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PATRIMONIALISMO E CULTURA
POLÍTICA GAÚCHA
Júlia Junqueira Membro do Núcleo de Estudos Ibéricos e Ibero-americanos da UFJF.
Bacharel em História pela UFJF. [email protected]
INTRODUÇÃO
O presente trabalho pretende fazer uma exposição acerca das idéias vigentes
sobre as definições de patrimonialismo e sobre os conceitos e características do
patrimonialismo aplicados ao caso brasileiro. Para efeito de esclarecimento serão
brevemente expostas aqui as teorias inovadoras de Max Weber acerca do assunto e as
contribuições a tais teorias feitas por Karl Wittfogel acompanhadas de um breve debate
historiográfico entre as teses sobre o patrimonialismo brasileiro. Em seguida será
traçado um panorama geral da formação da sociedade sul-rio-grandense que nos permita
compreender a constituição dessa sociedade e de suas características mais singulares.
Então será traçada uma analise das características do patrimonialismo brasileiro na obra
“O tempo e o vento- O Arquipélago (I e II)” de Érico Veríssimo. Os tempos históricos
utilizados pelo autor como ambiente para obra são vários e complexos. E ficaria quase
impossível um estudo bem detalhado da obra completa no período determinado para a
execução da pesquisa, por isso foi feito tal recorte. “O Arquipélago” vem contar a
trajetória da família Cambará até 1945. Getúlio Vargas foi obrigado a renunciar; o país
prepara-se para as eleições e o "queremismo" se avoluma. Os Cambarás que, com a
Revolução de 1930, haviam trocado Santa Fé pelo Rio de Janeiro, estão de novo
reunidos no Sobrado em Santa Fé. E aos poucos se desenrolam as histórias das
personagens junto com seus conflitos de opiniões e interesses dentro do clã dos
Cambará. Em “O Arquipélago” aparecem personagens da cena histórica como: Júlio de
Castilhos, Borges de Medeiros, Assis Brasil, Getúlio Vargas, Oswaldo Aranha, Flores
da Cunha, João Neves da Fontoura, Góis Monteiro, Luiz Carlos Prestes, João Alberto,
Lindolfo Collor entre outros políticos brasileiros. E são relembrados diversos momentos
da cena passada, momentos de glória ou de perda que ajudam a completar o “retrato” da
típica família poderosa do sul, com seus bravos homens e seus problemas internos, que
são sabidos por todos, mas não diminuem o prestigio nem o poder da família. Poder este
conquistado na cochilha em campanha, prova do valor e da bravura de seus homens. E
então a partir da exposição de tão diversos itens a cerca do patrimonialismo será traçado
para ordem de conclusão um panorama da evolução do patrimonialismo brasileiro e
suas possibilidade de evolução para um quadro que signifique o avanço da política no
Brasil.
1. O PATRIMONIALISMO SEGUNDO WEBER E WITTFOGEL
As bases conceituais sobre as quais se desenvolveram os estudos acerca do
patrimonialismo se devem às proposições de Max Weber e Karl Wittfogel. Foi a partir
das conclusões de Weber a respeito das formas de dominação e suas características e de
seus estudos acerca do patrimonialismo que se pode desenvolver uma pesquisa mais
aprofundada sobre o patrimonalismo latino-americano e suas principais características.
A obra de Wittfogel também nos fornece grande contribuição. Ao estudar as sociedades
hidráulicas ele traça um panorama da formação de Estados mais fortes que as
comunidades e, do estabelecimento do poder nesses tipos de Estado que em muito
contribuem para analise e compreensão do patrimonialismo.
O PATRIMONIALISMO SEGUNDO WEBER
Para Weber a condição de existência do Estado é a submissão daqueles
dominados ao poder, constantemente reivindicado pelos dominantes. Neste processo se
formam três tipos principais de dominação: 1) racional, onde há uma forte crença na
legitimidade da ordem estabelecida; 2) tradicional, na qual o foco esta nas tradições que
legitimam o poder; e 3) carismática, que se baseia em uma crença no valor excepcional
de determinado indivíduo1. A dominação tradicional se subdivide em dois diferentes
1 RODRÍGUEZ, Ricardo Vélez. Patrimonialismo e a realidade latino-americana. Rio de Janeiro:
Documenta Histórica, 2006 p.12.
tipos; o feudalismo e o patrimonialismo. Segundo Weber estas duas formas de
dominação tradicional se diferenciam em sua essência. O feudalismo é uma forma de
dominação de caráter contratual que limita em certos pontos o poder do soberano2. Este
caráter do feudalismo garante aos feudatários a manutenção de sua posição, pois que
com o passar do tempo somado ao fato de que o feudalismo requer de seus nobres um
modo de vida senhorial, ou seja, a “eliminação do trabalho desonroso que não consistia
no exercício das armas” 3 é causada uma “ascendência nobre cada vez mais dilatada”4
garantindo assim sua manutenção pelo sistema de dominação a que se submete.
Este sistema por essência caminha no sentido de diminuir o quanto possível suas
funções administrativas em contrapartida o patrimonialismo é regido por uma
valorização destas funções controladas pelo soberano. A rede administrativa sob
domínio do soberano aumenta o poder deste sobre o território e seus ocupantes e
também lhe permite a manipulação das grandes massas através do “paternalismo de
Estado” 5. Alem de estender o alcance de sua dominação por meio da ampliação do
aparelho do Estado o soberano também assegura seu poder por meio de delegação de
poder aos senhores patrimoniais locais, como explica Weber:
“A camada dos senhores territoriais locais exige, sempre (...). que o
príncipe patrimonial não atente contra seu próprio poder patrimonial
sobre os súditos, ou o garanta diretamente. Por conseguinte, exige,
sobretudo, a supressão de qualquer intervenção dos funcionários
administrativos do príncipe na esfera de seu domínio, quer dizer, exige
imunidade. Pela sua natureza, o senhor territorial pretende ser a
autoridade por meio da qual o soberano deva entrar em relação com os
súditos” 6.
2 PAIM, Antônio. A querela do estatismo. 2ª edição. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1994.
3 PAIM, Antônio. A querela do estatismo. 2ª edição. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1994. P.26.
4 IDEM.
5 RODRÍGUEZ, Ricardo Vélez. Patrimonialismo e a realidade latino-americana. Rio de Janeiro:
Documenta Histórica, 2006 p.15. 6 WBER, Max. Economía y sociedad. (Tradução ao espanhol a cargo de José Medina Echavarría, ET
AL.), 1ª ed. Em espanhol. México: Fondo de Cultura Económica, 1944, vol.IV, p.131. apoud. RODRÍGUEZ, Ricardo Vélez. Patrimonialismo e a realidade latino-americana. Rio de Janeiro: Documenta Histórica, 2006.
É importante ao soberano este tipo de manutenção do seu poder pela negociação
com os poderes locais, pois sem esse tipo de “pacto social” a dominação do primeiro se
tornaria praticamente impossível. Assim com a burocratização do Estado e o
fortalecimento das várias esferas de poder subordinadas ao soberano é que se
estabelece, fortifica e concretiza o Patrimonialismo.
O PATRIMONIALISMO SEGUNDO WITTFOGEL
Karl Wittfogel faz o que Antônio Paim7 chama de um desenvolvimento criativo
da teoria weberiana do Estado Patrimonial. Wittfogel acredita que na maioria dos
Estados está presente um aparato estatal que ao invés de se posicionar à disposição da
sociedade, ao contrário, a submete ao seu domínio, caracterizando um Estado mais forte
do que a sociedade que deveria regê-lo. A partir desta premissa o autor parte para a
pesquisa das origens deste estado, que encontra nas civilizações desenvolvidas em torno
da agricultura de irrigação; as civilizações hidráulicas.
É em torno da estrutura administrativa da agricultura de irrigação que se formam
aparatos de controle estatal que ultrapassam os limites da vida agrícola para a
econômica e política. Com a necessidade de burocratização da administração da
agricultura essencial à sobrevivência dessas civilizações se fortalecem também os
aparatos estatais de dominação política e econômica que naturalmente submetem a
sociedade ao Estado que passa a exercer papel preponderante na vida dessas
civilizações.
Estes Estados hidráulicos fortalecidos apresentam uma característica comum: a
debilidade da propriedade privada; “a agricultura irrigada estabelece um tipo de
propriedade que não se pode transmitir por herança”8. A força principal deste tipo de
Estado se encontra em sua fortemente estruturada rede de comunicação e
burocratização, uma vez que todo o império pode ser controlado a partir de um poder
central e altamente concentrado nas mão do soberano.O Estado hidráulico mantém sob
7 PAIM, Antônio. A querela do estatismo. 2ª edição. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1994.
8 RODRÍGUEZ, Ricardo Vélez. Patrimonialismo e a realidade latino-americana. Rio de Janeiro:
Documenta Histórica, 2006 p.20.
forte investigação as posses de seus indivíduos que não raramente recebem altas
taxações e são inquiridos a respeito dos fins de suas riquezas; como mais uma forma de
afirmação de seu poder sobre a população. O Estado hidráulico também se vale da
subordinação da religião ao Estado como forma de controle absoluto do território. Uma
vez estabelecida, a religião oficial serve como forma de reafirmação dos interesses
daquele.
O Professor Ricardo Vélez salienta que para Wittfogel os elementos despóticos
deste tipo de dominação se escondem por detrás da conhecida figura carismática de “pai
do povo”. Esta seria uma fachada benfeitora que justifica a dominação, ou ao menos,
mantém sob controle próximo a população beneficiada. Esta forma de governo é,
portanto um exercício de “poder despótico e absoluto e não benfeitor” 9.
O regime hidráulico toma para si um caráter absoluto, pois há nele uma clara
falta de qualquer tipo de controle social sobre o soberano, que congrega a maioria dos
poderes impedindo uma oposição efetiva. Nesta forma de Estado altamente fortalecido
Wittfogel frisa a desvalorização do conceito de democracia, uma vez que liberdades
muito amplas seriam nocivas à sustentabilidade do Estado de um ponto de vista
administrativo. São, portanto aceitas pequenas liberdades inofensivas ao Estado em sua
magnitude. Dado seu caráter absoluto esta forma de governo só poderia ser benfeitora
em aparência, conclui Wittfogel, pois que no que interessa este Estado não faz
realmente benfeitorias ao povo, ele apenas mantém a “horda” sob controle,
enfraquecendo uma eventual oposição; e ao mesmo tempo nutre necessidades
funcionais do próprio aparato estatal.
2. A TEORIA WEBERIANA APLICADA AO CASO BRASILEIRO: ESTUDOS DA ESCOLA
WEBERIANA BRASILEIRA
No estudo e análise das teorias de Weber e Wittfogel para o patrimonialismo, a
aplicação destas teorias ao caso brasileiro é um tanto quanto recente. Iniciada com
Raimundo Faoro em “Os Donos do Poder” a tentativa de analisar as condições políticas
9 RODRÍGUEZ, Ricardo Vélez. Patrimonialismo e a realidade latino-americana. Rio de Janeiro:
Documenta Histórica, 2006 p.20.
brasileiras muito ganhou nas ultimas décadas com a contribuição de mestres como:
Simon Schwartzman, Antônio Paim e Ricardo Vélez. Em suas pesquisas desenvolveram
estudos que esclarecem as origens do comportamento político no Brasil e desvendam as
fachadas populistas do patrimonialismo no Estado brasileiro. Com base nas teorias
inovadoras de Max Weber e as contribuições de Karl Wittfogel a escola weberiana
brasileira traz a tona sua própria contribuição para o estudo da cena patrimonialista
nacional.
A INICIATIVA DE FAORO
De acordo com Antônio Paim10, o estudo pioneiro de Faoro tem mérito por
trazer à cena a importância da tradição cultural para a compreensão do cenário histórico
e também pela utilização da teoria weberiana para chegar a essas conclusões. No
entanto seu radicalismo impede o reconhecimento do caráter modernizador assumido
pelo patrimonialismo, o que faz com que suas conclusões fiquem presas à teoria de
Weber tornando-as incapazes de compreender as características únicas do
desenvolvimento brasileiro. Assim, apesar de ser o primeiro a apresentar e ressaltar o
caráter patrimonialista da sociedade brasileira, Faoro deixa de reconhecer suas
condições específicas limitando o alcance de seu estudo.
O DESENVOLVIMENTO DA TEORIA POR SCHWARTZMAN
Simon Schwartzman retoma a idéia iniciada por Faoro de uma análise da
sociedade brasileira baseada na teoria weberiana. Mas diferentemente de seu
predecessor, Schwartzman considera também uma característica específica do caso
brasileiro; o caráter modernizador que pode assumir em determinadas situações. O
Estado brasileiro além de possuir as características tradicionais de burocratização e
fortalecimento do aparato estatal patrimonialistas manifesta também um caráter
modernizador, expresso pela intervenção estatal na economia, que preza pelo
fortalecimento e desenvolvimento do setor econômico a partir de 1937.
10
PAIM, Antônio. A querela do estatismo. 2ª edição. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1994.
Schwartzman acredita que seja ainda possível para o Brasil ultrapassar a etapa
patrimonialista rumo a uma “modernização autêntica” (VELEZ 2006). Mas para isso,
frisa o Professor Ricardo Vélez segundo Schwartzman:
“ são necessárias duas coisas: deixar o vezo patrimonial tradicional e
se desligar da visão do liberalismo oitocentista que confunde liberdade
com privatismo e desconhecimento da missão intervencionista e
planejadora do Estado moderno” 11
O PATRIMONIALISMO POR PAIM
Para Paim o resultado do debate historiográfico acerca do Estado brasileiro
como Estado Patrimonial é o fato desta característica se mostrar um fenômenos
cultural. E é deste ponto de vista que o autor se propõe e estudar o patrimonialismo
brasileiro. A partir de então Paim se une a Schwartzman na linha de reconhecimento de
uma possibilidade de evolução do patrimonialismo modernizador brasileiro. Paim
reconhece no Estado brasileiro quatro segmentos distintos: a burocracia tradicional, a
classe política, a elite militar e a elite tecnocrática. Dentre estes, o segmento burocrático
juntamente com a elite política tentam a manutenção do patrimonialismo e de suas
regalias no sistema, contrapondo-se aos outros dois segmentos que estavam ligados à
tentativa de modernização no governo militar. Para ele o necessário à evolução do
Estado brasileiro que estes quatro segmentos se aproximem e superem os limites
clientelistas do Estado patrimonial. Sobre Paim afirma Vélez:
“ advoga, pelo fortalecimento do Estado modernizador, estabelecendo
simultaneamente os mecanismos que o obriguem a coexistir com o
11
RODRÍGUEZ, Ricardo Vélez. Patrimonialismo e a realidade latino-americana. Rio de Janeiro: Documenta Histórica, 2006 p.46.
sistema representativo e tornando mais sensíveis as elites tecnocrática e
militar à participação política da sociedade”.12
A CONTRIBUIÇÃO DE RICARDO VÉLEZ
A participação e contribuição de Ricardo Vélez nos estudos sobre o
patrimonialismo no Brasil são de grande relevância e merecem um destaque especial.
Ao analisar de perto todas as teorias acima citadas a respeito do patrimonialismo
brasileiro Vélez que já identificara as características autoritárias do Estado brasileiro
passou a relacioná-las às praticas patrimonialistas. Para ele a tradição contratualista deu
lugar ao patrimonialismo no qual estamos imersos ate os dias de hoje, e a superação
desta etapa só poderia se tronar possível pela suplantação do patrimonialismo a partir de
uma verdadeira modernização no campo político e cultural, não só do Brasil como de
toda a América Latina. Para Vélez os países latino-americanos já deram um passo em
direção a modernização ao se tornarem predominantemente urbanizados e abertos ao
capital internacional durante o século passado. O que pode significar ou não que o
patrimonialismo tem seus dias contados, pois tudo dependerá dos rumos que cada país
tomará no século que vem a seguir.
3. A SOCIEDADO SUL-RIOGRANDENSE
Oliveira Vianna faz no segundo volume de “Populações Meridionais do Brasil-
O campeador rio-grandense” um estudo cuidadoso sobre a ocupação da região Sul do
Brasil e traça o mapa do surgimento e do desenvolvimento de uma sociedade singular.
Em “o campeador rio-grandense” o autor se propõe a fazer um raio x da formação da
sociedade local e explicar a constituição de suas características mais marcantes; como o
12
RODRÍGUEZ, Ricardo Vélez. Patrimonialismo e a realidade latino-americana. Rio de Janeiro: Documenta Histórica, 2006 p.48.
forte militarismo de que é impregnada, o orgulho eqüestre e o porque da pecuária como
base para o seu surgimento.
A ocupação do Sul, como a de grande parte das áreas interioranas do centro-sul
do Brasil se deu como conseqüência do bandeirismo praticado pelos paulistas. Da três
principais forma de bandeirismo ( predatório, minerador e pastorial) a que se destaca
enquanto base da ocupação nesta região é o bandeirismo pastorial. A esse respeito
afirma Vianna:
“O pastoreio é o meio principal do povoamento. O sertanista povoador,
por onde passa, deixa um curral como padrão da sua posse e germe da
colonização. Vem o engenho depois, e as lavouras, e o núcleo aldeão de
“moradores”, e a “vila real”, e a”cidade” florescente” 13
Nem mesmo a experiência com a extração nas minas diminui tão
significativamente a predominância do bandeirismo pastorial. Apesar de representar
uma diminuição no volume de empreitadas, estas se provam persistentes e reconquistam
seu “brilho” diminuído pelo episódio das minas. Depois da decepção na experiência
com as minas, os bandeirantes paulistas de voltam com mais força e intensidade ao
bandeirismo pastorial, como é possível perceber no trecho a seguir:
“O fascínio das Serras de esmeraldas e das Costas de ouro é (...) um
breve incidente, uma rápida intercorrência na continuidade das longas
tradições pastoris dos colonizadores” 14.
Para Vianna os colonizadores paulistas são dotados de um senso objetivo que os
permite perceber a adequação topográfica e vegetativa da região, aos hábitos pastoris
que eles cultivam. Mas é a princípio a preia do gado bravio que ali já existia, por
origens diversas, que leva a ocupação do extremo sul. A busca pelo aproveitamento de
13
VIANNA, Oliveira. Populações Meridionais do Brasil – O campeador rio-grandense v.2. Belo Horizonte: Itatiaia; 1987. Niterói: Editora da Universidade Federal Fluminense; 1987. P.16. 14
VIANNA, Oliveira. Populações Meridionais do Brasil – O campeador rio-grandense v.2. Belo Horizonte: Itatiaia; 1987. Niterói: Editora da Universidade Federal Fluminense; 1987. P.17.
tão farto recurso disponível leva os colonizadores a abrirem estradas para o transporte
do gado e em conseqüência da movimentação de pessoas, que eventualmente se fixam
na região, se inicia a colonização de fato.
Com empreitadas realizadas tanto a partir do litoral em direção ao interior,
quanto “pelo lado do sertão”15 ; o interior da região Sul foi sendo desbravado, ocupado
e colonizado. No entanto as descobertas das minas, apesar de não representarem a
extinção destas empreitadas, deixaram sua marca significante no movimento de
conquista do Sul, pois que:
“O movimento para as minas interrompe a corrente de sertanistas, que
procuram atingir a planície platina pelo ocidente; mas, vai exercer
sobre as outras duas correntes - a que desce pelo litoral e a que desce
pelo chapadão do Iguaçu, visando o mesmo objetivo - uma ação
intensificadora” 16.
Mas é também, segundo Vianna, a mineração que esvaziara uma das correntes
de colonização, que vai com sua alta demanda por alimentos fortalecer a exploração da
pecuária na região Sul. A concentração populacional da exploração aurífera trás a tona o
problema da alimentação.
“Os gados baianos (...) não bastam para atender (...) às necessidades
alimentares de uma população, cujo volume, pela fascinação exercida
pelas minas, dentro e mesmo fora da própria colônia, cada vez mais
rapidamente engrossa e se desenvolve. Ora, o devassamento, pelos
bandeirantes da corrente do sul, das campanhas rio-grandenses,
coalhadas de rebanhos bravios, coalhadas de rebanhos bravios,
contáveis por ‘milhões e milhões’, vai resolver, de uma maneira
satisfatória, esse formidável problema alimentar” 17
15
VIANNA, Oliveira. Populações Meridionais do Brasil – O campeador rio-grandense v.2. Belo Horizonte: Itatiaia; 1987. Niterói: Editora da Universidade Federal Fluminense; 1987. P.23. 16
VIANNA, Oliveira. Populações Meridionais do Brasil – O campeador rio-grandense v.2. Belo Horizonte: Itatiaia; 1987. Niterói: Editora da Universidade Federal Fluminense; 1987. P.25. 17
VIANNA, Oliveira. Populações Meridionais do Brasil – O campeador rio-grandense v.2. Belo Horizonte: Itatiaia; 1987. Niterói: Editora da Universidade Federal Fluminense; 1987. P.25.
O aumento do contingente populacional pela fixação dos colonizadores vai
muito rapidamente explicitar a necessidade de redes de comunicação mais bem
estruturadas e eficazes. Tal questão se resolve através da utilização dos cavalos e burros
ali disponíveis, em grande quantidade, no transporte dos mensageiros. Não é apenas a
comunicação que se mostra como um problema aos colonizadores, estes tem também de
enfrentar, no inicio da colonização, as tribos indígenas locais; que muitas vezes se
mostravam altamente belicosas. Mas da mesma forma que mostraram bravura para
vencer as intempéries do trajeto ate ali, os colonizadores enfrentam as tribos e aprendem
com elas a utilizar diversos instrumentos que vem a ser úteis na preação do gado. O
transporte dos rebanhos também é um obstáculo a ser ultrapassado durante a
colonização. Ultrapassada a Serra do Mar, eles constroem uma estrada, a estrada de
Araranguá, que é o marco definitivo do itinerário das tropas e seus rebanhos. E é assim
aos poucos e enfrentando diversos desafios impostos pelo terreno, pelos nativos e pela
falta de recursos que se deu a colonização no Sul.
A empreitada da ocupação e exploração dos recursos disponíveis na região
exigiu também dos colonizadores que se mostrassem aptos e capazes de lutar por suas
conquistas, daí se desenvolve uma característica muito peculiar da região; seu
militarismo. Os líderes nesta região não eram impostos por posses ou poder político, a
princípio esse poder deveria ser conquistado por provas de valor pessoal. O inapto a
liderar seu grupo em uma batalha era também indigno de poder. Desde o início da
colonização se forma na região forte respeito e submissão à figura do militar, do homem
de valor.
O histórico de guerras e conflitos na região sul ajuda a formar ali uma
aristocracia pastoril altamente militarizada, dotada de um traquejo especial para a guerra
aprendido nos campos de batalha. A guerra é o agente de seleção dos indivíduos de
valor, que por mérito pessoal podem ascender a posições de destaque na sociedade,
formando uma verdadeira oligarquia militar, que se posicionou nos principais espaços
de poder do Rio Grande do Sul. Neste sentido os grupos/bandos tornavam-se uma
espécie de família respeitada por esses homens à qual eles dedicavam sua mais profunda
lealdade. Apesar da grande noção de lealdade expressa no interior dos grupos, estes
homens eram incapazes de qualquer tipo de solidariedade social para com os alheios ao
clã social.
Estes homens, criados e formados na vida militar por muitas vezes se
acostumavam à dureza da vida na campanha e ao poder de castigar e reprimir seus
subordinados. O resultado disso é uma falta de traquejo social e de sensibilidade, mas
também uma força moral e virilidade que os tornam dignos de respeito pela população,
que com orgulho se subordina a esses chefes.
O ciclo guerreiro pelo qual passou a sociedade sul-riograndense é a origem da
subordinação da população geral à oligarquia militar. Este sentimento de veneração está
diretamente relacionado à proteção que essa classe oferece à sociedade, ou seja, há uma
crença na sua imprescindibilidade para a existência e manutenção da ordem social.
Diferentemente do que ocorre em outras regiões do Brasil, essa obediência e reverência
em relação aos chefes civis e militares é ai digna de orgulho; orgulho de seus heróis e
mantenedores, não há motivo para vergonha.
Um governo forte é para essa população uma garantia de paz e proteção,
portanto uma necessidade vital à manutenção da sobrevivência. Vianna explica a
subordinação como uma conseqüência dessa crença:
“ Da convicção prolongada dessa necessidade de força e império da
autoridade pública, estimulada, em toda a massa da população, pelo
instinto de conservação alarmado, é que resultou, no extremo-sul, essa
mentalidade social, dentro da qual a obediência e a subordinação às
autoridades do estado passaram a ter valor social, sentimentos
honrosos e dignificantes, sem o menor laivo de subserviência ou
humilhação”18
Com grande parte de seus homens criados em uma vida militar, os háitos nela
adquiridos de disciplina, obediência e respeito pela hierarquia são claramente
transferidos para o trato cotidiano das estâncias e da sociedade em geral. Mesmo
aqueles que não eram oriundos da vida militar, tiveram uma educação militar, o que
incrustou tais hábitos ainda mais profundamente nas tradições locais. Até mesmo “mito
do fundador” 19, que em outras regiões era representado por um sertanista povoador, no
18
VIANNA, Oliveira. Populações Meridionais do Brasil – O campeador rio-grandense v.2. Belo Horizonte: Itatiaia; 1987. Niterói: Editora da Universidade Federal Fluminense; 1987. P.155. 19
Histórias e lendas contadas localmente e transmitidas por gerações sobre o fundador da vila, que exaltam vês valores morais e sua bravura.
sul busca origens em um guerreiro, um caudilho que lutou e conquistou seu território e
ali estabeleceu a cidade.
Nesta sociedade o poder civil e o poder militar eram muito próximos e por vezes
se misturavam. Dada a proximidade, o sentimento de obediência ao poder público e seu
aparato administrativo foi difundido no seio da sociedade, pois em sua maioria os
representantes do poder civil eram oriundos da vida militar como escreve Vianna:
“Esses campeadores intrépidos, educados na guerra, modelados por
ela, crescidos nela, quando egressavam deste meio ameaçador para
agirem na vida civil, revelaram, naturalmente, essas preciosas aptidões
formadas no ambiente marcial donde vieram e em que se haviam
educado. O governo civil não difere fundamentalmente do governo
militar: as mesmas capacidades que se fazem necessárias a um chefe de
guerrilhas são igualmente indispensáveis a um chefe de Estado, na
organização dos poderes públicos. Essa oligarquia militar, está pois,
pela sua formação social anterior, perfeitamente apta ao manejo dos
órgãos da administração civil”20
Em síntese:
“Os que detinham, mesmo eventualmente, o poder militar e civil no
extremo-sul tinham, assim, como se vê, sobre a massa da população,
uma ascendência que lhes não vinha da pura força material dos seus
exércitos e das suas armas – como acontecia com os governadores das
outras capitanias ou províncias; mas, sim, da admiração, da confiança,
do respeito que lhes votava aquela gente agradecida à sua bravura e
aos seus serviços.” 21
A cultura regional dessa população é como se vê repleta de uma consciência
patriótica e de um sentimento profundo de respeito à autoridade civil e militar que foi
cristalizada e reforçada em todas as camadas da população. Esse culto à autoridade,
20
VIANNA, Oliveira. Populações Meridionais do Brasil – O campeador rio-grandense v.2. Belo Horizonte: Itatiaia; 1987. Niterói: Editora da Universidade Federal Fluminense; 1987. P.123. 21
VIANNA, Oliveira. Populações Meridionais do Brasil – O campeador rio-grandense v.2. Belo Horizonte: Itatiaia; 1987. Niterói: Editora da Universidade Federal Fluminense; 1987. P.162.
fruto de anos de militarização e praticas de obediência e respeito à hierarquia, é uma das
características da região sul que mais a difere das outras regiões do Brasil. Isso faz com
que o patrimonialismo ali manifesto seja diferente, pois além do poder pela força, os
senhores detém o poder pela obediência baseada na tradição.
4. “O ARQUIPÉLAGO”: um retrato da sociedade patrimonia lista sul-rio-
grandense
Erico Lopes Verissimo nasceu em Cruz Alta, RS, a 17/12/1905, e faleceu em
Porto Alegre, a 28/11/1975. Trabalhou como bancário e foi também sócio de uma
farmácia em sua cidade natal. Ao se transferir para Porto Alegre trabalhou como
desenhista e publicou alguns contos. Em Porto Alegre foi contratado para o cargo de
secretário de redação da “Revista do Globo”. Em 1932 foi promovido a Diretor da
“Revista do Globo” e passou a atuar no departamento editorial da Livraria do Globo.
Um dos seus trabalhos mais notáveis é O Tempo e o Vento, romance divido em três
partes O Continente, O Retrato e O Arquipélago - que começou a escrever em 1947 e
terminou em 1962.
Esta obra conta a história da família Terra Cambará durante quase dois séculos,
começando nas Missões e seguindo pelo século XX. A história dessa família tem como
pano de fundo a História do Brasil, especialmente do Rio Grande do Sul. É por trás das
aventuras pessoais destas personagens que se apresenta o cenário brasileiro sul rio-
grandense e patrimonialista da época. Érico, dono de um senso crítico perspicaz realiza
nessa obra uma exposição da sociedade local em três grandes períodos da História do
Brasil.
O primeiro deles se passa durante a Colônia no primeiro livro da série, O
Continente. Em uma constante viagem pelo tempo entre o passado das missões e o ano
de 1895, quando o sobrado é sitiado pelas forças federalistas. O Continente desenrola a
trama da trajetória de personagens marcantes que encaram as adversidades encontradas
durante a vida. Em uma época onde o poder central muitas vezes não tem a capacidade
de se fazer presente, o poder fica nas mãos das elites locais, uma grande marca do
patrimonialismo, como frisa Wittfogel22. Marcada pelas missões e pela preação de gado,
essa sociedade se desenvolve em torno das fazendas de gado23. Estas que são uma
extensão do ambiente do engenho têm como figura centralizadora de poder o chefe da
família. Um chefe de caráter patrimonialista que toma o público por privado, este
homem é um estereótipo dos homens de poder no Brasil colonial.
Na seqüência da trilogia o período histórico abarcado é o Império. Em um
momento de formação das instituições políticas brasileiras, os grandes empreendedores
das charqueadas se mantém nos círculos de poder local continuando a exercer seu
comportamento patrimonialista, agora um pouco cerceado pela figura do imperador.
Dividido em quatro partes, O Retrato conta a história da família Terra Cambará até
1915. História esta que assiste à queda do Império e a construção da República
juntamente com a redefinição do quadro político brasileiro, passando pela república
velha.
O terceiro momento da obra se desdobra nos dois últimos volumes, intitulados O
Arquipélago (I e II). Durante o período imperial, o poder patrimonialista ficara centrado
nas mãos do imperador, que estabelecera um âmbito de poder acima das facções
políticas. Com a queda do império a oligarquias privatizaram o poder estatal e se
sobrepuseram ao Estado. A chegada de Getúlio ao poder vem desfazer esse processo de
privatização iniciado na República Velha. Com o Estado centrado na figura do
presidente, ele faz uso de alternativas autoritárias para viabilizar o controle do aparto
público. O que Getúlio Vargas realiza é a consolidação do Estado patrimonialista
brasileiro centrado em um executivo forte. Neste caso centrado na figura do próprio
Getúlio. Vargas assim o faz através da superação de uma proposta de patrimonialismo
22
Segundo Wittifogel, para a manutenção do poder em áreas mais distantes do império o poder central se vê na necessidade de um intermediário, que nesse caso, são as elites locais. Estas mantém sua posição de superioridade local, ao mesmo tempo que promove a manutenção do poder cetral. 23
VIANNA, Oliveira. Populações Meridionais do Brasil – O campeador rio-grandense v.2. Belo Horizonte: Itatiaia; 1987. Niterói: Editora da Universidade Federal Fluminense; 1987.
de clã e a partir da aplicação de um patrimonialismo modernizador, inspirado em
Pombal24, que atravessa as barreiras do regionalismo concentrando o poder do estado
nas mãos do Presidente. Todo este cenário do terceiro momento da obra nos é
apresentado em, idas e vindas temporais. A história não segue uma trajetória linear e
contínua, as memórias das personagens são colocadas seguindo uma linearidade um
tanto quanto vaga e esparsa, não há uma descrição fiel, e acredito, nem fosse essa a
intenção do autor. A respeito do autor, sua obra e suas posições, Ricardo Vélez frisa:
“A inspiração liberal de Érico Veríssimo levou-o, certamente,
a tecer críticas ao Patrimonialismo gaúcho e à forma populista de fazer
política no Brasil. Mas sua atitude crítica não se limitava à avaliação
das nossas instituições e costumes políticos. Abarcava, também, o
confuso mundo de sua época, envolvido no terror da Segunda Guerra
Mundial. O aspecto que mais preocupava a Érico era a perda de
sensibilidade dos países em face do ser humano, notadamente no
terreno da gestão econômica.”25
Nesta como em várias outras obras literárias são encontradas características e até
mesmo críticas à realidade. Sendo esta realidade contemporânea ou não a obra em si.
No caso de “ O Tempo e o Vento” seu autor não é contemporâneo a grande parte dos
acontecimentos que narra, mas nem por isso deixa de exprimir suas posições e opiniões
acerca dos acontecimentos narrados que fazem parte da história real e ambientavam o
enredo de sua narrativa. Como destaca Ricardo Vélez, Érico enquanto liberal, não podia
deixar de exprimir suas críticas e retratar as características do patrimonialismo sul-rio-
grandense, que tomou proporções nacionais nas mãos de Getúlio Vargas. Fica claro em
uma passagem do livro, na qual conversam Rodrigo, Tio Bicho e Floriano, que para
Érico o povo tem uma tendência natural a se sujeitar a regimes autoritários, para suprir a
ausência de uma figura paterna, que o proteja e guie, tornando a existência mais simples
e segura. A seguir o trecho citado:
24
Sebastião José de Carvalho e Melo (1699-1782), Marquês de Pombal, secretário de Estado do Reino durante o reinado de D. José I(1750-1777). Representante e defensor do despotismo esclarecido, foi responsável por significativas mudanças na administração do Império português. 25
RODRÍGUEZ, Ricardo Vélez. A análise do patrimonialismo através da literatura latino-americana. Rio de Janeiro: Documenta Histórica: Instituto Liberal, 2008. P.259.
“Fala Tio Bicho:-Dizem os entendidos que essa necessidade que as
massas têm de submeter-se a um homem forte não passa duma saudade
da autoridade paterna, que vem da infância. (...) No Brasil tivemos no
século passado Pedro II, a imagem viva do pai, com suas barbas
patriarcais, sua proverbial bondade ou “bananice”, como querem
outros. Na Rússia o czar era também chamado de paizinho. Hoje o
papai dos soviéticos e dos comunistas do resto do mundo é Stálin. Uns
pais são mais severos e autoritários que outros. Nós temos o nosso
Getulinho, Pai dos Pobres...”26
Veríssimo expressa pela fala de suas personagens, posições distintas, que ao se
contraporem fazem uma representação das manifestações acerca do caráter carismático
e superprotetor do governo de Getúlio. Os que criticavam e os que concordavam tinham
seus lugares na cena política, no entanto, a crítica não era bem recebida, muito menos
aceita pelo patrimonialista autoritário. Na passagem a seguir fica clara a presença da
repressão e da violência policial, praticadas a mando de Vergas e em prol da
manutenção de seu Estado:
“-Não dou três meses de vida para esse governo que ai está...- Cala
essa boca, Arão!- exclamou Rodrigo com uma agressividade paternal-
Tua panacéia bolchevista não vai resolver nossos problemas. E uma
coisa te digo: se te prenderem de novo, não contes mais comigo pra te
tirar da cadeia. Tensa língua solta demais.”27
Outra grande característica da dominação autoritária patrimonialista que é
expressa na obra de Érico é o incontestável carisma do chefe de Estado. Não só no papel
de “Pai dos Pobres” que atua no sentido de conquistar a confiança e o apoio popular
mas também no sentido do carisma político. O chefe Rio-grandense trabalha no cenário
político cooptando ao seu redor forças que o apóiem. Nem mesmo aqueles insatisfeitos
26
VERÍSSIMO, Érico. O tempo e o Vento - O Arquipélago (I). São Paulo: Círculo do Livro, 1961, p.193. 27
VERÍSSIMO, Érico. O tempo e o Vento - O Arquipélago (I). São Paulo: Círculo do Livro, 1961, p.71.
conseguem resistir ao poder encantador do líder carismático. Esta característica
getuliana fica exposta no relato feito por Rodrigo a seguir:
“Cerca das dez da manha o trem presidencial chegou sob aclamações
à estação de Santa Fé. A Plataforma estava atestada de povo e o
entusiasmo atingia as raias do delírio.(...) Getúlio Vargas apareceu na
parte traseira do último carro, sorriu, acenou para a multidão, que
prorrompeu em vivas, aplausos e gritos. Estava metido num uniforme
militar cáqui e tinha ao pescoço uma manta com as cores da bandeira
do Rio Grande que uma dama lhe dera no dia anterior no Rio Pardo. O
primeiro membro da comitiva presidencial que Rodrigo abraçou foi
João Neves da Fontoura. Caiu depois nos braços de Flores da Cunha.
Por fim conseguiu subir para o carro e foi abraçado pelo presidente,
que lhe perguntou: “que é isso no braço?” ‘Um recuerdo da noite de 3
de outubro’-murmurou Rodrigo. E ante o sorriso aberto, de bons
dentes, de Getúlio Vargas, pensou: ‘Eu não me lembrava como este
patife é simpático!’”28
A incompetência do Estado em administrar a vida pública e, a corrupção do
Estado patrimonialista, estão por vezes recorrentes no texto de Érico, por meio das
opiniões de suas personagens. A forte critica tecida pelo autor na trama do romance se
posiciona de maneira que é possível identificar a sociedade do Rio Grande como uma
sociedade tradicionalista e patrimonial. E que vê com Getúlio Vargas a possibilidade de
mudar sua posição em relação ao cenário nacional. O sentimento de abandono frente ao
poder público comum à oligarquia pecuarista do sul vem à cena pela voz de Terêncio
Prates:
“Sabe por que São Paulo é hoje o Estado mais rico da Federação? È
porque sempre foi a menina dos olhos do governo central, que sacrifica
o resto do país para proteger a lavoura cafeeira paulista e seu
arremedo da indústria. Os fazendeiros de café recebem dinheiro
adiantado do Banco do Estado, têm sua safra garantida a preços
28
VERÍSSIMO, Érico. O tempo e o Vento - O Arquipélago (I). São Paulo: Círculo do Livro, 1961, p.134.
artificialmente elevados. Por isso sempre nadaram em dinheiro,
viveram à tripa-forra, com automóveis de luxo, grandes casas, viagens
freqüentes à Europa, ao passo que nós aqui no Rio Grande levamos
uma vida espartana, esquecidos do Centro, envolvidos em crises
financeiras e econômicas crônicas...”29
A burocratização, a valorização das funções administrativas, a troca de favores
com amigos, o beneficiamento daqueles próximos ao governante e o característico
complexo de clã, de que fala Oliveira Vianna30; também estão presentes na obra e
tomam vida pelas palavras de Terêncio:
“-Jamais se roubou tanto e tão descaradamente nas esferas
governamentais do Brasil como na era getuliana, em que imperou,
como nunca em toda a nossa história, o empreguismo, o nepotismo, a
advocacia administrativa, o peculato, o suborno, a malversação de
fundos públicos... E a imoralidade dos homens de governo e de seus
sócios nas negociatas ao fim de algum tempo acabou por contaminar
irreparavelmente quase todas as classes sociais.”31
A presença do beneficiamento daqueles próximos ao governante também fica
clara no seguinte trecho quando dois camaradas no Café Poncho verde conversam ao
ver Rodrigo Cambará:
“-Volta com a mesma cara- murmurou. – Cheio de dinheiro e de
empregos, o traidor... – Bom, mas esse até que não é dos piores... –
Qual- exclamou Vergueiro, fazendo uma careta. – Os piores são
exatamente os que não ocupam cargos administrativos. São os ‘amigos
do Homem’, como esse Rodrigo Cambará, os intermediários, os
‘mascateadores de influência’, os que trabalham por baixo do poncho...
29
VERÍSSIMO, Érico. O tempo e o Vento - O Arquipélago (I). São Paulo: Círculo do Livro, 1961, p.71. 30
Comportamento característico de solidariedade para com os pertencentes ao meio/clã. Como uma espécie de família, mas incapazes de serem solidários àqueles que não fazem parte do clã. 31
VERÍSSIMO, Érico. O tempo e o Vento - O Arquipélago (I). São Paulo: Círculo do Livro, 1961, p.173.
Estão metidos em todos os negócios, direta ou indiretamente. Sei de
boas desse tipo...”32
No entanto, o caráter pessoal de Vargas, em relação a qualquer tipo de
envolvimento direto nas falcatruas, permanece imaculado. Mas, o autor faz lembrar que
apesar de não se envolver diretamente, o ditador pecou pela omissão frente à
corruopção. Na fala de Terêncio Prates:
“-Não Rodrigo – replica Terêncio- eu me refiro também à patifaria, aos
desmandos e às negociatas que se processaram debaixo do nariz do
ditador, e que foram praticadas por amigos, parentes e áulicos. Eu não
acuso, e ninguém até hoje acusou Getúlio de desonestidade pessoal, no
que toca aos dinheiros públicos. Mas eu o acuso, isso sim, de ter sido
tolerante com os ladrões, de se haver acumpliciado com eles pelo
silêncio ou pela indiferença.”33
Érico Veríssimo corajosamente expõe sobe fortes críticas o tradicionalismo
extremo que permeia a sociedade do Rio Grande do Sul, mostrando ai seu desprezo
pelas características rudes e irracionais tão prezadas pelos homens do rio grande. Para
Érico, o valor do homem não está em carregar uma arma, ou em se portar como um
“macho” frente a uma mulher, muito menos em subjugar o outro simplesmente por
poder, para este autor o valor reside no caráter e na bondade, tanto quanto no raciocínio
lógico e evoluído. A pobreza e a exploração humana provocadas pelos autoritarismos,
que além de explorar também cerceiam as liberdades do ser humano são também
criticadas nesta obra. Não é apenas a Era Vargas que passa pela lente de aumento de
Veríssimo atreves do romance da família Cambará, é a trajetória do comportamento
social do Rio Grande e sua chegada à cena nacional, bem como as modificações
ocorridas na saciedade brasileira que são apresentadas e criticadas nesta magnífica obra
literária.
32
VERÍSSIMO, Érico. O tempo e o Vento - O Arquipélago (I). São Paulo: Círculo do Livro, 1961, p.212. 33
VERÍSSIMO, Érico. O tempo e o Vento - O Arquipélago (I). São Paulo: Círculo do Livro, 1961, p.173.
CONCLUSÃO
Foram as proposições feitas por Weber acerca das diferentes formas possíveis de
organização política que permitiram a identificação da sociedade ibérica enquanto uma
sociedade patrimonialista. Tal patrimonialismo nos foi transmitido através da
estruturação da empresa colonial na América Latina. Mas segundo frisa Wittfogel “em
condições históricas iguais, diferenças naturais fundamentais causam, eventualmente,
fortes diferenças institucionais” (VÉLEZ 2006). O patrimonialismo espanhol difere do
português e as origens e estruturações de ambos talvez mereçam um estudo mais
aprofundado. Assim como nas metrópoles, nas colônias há características comuns entre
os tipos de dominação exercidos pelos Estados sobre suas populações, mas há também
aquelas que tornam único o governo estabelecido em determinado local e o curso que a
história toma em cada um deles. O típico jargão “jeitinho brasileiro” é apenas mais uma
forma de reconhecer a singularidade comportamental que existe no Brasil. O trabalho de
nós historiadores é justamente ir a fundo à investigação, identificar e tentar
compreender as características que tornam um Estado único e aquelas que servem como
um elo de ligação e pertencimento a uma origem comum.
O patrimonialismo português, por exemplo, encontra com Pombal sua
característica modernizadora. Como nos mostra Antônio Paim em “A querela do
estatismo” é graças ao Marquês de Pombal, adepto do despotismo esclarecido, que o
patrimonialiosmo português adquire seu caráter modernizador. Na tentativa de
modernizar o Estado, mas ao fazê-lo sem desvinculá-lo do poder central, exercido pelo
soberano, o Marquês modifica a estrutura do Estado português profndamente. Esta
modificação certamente exerceu fortes influências sobre a formação política e
econômica brasileira. Ao cercear a abrangência da influência da igreja sobre as decisões
do Estado e implantar uma modernização econômica no Império português, Pombal
deixa uma herança preciosa, pois que foi a partir de seu trabalho que o lucro passou a
ser visto com outros olhos e a empresa “capitalista” pode se desenvolver. Os estudos
produzidos pela escola weberiana brasileira caminham no sentido de identificar o
patrimonialismo brasileiro em suas mais diversas facetas e suas possibilidades de
desenvolvimento e evolução.
Como dito anteriormente, para o estudo do patrimonialismo há que se considerar
também as características diferenciadoras de cada manifestação. No caso do Rio Grande
do Sul, suas características mais marcantes advêm da forma como se deu a ocupação do
território e sua colonização. As intempéries naturais que se opuseram à colonização, os
esforços homéricos que requeria a empreitada e a necessidade da militarização da
sociedade que ali se formava, devido aos conflitos constantes ajudaram a construir a
figura do gaúcho típico e o forte tradicionalismo que permeia aquela sociedade até os
dias de hoje. A posição de coadjuvantes a que ficaram relegados desde o período da
colônia, enquanto a oligarquia paulista ganhava a cena e os benefícios do Estado fez
crescer na oligarquia gaúcha uma repulsa em relação ao cenário nacional, que entre
outras coisas fez eclodir a Revolução Farroupilha. Mesmo depois da re-anexação do
território a insatisfação da oligarquia gaúcha não findou. Com a chegada de Getúlio
Vargas ao poder, essa classe viu a possibilidade de conseguir seu lugar ao sol.
“Arquipélago” o terceiro volume da obra “O Tempo e o Vento” mostra entre as
idas e vindas temporais do enredo de que forma se comportavam os poderosos da região
sul que chegavam aos círculos de poder através da proximidade com Getúlio. O modo
como a “Era Vargas” modificou o cenário nacional, centralizou o poder nas mãos do
presidente, iniciou a modernização e incentivou a industrialização significou avanços,
mas também foi patrimonial ao extremo. Agregando características modernizadoras ao
patrimonialismo o governo de Vargas alterou as estruturas do Estado, deu inicio ao
populismo, manteve as massas sob o controle paternalista do Estado, os amigos com
muitos benefícios, os inimigos sob controle por meio de favores, em suma o poder
altamente concentrado na figura do ditador “pai dos pobres” e repressor.
Érico, grande crítico do machismo e tradicionalismo exacerbados presentes no
sul faz nessa obra uma crítica a essas características ali presentes, mas também ao
comportamento patrimonial e corrupto que permeia toda a sociedade brasileira. Mas “O
arquipélago” não se detém à crítica da sociedade com ela é; nele o autor também
apresenta os indícios das mudanças ocorridas no século que passou. A modernização
abre as portas para a deterioração das estruturas tradicionalistas já consagradas pela
oligarquia latifundiária patrimonialista.
A estrutura da própria família Cambará como se encontra em 1945 é um
exemplo dessa desestruturação. O casal Rodrigo e Flora já não vive mais como marido e
mulher; o filho mais velho se diz escritor, mas na verdade tem um emprego de renda
insuficiente, arranjado pelo pai por indicação, e ainda assim vive às custas do pai; Jango
se recusa a ver e aceitar a modernização pela qual passa o país e dedica seus dias a
trabalhar e administrar a estância da família; Edu o mais novo dos filhos homens entrou
para o partido comunista e vive a criticar os “ricos e poderosos opressores das massas” e
; Bibi, a filha mais nova já é separada do marido e vive com Sandoval um carioca
“malandro profissional”. A forte presença dos imigrantes na sociedade do sul também é
abordada, sua prosperidade é muitas vezes o motivo da inveja e maledicência dos locais.
Hoje nos é claro que a sociedade mudou e muito após o governo Vargas. O
ditador soube cooptar as atenções em torno de si, controlar àqueles ao seu redor, mas
infelizmente para ele,todo esse esforço a uma certa altura deu errado,as oposições se
uniram para tirá-lo do poder. Apesar dos pontos negativos do governo exercido por
Getúlio a modernização que este representou para o país é digna de notoriedade. Como
defendem vários autores da escola weberiana brasileira, ultrapassar a etapa
patrimonialista ainda é possível. O primeiro grande passo nesse sentido foi dado no
momento da abertura do Brasil ao capital estrangeiro e quando foi dado o incentivo que
culminou na industrialização no país. Mas muito ainda há que ser feito, os vários setores
da sociedade devem trabalhar juntos para extinguir o empreguismo, o clientelismo e a
corrupção. Sem uma conscientização de todos é impossível ultrapassar a barreira dos
favoritismos e do patrimonialismo que segura o Brasil na dinâmica econômica do
século passado.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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PAIM, Antônio. Querela do estatismo. 1ª edição, Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro,
1978.
SCHWARTZMAN, Simon. Bases do autoritarismo brasileiro. 1ª edição. Rio de Janeiro: Campus, 1980.
VÉLEZ Rodríguez, Ricardo. A análise do patrimonialismo através da literatura latino-
americana - O Estado gerido como bem familiar. Rio de Janeiro: Documenta Histórica / Instituto Liberal, 2008.
VÉLEZ Rodríguez, Ricardo. Oliveira Vianna e o papel modernizador do Estado brasileiro. Londrina: UEL, 1997.
VÉLEZ Rodríguez, Ricardo. Patrimonialismo e realidade latino-americana. Rio de Janeiro: Documenta Histórica, 2006.
VIANNA, Francisco José de Oliveira. Populações meridionais do Brasil - Volume 2: O campeador rio-grandense. 3ª edição, Belo Horizonte: Itatiaia; Niterói: UFF, 1987.
VIANNA, Francisco José de Oliveira. Populações meridionais do Brasil - Instituições políticas brasileiras. 1ª edição num único volume. Brasília: Câmara dos Deputados, 1982.
WELLEK, René; WARREN, Austin. Teoria literária. Madrid: Gredos, 1969.