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JESUTAS E TUPI: O ENCONTRO SACRAMENTAL
E RITUAL DOS SCULOS XVI-XVII Adone Agnolin
Departamento de Histria Universidade de So Paulo
Resumo Traduzindo os dogmas doutrinais ps-conciliares para os indgenas americanos, os missionrios empreendiam uma traduo de uma tradio religiosa ocidental para uma cultura que no participava dela. Os cdigos culturais daquela cultura estranha deviam servir para inscrever a tradio religiosa ocidental entre os indgenas. Para fazer isso, a reduo devia corrigir os excessos (dos costumes) e as ausncias (de crenas) dos novos catecmenos americanos. Os excessos impunham a disciplina, enquanto as ausncias reclamavam a doutrina. Nesse percurso, o hibridismo cultural decorrente de uma interpretao ritual do encontro doutrinal e sacramental reescreveu a relao com o sagrado segundo uma nova estrutura, tipicamente colonial. Das Disputas Doutrinais Acerca da F... F Enquanto Produto Histrico
Introduzindo a problemtica histrica para servir de base anlise do texto tupi dos
catecismos brasileiros, num artigo anterior1 propusemos uma primeira contextualizao
esquemtica e geral da catequese: o objetivo inicial era aquele de apontar para os principais
fundamentos doutrinais que, na perspectiva revolucionria da revelao crist, se tornaro
de extrema importncia para fundamentar a misso e a conseqente e necessria prtica
da catequese missionria. No decorrer do mesmo artigo, apontamos, portanto, para uma
contextualizao histrica mais atenta da prtica missionrio-catequtica do sculo XVI
nas suas profundas peculiaridades frente nova situao histrica que se determinara na
Europa, com a crise aprontada pela Reforma e conseqente reformulao da prtica
missionria, dentro e fora da Europa. Finalmente, com relao ao mundo indgena
americano, na parte final do artigo2 apontamos para o fato de que, antes de se configurar
como uma experincia religiosa, a converso vinha se impondo como aquisio de um
idioma capaz, por um lado, de dar voz aos sentidos e aos limites da dominao colonial e,
por outro, de replasm-los dentro da nova situao colonial. Se, de fato, nenhuma traduo
neutra, por outro lado, tambm, nenhuma traduo inclume. E , justamente, em
relao literatura catequtica que podemos verificar este dois aspectos isto , o 1 AGNOLIN, Adone. Jesutas e Selvagens: o encontro catequtico no sc. XVI. In: Revista de Histria da U.S.P., n. 144, 1 semestre de 2001, pp. 19-71. Trata-se de um artigo que se props enquanto sntese de um primeiro Relatrio Cientfico para FAPESP, So Paulo, Fevereiro de 2001, resultado do comeo de uma pesquisa de Ps-Doutorado, desenvolvida junto ao Departamento de Histria da U.S.P. e financiada pela Fapesp. 2 Que leva o subttulo de Conceitos, palavras e gramticas, pp. 58-65.
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constituir-se dessa mo dupla que caracterizam o sistema da comunicao
(catequtica) colonial.
A partir da introduo desses aspectos anteriormente propostos e que aqui no
poderemos retomar a no ser remetendo (quando for estritamente necessrio) quele texto
, nesse artigo pretendemos esboar a continuidade da investigao destacando apenas uma
fundamental continuidade nos dois contextos, europeu e americano: se, no caso americano,
novas gramticas e novas semnticas serviram para tornar possvel a pragmtica
interpretativa do sistema colonial sub specie religionis, por outro lado, no podemos deixar
de observar que esta linguagem interpretativa tem uma sua histria anterior a esse
encontro colonial especfico e interna ao prprio Ocidente e uma sua projeo sobre
outras formas de fazer histria, modalidades com as quais o Ocidente entrou em contato
nessa poca. Com relao a isso devemos levar em considerao que, na perspectiva da
catequese, sua gramtica, sua semntica e suas modalidades de comunicao estruturam-se
a partir de uma dimenso comum (universal) do homem enquanto catecmeno: isto , a
catequese pretende realizar a revelao crist ao longo de um caminho histrico da
humanidade que torna os homens catecmenos, isto , na realizao de um projeto
(mistrio) de Deus que, ao mesmo tempo, transcende a, e se inscreve na, prpria histria3.
Ora, se nossa indagao fosse de carter teolgico, diramos que a f transcende a
histria e que a inscrio do mistrio na histria se resolveria na missio (o anncio de
Deus, enquanto misterium, e de Cristo, enquanto verbum). Nesse caso, a misso imporia ao
homem cristo uma obra de inculturao na f, da qual a catequese representaria o
instrumento doutrinal privilegiado. Todavia, partindo da perspectiva exatamente oposta
isto , de uma tica que, histrica ou antropolgica que seja, larga mo das transcendncias
para abrir-se a uma dimenso horizontal da histria do homem , destacamos como, nos
pressupostos de nosso estudo e em contraste com a perspectiva (teolgica) anterior:
1) a f se oferece enquanto produto histrico;
2) a missio constitui-se enquanto uma (peculiar) perspectiva histrica de encontro
com o outro, culturalmente (isto , historicamente) distinto;
3) a inculturao na f transforma-se em inculturao da f;
4) e, finalmente, quando a missio se estabelece em bases doutrinais (no interior de
uma estrutura cultural compartilhada) a inculturao transforma-se em disputa (doutrinal).
3 Ibidem, p. 22. Ver a respeito toda a parte que leva o subttulo Apontamentos sobre a catequese, pp. 22-25.
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Essa seqncia no se pretende um percurso lgico a priori: o resultado de um
determinado percurso histrico que, principalmente (mas no s), em relao ao perodo
que nos interessa, inverte os resultados que produzem essa relao lgica. Por
conseqncia, do ponto de vista histrico, parte-se antes das disputas doutrinais, para
comear a se dar conta de que, alm da procura de uma inculturao na f, realiza-se uma
inculturao da f (de um crer que, de alguma forma, se constituir como tal) que, atravs
da disputa (e, quando possvel, da mediao) com o outro doutrinariamente diferenciado
(mas historicamente definido), leva possibilidade de um (de alguma forma) encontro
com o outro culturalmente (e historicamente) distinto. O reconhecimento histrico (a
conscincia) desse percurso leva, finalmente, possibilidade de entender a f como
produto histrico, oferecendo-se enquanto a base que determina o delinear-se da
perspectiva antropolgica e da histria das religies. Em suma, parte-se das disputas
doutrinais, para se chegar histria das religies.4
Sacramentos Tridentinos e Rituais Sociais No caso do encontro ensaiado pela misso jesutica entre os tupi do Brasil, duas
perspectivas parecem tecer e determinar a sua caracterstica peculiar e fundante:
1) a primeira (problemtica) enquanto problema fundamental na implementao do
processo de catequese (o problema da Crena/F): enquanto a f revela-se como uma
das problemticas constantes, abordadas pelos nossos catecismos, constituindo o territrio
fundamental para se realizar a missio jesutica com seus imperativos catequticos, o
destacar-se da possibilidade ameaadora da ausncia de uma crena ou de uma f
colocava em srio risco o prprio fundamento do empreendimento missionrio.
2) a segunda (resolutiva) delineia-se, por conseqncia, como uma possvel soluo
do impasse da ao missionria, a soluo da Idolatria: frente aos graves riscos
representados pela primeira perspectiva, esta ltima parecia poder realizar aquela re-
fundao das hierarquias de sentido requerida pelos missionrios, tanto projetando as
4 O perodo histrico que interessa nossa investigao adquire uma importncia central em relao a essa problemtica que se configura, de fato, profundamente enraizada nas disputas doutrinais. Frente aos novos problemas histrico-culturais do comeo da Idade Moderna, essas disputas doutrinais encontram seus instrumentos crticos justamente na Traditio da Patrstica crist. E isso, tanto em relao ao seu constituir-se como fundamento da identidade catlica, quanto em relao ao mundo da re-forma luterana que, projetando na traditio a luz funesta de uma decadncia, pretende, de fato, voltar para uma presumida forma original do Cristianismo: este o sentido prprio da Reforma. Nesse contexto histrico de disputas doutrinais, no que diz respeito ao mundo catlico, na relao entre a assemblia conciliar tridentina e o centralismo romano que assistimos ao determinar-se dos resultados mais significativos para uma nova catequese: aquela ps-tridentina. Nessa, alguns importantes aspectos sacramentais emergem em sua nova configurao doutrinal, estabelecendo um conflito e, at um certo ponto, uma forma de convivncia, de longa durao com os rituais sociais tradicionais.
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categorias religiosas ocidentais nas outras culturas, quanto impondo um sentido prpria
ao catequizadora que somente a extenso do conceito de religio (decorrente do
renascimento europeu) podia, at certo ponto, permitir.5 Isso significa que, na Amrica, os
jesutas deviam realizar uma primeira transformao simblica da idolatria: quando era
reconhecida nas prticas indgenas, alm e apesar de se constituir como culto das
divindades falsas e mentirosas, ela revelava-se, pelo menos, como indcio de uma outra
forma de crer que confirmava a pertena dos indgenas ao comum gnero humano.
Entre o problema da f e a soluo idoltrica, todavia, queremos destacar, no
presente artigo, uma outra problemtica da investigao que emerge, em sua nova
configurao doutrinal para a poca, a partir das resolues doutrinais tridentinas: trata-se
daquela relativa aos aspectos sacramentais. A prpria documentao catequtica, jesutica
e romana, nos revelou, de fato, nesse comeo da Idade Moderna, a emergncia de uma
profunda revoluo em curso entre as novidades doutrinais tridentinas e as velhas tradies
sociais europias. E, alm do mais, parece-nos que os primeiros fundamentos de uma
profunda revoluo social que constituir as caractersticas prprias da Idade Moderna
enquanto tal se encontram, justamente, nessa revoluo sacramental.
Por outro lado, se o esforo peculiar no caso da catequizao tupi ia, tambm, na
direo de uma transformao simblica da idolatria, esse esforo mostrava, nesse
especfico caso, ter que se renovar continuamente enquanto constante reinveno da
idolatria que nunca estava garantida. Isto significa que, por um lado, o problema
catequtico de encontrar uma crena para fundamentar sua missio levava (quase que
necessariamente) o missionrio em direo a uma soluo idoltrica. Quando, todavia,
nos momentos crticos, essa ltima soluo afastava-se do horizonte missionrio isto ,
quando parecia no haver mais a possibilidade desse reconhecimento entre determinadas
culturas indgenas tornava-se claramente desesperadora a ao missionria.6
5 A partir desse pressuposto, a prtica quotidiana de aculturao teria feito com que o clich idolatria, sofresse, ... a primeira transformao simblica: seguramente um signo da distncia da f crist, mas tambm indcio de um crer outro que confirma na prtica e com a prtica a pertinncia dos indgenas ao comum gnero humano. Dessa forma, a idolatria se teria configurado, portanto, como universalizao do crer [que] a primeira forma geral de pensamento selvagem produzida pela cultura crist moderna. GASBARRO Nicola. Il linguaggio dellidolatria: per una storia delle religioni culturalmente soggettiva. In: Studi e Materiali di Storia delle Religioni, Roma, vol. 62, n.s. XX, n 1/2, p. 189-221, 1996. p. 205. 6 Exemplo significativo da percepo missionria do iminente risco/possibilidade de falncia da prpria missio a lamentao do Pe. Manuel da Nbrega, a respeito dos Tupinamb brasileiros, feita em 1556: Se tiveram rei, podro se converter, ou se adorro alguma cousa; mas como no sabem, que cousa crr, nem adorar, no podem entender a prgao do Evangelho, pois ella se funda em fazer crr e adorar a um s Deus, e a este s servir; e como este gentio no adora a cousa alguma, nem cr em nada, tudo o que lhe dizeis se fica em nada. Carta de Pe. Manuel da NBREGA (1556-57), In: LEITE, Serafim. Cartas dos Primeiros Jesutas no Brasil. So Paulo, vols. I-III, 1956-58: carta que se encontra no vol. II, p. 320.
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Sugerida por nossa prpria documentao (antes jesutico-romana e posteriormente
jesutico-missionria), a nova perspectiva de indagao soma-se peculiaridade segundo a
qual tal revoluo sacramental realizou-se em relao e em estrita necessria dependncia
para com as tradies sociais indgenas. medida em que se delineava, progressivamente,
a fragilidade de uma possvel soluo idoltrica para fundamentar a misso entre os tupi,
parece surgir e afirmar-se uma outra forma e estratgia (paralela, antes, e alternativa,
depois) de soluo que realize (torne possvel), de algum modo, o encontro cultural que
devia constituir-se como base de um complexo processo transculturativo: o encontro
catequtico devia realizar-se atravs de um encontro de ritualidades que, com seus autos,
solenidades e teatro jesutico, implementaram o Teatro da F.7
somente levando em considerao (isto , historicizando) as problemticas
religiosas (ocidentais) que podemos tentar entender o processo do encontro catequtico
com os tupi em suas peculiaridades. Todavia, hoje nos parece evidente que, atravs de uma
atenta anlise da nossa documentao em terra de misso, o momento ritualista concentre o
transbordamento das problemticas desse encontro por alm dos limites, sempre
prontamente (e necessariamente) erguidos pelos missionrios, de sua reduo religiosa.
Esse momento do encontro ritualista coloca em foco a rica produo documental que nos
permite, de alguma forma, a possibilidade privilegiada de incurso nas culturas indgenas.
Levando em considerao a centralidade desse caracterstico encontro, acreditamos
que poderemos tentar focalizar, na documentao, os momentos (preciosos) em que a
converso podia (devia, segundo nossos pressupostos) adquirir para os ndios um sentido
prprio que transbordava, necessariamente, aquele de uma (redutiva) experincia religiosa
(ocidental). Neste momento privilegiado do encontro (catequtico), a traduo das
tradies (da cultura) indgena pode, de fato, nos permitir colher, mesmo que
sombriamente, tanto algumas caractersticas de suas prprias tradies, quanto a peculiar
perspectiva ritual antes que mitolgica? de sua traduo da tradio religiosa
ocidental. Todavia, pode-se obter este resultado desde o momento em que conseguimos
enfocar com clareza os instrumentos que a traduo (ocidental) afinou, no trabalho de
campo missionrio, para traduzir sua alteridade.
Entre o sculo XVI e o sculo XVII, verifica-se uma brusca e caracterstica
transformao no que diz respeito ao conceito (ocidental) de f: da suficincia de uma f
7 Segundo o ttulo do livro de KARNAL, Leandro. Teatro da F: representao religiosa no Brasil e no Mxico do sculo XVI. So Paulo, Hucitec, 1998.
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ingnua que se caracterizava como sumria adeso a uma ritualidade que permanecia,
substancialmente, incompreensvel, passa-se para uma nova e forte exigncia que v a f
perder seu primeiro significado de fiducia para ganhar, de maneira definitiva, aquele de
crena. Para responder a essa nova exigncia, o Catecismo vem se configurando como o
instrumento indispensvel para fornecer este minimum de conhecimentos (coisas a serem
acreditadas) e, portanto, se impe como instrumento para as massas. Esse resultado
realiza-se, historicamente, partindo do pressuposto que, no fundo, a f, em si, que
caracteriza de forma peculiar a religio crist: fato que determina, de forma significativa,
nosso conceito de religio. Explica-se, assim, a contingncia histrica que tornou
fundamental, para o cristianismo, a profisso de f.8 Esta perspectiva nos mostrar como,
por exemplo, no por acaso que, em 1530, encontramos o configurar-se da profisso de
f como confisso religiosa, assim como no sem significado o fato de que o comeo
da Idade Moderna leve, tambm, o nome de Idade Confissional, justamente com o
objetivo de distinguir uma comunidade de crentes de outra.9
Essa problemtica de fundamental importncia para entender os resultados mais
significativos da nova catequese ps-tridentina e, entre esses, a importncia do
encontro/choque entre a nova normatizao dos sacramentos tridentinos e os antigos rituais
sociais, sejam esses europeus ou americanos. Em decorrncia desse choque, a
consumao do sagrado, adquiriu uma nova caracterizao em relao dimenso
ritualista da f catlica. E antes de destacar-se enquanto fenmeno tpico da cultura
colonial americana, esse fenmeno caracterizou tambm o encontro (conflito e interao)
entre os dois modelos de catolicismo da Europa: um rural, tradicionalista, oral, ritual,
centrado nas redes de parentesco, e outro metropolitano, tridentino, textual, sacramental,
centrado na responsabilidade individual.10
8 No que diz respeito peculiaridade da profisso de f crist, poder revelar-se de grande utilidade seguir algumas das indicaes traadas pelo trabalho de Sabbatucci, no primeiro captulo de La prospettiva storico-religiosa que leva, de fato, o ttulo (por enquanto) curioso de fede nella fede (f na f). Cf. SABBATUCCI, Dario. La Prospettiva Storico-Religiosa: fede, religione e cultura. Milo, Il Saggiatore, 1990. Cf. o captulo I: fede nella fede, de p. 5 p. 18. 9 Trata-se, de fato, do ano em que Carlos V presidiu a dieta de Augusta (Augsburg, na Baviera) a fim de resolver a controversa questo religiosa decorrente do nascimento e da difuso do luteranismo. Nesta ocasio com a importante contribuio de Melanchton, grande humanista amigo de Lutero os telogos luteranos elaboraram sua profisso de f, apresentada dieta e nota como a Confisso de Augusta. Em seguida, adequando-se ao ordenamento eclesial das vrias comunidades protestantes nacionais, as Confisses se multiplicaram. 10 Veja-se, a esse respeito, o exemplo da Irlanda galica, proposto no trabalho de PO-CHIA HSIA, Ronnie. The World of Catholic Renewal (1540-1770). Trad. it.: Bolonha, Il Mulino, 2001, pp. 119-20. Onde, por exemplo, s pginas 119-20, destaca como rituais e sacramentos tornaram-se elementos cruciais ao redor dos quais construir e administrar o encontro (e a compatibilizao) entre os dois modelos do catolicismo europeu.
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Na complexidade dos diferentes contextos, da qual se desprende esse conflito
cultural, vale a pena notar como, os elementos de mediao fundamentais isto , os
elementos atravs dos quais, de algum modo, se realiza o encontro (acomodamento a
longo, longussimo prazo) das duas diferentes perspectivas culturais se constituem, justa
e significativamente, ao redor dos rituais e dos sacramentos: elementos cruciais e
performticos da transformao mais significativa da sociedade na Idade Moderna. Mesmo
que em sua peculiar caracterstica cultural, parece-nos que uma anloga e imprescindvel
funo mediadora caracterizou os rituais e os sacramentos11 no lento, mas inexorvel,
processo de encontro ensaiado em terra americana entre a perspectiva indgena e aquela
jesutica missionria, tpica e emblematicamente ps-tridentina.
A F e Sua Historicizao: instrumentos catequticos e apresentao da F Os catecismos escritos na Amrica fazem parte de um esforo idntico produzido
no Extremo Oriente, na ndia e nas Filipinas, durante o sculo XVI. Esta produo to
pouco reconhecida como literria, deve essa problemtica classificao justamente ao
fato de que tais catecismos, mesmo dentro de sua diversidade, se caracterizam por sua
dimenso instrumental: trata-se de instrumentos impressos ou manuscritos, que deviam
servir para a apresentao da f.
A utilizao instrumental dos textos catequticos, na tica propriamente
missionria, implicava um afastamento inicial da possibilidade de colher uma tica
indgena diferente, dando por pressuposta uma certa f na (eficcia da) f. Essa pretensa
(fidestica) missionria e os choques dela decorrentes encontrar-se-o base da obra e dos
equvocos da catequizao que, em princpio, pressupunha dever resolver simplesmente
os problemas da forma e da lngua (traduo) dos textos a serem utilizados. Dois motivos
nos impem de esclarecer esse pressuposto: em primeiro lugar, porque diz respeito a
alguns equvocos importantes que, desde a atuao missionria ao longo da histria do
Cristianismo, acompanham essas abordagens de estudos, influenciando ainda hoje parte
importante das cincias histricas e das cincias sociais12; em segundo lugar, porque esses
equvocos adquiriram uma dimenso peculiar e significativa na nova situao de embate
entre Velho e Novo Mundo, sobretudo em relao problemtica da nossa indagao.
11 De fato, uma forma necessariamente ritual de aproximao ao sagrado. 12 Cf. a definio emblemtica de Nicola Gasbarro que, nesta perspectiva, define esquemtica e exemplarmente este percurso: nica cultura no mundo a inventar-se em termos de civilizao e de religio, e a construir a sua histria e, sucessivamente, aquela do mundo com uma contnua oscilao entre os dois termos, depois da religio natural e do direito natural, o Ocidente inventa a civilizao e a religio enquanto construes culturais, isto , a antropologia e a histria das religies. GASBARRO, Nicola. Religione e Civilt: F. Max Mller e E. B. Tylor. In: Storia, antropologia e scienze del linguaggio, III, 1988, p. 126.
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Sabbatucci releva como, de fato, a histria das religies tem problematizado os
objetos de f, mas no a prpria f. Isso significa que ela no fez, da prpria f, um
problema de ordem histrico. A f em alguma coisa apareceu como o ponto central de
cada religio, e sendo que se presume que no exista, nem nunca tenha existido, um povo
sem religio, considera-se a f maneira de um dado (transcendente) e no de um fato
(histrico). O dado seria a exigncia humana de crer em entidades (seres ou foras) extra-
humanas: no tem importncia por quais fins, sendo que acerca dos fins no existe acordo
e, portanto, estes ficam fora do dado, ou daquilo que se aceita como um dado. Ora, um
fato que a f por si mesma caracteriza a religio crist e condiciona o nosso conceito de
religio; por isso ns estamos acostumados a conceber a prpria religio, qualquer que
seja, como um comportamento baseado na f. Mas do ponto de vista histrico-religioso
no correto falar de religies de outros ignorando este condicionamento.13 Com certeza o
fidesmo cristo tem marcado toda a cultura ocidental; portanto o primeiro passo para
uma historicizao da f deveria ter como objetivo a verificao da contingncia histrica
(e da conseqente necessidade terica) que tornou fundamental, para o cristianismo, a
profisso de f.14
Ponto de partida para uma interpretao crtica o fato de que no uma f que faz
a religio, mas , eventualmente, uma religio que faz (constri, inventa mesmo) a f; tal
eventualidade encontra-se inscrita no cristianismo, enquanto religio que incluiu a f nos
prprios atos institucionais. A f por si mesma, isto , des-historificada, no faz religio.15
Ora, em relao a esse problema, torna-se evidente que crer um conceito genrico e por
nada especificamente religioso: pode-se crer em coisas totalmente profanas.16
Eventualmente, o prprio Brelich distingue entre um crer espontneo e sem alternativas
e o crer podendo escolher entre diferentes possibilidades; porm acrescenta: ambas
estas formas do crer podem ser ou profanas ou religiosas. Nessa perspectiva, os cristos
realizaram-se como tais justamente pelo crer com alternativa. Determinadas
circunstncias histricas os tinham colocado em frente a uma escolha: para se tornar
cristos deviam escolher s-lo e dar testemunha da escolha atravs de uma profisso de f.
Foi assim no comeo, quando se tratou de escolher entre duas possibilidades: Jesus era ou
13 SABBATUCCI, Dario. Obra Citada, p. 5. 14 Ibidem, pp. 7-8. 15 Ibidem, pp. 9-10 16 BRELICH, Angelo. Introduzione alla Storia delle Religioni. Roma, Ed. dellAteneo, 1965, pp. 6-7
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no era o messias esperado pelo povo hebraico. Aqueles hebreus que escolheram a
primeira alternativa deixaram de ser hebreus e tornaram-se cristos.17
Com Jesus, o reino terrestre de Deus, concebido pelos profetas hebraicos, tornou-se
o Reino dos Cus, uma realidade extra-mundana, transcendente, como o prprio Deus, a
existncia terrena. Aceitar esta nova perspectiva implicava uma profisso de f na funo
messinica de Jesus, mas comportava, sobretudo, uma escolha entre salvao mundana e
salvao ultra-mundana. Decorre disso o fato de que se tinha uma identidade hebraica por
nascimento, mas tornavam-se cristos por eleio, atravs de um ato de f. O ato de f
numa realidade ultra-mundana superava o condicionamento mundano da nacionalidade ou,
genericamente, do nascimento. Era suficiente um ato de f no Reino dos Cus que, alm
disso, em vida, podia ser somente esperado e no experimentado. De experimentvel tinha
o Imprio romano, o nico modelo histrico da realidade meta-histrica defrontada pelos
cristos em chave de universalidade, enquanto atravs dele superava-se o condicionamento
tnico atravs da distribuio da civitas romana s pessoas de qualquer raa.18 No era
coisa de pouca monta: tornar-se sditos do Reino dos Cus significava subverter
idealmente os reinos terrestres; historicamente significou subverter o Imprio romano, o
prprio modelo da universalidade: e contra os subversivos, sditos do Rei dos Cus, o
Imprio romano procedeu em termos de lei. A subverso tornou-se martrio, isto ,
testemunha: uma testemunha constituda, tambm, em termos de lei, tanto que a f
testemunhada tornou-se lei, por sua vez, quando o Imprio romano se transformou em
Imprio cristo, um imprio no qual caa-se na ilegalidade se no se acreditasse ou no
se acreditasse da justa forma. A alternativa do crer tornava-se perigosa e, de qualquer
forma, ilegal.19
Nessa direo, como bem analisou Anthony Pagden, a extenso da cristandade
continuou, sucessivamente, circunscrita ao territrio que se considerava ter sido ocupado
pelo Imprio romano. O orbis terrarum se converteu, assim, atravs da variao efetuada
por Leo o Grande no sculo V, no orbis Christianus, que por sua vez se transformou de
imediato no Imperium Christianum. Um sculo depois, Gregrio o Grande o traduziria
por sancta respublica: uma comunidade dotada da mesma exclusividade
simultaneamente aberta que havia caracterizado a respublica totius orbis de Ccero.
Portanto, mesmo que nos termos do direito natural todos os homens, fossem pagos ou
17 SABBATUCCI, Dario. Obra Citada, p. 10-11. 18 Ibidem, pp. 11-12. 19 Ibidem, p. 12.
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cristos, tivessem idnticos direitos polticos, os no cristos, pagos que tambm eram
barbari, deviam ser animados para juntar-se congregatio fidelium, da mesma forma em
que haviam sido impulsionados os brbaros a integrar-se civitas romana.20 Dessa
herana cultural do Imprio romano21, resultou o instituto da Monarchia Universalis que,
com o antigo sonho dos imperadores cristos, transformou a ambio pag de civilizar o
mundo no objetivo anlogo de converter literalmente todos seus habitantes ao cristianismo.
O nico sistema legal unificador o koinos nomos se converteu, assim, num nico
sistema de crenas. A enorme influncia que teve a noo estica de lei nas reformulaes
realizadas pelos Padres da Igreja, de Santo Agostinho a So Toms, assegurou um alto
grau de continuidade terica entre os imprios pago e cristo e [juntamente] a convico
[...] de que a converso no podia alcanar-se de forma plena ou adequada sem uma
correspondente transformao poltica e cultural.22 Estruturada e potencializada ao longo
de toda a Idade Mdia23, essa Monarchia Universalis encontrou-se investida com os
Imprios Ibricos, pouco antes de seu iminente ocaso, da complexa tarefa de administrar o
impacto problemtico e suas conseqncias tericas em relao ao instituto monrquico
universal das descobertas americanas.
Conseqentemente, a missio religiosa no se distinguia daquela poltica e, essas
duas perspectivas oferecem-se, conjuntamente e ao mesmo tempo, enquanto fundamento
da monarquia universal espanhola. Nas palavras da Historia Ecclesiastica Indiana do
franciscano Gernimo de Mendieta (1525-1604), missionrio no Mxico a partir de 1554,
resume-se significativamente esse aspecto:
estou firmemente convencido de que, como os reis catlicos [Fernando e Isabel] foram encarregados da misso de extirpar os trs esquadres diablicos do prfido judasmo, do falso maometanismo e da cega idolatria, juntamente com o quarto esquadro dos herticos, em direo dos quais a Santa Inquisio remdio e medicina, assim a seus sucessores foi entregue a funo de completar a obra. Como Fernando e Isabel limparam a Espanha destas prfidas seitas, assim seus descendentes levaro a trmino em todo o mundo a destruio universal destas seitas e a converso final de todos os povos da terra que voltaro, finalmente, ao seio da Igreja.
Nesse especfico contexto histrico, a extenso da universalidade do imperium
constituiu-se na paralela imposio de civilizar o mundo, segundo o modelo da civitas
20 PAGDEN, Anthony. Lords of all the World: Ideologies of empire in Spain, Britain, and France, 1500-1800. Yale University Press, 1995. Trad. espanhola: Barcelona, Pennsula, 1997, pp. 38-39. 21 Que no podemos aqui re-visitar em sua complexidade, mas em relao qual reenviamos, todavia, para a rica e significativa sntese do primeiro captulo (A Herana de Roma) da obra citada de PAGDEN, pp. 23-44. 22 PAGDEN, Anthony. Obra Citada, p. 45 23 Veja-se, em relao a esse aspecto, o segundo captulo da obra de Pagden (Monarchia Universalis), pp. 45-86.
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romana, e converter seus habitantes, segundo o modelo do cristianismo. E se a cultura
(moral) do Imprio romano encontrava-se fundamentada na pietas que denotava a
lealdade familiar e comunidade, junto com a estreita observncia das leis religiosas
dessa comunidade , no novo contexto histrico que impunha a equao de civilizar e
converter (civilizar para converter), a pietas24, que tinha sido causa da fundao do
Imprio romano, transforma-se em humanidade, base essencial, mas no suficiente, para
tornar o homem cristo. Com esses pressupostos e sob a gide dos imprios ibricos, os
missionrios puderam levar (construir) a f catlica nas Amricas, na frica, na ndia e nas
Filipinas onde, diferentemente das misses em China e Japo, evangelizao e conquista
constituram-se paralelamente. De qualquer forma, para realizar (converter) o homem
enquanto tal, tornava-se fundamental transmitir-lhe a f na f. Desse ponto de vista, se a
religio (pietas) fazia o homem, a f (fides) produzia o cristo. Trata-se, segundo o
nosso ponto de vista, de uma distino de extrema importncia, na medida em que, muitas
vezes, os dois termos foram confusamente denotados de forma anloga.
De fato, independentemente dos objetos histricos da f, aos olhos do bom cristo
de hoje, assim como aos olhos missionrios de outrora, o pago (ou, melhor, o no-
cristo) que, apesar de desviar do verdadeiro objeto, demonstra aderncia prpria f ,
de seu jeito, um virtuoso; e, ao contrrio, o ateu, o agnstico ou o cptico, uma pessoa
pouco virtuosa. Neste ltimo caso, o que constitui a diversidade , portanto, a falta da f:
esta uma indicao do grau de qualificao cultural que o fidesmo assumiu entre ns.
No nvel da cincia histrico-religiosa, a f laica num ser supremo foi objetivada
numa noo atribuda, com demasiado desembarao, s culturas mais primitivas, tornando-
as assim mais facilmente recuperveis nossa f. Assim, por exemplo, podemos falar de
predisposio (cultural) em inventar um Ser supremo a ser atribudo aos povos primitivos:
foi o caso da descoberta de Andrew Lang no sculo XIX e de seu pronto recebimento, a
f num Ser supremo, na etnologia religiosa. A idia de Deus representa uma componente
fundamental da cultura ocidental: no esquecendo isso, poderamos dizer que aquele Ser
supremo que era atribudo s culturas primitivas era o Deus europeu oportunamente des-
historificado ou, de qualquer forma, tirado do contexto histrico cristo. Tratava-se de uma
realidade filosfica (no necessariamente teolgica) qual parece que o europeu no possa
renunciar sem renunciar a tantos pontos fundamentais da prpria cultura: de Plato a Kant.
Aconteceu assim que o europeu, mesmo quando rejeitou a f crist em nome da livre
24 Que compreendia a prtica da virtus, a humanidade que se expressava na capacidade de valorizar o bem da comunidade, a utilitas publica, acima da prpria convenincia pessoal, a utilitas singulorum.
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razo, conservou, contudo, o Deus cristo sem ter conscincia que fosse tal, mas supondo
tratar-se de uma realidade universal (pr-crist ou a-crist), isto , objeto da pesquisa
filosfica e no tambm histrica. A f sem histria torna-se, assim, uma virtude humana e
no faz nenhuma diferena que se fale de f num Ser supremo, de f nos espritos da
natureza, de f num ideal, transferindo num nvel de comportamento laico a
religiosidade prpria do fidesmo.25
Levando em considerao esses problemas de carter histrico, que emergem da
perspectiva histrico-religiosa, j se entrev quanto, alm dos problemas de clareza
doutrinal, de sntese conceitual e de traduzibilidade lingstica, os instrumentos impressos
ou manuscritos que deviam servir para a apresentao da f destinada s novas
populaes do orbis Christianus determinaram um espao para um encontro que se
constituir necessariamente repleto de equvocos. E sero justamente esses equvocos que
se tornaro as peas fundamentais sobre as quais se estrutura a possibilidade do encontro
missionrio (cultural) com as religies e as civilizaes americanas.
Ao analisar o problema em relao aos pressupostos fidesticos da cultura
missionria, com sua inevitvel confuso na definio de crenas, religio e f, e
levando em considerao a finalidade e o carter instrumental dos textos catequticos,
deveremos ter sempre presentes, todavia, alguns importantes aspectos distintivos e
esclarecedores dos textos em seus contextos.26
O que importa, finalmente, que o catecismo (e sua leitura) representa sempre,
necessariamente, a parte de um todo mais amplo, que deveremos levar em considerao
para contextualizar o prprio texto catequtico. Alm do mais, s vezes podemos encontrar
um esboo do contexto em que se insere a obra, justamente em sua parte introdutria.27
Mesmo assim, esse eventual trabalho de contextualizao sempre particularmente
25 SABBATUCCI, Dario. Obra Citada, pp. 13-15. 26 A catequese no se identifica, pura e simplesmente, com o catecismo. Em primeiro lugar, devemos levar em considerao algumas caractersticas gerais do contexto (sempre historicamente determinado) dentro do qual o homem (cristo) impelido a uma ao catequtica (evangelizadora), e no qual se coloca a especificidade instrumental do texto catequtico. Em decorrncia do contexto, encontramos vrios dados que se referem ao da catequese: observaes relativas explicao do catequista, forma concreta de torn-la clara, s dificuldades que o catequista pode encontrar no seu ensino, s eventuais objees que pode despertar perante seu auditrio, rejeio ou aceitao implcitas na ao evangelizadora e que nem sempre so facilmente perceptveis pelo catequista, etc. A importncia e prioridade desses pressupostos pedaggicos e propeduticos, do texto catequtico, para com os prprios mestres da doutrina, so evidentes desde o De Catechizandis Rudibus de Santo Agostinho. Desde esse notvel exemplo terico-prtico modelar, a incumbncia pedaggica se destaca por seu carter pastoral, enquanto destinada a esclarecer tanto a metodologia do ensino, quanto os aspectos gerais ou especficos da doutrina crist: em breve, em breve, o texto catequtico tem que responder, tambm, pergunta como fazer catequese?. Santo AGOSTINHO. De Catechizandis Rudibus. Traduo italiana de G. Vigini, Milo, San Paolo ed., 1998. 27 Cf. AGNOLIN, Adone. Artigo Citado, (As introdues dos catecismos publicados), pp. 46-52.
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reduzido, em relao a uma contextualizao histrica geral: seja porque isso no faz parte,
propriamente, dos objetivos do texto catequtico; seja porque o autor, em sua posio de
missionrio, no pode elevar-se, por alm de sua condio, quando no h o especfico, s
vezes necessrio, interesse em ocultar tal contexto.
Alm do mais, no caso concreto da evangelizao americana28, nas instrues sobre
como fazer catequese, no h coisa mais importante a ser levada em considerao do que
a inconstncia da alma selvagem29 ou, dito de outra forma, a aparncia de certas
converses que, s vezes, manifestando-se segundo as formas externas de um cristianismo
que significava a aceitao obsequiosa da preponderncia econmica, poltica e cultural da
sociedade qual pertenciam os missionrios30, ocultava a fragilidade da converso (a
murta de que eram feitas essas esttuas indgenas, o sermo de Vieira). Por outro lado,
mais uma vez, esse risco est presente, tambm, nas instrues agostinianas.31
28 Mas no s: vejam-se os caso da ndia, das Filipinas e do Extremo Oriente. 29 A expresso ganhou uma certa notoriedade nos estudos antropolgicos que se referem ao Brasil, desde o artigo de VIVEIROS DE CASTRO, Eduardo, O mrmore e a Murta: sobre a inconstncia da alma selvagem, In: Revista de Antropologia, So Paulo, USP, 1992, v. 35, pp. 21-74. Por outro lado, nesse artigo, a expresso tirada do Sermo do Esprito Santo do Pe. Antonio Vieira: a gente destas terras a mais bruta, a mais ingrata, a mais inconstante, a mais avessa, a mais trabalhosa de ensinar de quantas h no mundo [...]. Outros gentios so incrdulos at crer; os brasis, ainda depois de crer, so incrdulos. No final das contas, a expresso s torna emblemtico, na vocao do clebre imperador da lngua portuguesa, um motivo presente ao longo de toda a literatura jesutica sobre os ndios do Brasil, desde a chegada dos primeiros inacianos: a dificuldade da converso dos indgenas (tupi). 30 No que diz respeito a esse problema, vale a pena relevar a importncia da obra de: GLIOZZI, Giuliano. Differenze e Uguaglianza nella Cultura Europea Moderna. Npoles, Vivarium, 1993. O autor reconduz o mito do bom selvagem discusso acerca do colonialismo, que se desenvolveu na Frana no incio dos anos de 1870 (cf., a esse respeito, a primeira parte da obra, Il mito del buon selvaggio: prospettive storiografiche, pp. 23-119). Nesta perspectiva, a imagem dos selvagens que viajantes, polticos e missionrios do Quinhentos e Seiscentos nos transmitiram pde aparecer benvola somente se no se leva em considerao os instrumentos culturais com os quais eles tiveram que interpretar as novidades que encontraram. E se na Bblia, considerada o quadro histrico geral da civilizao europia cristo, se encontrou a resposta acerca das origens daquelas populaes, segundo Gliozzi possvel compreender as escolhas entre as alternativas oferecidas pelo texto bblico: elas refletiam as diversas formas de colonialismo, os problemas que elas encontravam e as razes que era necessrio inventar para justific-las. Enfim, para o autor, aquelas que foram levadas em considerao enquanto explicaes mitolgicas ou sonhos coletivos eram, de fato, ideologias historicamente determinadas. Essa ltima definio decorre do outro fundamental trabalho, de GLIOZZI. Adamo e il Nuovo Mondo: la nascita dellantropologia come ideologia coloniale dalle genealogie bibliche alle teorie razziali (1500-1700). Florena, La Nuova Italia, 1977. Sntese exposta, sobretudo, p. 4. 31 As quais sublinham como: Se [algum] quer tornar-se cristo porque espera alguma vantagem por parte de pessoas s quais pensa no poder fazer coisa grata de outra forma, ou para evitar problemas por parte de gente que teme ofender e tornar-se inimiga, na realidade no quer, de fato, tornar-se cristo, mas somente fingir s-lo. Porque a f no dada por um corpo que se dobra (sujeita), mas por um corao que cr (Santo AGOSTINHO. Obra Citada, pp. 27-28: Instrues para a Catequese, 5.9). E as instrues tecem, tambm, uma estratgia: Caso tenha-se apresentado com falsa inteno (Ficto pectore), somente para obter favores humanos ou para evitar problemas, no h dvida que mentir. Devemos, todavia, principiar partindo, justamente, do que ele diz mentindo, sem todavia rejeitar sua mentira [...] [e emergindo uma sua] resposta no conforme s disposies de esprito de quem est por ser iniciado na f crist, necessrio repreend-lo com modos doces e afveis, como pessoa inexperta e inculta... (Idem, Ibidem).
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Em relao inconstncia indgena esse fcil dobrar-se dessas naes
indgenas doutrina da f em contraposio a um corao que cr, de fato , so vrias
as denncias que podemos encontrar entre os jesutas, desde o comeo da misso no Brasil.
E paradigmtico que, alm dessas denncias, freqentes ao longo da ao evangelizadora
dos jesutas, encontremos a sinalizao desse perigo tambm na obra de autores
franciscanos, por exemplo no Mxico, que sucessivamente ao fracasso da estratgia dos
batismos em massa, chamam a ateno para este fato. Essa a situao evidenciada, entre
outros, por Bernardino de Sahagn:
... en todas partes y en las ms porfam de volver a cantar sus cantares antiguos en sus casas o en sus tecpas (lo qual pone harta sospecha en la sinceridad de su Fee christiana) porque en los cantares antiguos, por la mayor parte se cantan cosas Idoltricas en un estilo tan obscuro que no hay quien bien los pueda entender sino ellos solos; y otros cantares usan para persuadir al pueblo a lo que ellos quieren, o de guerra o de otros negocios que no son buenos, y tienen cantares compuestos para estos, y nos los quieren dexar.32
Essa guerra de costumes re-prope, implicitamente, a estratgia esboada pelo
prprio texto agostiniano. E o Pe. Nbrega que justifica, exemplarmente, a estratgia
que s vezes expunha os missionrios a censuras aplicada pelos jesutas no Brasil.
Se ns abraarmos com alguns costumes deste gentio, os quais no so contra nossa f catlica, nem so ritos dedicados a dolos, como cantar cantigas de Nosso Senhor em sua lngua pelo tom e tanger seus instrumentos de msica que eles usam em suas festas quando matam contrrios e quando andam bbados; e isto para os atrair a deixarem os outros costumes essenciais (...); e assim o pregar-lhes a seu modo em certo tom andando passeando e batendo nos peitos, como eles fazem quando querem persuadir alguma coisa e diz-la com muita eficcia; e assim tosquiarem-se os meninos da terra, que em casa temos, a seu modo. Porque semelhana causa de amor. E outros costumes semelhantes a estes.33
Essa mesma estratgia, bem descrita por Vasconcelos em relao s pregaes do
Pe. Azpilcueta Navarro, mostra de forma paradigmtica quanto a retrica indgena
despertou a ateno missionria e, portanto, quanto ela est presente em suas pregaes.
Comeava a despejar a torrente da sua eloqncia, levantando a voz e pregando-lhes os mistrios da f, andando em roda deles, batendo o p, espalmando as mos, fazendo as mesmas pausas, quebras e espantos costumados entre seus pregadores, pera mais os agradar e persuadir.34
32 SAHAGN, Bernardino de. Psalmodia Cristiana. Mxico 1583: prlogo ao leitor (f. 2v.-3r). Citado por ICAZBALCETA, J. Garca e MILLARES, A. Bibliografia Mexicana del Siglo XVI. Mxico, Fondo de Cultura Econmica, 1981, 2 ed., p. 249. 33 Carta de Manuel da NBREGA a Simo Rodrigues, 17 de setembro de 1552. In: Monumenta Brasiliae, vol. I, pp. 407-408. 34 VASCONCELOS, Simo de. Crnica da Companhia de Jesus. Vols. I-II. Petrpolis, Vozes, 1977 (1663), vol. I, p. 221.
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Seleo e adoo de costumes indgenas, portanto, para enraizar neles e impor-lhes
um novo sentido: esta pareceu uma forma de cimentar o crer indgena ao redor da doutrina
crist, uma forma de transformar a murta em mrmore. No se trata, todavia, de uma
operao nova na estratgia jesutica de evangelizao: de alguma forma, assistimos, de
fato, reedio de uma estratgia j apontada, em algum lugar, pelo prprio Incio de
Loyola que convidava a entrar com a [razo] deles [dos outros], para se sair com a
nossa. O problema permanece em saber se, ao invs de sair dessa situao com uma razo
(doutrinria) ocidental, no se saiu (necessariamente) com uma terceira: um encontro
(inevitavelmente) tecido de equvocos, implicitamente reconhecidos. E, neste caso, trata-se
de pensar se o mal-entendido no se constitua, realmente, como uma experincia fundante
e fundamental da comunicao inter-cultural.35
De fato, o pressuposto universalista da misso leva, implicitamente, necessria
constituio dessa comunicao inter-cultural imposta pelas intenes da evangelizao
que impe uma convivncia necessria com a diversidade cultural , a fim de conhecer a
peculiaridade de sua(s) forma(s) de comunicao. Isso porque, antes de converter os
gentios, os missionrios deviam converter o Evangelho segundo a cultura local;
sucessivamente, eles deviam converter a cultura local para dentro da perspectiva
universalista ocidental, com a pretenso de compreender a economia da alteridade dentro
da prpria ordem cultural: justamente na perspectiva universalista ocidental que esse
esforo de converso/traduo, para fora (a traduo do Evangelho) e para dentro (a
traduo da alteridade), encontra a chave fundamental que permite criar, de alguma forma,
essas possibilidades de traduo.36 Todavia, este universalismo deriva diretamente do
percurso histrico ocidental pouco acima apontado que leva do universalismo do Imperium
(romano), enquanto imposio de civilizar o mundo segundo o modelo da civitas romana,
para o universalismo que, tornando-se modelo de uma Monarchia Universalis, torna o
orbis, necessariamente, Christianus: impondo-lhe, portanto, a ao de converter seus
habitantes, segundo esse modelo. E, a esse respeito, o prprio instrumento jurdico formal
do requerimiento americano, elaborado pelo jurista espanhol Juan de Palacios Rubios ao
redor de 1512, nos fornece o exemplo mais significativo do produto desse modelo: usado
em situaes prticas de conquista, ele era ritualmente lido em espanhol ou latim impondo,
alm da linguagem, a doutrina de uma Monarchia Universalis absolutamente
35 Pela qual problemtica, apontamos, entre outros, para o trabalho de LA CECLA. Franco. Il Malinteso: antropologia dellincontro, Roma-Bari, Laterza, 1998. 36 Termo, neste caso, fortemente caracterizado por sua etimologia latina tra-ducere.
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incompreensvel para os indgenas. A converso dava-se, portanto, tambm no plano
jurdico, que constri suas necessrias doutrinas de forma inevitavelmente entrelaada com
o plano teolgico mais geral. No novo imperativo de um orbis Christianus, o prprio Juan
de Palacios Rubios apontava, conseqentemente, tanto para a teologia do requerimiento,
quanto para a dificuldade indgena de sua compreenso:
Meu Senhor, parece-me que estes indgenas sejam insensveis teologia deste requerimiento e que no haja ningum em condio de fazer com que o compreendam; no gostaria Vossa Excelncia de ficar com ele at que tenhamos colocado na gaiola um desses indgenas, de modo que possa aprend-la [essa teologia] a seu cmodo e meu Senhor Bispo possa explic-la?.37
Quase caoando do modo em que podia, de alguma forma, impor sua compreenso,
o autor revela a dificuldade que s a gaiola do processo histrico do encontro teria
permitido superar. De qualquer modo, o documento respondia s exigncias da conquista e
contribuiu para aliviar a conscincia da realeza.
Esse documento, portanto, destaca-se dentro da perspectiva universalista apontada:
essa ltima revela-se enquanto instrumento fundamental de uma possibilidade de traduo
para e do outro culturalmente diferente e encontra seu momento mais representativo de
constituio na hora em que se passa de um conceito de religio romana, fundamentada na
pietas (que constri o homem, culturalmente romano), para um conceito (religioso) de
cristo, que no pode mais ser conotado culturalmente, mas somente atravs da extenso
da fides: esta, e no mais a prpria cultura, produz o cidado da (nova) civitas Dei (de
agostiniana memria).
O(s) mal-entendido(s) da comunicao inter-cultural, que o Ocidente enfrentou,
enraizaram-se, portanto, nessa dimenso peculiar de seu percurso histrico que, todavia,
apesar de seus contnuos equvocos e reajustes, tornou possvel essa comunicao. Nesta
dimenso nasceu, de fato, no sentido mais amplo da expresso, a perspectiva
antropolgica: esta fundamentar a prtica de uma disciplina construda, principalmente,
sobre esses equvocos e sobre sua possibilidade de um entendimento, de uma explicao.
Mas, no momento do encontro, esse processo de converso/traduo estabeleceu-
se, necessariamente, tambm do lado da perspectiva indgena que, todavia, distinguia-se
daquela ocidental por seus paradigmas mtico-rituais. Neste sentido o impor-se (ocidental)
da com-verso criou uma necessria e inevitvel com-vergncia (recproca e, todavia,
distinta) na qual os mal-entendidos multiplicaram-se: tanto uma, quanto a outra das partes
37 Citado em HANKE, Lewis. The Spanish Struggle for Justice in the Conquest of America. Boston, Little Brown, 1965, pp. 33-34.
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envolvidas tornaram-se, ao mesmo tempo, produtoras, vtimas e beneficirias desse
processo de comunicao, constitudo por equvocos e mal-entendidos. Os missionrios
procuraro, por longo tempo, uma pietas peculiar das culturas indgenas mais do que
uma religio, um sistema de crenas para poder construir, segundo o modelo
oferecido pelo mundo romano, o percurso de um cristianismo que possa levar fides: trata-
se, no fundo, da preocupao prpria e constante da catequese. Por outro lado, a fides
missionria podia tornar-se, para os indgenas, um instrumento de negociao, na medida
em que, segundo seus paradigmas culturais de ordem mtico-ritual, os gestos resolviam
as intenes recnditas de uma conscincia e de uma religio do corao que no podiam
(no tinham os instrumentos culturais para) conceber. Nessa perspectiva, a simulao
indgena era a nica possibilidade para o indgena agradar, de algum modo, a exigncia
missionria: daqui a acusao de inconstncia e fragilidade desse processo de converso. E
no ser por acaso que a caracterstica especfica do texto catequtico consistir em sua
contnua repetitividade por parte do catecmeno indgena: tratava-se, de fato, de construir
ex novo uma forma peculiar, ao mesmo tempo e correlativamente integradas, da memria e
da conscincia, para medir, de algum modo, um nvel tranqilizador em relao
apresentao da f, na espera de que o catecmeno, partindo de um saber que teria que
emanar do texto, pudesse chegar, finalmente, a possu-lo em termos de convencimento e
de efetiva (isto , no ritualista) assimilao doutrinal.
Levando em considerao as perspectivas culturais (e estruturais) peculiares que
condicionam esse encontro catequtico (uma verdadeira inculturao da f) vamos
agora, finalmente, abordar alguns importantes aspectos distintivos e, esperamos,
esclarecedores desses textos em seus contextos.
Os Sacramentos entre os Tupi: mediaes simblicas e cultura indgena No incio do captulo V de A Escrita da Histria, Michel de Certeau aponta como:
quatro noes parecem organizar o campo cientfico cujo estatuto se fixa durante o sculo XVII e que recebe de Anpre o seu nome de etnologia: a oralidade (comunicao prpria da sociedade selvagem ou primitiva, ou tradicional), a espacialidade (ou quadro sincrnico de um sistema sem histria), a alteridade (a diferena que apresenta um corte cultural), a inconscincia (estatuto de fenmenos coletivos referidos a uma significao que lhes estranha e que no dada seno a um saber vindo de algures). Cada uma delas garante e chama as outras. Assim, na sociedade selvagem, exposta vista do observador como um pas imemorial (...), supe-se uma palavra que circule sem saber a quais regras silenciosas obedece. Corresponde etnologia articular estas leis numa escrita e organizar este espao do outro num quadro de oralidade. [...] Este quadriltero etnolgico [...] tem [...] seu corolrio na historiografia moderna, cuja construo
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apresenta, na mesma poca, quatro noes opostas: a escrita, a temporalidade, a identidade e a conscincia.38
Tendo em vista o objeto de nossa indagao, nos parece de grande relevo a anlise
que pode ser construda em relao especularidade desse quadriltero etnolgico que
emerge exemplarmente no comeo da Idade Moderna e que deve ser levado em
considerao atravs de uma prtica que se estabelece como ponte fundamental para essa
leitura especular que a etnologia: trata-se da prtica de traduo. E, repare-se bem,
quando falamos em traduo entendemos sim o processo atravs do qual, de alguma forma,
se traz para dentro do prprio mundo cultural uma cultura longnqua, mas entende-se,
tambm e ao mesmo tempo, os instrumentos culturais que permitem, antes dessa
(propriamente dita) traduo, uma incurso na cultura outra a fim de conceitu-la.
Na perspectiva especfica de nossa indagao, esse processo encontra-se
ulteriormente complicado: traduzindo para os indgenas americanos os dogmas doutrinais
ps-conciliares, os missionrios empreendiam uma traduo de uma tradio religiosa
ocidental para uma cultura que no era partcipe dessa tradio. Para poder realizar sua
tarefa, o missionrio devia tentar entender, portanto e a priori, os cdigos culturais daquela
cultura nos quais pudesse inscrever sua prpria tradio (religiosa).
Alm do mais claro que, se a tradio da catequese se estabelece num plano
universal (teleolgico), subordinando a esse, segundo seu ponto de vista, a prpria histria,
por outro lado, segundo o nosso ponto de vista, a relao entre histria e catequese , antes
de mais nada, um problema interno perspectiva histrica. A partir daqui, resultam
claramente pertinentes as perguntas que o prprio Certeau coloca na abertura de seu
trabalho: Qual o significado histrico de uma doutrina no conjunto de um tempo?
Segundo quais critrios compreend-la? Como explic-la em funo dos termos propostos
pelo perodo estudado?.39 Se, em relao a essas perguntas, j apontamos algumas
propostas de indagao, na especificidade da nossa indagao deveremos, agora, tentar
responder a difceis perguntas ulteriores em relao peculiar situao de mediao
cultural realizada pelos missionrios (jesutas) em terras americanas. E essas perguntas
dizem respeito, justamente, s modalidades segundo as quais a escrita, a temporalidade, a
identidade e a conscincia puderam tentar se inscrever nas culturas indgenas, ao mesmo
tempo em que esse quadriltero etnolgico tentava transcrever para dentro do mundo
ocidental a oralidade, a espacialidade, a alteridade e a inconscincia do mundo indgena 38 DE CERTEAU, Michel. A Escrita da Histria. Rio de Janeiro, Forense Universitria, 1982, p. 211 [ed. orig. francesa, Paris, Gallimard, 1975]. 39 Idem, Ibidem, p. 33.
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americano. Falamos em tentativa de inscrio e de transcrio, no para negar a
possibilidade que isso possa ter ocorrido (as representaes partilhadas tornam-se, de fato,
realidade), mas para abrir um espao fundamental para a indagao que , justamente, o
espao de uma negociao implcita nos processos de encontro cultural. E isso implica, de
alguma maneira, a tentativa de debruar-se sobre a construo do sentido do Outro, ou
seja, sobre os cdigos colocados em jogo, de um e de outro lado do encontro colonial, para
entender a alteridade humana, que penetrava de uma forma to inusitada e violenta no
mundo e no fluir da histria, criando para tanto novos universos simblicos com os
fragmentos dos tradicionais.40 Trata-se, enfim, de entender (entrever) o verificar-se de
convergncias de horizontes simblicos enquanto construes histricas que se realizaram
no impacto colonial: isto , entender o processo de seleo, absoro e transformao de
elementos/estruturas culturais outros, nos respectivos dois lados do encontro, na medida
em que esses elementos faziam sentido para a cultura (indgena ou missionria) que os
recebia e/ou eram transformados nessa direo. E se, no momento do encontro traumtico,
o sentido era diferente, a cultura colonial acaba, de fato, implementando-se nesse processo
de convergncia que a transforma numa cultura hbrida41 ou mestia.42 E, vale
destacar, at mesmo algumas peculiares categorias de anlise (ocidentais), que serviram
para interpretar a alteridade nesse processo histrico de encontro desenvolvido no interior
do Ocidente, constituram-se enquanto caractersticas categorias hbridas: o caso
emblemtico do prprio conceito de religio.
Mesmo visando investigar, especificamente, s modalidades do encontro doutrinal,
por outro lado, todavia, no podemos perder de vista o fato de que essa especificidade do
encontro retalha um seu espao particular dentro de um panorama histrico complexo,
como por exemplo, aquele do Brasil colonial onde Colonos, Coroa, administradores e
missionrios estabeleceram alianas ou travaram lutas em torno da condio bsica para a
colonizao da Amrica Latina: a conquista do trabalho escravo. Nesse especfico contexto
histrico, as misses jesuticas ocuparam um lugar estratgico ao se constiturem como
poder moderador nessa disputa pelo trabalho. Apesar de sua peculiar posio, os inacianos
acabaram se tornando, necessariamente, instrumentos da poltica de desenvolvimento da
40 POMPA, Maria Cristina. Religio como Traduo: missionrios, Tupi e Tapuia no Brasil Colonial. So Paulo, Edusc, 2002, p. 24. 41 VAINFAS, Ronaldo. A Heresia dos ndios: catolicismo e rebeldia no Brasil Colonial. So Paulo, Companhia das Letras, 1995. 42 GRUZINSKI, Serge. La Guerre des Images: de Christophe Colomb Blade Runner (1492-2019), Paris, Fayard, 1990; GRUZINSKI, Serge e BERNAND, Carmen. De la Idolatria: uma arqueologia de las ciencias religiosas. Mxico, Fundo Econmico de Cultura, 1992 [ed. original francesa de 1988].
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Colnia, servindo, portanto, aos interesses da Coroa portuguesa: nessa perspectiva a
catequese e, mais geralmente, a obra dos jesutas no Brasil se caracteriza tambm por
procurar um mtodo alternativo de conquista e assimilao dos povos nativos, os negros
da terra.43
Ora, este mtodo alternativo identificou-se com uma operao de reduo das
culturas indgenas que, antes de institucionalizar-se nos famosos modelos alternativos da
organizao social que levam esse nome, destacou-se como prtica necessria de um seu
reconhecimento e indagao. Os primeiros reconhecimentos a leitura e interpretao das
culturas indgenas, que devia fundamentar o novo ponto de equilbrio entre catequese e
civilizao parecem delinear-se, decididamente, em forma de excessos, por um lado, e de
ausncias, por outro. Num primeiro tempo, os excessos sero identificados com os
costumes e as ausncias com as crenas: e, no imperativo de cristianizar os indgenas, os
primeiros parecem, em princpio, ter preocupado mais do que as segundas.
Os excessos indgenas identificavam-se, sobretudo, com o conjunto de costumes
abominveis ou maus costumes (cauinagem, guerra, antropofagia, sexualidade
desordenada, pinturas, danas etc.) que conotava um estgio (de aristotlica memria)
inferior de humanidade44, revelador de uma profunda desordem social e que dificultava, a
um tempo, o prprio processo de civilizao, fundamento irrenuncivel para a sucessiva
obra de cristianizao. No combate a esses institutos, assim como instituio central da
cultura tupi do karaba, os redutores jesutas, sero sempre irredutveis.
Os impedimentos que h para a converso e perseverar na vida crist de parte dos ndios, so seus costumes inveterados [...] como o terem muitas mulheres; seus vinhos em que so muito contnuos e em tirar-lhos h ordinariamente mais dificuldade que em todo o mais [...]. Item as guerras em que pretendem vingana dos inimigos, e tomarem nomes novos, e ttulos de honra; o serem naturalmente pouco constantes no comeado e sobretudo faltar-lhes temor e sujeio [...].45
Essa denncia do Pe. Anchieta um dos numerosos exemplos que podem ser
encontrados nas cartas jesuticas do final do sculo XVI, mas que se prolonga, no sculo
sucessivo, nas denncias de aes e costumes brbaros da gentilidade, segundo as
palavras do Pe. Vieira. 43 Entre os vrios trabalhos que abordam essa questo apontamos os de MONTEIRO, John Manuel. Negros da Terra: ndios e bandeirantes nas origens de So Paulo. So Paulo, Companhia das Letras, 1994. Cf. pp. 36-37. MONTERO, Paula. A universalidade da Misso e a particularidade das culturas. Apud: MONTERO Paula (Coord.). Entre o Mito e a Histria: o v centenrio do descobrimento da Amrica. Petrpolis, (RJ), Vozes, 1996. Cf. pp. 86-89. 44 Cf., a esse propsito, PAGDEN, Anthony. The Fall of Natural Man: the american indian and the origins of comparative ethnology. Cambridge. Cambridge University Press, 1982. 45 Jos de ANCHIETA. Cartas, informaes, fragmentos histricos e sermes (1554-1594). Rio de Janeiro, Civilizao Brasileira, 1933, p. 333.
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Neste sentido, na base do processo de catequizao impunha-se o trabalho enquanto
instrumento de civilizao. Tanto os aldeamentos, quanto as reducciones constituram-se
como lugares de trabalho que, como tais, eram finalizados civilizao do indgena
americano46: estabilidade, regularidade, hierarquia, tornavam-se instrumentos de uma
administrao (indispensvel) de diferentes temporalidades, que encontravam um de seus
mais significativos desafios no controle e ordenao temporal de uma sexualidade indgena
que os jesutas consideravam, mais uma vez, enquanto desordenada e excessiva. O
processo (civilizador, antes do que missionrio) de reduo manifesta, enfim, o domnio
poltico como policiamento endereado a modificar os (excessos dos) costumes indgenas.
Em contraposio aos excessos dos comportamentos, destacam-se, por outro lado,
de forma paralela e correlativa, algumas significativas ausncias em relao memria,
vontade47 e religio48: e isso, apesar do definitivo reconhecimento (religioso) da alma aos
indgenas americanos. Nessa direo, se o missionrio deve modificar, atravs da fora se
necessrio, o comportamento e os costumes dos Indgenas para salv-los, ele deve
igualmente fazer com que conheam a lei de Deus.49 Para tanto, se os excessos impunham
a disciplina, as ausncias reclamavam a doutrina. Uma e outra eram, juntamente,
fundamentais para realizar o processo de cristianizao. Na tica de nossa indagao, a
tentativa de inscrio da disciplina e da catequizao revela-se importante para entender a
dificuldade de sua inscrio junto aos indgenas americanos (antes que da traduo de suas
culturas para o Ocidente), isto , a dificuldade de inscrever nas culturas americanas um
percurso constitudo pela escrita, pela temporalidade, pela identidade e pela conscincia
(ocidentais) para um mundo outro que era representado por uma pontual diferena em
relao a esses instrumentos culturais.
A Rede Demonaca: entre excessos e ausncias A uma primeira abordagem de tal relevante problema, parece-nos que dois foram
os instrumentos peculiares de traduo que se afirmaram como essenciais nessa obra de 46 A importncia do trabalho enquanto instrumento de civilizao e conseqentemente de converso foi bem evidenciado por ZERON, Carlos Alberto. La Compagnie de Jsus et linstitution de lesclavage ao Brsil: les justifications dordre historique, thologique et juridique, et leur intgration par une mmoire historique (XVI- XVII sicle), Tese de Doutorado, EHESS, 1998. 47 Em relao ao problema da memria e da vontade indgena, cf. os trabalhos de VIVEIROS DE CASTRO, Eduardo. O mrmore e a murta: sobre a inconstncia da alma selvagem, artigo citado e de HANSEN, Joo Adolfo, a comunicao apresentada em ocasio dos Seminrios sobre Instrumentos da Comunicao Colonial, realizados na Universidade de So Paulo nos dias 24 e 25 de agosto de 2000. 48 E em relao a isso, cf. POMPA, Maria Cristina. Religio como Traduo. Obra Citadoa, principalmente o capitulo 1. (O Encontro e a Traduo), pp. 35-56. 49 CASTELNAU-LESTOILE, Charlotte de. Les Ouvriers dune Vigne Strile: Les jsuites et la conversion des Indiens au Brsil 1580-1620. Tese de Doutorado, defendida em janeiro de 1999, junto Ecole des Hautes Etudes en Sciences Sociales, Paris, p. 142.
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inscrio: a traduo lingstica, junto e paralelamente conseqente e fundamental
traduo conceitual. E esta ltima parece identificar-se, decididamente, mais com o
instrumento interpretativo do demnio (anhanga), do que com aquele de Deus (tup).
Nessa direo, de acordo com Laura de Mello e Souza50, acusamos, sem dvida, na Terra
de Santa Cruz, a forte presena de uma demonologia que, alm de propor-se enquanto
produto histrico de uma representao e de uma administrao cultural das novas terras
americanas, destacou-se, sobretudo, enquanto imprescindvel instrumento para gerenciar,
de alguma forma, seu peculiar encontro cultural. Com relao a isso, tanto a lngua, quanto
o demnio constituram-se, mais do que em instrumentos de simples e pura
inscrio/dominao, em instrumentos que levavam em direo a uma inevitvel e
perturbadora imerso no mundo da cultura indgena. Tudo isso, antes de se sarem como
produto de uma nova, peculiar, dimenso cultural: a cultura colonial, de fato. Isso significa
que, dentro dos graves problemas suscitados pelos excessos e pelas ausncias da cultura
indgena americana, a conquista espiritual encontrou-se na necessidade de formular uma
primeira forma de reduo dessas culturas, estruturando uma rede interpretativa que lhe
permitisse, de algum modo, ler e interpretar as prticas culturais indgenas: tratou-se de
uma rede redutora que encontrava ao redor do demonaco a estrutura eficaz e cmoda
para poder, mesmo que fosse para condenar, abrir-se ao conhecimento dessas prticas.51
O demonaco constitua-se como a rede que, em princpio, oferecia a
possibilidade de entender tanto os excessos, quanto as ausncias que caracterizavam,
aos olhos dos missionrios, mas no s, as culturas indgenas. E o demonaco foi
instalando-se timidamente numa primeira frgil dimenso que se debruou nas primeiras
descries da alteridade indgena. Buscando uma sua especfica religiosidade pag que
permitisse implementar o processo e as estratgias de evangelizao j experimentadas em
relao s alteridades europias, os missionrios viram-se na impossibilidade de identificar 50 Cf. O Diabo e a Terra de Santa Cruz: feitiaria e religiosidade popular no Brasil colonial. So Paulo, Companhia das Letras, 1987; e Inferno Atlntico: demonologia e colonizao sculos XVI-XVII. So Paulo, Companhia das Letras, 1992. 51 Neste sentido, no estamos completamente de acordo com GRUZINSKI, La Guerre des Images, obra citada, p. 31. Cf., ao longo desta obra, a rica anlise do autor a respeito das imagens (em suas ambigidades entre destruio e substituio, intercmbio etc.) e do imaginrio barroco. Neste intercmbio desigual, o autor destaca como: por la va del trueque las cosas de Europa penetraron en los mundos indgenas mucho ms pronto que los conquistadores. [...] Trueque de oro e imposicin de imgenes: he ah ya unidas dos caras de una empresa de dominacin dedicada a extenderse por todo el planeta: la occidentalizacin. Ibidem, p. 51. Pasado el choque de lo desconocido y la primera interpretacin colombina, tentativa y flexible, se efectu el encuadre (Pedro Mrtir), se redujo el campo, se estiliz y se dramatiz la visin, hasta que surgi la visin americana, en realidad rplica pura y simple de un dj-vu europeo. La mirada del colonizador coloc sobre lo indgena la red reductora pero eficaz y cmoda de lo demonaco. Segundo nosso ponto de vista, essa peculiar rede redutora permitiu, muito provavelmente, uma reduo menos significativa, em relao s prticas indgenas, do que a rede oposta.
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(reconhecer) esse modelo de alteridade religiosa. E antes do que o modelo, sobretudo a
dimenso religiosa que parecia faltar completamente.52
No mais entusistico dos casos, esse dado garante a primeira constituio do mito
do bom selvagem. No por acaso que as peculiaridades positivas do indgena
americano encontram-se, desde o prprio Caminha, na sua docilidade e simplicidade53: a
carta do primeiro cronista do Brasil representa, portanto, manifestamente, a base de um
projeto propriamente colonial, mas se constitui, tambm e ao mesmo tempo, enquanto base
de um entusistico projeto missionrio: este via no bom selvagem a imagem de uma
inocncia que lhe permitia entrever a possibilidade de fecundar sua alma virgem. dessa
forma que, pouco depois de sua chegada, o Pe. Manuel da Nbrega podia afirmar, com um
tom manifestamente entusiasta em relao atuao de seu projeto missionrio, que se
trata de gente que nenhum conhecimento tem de Deus, nem dolos54 e, sucessivamente,
que esta gentilidad a ninguna cosa adora.55 Mas, pouco a pouco, a tabula rasa da
cultura indgena devia manifestar-se em toda sua ameaadora dimenso que arriscava de
no permitir, ao mesmo tempo, nem a converso (religiosa) nem a colonizao (poltica).
A ausncia (at em seus fundamentos lingsticos) de f, lei e rei revelava-se como o
perigo do fracasso da empresa colonial global. E, em sua especificidade religiosa, assiste-
se, portanto, transformao da interpretao de Nbrega, como aparece em sua Carta de
1556, j apontada, emblemtica correspondncia, no mais de uma (pretensa) interpretao
etnogrfica, mas, finalmente, de uma desesperadora lamentao.
A possibilidade de constituir a Humanidade enquanto sistema de comparaes entre
suas especficas formas (hoje diramos de suas culturas), era ameaada pela
impossibilidade de encontrar uma srie de valores (religiosos) comuns que deviam
fundamentar a comparao. Essa ausncia constitua-se como a impossibilidade de realizar
uma autntica converso/traduo por parte dos missionrios. A prpria ao demonaca
caracterizava-se, tnue e timidamente, neste vazio de crenas, como eco das
caracterizaes que a Idade Clssica e Mdia haviam projetado nas alteridades da ndia, da
Etipia e da Escandinvia e que se transferia para a Amrica em seguida expulso
52 Cf. CLASTRES, Hlne. Terra sem Mal: o profetismo tupi-guarani. So Paulo, Brasiliense, 1978 (1 ed. Paris, 1975), p. 15. 53 Necessitando de tudo, o indgena necessita, sobretudo e principalmente, daqueles bens culturais que encontram na creema a base fundamental que o Europeu se sente no dever de impor: cf. CAMINHA, A Carta de Pero Vaz de Caminha: o descobrimento do Brasil. 2 ed., CASTRO, Slvio (Org.). Porto Alegre, L&PM, 1987. 54 Carta de 10 de abril de 1549. 55 Informao das Terras do Brasil. Agosto de 1549.
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ocorrida na Europa.56 Mas, nas desnorteantes ausncias das terras americanas, o prprio
demnio corria o risco de se encontrar sem cho para implementar sua ao. Para
fundamentar a possibilidade de uma autntica converso tornava-se necessrio, ento, a
anterior possibilidade de uma traduzibilidade (apesar da novidade) da cultura americana.
Fazia-se necessrio encontrar uma gramtica das culturas outras que permitisse l-las:
tratava-se de instaurar, finalmente, uma possibilidade de comunicao que unicamente
podia permitir uma (de alguma forma) converso: deste ponto de vista, adquire uma
importante relevncia o fato das palavras conquista, converso e traduo
encontrarem-se envolvidas numa relao semntica to estritamente recproca.57 E em
termos comunicativos, verifica-se uma peculiar determinao lingstica da prpria
converso. assim que os missionrios, in the same way that they bypass the ambiguity
of Christianity, they avoid the question of the linguistic determination of conversion.58
Por outro lado, no podemos perder de vista que tudo isso verifica-se,
pontualmente, na perspectiva de uma mediao de um religioso que se estabelece enquanto
cdigo comunicativo que devia permitir uma penetrao da cultura ocidental nas outras
culturas, ao mesmo tempo em que devia permitir uma inscrio das outras culturas num
reconhecimento ocidental de sua (eventual) religiosidade. E tambm no podemos
perder de vista como o mundo simblico indgena devia ter-se aberto a uma perspectiva de
traduo frente linguagem (religiosa) de mediao simblica dos missionrios, s vezes
criando ou ameaando equvocos de que a estreita convivncia, junto com a perspiccia de
certos missionrios se deram, finalmente, conta. Assim o jesuta Acosta aponta, sinttica e
emblematicamente, para os problemas que surgiram ao longo da prtica missionria nas
Amricas: essa experincia manifestava quanto podia ser contraproducente e perigoso falar
de igrejas, monastrios e padres a povos que no conheciam essas coisas. A lio
dessa experincia missionria constituiu-se, portanto, na necessidade de adequar-se ao grau
de compreenso dos prprios indgenas: dessa forma, corrigiram-se algumas perspectivas
catequticas iniciais como, por exemplo, algumas caractersticas diretrizes anchietanas.
Portanto, como ao longo de seu percurso histrico (melhor, do percurso histrico
que ele determinou) e com uma destacada ateno perante a novidade do encontro
56 Cf. MELLO E SOUZA, Laura de. O Diabo e a Terra de Santa Cruz e Inferno Atlntico, obras citadas. 57 RAFAEL, Vicente L. Contracting Colonialism: Translation and Christian Converrsion in Tagalog Society under Early Spanish Rule. Ithaca, Cornell University Press, 1988. Em relao a essa estrita correlao entre os trs termos, cf. principalmente todo o Prefcio, pp. IX-XIII. 58 Idem, Ibidem, p. 6.
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americano, o instrumento conceitual religio modelou-se, mais uma vez, manifestando
sua vocao no constituir-se como resultado privilegiado de uma comunicao inter-
cultural. A projeo das categorias religiosas ocidentais j produto da peculiar
comunicao inter-cultural de uma histria (religiosa) que se desenvolveu ao redor do
Mediterrneo nas outras culturas re-fundavam (religiosamente) suas hierarquias de
sentido: mas no podemos deixar de observar como essa traduo devia constituir-se como
recproca, na medida em que a cultura indgena podia transformar o sentido missionrio
das igrejas, dos monastrios e dos padres, a que se refere a preocupao acostiana.
E, junta e paralelamente ao conceito de religio, o processo de personificao dos
seres extra-humanos que se constitui como o emblema mais significativo do resultado de
comunicao inter-cultural. A construo (conceitual) religiosa encontra, quase, nesses
ltimos, os tijolos que a edificam. Nessa perspectiva, parece-nos, por exemplo, que o
problema do (conceito) pecado, que se destaca na catequese missionria tupi e guarani,
adquire nela uma sua significativa relevncia e que, portanto, pode ser tomado como um
dos exemplos mais significativos de sua caracterstica e especfica relao com o conceito
religio, por um lado, e com a personificao extra-humana do demnio, por outro.
Analisando essa relao, pretendemos encontrar a significao da ao diablica que
procurvamos, junto aos primeiros missionrios, enquanto implementao de sua ao.
Da ausncia desprendia-se a imagem ednica do Novo Mundo, do excesso
desprende-se, agora, a imagem infernal. O Demnio torna-se o grande antagonista do
processo missionrio em terra americana59 e a missionao vem a corresponder, em seu
fundamento inicial, ao mesmo processo de civilizao. dessa forma que o aldeamento
jesutico constituiu-se como uma soluo local da obra, ao mesmo tempo, missionria e
civilizadora, representando o mesmo esforo de adaptao situao econmica, poltica e
religiosa que caracterizava a Colnia. O aldeamento dos indgenas impunha-se, desse
ponto de vista, como criao institucional em vista de uma necessria educao que s
poderia levar a (fundamentar) uma converso. No caso dos costumes indgenas
americanos, tratava-se, portanto, de realizar, antes, uma forma de policiamento60 a fim de
poder, s sucessivamente, realizar uma verdadeira converso. A catequese oferecia-se,
justa e peculiarmente, como o elo do processo entre as duas instncias. Nesta direo, 59 Cf. MELLO E SOUZA, Laura de. O Diabo e a Terra de Santa Cruz e Inferno Atlntico, obras citadas; VAINFAS, Ronaldo. A Heresia dos ndios. Obra Citada; RAMINELLI, Ronald. Imagens da Colonizao: a representao do ndio de Caminha a Vieira. Rio de Janeiro, Zahar / So Paulo, Edusp-Fapesp, 1996. 60 Em relao a este processo, devemos evidenciar a importncia desse aprimoramento civil dos costumes, conforme a anlise da obra de Norbert Elias, que , paralelamente, o processo civilizador que manifesta um seu peculiar e intenso desenvolvimento justamente na poca renascentista.
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civilizar, antes de converter, os costumes indgenas nas pequenas cidades de Deus no
s catequeticamente afins civitas Dei agostiniana significava, de fato, reduzir os
excessos dos costumes selvagens. No s, portanto, retirar e afastar os indgenas da
costumeira vida itinerante e/ou do perigoso convvio com os colonos, mas tambm e
sobretudo exercer, atravs da educao dos corpos e das almas, o bom governo e
conduzi-los, reduzi-los de fato, para a humanidade civil.
Como dizamos anteriormente, a escravizao das almas indgenas encontrava
seu protagonista no Demnio que, alm de configurar-se enquanto antagonista do trabalho
missionrio, necessitava fundamentar sua ao em falsas crenas dos indgenas.
Excesso e falsidade resumem os cdigos clssicos da definio do outro pago.
nessa perspectiva que a gramtica da idolatria tornou-se o primeiro fundamento de um
crer que, antes do aparecimento da empresa colonial e missionria, caracteriza-se, como
vimos acima, por ser sem alternativas. Mesmo que, pelo fato de no encontrar dolos,
templos e sacerdotes entre os indgenas americanos, em base rede de Las Casas se
possa falar de grau zero da idolatria61, essa idolatria adquire as caractersticas de uma
linguagem, isto , constitui-se enquanto cdigo de interpretao sub specie religionis da
alteridade americana, tornando-se, no limite, um esquema universal aplicvel a todas as
culturas, a partir de uma idia de religio comum ao gnero humano.62 Essa idia de
religio e esse seu produto de uma idolatria enquanto linguagem, tornam-se, finalmente,
segundo a nossa perspectiva, o fundamento da ao diablica: se o grau zero das culturas
apresenta gradaes especficas nas prticas idoltricas, no caso dos indgenas
brasileiros, com suas notveis ausncias, ser justamente essa ao diablica a
representar a linguagem (interpretativa) privilegiada para traduzir suas alteridades.
O Diabo, nas Amricas, configura-se, de fato, como primeiro tradutor63 dos erros e
das falsidades que se apresentam enquanto contraponto correlato da primeira traduo
religiosa do mundo americano. Nessa traduo (de costumes, antes do que de crenas) que
se estende enquanto territrio da ao diablica, os pajs ou carabas, os feiticeiros para
os missionrios, tornavam-se a imagem de intrpretes principais. Os costumes,
impedimento da ao missionria e territrio da ao diablica, eram inspirados, de fato,
pelas cerimnias diablicas, realizadas pelos feiticeiros. A dificuldade da catequese
61 BERNAND, Carmen e GRUZINSKI, Serge. De lIdolatrie: une archologie des sciences religieuses. Paris, Seuil, 1988, cap. III e passim. 62 Cf. GASBARRO, Nicola. Il Linguaggio dellIdolatria. In: Studi e Materiali di Storia delle Religioni, vol. 62, pp. 189-221 63 Do latim traducere: o que traz para dentro (o erro no mundo dos indgenas).
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encontra neles o principal obstculo, justamente enquanto eles evocam, com suas
cerimnias, os antigos costumes: neles se inscrevia a ao demonaca. Neste sentido
podemos tambm destacar como entre missionrios e carabas, entre catequese e
cerimnias diablicas, determinou-se uma batalha pelo monoplio da santidade (dos
sacra), finalizada disputa com (e conquista de) um poder espiritual que justificava e
at exigia, em suas estratgias, o apoderamento de instrumentos, smbolos, modalidades,
falas dos outros.64
A Bestialidade da Lngua Indgena e sua Catequizao Mas, mais do que nas profecias das cerimnias indgenas, era na prpria lngua
indgena que os missionrios descobriam uma bestialidade enquanto lngua da falta
(conceitual) e, no limite, da falta de linguagem. Mais uma vez, repete-se a estrutura
antagnica e correlata que caracteriza, aos olhos dos missionrios, as culturas indgenas:
essa falta (o que antes definimos de ausncias), ao mesmo tempo em que obscurece a
viso do bem como a ausncia da f, l e r impedem os institutos da f, da lei e
do rei , ilumina sua natureza semper prona ad malum, a ausncia (at nos prprios
sinais lingsticos) do bem, produz uma exacerbao (nos costumes) do mal, a falta de uma
eqidade lingstica produz uma gente absque consilio et sine prudentia.65 Nessa
direo, antes de enfrentar os problemas postos pela utilizao da lngua indgena para a
constituio dos catecismos jesuticos, deveremos pelo menos apontar uma primeira
significativa identificao, que nos parece emergir em certa literatura jesutica, entre
vernculo e ao demonaca. E se, na literatura jesutica, a lngua ser doutrinada nos
catecismos, ela caracterizada, por exemplo, nos autos.
Em nosso trabalho anterior66, j reparamos nessa caracterstica dos autos
anchietanos. L, observvamos como o Pe. Anchieta que em vrias ocasies sublinhava
tratar-se de gente to indmita e bestial, que toda a sua felicidade a pem em matar e
64 Em relao a esse problema, cf. a anlise de POMPA, Religio como Traduo, obra citada, pp. 53-56, onde, em relao ao conflito/encontro entre missionrios e carabas, se aponta para a construo negociada das santidades e dos profetas indgenas, isto , de uma linguagem religiosa enquanto terreno de mediao no qual a alteridade da outra cultura pode encontrar seu sentido e sua traduo. 65 Manuel da NBREGA. Do P. Manuel da Nbrega ao Dr. Martin de Azpilcueta Navarro, Coimbra-Salvador, 10 de agosto de 1549. In: Serafim LEITE, Monumenta Brasiliae..., citado, vol. I, p. 136. No que diz respeito a essa conotao da lngua e em relao a seu doutrinamento, veja-se, tambm, a comunicao de Joo Adolfo HANSEN, apresentada em ocasio dos Seminrios sobre Instrumentos da Comunicao Colonial, j citada. 66 AGNOLIN, Adone. O Apetite da Antropologia: o sabor antropofgico do saber antropolgico. Alteridade e Identidade no caso Tupinamb. So Paulo, Humanitas, 2005; Captulo: Mediaes Simblicas e Cultura Indgena: leitura jesutica das prticas indgenas, pp. 105-31.
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comer carne humana67 sintetiza e reduz os maus costumes indgenas no prprio
vernculo. Se, portanto, o teatro anchietano tornava-se a representao mais significativa
da vis combativa (e triunfal) da catequese, ele fundava sua representao nesse especfico
combate. E esse teatro poliglota reservava lngua tupi a voz do demnio que se
confunde com aquela de um atento etngrafo: assim como verificamos, por exemplo, no
Auto de So Loureno, segundo as palavras e a lngua que so atribudas ao chefe dos
demnios, Guaixar. Eventualmente, caracterizao de uma descrio ritualstica
etnograficamente densa, a lngua tupi poder, j nos autos anchietanos, configurar-se como
lngua, ao mesmo tempo, doutrinada (gramaticalmente) e doutrinadora (nos costumes).
Deste ponto de vista, a prpria estrutura do auto de Anchieta manifesta uma
caracterstica bastante significativa. Influenciada, de forma marcante, pelo auto
portugus de Gil Vicente e de sua escola, manifesta a caracterstica marcante da ao
missionria jesuta que apontamos: isto , aquela de apropriar-se dos repertrios culturais
indgenas, mesmo (ou, sobretudo) quando fosse para transform-los. Em correlao
herana cultural especificamente portuguesa (ocidental), na Amrica portuguesa o auto se
constitui na base do ritual indgena de recepo de uma personagem ilustre, o ere-iur-pe:
saudao tupi de recebimento que significada literalmente pelas palavras (rituais) tupi
dessa saudao, isto , tu vieste?.68 Sem querer e nem poder entrar aqui no mrito da
estrutura dos autos anchietanos, parece-nos til, todavia, para nossa investigao, observar
como a introduo dos assim chamados demnios na parte central dessas representaes
se oferece sempre como espao, textual e teatral, privilegiado para a encenao do
dilogo/disputa entre bem e mal, expressos na lngua indgena enquanto condenao de
seus maus hbitos. A lngua tupi torna-se, finalmente, nos autos anchietanos, o espao
literrio res