Julio Pinto

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XI Congresso Internacional da ABRALIC Tessituras, Interações, Convergências 13 a 17 de julho de 2008 USP – São Paulo, Brasil Crônica & crítica na ficção policial recente Prof. Dr. Júlio Pimentel Pinto 1 (USP) Resumo A ficção policial recente na América Latina exemplifica a definição de Ricardo Piglia: crônica e crítica social. No lugar da linearidade lógica do policial clássico e do método rígido e fixo, raciocínios labirínticos e difusos, dilemas sociais e políticos do presente. Na contramão do mero entretenimento, a invenção de precursores e a presença de citações e referências aos clássicos. Marcado pela influência de Borges, o caminho que vai da pista à razão é tortuoso, como as histórias policiais de Pablo De Santis, Claudia Piñeyro ou Miguel Sanches Neto demonstram. Elas revelam também o “paradigma indiciário” que Carlo Ginzburg observou predominar no ocidente desde o final do XIX. Alterado, tal paradigma impede a fixidez ou a linearidade na maneira de investigar ou refletir. No lugar de método, postura crítica, que dimensiona a variedade de vozes e olhares e, pela mesclagem, traduz o passado para outra situação e outro código, redimensiona as verdades. Procedimento crítico que aproxima a narrativa policial da história. Palavras-chave: ficção e história; narrativa policial; crítica e método. I. A história da narrativa policial começou faz tempo – e faz tempo que se tornou objeto da crítica. Também é antigo o diálogo entre a ficção e a história e as muitas formas como as duas narrativas se aproximaram ou se distanciaram, como a crítica buscou compreender seus vínculos. Nenhuma das duas discussões, porém, cabe no exígüo espaço que temos. Resta, então, partir de duas constatações: a de que o policial, como gênero – ou subgênero –, já está suficientemente consolidado e a de que ficção e história, embora distintas, se comunicam – e isso não ocorre apenas em função dos conteúdos conjunturais que abordam, mas sobretudo devido aos procedimentos metodológicos e narrativos que compartilham. O tema central aqui é a atual ficção policial na América Latina e sua disposição para a crônica e para a crítica social – tendência que Ricardo Piglia apontou há cerca de vinte anos. No lugar da linearidade lógica que marca o policial clássico, predominam raciocínios labirínticos e difusos. Contra o método rígido e fixo, a mobilidade das idéias e o forte impacto dos dilemas sociais e políticos do presente. Na contramão do mero entretenimento, a invenção de precursores literários e filosóficos e a presença insistente de citações e referências aos clássicos – inclusive aqueles com que se pretende romper. Claro que a observação de Piglia pode ser atribuída à peculiaridade literária argentina e aos rumos da narrativa nos anos 1970 e 1980, que passou – como observou Beatriz Sarlo - da representação discursiva do social à representação dos discursos sociais (SARLO, 1983). Privilegiou-se a representação de diversas formas discursivas para questioná-las, dando lugar a narrativas mescladas, em que se misturavam jornalismo, testemunho, história, crônica, relato etnográfico, policial, psicanálise, cinema. Há antecedentes óbvios dessa disposição para a mescla na tradição argentina: o Facundo, de Domingos Faustino Sarmiento, no século XIX (que combina, entre outros, autobiografia, teoria social, relato de viagem, ensaio, ficção e história), e a posição central de Jorge Luis Borges no século XX argentino, com sua obra que dissolve qualquer limite entre gêneros ou modalidades narrativas. Borges, aliás, talvez tenha sido uma espécie de precursor do policial crítico e, em vários sentidos, autocrítico. Seu relato mais marcante – “La muerte y la brújula” – recolhe o detetive analítico a seu próprio universo lógico, desconectando-o da realidade e, em conseqüência, da possibilidade de solucionar os crimes. Os escritos em parceria com Adolfo Bioy Casares, sob os pseudônimos de Honorio Bustos Domecq e B. Suárez Lynch, são paródicos e, pelo fio do riso, reinventam o gênero. Piglia, leitor criterioso de Borges, explorou essa tradição da mescla e se tornou um dos exemplos mais marcantes da hibridização da narrativa argentina recente. Foi também o autor que mais recorreu ao policial para, nele, encontrar as possibilidades narrativas

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Crônica & crítica na ficção policial recente

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XI Congresso Internacional da ABRALIC Tessituras, Interaes, Convergncias 13 a 17 de julho de 2008USP So Paulo, Brasil Crnica & crtica na fico policial recente Prof. Dr. J lio Pimentel Pinto1 (USP) Resumo AficopolicialrecentenaAmricaLatinaexemplificaadefiniodeRicardoPiglia:crnicae crticasocial.Nolugardalinearidadelgicadopolicialclssicoedomtodorgidoefixo, raciocnioslabirnticosedifusos,dilemassociaisepolticosdopresente.Nacontramodomero entretenimento,ainvenodeprecursoreseapresenadecitaeserefernciasaosclssicos. MarcadopelainflunciadeBorges,ocaminhoquevaidapistarazotortuoso,comoas histrias policiais de Pablo De Santis, Claudia Pieyro ou Miguel Sanches Neto demonstram. Elas revelam tambm o paradigma indicirio que Carlo Ginzburg observou predominar no ocidente desdeofinaldoXIX.Alterado,talparadigmaimpedeafixidezoualinearidadenamaneirade investigar ou refletir. No lugar de mtodo, postura crtica, que dimensiona a variedade de vozes e olhares e, pela mesclagem, traduz o passado para outra situao e outro cdigo, redimensiona as verdades. Procedimento crtico que aproxima a narrativa policial da histria. Palavras-chave: fico e histria; narrativa policial; crtica e mtodo. I. A histria da narrativa policial comeou faz tempo e faz tempo que se tornou objeto da crtica. Tambm antigo o dilogo entre a fico e a histria e as muitas formas como as duas narrativas se aproximaram ou se distanciaram, como a crtica buscou compreender seus vnculos. Nenhuma das duas discusses, porm, cabe no exgo espao que temos. Resta, ento, partir de duasconstataes:adequeopolicial,comogneroousubgnero,jestsuficientemente consolidado e a de que fico e histria, embora distintas, se comunicam e isso no ocorre apenas emfunodoscontedosconjunturaisqueabordam,massobretudodevidoaosprocedimentos metodolgicos e narrativos que compartilham. O tema central aqui a atual fico policial na Amrica Latina e sua disposio para a crnica e para a crtica social tendncia que Ricardo Piglia apontou h cerca de vinte anos. No lugar da linearidadelgicaquemarcaopolicialclssico,predominamraciocnioslabirnticosedifusos. Contra o mtodo rgido e fixo, a mobilidade das idias e o forte impacto dos dilemas sociais e polticos do presente. Na contramo do mero entretenimento, a inveno de precursores literrios e filosficos e a presena insistente de citaes e referncias aos clssicos inclusive aqueles com que se pretende romper. Claro que a observao de Piglia pode ser atribuda peculiaridade literria argentina e aos rumosdanarrativanosanos1970e1980,quepassoucomoobservouBeatrizSarlo-da representaodiscursivadosocialrepresentaodosdiscursossociais(SARLO,1983). Privilegiou-searepresentaodediversasformasdiscursivasparaquestion-las,dandolugara narrativasmescladas,emquesemisturavamjornalismo,testemunho,histria,crnica,relato etnogrfico, policial, psicanlise, cinema. H antecedentes bvios dessa disposio para a mescla na tradio argentina: o Facundo, de Domingos Faustino Sarmiento, no sculo XIX (que combina, entre outros, autobiografia, teoria social, relato de viagem, ensaio, fico e histria), e a posio central de J orge Luis Borges no sculo XX argentino, com sua obra que dissolve qualquer limite entre gneros ou modalidades narrativas. Borges, alis, talvez tenha sido uma espcie de precursor do policial crtico e, em vrios sentidos, autocrtico. Seu relato mais marcante La muerte y la brjula recolhe o detetive analtico a seu prprio universo lgico, desconectando-o da realidade e, em conseqncia, da possibilidade de solucionar os crimes. Os escritos em parceria com Adolfo Bioy Casares, sob os pseudnimos de Honorio Bustos Domecq e B. Surez Lynch, so pardicos e, pelo fio do riso, reinventam o gnero. Piglia, leitor criterioso de Borges, explorou essa tradio da mescla e se tornou um dos exemplos mais marcantes da hibridizao da narrativa argentina recente. Foi tambm o autor que mais recorreu ao policial para, nele, encontrar as possibilidades narrativas XI Congresso Internacional da ABRALIC Tessituras, Interaes, Convergncias 13 a 17 de julho de 2008USP So Paulo, Brasil da associao de gneros, sem lev-los fuso e mantendo a tenso contnua entre eles. Obteve, dessa forma, um efeito em que se reconhece continuamente a alteridade e se destaca a presena de um outro que pode ser outro tempo, outro gnero, outra obra assimilado e traduzido na narrativa presente. Constitui assim o olhar do crtico, de quem recusa os limites da anlise e sonda a tradio para,apartirdela,enunciarpossibilidadesinterpretativasqueconsideremsimultaneamentea histria e suas temporalidades, a formulao dos modelos genricos e sua variao por meio da historicidadedasleituraspossveisacadatempoeacadaexperinciavivida.Aliteratura,para Piglia, se torna, nesses termos, um efeito, um espao fraturado, onde circulam diversas vozes, que so sociais (PIGLIA, 1993, p. 20). A crtica, por sua vez, imiscuda na literatura, , segundo Piglia,umaformafreudianadeautobiografia.Umaautobiografiaideolgica,terica, poltica, cultural. E digo autobiografia porque toda crtica escrita a partir de um lugar preciso e de uma posio concreta. O sujeito da crtica costuma se mascarar de um mtodo (...) mas sempre est presente. E reconstruir sua histria e seu lugar o melhor modo de ler crtica. (PIGLIA, 1993, p. 20)Se a fico se divisa com o mistrio, a crtica se confunde com a narrativa policial: As relaes da literatura com a histria e com a realidade so sempre elpticas e cifradas. A fico constri enigmas com os materiais ideolgicos e polticos, os disfara,ostransforma,ospesempreemoutrolugar(...)muitasvezesvejoa crtica como uma variante do gnero policial. O crtico como detetive que trata de decifrar um enigma ainda que no haja enigma. O grande crtico um aventureiro que se move entre os textos buscando um segredo que s vezes no existe. um personagem fascinante: o decifrador de orculos, o leitor da tribo. Benjamin lendo a Paris de Baudelaire, Lnrot que segue para a morte porque acredita que toda a cidade um texto. (PIGLIA, 1993, p. 20)Resulta uma compreenso do crtico como identificador dos rumos da experincia histrica, quebuscafazerdaliteraturaseulugardereflexoedeproblematizao,decrticae, ocasionalmente, de denncia como em trs exemplos recentes, dos argentinos Claudia Pieiro e Pablo De Santis e do brasileiro Miguel Sanches Neto. II. A denncia o propsito principal da argentina Claudia Pieiro, em Asvivasdasquintas-feiras (PIEIRO, 2007). As vivas do ttulo so mulheres beira de um ataque de nervos, fechadas num condomnio de luxo, cercadas por grades e, alm delas, por um cinturo de misria. Elas so vazias, fteis e vivem em meio a uma atmosfera sombria e a algumas mortes. Compem o cenrio de um painel, evidentemente cido, da alta burguesia de Buenos Aires durante a crise de 2001. Refugiadas em seu mundo exclusivo e protegidas por um impressionante sistema de segurana, as famliasmatriculamosfilhosnumaescolainglesa,jogamtnisegolfe,conversameostentam, consomem e se entediam. As amizades so falsas e a hierarquia interna rapidamente estabelecida emfunodariquezadecadaum.Aconscinciadarealidadeprecria.Sonoticiriotraz informaes sobre a derrocada econmica da Argentina, a instabilidade poltica, os movimentos sociais.Asdonasdecasasepreocupamcomospobresquevivemaoredordocondomnioe realizam bazares e eventos de assistncia social a sombra de Evita combinada com a das atuais ongs as espreita. Assim, sentem-se bem e diminuem os riscos de morar to perto da pobreza e de recorrer aos servios de quem vem desse outro mundo desde que devidamente identificado pelos porteiros.Durantetodaaparteinicialdolivro,voltadaaoseventosinternosdocondomnio,a geometria da narrao precisa e reproduz a lgica de um quotidiano sistemtico e controlado por meio da alternncia regular dos narradores e dos discursos. Mas claro que, uma hora, a realidade pula o muro e os moradores se vem s voltas com mortes. Impossvel se isolar da crise, ensina didaticamente o livro, que ento abandona seu desenho rigoroso e ganha aparente espontaneidade: o descontrole do mundo atingindo em cheio a narrativa; quando a denncia do artificialismo, da XI Congresso Internacional da ABRALIC Tessituras, Interaes, Convergncias 13 a 17 de julho de 2008USP So Paulo, Brasil inconscinciaedaesquizofreniasocialsetornaefetivamenteumpolicial.Curiosamente,nesse momento,ClaudiaPieirooptaporformasliterriasconvencionais(lineares,cronolgicas, marcadas pelo narrador onisciente) e abandona a fragmentao narrativa da primeira parte. Ocorre, assim,umainversodevalores:omundorealnarradodeformasistematizadaeocenrio protegido do condomnio, por meio de recursos de estilo mais complexos e atuais. Na prtica, o romance parece assumir de maneira cabal sua inteno de denncia e sacrifica, por isso, o cuidado literrio,talvezembuscadeumacomunicaomaisrpidaegilcomoleitor.Aentonao novelescapassa,ento,paraoprimeiroplanoesearrastacaptuloacaptuloesperadeum desfechocapazdearticularosvriospersonagens,elucidaromotivodasmortese,finalmente, deixar clara a impossibilidade do isolamento e da segurana. At o clima de medo, construdo com precisonoincio,sedesfaznoemaranhadodepequenasefluidashistriasqueparecems pretender confirmar que o artificialismo do condomnio correlato do artificialismo nas relaes pessoais e sociais para ampliar a caricatura de que impossvel ser rico e viver protegido e feliz. MesmoqueAsvivasdasquintas-feirasacabederrotadopeloexcessodeideologizaoda narrativa, exemplar da vocao cronista da narrativa policial e ilustra alguns desajustes de seu prevalecimento. J OenigmadeParis, do tambm argentino Pablo De Santis (SANTIS, 2007), investe em outrarotanaredefiniodognero:osjogosretricosedecitaeseacombinaodamatriz analtica com a clssica. Ambienta historicamente o crime nos tempos da montagem da Exposio Universal de Paris de 1900 e l percorre as disputas entre doze detetives de diversos pases. Assume explicitamenteapardiadopolicialclssicoeconstriseuspersonagenscomopardiasde detetives literrios. Mais do que pela histria universal, o livro caminha pela histria do gnero. O interesse do narrador, futuro auxiliar de detetive, vem da leitura de revistas de crimes: a narrativa policial, afinal, nasceu nas revistas e foi da imprensa que inmeros detetives de papel partiram a comear por Auguste Dupin para decifrar seus mistrios. Os relatos dos casos bem sucedidos dos doze detetives por seus assistentes emula, tambm, os registros literrios de Watson, Hastings e de tantos outros que tiveram a funo de prolongar a memria dos feitos de seus chefes. A idia de um museudocrime,comosobjetosdoadospelosinvestigadores,adeixaparaolivroavaliaro fetichismo do gnero e seus artefatos peculiares e insistentes, que incluem lupas, capas e bengalas de mil-e-uma utilidades. As discusses entre os mestres abre a porta para as inmeras teorias ou metodologiasdedecifraodecrimes,reaisouliterrias:aodoacaso,frenologia,valordos detalhes, centralidade da observao, intuio, racionalidade pura e plena. Tambm a duplicidade de desfechos permite recuperar as solues falsas que ampliam a expectativa do leitor pela soluo verdadeiraerevelamasmuitaspossibilidadescompreensivas.Oenigmaaserdecifradooda prpria fico policial: sua estrutura e seus elementos repetidos, revelados por meio da estratgia crtica do livro de De Santis. Se Claudia Pieiro investe na dimenso de crnica e De Santis no esforo crtico, Miguel Sanches Neto tenta combinar ambas vertentes. Exemplar, nesse sentido, que tenha escolhido para opapeldedetetivedeAprimeiramulherumprofessordeliteraturaeromancistasemobra (SANCHES NETO, 2008). Sozinho aos 40, perde sempre seus relgios e guarda-chuvas. Recusou por medo a paternidade e os compromissos que o engessariam e o fariam repetir as marcas de uma vida convencional: casa, famlia, maquinaria quotidiana. Fugiu, enfim, do clich da rotina burguesa. Talvez tenha perdido o relgio da prpria vida e, para escapar de um chavo, acabou assumindo outro: o da suposta liberdade plena do isolamento e dos casos repetidos com alunas novssimas. Esbarra,porm,emcertosrituaisdaidadeaquelesquevmdamemriaedesuasescolhas incontrolveis. Uma delas envolve sua ex-mulher, Solange, agora na poltica, agora casada, agora com um filho desaparecido. E o professor se torna detetive amador, como em Poe. Preocupa-se pouco com a justia ou com a verdade: sabe que o crime fica quase sempre sem castigo, que a sordidez prevalece e que a verdade, a verdade mesmo, nunca conhecemos, podemos intuir, jamais reconstituir os fatos. A investigao principal corre, assim, no universo da intimidade. A histria XI Congresso Internacional da ABRALIC Tessituras, Interaes, Convergncias 13 a 17 de julho de 2008USP So Paulo, Brasil pessoal, subterrnea, sobe cena principal e ele segue na busca de um passado que, reencontrado, s podia ser vivido como pardia. Procura o filho de Solange e, simultaneamente, as palavras que permitam associar a juventude perdida com a expresso presente e desconsolada ou cnica: palavras quesirvamtambmpararesgatarolirismodizemimpossvelnamaturidade.Porisso, reconhece, j prximo do final, que no estava vivendo um romance policial, mas um romance amoroso. Obra e vida se confundem, e o narrador descobre que no apenas um romancista sem obra: falta-lhe mais coisa para estar vivo. Encontra a fico, que lhe permite chegar realidade, ou invent-la: representar continua a ser o esforo de impor uma presena ausncia, s que Sanches Neto inverte as posies e a vida que emula a fico quando o texto lido se torna documento pessoal e o dilogo (...) sbito vira monlogo. Quem fala, nessa hora, o crtico, e ele anuncia uma literatura que rechaa a crtica ou ao menos certa crtica feita na frieza dos esquemas tericos esedentadaconfirmaodeteseseconcepesprvias.Adiscussointelectualretoma,dessa forma, uma denncia recorrente na obra de Sanches Neto: a do desprezo de parte significativa da crtica pelo registro lrico e pelas formas convencionais e seu culto novoltrico, filho bastardo do vanguardismo dos anos 1920, que continua a pregar a necessidade de romper a cada pgina, de chocarcommetforasimprevisveis,citaesininterruptasoucomrecursostcnicoseformais surpreendentes. Curioso que, na defesa da literatura simplesmente bem escrita, despreocupada com a experimentao e desobrigada da renovao, Sanches Neto chegou a um policial bastante diferente do que usualmente se faz no Brasil. At dialoga com autores que modernizaram o gnero no trpico, mas define um lugar novo para a literatura de mistrio, em que sua especificidade se dilui diante da combinao com outras matrizes e com a incorporao de questes vindas do conto filosfico voltaireano (tambm machadiano e borgeano). As consideraes sobre amor, memria, paternidade, leituras e perdas se explicam nessa chave e permitem reassumir temas e metforas que j estavam presentes em livros anteriores e agora surgem ressituadas e aprofundadas como a da revisodasrelaesfamiliaresouadachuva,dequeparteChovesobreminhainfnciapara tensionar o limite da autobiografia.Aprimeiramulherseassumecomonarrativapolicialpluralemesclada.tambmuma histria de amor, um exerccio de crtica, um romance filosfico. A tese central da verso autoral do Cntico dos cnticos (que o narrador escreve sem inteno de publicar) talvez ajude a entender sua errnciaesintetizesuansiadevariarsemdescuidardolirismo:amorperseguio,jamais encontro. No entanto, as descries de ambientes e de personagens que o livro de Sanches Neto traz (e que incluem os versos que percorrem a trama e combinam sagrado e obsceno, humano e profano) nosfalamtambmdeumencontromaioremaisimportante:odaficopolicialcomaalta literatura e esta no se reduz a um rtulo. Ao perceber a saturao do modelo, A primeira mulher dialoga com sua matriz e, sem ignorar a tradio do gnero, define sua rota peculiar. Aproxima-se, dessa maneira, da crnica e mapeia um pas deriva, corrupto e desiludido. Mas a realidade , a princpio, apenas um retrato na parede do narrador e s aos poucos ganha densidade. O professor-investigador seu crtico e seu cronista. III. Decifrador de textos e de coisas, o crtico se assemelha a um detetive que no trabalha com verdades absolutas, mas relativas. Esse crtico-detetive est inserido na histria (uma especfica: a que vive e de que pode falar) e, por isso, supe variedade. Afinal, a revelao pblica da verdade caractersticacomumeelementomatricialdognerosucumbenumsacrifcioqueimplica igualmente a derrota do excesso lgico de boa parte das histrias policiais e expe as limitaes, contradies e enganos de todos, investigados ou investigadores. A fico policial torna-se, dessa maneira, uma metfora das relaes sociais e a verdade final a convencionalmente permitida.1 1 Em La loca y el relato del crmen, seu conto mais identificado ao gnero policial, Piglia leva ao extremo a restrio do acesso verdade, ironizando seu desvendamento e invertendo as posies da fico e da verdade porque esta menos plausvel que a primeira (PIGLIA, 1998). XI Congresso Internacional da ABRALIC Tessituras, Interaes, Convergncias 13 a 17 de julho de 2008USP So Paulo, Brasil Antes, porm, do momento climtico da revelao, assistimos a alguns movimentos regulares da narrativapolicial:buscadepistas,construodeestratgiasdedecifrao,reconhecimentodas diferentesvozeseperspectivas,combinaesdedados,construodelaosentrepassadoe presente,exercciodarazo,sintetizaonumaformanarrativa,montagemdeensaiosde compreenso.Essesesforosinterpretativos,porm,sedeslocamgradativamentedoanseiopela verdadeeestabelecemocarterdedennciasocialdanarrativa:realamasambigidadesque cercam as pessoas e suas relaes, definem a condio de verossimilhana do texto.Do ponto de vista narrativo, a nova narrativa policial interrompe o ritmo habitual do gnero (que caminha invariavelmente para um desfecho elucidador e o privilegia) e recusa-se a submeter o fechamento do texto expectativa de um final eloqente ou decisivo: refora, dessa maneira, o carterprecriodetodaconcluso,deseusresultadosouimplicaes.Amatrizdopolicial convencionalredefinidaparaperceb-loemsuasvariaes,paraampliarasleituraspossveis (evitandooclssicoprotocolodeleituradoromancepolicial)eparaconect-lomaisdiretae explicitamente experincia histrica sobre que ele pretende refletir da a mencionada condio anfbiadocrticohistoriadoreficcionistametaforizar-senafiguradodetetive:procurao passado, identifica os desajustes do presente e sugere a crtica social.O policial torna-se ao contrrio da forma negativa como parte da crtica o definiu: uma validao das regras e dos valores da sociedade burguesa espao de interpretao: rene histria e fico, associa temporalidades, define o lugar privilegiado do crtico possibilidade que se abriu para o gnero, segundo Piglia, na passagem do policial analtico ao policial duro. Para ele, foi o momentoem que o detetive deixa de estar no centro, passando este a ser ocupado pelo criminoso. o que acontece na passagem entre o romance ingls e o norte-americano,quandodeixadehavernecessariamenteopersonagemque encarnaaleiesealcanaumaversomaiscrticadasociedade.(...)o mundo das transgresses diz mais sobre a verdade da sociedade do que o mundo da lei estabelecida. (PIGLIA, 1993)Mesmoquesejacontroversaaatribuiomatriznorte-americanadeumamudanato decisiva, inevitvel reconhecer que tal variao ofereceu ao gnero uma perspectiva crtica aguda nosdoissentidos:comodennciasocialecomoestratgiadereflexoparacompreendera experincia histrica vivida. O labirinto, agora, outro: o dos impasses intelectuais e das dvidas histricas.Adestruiodaverdadeunadopolicialtradicionalnoprovocaaadoodeum relativismo pleno, em que se aceita qualquer olhar e se o toma por distinto, sem hierarquizaes ou sem limites. H uma percepo complexa da sociedade e h tambm a linha do horizonte, que se presta a orientar as pessoas: o ponto para onde todos os olhares podem convergir. Seu princpio supe mobilidade, respeita a interferncia do acaso, mas tambm inclui regras e valores universais e universalizveis.Averdade,afinal,mesmoquandocriadaouentrevistanafico,associa-sea critrioseconvenesdeverossimilhana,queestabelecemasrefernciasdecaracterizaoda narrativa. A prpria definio de fico pode remeter a esse vnculo:Interessa-me trabalhar essa zona indeterminada onde se cruzam a fico e a verdade. Em primeiro lugar, porque no h um campo prprio da fico. De fato,pode-seficcionalizartudo.Aficotrabalhacomacrenae,nesse sentido,conduzideologia,aosmodelosconvencionaisdarealidadee, claro, tambm s convenes que tornam verdadeiro (ou fictcio) um texto. A realidade tecida de fices. (PIGLIA, 1993, p. 16) A associao entre pista e razo produziu os temas e os dilemas que marcaram a narrativa po-licial dos sculos XIX e XX e dedicou-se-se aos procedimentos de desvendamento. Na fico poli-cial latino-americana recente, ilustrada por esses trs autores, prevalece a constituio de formas XI Congresso Internacional da ABRALIC Tessituras, Interaes, Convergncias 13 a 17 de julho de 2008USP So Paulo, Brasil explicativas e a formulao de uma verdade que sempre inquieta no presente e aflita com a re-presentao histrica; por isso, o desvendamento no traz consolao ou redeno. Sob o trabalho crtico e investigativo presente nessa modulao peculiar do gnero policial, explora-se por meio dos movimentos e das variaes no gnero, das associaes entre temporalidades e dos enfoques epistemolgicos subterraneamente propostos o ponto terico de aproximao entre histria e fic-o policial. Referncias Bibliogrficas [1] PIGLIA, Ricardo. Crtica y ficcin. Buenos Aires: Fausto, 1993 [2] PIGLIA, Ricardo. Prisin perpetua. Buenos Aires: Sudamericana, 1998 (1 edio: 1988) [3] PIEIRO, Claudia. Asvivasdasquintas-feiras. Rio de J aneiro: Alfaguara, 2007 (original: 2005; traduo: J oana Anglica dAvila Melo) [4] SANCHES Neto, Miguel. A primeira mulher. Rio de J aneiro: Record, 2008 [5] SANTIS, Pablo De. O enigma de Paris. So Paulo: Planeta, 2007 (original: 2007; traduo: Maria Alzira Brum Lemos) [6] SARLO, Beatriz. Literatura y poltica, Punto de Vista, 19. Buenos Aires, 1983 Autor 1 Jlio Pimentel PINTO, Professor Doutor Universidade de So Paulo (USP) Departamento de Histria [email protected]