Jornal APCD Julho 651 - fo.usp.br · Odontopediatria da Faculdade de Odontologia da Universidade de...

2
APCD Jornal - Julho 2011 8 Dia a dia em notícia Identificação humana Estudo testa novo denominador no Índice de Carrea Página 10 Nova lei Governo de São Paulo veta uso de jaleco e avental fora do local de trabalho Página 13 Excesso de sal Ingestão de sódio continua sendo principal causa de doenças cardiovasculares Página 20 Especialistas defendem o conceito de Odontologia minimamente invasiva no tratamento de lesões por cárie Por Mariana Pantano e Swellyn França O emprego de técnicas mini- mamente invasivas nas mais diver- sas áreas da saúde tem aumenta- do cada vez mais. Como o próprio nome diz, são métodos que buscam preservar ao máximo o tecido e/ou o órgão do indivíduo, invadindo-o o menos possível. Um exemplo clássico refere-se à cirurgia para a retirada de apên- dice que há 50 anos era feita com grandes incisões devido à necessi- dade de se “enxergar” os órgãos. Atualmente, graças aos avanços tecnológicos e possibilidade de uso de micro câmeras, essa operação é realizada por meio de pequenos orifícios e com instrumentais me- nores e menos agressivos. A evolução não é diferente na Odontologia. Exames radiográficos, tomografias computadorizadas e outros procedimentos facilitaram o trabalho dos profissionais ao permitir a visualização da posição da arcada dentária e da espessu- ra do osso, por exemplo. Também é possível examinar os dentes dos pacientes com câmeras de vídeo intraorais, detectar cárie com apa- relhos de laser etc., apesar de nem sempre estas tecnologias serem mais efecientes do que o exame clínico associado ao radiográfico. Embora o conceito de míni- ma intervenção seja amplo e apli- cado em todas as especialidades da Odontologia, atualmente, essa concepção está bastante associada ao tratamento das lesões por cárie dentária. “Quando se fala em mí- nima intervenção na Odontologia, obviamente podemos citar diver- sos procedimentos em áreas como Prótese, Endodontia, Periodontia e várias outras, que cada vez mais dis- cutem novos conceitos para dimi- nuir a necessidade de desgastes das estruturas dentárias. Contudo, este conceito está, num primeiro mo- mento, muito ligado ao tratamento da doença cárie dentária”, explica o Professor Doutor da Disciplina de Odontopediatria da Faculdade de Odontologia da Universidade de São Paulo (Fousp), José Carlos Pettorossi Imparato, que coordena um grupo de pesquisa em técnicas de mínima intervenção na universidade. A Cariologista e Professora da Faculdade de Odontologia da Uni- versidade do Rio Grande do Sul, Marisa Maltz, explica que o concei- to, baseado no tratamento da do- ença cárie, prega a menor quanti- dade possível de remoção de tecido dentário. “Sempre que possível, não removemos o tecido cariado e ten- tamos preservar o tecido original.” Imparato explica que em al- guns casos, inclusive, a cárie pode ser deixada intacta, apenas com a aplicação de um selante sobre ela. “A filosofia se baseia na detecção e diagnóstico precoces, acompanha- mento e opções de tratamento. O seguida, a aplicação do selante (essa evidência é de um grupo coordenado por Mertz-Fairhust, de 1987). A decisão de tratamento pode ser simplesmente fazer um acom- panhamento da lesão evitando sua progressão, como também realizar uma remineralização, uma barreira mecânica e outras técnicas. Marisa Maltz conta que na do- ença cárie existe uma perda de mi- neral do dente e o tecido fica mais poroso. O aumento dessa perda mineral leva à cavidade dental. “No conceito de Odontologia Moderna, os profissionais de Odontologia pa- ram o processo de perda mineral. Po- rém, vai chegar uma hora que parar não vai adiantar, e o tecido terá que ser substituído por um material res- taurador. Hoje em dia, se removemos menos tecido e bloqueamos a entra- da de bactérias do biofilme dental, a lesão não irá progredir mais.” Dente também deve ser preservado como qualquer órgão Para os especialistas, remover muito tecido deixa o dente menos resistente: em lesões pequenas, por exemplo, a remoção deixa o dente mais sujeito à fratura, enquanto uma cárie mais profunda pode le- var à exposição da polpa. Além dis- so, as restaurações podem apresen- tar problemas com o tempo, sendo necessário refazê-las ou trocá-las. A nova proposta é (no caso de lesões mais profundas) retirar a parte externa, mais infectada da cárie, mantendo a parte interna e fazendo a restauração logo em se- guida. Já em lesões superficiais, em vez de retirar a cárie, seria aplicado um selante sobre ela. A intenção é fazer com que restauração e selan- te impeçam a progressão da cárie, criando uma barreira para a chega- da de nutrientes às bactérias. De acordo com a Professora Maltz, estudos mostram que o prog- nóstico da remoção total do tecido Remoção total do tecido cariado deixa os dentes mais fracos e sujeitos a fraturas, além de levar à exposição pulpar Fotos gentilmente cedidas por José Carlos Pettorossi Imparato Cirurgião-Dentista envolvido com este conceito tenta identificar pre- maturamente a lesão para, assim, optar por uma técnica mais conser- vadora possível do ponto de vista da mínima intervenção.” Vale lembrar que o grupo de pesquisa coordenado por Impara- to estuda a possibilidade de aplicar apenas o selante sobre a lesão de cárie. Porém, a evidência científica existente, hoje, aponta para o uso de um bisel ao redor da cavidade, depois uma restauração com resina e, em Lesão cavitada de cárie na metade interna de molar decíduo Selante aplicado sobre a lesão Jornal APCD Julho 651.indd 8 29.06.11 15:36:01

Transcript of Jornal APCD Julho 651 - fo.usp.br · Odontopediatria da Faculdade de Odontologia da Universidade de...

Page 1: Jornal APCD Julho 651 - fo.usp.br · Odontopediatria da Faculdade de Odontologia da Universidade de São Paulo (Fousp), José Carlos Pettorossi Imparato, que coordena um grupo de

APCD Jornal - Julho 20118

Dia a dia em notícia Identificação humana

Estudo testa novo denominador no Índice de CarreaPágina 10

Nova leiGoverno de São Paulo veta uso de jaleco e avental fora do local de trabalhoPágina 13

Excesso de salIngestão de sódio continua sendo principal causa de doenças cardiovasculares Página 20

Especialistas defendem o conceito de Odontologia minimamente invasiva

no tratamento de lesões por cárie

Por Mariana Pantanoe Swellyn França

O emprego de técnicas mini-mamente invasivas nas mais diver-sas áreas da saúde tem aumenta-do cada vez mais. Como o próprio nome diz, são métodos que buscam preservar ao máximo o tecido e/ou o órgão do indivíduo, invadindo-o o menos possível.

Um exemplo clássico refere-se à cirurgia para a retirada de apên-dice que há 50 anos era feita com grandes incisões devido à necessi-dade de se “enxergar” os órgãos. Atualmente, graças aos avanços tecnológicos e possibilidade de uso de micro câmeras, essa operação é realizada por meio de pequenos orifícios e com instrumentais me-nores e menos agressivos.

A evolução não é diferente na Odontologia. Exames radiográficos, tomografias computadorizadas e outros procedimentos facilitaram o trabalho dos profissionais ao permitir a visualização da posição da arcada dentária e da espessu-ra do osso, por exemplo. Também é possível examinar os dentes dos pacientes com câmeras de vídeo intraorais, detectar cárie com apa-relhos de laser etc., apesar de nem sempre estas tecnologias serem mais efecientes do que o exame clínico associado ao radiográfico.

Embora o conceito de míni-ma intervenção seja amplo e apli-cado em todas as especialidades da Odontologia, atualmente, essa concepção está bastante associada ao tratamento das lesões por cárie

dentária. “Quando se fala em mí-nima intervenção na Odontologia, obviamente podemos citar diver-sos procedimentos em áreas como Prótese, Endodontia, Periodontia e várias outras, que cada vez mais dis-cutem novos conceitos para dimi-nuir a necessidade de desgastes das estruturas dentárias. Contudo, este conceito está, num primeiro mo-mento, muito ligado ao tratamento da doença cárie dentária”, explica o Professor Doutor da Disciplina de Odontopediatria da Faculdade de Odontologia da Universidade de São Paulo (Fousp), José Carlos Pettorossi Imparato, que coordena um grupo de pesquisa em técnicas de mínima intervenção na universidade.

A Cariologista e Professora da Faculdade de Odontologia da Uni-versidade do Rio Grande do Sul, Marisa Maltz, explica que o concei-to, baseado no tratamento da do-ença cárie, prega a menor quanti-dade possível de remoção de tecido

dentário. “Sempre que possível, não removemos o tecido cariado e ten-tamos preservar o tecido original.”

Imparato explica que em al-guns casos, inclusive, a cárie pode ser deixada intacta, apenas com a aplicação de um selante sobre ela. “A filosofia se baseia na detecção e diagnóstico precoces, acompanha-mento e opções de tratamento. O

seguida, a aplicação do selante (essa evidência é de um grupo coordenado por Mertz-Fairhust, de 1987).

A decisão de tratamento pode ser simplesmente fazer um acom-panhamento da lesão evitando sua progressão, como também realizar uma remineralização, uma barreira mecânica e outras técnicas.

Marisa Maltz conta que na do-

ença cárie existe uma perda de mi-neral do dente e o tecido fica mais poroso. O aumento dessa perda mineral leva à cavidade dental. “No conceito de Odontologia Moderna, os profissionais de Odontologia pa-ram o processo de perda mineral. Po-rém, vai chegar uma hora que parar não vai adiantar, e o tecido terá que ser substituído por um material res-taurador. Hoje em dia, se removemos menos tecido e bloqueamos a entra-da de bactérias do biofilme dental, a lesão não irá progredir mais.”

Dente também deve ser preservado como qualquer órgãoPara os especialistas, remover

muito tecido deixa o dente menos resistente: em lesões pequenas, por exemplo, a remoção deixa o dente mais sujeito à fratura, enquanto uma cárie mais profunda pode le-var à exposição da polpa. Além dis-so, as restaurações podem apresen-tar problemas com o tempo, sendo necessário refazê-las ou trocá-las.

A nova proposta é (no caso de lesões mais profundas) retirar a parte externa, mais infectada da cárie, mantendo a parte interna e fazendo a restauração logo em se-guida. Já em lesões superficiais, em vez de retirar a cárie, seria aplicado um selante sobre ela. A intenção é fazer com que restauração e selan-te impeçam a progressão da cárie, criando uma barreira para a chega-da de nutrientes às bactérias.

De acordo com a Professora Maltz, estudos mostram que o prog-nóstico da remoção total do tecido

Remoção total do tecido cariado deixa os dentes mais fracos e sujeitos a fraturas, além de levar à exposição pulpar

Foto

s ge

ntilm

ente

ced

idas

por

José

Car

los

Pett

oros

si Im

para

to Cirurgião-Dentista envolvido com este conceito tenta identificar pre-maturamente a lesão para, assim, optar por uma técnica mais conser-vadora possível do ponto de vista da mínima intervenção.”

Vale lembrar que o grupo de pesquisa coordenado por Impara-to estuda a possibilidade de aplicar apenas o selante sobre a lesão de cárie. Porém, a evidência científica existente, hoje, aponta para o uso de um bisel ao redor da cavidade, depois uma restauração com resina e, em Lesão cavitada de cárie na metade interna de molar decíduo

Selante aplicado sobre a lesão

Jornal APCD Julho 651.indd 8 29.06.11 15:36:01

Page 2: Jornal APCD Julho 651 - fo.usp.br · Odontopediatria da Faculdade de Odontologia da Universidade de São Paulo (Fousp), José Carlos Pettorossi Imparato, que coordena um grupo de

APCD Jornal - Julho 2011 9

cariado em lesões profundas de cáries é muito ruim. “Existe hoje o chama-do tratamento expectante, no qual removo um pouco do tecido cariado, fecho a cavidade bucal por uns 60 dias - esse dente pode produzir uma dentina terciária reduzindo o proces-so inflamatório -, depois abro essa cavidade e removo o tecido cariado. Com isso, a probabilidade de exposi-ção pulpar é muito pequena. Porém, preconizamos a não abertura do ex-pectante e o resultado é melhor.”

Apesar de diversas pesquisas atestarem as vantagens dessa me-todologia, ainda não é um consenso entre os profissionais da área. Ma-risa afirma que não existem muitas evidências científicas, com estudo clínico controlado e randomizado, e isso faz com que as pessoas fiquem receosas de usar esse novo conceito.

O Professor Imparato lembra a questão do choque que pode haver entre os profissionais. “Em um tra-tamento feito a partir desse con-ceito, em que a dentina no fundo da cavidade fica afetada para ser cicatrizada, ao fazer o exame radio-gráfico, a cárie aparece como uma imagem radiolúcida. Se o paciente for em um outro profissional que

fizer um novo exame radiográfico, ele pode afirmar que a cárie não foi removida e, na verdade, a imagem radiográfica não mostra se aquela lesão está ativa ou inativa. Por isso, reforço que para seguir essa nova fi-losofia o Cirurgião-Dentista precisa estar atualizado frente às evidências científicas e os pacientes precisam ser esclarecidos”, salienta.

Alguns profissionaisresistem a tratamentos pouco intervencionistasConsiderado o pai da Odon-

tologia Moderna, os princípios do Médico e Cirurgião-Dentista,

Greene Var diman Black (1836-1915), são ensinados nos cursos de Odontologia há aproximada-mente 100 anos. Entre diversas doutrinas, Black estabeleceu o tratamento da doença cárie com base na preocupação pre-ventiva, ou seja, frente às lesões propunha-se a remoção total do tecido cariado, deixando uma margem de segurança contra as bactérias cariogênicas. Ele ain-da propôs os preparos cavitários para fazer remoção total.

Para o Professor da Fousp, este conceito encontra-se tão enraizado que uma parcela signi-

ficativa dos profissionais tem di-ficuldade para assimilar as novas formas de tratamento minima-mente intervencionistas da doen-ça cárie. “Os Cirurgiões-Dentistas, muitas vezes, querem ser imedia-tistas e remover tudo. Essa foi a melhor proposta há dois séculos, mas ela já não é mais.”

Procedimentos requerem mais conhecimento científico e menos tecnologiaSegundo Imparato, todos os

Cirurgiões-Dentistas têm condi-ções de aplicar essas propostas

minimamente invasivas em seu consultório. “Mínima intervenção não significa instrumentos de alta tecnologia, porque uma lesão em esmalte pode ser tratada com ob-servação e controle ou fazendo a remineralização dessa lesão com um material barato, selante resi-noso, por exemplo. No caso da le-são profunda, remove-se uma par-te da dentina cariada e a dentina afetada pode ser restaurada com materiais simples, como amálga-mas e resinas. Há dois extremos: o clínico pode trabalhar com es-tes conceitos sem grandes inves-timentos em termos de recursos tecnológicos, mas ele deve investir em atualização científica.”

O professor da Fousp lembra que muito se diz atualmente sobre a prática da saúde baseada em evi-dências. “É isso que devemos seguir! Se não fizermos com que esses pro-fessores se atualizem, se reciclem, com certeza não vamos evoluir. Estamos na Era da Engenharia Te-cidual, em que extraímos células-troco para criar hipoteticamente um dente e, por outro lado, temos um conceito para tratar a doença ainda de dois séculos atrás.”

Lesão profunda em molar permanente Aspecto da remoção parcial mantendo a dentina afetada

Jornal APCD Julho 651.indd 9 29.06.11 15:36:26