos da enunciação (locutor e alocutário) e

da referência (delocutário);

c) as diversas vozes externas que se imiscuem, no processo enunciativo, por

meio da intertextualidade e sua função como veiculadora da ideologia

subjacente.

Atentando-nos, numa primeira dimensão, para a atividade interlocutória

desempenhada por seus protagonistas, demonstramos que essa ação se desenvolve

Page 164: LENICE AMÉLIA DE SÁ MARTINS - sapientia.pucsp.br AMELIA... · Esboço teórico ... mundo espiritual e o temporal. ... paternidade, embora ele e sua esposa Isabel, que era estéril,

entre esferas dissimétricas – o mundo temporal e o mundo atemporal. Essa interação,

porém, consubstancia-se (segundo o relato dos videntes) em dois níveis – dialogal e

não dialogal. Em Fátima, a interação se processa com alternância de turnos que são

assumidos ora pelo sujeito celeste (SL) ora pelo sujeito terrestre (ST), ou seja, Lúcia,

única dos três videntes envolvida na interlocução, pois, de acordo com os textos

analisados, Jacinta “via” e “ouvia” a Figura Misteriosa, mas não dialogava com ela, e

Francisco “via-a”, mas não a “ouvia”. Já nas três “vidências” ocorridas no Brasil

(Angüera, Itaperuna e Jacareí), a interação acontece sem alternância de turnos, visto o

discurso ser “monitorado” exclusivamente pelo sujeito da esfera atemporal. Não há,

portanto, ação dialogal, mas um único turno, detido pelo sujeito que tem a primazia, o

que comprova as palavras de Orlandi (1996, p. 243): “no discurso religioso há um

desnivelamento fundamental entre locutor e ouvinte”.

Esses dois níveis podem ser visualizados no esquema abaixo:

PROCESSO INTERATIVO

1º NÍVEL ; DIALOGAL

Scl ST

2º NÍVEL: NÃO -DIALOGAL

Scl ST

FIGURA 10 – Níveis de interação no discurso da vidência

Em ambos os casos, porém, essa interação tem características de uma fala

que se aproxima da escrita, pois, como a modalidade oral, ela emerge no momento

mesmo da interação, uma vez que as mensagens são grafadas ou gravadas durante

a sua recepção, como atesta o seguinte enunciado:

A mensagem que Ela transmite é anotada rapidamente por Pedro em uma das folhas de papel ofício sobre uma prancheta (...). Logo depois da aparição, ele se levanta e lê a mensagem para todos. (Apelos Urgentes de Nossa Senhora Rainha da Paz em Angüera na Bahia, 1993, p. 07)

Numa segunda instância polifônica, construída pelas múltiplas funções

executadas pelas camadas enunciativa (locutor e alocutário) e enunciva

164

Page 165: LENICE AMÉLIA DE SÁ MARTINS - sapientia.pucsp.br AMELIA... · Esboço teórico ... mundo espiritual e o temporal. ... paternidade, embora ele e sua esposa Isabel, que era estéril,

165

(delocutário), podemos perceber um concerto sobreposto (polifonia “stricto sensu”,

conforme Ducrot, 1987), no qual tanto os sujeitos da interlocução quanto o da

referência podem aparecer desdobrados.

No campo da interlocução, os interactantes, consoante sua inscrição na ação

enunciativa, nos oito textos analisados desempenham as funções de:

1º Na produção:

a) locutor L, responsável pela enunciação;

b) locutor LP, revestido das características pessoais;

c) locutor LC, mais de uma voz formando uma univocidade.

2º Na recepção:

a) Alocutário – AL, correlato do locutor L;

b) Alocutário – ALP, correspondente do locutor LP;

c) Alocutário ALC, carteante do locutor LC.

3º Na enunciação (perspectiva do locutor):

a) enunciador individual – EI, que pode coincidir com o locutor L ou LP;

b) sui-enunciador – SE, ou seja, auto-enunciação;

c) enunciador eclesial – EE: voz da Igreja;

d) enunciador divinal – EDV, voz de Deus;

e) enunciador coletivo – EC, voz de uma comunidade específica.

O enunciador é o sujeito que se manifesta na perspectiva do locutor. Nos

discursos contemplados, essa voz é representativa dos mais variados lugares:

• Santíssima Trindade (Pai, Filho e Espírito Santo);

• Igreja (povo ou hierarquia)

• Sagrada Escritura.

Page 166: LENICE AMÉLIA DE SÁ MARTINS - sapientia.pucsp.br AMELIA... · Esboço teórico ... mundo espiritual e o temporal. ... paternidade, embora ele e sua esposa Isabel, que era estéril,

166

E já que o enunciador é um sujeito da produção, ele tem também seu

correlato, no nível da recepção – o destinatário.

4º No plano enuncivo

Nessa instância, as vozes são ainda mais diversificadas, pois, em qualquer

processo enunciativo, o referente sempre ultrapassa em número os protagonistas.

No caso dos discursos aqui analisados, o delocutário concretiza entidades.

a) da esfera celeste: divinas (Deus Pai, Deus Filho, Deus Espírito Santo);

santos (Virgem Maria e São José) e anjos;

b) da esfera terrestre; Igreja, clero, videntes, etc;

c) da esfera infernal (demônios e almas condenadas.

O terceiro tipo de malha vocal ativada na produção do discurso da “vidência”

é constituída de vozes externas, incorporadas por citação direta e, principalmente,

por alusão. Nos dois casos,porém, sua fonte originária é a Sagrada Escritura.

Essa intromissão da voz bíblica opera não só como autoridade, no sentido de

referendação da voz do “vidente”, mas também como estratégia de atualização dos

ensinamentos de Jesus e dos Apóstolos. É, pois, uma manobra de construção da

argumentatividade que atua como instrumento de persuasão, já que a consonância

das mensagens da vidência com a Bíblia é um dos fortes critérios afixados pela

Igreja Católica para um possível reconhecimento de sua autenticidade.

Além da incorporação de vozes bíblicas, intrometem-se, nos discursos aqui

contemplados, outras provindas da Igreja Católica e até de outras vidências.

Conclui-se, portanto que o discurso aqui examinado forma um concerto

constituído de variadas vozes, regido pela batuta de um maestro que, de acordo

com a crença de muitos católicos (não são todos) vem das paragens celestes.

E aí está a possibilidade de uma resposta para a pergunta que abre o terceiro

capítulo desse trabalho – Aparições da Virgem Maria: mito ou realidade? A

concretização dessa resposta, portanto, está no âmago da consciência de cada

pessoa que interagir com essas páginas. É a sua visão de mundo, sua ideologia que

vai determinar o real ou o imaginário no tocante ao sujeito do mundo espiritual dos

Page 167: LENICE AMÉLIA DE SÁ MARTINS - sapientia.pucsp.br AMELIA... · Esboço teórico ... mundo espiritual e o temporal. ... paternidade, embora ele e sua esposa Isabel, que era estéril,

167

discursos analisados. É o direito de crer e de não crer desse leitor que definirá se tal

sujeito, seja na emissão (locutor), seja na recepção (alocutário) consubstancia-se

como verdadeiro ou virtual. Seja qual for, no entanto, o sentimento desse sujeito-

leitor (fé ou ceticismo), para a Análise do Discurso, os textos aqui contemplados

encerram uma realidade lingϋístico-discursiva constituída por vozes que se

entrelaçam numa perceptível ação interlocutória. O produto, portanto, independe de

qualquer reação perante os fatos apresentados, uma vez que ele é essencialmente

uma atividade lingüística (Análise do Discurso) e não religiosa (Ciência da Religião,

Teologia, etc).

Entrego, pois, ao meu interlocutor, nesta tese, a análise de uma das vertentes

do Discurso Religioso Católico – O Discurso da Vidência – centralizada em algumas

das “Aparições” da Virgem Maria codificadas em língua portuguesa.

Na instância final dessa caminhada, é possível inferirmos que os objetivos

propostos foram atingidos e a hipótese erigida confirmada, uma vez que foram

apresentadas as peculiaridades que constituem o naipe polifônico das “vidências”

aqui examinadas e demonstrado que esse discurso está em consonância com o da

Igreja Católica em seus ensinamentos, em sua doutrina e até em seus atos

devocionais.

Page 168: LENICE AMÉLIA DE SÁ MARTINS - sapientia.pucsp.br AMELIA... · Esboço teórico ... mundo espiritual e o temporal. ... paternidade, embora ele e sua esposa Isabel, que era estéril,

168

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁGICAS

AGOSTINHO, Santo. Confissões: texto integral. Trad. Alex Marins. São Paulo:

Martin Claret. 2003.

ALVES, Rubem. O enigma da religião. Campinas: Papirus, 1988.

__________ . O que é religião. 10. ed. São Paulo: Ars Poética, 1996.

ALTHUSSER, Louis. Ideologia e aparelhos ideológicos do estado. Trad. J. J.

Moura Ramos. Lisboa: Presença/Martins Fontes, 1974.

APELOS urgentes de Nossa Senhora rainha da paz em Angüera, Bahia:

Mensagens de 17 de julho 1999 a 30 de agosto de 2000, v. 7, 1607-1785. Feira de

Santana, BA, [s.n.], [2001?].

ASCOMBRE, J. C. e DUCROT, Osvald. L´Argumentation dans la langue.

Languages, 42. Didier – Larousse, Paris, 5-27, 1976.

ASSOCIAÇÃO DO SENHOR JESUS. Louvemos o Senhor 2005: 33 anos de

louvor. Campinas, SP: ASJ, 2005.

AUSTIN, Jonhn. Langshow. Quando dizer é fazer: palavras e ação. Trad. Danilo

Marcondes de Souza Filho. Porto Alegre: Artes Médicas, 1990.

AUTHIER-REVUZ, Jaqueline. Hétérogéneité, montreé et hétérogéneité constitutive: elements pour une approche de l´autre dans le discours. DRLAV-

Révue de Linguistique. Paris, n. 26, p. 9. 91-151, 1982.

ANGELOZZI, Gilberto Aparecido. Aparecida: a Senhora dos esquecidos. Petrópolis:

Vozes, 1993.

BARROS, Diana Luz Pessoa de e FIORIN, José Luiz. Dialogismo, polifonia, intertextualidade. São Paulo: EDUSP, 1994.

Page 169: LENICE AMÉLIA DE SÁ MARTINS - sapientia.pucsp.br AMELIA... · Esboço teórico ... mundo espiritual e o temporal. ... paternidade, embora ele e sua esposa Isabel, que era estéril,

169

BARBOSA, Oswaldo; CUBACKOVIC, Marijan; BACAICOA, Marino. Como tudo começou. Rainha da Paz: Medjugorje: dez anos de aparições. Ed. comemorativa

Belo Horizonte: Edição comemorativa, 1991.

BARTHES, Roland. Introduction à L’ analyse structural des récits. Comunications

8, Paris, 1 – 27, 1966.

BELLENGER, Lionel. A persuasão. Trad. Waltensin Dutra. Rio de Janeiro: Jorge

Zaher Editor, 1987.

BENVENISTE, Emile. Problemas de lingüística geral I. 4. ed. Trad. Maria da Glória

Novak e Maria Luiza Néri. Campinas: Pontes, 1995.

__________. Problemas de lingüística geral II. Trad. Eduardo Guimarães et al.

Campinas: Pontes, 1989.

Bíblia Sagrada. Trad. Dos originais mediante a versão dos Monges de Maredsous

pelo Centro Bíblico Católico: 104 ed. São Paulo: Ave Maria, 1996.

BITTENCOURT, Vanda de Oliveira. Os astros falam, eu revelo. SEMINÁRIO DO

GEL, 39, Franca, 1991. Anais..., WXXI. Jaú: Fundação Educacional Dr. Raul Banal,

1992, v. 1, p. 487-494.

__________. O discurso publicitário de origem popular. Revista de estudos da linguagem. Belo Horizonte, v. 2, n. 3, p. 70-98, 1995.

BRANDÃO, Helena H. Nagamini. Introdução à análise do discurso. 7. ed. São

Paulo: Editora da UNICAMP, 1995.

__________. Subjetividade, argumentação, polifonia. A propaganda da

Petrobrás. São Paulo: Fundação Editora da UNESP, 1998.

BRONCKART, Jean-Paul. Atividade de linguagem, textos e discursos: por um

interacionismo sócio-discursivo. 1. ed. Trad. Anna Raquel Machado; Péricles Cunha.

São Paulo: EDUC, 2003.

CATECISMO da Igreja Católica. 3. ed. Petrópolis: Vozes; São Paulo: Paulus;

Paulinas; Loyola; Ave Maria, 1993.

Page 170: LENICE AMÉLIA DE SÁ MARTINS - sapientia.pucsp.br AMELIA... · Esboço teórico ... mundo espiritual e o temporal. ... paternidade, embora ele e sua esposa Isabel, que era estéril,

170

CECHINATO, Pe. Luiz. Os vinte séculos de caminhada da Igreja: primeiros

acontecimentos da cristandade, desde os tempos de Jesus até João Paulo II.

Petrópolis: Vozes, 1996.

CERCHIARI, Maria do Socorro Chaves (org.). Apelos urgentes de Nossa Senhora Rainha da Paz em Angüera na Bahia. 9. ed. (700 mensagens) Salvador: [s.n.],

1993.

CERVONI, Jean. A enunciação. São Paulo: Ática, 1989.

CESCA, Olívio. Da aduana ao terceiro céu: a aventura mística de Raymundo

Lopes. Porto Alegre: Myrian, 2001.

CHAUÍ, Marilena. O que é ideologia. 6. ed. São Paulo: Brasiliense, 1980.

Chama de amor do Imaculado Coração de Maria. 3. ed. Porto Alegre: Livraria e

Editora Padre Réus, [19--?].

CITELLI, Adilson. Linguagem e persuasão. 9. ed. São Paulo: Ática, 1995.

COMISSÃO EPISCOPAL DE DOUTRINA (CED – CNBB). Aparições e revelações particulares. 3. ed. São Paulo: Paulinas, 1990. (Subsídios Doutrinais da CNBB, 1).

CONCÍLIO VATICANO (2. : 1962-1965). Lúmen gentium: Constituição dogmática

sobre a Igreja. 16. ed. São Paulo: Paulinas, 2003. (A voz do Papa, 31).

CONCÍLIO VATICANO (2. : 1962-1965). Vaticano II: mensagens, discursos e

documentos. São Paulo: Paulinas, 1998.

D´ASSUNÇÃO, Evaldo Alves. Sudário de Turim: o evangelho para o século XX. 2.

ed. São Paulo: Loyola, 1984.

DIAS, João S. Clã. Fátima. Aurora do terceiro milênio. 10. ed. Campinas, SP:

Takano Editora Gráfica Ltda, 1999.

DELFINA, Gilberto Maria, Pe. Prefácio: As revelações particulares. In: Gomes, Luiz.

O terceiro segredo de Fátima: o fim dos tempos. Divinópolis; Gráfica Sidil, 1993.

DUCROT, Oswald. O dizer e o dito. Campinas, SP: Pontes, 1987.

Page 171: LENICE AMÉLIA DE SÁ MARTINS - sapientia.pucsp.br AMELIA... · Esboço teórico ... mundo espiritual e o temporal. ... paternidade, embora ele e sua esposa Isabel, que era estéril,

171

FÁVERO, Leonor Lopes. Coesão e coerência textuais. 7. ed. São Paulo: Ática,

1999.

FÁVERO, Leonor Lopes, KOCH, Ingedore G. Villaça. Lingüística textual: introdução. 2. ed. São Paulo: Cortez, 1988.

FÁVERO, Leonor Lopes e PASCHOAL, Mara S. Z. (orgs.). Lingüística textual: texto

e leitura. Cadernos da PUC. São Paulo: EDUC, v. 22, p. 39-87, 1986.

FÁVERO, Leonor Lopes, ANDRADE, Maria Lúcia da Cunha V. de Oliveira, AQUINO,

Zilda Gaspar Oliveira de. Oralidade e escrita: perspectiva para o ensino de língua

materna. São Paulo: Cortez, 1999.

FIORIN, José Luiz. Linguagem e ideologia. São Paulo: Ática, 1988.

__________. Elementos de análise do discurso. 4. ed. São Paulo: Contexto,

1994.

__________. As astúcias da enunciação: as categorias de pessoa, espaço e

tempo. São Paulo: Ática, 1996.

FOUCAULT, Michel. Arqueologia do saber. Trad. Luiz Felipe Baeta Neves.

Petrópolis, RJ: Vozes, 1971.

GAMBARINI, Alberto Pe. Maria, a mensageira do céu. 5. ed. São Paulo: Loyola,

[s.d.].

___________. O milagre da eucaristia: para você. 6. ed. São Paulo: Loyola, 2005.

GOMES, Luiz. O terceiro segredo de Fátima: O fim dos tempos: uma mensagem

para a Igreja e para toda a humanidade. O advento da segunda vinda de Jesus.

Divinópolis: Gráfica Sidil, 1993.

GUIMARÃES, Eduardo (org.). História e sentido da linguagem. Campinas: Pontes,

1989.

HOUTART, François. Sociologia da religião. Trad. Mustafá Yasbeck. São Paulo:

Ática, 1994.

Page 172: LENICE AMÉLIA DE SÁ MARTINS - sapientia.pucsp.br AMELIA... · Esboço teórico ... mundo espiritual e o temporal. ... paternidade, embora ele e sua esposa Isabel, que era estéril,

172

Igreja Católica. Oração das horas: laudes, oração das doze horas (hora média),

vésperas, completas. Petrópolis, RJ: Vozes; Paulinas; Paulus; Ave Maria, 1996.

JAKOBSON, Roman. Lingüística de comunicação. Trad. Isidoro Blikstein José

Paulo Paés. São Paulo: Cultrix, 1969.

KOCH, Ingedore Grunfeld. Villaça. A interação pela linguagem. São Paulo:

Contexto, 1992.

____________. Argumentação e linguagem. 2. ed. São Paulo: Cortez, 1996.

____________. O texto e a construção dos sentidos. São Paulo: Contexto, 1997.

KOCH, Ingedore Gunfeld Villaça, TRAVAGLIA, Luiz Carlos. Texto e coerência. 5.

ed. São Paulo: Cortez, 1997.

KRIEGER, Dom Murilo. Com Maria, a mãe de Jesus. 2. ed. São Paulo: Paulinas,

2002.

KRISTEVA, Júlia. História da linguagem. Lisboa: Edições 70, 1974.

LIBÂNIO, João Batista. A religião no início do milênio. São Paulo: Loyola, 2002.

LOPES, Maria Ângela P.T. O processamento dêitico da constituição da polifonia. Belo Horizonte: PUC/MINAS, 1998. (dissertação, Mestrado em língua

portuguesa).

Louvemos o Senhor 2005. Campinas, São Paulo: Associação do Senhor Jesus.

MACHADO, Antônio Augusto Borelli. As aparições e a mensagem de Fátima conforme os manuscritos de Irmã Lúcia. 18. ed. São Paulo: Vera Cruz, 1983.

MAINGUENEAU, Dominique. Genéses du discours. Bruscelles: Pierre Mardaga.

Ed., 1984.

___________. Novas tendências em análise do discurso. 3. ed. Trad. Frida

Indurski. Campinas: Pontes, 1989.

Page 173: LENICE AMÉLIA DE SÁ MARTINS - sapientia.pucsp.br AMELIA... · Esboço teórico ... mundo espiritual e o temporal. ... paternidade, embora ele e sua esposa Isabel, que era estéril,

173

___________. Análise de textos de comunicação. Trad. Cecília P. de Souza-e-

Silva; Décio Rocha. São Paulo: Cortez, 2001.

MARCOS Tadeu. Jesus e Maria nas aparições de Jacareí. São Paulo: Loyola,

2000.

MARIOTTI, Alides Destri; LUGNANI, Antônio Carlos e SOUSA, Ronaldo José.

Polifonia e tipologia textual. Cadernos da PUC. São Paulo: EDUC, v. 9, n. 22, p.

75-88, 1986.

Renovação Carismática Católica: carismas. Secretaria Paulo Apóstolo, apostila

02, Módulo Básico. São Paulo: Raboni, [s.d.].

MARTINS, Lenice Amélia de Sá. O discurso da Renovação Carismática Católica:

a constituição da polifonia no “Encontro Semanal de Orações”. Belo Horizonte:

PUC/Minas Gerais, 1999 (dissertação, mestrado em Língua Portuguesa).

MELLO, Fernando dos Reis de. Religião e religiões: perguntas que muita gente

faz. 3. ed. Aparecida: Santuário, 1977.

MOIRAND, Sophie. Une grammaire des textes et des dialogues. Paris: Hachelte,

1990.

MURAD, Afonso. Maria, toda de Deus e toda humana. São Paulo: Paulinas, 2006.

NASCIMENTO, Jarbas Vargas. O discurso religioso católico: um estudo

lingüístico das marcas do discurso litúrgico do rito matrimonial. São Paulo: PUC/SP,

1990 (Dissertação, mestrado em Língua Portuguesa).

Nossa Senhora Mãe do Infinito Amor. 11. ed. Itaperuna, RJ: Hoffman, 2001.

O Caminho. Síntese da doutrina cristã para adultos. 7. ed. São Paulo: Edições

Loyola, 1986.

O Sudário. Produção e direção Alberto De Giglio; Voz de Edson Mazziero. São

Paulo: Verbo Filmes: Ave Maria Omnimidia, 1998. 1 Cassete (75 min.): son., color,

VHS, NTSC (Documentário).

Page 174: LENICE AMÉLIA DE SÁ MARTINS - sapientia.pucsp.br AMELIA... · Esboço teórico ... mundo espiritual e o temporal. ... paternidade, embora ele e sua esposa Isabel, que era estéril,

174

ORLANDI, Eni Pulcinelli. A linguagem e seu funcionamento: as formas de

discurso. 4. ed. São Paulo: Brasiliense, 1983.

__________. Análise de discurso: princípios e procedimentos. Campinas, SP:

Pontes, 1999.

__________. Palavra, fé, poder. Campinas: Pontes, 1987.

__________. Discurso e leitura. 4. ed. Campinas/SP: Cortez, 1988.

ORLANDI, Eni Pulcinelli, GUIMARÃES, Eduardo, TARALLO, Fernando. Vozes e contrastes: discurso na cidade e no campo. São Paulo: Cortez, 1999.

PADEN, William E. Interpretando o sagrado: modo de conceber a religião. São

Paulo: Paulinas, 2001.

Padres Marianos. Guia da devoção à Misericórdia Divina: festa da misericórdia.

Curitiba, PR: Congregação dos Padres Marianos, 1987.

Paulo VI e a Renovação Carismática. São Paulo: Loyola, 1978.

PAUL, Hermann. Princípios fundamentais da história da língua. Trad. Maria

Luísa Shermann. Lisboa: Fundação Calouste, 1996.

PARRET, Herman. Enunciação e pragmática. Trad. Eni P. Orlandi. Campinas:

Editora da UNICAMP, 1988.

PÊCHEUX, Michel. Analyse automatique du discours. Paris: Dunod, 1969.

PEDRINI, Alírio José, Pe. Saiba participar de grupos carismáticos. 11. ed. São

Paulo: Loyola, 1995.

PIRES, Sueli. Estratégias discursivas na adolescência. São Paulo: Arte & Ciência

/ UNIP, 1997.

PONTES, Eunice Souza Lima. O tópico no português do Brasil. Campinas:

Pontes, 1987.

Page 175: LENICE AMÉLIA DE SÁ MARTINS - sapientia.pucsp.br AMELIA... · Esboço teórico ... mundo espiritual e o temporal. ... paternidade, embora ele e sua esposa Isabel, que era estéril,

175

POSSENTI, Sírio. Discurso, estilo e subjetividade. São Paulo: Martins Fontes,

1988.

ROMAN, Ernesto N. Aparições de Nossa Senhora: suas mensagens e milagres. 4.

ed. São Paulo: Paulus, 2003.

SALVADOR, Frei. A grande promessa do sacratíssimo coração de Jesus. Belo

Horizonte: Divina Misericórdia, [1997].

SAUSSURE, Ferdinand de. Curso de lingüística geral. Trad. Antônio Chelini; José

Paulo Paes e Izidoro Blikstein. 20. ed. São Paulo: Cultrix, 1995.

SOLIMEO, Plínio Maria. Santo Sudário: testemunho da paixão, morte e

ressurreição de Cristo. São Paulo: Artpress, 2002.

TRAVAGLIA, Luiz Carlos. Gramática e interação: uma proposta para o ensino de

gramática no 1º e 2º graus. 4. ed. São Paulo: Cortez, 1996.

VALENTE, André. A linguagem nossa de cada dia. 4. ed. Petrópolis, RJ: Vozes,

2001.

Page 176: LENICE AMÉLIA DE SÁ MARTINS - sapientia.pucsp.br AMELIA... · Esboço teórico ... mundo espiritual e o temporal. ... paternidade, embora ele e sua esposa Isabel, que era estéril,

ANEXOS

176