JANE JACOBS - Morte e Vida de Grandes Cidades

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Morte e Vida de Grandes Cidades

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MORTE E VIDA DE

GRANDES CIDADES

J an e J ac ob s

Tradução:

Ca rlos

S,

M e nd es R o sa

Revisão da tradução:

Mar ia Es te l a He i de r Cav a lhe i ro

Revisão técnica:

C h ei la A p ar ec id a G o me s B ailão

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Fundação Unive rs idade do Iocantins

Ca mpu s Un ive rs itário de P almas

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E st a o br a f oi pub licado originalmente e m i nglês com o

rtf/d o

THE DEATH AND L1FE OF GREAT AMER/CAN CITIES.

Copyright

©

/961 by Jane lacobs.

Publicado por acordo com Random House, Inc.

Copyright © 2000, Livraria Marfins Fontes Editora Ltda.,

São Pau lo , pa ra a p re se nt e edição.

PARA A CIDADE DE NOVAYORK

para onde vim em busca da sorte

que achei ao encontrar

Bob, J immy, Ned e Mary,

a quem também dedico este l ivro

 

edição

abril de 2000

2 tiragem

março de 2 001

Tradução

CARLOS S. MENDES ROSA

Revisão técnica

Cheila Aparecida Gomes Bailão

Revisão da t radução

Maria Estela He id er Cavalheiro

Revisão gráfica

[vee Batista dos Santos

Ana Maria de Oliveira Mend es B arbosa

Produção gráfica

Ger al do Alves

PaginaçãolFotolitos

Studio

3

Desenvolvimento Editorial

Dados I nter nacionais de Catalogação na Pub licação (CIP)

(Câmara Brasi le i ra do L iv ro , SP,Br as il )

Jacobs, Jane

Morte e vida de grandes cidades I Jane Jacobs ; tradução Ca rlos

S. Mendes Rosa; revisã o da t ra dução Maria Estela Heide r Ca va-

lheiro ; revisão técnica Cheila Aparecida Gomes Bailão. - S ão P au-

lo : Martins Fontes, 2000. - (Coleção a)

Título original: The death and life of grea t american cities.

ISBN 85-336-1218-4

1. Planejamento urbano 2. Política urbana 3. Reurbanízaçâo 1.

Título. 11. Série.

00-0949

CDD-307.76

Índices para catálogo sistemático:

1.Planejamen to u rb an o: S oc io logia 307.76

= t : 1 tI

Todos os direi to s d es ta edi çã o para o Brasil reservados à

Livraria Martins Fontes Editora Ltda.

Rua Conselheiro Ramalho , 330/340

01325 -000 Sã o P au lo SP Brasil

Tel. (11) 239-3677 Fax (11) 3105-6867

e-mai l: i nf [email protected]

http://www.martinsfontes.com

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I L U ST R AÇ ÕES

Todas as cenas que ilustram este livro nos dizem respeito. Se

quiser exemplos, por favor, observe atentamente as cidades reais.

Ao fazer isso escute, concentre-se e ref li ta no que está vendo.

\1

 

íNDICE

Agradecimentos...................................................................

IX

1. Introdução

1

PARTE

natureza peculiar das cidades

2. Os usos das calçadas: segurança..... 29

3. Os usos das calçadas: contato.......................................  9

4. Os usos das calçadas: integrando as crianças...............

8

~ 5. Os usos dos parques de bairro...................................... 97

6. Os usos dos bairros.  23

PARTE 2

 ondições para a diversidade urbana

s:

~ 7. Os geradores de diversidade .

8. A necessidade de usos principais combinados .

9. A necessidade de quadras curtas .

10. A necessidade de prédios antigos .

  A necessidade de concentração ·

12. Alguns mitos sobre a diversidade ··

  7

 6 7

 9 7

2 7

22

245

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13. A autodestruição da diversidade................................... 267

14. A maldição das zonas de fronteira desertas

285

15. Formação e recuperação de cortiços.............................

3

16. Capital convencional e capital especulativo

325

É tão grande o número de pessoas que me ajudaram neste l i-

vro, consciente ou inconscientemente, que nunca serei capaz de

manifestar inteiramente o apreço que tenho e sinto. Sou particu-

larmente grata às informações, ao auxílio e à crít ica que obtive

das seguintes pessoas: Saul Alinsky, Norris C. Andrews, Edmund

Bacon, June Blythe, John Decker Butzner, Jr., Henry Churchill,

Grady Clay, William C. Crow, Vemon De Mars, Monsenhor John

1. Egan, Charles Famsley, Carl Feiss, Robert B. Filley, Sra.

Rosario Folino, Chadbourne Gilpatric, Victor Gruen, Frank Ha-

vey, Goldie Hoffman, Frank Hotchkiss, Leticia Kent, William H.

Kirk , Sr. e Sra. George Kostritsky, Jay Landesman, Rev. Wilbur

C. Leach, Glennie M. Lenear, Melvin F. Levine, Edward Logue,

Ellen Lurie, Elizabeth Manson, Roger Montgomery, Richard Nel-

son, Joseph Passonneau, Ellen Perry, Rose Porter, Ansel Robison,

James W Rouse, Samuel A. Spiegel, Stanley B. Tankel, Jack

Volkman, Robert C. Weinberg, Erik Wensberg, Henry Whitney,

William H. Whyte, Jr., William Wilcox, Mildred Zucker, Beda

Zwicker. Claro que nenhuma dessas pessoas é responsável pelo

que escrevi; aliás, muitas discordam visceralmente de meu ponto

de vista, mas mesmo assim me ajudaram generosamente.

Agradeço também à Rockefeller Foundation o apoio financei-

ro, que me deu condições de pesquisar e escrever; à New School

PARTE 3

Forças de decadência e de recuperação  

AGRADECIMENTOS

PARTE 4 Táticas diferentes

17. A subvenção de moradias

357

18. Erosão das cidades ou redução dos automóveis...........

377

19. Ordem visual: limitações e potencialidades

4 5

20. Projetos de revitalização .st ............ ... ....... ................... .

437

21. Unidades territoriais de gestão e planejamento ,..

45

22. O tipo de problema que é a cidade 477

Índice remissivo

5

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X M O R T E E V ID A D E G R A N D E S C I D A D E S

OLIVER WENDELL HOLMES, JR

for Social Research [Nova Escola de Pesquisa Social], a hospi-

tal idade; e a Douglas Haskell , editor de Architectural Forum, o

encorajamento e a paciência. Acima de tudo, agradeço ameu ma-

rido, Robert H. Jacobs, Jr. - já não sei dizer quais idéias no livro

são minhas e quais são dele .

Até pouco tempo atrás, a melhor coisa que eu fui capaz de

pensar em f avor da civilização, a fora a aceitação irrestri ta da

ordem do universo, foi que ela tornou possível a existência do

artista, do poeta, do filósofo e do cientista. Mas acho que isso

não é o melhor. Hoje acredito que o melhor é aquilo que entra

dire to em nossa casa. Quando se diz que estamos muito ocupa-

dos com os meios de vida para conseguir viver, respondo que o

principal valor da civili zação é simplesmente que ela torna os

meios de vida mais complexos; que ela exige grande ~ombina-

-c- ção de esforços intelectuais, em vez de esforços simples e des-

 coordenados, para que a população possa seralimentada, ves-

tida, abriga da e transportada de um lugar a 0: fJ:o.Esforços in-

~telectuais mais complexos e mais intensos significam -;;ma vida

mais plena e mais rica. Signifi cam mais vida. A~vida é um fim

em si mesmo,

e

a única questão sobre o valor da vida é tirar dela

o máximo proveito.

Só mais uma palavra. Estamos todos muito próximos do de-

sespero. A proteção que nosfaz f lutuar sobre as ondas de deses-

pero compõe-se de esperança, fé no valor inexplicável e no des-

fecho certeiro do esforço e profunda e subconsciente satisfação

que advém do exercício de nosso potencial.

JANEJACOBS

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'-,

1 INTRODUÇÃO

Este livro é um ataque aos fundamentos do planejamento urbano

e da reurbanização ora vigentes .

É

também, e principalmente,

uma tentativa de introduzir novos princípios no planejamento

urbano e na reurbanização, diferentes daqueles que hoje são

ensinados em todos os lugares , de escolas de arquite tura e urba-

nismo a suplementos dominicais e revistas femininas, e até mes-

mo conflitantes em relação a eles . Meu ataque não se baseia em

tergiversações sobre métodos de reurbanização ou minúcias so-

bre modismos em projetos . Mais que isso, é uma ofensiva contra

os princípios e os objetivos que moldaram o planejamento urba-

no e a reurbanização modernos e ortodoxos.

Ao apresentar princípios diferentes, escreverei principalmen-

te sobre coisas comuns e cotidianas, como, por exemplo, que ti-

pos de ruas são seguros e quais não são; por que certos parques

são maravilhosos e outros são armadilhas que levam ao vício e à

morte; por que certos cortiços continuam sendo cortiços e ou-

tros se recuperam mesmo diante de empeci lhos financei ros e

governamentais; o que faz o centro urbano deslocar-se; o que é -

se é que existe - um bairro, e que função - se é que há alguma -

desempenham os bairros nas grandes cidades. Resumindo, ~:

creverei sobre o fundon~ento das cidades na prática, porque

essa é a única maneira de saber que princípios de planejamento e

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2 M OR TE E VID A D E G R AN D ES CID ADE S

INT RODU ÇÃO 3

que iniciativas de reurbanização conseguem promover a vitali-

dade socioeconômica nas cidades e quais práticas e princípios a

inviabilizam.

Há um mito nostá lgico de que bastar ia termos dinheiro sufi-

ciente - a cifra geralmente citada fica em tomo de uma centena

de bilhões de dólares - para erradicar todos os nossos cortiços

em dez anos, reverter a decadência dos grandes bolsões apaga-

dos e monótonos que foram os subúrbios de ontem e de anteon-

tem, fixar a classe média itinerante e o capital c irculante de seus

impostos e talvez até solucionar o problema do trânsito.

Mas veja só o que construímos com os primeiros vários bi-

lhões: conjuntos habitacionais de baixa. renda que se tomaram

núcleos de delinqüência, vandalismo e desesperança social ge-

neralizada, piores do que os cort iços que pretendiam substituir;

conjuntos habitacionais de renda média que são verdadeiros mo-

numentos à monotonia e à padronização, fechados a qualquer

t ipo de exuberância ou vivacidade da vida urbana; conjuntos ha-

bitac ionais de luxo que atenuam sua vacuidade, ou tentam ate-

nuá-la, com uma vulgaridade insípida; centros culturais incapa-

zes de comportar uma boa livrar ia; centros cívicos evitados por

todos, exceto desocupados, que têm menos opções de lazer do

que as outras pessoas;~entros comerciais que são fracas imita-

ções das lojas de rede suburbanas padronizadas; passeios

públi-

c-º,sAue vão do nada a lugar nenhum e nos quais não há gente

passeando; viªs expressas que evisceram as grandes cidades. Is-

sonão é reurbanizar as cidades, é saqueá-Ias. -.

Sob as aparências, essas façanhas mostram-se ainda mais po-

bres que suas pobres pretensões. Raramente favorecem as áreas

urbanas à sua volta, como teoricamente deveriam. Essas áreas

amputadas são normalmente acometidas de gangrena' fulminan-

te. Para alojar pessoas desse modo planejado~preg;m-se etique-

tas de preço na população, e cada coletividade 9iqgetada ~ se-

gregada passa a viver com suspeição e tensão crescentes em re-

lação à cidade circundante. Quando duas ou mais dessas ilhas

hostis são justapostas, denomina-se o resultado  bairro equilibra-

do . Os shopping çenters monopolistas e os monumentais centros

culturais, com o espalhafato das relações públicas, encobrem a

exclusão do comércio - e também da cultura - da vida íntima e

cotidiana das cidades.

Para que tais maravilhas sejam executadas, as pessoas estig-

matizadas pelos planejadores são intimidadas, expropriadas e de-

senraizadas, como se eles fossem o poder dominante. Milhares e

( ~aresdePequenos negócios são destruídos, e seus proprietá-

rios, arruinados, e dificilmente recebem qualquer compensação.

Comunidades inteiras são arrasadas e lançadas ao vento, colhen-

do um cinismo, um ressentimento e um desespero difíceis de acre-

ditar. Um grupo de sacerdotes de Chicago, escandalizados com

os frutos da reurbanização planejada da cidade, perguntou:

Estaria Jó pensando em Chicago quando escreveu:

osque violam oslimites dopróximo (... )

ignoram os necessitados, conspirampara oprimir os desamparados.

Ceifam o campo que não lhes pertence, esbulham a vinha injusta-

mente tomada aoseu dono( ... )

Um clamor eleva-se das ruas da cidade, onde gemem, deitados

osferidos (...

)?

(

I

Se assim fosse, ele também teria em mente Nova York, Fila-

délfia, Boston, Washington, St. Louis, São Francisco e vários

outros lugares. O raciocínio econômico da reurbanização atual é

um embuste. A economia da reurbanização não se baseia única-

l -~.

-vl

mente no investimento racional através de subsídios públicos,

~jv ~ 1 como proclama a teoria da renovação urbana, mas também em

(J/ ~. vastos e involuntários subsídios, arrancados de vítimas locais in-

defesas: E os resultados da elevação de impostos nesses lugares,

auferidos pelas municipalidades em resultado desse  investimen-

to , são uma miragem, um gesto lamentável e contraditór io em

relação às somas de dinheiro público cada vez maiores necessá-

rias para

combatera

<le.sintegraçãà e a instabilidade que emanam

da cidade cruelmente abalada. Os meios que a reurbanização pla-

nejada utiliza são tão @p]s>ráveis quanto seus fins.

Ao mesmo tempo, toda a arte e a ciência do planejamento ur-

bano são incapazes de conter a decadência - e a falta de vitalida-

 

..

,

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4 M OR TE E VI D A D E G R A N D ES C ID A D ES

INTRODU ÇÃO 5

As cidades são um imenso laboratório de tentativa e erro, fra-

casso e sucesso, em termos de construção e desenho urbano. É

nesse laboratório que o planejamento urbano deveria aprender,

elaborar e testar suas teorias. Ao contrário, os especial istas e os

professores dessa disc iplina (se é que ela pode ser assim chama-

da) têm ignorado o estudo do sucesso e do fracasso na vida real,

não têm tido curiosidade a respeito das razões d_osucesso ines-

perado e pautam-se por princípios derivados do comportamento

e da aparência de cidades, subúrbios, sanatórios de tuberculose,

feiras e cidades imaginárias perfeitas - qualquer coisa que não

as cidades reais.

Não é de estranhar a sensação de que os segmentos reurbani-

zados das cidades e os infindáveis novos empreendimentos que

se espalham para além delas reduzem a área urbana e a rural a

uma papa monótona e nada nutritiva. Em primeira, segunda, ter-

ceira e quarta mão, tudo provém da mesma gororoba intelectual,

uma gororoba em que as qualidades, as necessidades, as vanta-

gens e o comportamento das grandes cidades têm sido inteira-

mente confundidos com as qualidades, as necessidades, as van-

tagens e o comportamento de outros t ipos de assentamentos me-

nos ativos.

Não há nada que seja econômica ou socialmente inevitável

tanto em relação ao declínio das cidades tradicionais, como em

relação à recém-inventada deca~urbaniza~ão inur-

bana. Ao contrário, nenhum outro aspecto da nossa economia e

da nossa sociedade tem sido mais intencionalmente manipulado

por todo um quarto de século com o fim de atingir exatamente o

que conseguimos. Tem-se exigido um volume extraordinário de

incentivos financeiros governamentais para obter esse nível de

monotonia, esterilidade e vulgaridade. As várias décadas de dis-

cursos, textos e exortações de peritos serviram para convencer a

nós e aos legi sladores de que uma gororoba dessas deve fazer-

nos bem, desde que esteja coberta degramados,

Os automóveis costumam ser convenientemente rotulados de

vilões e responsabilizados pelos males das cidades e pelos insu-

cessos e pela inutilidade do planejamento urbano. Mas os efeitos

nocivos dos automóveis são menos a causa do que um sintoma

~o,

de que a precede - de porções cada vez maiores das cidades ..

Essa decadência não pode nem mesmo ser atribuída, como con-

solo,

à

falta de oportunidade de aplicar a arte do planejamento.

Parece não importar muito se ela é ou não aplicada. Considere o

exemplo da área de Morningside Heights, na cidade de Nova

York. De acordo com a teoria do planejamento urbano, ela não

deveria ter problema algum, já que possui áreas verdes em abun-

dância, campus,

playgrounds

e outras áreas livres. Dispõe de

muitos gramados. Ocupa um terreno elevado e agradável, com

magnífica vista do rio, É um núcleo educacional renomado,

com instituições esplêndidas - a Universidade de Colúmbia, o

Union Theological Seminary, a Juilliard School of Music e

mais meia dúzia de outras tantas , que gozam de grande respei-

tabilidade. Desfruta de bons hospitais e igrejas. Não tem indús-

trias. Suas ruas são zoneadas com o objetivo de evitar que usos

incompatíveis invadam a privacidade dos sólidos e espaçosos

apartamentOSde classe média e alta. Ainda assim, no início dos

anos 50, Morningside Heights transformou-se com tal rapidez

em zona de cortiços - do tipo no qual as pessoas sentem medo

de andar nas ruas - que a situação desencadeou uma crise para

as instituições. Elas e os setores de planejamento da prefei tura

reuniram-se, aplicaram um pouco mais da teoria urbaníst ica,

demoliram a maior parte da área degradada local e construí-

ram em seu lugar um empreendimento cooperativado de renda

média dotado de shopping center e um conjunto habitacional,

tudo entremeado de áreas livres, luz, sol e paisagismo. Ele foi

aclamado como uma excelente demonstração de recuperação

urbana.

Depois disso, o Morningside Heights decaiu ainda mais de- .

pressa.

Esse exemplo não é nem injusto nem absurdo. Num número

cada vez maior de cidades, tornam-se decadentes justamente as

regiões onde menos se espera que isso aconteça, à luz da teoria

do planejamento urbano. Fenômeno menos percebido mas igual-

mente signif ica tivo , num número cada vez maior de cidades, as

regiões mais suscetíveis à decadência, segundo a mesma teoria,

recusam-se a decair.

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6 M O RT E E V ID A D E G R AN D ES CIDADES

/r I NT RO D U ÇÃ O 7

J Analise, por exemplo, a reação do planejamento urbano orto-

doxo a um distrito de Boston chamado North End'. Trata-se de

uma área tradicional , de baixa renda, que se mistura à indústr ia

pesada da orla e é considerada pelas autoridades como a pior

zona de cortiços de Bostor e uma vergonha municipal. Possui

características que todas as pessoas esclarecidas sabem ser noci-

, vai; porque diversos eruditos disseram que o são. O North End

não somente se encontra colado à indústr ia como também, o que

é pior, tem todos os tipos de atividades de trabalho e comércio

complexamente misturados com as residências. Apresenta a

mais alta densidade habitacional de Boston, considerando o solo

destinado ao uso residencial, na verdade uma das mais altas con-

centrações entre todas as cidades americanas. Tem poucas áreas

verdes. As crianças brincam na rua. Em lugar de superquadras,

ou mesmo de quadras suficientemente longas, possui quadras

curtas; no jargão urbanístico, a região é maltraçada, .com ruas

em excesso . Os edif ícios são antigos. Tudo o que se possa ima-

gInar está presumivelmente errado no North End. Em termos do

planejamento urbano ortodoxo, tra ta-se do manual em três di-

mensões, de uma megalópole nos últimos estágios da deterio-

ração. O North End é, portanto, uma tarefa recorrente dos estu-

dantes de urbanismo e arquitetura do MIT e de Harvard, os quais

invariavelmente se lançam, sob a orientação de seus professores,

ao estudo da conversão do bairro em superquadras e passeios ar-

borizados, extinguindo seus usos discrepantes, transformando-o

num ideal de ordem e refinamento tão simples que poderia ser

gravado na cabeça de um alfinete.

Há vinte anos, quando vi pela primeira vez o North End, suas

construções - casas geminadas de tipos e tamanhos diferentes con-

vertidas em apartamentos e edifícios residenciais de quatro ou cinco

pavimentos, construídos para abrigar as levas de imigrantes vin-

dos primeiro da Irlanda, depois da Eutopa Oriental e por f im da

Sicília - eram superpovoadas, e o panorama geral era de um dis-

trito muito maltratado e miseravelmente pobre.

de nossa incompetência no desenvolvimento urbano. Claro quê'

l

os planejadores , inclusive os engenheiros de tráfego, que dis-

põem de fabulosassomas em dinheiro e poderesllimnaâõs,não

- *

onseguem compatlbIllZar automaveis e CKfades:..Eles não sa-

~15em o que fiiZefcom os automóveis nas cidades porque não têm

a mínima idéia de como projetar cidades funcionais e saudáveis

- com ou sem automóveis. ' _

• As necessidades dos automóveis são mais facilmente com~

preendidas e satisfeitas do que as complexas necessidades das ci- \

dades, e um número crescente de urbanistas e projetistas acabou

acreditando que, se conseguirem solucionar os problemas de trân-

sito, terão solucionado o maior problema das cidades. As cida-

des apresentam preocupações econômicas e sociais muito mais

complicadas do que o trânsito de automóveis. Como saber que

solução dar ao trânsito antes de saber como funciona a própria

cidade e de que mais ela necessita nas ruas? É impossível.

..   .

  e

lC

Talvez nos tenhamos tornado um povo tão displicente, que

não mais nos importemos com o funcionamento real das coisas,

mas apenas com a impressão exterior imediata e fácil que elas

transmitem. Se for assim, há pouca esperança para nossas cida-

des e provavelmente para muitas coisas mais em nossa socieda-

de. Mas não acho que seja assim.

Especificamente no caso do planejamento urbano, é óbvio

r

que uma grande quantidade de pessoas sérias e sinceras se preo-

cupa profundamente com construção ~ renovação. Apesar de al-

guma corrupção e da considerável cobiça pela vinha do próxi-

mo, as intenções em meio às trapalhadas são, no cômputo geral ,

exemplares. ~jador~.,_arqu~o desenho urbano e aqu~-

le~ que os se~m-suas-Grenças nao-aesprezam consciente-

mente a importância de-cunliec~funcionamento das coisas.

Ao contrário, esforçaram-se muito para aprender o que os santos

e.os.sábios do urbani~illQJ l~ ' .O mtodoxo disseram a respeito

de como as cidades d~m..iuncionar e o que deveria ser bom

para o povo e os ne~ dentro dek- Eles se aferram a isso

com tal devoção, que, quanâOUmãfealidade contraditór ia se in-

terpõe, ameaçando destruir o aprendizado adquirido a duras pe-

nas, eles colocam ª-J:ealidade de lado

__ o

1 . P or fa vo r, n ão s e e squ eç a de North End. Fa re i f r eqüe nte s r ef er ên ci as a e le n es te l iv ro .

<;

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8 M O RT E E V ID A D E G R AN D ES CIDADES

Quando visitei o North End novamente em 1959, fiquei es-

pantada com a mudança. Dezenas e mais dezenas de prédios ha-

viam sido reformados. No lugar de colchões encostados àsjane-

las havia venezianas e a aparência de tinta fresca. Muitas das ca-

sinhas reformadas acolhiam então apenas uma ou duas famílias,

em vez das três ou quatro que as lotavam antes. Algumas das

famílias desses prédios (como vim a saber mais tarde , ao conhe-

cê-los por dentro) abriram mais espaço juntando dois dos anti-

gos apartamentos, e tinham instalado banheiros, cozinhas novas

e similares. Espiei por uma viela estrei ta, esperando encontrar

pelo menos aí o velho e combalido North End, mas não: mais

alvenaria de tijolos com acabamento esmerado, cortinas novas e

som de música quando uma porta se abriu . Sem dúvida, esse foi

o único distrito que já vi - pelo menos até hoje - no qual as late-

rais dos prédios junto a estacionamentos não ficaram sem acaba-

mento ou mutiladas, mas foram rebocadas e pintadas com capri-

cho, como que para serem admiradas. Misturadas aos prédios

residenciais havia uma quantidade incrível de excelentes mer-

cearias, assim como casas de estofamento, serralheria, carpinta-

ria e processamento de alimentos. As ruas tinham vida com

crianças brincando, gente fazendo compras, gente passeando, gen-

te falando. Não fosse um frio dia dejaneiro, certamente haveria

pessoas sentadas às portas.

A atmosfera de alegria, companheirismo e bem-estar nas ruas

era tão contagiante que comecei a indagar o endereço de pessoas

só pelo prazer de puxar conversa. Eu tinha visi tado vários luga-

res de Boston nos últimos dias, a maioria deles muito deprimen-

tes, e esse me surpreendeu, com alívio, como o lugar mais sadio

da cidade. Mas eu não conseguia imaginar de onde tinha vindo o

dinheiro para a revita lização, porque hoje é quase impossível

obter qualquer financiamento hipotecário considerável em dis-

tri tos de cidades norte-americanas que não sejam de alta renda

ou então arremedos de subúrbios. Para saber a resposta, fui a um

bar-restaurante (onde acontecia uma conversa animada sobre

pescaria) e chamei um planejador de Boston meu conhecido.

 Como é que você veio parar noNorth End? , perguntou ele.

 Dinheiro? Não houve nem dinhei ro nem obras no North End.

\~

\;

.L

'----

f

,

\:

\\

IN T RO D U ÇÃ O 9

Não acontece nada por aqui. Quem sabe vá acontecer, mas até

agora nada. Isto aqui é uma zona de cortiços

A mim não parece , d isse eu.

 Ora, é a pior zona de cort iços da cidade Tem sessenta e sete

moradias em cada mil metros quadrados É terrível admitir que

temos uma coisa assim em Boston, mas é verdade.

Você tem outros dados sobre o bairro? , perguntei.

 Sim, que engraçado Figura entre os bairros da cidade que

têm os menores índices de delinqüência, doenças e mortalidade

infantil. Puxa, esse pessoal deve estar fazendo barganhas. Veja-

mos ... a população infantil está quase na média da cidade. A

taxa de mortal idade é baixa, 8,8 por mil, contra uma taxa média

da cidade de 11,2. O índice de mortes por tuberculose é bem

baixo, menos de uma por

10

mil - não entendo como, é ainda

mais baixa que a de Brookline. Nos velhos tempos, o North End

era o lugar da cidade em que mais havia tuberculose, mas isso

mudou. Bom, vai ver que são pessoas fortes. Claro que é uma

zona de cortiços horrível. 

Vocês precisavam ter mais zonas de cort iços como esta ,

disse eu. Não me diga que planejam demolir tudo. Você devia

ficar aqui para aprender o máximo possível. 

Eu sei o que você quer dizer , disse ele. Costumo vir até

aqui sópara andar pelas ruas e sentir esse clima maravilhoso das

ruas, alegre. Olhe, se gostou daqui agora, precisa voltar no ve-

rão. Você ficaria doida por este lugar no verão. Mas claro que a

gente vai ter de acabar reurbanizando o bairro. Temos de ti rar

essas pessoas das ruas. 

Aí está o curioso da coisa. Os instintos do meu amigo lhe

diziam que o North End é um ótimo lugar , e suas esta tíst icas so-

ciais reafirmavam isso. Porém, tudo o que ele havia aprendido

  t

como urbanista sobre o que é bom para o povo e bom pa~ros ~

bairros, tudo o que fazia dele uni especialista, dizia-lhe que

0  J

N0I h End tinha de ser um lugar ruim. - _

- ' ' t .

oJC ; V J > ;

O principal banqueiro de crédito imobiliário de Boston,  um (2f,v (:j pI,.--

homem lá no topo da estrutura de poder , a quem fui indicada  ?~~ .

por meu amigo para realizar uma entrevista sobre dinheiro, con-

f irmou-me o que eu soube, nesse ínterim, das pessoas do North

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~

 \

10 MORTE E V ID A D E G R AN DES CID ADE S

INTRODU ÇÃ O 11

End. O dinheiro não tinha vindo pela graça do grande sistema

bancário norte-americano, que atualmente sabe dist inguir um

cortiço tão bem quanto os urbanistas. Não tem ~entido empres-

tar dinheiro no North End , disse o banqueiro.  E um cortiço E

ainda está recebendo imigrantes Além do mais, na época da De-

pressão houve um número enorme de hipotecas protestadas;

uma ficha ruim. (Eu também ouvi ra falar disso, nesse meio

tempo, e de como as famílias tinham trabalhado e juntado recur-

sos para comprar de novo alguns desses prédios hipotecados.)

O mais alto empréstimo hipotecário concedido nesse distrito

de cerca de 15 mil habitantes, no quarto de século a contar da

Grande Depressão, foi de 3 mil dólares, revelou o banqueiro, e

para bem poucos deles . Houve outros de mi l e de 2 mil dólares.

A obra de revitalização foi quase toda financiada com a renda de

negócios e aluguéis do próprio distrito, que foi reinvestida, e com

o trabalho de mutirão dos moradores e seus parentes.

Nesse momento eu já sabia que a impossibilidade de pedir

empréstimos para melhorias era um problema que exasperara os

moradores do North End e que, além do mais, a lguns deles se

sentiam incomodados pelo fato de parecer impossível construir

prédios novos no local, a não ser aopreço de eles próprios , e toda

a comunidade, serem expulsos, de acordo com o sonho dos estu-

dantes de um Éden urbano, destino que eles sabiam não ser só

teórico, pois quase havia destruí do completamente um distri to

vizinho com características sociais similares - embora fisica-

mente maior - , chamado West End. Eles estavam preocupados

também por saber que a tática de remendar não podia durar eter-

namente. Existe alguma possibilidade de empréstimo para no-

vas construções no North End? , perguntei ao banqueiro.

 Não, absolutamente nenhuma , respondeu, denotando impa-

ciência com minha estupidez. Aquilo é uma zona de cortiços

Os banqueiros, assim como os planejadores, agem de acordo

com as teorias que têm sobre as cidades. Eles chegaram a elas

pelas mesmas fontes intelectuais dos planejadores. Os banquei-

ros e os oficiais administrativos que garantem hipotecas não in-

ventam teorias de planejamento, nem mesmo, surpreendentemen-

te, uma doutrina econômica a respeito das cidades. Hoje eles são

r~

esclarecidos e tiram suas idéias dos idealistas, com uma geração

de atraso. Já que a teoria do planejamento urbano não assimilou

idéias novas importantes por bem mais que uma geração, urba-

\nistas, financistas e burocratas praticamente se equiparam hoje

em dia.

Falando em termos mais diretos , todos eles se encontram no

mesmo estágio de elaborada superstição em que se encontrava a

medicina no começo do último século, quando os médicos acre-

ditavam na sangria como recurso para purgar os humores noci-

vos, os quais, achava-se, provocavam a doença. Com relação à

sangria, foram necessários anos de aprendizado para determinar

precisamente quais veias, com quais procedimentos, deveriam ser

abertas, de acordo com quais sintomas. Montou-se uma comple-

xa superestrutura técnica, e detalhada com tal cinismo, que a li-

teratura a respeito ainda parece quase plausível. Todavia, devido

ao fato de as pessoas, ainda que inteiramente imersas em descri-

ções da realidade que a contradigam, estarem ainda mais rara-

mente privadas do poder de observação e discemimento, a ciên-

cia da sangria, durante a maior parte de seu longo domínio, pare-

ce ter s ido temperada em geral com certa dose de bom senso. Ou

foi temperada até que atingisse o auge da técnica nos jovens

Estados Unidos, mais que em outros lugares. A sangria foi uma

febre aqui. Teve no Dr. Benjamin Rush um defensor de enorme

influência, a inda reverenciado como o maior estadista médico

do nosso período revolucionário e federalista e um gênio na ges-

tão da saúde: o Dr. Rush-Faz. Entre as coisas que ele fez, algu-

mas boas e útei s, estão aprimorar, praticar, ensinar e difundir o

costume da sangria nos casos em que a prudência e a compaixão

tinham restringido seu uso. Ele e seus alunos drenavam o sangue

de crianças bem pequenas, de tuberculosos, dos muito idosos, de

quase todos aqueles que tivessem a infelicidade de adoecer em

sua área de influência. Suas práticas radicais provocaram alarme

e horror nos médicos flebotomistas europeus. Apesar disso, ain-

da em 1851, uma comissão designada pela Assembléia Legisla-

t iva de Nova York corroborou o uso intensivo da sangria. Com

contundência, a comissão ridicularizou e censurou um médico,

William Tumer, que teve a audácia de escrever um panfleto criti-

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 2

MO RTE E V IDA DE G RA NDES CIDADE S

cando OS métodos do Dr. Rush e definindo o procedimento de

tirar sangue de doentes como contrár io ao senso comum, à expe-

riência geral, às mentes esclarecidas e às leis manifestas da divi-

na Providência . Os doentes precisavam ganhar forças e não per-

der sangue, afirmou o Dr. Turner, poster iormente obrigado a

calar-se.

Analogias médicas, transpostas para os organismos sociais,

t endem ao art ificialismo, e não há como confundir a química

dos mamíferos com o que acontece numa cidade. Mas são váli-

das, s im, as analogias sobre o que sepassa no cérebro de pessoas

sérias e cultas que lidam com fenômenos complexos, não os

compreendem e tentam contentar-se com uma pseudociência.

Como na pseudociência da sangria, também na pseudociência

da reurbanização e do planejamento urbano, anos de aprendiza-

do e uma infin idade de dogmas mister iosos e intrincados apoia-

ram-se num alicerce de absurdos. Os instrumentos técnicos foram

constantemente aperfeiçoados. Naturalmente, com o tempo, ho-

mens dedicados e capazes, administradores admirados, depois

de engolir as premissas falaciosas e dispondo dos instrumentos e

da confiança pública, cometem logicamente excessos o mais \

destrutivos possível, que teriam sido anteriormente desaconse-

lhados pela prudência e pela compaixão. A sangria só curava por

acaso ou na medida em que desrespeitasse as regras, até que foi

substi tuída pela difici l e complexa atividade de reunir, usar e

comprovar pouco a pouco descrições verdadeiras da realidade,

baseadas não em como ela deveria ser, mas em como ela é.' A

pseudociência do planejamento urbano e sua companheira, a

0~,

arte do desenho urbano, a inda não se afastaram do conforto ilu-   I

I

sório das vontades, das superstições conhecidas, do simplismo e ,I

dos símbolos e ainda não selançaram na aventura de investigar o

J

mundo real.

I()

-\-7

~

\ ~

~

ssim, neste l ivro deveremos começar a aventurar-nos nós~

mesmos no mundo real, ainda que modestamente. A maneira de

I I

decifrar o que ocorre no comportamento aparentemente miste-

rioso e indomável das cidades é, em minha opinião, observar

mais de perto, com o mínimo de expectativa possível, as cenas e\.\

IN TR OD UÇ ÃO 1 3

 

osacontecimentos mais comuns, tentar ent~nder o que signifi-

cam e ver se surgem explicações entre eles. E isso o que procuro

fazer na primeira parte deste livro.

~

Um dos princípios mostra-se tão onipresente, e em formas

tão variadas e tão complexas, que volto minha atenção para sua

natureza na segunda parte deste l ivro, a qual consti tu i o cerne da

minha argumentação. Esse princípio onipresehte é a necessidade

4 f

que as cidades têm de uma diversidade de usos mais complexa e

densa, que propicie entre eles uma sustentação mÓtUãe constan-

r

I

r e : - -conôínica quant~ Os componentes dessa diver-

sidade podem diferir muito, mas devem complementar-se con-

cretamente.

Acho que as zonas urbanas malsucedidas são as que care-

cem desse tipo de sustentação mútua complexa e que a ciência

do planejamento urbano e a arte do desenho urbano, na vida real

e em cidades reais, devem tornar-se a ciência e a arte de catali-

sar e nutr ir essas relações funcionais densas. Pelas evidências

de que disponho, concluo que existem quatro condições pri-

mordiais para gêrar diversidade nas grandes cidades e que o

planejamento urbano, por meio da indução del iberada dessas

1 \ quatro condições, pode estimular a vitalidade urbana (coisa que

~

os planos dos urbanistas e os desenhos dos projetistas em si

_ nunca conseguirão). Enquanto a Parte 1 enfoca p~almente

~~ento social da população urhana.e.é.ímprescindí-

vel Pê a compreender as seguintes, a Parte 2 aborda principal-

mente o desempenho econômico das cidades e é a mais impor-

tante deste livro. '

As cidades são locais fantasticamente dinâmicos, o que se

aplica inteiramente a suas zonas prósperas, que propiciam solo

férti l para osplanos de milhares de pessoas. Na terceira parte do

livro, examino alguns aspectos da decadência e da revitalização,

à luz de como as cidades são usadas e como elas e sua população

se comportam, na vida real.

- A última parte deste livro sugere mudanças nas práticas de

habitação, trânsito, projeto, planejamento e administração, e dis-

cute, por fim, o tipo de problema que as cidades apresentam -

um problema de manejar a complexidade ordenada.

I

\

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14

M OR TE E V IDA DE GRANDES CIDADES

\ t~c funci - .

1\--

t f o .

~arência das coisas ~ o mo~o como cionam e~

paravelmente unido~,.JLQ uito maiS ~ades-d0-€J:ue-em qual-

r ; ; r

. ~utro lugar. Porém, quem esta interessado apenas em como

-.ç~

 

uma cidade deveria parecer ~ desi~tere~sado de ~omo fun:io~a

ficará desapontado com este l ivro. E tolice planejar a aparencia

de uma cidade sem saber que tipo de ordem inata e funcional ela

possui . Encarar a aparência como objetivo primordial ou como

preocupação central não leva a nada, a não ser a problemas.

..... J

..-/ No East Harlem de Nova York há um conjunto habitacional

com um gramado retangular bem destacado que se tornou alvo

I

da ira dos moradores. Uma assistente socia l que está sempre no

 

conjunto ficou abismada com o número de vezes que o assunto

I do gramado veio

à

baila, em geral gratuitamente, pelo que ela

podia perceber, e com a intensidade com que os moradores o

\ detestavam e exigiam que fosse ret irado. Quando ela perguntava

.qual a causa disso, a resposta comum era:  Para que serve? , ou

 Quem foi que pediu o gramado?  Por fim, certo dia uma mora-

F  

dora mais bem articulada que os outros disse o seguinte: Nin-

J /J guém se interessou em saber o que queríamos quando construí-

ram este lugar. Eles demoliram nossas casas e nos puseram aqui

e puseram nossos amigos em outro lugar. Perto daqui não há um

único lugar para tomar um café, ou comprar um jornal, ou pedir

emprestado alguns trocados. Ninguém se importou com o que

precisávamos. Mas os poderosos vêm aqui, olham para esse gra-

mado e dizem: 'Que maravil~gora os pobre~~ tudo ' 

Essa moradora estava dizendo o que os moralistas disseram

por milhares de anos: as aparências enganam. Nem tudo o que

reluz é ouro. -

 :»:E dizia mais: há um aspecto ainda mais vil que a feiúra ou a

~

desorde~ patentes, ~ue é~~~c~ra ~~n~ ~ensa ordem,

estabelecida por meio do menosprezo ou d~sãõ:<ta ordem

( verdadeira que luta para existir e ser atendida.

Na tentativa de explicar a ordem subjacente das cidades, uti-

lizo muito mais exemplos de Nova York porque é aí que moro.

Contudo, a maioria das idéias básicas presentes neste livro vem

de particularidades que percebi em outras cidades ou que me fo-

ram contadas. Por exemplo, meu primeiro vislumbre sobre os

INTRODU ÇÃ O

 5

\

poderosos efeitos de certos tipos de combinações funcionais nas

cidades deve-se a Pit tsburgh; minhas primeiras especulações

sobre a segurança nas ruas, a Filadélf ia e Baltimore; minhas

primeiras noções dos meandros do centro urbano, a Boston; mi-

nhas primeiras pistas sobre erradicação de cortiços, a Chicago. A

maior parte do material para essas reflexões estava diante da

porta de casa, mas talvez seja mais fácil perceber as coisas pri-

meiro onde ela?n:ao-sao fãffiiliares. &ldéla funda~~:-

tar entender a intrincada ordem social e econôwica sob a -ªpa-

r-fente desordem das cidades - não era minha, mas deWilliam Kirk,

---

-

chefe do Núcleo Comunitário Union, no East Harlem, Nova

York, o qual, ao me mostrar o East Harlem, mostrou-me uma

maneira de observar também outros bairros e centros urbanos.

Em todos os casos, tentei cotejar o que vi ou ouvi nas cidades

ou nos bairros para descobrir a relevância dessas l ições em ou-

tros contextos.

Concentrei-me nas cidades grandes e em suas áreas internas

porque essa é a questão mais constantemente negligenciada na

teoria urbanística. Acredito que isso possa ter uma utilidade

ainda maior à medida que o tempo passar, já que várias das áreas

urbanas de hoje com os piores problemas - e nitidamente os mais

embaraçosos - eram subúrbios e áreas residenciais nobres e

tranqüilas há não muito tempo; é provável que muitos dos novos

subúrbios ou semi-subúrbios venham a ser engolidos pelas cida-

des e teàham sucesso ou não enquanto tais, de acordo com sua

adaptação ou não

à

função de distritos urbanos. Além do mais,

para ser franca, prefiro as cidades densarriente povoadas e me

importo mais com elas .

No entanto, espero que o lei tor não entenda minhas observa- I

ções como um guia do que ocorre nas cidades, nas pequenas ci-

dades ou nos subúrbios que se mantêm periféricos. Cidades, su-

búrbios e até mesmo cidadezinhas são organismos totalmente

diferentes das metrópoles. Já estamos numa enrascada enorme

por tentar entender as cidades grandes com base no comporta-

mento e no suposto funcionamento das cidades menores. Se ten-

tarmos entender as cidades menores com base nas metrópoles, a

confusão será ainda maior.

Ire

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 6

MORTE EVID A D E GR ANDES CIDADES

INTRODUÇÃO

17

Tenho feito afirmações ásperas a respeito da teoria urbanísti-

ca ortodoxa e devo voltar a fazê-Ias quando isso se mostrar ne-

cessário. Hoje em dia, essas idéias ortodoxas fazem parte do nos-

so folclore. Elas são prejudiciais porque as encaramos como na-

turais. Para mostrar como surgiram e evidenciar sua parca rele-

vância , exporei aqui as l inhas gerais das idéias mais influentes

que contribuíram para as verdades do planejamento e do dese-

nho arquitetônico urbano ortodoxos modernos'.

A vertente mais importante dessa influência começa mais ou

menos com Ebenezer Howard, repórter britânico de tribunais,

cujo passatempo era o urbanismo. Howard observou as condi-

ções devida dos pobres na Londres do final do século XIX e com

toda razão não gostou do que cheirou, viu e ouviu. Ele detestava

não só os erros e os equívocos da cidade, mas a própria cidade, e

considerava uma desgraça completa e uma afronta

à

natureza o

fato de tantas pessoas terem de conviver aglomeradas. Sua recei-

tapara a salvação das pessoas era acabar com a cidade.

Ele propôs, em 1898, um plano para conter o crescimento de

Londres e também repovoar a zona rural, onde as vilas estavam

\ 1

em decadência, constru indo um novo tipo de cidade, a Cidade-

Jardim, onde os pobres da cidade poderiam voltar a viver em

contato com a natureza . Assim, eles ganhariam a vida; a indús-

tria se instalaria na Cidade-Jardim, visto que Howard não proje-

tava cidades, nem cidades-dormitórios . Sua meta era criar c ida-

dezinhas auto-suficientes, cidades realmente muito agradáveis

se os moradores fossem dóceis, não tivessem projetos de vida

próprios e não se incomodassem em levar a vida em meio a pes-

~soas sem projetos de vida próprios. Como em todas as utopias, o

direito de possuir projetos de qualquer significado cabia apenas

aos urbanistas de plantão. A Cidade-Jardim deveria ser rodeada

por um cinturão agrícola. A indústria ficaria em território prede-

terminado; as escolas, as moradias e as áreas verdes, em terri tó-

rios residenciais predeterminados; e no centro ficariam os esta-

belecimentos comerciais, esportivos e culturais, partilhados por

todos. O conjunto da cidade e do cinturão verde deveria ser per-

manentemente gerido pela administração pública sob a qual a

cidade tivesse nascido, de modo a evi tar a especulação ou mu-

danças supostamente descabidas no uso da terra, e também a

afastar a tentação de aumentar sua densidade - resumindo, a evi-

tar que ela setornasse uma cidade grande. A população máxima

não deveria ultrapassar 30 mil habitantes.

Nathan Glazer resumiu bem essa visão em Architectural Fo-

rum:  A aparência era a de uma cidade rural inglesa, com a man-

são senhorial e seus jardins substi tuídos por um centro comuni-

tário e algumas fábricas escondidas atrás de uma cortina de ár-

vores para gerar trabalho. 

O equivalente norte-americano mais próximo talvez seja o da

cidade empresaria l modelo, com distribuição de lucros, e a ges-

tão da vida político-cívica cotidiana a cargo da Associação de

Pais e Mestres. Howard vislumbrava não apenas um novo am-

biente e uma nova vida social , mas uma sociedade polít ica e eco-

nomicamente paternalista.

Todavia, como Glazer assinalou, a Çidade-Jardim foi con-

cebida como uma alternativa

à

cidade e como uma solução para

os problemas urbanos; esse foi , e ainda é, o alicerce de seu imen-

so poder como conceito de planejamento urbano . Howard con-

Espero que todos os lei tores deste livro comparem constante

e ceticamente o que digo com seu próprio conhecimento acerca

das cidades e de seu funcionamento. Caso haja imprecisões nas

observações ou erros nas inferências e conclusões a que che-

guei, espero que tais falhas sejam rapidamente retificadas. O

cerne da questão é que precisamos urgentemente adquirir e apli-

car o mais rápido possível todo conhecimento sobre as cidades

que seja útil e verdadeiro.

2. Os leitores que quis er em u m re la to mais c om pl et o e um a a bordagem mais conco rdan te , o

que a minha não

é,

devem ir direto àsfontes , que são bem interessantes, principalmente:

Gar-

den Cities of T om orrow [A s C idades-Jardins de amanhã], de Ebenezer Howard; T he Cu/ ture of

Cities [A cultura das cidades], de Lewis M um ford; Citte5 in Evo/ution [Cidades-em-evolução], de

Sir PatrÍck Geddes; M odern Housi ng [Habit ação moderna ], de Cat he ri ne Bauer ; T oward New

Towns for America [Por novas cidades nos EUA], d e C la re nc e S tein; N oth in g G ai ne d b y

Overcrowding

[Não há vantagens na superl ot aç ão ], d e S ir Raymond U nw in ; e

Th e C ity o f

Tomorrow and/ ts P /anning

[A cidade do amanhã e seu planejamento], de Le Corbusier. O

melhor apanhado que conheço

é

um con junto de textos sob o t ítulo Assumptio ns a nd Go al s

o f C ity Planning [Premissase metas do planejamento urbano], reunidos em Land-Use P/anning

A Casebook on t he U se M is us e a nd R e-u se o f U rb an L an d [ Pl anejamen to do uso do solo -

estudos de casossobre uso , mau uso e reuso do solo urbano], de Charles M. Haar.

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 8 M O RT E E V ID A D E G R A ND ES CIDADES

INTRODUçAo 19

seguiu que se construíssem duas Cidades-Jardins, Letchworth e

Welwyn, e é claro que a Inglaterra e a Suécia erig iram, depois da

Segunda Guerra Mundial, várias cidades-satélites baseadas nos

princípios da Cidade-Jardim. Nos Estados Unidos, o subúrbio de

Radburn, Nova Jersey, e as cidades de cinturões verdes (na verda-

de, subúrbios), financiadas pelo governo e construídas durante a

Depressão, foram todas adaptações incompletas daquela idéia.

Porém, a influência do plano de Howard, que teve aceitação ex-

pressa, ou razoavelmente expressa, não era nada em comparação

com sua influência nos conceitos subjacentes a todo o planeja-

mento urbano norte-americano atual. Planejadores urbanos e

projetistas sem interesse pelo modelo da Cidade-Jardim ainda se

pautam intelectualmente por seus princípios fundamentais.

Howard trouxe à baila idéias efetivas para a destruição das

cidades: ele compreendeu que a melhor maneira de lidar com as

funções da cidade era selecionar e separar do todo os usos sim-

ples e dar a cada um deles uma independência relativa. Concen-

trou-se na oferta de moradias adequadas como questão prioritá-

ria,

à

qual todas as outras se subordinavam; além do mais, defi-

niu uma moradia adequada de acordo com as características físi-

cas dos núcleos suburbanos e com as caracterís ticas socia is das

cidades de pequeno porte. Ele achava que o comércio deveria fa-

zer o fornecimento rotineiro e padronizado de mercadorias e

atender a um mercado restrito. Concebia o planejamento como

uma série de ações estát icas; em cada caso, o plano deveria pre-

ver tudo o que fosse necessário e, depois de posto em prática,

deveria ser protegido contra quaisquer alterações, ainda que mí-

nimas. Também entendia o planejamento como essencialmente

paternalista, quando não autoritário. Não se interessava pelos as-

pectos urbanos que não pudessem ser abstraídos para servir

à

sua utopia. Descartou particularmente a complexa e multifaceta-

da vida cultural da metrópole. Não tinha interesse em questões

como segurança pública, troca de idéias, funcionamento político

ou criação de novas saídas econômicas nas grandes cidades, nem

dava atenção à criação de novas maneiras de fortalecer essas

atribuições, porque, afinal, esse t ipo de vida não estava em seus

planos.

,.t

Tanto em suas preocupações quanto em suas omissões, Howard

~

era justi ficável sob seu ponto de vista, mas não sob o ponto de

~~ vista urbanístico.Ainda assim, praticamente.todo .o.planejamen-,.,

\\ to urbano moderno é uma adaptação ou um remendo desse ma-

ter ial absurdo. -

- A influência de Howard no planejamento urbano norte-ame-

ricano chegou à cidade por duas vertentes: de um lado, urbanis-

tas regionais e de cidades menores e, de outro, arquitetos . Na tri-

lha do urbanismo, Sir Patrick Geddes, b iólogo e filósofo esco-

cês, via a idéia da Cidade-Jardim não como um modo fortu ito de

assimilar o crescimento populacional que de outra forma se diri-

~ giria a uma grande cidade, mas como ponto de partida para um

 modelo muito mais grandioso e abrangente. Ele imaginava o

planejamento de cidades em termos do planejamento de regiões

inteiras. Com o planejamento regional, as Cidades-Jardins pode-

riam ser distribuídas racionalmente por amplos territórios, im-

bricando-se com recursos naturai s, em equilíbrio com a agricul-

tura e os bosques, formando um todo lógico e esparso.

As idéias de Howard e Geddes foram adotadas com entusias-

mo nos Estados Unidos durante os anos 20 e ampliadas por um

grupo de pessoas extremamente eficientes e dedicadas, entre elas

Lewis Mumford, Clarence Stein, o falecido Henry Wright e Ca-

therine Bauer. Embora se definissem como planejadores regio-

nais, mais recentemente Catherine Bauer denominou esse grupo

os descentralizadores , nome mais acertado, uma vez que o re-

sultado imediato do planejamento regional, segundo a visão de-

les, deveria ser descentral izar as grandes cidades, reduzi-Ias, e

dispersar as empresas e a população em cidades menores e sepa-

radas. Naquela época, t inha-se a impressão de que a população

norte-americana estava envelhecendo e parando de crescer, e o

problema parecia ser não acomodar uma população em rápido

crescimento, mas redistribuir uma população estática.

Como ocorreu com o próprio Howard, a influência desse gru-

po material izou-se menos na obtenção da aceitação expressa a

seu plano - que não deu em nada - do que no planejamento ur-

bano e na legislação referente a habitação e a recursos financei-

ros habitacionais. Os projetos residenciais modelo de Stein e

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~

  . p {  ·

2

M O RT E E V I DA D E G R AN D ES CIDADES

Wright, feitos principalmente para ambientes suburbanos ou para

a periferia das cidades, juntamente com apontamentos e diagra-

mas, esboços e fotografias fornecidos por Mumford e Bauer, de-

monstraram e popularizaram idéias 'como estas, que hoje são

inquestiQl1áv~o urbanismo ortodoxo: a rua é ~uW ruim

ara os seres humanos; as casas devem estar afastadas dela e

-

--

~

voltadas Rara dentro, para uma área verde cercada. Ruas nume-

rosas são um desperdício e só beneficiam os especuladores imo-

biliários, que determinam o valor pela metragem da testada do

terreno. A unidade básica do traçado urbano não é a rua, mas a

quadra, mais particularmente, a superquadra. O comércio deve

ser separado das residências e das áreas verdes. A demanda de

mercadorias de um bairro deve ser calculada cientificamente ,

e o espaço destinado ao comércio deve ater-se a isso, e a nada

mais. A presença de um número maior de pessoas é, na melhor

das hipóteses, um mal necessário, e o bom planejamento urbano

deve almejar pelo menos a ilusão de isolamento e privacidade,

como num subúrbio. Os descentralizadores também insistiram

nas premissas de Howard de que uma comunidade planejada

deve ser ilhada, como uma unidade auto-suficiente, deve resistir

a mudanças futuras e todos os deta lhes significat ivos devem ser

controlados pelos planejadores desde o início e mantidos dessa

maneira. Em suma, o bom planejamento era o planejamento pre-

viamente projetado.

Para reforçar e intensificar a necessidade de uma nova ordem

das coisas, os descentrali zadores continuaram martelando na

tecla do desprezo às cidades antigas. Não tinham curiosidade

acerca dos sucessos das metrópoles. Interessavam-se apenas pe-

los fracassos. Tudo era fracasso. Um livro como

The Culture of

Cities, de Mumford, era em grande parte um catálogo mórbido e

tendencioso de mazelas. A cidade grande era a Megalópole, a

Tiranópole, a Necrópole, uma monstruosidade, uma tirania, uma

morta-viva. Deve desaparecer. A área central de Nova York era o

 caos petrificado (Mumford). A forma e a aparência das cida-

des não era senão um acidente caótico (.:.) um apanhado dos

caprichos fortuitos e antagônicos de pessoas individualistas e

mal avisadas  (Stein). Os centros urbanos resumiam-se à pre-

INTRO DU ÇA O

21

2

I

ponderância de barulho, sujeira, mendigos, suvenires e anúncios

competitivos e insistentes (Bauer).

Como pode valer a pena tentar compreender uma coisa tão

ruim? As análises dos descentralizadores, os projetos arquitetô-

nicos e habitacionais que acompanhavam essas análises e deri-

vavam delas, a legislação federal de habitação e de financiamen-

to habitacional diretamente influenciada por essa visão - ne-

nhum deles tinha relação alguma com a compreensão das cida-

des ou a manutenção de metrópoles prósperas, nem tinham tal

intenção. Eramjustificativas emeios para descartar a&,cidades, e

os descentralizadores eram francos a esse respeito.

Contudo, nas escolas de arquitetura e urbanismo, e também no

Congresso, nas assembléias legislativas e nas prefeituras, as idéias

dos descentralizadores foram sendo gradativamente assimiladas

como as linhas-mestras de uma abordagem construtiva das pró-

prias metrópoles. Esse é o acontecimento mais espantoso de toda

essa lamentável história: as pessoas que queriam sinceramente

fortalecer as cidades grandes acabaram adotando as receitas niti-

~

damente arquitetadas para minar sua economia e destruí-Ias.

O homem que teve a idéia mais espantosa a respeito de como

colocar todo esse 2Janejamento anticidade diretamente dentro

  das próprias cidadelas da iniqüidade foi o arquiteto europeu Le ,

Corbusier. Ele planejou nos anos 20 uma cidade imaginária que

denominou Ville Radieuse, composta não dos prédios baixos,

tão caros aos descentral izadores , mas principalmente de arra-

nha-céus dentro de um parque.  Imagine que estamos entrando

na cidade pelo Grande Parque , escreveu Le Corbusier. Nosso

carro veloz toma a rodovia elevada especial entre os majestosos

arranha-céus; ao chegar mais perto , vemos contra o céu a suces-

são de vinte e quatro arranha-céus; à esquerda e à direi ta, no en-

torno de cada área específica, ficam os edificios municipais e

administrativos; e circundando esse espaço, os prédios universi-

tários e os museus. A cidade inteira é um Parque.  Na cidade

vertical de Le Corbusier, a massa da população seria alojada a

uma taxa de 296 habitantes por mil metros quadrados, uma den-

sidade urbana sem dúvida fantasticamente alta, mas, em virtude'

das construções altas , 95 por cento do solo permaneceria livre .r

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Os arranha-céus ocupariam apenas 5 por cento do solo. As pes-

soas de alta renda ficariam nas moradias mais baixas e luxuosas,

ao redor de pátios, com 85 por cento de área livre. Aqui e acolá

haveria restaurantes e teatros.

Le Corbusier planejava não apenas um ambiente f ís ico; pro-

jetava também uma utopia social. A utopia de Le Corbusier era

uma condição do que ele chamava de liberdade individual máxi-

ma, com o que ele aparentemente se referia não

à

liberdade de

fazer qualquer coisa, mas à liberdade em relação à responsabili-

dade cotidiana. Em sua Ville Radieuse, supostamente ninguém

teria mais a obrigação de sustentar o irmão. Ninguém teria de se

preocupar com planos próprios. Ninguém deveria ser tolhido.

Os descentra lizadores e outros leais defensores da Cidade-

Jardim ficaram pasmos com a cidade de Le Corbusier - espigões

num parque - e ainda estão. A reação deles foi, e continua sen-

do, muito parecida com a de professores de uma escola maternal

progressista diante de um orfanato profundamente burocrático.

E apesar disso, ironicamente, a Ville Radieuse provém dire ta-

mente da Cidade-Jardim. Le Corbusier assimilou a imagem fun-

damental da Cidade-Jardim, ao menos superficialmente, e em-

penhou-se em tomá-Ia prática em locais densamente povoados.

Definiu sua criação como uma Cidade-Jardim factível.  A Cida-

de-Jardim é uma quimera , escreveu. A natureza desintegra-se

com a invasão de ruas e casas, e o prometido isolamento trans-

forma-se numa comunidade superlotada ( ... ). A solução está na

'Cidade-Jardim vertical'.

Também em outro sentido, na acolhida relativamente fácil do

público , a Ville Radieuse de Le Corbusier dependia da Cidade-

Jardim. Os planejadores da Cidade-Jardim e um séquito cada

vez maior de reformadores habitacionais, estudantes e arquitetos

popularizavam sem descanso os conceitos de superquadra, bair-

ro projetado, plano imutável, e gramados, gramados, gramados;

além do mais, estavam conseguindo firmar esses aspectos como

símbolos de um urbanismo humano, socialmente responsável,

funcional e magnânimo. Le Corbusier não precisava de forma

alguma justificar sua visão com argumentos humanos ou funcio-

nais. Se o grande propósito do planejamento urbano era Christo-

INTRO DU çA o 2 32 M ORTE E VID A D E G R A ND ES CIDADES

r

pher Robin poder dar pulinhos no gramado, qual era o erro de

Le Corbusier? Os protestos dos descentrali zadores contra a

padronização, a mecanização, a despersonificação soaram para

alguns como um sectarismo tolo.

A cidade dos sonhos de Le Corbusier teve enorme impacto

em nossas cidades. Foi aclamada delirantemente por arquitetos e

acabou assimilada em inúmeros projetos , de conjuntos habita-

cionais de baixa renda a edifícios de escritórios. Além de tomar

pelo menos os princípios superficiais da Cidade-Jardim superfi-

cialmente aplicáveis a cidades densamente povoadas, o sonho de

Le Corbusier continha outras maravilhas. Ele procurou fazer do

planejamento para automóveis um elemento essencial de seu

projeto, e isso era uma idéia nova e empolgante nos anos 20 e .. ,

início dos anos 30. Ele traçou grandes artérias de mão única para

C

tOJ

. >

trânsito expresso. Rêdiiziu õiiúmero de ruas, porque os cruza- ,,?-

mentos são inimigos do tráfego . Propôs ruas subterrâneas para

 veiculos pesados ê transportes de mercadorias, e claro, como os

planejadores da Cidade-Jardim, manteve os pedestres fora das

ruas e dentro dos parques. A cidade dele era como um brinquedo

mecânico maravilhoso. Além do mais, sua concepção, como

obra arqaitetônica, t inha uma clareza, uma simplicidade e uma

harmonia fascinantes . Era muito ordenada, muito clara, muito

fácil de entender . Transmitia tudo num lampejo, como um bom

anúncio publicitário. Essa visão e seu ousado simbolismo eram

absolutamente irresistíveis para urbanistas, construtores, proje-

tistas e também para empreiteiros, financiadores e prefeitos. Ela

deu enorme impulso aos progressis tas do zoneamento, que

redigiram normas elaboradas para encorajar os construtores a

reproduzir ainda que parcialmente o sonho. Não importava quão

vulgar ou acanhado fosse o projeto, quão árido ou inútil o espa-

ço, quão monótona fosse a vista, a imitação de Le Corbusier gri-

tava: Olhem o que eu fiz Como um ego visível e enorme, ela

representa a realização de um indivíduo. Mas, no tocante ao fun-

cionamento da cidade, tanto ela como a Cidad~rdim só dizem

-

- -

mentiras.

Embora os descentralizadores, devotados ao ideal de uma vida

cômoda de cidade do inter ior , nunca tenham concordado com a

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2 4 M OR TE E V ID A DE GRANDES CIDADES

~ visão de Le Corbusier , a maioria de seus discípulos concordou.

-p ~

Hoje, praticamente todos os projetistas urbanos requintados har-

monizam vários aspectos das duas concepções. A técnica de

reurbanização que leva nomes variados, como remoção seleti-

va ou revitalização localizada ou plano de revitalização ou

 conservação planejada - querendo referir-se à proibição de

erradicação total de uma área degradada - é principalmente uma

artimanha para ver quantos prédios antigos serão mantidos em

pé e ainda assim converter o local numa versão aceitável da

Cidade-Jardim Radieuse. Técnicos em zoneamento, engenheiros

de tráfego, legisladores, técnicos do uso do solo urbano e plane-

jadores de parques e playgrounds - nenhum dos quais vive num

vazio ideológico - ut ilizam constantemente, como pontos de

referência fixos, essas duas concepções influentes e a concepção

mista, mais sofis ticada. Eles podem ir de uma visão

à

outra, po-

dem usar um meio-termo, podem vulgarizá-Ias , mas elas são os

pontos de partida.

Vamos abordar rapidamente outra vertente do planejamento

urbano ortodoxo, menos importante. Ela teve início mais ou

menos na Columbian Exposit ion de Chicago, em 1893, quase na

mesma época em que Howard formulava as idéias da Cidade-

Jardim. A exposição de Chicago desconsiderou a sugestiva ar-

quitetura moderna que despontara na cidade e preferiu colocar

em cena uma imitação retrógrada do estilo renascentista. No pa-

vilhão da exposição, alinhavam-se monuméntos pesados e gran-

diosos, como folhados congelados dispostos'numa bandeja, nu-

ma espécie de premonição decorada e esparramada das ult ima-

mente repeti tivas f ileiras de espigões de Le Corbusier num par-

que. Essa reunião orgiástica do opulento e do monumental atraiu

a atenção tanto dos planejadores quanto do público. Deu impul-

so a um movimento chamado City Beautiful, e, aliás, a organiza-

ção da exposição foi comandada pelo homem que se tomaria o

principal planejador do City Beaut iful, Daniel Burnham, de

Chicago.

A meta do City Beautifu l era a Cidade Monumental. Foram

traçados projetos de um complexo de bulevares barrocos, a maio-

r ia dos quais não resultou em nada. O que resultou do movimen-

I N TR O D U Ç ÃO 2 5

to foi o Centro Monumental , apresentado em maquete na expo-

sição. Cidade após cidade construía seu centro administrativo ou

seu centro cultural. Esses edif icios foram dispostos ao longo de

bulevares, como o Benjamin Franklin Parkway, em Filadélfia,

ou em esplanadas, como o Govemment Center, de Cleveland, ou

eram ladeados por um parque, como o Civic Center de St. Louis,

ou semisturavam a uma espécie de parque, como o Civic Center

de São Francisco. Não importa onde estivessem, o cerne da

questão era que esses edificios monumentais haviam sido apar-

tados do resto da cidade e agrupados para criar um efeito o mais

grandioso possível, dando ao conjunto um tratamento de unida-

de completa, separada e bem definida.

A população orgulhava-se deles , mas esses conjuntos não ti-

veram sucesso. Em primeiro lugar, invariavelmente a cidade

normal à volta deles decaía em vez de prosperar , e e les sempre

at raíam uma vizinhança incongruente de salões de tatuagem

sujos e lojas de roupas usadas, quando não apenas uma decadên-

cia indescrit ível , e deprimente. Em segundo lugar, as pessoas

ficavam visivelmente longe deles. Quando a exposição se tomou

parte da cidade, por alguma razão as coisas não funcionaram

como na exposição.

A arquitetura dos centros monumentais da City Beautiful saiu

de moda. Mas a concepção não foi questionada e nunca teve

tanta força quanto hoje. A   idéia de separar certas funções públi-

cas e culturais e descontaminá-Ias da cidade real casava-se bem

com os preceitos da Cidade-Jardim. Os conceitos fundiram-se

harmoniosamente, quase como a Cidade-Jardim e a Ville Radieu-

se se fundiram, numa espécie de Cidade-Jardim Beautiful Ra-

~euse~_ como o imenso empreendimento da Lincoln Square de

Nova York, no qual o monumental centro cultural do City Beau-

tiful integra uma série de construções vizinhas residenciais, co-

merciais e universitárias nos moldes' da Ville Radieuse e da Ci -

dade-Jardim Radieuse.

Analogamente, o pressuposto da separação - e da obtenção

da ordem por meio da repressão a quaisquer planos, menos os

dos urbanistas - foi transposto com facilidade para todos os

tipos de funções urbanas; até hoje o plano dire tor de uso do solo

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das metrópoles constitui-se basicamente de propostas de locali-

zação de atividades - geralmente levando em conta os transpor-

tes - de várias dessas escolhas descontaminadas .

De uma ponta a outra , de Howard e Burnham

à

mais recente

emenda à lei de renovação urbana, toda a trama é absurda para o

funcionamento das cidades. Não estudadas, desprezadas, as ci-

dades têm servido de cobaia.

PARTE

1

A NATUREZA PECULIAR

DAS CIDADES

2 6 M O RT E E V I DA D E G R AN DE S C ID AD ES

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  O S U SO S D A S C A L Ç A D A S:

S E G U R A N Ç A

As ruas das cidades servem a vários f ins além de comportar veí-

culos; e as calçadas - a parte das ruas que cabe aos pedestres -

servem a muitos fins além de abrigar pedestres. Esses usos estão

relacionados

à

circulação, mas não são sinônimos dela, e cada

um é, em si, tão fundamental quanto a circulação para o funcio-

namento adequado das cidades.

A calçada por si sónão é nada. É uma abstração. Ela só signi-

fica alguma coisa junto com os edi ficios e os outros usos limí-

t rofes a ela ou a calçadas próximas. Pode-se dizer o mesmo das

ruas, no sentido de servirem a outros fins, além de suportar o

trânsito sobre rodas em seu leito. ~ 1 adas, princi- 1 :íç/

pais locais públicos de uma cidade, são seus órgãos mais vitais.

- Ao pensar numa cidade, o que lhe vem à cabeça? Suas ruas. Se

as ruas de uma cidade parecerem interessantes, a cidade parece-

rá interessante; se elas parecerem monótonas, a cidade parecerá

monótona.

Mais do que isso, e retomando ao primeiro problema, se as

ruas da cidade estão livres da violência e do medo, a cidade está,

portanto, razoavelmente livre da violência e do medo. Quando

as pessoas dizem que uma cidade, ou parte dela, é perigosa ou

I

selvagem, o que querem dizer basicamente é que não se sentem

seguras nas calçadas.

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3 M O RT E E V I DA D E G RAN D E S C ID A DE S

A N AT U RE ZA P EC U LIA R D A S C IDADE S

3

Contudo, as calçadas e aqueles que as usam não são benefi-

ciários passivos da segurança ou vítimas indefesas do perigo. As

calçadas, os usos que as limitam e seus usuários são protagonis-

tas ativos do drama urbano da civilização

versus

a barbárie. Man-

ter a segurança urbana é uma função fundamental das ruas das

cidades e suas calçadas.

Essa função é completamente diferente de qualquer atribui-

ção que se exija das calçadas e das ruas de cidades pequenas ou

de subúrbios verdadeiros. As metrópoles não são apenas maio-

res que as cidades pequenas. As metrópoles não são apenas su-

búrbios mais povoados. Diferem das cidades pequenas e dos subúr-

bios em aspectos fundamentais, e um deles é que as cidades gran-

des estão, por definição, cheias de desconhecidos. Qualquer pessoa

sente que os desconhecidos são muito mais presentes nas cidades

grandes que os conhecidos - mais presentes não apenas nos locais

de concentração popular , mas diante de qualquer casa. Mesmo

morando próximas umas das outras, as pessoas são desconheci-

das, e não poderiam deixar de ser, devido ao enorme número de

pessoas numa área geográfica pequena.

O principal atributo de um distr ito urbano próspero é que as

pessoas se sintam seguras e protegidas na rua em meio a tantos

desconhecidos. Não devem se sentir ameaçadas por eles de ante-

mão. O distri to que falha nesse aspecto também fracassa em ou-

tros e passa a criar para si mesmo, e para a cidade como um to-

do, um monte de problemas.

A barbárie hoje tomou conta de várias ruas, ou as pessoas

sentem dessa maneira, o que dá no mesmo. Eu moro num bair-

ro residencial maravilhoso, tranqüilo , me diz um amigo que está

procurando outro local para morar.   O único barulho desagradá-

vel durante a noite, de vez em quando, são os gritos de alguém

sendo assaltado.  Não é preciso haver muitos casos de violência

numa rua ou num distrito para que as pessoas temam as ruas. E,

quando temem as ruas, aspessoas as usam menos, o que torna as

ruas ainda mais inseguras.

Para se sentirem seguras , algumas pessoas criam fantasmas

na cabeça e nunca se sentirão seguras independentemente das

circunstâncias reais. Mas essa é uma questão diferente do medo

que persegue as pessoas normalmente prudentes , tolerantes e

alegres, que demonstram nada mais do que o bom senso de evi-

tar , depois de escurecer - ou, certos lugares, de dia -, ruas onde

possam ser assaltadas, sem que ninguém as veja ou socorra.

A violência e a insegurança real, não a imaginária, que de-

sencadeiam tais medos não podem ser rotuladas como um pro-

blema característico dos cortiços. O problema é mais sério, na

verdade, em bairros residenciais tranqüilos que parecem dis-

tintos, como aquele que meu amigo estava deixando.

Não pode ser rotulado como um problema das áreas mais an-

t igas das cidades. O problema atinge dimensões alarmantes em

certas áreas da cidade que foram reurbanizadas, incluindo su-

<,

postamente os melhores exemplos de reurbanização, como os

conjuntos habitacionais de renda média. O chefe do distrito poli-

c ial de um empreendimento desse tipo, elogiado em todo o país

(pelos urbanistas e pelos financiadores) não só censurou recen-

temente alguns moradores por ficarem fora de casa depois do

anoitecer, como também recomendou que nunca abrissem a

porta para desconhecidos. A vida nesse caso tem muito em co-

mum com a dos três porquinhos e a dos sete anões das histórias

infantis. O problema da insegurança nas ruas e na porta de casa é

tão sério em cidades que empreenderam iniciativas de revitaliza-

ção conscientes quanto naquelas que ficaram para trás. E tam-

bém não resolve nada atribuir a grupos minoritários, aos pobres

ou aos marginalizados a responsabilidade pelos perigos urbanos.

Há variações enormes no nível de civilidade e de segurança en- \

tre tais grupos e entre as zonas urbanas onde eles vivem.~A-. r

gumas das ruas mais seguras de Nova York, por exemplo, a qual- x·

quer hora do dia ou da noite, são as habitadas pelos Jlgbres e

pelas minorias . E algumas das mais perigosas são aquelas ocu-

padas pelos mesmos tipos de pessoas. O mesmo pode ser dito de

outras cidades.

Há males sociais profundos e complexos por trás da delin-

qüência e da criminalidade, tanto nos subúrbios e nas cidades de

pequeno porte quanto nas metrópoles. Este livro não irá explorar

as razões profundas da questão.

É

suficiente, por enquanto, di-

zer que, se pretendemos preservar uma sociedade urbana capaz

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3 2 M OR TE E V ID A D E G RA ND ES C IDADES

de diagnosticar problemas sociais profundos e mantê-los sob

controle, o ponto de partida deve ser, em qualquer circunstância,

encorajar as forças viáveis para a preservação da segurança e da

civilização - nas cidades que temos. Construir distritos onde co-

mumente são praticados crimes banais é idiotice. Ainda assim, é

isso o que fazemos.

A primeira coisa que deve ficar c lara é que a ordem pública -

a paz nas calçadas e nas ruas - não é mantida basicamente pela

polícia, sem com isso negar sua necessidade. É mantida funda-

mentalmente pela rede intrincada, quase inconsciente, de con-

tro les e padrões de comportamento espontâneos presentes em

meio ao próprio povo e por ele aplicados. Em certas áreas urba-

nas - conjuntos habitacionais mais ant igos e ruas com grande

rotat iv idade populacional são exemplos sempre famosos -, a

manutenção da lei e da ordem pública fica quase inteiramente a

cargo da políc ia e de guardas part iculares . Esses locais são sel-

vagens. Força policial alguma consegue manter a civilidade onde

o cumprimento normal e corriqueiro da lei foi rompido.

A segunda coisa que se deve entender é que o problema da

insegurança não pode ser solucionado por meio da dispersão das

pessoas, trocando as características das cidades pelas caracterís-

t icas dos subúrbios . Se isso solucionasse o problema do perigo

nas ruas, Los Angeles deveria ser uma cidade segura, porque

superficialmente é quase um subúrbio. Ela praticamente não

tem distritos concentrados o suficiente para serem considerados

zonas de alta densidade. Mesmo assim, da mesma forma que

qualquer outra cidade grande, Los Angeles não pode furtar-se

à

verdade de que, como cidade, é composta de desconhecidos, e

nem todos eles são confiáveis. Os índices de criminal idade de

Los Angeles são assustadores . Situada entre as dezessete áreas

metropolitanas com população acima de um milhão de pessoas,

Los Angeles destaca-se de tal maneira no que se refere

à

crimi-

nalidade, que constitui uma categoria à parte. E isso diz respeito

especialmente a crimes contra a pessoa, o tipo de crime que leva

a população a temer as ruas.

Los Angeles tem, por exemplo, um índice funesto de estu-

pros de 31,9 por 100 mil habitantes (dados de 1958), mais que o

A N AT U RE Z A P EC U LIA R D A S C ID AD ES 3 3

<,

dobro do índice das cidades seguintes , que são St. Louis e Fila-

délfia; t rês vezes o índice de 10,1 de Chicago, e mais de quat ro

vezes o índice de 7,4 de Nova York.

Em assaltos à mão armada, Los Angeles detém um índice de

185, comparado com 149,5 de Baltimore e 139,2 de St. Louis

(as cidades seguintes com taxas altas) e com 90,9 de Nova Yorke

79 de Chicago.

O índice total de crimes graves em Los Angeles éde 2.507,6

por 100 mil habitantes, muito à frente de St. Louis e Houston,

que vêm a seguir com 1.634,5 e 1.541,1, e Nova York e Chicago,

com índices de 1.145,3 e 943,5.

Os motivos dos al tos índices de criminalidade de Los An-

geles são sem dúvida complexos e, ao menos em parte, desco-

nhecidos. De uma coisa podemos ter certeza: reduzir o adensa-

mento de uma cidade não garante a segurança contra o crime

nem previne o temor ao crime. Essa é uma das conclusões a que

se pode chegar também em cidades menores, onde os pseudo-

subúrbios ou os subúrbios de aposentados são o cenário ideal

para estupros, roubos, espancamentos, assaltos à mão armada e

similares.

Estamos aqui diante de uma questão sumamente importante

a respeito de qualquer rua: que oportunidades ela oferece para o

crime? Pode ser que haja urllaTatência de criminalidade em toda

cidade que encontrará alguma válvula de escape (não acredito

nisso). Seja como for, ruas de tipos diferentes encerram modali-

dades diferentes de violência e medo da violência.

Certas vias públicas não dão oportunidade alguma

à

violên-

cia urbana. As ruas do North End de Boston são exemplos paten-

tes. Nesse aspecto, nelas talvez haja tanta segurança quanto em

qualquer lugar da Terra. Embora a maioria dos moradores do

North End sejam ita lianos e descendentes de ita lianos, as ruas

desse distrito são constantemente usadas por um grande número

de pessoas de todas as raças e ascendências. Alguns dos desco-

nhecidos trabalham no distri to ou próximo dele; outros vão lá a

passeio ou para fazer compras; muitos, inclusive integrantes de

minorias que herdaram os dis tr itos perigosos deixados por ou-

tras pessoas, fazem questão de descontar o cheque do salár io em

,~

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3 4 M OR TE E V ID A D E GRA N D E S C ID A D ES

A N AT U RE Z A P E C U LI AR D AS C ID AD ES 3 5

 

lojas do North End e em seguida fazer as grandes compras se-

manais em ruas onde sabem que seu dinheiro não será mal-

empregado.

Frank Havey, dire tor da União do North End, associação co-

munitária local, afirma: Moro no North End há 28 anos, e em

todo esse tempo não ouvi falar de um só caso de estupro, roubo,

abuso de criança ou outro crime urbano desse tipo. Se tivesse

havido algum, eu teria sabido mesmo que os jornais não t ives-

sem publicado. Meia dúzia de vezes, nas três 'últímas décadas,

diz Havey, supostos molestadores tentaram seduzir uma criança

ou, a ltas horas da noite, a tacar uma mulher. Em todos os casos, a

tentativa foi frustrada por transeuntes, pessoas nas janelas e co-

merciantes.

Ao mesmo tempo, na região da Avenida Elm Hill, em Rox-

bury, bairro da zona urbana de Boston que superficialmente pa-

rece um subúrbio, os assaltos nas ruas e a constante possibilidade

de outros assaltos, sem ninguém que defenda asvítimas, induziram

as pessoas prudentes a não andar de noite nas ruas. Por esses e

outros motivos correlatos (desalento e monotonia), não é de sur-

preender que a maior parte de Roxbury se tenha degradado. Tor-

nou-se um lugar para não morar.

Não tenho intenção de part icular izar Roxbury ou a outrora

distinta região da Avenida Elm Hill como locais especialmente

vulneráveis. Suas deficiências, e principalmente sua Grande Pra-

ga da Monotonia, são bastante comuns também em outras cida-

des. Porém, são dignas de nota as diferenças de segurança da po-

pulação numa mesma cidade, como as citadas. Os problemas

fundamentais da região da Avenida Elm Hill não se devem a uma

população com tendências criminosas, discriminada ou depau-

perada. Seus problemas provêm do fato de ela não ter condições

fisicas de funcionar com a segurança e a conseqüente vitalidade

de um distrito urbano.

Existem diferenças drást icas na segurança da população até

mesmo em áreas supostamente parecidas de lugares supostamen-

te parecidos. Um incidente ocorrido nas Washington Houses,

conjunto habitacional de Nova York, i lustra essa situação. Um

grupo de moradores do conjunto, na tentativa de marcar presen-

ça , promoveu comemorações em meados de dezembro de 1958

e ergueu três árvores de Natal. A árvore maior, muito pesada e

dificil de transportar, plantar e enfeitar, ficou numa rua dentro

do conjunto: uma calçada e uma esplanada centra l ajardinada.

As outras duas árvores, cada uma com menos de dois metros de

altura, ambas fáceis de transportar , foram plantadas em cantei-

ros num. canto extremo do terreno do conjunto, por onde passam

uma avenida movimentada e ruas agitadas da cidade tradicional.

Na primeira noite, a árvore maior e toda a sua ornamentação

foram roubadas. As duas árvores menores ficaram intactas, com

as luzes, os enfeites e tudo o mais, até que foram ret iradas no

ano-novo. O local de onde a árvore foi roubada, teoricamente o

mais seguro e protegido de todo o conjunto, é o mesmo lugar em

que as pessoas não têm segurança, especialmente as crianças ,

diz uma assistente social que atendia o grupo de moradores.

 Naquela esplanada, as pessoas não têm mais segurança do que

a árvore de Natal. Por outro lado, o local onde as outras árvores

ficaram intactas, que vem a ser uma das quatro esquinas do con-

junto, mostra-se o mais seguro para as pessoas.

É

uma coisa que todos já sabem: uma rua movimentada con-

segue garantir a segurança; uma rua deserta, não. Mas como é

que isso ocorre, na verdade? E o que faz uma rua ser movimen-

tada ou evitada? Por que se evita a esplanada das Washington

Houses, que deveria ser uma atração? Por que as calçadas da

cidade tradicional, logo na face oeste do conjunto, não são evita-

das? E por que certas ruas são movimentadas num período do

dia e de repente se esvaziam?

Uma rua com infra-estrutura para receber desconhecidos e

ter a segurança como um trunfo devido

à

presença deles - como

\

as. ru~s ?os bairros prósperos - precisa ter três característ icas

pnncipais:

Primeira , deve ser nítida a separação entre o espaço público e

/ o espaço privado. O espaço público e o privado não podem mis-

turar-se, como normalmente ocorre em subúrbios ou em conjun-

tos habitacionais.

Segunda, devem existir olhos para a rua, os olhos daqueles

que podemos chamar de proprie tár ios naturais da rua. Os edif i-

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3 6 M O RT E E V I DA D E G R AN D ES C ID AD ES

A N AT UR EZ A PECU LIA R D A S C ID AD ES 3 7

cios de uma rua preparada para receber estranhos e garantir a

segurança tanto deles quanto dos moradores devem estar volta-

dos para a rua. Eles não podem estar com os fundos ou um lado

morto para a rua e deixá-Ia cega.

E terceira, a calçada deve ter usuários transitando ininterrup-

tamente, tanto para aumentar na rua o número de olhos atentos

quanto para induzir um número suficiente de pessoas de dentro

dos edi ficios da rua a observar as calçadas. Ninguém gosta de

ficar na soleira de uma casa ou na janela olhando uma rua vazia.

Quase ninguém faz isso. Há muita gente que gosta de entreter-

se, de quando em quando, olhando o movimento da rua.

Em assentamentos urbanos de pequeno porte, mais simples

do que as metrópoles, o controle sobre o comportamento aceitá-

vel em público, quando não sobre a criminalidade, parece fun-

cionar com mais ou menos êxito por meio de um emaranhado de

condutas, comentários, aprovação, desaprovação e sanções - to-

dos aspectos importantes quando as pessoas se conhecem e as

notícias correm de boca em boca. Contudo, as ruas da cidade,

que precisam controlar não só o comportamento dos habitantes,

mas também o de visitantes dos subúrbios ou de cidades de pe-

queno porte que queiram aproveitar-se porque estão dis tantes

dos comentários e das repreensões do local onde residem, de-

vem atuar com métodos mais diretos e objetivos. É estranho que

as cidades tenham conseguido solucionar por completo um pro-

~

lema tão dificil. Mesmo assim, em várias ruas elas dão conta

dele magnificamente.

É

in útil

tentar esquivar-se da questão da insegurança urbana

tentando tomar mais seguros outros elementos da localidade,

como pátios internos ou áreas de recreação cercadas. Por defini-

ção, mais uma vez, as ruas da cidade devem ocupar-se de boa

parte da incumbência de lidar com desconhecidos, já que é por

elas que eles transitam. As ruas devem não apenas resguardar a

cidade de estranhos que depredam: devem também proteger os

inúmeros desconhecidos pacíficos e bem-intencionados que as

util izam, garantindo também a segurança deles . Além do mais,

nenhuma pessoa normal pode passar a vida numa ~ e aí

se incluem as crianças. Todos precisam usar as ruas.

\

Por alto, parece que temos algumas metas simples: tentar dar

segurança às ruas em que o espaço público seja inequivocamen-

te público, fisicamente distinto do espaço privado e daquilo que

nem espaço é, de modo que a área que necessi ta de vigilância te-

nha limites claros e praticáveis; e assegurar que haja olhos aten-

tos voltados para esses espaços públicos da rua o maior tempo

possível.

1 Todavia, não é tão simples atingir essas metas, especialmente

a última. Não se podem forçar as pessoas a util izar as ruas sem

I motivo. Não se podem forçar as pessoas a vigiar ruas que não

querem vigiar. Pode parecer inconveniente manter a segurança

das ruas com a vigilância e o policiamento mútuos, mas na reali-

dade não é. A segurança das ruas é mais eficaz, mais informal e

envolve menos traços de hostilidade e desconfiança exatamente

quando as pessoas as utilizam e usufruem espontaneamente e

estão menos conscientes, de maneira geral, de que estão poli-

ciando.

O requisito básico da vigilância é um número substancial de

estabelecimentos e outros locais públicos dispostos ao longo das

calçadas do distrito; deve haver entre eles sobretudo estabeleci-

mentos e espaços públicos que sejam uti lizados de noite . Lojas ,

bares e restaurantes, os exemplos principais, atuam de forma bem

variada e complexa para aumentar a segurança nas calçadas.

Em primeiro lugar , dão às pessoas - tanto moradores quanto

estranhos - motivos concretos para util izar as calçadas onde es-

ses estabelecimentos existem.

Em segundo lugar, fazem com que as pessoas percorram as

calçadas, passando por locais que, em si, não têm interesse para

uso públ ico, mas se tomam freqüentados e cheios de gente por

serem caminho para outro lugar. Essa influência não vai muito

longe geograficamente; portanto, devem existir muitos estabele-

cimentos comerciais no distri to para preencher com pedestres os

trechos da rua que não dispõem de espaços públicos ao longo

das calçadas. Deve haver, além do mais, um comércio bem va-

riado, _paralevar as pessoas a circular por todo o local. _-

Em terceiro lugar, os próprios lojistas e outros pequenos co-

merciantes COstumam incentivar a tranqüilidade e a ordem; de-

\

/

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3 8 M OR TE E VI DA D E G RAN D ES C IDADES

A N A TU R E Z A P E CU L I AR D A S C I DA D ES 39

testam vidraças quebradas e roubos; detes tam que os clientes f i-

quem preocupados com a segurança. Se estiverem em bom nú-

mero, são ótimos vigilantes das ruas e guardiões das calçadas.

Em quarto lugar, a movimentação de pessoas a traba lho ou

que procuram um lugar para comer e beber constitui em si um

atrativo para mais pessoas.

Este último item, de que a presença de pessoas a trai outras

pessoas , é uma coisa que osplanejadores e projetistas têm dif i-

culdade em compreender. Eles partem do princípio de que os

habitantes das cidades preferem contemplar o vazio, a ordem e o

sossego palpáveis. O equívoco não poder ia ser maior . O prazer

das pessoas de ver o movimento e ou tras pessoas é evidente em

todas as cidades . Esse hábito chega a um extremo quase absurdo

na alta Broadway, em Nova York, onde a avenida é dividida por

uma estreita i lha central , bem no meio do tráfego. Nas esquinas

das ruas transversais a essa i lha, que f ica no sent ido nor te-sul,

foram colocados bancos atrás de enormes defensas de concreto,

e em qualquer dia, mesmo quando o clima beira o insuportável,

esses bancos enchem-se de pessoas em todas as quadras, que fi -

cam olhando os pedestres que atravessam a avenida diante delas,

olhando o tráfego, olhando as pessoas nas calçadas repletas, olhan-

do-se umas às outras. Pela Broadway se alcança a Universidade

de Colúmbia e o Bamard College - um à direita , ou tro à esquer-

da. Aí, tudo transpira a ordem e a serenidade palpáveis. Já não

há estabelecimentos comerciais, já não há o movimento gerado

por eles, quase nenhum pedes tre de passagem - e nenhum espec-

tador. Há bancos, mas ficam vazios, mesmo com tempo bom.

Sentei-me neles e entendi por quê. Não existe lugar mais ente-

diante. Até os estudantes dessas ins ti tuições fogem da solidão.

Eles matam o tempo ao ar livre , fazem a lição de casa ao ar livre

e acompanham o movimento sentados nas escadar ias que sevol-

----------. amara a via mais movimentada do campus.

---q,A mesma coisa acontece nas vias públicas de qualquer lugar.

Uma rua viva sempre tem tanto usuár ios quanto meros especta-

dores. No ano passado estive numa rua dessas, no Lower East

Side de Manhattan, esperando um ônibus. Não fiquei lá mais

que um minuto, pouco tempo para começar a perceber a movi-

mentação de transeuntes, crianças brincando e desocupados sen-

tados diante de casa, quando minha atenção foi atraída por uma

mulher que abriu a janela do terceiro andar de um prédio do

outro lado da rua e gritou um  Ei bem alto para mim. Quando

percebi que era comigo e respondi, e la berrou de volta: O ôni-

bus não passa aqui aos sábados Depois, com uma mistura de

gritos e mímica, me mandou virar a esquina. Essa mulher era

uma de milhares e milhares depessoas em Nova Yorkque tomam

conta das ruas, sem compromisso. Elas notam os desconhecidos.

Elas observam tudo o que acontece. Se precisarem intervir, seja

para orientar um estranho esperando no lugar errado, seja para

chamar a polícia, elas intervêm. Sem dúvida, a intervenção sem-

pre requer certa autoconfiança, por parte de quem age, sobre sua

convicção como co-propr ietário da rua e sobre o auxíl io que terá

em caso de necessidade - assuntos presentes no f inal deste l ivro.

No entanto, ainda mais fundamenta l do que a intervenção e im-

prescindível a ela é a própria vigilância.

Nem todo o mundo nas cidades ajuda a tomar conta das ruas,

e muitos moradores ou traba lhadores não têm consciência do

motivo pelo qual seu bairro é seguro. Outro dia ocorreu um inci-

dente na rua onde moro que me interessou jus tamente por isso.

Minha quadra, é bom explicar, é pequena, mas possui ex-

t raordinária diversidade de construções , var iando de prédios de

apartamentos de diferentes épocas a casas de três ou quatro pa-

vimentos convert idas em apartamentos de baixa renda, com es-

tabelecimentos comerciais no térreo, ou uti lizadas por apenas

uma família, como a nossa. Do outro lado da rua havia prédios

de apartamentos de quatro andares, de tijolos aparentes, com

comércio no térreo. Há doze anos, contudo, vários prédios, da

esquina até a metade da quadra, foram transformados num único

edificio, com pequenos apartamentos de alta renda, equipados

com elevador.

O incidente que me chamou a atenção foi uma discussão aba-

fada entre um homem e uma menina de oito ou nove anos de

idade. Aparentemente, o homem tentava convencer a menina a ir .

com ele. Por vezes , era todo l isonjeiro com ela, às vezes demons-

trava indiferença. A menina t inha ficado dura contra o muro de

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40 MO RTE E V IDA DE GRAND ES CIDADES A NATU REZA PECU LIAR D AS CIDADES

41

um dos prédios de apartamentos do out ro lado da rua, como as

crianças fazem ao resistir.

Enquanto eu observava da janela do nosso segundo andar,

tentando imaginar como intervir se precisasse, percebi que não

seria necessário. Do açougue de baixo do prédio, saiu a mulher

que cuida do estabelecimento com o marido; ficou parada a

curta distância do homem, com os braços cruzados e expressão

muito decidida. Joe Cornacchia, que cuida da confeitaria com

seus genros, sa iu quase ao mesmo tempo e ficou firme, do outro

lado. Várias cabeças despontaram nas janelas mais altas do pré-

dio; uma delas saiu rápido da janela, e essa mesma pessoa reapa-

receu um momento depois na porta, atrás do homem. Dois ho-

mens do bar viz inho ao açougue vieram à porta e ficaram olhan-

do. Do meu lado da rua, vi que o chaveiro, o quitandeiro e o

dono da lavanderia t inham saído de seus estabelecimentos e que

a cena também era acompanhada de várias janelas vizinhas à

nossa. O homem não percebera, mas estava cercado. Ninguém ia

permitir que uma garotinha fosse levada, ainda que ninguém sou-

besse quem era ela.

Sinto muito - digo isso só como força de expressão - ter de

contar que a menina era filha daquele homem.

Enquanto durou esse pequeno drama, talvez uns cinco minu-

tos , ninguém apareceu nas janelas do prédio de apartamentos de

alta renda. Foi o único prédio em que isso aconteceu. Quando

mudamos para este quarteirão tinha grandes esperanças de que

logo todos os prédios fossem revital izados como aquele. Hoje

tenho outra opinião, e só posso encarar com tristeza e mau pres-

sentimento a notícia recente de que todo o resto da quadra vizi-

nha ao prédio de alta renda sofrerá exatamente a mesma t rans-

formação. Os inqui linos de alta renda, a maioria dos quais é tão

passageira que nem conseguimos guardar sua fisionomia', não

têm a menor idéia de quem toma conta da rua nem de como isso

é feito. Um bairro como o nosso consegue atra ir e proteger gran-

de quantidade dessas aves migratórias . Mas, se e quando o bair-

ro for igual a esses moradores, e les acharão as ruas cada vez me-

1. Segundo os comerciantes. alguns d el es v iv em a p ão e á gua e p assam o tem po i nteiro procu-

rando um lugar para morar em que não gas tem t oda a renda noa luguel.

nos seguras , sentirão um mal-estar indefin ido e, se as coisas f i-

carem muito feias , migrarão para outro bairro que seja inexpli-

cavelmente mais seguro.

Em alguns bairros ricos, onde existe pouca vigilância do tipo

faça-você-mesmo, como a parte residencial da Park Avenue ou o

trecho de cima da Quinta Avenida, em Nova York, são contrata-

dos vigilantes de rua. As calçadas monótonas do trecho residen-

cial da Park Avenue, por exemplo, são incrivelmente pouco utili-

zadas; seus supostos usuários lotam as atraentes calçadas cheias

de lojas, bares e restaurantes das avenidas Lexington e Madison,

a leste e a oeste, e as travessas que levam a elas. Uma profusão

de porteiros e zeladores , entregadores e babás, numa espécie de

rede de vizinhança, mantém a faixa residencial da Park Avenue

bem provida de olhos. De noite, com a proteção dos porteiros

servindo de barricada, as pessoas saem em segurança com seu

cachorro e complementam a função dos porteiros. Mas essa rua

é tão desprovida de olhos próprios, tão destituída de motivos

concretos para ser utilizada e observada, em vez de se dobrar a

primeira esquina para ir embora, que, se seus aluguéis caíssem a

ponto de não mais ser possível sustentar essa rede de porte iros e

ascensoristas , ela sem dúvida se tornaria uma rua lamentavel-

~

mente perigosa.

ijj

\1 Desde que a rua esteja bem preparada para lidar com estra-

 / , MOS ,

desde que possua uma demarcação boa e eficaz de áreas

brivadas e públicas e um suprimento básico de atividades e olhos,

\quanto mais estranhos houver, mais divertida ela será.

Os estranhos são um trunfo enorme na rua onde moro, sem

contar a conseqüente motivação, principalmente de noite, quan-

do a segurança é mais necessária. Temos muita sorte de existir

em nossa rua um bar freqüentado por moradores e outro, viran-

do a esquina, além de um bar famoso que atrai uma freguesia

constante de estranhos dos bairros viz inhos e até de fora da cida-

de. Ele é famoso porque o poeta Dylan Thomas costumava fre-

qüentá - lo e o citou em sua obra. Esse bar, aliás, tem dois turnos

dist intos. De manhã e no começo da tarde é, como sempre foi,

um ponto de encontro dos estivadores da antiga colônia irlande-

sa e de outros trabalhadores da região. Mas, a partir do meio da

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42 M OR TE E V ID A D E G R AN DE S C IDADES

A N A TU R E ZA P E CU L IA R D A S C I DA D ES 43

f t l

tarde, o bar ganha uma vida diferente, que faz lembrar uma mis-

tura de bate-papo de universitários regado a cerveja com coque-

tel li terár io , e isso vai a té o começo da madrugada. Numa noite

fria de inverno, quando se passa pelo White Horse e as portas se

abrem, somos atingidos por uma onda compacta de conversas e

risadas; muito acolhedor. O entra-e-sa i desse bar contribui em

muito para manter nossa rua razoavelmente movimentada até as

três da manhã, e não há perigo em voltar tarde para casa. Que eu

saiba, a única vez que ocorreu uma briga na nossa rua foi no pe-

r íodo entre o fechamento do bar e a aurora. A briga foi interrom-

pida por um de nossos vizinhos, que a viu pela janela e inter-

veio, inconscientemente convencido de integrar a sólida rede da

lei e da ordem urbana.

Tenho um amigo que mora numa rua afastada do centro, onde

uma congregação de jovens e uma associação comunitár ia que

promovem bailes noturnos e outras atividades atuam da mesma

forma que o Whi te Horse na nossa rua.-º.J21anej~ano

ortodoxo está muito.imbuído de concepções puri tanas e utópicas

acer~ d e como as pessoas devem ~seu temI2.2...livr~

área do Qlanej~~ morãliSffiQS.ob~da pessoal con-

f  llile;:s.e-co~gmc_eitos-refe~ª-o_fi.mcionament<L das

ci~e&:- O bar White Horse e a congregação de jovens mantida

pela igreja, tão diferentes como sem dúvida são, prestam quase o

mesmo serviço na manutenção da civil idade nas ruas. As cida-

des não apenas têm espaço para essas diferenças e out ras mais

em relação a gostos, propósitos e ocupações; também precisam

de pessoas com todas essas diferenças de gostos e propensões.

As preferências dos utopistas - e de outros gestores compulsivos

do lazer de terceiros - por um tipo de empreendimento justo em

detrimento de outros são mais do que absurdas. São daninhas.

Q_ua@o_maiore mais diversificado o leque de interesses legíti-

mos (no estri to sentido legal) que a cidade e as empresas possam

satisfazer, melhor para as ruas, para a segurança e para a civili-

dade das cidades.

Essa triste circunstância aplica-se especialmente aos bolsões

apagados e desvitalizados das metrópoles e às áreas residenciais

internas outrora atraentes, ou ao menos sólidas, que entraram em

decadência. Como esses bairros são perigosos, e as ruas caracte-

risticamente tão escuras, costuma-se acreditar que o problema se

deva à falta de iluminação. A boa iluminação é im'portan~ mas

não se pode atribuir apenas à escuridão a enfermidade grave e

funcional das áreas apagadas, a Grande Praga da Monotonia.

O valor da iluminação forte nas ruas de áreas apagadas e des-

vital izadas vem do reconforto que ela proporciona às pessoas

que precisam andar nas calçadas, ou gostariam de andar, as quais

não o fariam se não houvesse boa iluminação. Assim, as luzes

induzem essas pessoas a contr ibuir com seus olhos para a manu-

tenção da rua. Além do mais, como é óbVIO, a boa iluminação

amplia cada par de olhos - faz com que os olhos valham mais

porque seu alcance é maior. Cada par de olhos a mais e qualquer

aumento em seu alcance representam um trunfo para as áreas

apagadas e desvitalizadas. Porém, as luzes não têm efeito algum

se não houver olhos e não existir no cérebro por trás dos olhos a

quase inconsciente reconfirmação do apoio geral na rua para a

preservação da civilidade. Quando não há olhos atentos, podem

ocorrer crimes horrorosos em público, e ocorrem, nas bem i lu-

minadas estações do metrô. Quase nunca ocorrem crimes em sa-

las de espetáculos escuras, onde muitas pessoas e muitos olhos

estão presentes. As luzes da rua podem ser

comparadasàquela

famosa pedra que cai num deserto onde não há ouvidos para ouvi-

Ia. Será que faz barulho? Sem olhos atentos para enxergar, a luz

ilumina? Para fins práticos, não.

Para explicar o efeito perturbador dos estranhos nas ruas de

áreas urbanas apagadas, destacarei primeiro, como analogia, as

peculiaridades de outra espécie típica de rua - os corredores dos

conjuntos habitacionais em prédios de apartamentos, aqueles

derivados da Ville Radieuse. Em certo sentido, os elevadores e

os corredores desses conjuntos são ruas. São ruas empilhadas

em direção ao céu, de forma que sejam eliminadas as ruas no

chão, e do chão se façam parques desérticos, como a esplanada

das Washington Houses de onde roubaram a árvore de Natal.

- - ,

Os bares e, na verdade, todo o comércio, são malvistos em vá-

rios bairros precisamente porque atraem estranhos, e estes de for-

ma alguma são encarados como uma vantagem.

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4 4 M O RT E E V I DA D E G R AN D ES C ID AD ES

A N A TU R E Z A P E CU L I AR D A S C I DA D ES

45

Essas áreas internas dos edif ícios não só são ruas no sentido

de que servem

à

circulação dos moradores, a maioria dos quais

não deve conhecer os vizinhos nem saber quem é ou não mora-

dor do prédio. São ruas também no sentido de serem acessíveis

ao público. Foram projetadas como uma imitação dos prédios de

apartamentos de alto padrão sem o dinheiro correspondente para

custear porteiros e ascensoristas. Qualquer um pode entrar nes-

ses edif ícios sem se identif icar e usar a rua móvel, que é o eleva-

dor, e as calçadas, que são os corredores. Essas ruas internas,

embora inteiramente acessíveis ao uso público, são fechadas à

vista das pessoas, carecendo, portanto, da vigilância e da inibi-

ção exercidas pelos olhos que policiam as ruas.

Menos incomodado, tanto quanto eu possa depreender , com

os perigos amplamente comprovados que os seres humanos cor-

rem nessas ruas cegas do que com o vandalismo contra a pro-

priedade que nelas ocorre, o Departamento de Habitação da Ci-

dade de Nova York fez uma experiência há alguns anos com cor-

redores abertos

à

visão do público, num projeto do Brooklyn que

chamarei de Blenheim Houses, embora o nome não seja esse.

(Não quero aumentar seus problemas, identificando-os.)

Como os edifícios das Blenheim Houses possuem dezesseis

andares e sua altura cria uma extensão generosa de áreas no solo

que são evitadas, a vigilância dos corredores abertos , a part ir do

chão ou de outros edifícios, tem pouco mais que um efeito psi-

cológico, embora esse devassamento psicológico aparentemente

tenha alguma eficácia. Mais importantes e eficazes, os corredo-

res foram todos projetados para induzir a vigilância de dentro

dos próprios edif ícios . Ganharam outros usos além da circula-

ção. Foram feitos para servir de área de recreação e construídos

com espaço sufic iente para funcionar como pequenos pátios,

assim como vias de passagem. Isso tudo teve um efeito tão insti-

gante e interessante que os inquilinos lhes deram outra utilidade,

de longe a favorita: área de piquenique - isso a despeito das fre-

qüentes queixas e ameaças da administradora, que não havia

planejado a util ização dos corredores-saguões como área de pi-

quenique. (Esperava-se que o planejamento previsse tudo e não

se permitissem alterações.) Os inquilinos adoram os corredores-

saguões; e, por serem intensamente utilizados, permanecem sob

intensa vigilância. Não houve nenhuma ocorrência grave nesses

corredores especif icamente, nem vandalismo. Nem sequer as

lâmpadas são roubadas ou quebradas, ainda que em condomí-

nios de tamanho similar , com corredores cegos, a troca de lâm-

padas em conseqüência apenas de roubos e vandalismo costume

atingir por mês a casa dos milhares.

Até aqui tudo bem. Trata-se de uma comprovação surpreen-

dente da correlação direta entre vigilância e segurança urbana

Entretanto, as Blenheim Houses têm um problema alarmante

de vandalismo e conduta inconveniente. Os saguões iluminados,

que são, como diz o síndico, a paisagem mais resplandecente e

mais atraente para os olhos , a traem estranhos, especialmente

adolescentes , de todo o Brooklyn. E esses estranhos, a traídos

pelo magnetismo dos corredores visíveis ao público , não ficam

nesses corredores devassados. Eles vão para outras ruas dos

edifícios, às quais falta vigilância. Entre elas estão os elevadores

e , mais importante nesse caso, as escadas de incêndio e seus pa-

tamares . A guarda do condomínio corre para cima e para baixo

atrás dos desordeiros - que se comportam de modo bárbaro, per-

verso, na escadaria cega de dezesseis andares -, e eles a despis-

tam. É fácil levar os elevadores para um andar alto, obstruir as

portas de modo que eles não possam descer e depois fazer o

diabo com o prédio e com qualquer pessoa que apareça. O pro-

blema é tão sério e aparentemente tão incontrolável, que a prio-

ridade dos corredores seguros mantém-se de pé - pelo menos

aos olhos atormentados do síndico.

O que acontece nas Blenheim Houses é meio parecido com o

que acontece nas áreas apagadas e desvital izadas das cidades.

Nessas áreas, as manchas de luz e vida lamentavelmente escas-

sas e esparsas são como os corredores devassados das Blenheim

Houses. Também atraem estranhos. Mas as ruas cegas relat iva-

mente desertas e sombrias que saem desses lugares são como as

escadas de incêndio das Blenheim Houses. Não estão prepara-

das para lidar com estranhos, e a presença deles é uma ameaça

automática.

Em tais casos, a tentação é culpar as galer ias - ou o comércio

ou os bares que funcionam como ímãs. Esse raciocínio típico

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M ORT E E V ID A D E G RA ND ES CIDADE S

A N ATU RE ZA P ECU LIAR D AS C IDADES

47

tem como exemplo o projeto de reforma do Hyde Park-Kenwood,

em Chicago. Esse trecho cinzento, vizinho

à

Universidade de

Chicago, possui várias casas e terrenos esplêndidos, mas duran-

te trinta anos foi assolado por um problema assustador de crimi-

nalidade nas ruas, acompanhado nos últimos anos por uma deca-

dência física considerável. A causa do declínio de Hyde Park-

Kenwood foi brilhantemente identif icada pelos planejadores

herdeiros dos médicos flebotomistas como a existência de uma

 praga . Praga, para eles, significa que muitos professores uni-

versitários e outras famí lias de classe média debandaram em

grande número dessa área desvitalizada e perigosa, e suas mora-

dias foram quase sempre ocupadas, como era de esperar, por

pessoas com pouca opção econômica ou social de moradia. O

plano identifica e extingue esses nichos infestados e os substitui

por nichos de Cidade-Jardim Radieuse, projetados, como sem-

pre, para reduzir ao mínimo o uso das ruas. O projeto também

acrescenta outros espaços vazios aqui e ali , apaga ainda mais a

distinção, já pobre no distrito, entre espaço privado e público e

elimina o comércio existente, que não é lá grande coisa . Os pri-

meiros planos dessa reforma incluíam uma cópia relativamente

ampliada de um shopping center de subúrbio. Mas essa idéia

provocou uma vaga consciência de realidade e um lampejo de

apreensão no processo de planejamento. Um núcleo comercial

amplo, maior que o necessário para os hábitos de consumo dos

moradores do próprio distrito revitalizado,  poderia atra ir pes-

soas de fora para o local , como afirmou um dos arquitetos. En-

tão se decidiu por um shopping center pequeno. Grande ou pe-

queno, pouco importa.

Pouco importa porque Hyde Park-Kenwood, como qualquer

distrito urbano, é, na realidade, circundado por pessoas de fora .

Essa área está incrustada em Chicago. Não pode negar sua loca-

lização. Não pode recuperar sua antiga condição de semi-subúr-

bio, há muito extinta. Um planejamento que ignore isso e des-

considere as profundas deficiências funcionais do local só pode

provocar uma de duas conseqüências.

Primeira , as pessoas de fora continuarão a freqüentar o local

quando quiserem e, sendo assim, haverá entre elas estranhos que

não são nem um pouco bem-comportados. Quanto à segurança,

nada terá mudado, a não ser que talvez haja mais oportunidades

para cometer delitos nas ruas, em virtude da ampliação dos va-

zios. Ou, segunda conseqüência, o plano pode conter medidas

rígidas e insólitas para manter as pessoas de fora afastadas do

local, como fez a Universidade de Chicago, instituição que foi

fonte de inspiração para a consecução do plano, que tomou a

medida insólita, conforme anunciou a imprensa, de soltar cães

policiais todas as noites para patrulhar o campus e intimidar

qualquer ser humano que entre nessa perigosa cidadela inurba-

na. Sem dúvida as barre iras formadas por novos conjuntos resi-

denciais no perímetro de Hyde Park-Kenwood, mais o policia-

mento insólito, atingem plenamente o objetivo de manter afasta-

das as pessoas de fora. O preço disso será a hostil idade da cidade

ao redor e uma sensação ainda maior de prisão dentro da fortale-

za. E quem pode garantir que todos os milhares que por direito

estão dentro do forte sejam confiáveis no escuro?

Repito, não é minha intenção definir como condenável a uti-

lização de uma área ou, neste caso, um plano. Hyde Park-Ken-

wood é significat ivo principalmente porque o diagnóstico e as

medidas corret ivas do plano são típ icas - apenas ligeiramente

mais ambiciosas - de planos concebidos como experimentos de

revitalização de áreas apagadas em cidades de todo o país. Trata-

se do Planejamento Urbano que carrega todas as marcas da orto-

doxia, e não de uma aberração da arbitrariedade local.

~~

Suponhamos que continuemos a construir cidades inseguras

e a reurbanizá-las deliberadamente. Como conviveremos com

essa insegurança? Pelas evidências que temos até hoje, parece

haver

)Lê s

maneiras de conviver com ela; talvez com o tempo

sejam inventadas outras, mas suspeito de que estas três venham

a ser apenas aperfe içoadas, se é que tal termo se aplica.

_~A primeira maneira é deixar o perigo reinar absoluto e dei-

xar que os infel izes que defrontarem com ele sofram as conse-

qüências. Essa é a polít ica adotada atualmente com relação aos

conjuntos habitacionais de baixa renda e vários outros, de renda

média.

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4 8 M O RT E E V I DA D E G R AN D ES C ID AD ES

<

A segunda maneira é refugiar-se em veículos . Esse recurso é

util izado nas grandes reservas de animais selvagens da África,

nas quais os turis tas são advertidos a não sair do carro em hipó-

tese alguma até que cheguem ao alojamento. Essa prática é tam-

bém empregada em Los Angeles. Os visi tantes dessa cidade não

se cansam de contar, surpresos, que a polícia de Bever1y Hills os

parou, pediu que justificassem por que estavam a pé e os adver-

tiu do perigo. Esse recurso de segurança do público parece ainda

não funcionar bem em Los Angeles , como demonstram os índi-

ces de criminalidade, mas talvez , com o tempo, venha a funcio-

nar. Imaginem quais não seriam as taxas de criminalidade se pes-

soas sem carapaças metálicas se expusessem na vasta e desguar-

necida reserva de Los Angeles.

As pessoas que se encontram em locais perigosos de outras

cidades também costumam utilizar automóveis como proteção,

é claro, ou pelo menos tentam. Uma carta endereçada ao editor

do N ew Y or k P o s t diz: Moro numa rua escura, travessa da Ave-

nida Utica, no Brooklyn, e por isso decidi tomar um táxi para

chegar

à

minha casa, embora não fosse tarde. O motorista pediu

que eu descesse na esquina da Utica, dizendo que não queria

entrar na rua escura. E eu precisaria dele se quisesse andar por

uma rua escura?

I: f..

terceira maneira, quejá mencionei ao abordar o Hyde Park-

Kenwood, foi cr iada por bandos de arruaceiros e abertamente

adotada pelos criadores da cidade reurbanizada. Essa modalida-

de consiste em cultivar a instituição do Território.

Segundo a modalidade tradicional do sistema do Território,

uma gangue apropria-se de certas ruas e conjuntos habitacionais

ou parques - geralmente uma combinação dos três . Os integran-

tes de outras gangues não podem entrar nesse Território sem a

permissão de seus proprietár ios , e se o fizerem correm o risco de

ser espancados ou enxotados. Em 1956, o Conselho Juvenil da

cidade de Nova York, desesperado com a guerra de gangues, ob-

teve, por meio de seus funcionários, uma série de tréguas entre

os grupos rivais. Diz-se que as tréguas estipulavam, entre outras

condições, o reconhecimento mútuo das gangues a respeito das

fronteiras do Território e um acordo de respeitá-Ias.

- -t;Y

A N A TU R E Z A P E CU L I AR D A S C I DA D ES

49

D

 --

O comissário de polícia, Stephen P. Kennedy, declarou-se

logo em seguida ultra jado com os acordos sobre os terri tórios . A

polícia, disse ele, procurava garantir o direito de qualquer pessoa

de transitar em segurança em qualquer local da cidade, tendo por

direito fundamental a imunidade. Os pactos sobre os territórios,

assinalou ele, subvertiam intoleravelmente os direitos do cida-

dão e a segurança pública.

Acho que o comissário Kennedy tinha toda a razão. Porém,

precisamos refletir sobre o problema que os funcionários do

Conselho Juvenil enfrentavam. Era um problema real, e eles

estavam tentando resolvê-lo da melhor maneira possível, com os

meios empíricos de que dispunham. Nas ruas, nos parques e nos

conjuntos habitacionais malsucedidos dominados por essas gan-

gues, faltava segurança pública, da qual fundamentalmente de-

pendem o di reito e a liberdade de ir e vir da população. Sob tais

circunstâncias, a liberdade do cidadão não era senão um concei-

to teórico.

r Considere agora os projetos de reurbanização das cidades:

residências de renda média e alta que ocupam grande extensão

do solo urbano, vários quarte irões antigos, com terrenos e ruas

próprias para atender a essas i lhas urbanas , cidades dentro da

cidade e esse novo conceito de vida urbana , como dizem os

anúncios sobre eles . Aqui, a prática é também demarcar o Terr i-

tório e deixar do lado de fora das cercas as outras gangues. An-

tes, as cercas nem eram visíveis. Os guardas eram suficientes para

garantir a fronteira. Nos últimos anos, contudo, as cercas torna-

ram-se concretas.

Talvez a primeira tenha sido o alambrado al to em torno de

t G n conjunto residencial no estilo Cidade-Jardim Radieuse, vizi-

nho ao Hospita l Johns Hopkins de Baltimore (as grandes insti-

tuições educacionais parecem ser deploravelmente criativas em

termos de aparatos terri tor ia is) . Caso alguém não entendesse o

que a cerca significava, as placas na rua do conjunto reafirma-

vam:  Mantenha distância. Entrada proibida.

É

esquisito ver

um bairro, numa cidãaeêõm população ci-vn:murado desse jei-

to. Não é apenas feio, na acepção da palavra, mas ~urrea ista. Vo-

cês podem imaginar como é que isso repercute nos vizinhos,

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50 MORTE E VIDA DE GRANDES CIDADES

A N AT UR EZ A P EC ULIAR DAS CIDADES 51

apesar da mensagem-antídoto no quadro de avisos da igreja do

conjunto: '>Lamor d~Cristo é o melhor de todos os tônicos.

r-Nova York copiou rapidamerite oexemplode--Bal~e, à

sua moda. Na verdade, na parte de trás das Amalgamated Houses,

no Lower East Side , Nova York foi mais longe. Na face norte do

passeio central ajardinado do conjunto residencial, um portão de

ferro encontra-se permanentemente fechado a cadeado e tem no

topo não um simples rendilhado de ferro , mas um emaranhado

de arame farpado. Será que esse passeio cercado se abre para a

velha megalópole depravada? Definitivamente, não. Tem por vi-

zinhos um playground público e, atrás dele, outro conjunto resi-

dencial para uma classe social diferente.

~a cidade reurbanizada é necessário haver uma série de cer-

cas para instalar uma vizinhança equilibrada. A junção de duas

populações com etiquetas de preço diferentes - a da cooperativa

de renda média de Corlears Hook com a de renda baixa das Vla-

deck Houses, a inda no Lower East Side - é particularmente no-

tável. A Corlears Hook protege seu Território dos vizinhos mais

próximos com um amplo estacionamento, que ocupa toda a ex-

tensão da superquadra, junto a uma cerca viva com espinhos e

um alambrado de dois metros de altura, ao lado de um terreno

devo luto de cerca de 95 metros de largura, todo murado, que

contém apenas papéis sujos levados pelo vento e é propositada-

mente inacessível a qualquer outra coisa. Depois tem início o

Território Vladeck.

Num caso similar, no Upper West Side , o corretor de imóveis

do Park West Village - Um mundo só seu no coração de Nova

York -, de quem me aproximei como pretensa inquilina, disse-

me em tom confortador: Senhora, assim que o shopping center

ficar pronto, todo o terreno será cercado,

Alambrados?

Exatamente, senhora. E no fim - apontando com a mão

para a cidade à vol ta dos seus domínios - tudo isso vai sumir.

Essas pessoas vão sumir. Somos ospioneiros daqui.

Presumo que isso realmente se pareça com a vida dos pionei-

ros numa vila cercada, a não ser pelo fato de que os pioneiros

buscavam uma segurança maior para sua civilização, não menor.

Alguns membros das gangues dos novos Terri tórios acham

dificil engolir esse tipo de vida. Um deles escreveu uma carta

para o New York Post em 1959: Outro dia, pela primeira vez

meu orgulho de ser morador de Stuyvesant Town e de Nova York

deu lugar

à

indignação e

à

vergonha. Vi dois garotos de uns 12

anos de idade sentados num banco de Stuyvesant Town. Estavam

entre tidos na conversa , eram tranqüilos , bem-comportados - e

porto-riquenhos. De repente, dois guardas de Stuyvesant Town

se aproximaram - um vindo do norte, e o outro, do sul. Um fez

sinal ao outro apontando os dois garotos. Um deles foi até os

garotos e, depois de os dois lados dizerem alguma coisa em voz

baixa, os garotos se levantaram e foram embora. Eles tentaram

aparentar indiferença ( . .. ) . Como podemos esperar que as pes-

soas tenham dignidade e amor-próprio se nós os tiramos delas

antes que sejam adultas? Quão pobre somos nós, de Stuyvesant

Town e Nova York, que não podemos nem ceder um banco a dois

garotos.

O editor de Cartas deu a esse re la to o seguinte t ítulo: Perma-

- - - -- - - - - -- --

neçam em seu Território.

Porém, em geral , as pessoas parecem acostumar-se rapida-

mente com a vida num Território que tenha ou uma cerca meta-

fórica ou uma cerca concreta, imaginando como tinham conse-

guido viver sem ela. Antes de as cercas de terri tórios terem sido

adotadas na cidade, o New Yorker referiu-se a esse fenômeno

mencionando não uma metrópole cercada, mas uma cidadezinha

pequena cercada. Parece que, quando Oak Ridge, no Tennessee,

foi desmili tar izada depois da guerra, a perspectiva de perder a

cerca colocada pelos militares provocou protestos exaltados dos

temerosos moradores e ocasionou acaloradas reuniões comuni-

tár ias. Não muitos anos antes , todos em Oak Ridge haviam vin-

do de cidadezinhas e metrópoles sem cercas, mas, mesmo assim,

a vida cercada se tornara normal e, sem ela , eles temiam perder a

segurança.

Da mesma forma, David, meu sobrinho de dez anos, nascido

e criado em Stuyvesant Town, uma cidade dent ro da cidade ,

comenta abismado como as pessoas podem andar pela rua dian-

te da minha casa. Ninguém verif ica se elas pagam aluguel pela

.._ ._ - - - - - ,

. . \   ) ,: / :J P .

A  O a

s i

'   I

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5 2 M OR TE E V ID A D E G RA ND ES CIDADES

A N AT U RE ZA P EC ULI AR D AS C ID AD ES 5 3

rua? , perguntou ele.  Se elas não são daqui, quem as manda

embora?

A prática de dividir a cidade em Territórios não é uma solu-

ção nova-iorquina apenas.

É

uma solução da Cidade Norte-Ame-

ricana Reurbanizada. Na Conferência de Harvard sobre Projetos

de 1959, um dos tópicos abordados pelos projetistas arquitetôni-

cos era o do quebra-cabeça do Terri tór io, embora não tenham

usado essa expressão. Os exemplos debatidos acabaram sendo

os do conjunto habitacional de renda média de Lake Meadows,

em Chicago, e do conjunto de alta renda do Lafayette Park, em

Detroit. Mantém-se o resto da cidade fora desses arrabaldes

cegos? É dificil e desagradável. Convida-se o resto da cidade

para o local? É dificil e inviável.

Assim como os trabalhadores do Conselho Juvenil , também

os construtores e os moradores da Ville Radieuse e da Cidade-

Jardim Radieuse e da Cidade-Jardim Beautiful Radieuse têm um

impedimento genuíno e precisam lidar com ele da melhor ma-

neira possível com os recursos empíricos de que dispõem. Têm

pouca escolha . Onde quer que surja uma cidade reurbanizada, o

conceito do Território vem junto, porque a cidade reurbanizada

despreza a função fundamental da rua e, com ela, necessaria-

mente, a liberdade da cidade.

O trecho da Rua Hudson onde moro é todo dia cenário de um

complexo balé de calçada. Eu mesma entro em cena pouco

depois das oito, quando coloco do lado de fora a lata de lixo, sem

dúvida uma tarefa prosaica, mas gosto do meu papel, do barulhi-

nho metálico que produzo, na hora em que passam as levas de

colegiais pelo meio do palco, deixando cair papel de bala. (Como

eles conseguem comer tanta bala logo de manhãzinha?)

Enquanto varro os papéis de bala, observo os outros r ituais

matinais: o Sr. Halpert soltando o carrinho de mão da lavanderia

de seu lugar ,

à

porta do depósito, o genro de Joe Cornacchia

empilhando caixotes vazios fora da confeitaria, o barbeiro colo-

cando na calçada sua cadeira dobrável, o Sr. Goldstein arruman-

do os rolos de arame, o que indica que a loja de ferragens está

aberta, a mulher do síndico do prédio largando seu parrudinho

de três anos com um bandolim de brinquedo à porta de casa,

posto privilegiado no qual e le aprende o inglês que sua mãe não

consegue falar. Depois as crianças do primário, em direção

à

Escola São Lucas, desfilam para o sul; os alunos da Santa Ve-

rônica cruzam no sentido oeste, e os da Escola Primária 41 diri-

-gem-se para leste. Duas novas entradas em cena são preparadas

nos bastidores: bem vestidos e até elegantes, mulheres e homens

com pastas emergem de portas e ruas vizinhas. A maioria vai

tomar ônibus ou metrô , a lguns se detêm no meio-fio e param tá-

xis que por milagre apareceram no momento exato, mesmo por-

que os táxis fazem parte de um ritual matinal mais amplo: de-

pois de levar passageiros vindos da zona central de Manhattan

para o distri to f inanceiro da zona sul , eles levam os moradores

da zona sul para a zona centra l. Ao mesmo tempo surgem várias

mulheres com vestidos caseiros e, quando cruzam umas com as

outras, param para uma conversa rápida cheia de risadas ou de

indignação solidária, parece que nunca um meio-termo. Está na

hora de eu também me apressar para o trabalho, e troco um cum-

primento ritual com o Sr. Lofaro, o quitandeiro, baixo, atarraca-

do, sempre de avental branco, que se posta do lado de fora da

porta, um pouco acima na rua, braços cruzados, pés fincados no

chão, dando a impressão de ser tão sólido quanto o solo. Acena-

mos; nós dois olhamos rápido para baixo e para cima da rua, daí

Sob a aparente desordem da cidade tradicional, existe, nos

lugares em que ela funciona a contento, uma ordem surpreen-

dente que garante a manutenção da segurança e a liberdade.

É

uma ordem complexa. Sua essência é a complexidade do uso das

calçadas, que traz consigo uma sucessão permanente de olhos.

Essa ordem compõe-se de movimento e mudança, e, embora se

tra te de vida , não de arte, podemos chamá-Ia, na fantasia, de for-

ma artística da cidade e compará-Ia à dança - não a uma dança

mecânica, com os figurantes erguendo a perna ao mesmo tempo,

rodopiando em sincronia, curvando-se juntos, mas a um balé

complexo, em que cada indivíduo e os grupos têm todos papéis

dis tintos , que por milagre se reforçam mutuamente e compõem

um todo ordenado. O balé daboa calçada urbana nunca serepete

em outro lugar, e emCiualquer lugar está sempre repleto de novas

improvisações.

*

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5 4 M O RT E E V I DA D E G R AN D ES C ID AD ES

A N AT U RE Z A P E C ULI A R D AS CID AD ES 5 5

nos entreolhamos de novo e sorrimos. Temos feito isso inúmeras

manhãs durante mais de dez anos, e sabemos o que signi fica:

está tudo em ordem.

Raramente vejo o balé do sol a pino, pois faz parte dele o fato

de a maioria dos trabalhadores que moram lá, como eu, estarem

fora, desempenhando o papel de estranhos em outras calçadas.

Mas eu o conheço bem nos dias de descanso, o suficiente para

saber que ele se toma cada vez mais complexo. Os estivadores

que estão de folga reúnem-se no White Horse, no Ideal ou no In-

ternational para beber e conversar. Os executivos e os comerciá-

rios das indústrias próximas, logo a oeste, amontoam-se no res-

taurante Dorgene e na cafeter ia Lion's Head; trabalhadores de

frigoríficos e especialistas em comunicações lotam a lanchonete

da padaria . Surgem os dançarinos excêntricos, uma senhora es-

quisita com cadarços de sapato velhos sobre os ombros, homens

de barba comprida em cima de lambretas com as namoradas sa-

colejando na garupa, cabelos longos tanto sobre o rosto quanto

atrás da cabeça, bêbados que seguem a recomendação do Con-

selho do Chapéu e sempre se apresentam de chapéu, mas não

com chapéus que o Conselho aprovaria . O Sr. Lacey, o chaveiro,

fecha sua loja por um tempinho para ir bater papo com o Sr.

Slube, da charutaria. O Sr. Koochagian, o alfaiate, rega a exube-

rante f loresta de plantas que tem na janela, lança um olhar crí ti -

co para elas pelo lado de fora, concorda com o elogio que dois

transeuntes lhes fazem, passa os dedos pelas folhas do plátano

diante de nossa casa com a apreciação de um jardineiro pensati-

vo e atravessa a rua para uma refeição rápida no Ideal, de onde

pode espiar a chegada de fregueses e sinalizar que já está indo.

Os carrinhos de bebê saem

à

rua, e grupos de todo tipo, de crian-

cinhas com bonecas a adolescentes com lição de casa, reúnem-

sena porta de casa.

Quando volto para casa depois do trabalho, o balé está che-

gando ao auge. Chegou a hora dos patins e das pernas de pau e

dos triciclos, das brincadeiras ao pé da escada com tampinhas de

garrafa e caubóis de plástico; é hora dos pacotes e dos embru-

lhos, do ziguezaguear da farmácia para a banca de frutas e para

o açougue; é a hora em que moças e rapazes, todos arrumados,

param para perguntar se a anágua está aparecendo ou se o colar i-

nho está direito; é a hora em que as garotas bonitas descem de

carros MG; é a hora em que os carros de bombeiros passam; é a

hora em que vai passar todo o mundo que a gente conhece da vi-

zinhança da Rua Hudson.

Quando o dia vira noite e o Sr. Halpert encosta de novo o car-

rinho da lavanderia

à

porta do depósito, o balé continua sob as

luzes, rodopiando para cá e para lá, mais forte nas poças brilhan-

tes das luzes da barraca de pizzas do Joe, dos bares, da confeita-

r ia , do restaurante e da farmácia. Os trabalhadores noturnos pa-

ram na confeitar ia para levar salame e uma garrafa de lei te . Com

a noite, tudo sossega, mas a rua e seu balé não param.

Conheci melhor o balé da noite alta andando bem depois da

meia-noite para acalmar um bebê e, sentada no escuro, obser-

vando os vultos e ouvindo os sons da calçada.

É

um som seme-

lhante a fragmentos de conversa de festa infinitamente repetidos

e ,perto das três da manhã, cantoria , cantoria da boa. Às vezes há

rispidez e raiva ou um choro triste, muito triste, ou então agita-

. ção para encontrar as contas de um colar que se rompeu. Certa

noite apareceu um jovem que urrava, berrava, numa linguagem

terrível, com duas moças que ele aparentemente tinha encontra-

do e o estavam desapontando. Portas se abriram, formou-se um

círculo desconfiado ao redor dele, até que a polícia chegou. Tam-

bém despontaram rostos, por toda a Rua Hudson, dando opi-

niões: Bêbado ... Louco ... Um arruaceiro de subúrbios, ?

Não sei exatamente quantas pessoas estão na rua tarde da noi-

te, a não ser que alguma coisa provoque uma aglomeração,

como uma gaita de foles. Não faço a mínima idéia de quem era o

gaite iro e por que ele escolheu nossa rua. A gaita de foles come-

çou a soar numa noite de fevereiro, e , como se fosse um chama-

do, a movimentação escassa e ocasional da calçada ganhou ru-

mo. Rápida, silenciosa, quase magicamente, uma pequena mul-

tidão se reuniu, formando um cí rculo em tomo da impetuosa

dança escocesa. Era possível ver a multidão nas sombras da cal-

2 . D e sc ob ri u- se p or f im q u e ele e ra u m a rr u ac ei ro d e s u bú rb io. A s v e z es . n a R u a H u d so n , t e n -

d e m os a a c re d it ar q u e o s s u b ú rb io s d eve m s e r u m lu g a r c o mp l ic a do p a ra c ri ar o s f i lh o s.

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5 6 M OR TE E V ID A D E G R AN DE S C ID AD ES

A N AT UR EZ A P EC UL IA R D AS C ID AD ES 57

çada,

OS

dançarinos, mas o próprio gaiteiro era quase imperceptí-

vel, pois seu brilhantismo estava todo na música. Era um homem

baixo, dentro de um casacão marrom. Quando ele terminou e foi

embora, os dançarinos e espectadores aplaudiram, e os aplausos

vieram também das galer ias , uma meia dúzia das cem janelas da

Rua Hudson. Então asjanelas se fecharam, e a pequena multidão

se misturou

à

movimentação ocasional da rua

à

noite.

Os desconhecidos da Rua Hudson, a liados cujos olhos aju-

dam nós mesmos, os moradores, a manter a paz na rua, são tan-

tos que sempre parecem ser pessoas diferentes de um dia para o

outro. Não importa. Não sei se são realmente tantas pessoas di-

ferentes como aparentam ser. Parece que sim. Quando Jimmy

Rogan atravessou uma janela envidraçada (ele tentava apartar

dois amigos que brigavam) e quase perdeu o braço, surgiu um

estranho do bar Ideal com uma camiseta velha, que providen-

ciou rapidamente um habilidoso torniquete e, segundo o pessoal

da emergência do hospital , salvou a vida de Jimmy. Ninguém se

lembrava de ter visto o sujeito antes e ninguém o viu depois. O

hospita l foi avisado da seguinte maneira: uma mulher sentada

numa escada perto do local do acidente correu até o ponto do

ônibus; sem dizer uma palavra, pegou uma das moedas que esta-

vam na mão de um desconhecido que esperava a condução com

o dinheiro trocado para a passagem e correu até a cabine telefô-

nica do Ideal. O desconhecido correu atrás dela para oferecer a

outra moeda. Ninguém se lembra de tê- lo visto antes e ninguém

o viu de novo. Na Rua Hudson, depois de se ver o mesmo desco-

nhecido três ou quatro vezes, já se começa a cumprimentá-lo .

Chega quase a ser um conhecido, um conhecido da rua, é claro.

Fiz o balé diário da Rua Hudson parecer mais frenético do

que é porque, ao escrever sobre ele, as cenas ficam mais com-

pactadas. Na vida real não é assim. Na vida real, com certeza , há

sempre alguma coisa acontecendo, o balé não tem intervalo, mas

a sensação geral é serena, e a cadência geral, bem mais pausada.

Quem conhece bem essas ruas movimentadas vai entender como

é. Receio que quem não conhece venha a ter uma idéia errada -

como as velhas gravuras de rinocerontes feitas segundo o relato

dos viajantes.

Na Rua Hudson, e igualmente no North End de Boston ou

em qualquer outra vizinhança animada das cidades grandes, não

somos mais intrinsecamente capazes de manter a segurança nas

calçadas do que as pessoas que tentam sobreviver

à

trégua hostil

do Território numa cidade cega. Somos os felizardos detentores

de uma ordem urbana que toma a manutenção da paz relativa-

mente simples, por haver olhos de sobra na rua. Não existe po-

rém simplicidade alguma na ordem em si ou no atordoante nú-

mero de elementos que a compõem. A maior parte desses com-

ponentes são, de certa maneira, específicos. Eles provocam um

efeito conjugado sobre a calçada, contudo, que não é de modo

algum específico. Aí reside sua força.

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3 O S U SO S D AS C ALÇ AD AS : C ON TA TO

J

Há muito tempo, os responsáveis pela reurbanização observam

os moradores da cidade passando o tempo em esquinas movi-

mentadas, parando em bares e confeitarias e bebendo refrigeran-

te junto à porta de casa , e já deram um veredicto, que em essên-

cia é: Que coisa mais deplorável Se essas pessoas tivessem um

lar decente ou um lugar mais próprio e arborizado, não estar iamc

na.rua

Esse julgamento representa um equívoco profundo a respeito

das cidades. Não faz mais sentido do que COmparecer a um jan-

tar comemorativo num hotel e concluir que, se aquelas pessoas

tivessem mulheres que cozinhassem, dariam a festa em casa.

O ponto fundamental tanto do jantar comemorativo quanto

da vida social nas calçadas é precisamente o fato de serem públi-

cos. Reúnem pessoas que não se conhecem socialmente de ma-

neira íntima, privada, e muitas vezes nem se interessam em se

conhecer dessa maneira.

l-

Ninguém pode manter a casa aberta a todos numa cidade

Ygrande. Nem ninguém deseja isso. Mesmo assim, se os contatos

interessantes, proveitosos e significativos entre os habitantes das

cidades se limitassem à convivência na vida privada, a cidade

não teria serventia. As cidades estão cheias de pessoas com quem

certo grau de contato é proveitoso e agradável, do seu, do meu

~t -

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60 M OR TE E V ID A D E G R AN DE S C ID AD ES

ou do ponto de vista de qualquer indivíduo. Mas você não vai

querer que elas f iquem no seu pé. E elas também não vão querer

que você fique no pé delas.

Ao falar a respeito da segurança nas calçadas, mencionei a

necessidade de haver, no cérebro por trás dos olhos atentos à rua,

um pressuposto inconsciente do apoio geral da rua quando a si-

tuação é adversa - quando um cidadão tem de escolher, por

exemplo, se quer assumir a responsabilidade, ou abrir mão dela,

de enfrentar a violência ou defender desconhecidos. Existe uma

palavrinha para esse pressuposto de apoio: confiança. A con-

fiança na rua forma-se com o tempo a part ir de inúmeros peque-

nos contatos públicos nas calçadas. Ela nasce de pessoas que pa-

ram no bar para tomar uma cerveja, que recebem conselhos do

merceeiro e dão conselhos ao jornale iro, que cotejam opiniões

com outros fregueses na padaria e dão bom-dia aos garotos que

bebem refrigerante à porta de casa, de olho nas meninas enquan-

to esperam ser chamados para jantar, que advertem as crianças,

que ouvem do sujeito da loja de ferragens que há um emprego e

pegam um dólar emprestado com o farmacêutico , que admiram

os bebês novos e confirmam que um casaco realmente desbotou.

Os hábitos variam: em certas vizinhanças, as pessoas trocam

impressões sobre seus cachorros; em outras, trocam impressões

sobre seu senhorio.

=Grande parte desses contatos é absolutamente trivial , mas a

soma de tudo não é nem um pouco trivial. A soma desses conta-

tos públicos casuais no âmbito local- a maioria dos quais é for-

tuita, a maioria dos quais diz respeito a solicitações, a totalidade

dos quais é dosada pela pessoa envolvida e não imposta a ela por

ninguém - resulta na compreensão da identidade pública das

pessoas, uma rede de respeito e confiança mútuos e um apoio

eventual na dificuldade pessoal ou da vizinhança. A inexistência

dessa confiança é um desastre para a rua. Seu cul tivo não pode

ser inst itucionalizado. E, acima de tudo, ela implica não com-

prometimento pessoal.

Constatei uma diferença surpreendente entre a existência e a

inexistência de confiança pública informal dos dois lados de uma

mesma rua larga do East Harlem, composta de moradores basi-

A N AT UR EZ A P EC ULI AR D AS C ID AD ES 61

camente de mesma renda e raça. Do lado da cidade tradicional,

repleto de locais públicos e com a vida mansa das calçadas tão

deplorada pelos utopistas vigilantes do lazer alheio, as crianças

estavam sob controle. Bem em frente, do lado do conjunto habi-

tacional, as crianças, que haviam aberto um hidrante de incêndio

localizado ao lado da área de recreação, comportavam-se selva-

gemente, lançando água pelas janelas abertas, espirrando-a em

adultos desavisados que andavam pela calçada do conjunto,

jogando-a pelas janelas de carros que passavam. Ninguém ousa-

va detê-Ias. Eram crianças anônimas, e sua identidade era uma

incógnita. O que aconteceria se você as repreendesse ou as fi-

zesse parar? Quem o apoiaria naquele Terri tór io cego? Ou, ao

contrário, quem se voltaria contra você? Melhor não se envolver.

Ruas impessoais geram pessoas anônimas, e não se trata da qua-

l idade estét ica nem de um efeito emocional místico no campo da

arquitetura. Trata-se do tipo de empreendimento palpável que as

calçadas possuem e, portanto, de como aspessoas utilizam as cal-

çadas na vida diária, cotidiana.

 t-A vida pública informal das calçadas está diretamente rela-

c ionada com outras modalidades da vida pública, as quais i lus-

trarei com um exemplo, embora a variedade seja infinita.

Planejadores e até alguns assistentes socia is costumam en-

tender que as modalidades formais de associações numa cidade

derivam direta e consensualmente de convocações de encontros,

da disponibilidade de locais de encontro e da existência de ques-

tões de interesse público óbvio. Talvez isso aconteça em subúr-

bios e cidades de pequeno porte, mas não nas cidades grandes.

-- -, As associações públicas formais em cidades requerem uma

vida pública informal subjacente, interpondo-se entre elas e a

privacidade da população urbana. Podemos ter uma idéia do que

ocorre comparando, mais uma vez, uma região urbana que pos-

sua vida nas calçadas com uma região que não a tenha, com base

no parecer de um pesquisador social de uma associação comuni-

tária que estava estudando questões relativas a escolas públicas

numa área da cidade de Nova York:

o Sr. W - [diretor de uma escola primária] foi indagado sobre o

efeito das J - Houses na escola e o despe jo da comunidade viz inha

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6 2 M OR TE E V I DA D E G R AN D ES CID ADE S

A NAT U R EZ A P E CU LIAR DA S CIDADES 63

r ~

à escola. Ele acha que foram vár ias as conseqüências e que a maio-

ria delas era negativa. Ele mencionou o fato de o conjunto habi ta-

cional ter demolido numerosas insti tuições de socialização. O am-

~~

biente vigente no conjunto não se comparava com a alegr ia nas

ruas existente antes de sua const rução. Ele observou que, no geral,

parecia haver menos pessoas nas ruas por causa da menor quantidade

de locais para reunião. Sustentou ainda que, antes da construção do

conjunto, aAssociação de Pais era muito ativa e agora poucos mem-

bros atuavam.

nas, todo o mundo sabe davida de todo o mundo. Na cidade gran-

de, nem todos sabem, a não ser aqueles que você escolhe para

revelar segredos. Essa é uma característica das cidades grandes

preciosa para a maioria da população, se ja ela de renda alta ou de

renda baixa, seja ela branca ou negra, seja ela de moradores anti-

gos ou novos, e se trata de uma das dádivas da vida nas grandes

cidades mais intensamente apreciadas e zelosamente preservadas.

A literatura sobre a arquitetura e planejamento urbano aborda

a privacidade como uma questão de janelas , vistas, ângulos de

visão. A idéia é que, se ninguém consegue enxergar pelo lado de

fora o lugar em que você vive ... você tem privacidade. É sim-

plis ta demais. A privacidade por meio de janelas é a coisa mais

fácil de conseguir no mundo. Basta fechar as cortinas ou ajustar

a persiana. No entanto, a privacidade de revelar assuntos parti-

culares a pessoas escolhidas e a privacidade de ter razoável con-

trole sobre quem pode usar do seu tempo e quando fazê-lo são

coisas raras na maior parte do mundo e não têm relação alguma

com a disposição das janelas.

A antropóloga Elena Padilla, autora de

Upfrom Puerto Rico

[Direto de Porto Rico], que descreve a vida dos porto-riquenhos

num distri to pobre e depauperado de Nova York, conta quanto

cada pessoa sabe da outra - em quem se deve ou não confiar,

quem desafia a lei e quem a cumpre, quem é capaz e bem infor-

mado e quem é inepto e ignorante - e como a vida pública nas

calçadas e seus estabelecimentos revelam essas coisas. São as-

suntos públicos. Mas a autora também fala arespeito da escolha

das pessoas que podem aparecer na cozinha de casa para beber

um café, da força desses laços e do número limitado de verda-

deiros confidentes das pessoas, aqueles que partilham sua vida e

seus assuntos pessoais. Ela afirma que não se considera digno

que todos saibam da vida de outra pessoa. Nem se considera

digno bisbilhotar os outros para além da imagem apresentada

em público. Isso viola a privacidade e os dire itos individuais.

Nesse aspecto, as pessoas que ela descreve são essencialmente

as mesmas pessoas da rua misturada, americanizada em que mo-

ro, e essencialmente as mesmas pessoas que vivem em aparta-

.mentos de alta renda e em belas residências.

o

Sr. W- errou num aspecto. Não havia menos lugares (nem

menos espaço, sob quaisquer parâmetros) para as pessoas se reu-

nirem no conjunto, se computarmos os locais propositadamente

projetados para uma socialização construtiva. Claro que não ha-

via bares, confeitarias, botequins e restaurantes no conjunto. Mas

o conjunto em questão possuía salas de reunião, salas de traba-

lhos manuais, ar te e jogos, bancos ao ar l ivre, esplanadas etc. ,

sufic ientes para alegrar o espíri to até mesmo dos defensores da

Cidade-Jardim.

Por que esses locais se tomam mortos e improdutivos e sem

iniciativas e investimentos mais firmes para atrair freqüentado-

res e depois manter controle sobre eles? Quais serviços a calça-

da pública e seus estabelecimentos proporcionam que esses lo-

cais de reunião planejados não conseguem proporcionar? E por

quê? Como a vida pública informal da calçada impulsiona uma

vida pública mais formal e associativa?

Para compreender tais questões - para compreender a dife-

rença entre beber refrigerante na porta de casa e beber refrige-

rante na sala de jogos e a diferença entre receber um conselho do

merceeiro ou do balconista do bar e receber um conselho tanto

do vizinho mais próximo quanto de um representante oficial que

pode ser unha e carne com o locador ofic ial-, devemos analisar

a questão da privacidade urbana.

A privacidade na zona urbana é preciosa. É indispensável.

Talvez seja preciosa e indispensável em todos os lugares, mas na

maioria deles não se consegue obtê-Ia. Em coletividades peque-

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64 MORTE E VIDA DE GRANDES CIDADES A NATU REZA PECU LIAR DAS CIDADES 65

Uma boa vizinhança urbana consegue um equilíbr io e tanto

entre a determinação das pessoas de ter um mínimo de privaci-

dade e seu desejo concomitante de poder variar os graus de con-

tato, prazer e auxílio mantidos com as pessoas que as rodeiam.

Esse equilíbrio é em grande parte constituído de pequenos deta-

lhes mánejados com sensibilidade e aceitos e praticados de

maneira tão informal que normalmente nem são percebidos.

Talvez eu consiga explicar melhor esse equilíbrio sutil mas de

suma importância com o exemplo dos estabelecimentos onde as

pessoas deixam as chaves para amigos, um costume comum em

Nova York. Conosco, por exemplo, quando um amigo quer usar

nossa casa enquanto estamos fora, no fim de semana, ou quando

todos estão fora durante o dia, ou um visi tante que não podemos

esperar vai passar a noite, dizemos a esse amigo que pegue as

chaves na confei taria do outro lado da rua. Joe Cornacchia, o

dono da confeitaria, geralmente guarda consigo umas doze cha-

ves para entregar. Possui uma gaveta exclusiva para elas.

Agora, por que será que eu e muitos out ros escolhemos Joe

como guardador natural de chaves? Primeiro, porque achamos

que ele é responsável, mas - igualmente importante -, porque

sabemos que ele consegue conciliar a boa vontade com o não-

envolvimento nos assuntos pessoais alheios . Para Joe, não é da

conta dele saber a quem emprestamos nossa casa e por que o

fazemos.

Do outro lado do nosso quarte irão , as pessoas deixam as cha-

ves na mercearia de um espanhol. Do outro lado do quarteirão

do Joe, as pessoas as deixam na doceria. Uma quadra abaixo,

deixam-nas na cafeteria, e dobrando a esquina, a uns trezentos

metros, na barbearia. No Upper East Side, virando a esquina

depois de duas quadras de sobrados e apartamentos elegantes, as

pessoas deixam as chaves no açougue e na livrar ia; uma esquina

depois, numa lavanderia e numa farmácia. No pobre East Har-

lem, as chaves são deixadas com pelo menos um florista, em pa-

darias, lanchonetes e mercearias de espanhóis e italianos.

Seja onde for que fiquem as chaves, o importante não é o tipo

de serviço que esses estabelecimentos prestam, mas o tipo de pro-

prietário que possuem.

Um serviço como esse não pode ser formalizado. Identifica-

ção. .. perguntas . .. seguro contra imprevistos. O limite funda-

mental entre o serviço público e a privacidade seria desrespeita-

do com a formalização. Ninguém em sã consciência deixaria sua

chave num lugar desses. O serviço deve ser prestado como um fa-

vor por alguém que possui uma compreensão inabalável da dife-

rença entre a chave de uma pessoa e a vida part icular dessa pes-

soa, ou nem adianta ser prestado.

Vejamos, também, o limite traçado pelo Sr. Jaffe na doceria ,

dobrando a esquina - um limite tão bem assimilado por seus fre-

gueses e por outros comerciantes , que eles podem conviver com

tal limite a vida inteira sem pensar nele conscientemente. Numa

manhã como outra qualquer do inverno passado, o Sr. Jaffe , que

é tratado por Bernie, e sua mulher, chamada Ann, acompanha-

ram atentos as crianças atravessando a esquina a caminho da Es-

cola Primária 41, como Bernie sempre faz, porque acha necessá-

rio; emprestou um guarda-chuva a um freguês e um dólar a ou-

tro; aceitou ficar com duas chaves; guardou pacotes que seriam

entregues aos moradores do prédio vizinho, que estavam fora;

passou um sermão em dois adolescentes que pediram cigarros;

deu indicações de ruas; aceitou ficar com um relógio para entre-

gar ao relojoeiro quando ele abrisse, mais tarde; deu informação

a uma pessoa sobre o preço dos aluguéis no bairro; ouviu uma

história de problemas domésticos e deu apoio; disse a uns arrua-

ceiros que não poderiam entrar senão se comportassem e depois

explicou o que significa bom comportamento (e o obteve); pro-

moveu um debate casual de meia dúzia de reuniões entre fregue-

ses que foram comprar miudezas; separou alguns jornais e revis-

tas recém-chegados para fregueses constantes que precisam de-

les; aconselhou uma mãe que fora comprar um presente de ani-

versário a não levar o navio de montar porque outra criança que

iaà mesma festa já daria isso; e conseguiu umjorna1 do dia ante-

r ior (este foi para mim), em meio aos exemplares devolvidos,

quando o distribuidor passou na mercearia.

Depois de refletir sobre essa multiplicidade de serviços não-

comerciais, perguntei a Bernie: Você apresenta seus fregueses

uns aos outros?

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66 MORTE E VID A DE G RANDE S CIDADES

A N AT UR EZ A P EC ULIA R D AS C ID AD ES 67

Ele pareceu ficar espantado, até assombrado.  Não , disse,

pensativo.  Isso não seria apropriado. Às vezes, se sei que dois

fregueses que estão aqui ao mesmo tempo têm interesses em co-

mum, puxo o assunto e deixo que eles decidam se o levam adian-

te. Não, eu não os apresentaria.

Quando contei isso a uma conhecida minha do subúrbio, ela

logo concluiu que o Sr. Jaffe achava que fazer a apresentação

significaria dar um passo além de sua classe social. Nada disso.

No nosso bairro, loj is tas como os Jaffes desfrutam uma posição

social excelente, a de comerciantes. Quanto

à

renda familiar,

eles conseguem igualar-se à média dos fregueses e, quanto à in-

dependência, estão bem acima. O conselho deles, como homem

e mulher de bom senso e experiência, é procurado e respeitado.

São bem conhecidos mais como indivíduos do que como repre-

sentantes de uma classe. Não. Trata-se daquele limite bem traça-

do, imposto quase inconscientemente, o limite entre o mundo

urbano público e o mundo privado.

~ Esse limite pode ser mantido, sem que ninguém estranhe,

,,.d

pela grande variedade de oporturiidades para contato público nos

negócios instalados ao longo das calçadas ou nas próprias calça-

das, já que as pessoas semovimentam para lá e para cá ou param

quando sentem vontade, e também pela presença de muitos anfi-

triões públicos, por assim dizer , os proprietár ios de locais de en-

contro, como o de Bernie, onde se tem a liberdade de ficar mais

tempo ou de entrar e sair rápido, sem amarras.

Com um relacionamento assim, é possível conhecer na vizi-

nhança todo tipo de pessoa sem estabelecer laços indesejados,

sem haver chateação, necessidade de desculpas, explicações, re-

ceio de ofender, constrangimentos com imposições ou compro-

missos e toda a parafernália de obrigações dessa espécie que

vem junto com os relacionamentos menos restri tos .

É

possível

conviver bem nas calçadas com pessoas que são bastante dife-

rentes entre si e, com o passar do tempo, é possível a té a convi-

vência pública familiar com elas. Tais relacionamentos podem

durar, e duram, anos a fio , décadas; nunca poderiam ter-se for-

mado sem aquele limite, muito menos ser prolongados. Formam-

se exatamente porque estão ao alcance das pessoas em suas saí-

das costumeiras.

- :;7 Compartilhar é um termo legitimamente aversivo para um

velho ideal da teoria do planejamento urbano. Esse ideal é o de

que, se há algo a dividir entre as pessoas, deve-se dividir a inda

mais ..QJ:Qmpauilhar, aparentemente um recurso espiritual dos

novos subúrbios, tem um efeito dest rutivo nas cidades. A exi-

gência de partilhar mais afasta os moradores das cidades.

Quando uma área da cidade carece de vida nas calçadas, os

moradores desse lugar precisam ampliar sua vida privada se qui-

serem manter com seus vizinhos um contato equivalente. Devem

decidir-se por alguma forma de compartilhar, pela qual se divida

mais do que na vida das calçadas, ou então decidir-se pela fa lta

de contato. O resultado é inevitavelmente ou um ou outro; tem

de ser assim, e ambos têm conseqüências penosas.

Quanto ao primeiro resultado, em que separtilha mais, aspes-

soas tornam-se excessivamente exigentes em relação a quem são

seus vizinhos ou com quem eles se relacionam. Elas precisam

tornar-se exigentes . Uma amiga minha, Penny Kostr itsky, que

mora numa rua de Baltimore, encontra-se nesse dilema, com re-

lutância e a contragosto . A rua onde vive, que não tem nada além

deresidências e está em meio a uma área que não tem nada além de

residências, ganhou em caráter experimental um simpático calça-

dão arborizado. A calçada foi ampliada e recebeu um bonito pa-

vimento; os veículos passaram a evitar a rua estreita; plantaram-se

árvores e flores e pretende-se colocar lá uma escultura. Todas são

idéias esplêndidas, mas não passam disso.

Todavia, não há estabelecimentos comerciais. As mães que

moram em quadras próximas e saem com seus filhos pequenos

vão aí para manter algum contato com outras pessoas. Elas obri-

gatoriamente entram na casa de conhecidos na rua para se aque-

cer no inverno, telefonar, levar as crianças necessi tadas ao ba-

nheiro . As donas das casas oferecem-lhes café , pois não há onde

comprar um café, e surgiu naturalmente à volta do calçadão uma

vida social considerável desse tipo. Partilha-se muito.

fi

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68

M O RT E E V ID A D E G R AN DES CID ADE S

A N A TU R E ZA P EC U L IA R D A S C I DA D ES 69

Penny Kostr itsky, que mora numa das casas com boa locali-

zação e tem duas crianças pequenas, está mergulhada nessa vida

social próxima e casual.  Perdi a vantagem de morar na cidade ,

conta ela,  sem usufruir as vantagens de morar num subúrbio.

Mais penoso que isso, quando mães de renda familiar, raça ou

escolar idade diferentes trazem os filhos para o calçadão, elas e

as crianças são discriminadas com rudeza. Não se enquadram

direi to no modo suburbano de convivência na vida privada que

nasceu da falta de vida urbana nas calçadas. Propositadamente,

o calçadão não tem bancos; o pessoal que defende o comparti-

lhar desis tiu deles porque poderiam ser interpretados como um

convite para pessoas que não se enquadram.

,'X'Poderíamos pelo menos ter algumas lojas na rua , lamenta-

se Penny Kostritsky.  Pelo menos uma mercearia ou uma farmá-

cia ou um barzinho. Daí os telefonemas e as visi tas de inverno e

os encontros poderiam ocorrer naturalmente em públ ico, e as

pessoas agiriam com mais decência com as outras porque todas

teriam o direito de estar lá.

Quase a mesma coisa que ocorre nesse calçadão sem vida pú-

blica urbana acontece às vezes em conjuntos e núcleos residen-

ciais de classe média, como, por exemplo, a Chatham Village, de

Pittsburgh, famoso modelo do conceito de Cidade-Jardim.

As casas aí são reunidas em núcleos em torno de gramados e

áreas de recreação centrais, e todo o empreendimento possui

ou-

tras instalações para uma convivência próxima, como um clube

de moradores que promove festas , bailes, reuniões, atividades

femininas coletivas, como jogo de bridge e bordado, e realiza

ainda bailes 'e festas infantis. Aí não existe vida pública em ne-

nhuma das acepções urbanas. Há graus variados de uma vida

privada ampliada.

O sucesso da Chatham Village como bairro modelo , onde

se compartilha muito, exigiu que os moradores tivessem padrão

de vida, interesses e formação parecidos. São, na maioria, pro-

f issionais de classe média e suas famílias '. Isso obrigou os mo-

radores a se instalarem bem longe das pessoas diferentes que ha-

bitam a cidade ao redor; essas pessoas são, na maioria, também

de classe média, mas classe média baixa , e isso é uma diferença

e tanto segundo o nível de camaradagem que a boa vizinhança

da Chatham Village impõe.

O inevitável isolamento (e homogeneidade) da Chatham Villa-

ge tem conseqüências práticas . Para citar um exemplo, o colé-

gio secundário que atende a região tem problemas, como todas

as escolas. A Chatham Village é suficientemente grande para ser

majori tár ia na escola primária que suas crianças freqüentam e,

portanto, para ajudar a solucionar seus problemas. No entanto,

com relação à escola secundária, os moradores da Chatham

Village precisam relacionar-se com bairros inteiramente dife-

rentes. Mas não existe relacionamento público, nem confiança

pública informal, nem relacionamento com as pessoas certas -

e também não há a prática ou a desenvol tura de lançar mão dos

recursos mais banais da vida pública urbana num nível mínimo.

Sentindo-se impotentes, como sem dúvida são, algumas famí-

lias da Chatham Village mudam-se quando os filhos chegam à

idade da escola secundária; outras dão um jeito de mandá-los

para colégios particulares. Ironicamente, esses mesmos bairros ~ / ,---

ilhados como Chatham Village é que são incentivados pelo

urbanismo ortodoxo nos locais específ icos em que as cidades

necessitam do talento e da atuação estabilizadora da classe

média. Essas qualidades - presume-se - devem ser assimiladas

por osmose.

e

As pessoas que não se enquadram de boa vontade em tais

núcleos acabam indo embora, e com o tempo os corretores tor-

nam-se mais exigentes na escolha dos pretendentes que se en-

quadram. Junto com as semelhanças básicas de padrão de vida,

valores e formação, esse esquema parece exigir uma enorme dose

de paciência e tato.

Um planejamento residencial urbano que dependa de uma

classificação individual desse tipo e a cultive, para que exista re-

lacionamento entre vizinhos, em geral não funciona bem social-

mente; funciona, quando muito, de maneira restri ta , com pes-

soas de classe média alta auto-selec ionadas em seu meio.

Ape-

1. Neste exato momento, um núc leo representativo abriga, por exemplo, quatro advogados,

dois médicos, dois engenheiros, um dentista, um vendedor, um banqueiro, um executivo f er ro -

viário, um executivo de planejamento urbano. .

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70 MORTE E VID A DE GR ANDE S CIDADE S

A NAT U REZ A PECULIAR D AS CID ADES 71

nas soluciona problemas simples de uma população dócil. Até

onde pude averiguar, no entanto, não funciona, mesmo em seus

próprios termos, com nenhum outro tipo depopulação.

O resultado mais comum nas cidades, onde aspessoas sevêem

diante da opção de comparti lhar muito ou nada, é o nada. Em

lugares da cidade que careçam de uma vida pública natural e in-

formal, é comum os moradores manterem em relação aos outros

um isolamento extraordinário. Se o mero contato com os vizi-

nhos implica que você se envolva na vida deles, ou eles na sua, e

se você não puder selecionar seus vizinhos como a classe média

alta costuma fazer, a única solução lógica que resta é evitar a

amizade ou o oferecimento de ajuda eventual. É melhor manter-

se bem afastado. O resultado disso na prática é que se deixam de

realizar as obrigações públicas comuns - como cuidar das crian-

ças -, nas quais as pessoas precisam ter um pouco de iniciat iva

pessoal, ou aquelas em que é preciso associar-se por um propó-

sito comum. O fosso que essa si tuação abre atinge proporções

incríveis.

Por exemplo, num conjunto residencial de Nova York projeta-

do, como todo projeto habitacional ortodoxo, para compartilhar

ou tudo ou nada, uma mulher muito comunicativa gabava-se de

ter conhecido, por iniciat iva própria, todas as mães de cada uma

das noventa famílias de seu prédio. Telefonava para elas. Segu-

rava todas elas para conversar, na porta ou no saguão. Para puxar

assunto, bastava estar sentada no mesmo banco.

Um dia, o filho dela de oito anos ficou preso no elevador e

não foi acudido por mais de duas horas, apesar de ter gritado, cho-

rado e esmurrado a porta. No dia seguinte, a mãe contou, abis-

mada, a uma de suas noventa conhecidas. Ah, era seu filho? ,

disse a outra mulher.  Eu não sabia de quem ele era fi lho. Se eu

soubesse que era seu filho, eu o teria socorrido.

Essa senhora, que não se comportava desse modo insensível e

insensato na via pública tradicional - à qual, aliás, ela costumava

retomar para sua vida pública -, t inha receio de um possível en-

volvimento que não fosse fácil de restringir à esfera pública.

Há dezenas de exemplos desse tipo nos lugares em que a op-

ção é compartilhar ou tudo ou nada. A assistente social Ellen

Lurie fez um relatório amplo e detalhado sobre a vida num con-

junto habitacional de baixa renda do East Harlem, que diz o

seguinte:

É (...) extremamente importante reconhecer que, por motivos

consideravelmente complexos, muitos adultos não querem se en-

volver em nenhum relacionamento de amizade com os vizinhos ou,

se tiverem de se render

à

necessidade de algum tipo de vida social,

l imi tam-se a um ou dois amigos, a não mais do que isso. As mulhe-

res repetem vezes sem conta a advertência dos maridos:

 Não devo me tomar muito amiga de ninguém. Meu marido

não confia em amizades.

As pessoas são muito fofoqueiras, e podem nos meter num

monte de encrencas. 

É

melhor cada um cuidar da sua vida.

Uma das mulheres, Sra. Abraham, sempre sai pela por ta dos

fundos do prédio porque não quer contato com as pessoas que

ficam na parte da frente. E também um homem, Sr. Colan (... ), não

permite que sua mulher faça amizades no prédio, por não confiar

nas pessoas que lá residem. Eles não deixam que seus quatro filhos,

de 8 a 14 anos, desçam sozinhos, receosos de que alguém os ma-

chuque', A conseqüência disso é que várias famí lias colocam todo

tipo de barreira para garantir a segurança pessoal. Elas mantêm os

filhos dentro do apartamento para protegê-los de uma viz inhança

que desconhecem. Para proteger-se, fazem poucas amizades, quan-

do fazem. Alguns têm medo de que os amigos fiquem zangados ou

invejosos e inventem um caso para contar à administradora, trazen-

do-lhes problemas. Se o marido consegue uma bonificação (que ele

decide não contar a ninguém) e a mulher compra cortinas novas, as

visitas podem contar à administradora, que, por sua vez, investiga e

lança um aumento de aluguel. A desconfiança e o temor de proble-

mas geralmente adquirem mais importância que qualquer necessi-

dade de aconselhamento ou ajuda dos vizinhos. Para essas famílias,

o significado de privacidade já foi bastante deturpado. Os maiores

segredos, todas as confidências familiares, são bem conhecidos não

só da administradora, mas geralmente também dos órgãos públicos,

como o Departamento de Bem-Estar Social. Para preservar o que

2 . Isso

é

m u it o c om u m e m c on ju n to s h ab it a ci ona is de N ov aYo r k .

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7 2 M O RT E E V I DA D E G R AN D ES CIDADES

A N AT U RE ZA P EC U LI AR D AS C ID AD ES 7 3

normal. Já é dificil as pessoas perceberem o que está acontecen-

do. Tudo isso torna o mais simples retorno social excessivo para

essas pessoas. 

Ao se verem diante da alternativa de partilhar ou mui to ou

nada, os habitantes de zonas residenciais urbanas não-planeja-

das sem comércio e sem vida nas calçadas parecem às vezes pas-

sar por processo idêntico ao dos moradores de conjuntos habita-

cionais. Assim, os pesquisadores que saíram à caça dos segredos

da estrutura social de um dist ri to apagado e desvi talizado de

Detroit chegaram à conclusão de que não havia estru tura social

alguma.

resta de privacidade, as famílias preferem evitar relacionamentos

próximos. Esse mesmo fenômeno pode ser percebido, em grau bem

menor, em cortiços, porque também neles se torna necessário , por

outras razões, criar formas de autoproteção. Todavia, é sem dúvida

verdade que esse afastamento da vida social é muito mais intenso

nos conjuntos habitacionais planejados. Até mesmo na Inglaterra,

essa desconfiança com relação aos vizinhos e o conseqüente isola-

mento foram relatados em estudos sobre cidades planejadas. Talvez

esse comportamento não seja senão um mecanismo grupal comple-

xo de proteção e preservação da dignidade pessoal diante de tantas

pressões externas para a adaptação.

A estrutura social da vida nas calçadas depende em parte do

que pode ser chamado de uma figura pública autonomeada. A fi-

gura.pública é aquela que tem contato freqüente com um amplo

círculo de pessoas e interesse em tornar-se uma figura pública.

Ela não precisa ter nenhum talento ou conhecimento especial

para desempenhar sua função, embora quase sempre os tenha.

Precisa apenas estar presente, e é necessário que possua um nú-

mero adequado de pares. Sua principal qualificação é ser públi-

ca, conversar com várias pessoas diferentes. É assim que se trans-

mitem as notícias que são do interesse das ruas.

A maioria das personagens de rua está estabelecida em locais

públicos. São pessoas que cuidam.de lojas ou de bares ou coisa

parecida. Essas são as figuras públicas fundamentais. Todas as

outras f iguras públicas das ruas dependem delas - a inda que in-

diretamente, pela existência de caminhos na calçada em direção

a esses empreendimentos e seus proprietários.

Os funcionários e os sacerdotes das associações comunitárias,

dois tipos mais formais de figuras públ icas, normalmente de-

pendem dos sistemas de transmissão de informações boca a boca

de rua, que têm ramificações nas lojas. O diretor de uma asso-

ciação comunitária do Lower East Side de Nova York, por exem-

plo, faz uma ronda regular pelos estabelecimentos comerciais. O

tintureiro que lhe lava os ternos revela a ele que há traficantes de

drogas no bairro. O merceeiro revela a ele que os Dragões estão

aprontando alguma e é preciso ficar atento. Na confeitaria, toma

No entanto, pode-se encontrar, ao lado do isolamento, um ní-

vel considerável de part ilha nesses lugares. A assistente Lurie

aborda esse tipo de relacionamento:

i

I I I

I

É

comum duas mulheres de prédios diferentes se encontrarem e

se reconhecerem na lavanderia. Ainda que anteriormente não te-

nham trocado uma palavra na Rua 99, nesse out ro local se tornam,

de repente, amigas de infância . Se uma delas já tem uma ou duas

amigas no prédio, a outra muito provavelmente será recebida nesse

cí rculo e começará a fazer amizades próprias, não com mulheres

moradoras de seu andar, mas no andar da amiga.

Essas amizades não se ampliam indefinidamente. Há certos tra-

jetos definidos dentro do conjunto, e depois de algum tempo não se

encontram mais pessoas diferentes.

Ellen Lurie, que faz um bem-sucedido trabalho de organiza-

ção comunitária no East Harlem, pesquisou a história das várias

tentativas antigas de reunir moradores de conjuntos habitacio-

nais. Ela me revelou que o partilhar é que dificulta esse tipo de

associação. Não faltam líderes natos nessas moradias , diz ela.

 Há nelas pessoas com muita capacidade, algumas delas maravi-

lhosas, mas o que ocorre normalmente é que, no processo de or-

ganização, os l íderes se conhecem, se envolvem na vida socia l

dos outros e acabam conversando apenas entre si. Eles não en-

contram seguidores. A tendência é limitar-se a grupos reduzidos,

como se fosse um processo natural. Não existe uma vida pública

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74 MO R TE E VI DA D E G RAND ES CID ADE S

A N AT U REZA P E CU L IAR D AS CI DADE S 75

conhecimento de que duas garotas estão insuflando os Esportis-

tas para uma briga de gangues. Um de seus pontos de informa-

ção mais importantes é a caixa de pão da Rua Rivington, que

não é util izada para essa finalidade. Fica diante de uma mercea-

ria, entre a associação comunitária, uma confeitaria e um pátio

com espelho d'água, e é usada para sentar ou se encostar. Um re-

cado dado ali para qualquer adolescente num perímetro de vá-

r ias quadras chega aos ouvidos dele infal ivelmente e com rapi -

dez surpreendente, e em sentido contrário, através das informa-

ções boca a boca, os recados também chegam rapidamente até a

caixa de pão.

Blake Hobbs, diretor da escola de música do Núcleo Comu-

nitário Union, no East Harlem, observa que, quando ele recebe

um primeiro aluno de uma quadra próxima da velha rua movi-

mentada, chegam logo depois pelo menos mais três ou quat ro

alunos e às vezes todas as crianças da quadra. Mas, quando se

trata de um aluno dos conjuntos habitacionais próximos - talvez

depois de indicações em conversas na escola pública ou no

play-

ground -, ele quase nunca consegue imediatamente outros alu-

nos. As notícias não correm nos locais onde faltam figuras pú-

blicas e vida nas calçadas.

Além das figuras públicas ancoradas na calçada e de outras

bem conhecidas que ficam circulando, é bem capaz de haver

muitas outras f iguras públicas mais diferenciadas numa rua ur-

bana. Curiosamente, algumas delas ajudam a criar uma identida-

de não só para elas mesmas, mas também para out ras. É o que

indica uma reportagem de São Francisco sobre a vida cotidiana

de um tenor aposentado em lugares públicos, como um restau-

rante ou uma quadra de bocha: Conta-se que por causa de sua

vivacidade, de seu jei to dramático e de seu eterno interesse pela

música, Meloni passa para seus vários amigos a sensação detam-

bém serem importantes.

É

exatamente isso.

Não é necessário ter a arte ou a personalidade de um homem

como esse para tornar-se uma figura diferenciada da rua, apenas

possuir alguma particularidade adequada. É fácil. Sou uma figu-

ra pública diferenciada de menor importância na minha rua, por

causa, é claro, da presença fundamental das figuras públicas

essenciais, ancoradas. A razão de eu ter-me tornado tal figura

deve-se ao fato de que o Greenwich Village, onde moro, travava

uma batalha horrenda interminável para evitar que seu principal

parque fosse cortado por uma via expressa. Durante essa luta,

sob o comando do organizador do comi tê que ficava do outro

lado do Greenwich Village, assumi a tarefa de deixar em lojas

dos quarteirões vizinhos à minha rua abaixo-assinados protes-

tando contra a via expressa proposta. Os fregueses assinavam os

documentos quando iam às lojas e eu passava periodicamente

para apanhá-los', A conseqüência do meu engajamento nesse

trabalho de mensageiro foi tornar-me automat icamente uma

figura pública com relação

à

estratégia do abaixo-assinado.

Logo depois, por exemplo, o Sr. Fox, da loja de bebidas, consul-

tou-me, enquanto embrulhava uma garrafa, sobre o que podería-

mos fazer para a prefei tura remover um monstrengo, há muito

abandonado e perigoso - um banheiro público fechado próximo

à esquina. Se eu me responsabilizasse pela redação da petição e

conseguisse entregá-Ia à prefeitura, propôs o Sr. Fox, ele e seus

sócios se encarregariam de imprimir cópias, distribuí-Ias e reco-

lhê-Ias. Não demorou para os estabelecimentos vizinhos recebe-

rem os abaixo-assinados para a remoção do banheiro público .

Atualmente, nossa rua tem vários peri tos públicos em táticas de

petição, inclusive crianças.

As figuras públicas não só espalham notícias e sabem as

notícias, por assim dizer, no v~; elas se relacionam e espa-

lham as novidades por atacado, de fato.

A vida na rua, tanto quanto eu possa perceber , não nasce de

um dom ou de um talento desconhecido deste ou daquele t ipo de

população. Só surge quando existem as oportunidades concre-

tas, tangíveis, de que necessi ta. Coincidentemente, são as mes-

mas oportunidades, com a mesma abundância e constância, ne-

cessárias para cultivar a segurança nas calçadas. Se elas não exis-

tirem, os contatos públicos nas ruas também não existirão.

3 . Esse rec ur so é , ali á s, bastante eficaz: rea liz a c om u m es forç o I nfim o o q ue ser ia u m trabalho

enorme por ta a p or ta . T a mbé m prov oca m a is c onvers as e a opin ião pú blic a d o q u e as v i s ita s de

por ta em por ta.

7 6 M O RT E E V ID A D E G R AN D ES CIDADES

/1

l/

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A N A TU R E ZA P E CU L I AR D A S C I DA D ES 7 7

Os ricos têm muito mais maneiras de satisfazer necessidades

do que os mais pobres, que dependem mais da vida nas ruas -

desde saber de empregos até serem reconhecidos pelo maftre do

restaurante. Mesmo assim, muitos dos ricos ou quase ricos das

cidades parecem apreciar a vida nas ruas tanto quanto qualquer

pessoa. Eles fazem de tudo, até pagar aluguéis fabulosos, para

mudar-se para locais com uma vida de rua exuberante e variada.

Eles até tomam o lugar das classes média e baixa em áreas ale-

gres, como Yorkville ou o Greenwich Village, em Nova York, ou

Telegraph Hill, vizinho da área de North Beach, em São Fran-

cisco. Depois de uma moda que dura no máximo duas décadas,

abandonam por capricho as ruas monótonas das áreas residen-

ciais tranqüilas , deixando-as para os menos afortunados. Basta

conversar com os moradores .de Georgetown, no Distrito de

Colúmbia, que na segunda ou terceira frase eles já estarão falan-

do entusiasmados dos restaurantes agradáveis - mais restau-

rantes bons que em qualquer parte da cidade -, a singularidade

e o bom atendimento do comércio, o prazer de encontrar pessoas

quando se sai para dar uma volta - tudo não passa de orgulho

pelo fato de Georgetown ter-se tornado um distri to exclusivo de

compras em toda a área metropolitana . Falta a inda descobrir a

parte da cidade - rica ou pobre ou meio-termo - que seja preju-

dicada por tal vivacidade instigante e tal profusão de contatos

nas ruas.

 - . A efic iência das figuras públicas diminui drasticamente se a

pressão sobre elas for muito grande. Uma loja, por exemplo,

pode sofrer uma reviravolta em seus contatos, ou contatos poten-

cia is, que se tornam tão amplos e superficiais, que ela própria

perde sua utilidade social. Um exemplo disso é a doceria e banca

de jornais da cooperativa habitacional de Corlears Hook, no

Lower East Side de Nova York. Essa loja planejada do condomí-

nio tomou o lugar de pelo menos quarenta estabelecimentos

mais ou menos parecidos, que foram demolidos no local e em

áreas adjacentes (sem que os proprietários fossem indenizados).

O lugar parece uma fábrica. Os balconistas ficam tão preocupa-

dos em largar o serviço e gritar ameaças inócuas para os desor-

deiros , que não ouvem nada, exceto Quero isto . Um desinte-

resse profundo como esse é o clima que predomina nos lugares

em que um cent ro comercial planejado ou um zoneamento re-

pressivo inventam artif icialmente monopólios comerciais nos

bairros . Um estabelecimento como aquele seria um fracasso se

tivesse concorrência . Ao mesmo tempo, embora o monopólio

lhe garanta o sucesso financeiro previsto, socialmente ele não

atende à cidade.

O contato público e a segurança nas ruas, juntos, têm relação

direta com o mais grave problema social do nosso país: segrega-

ção e discriminação racial.

Não estou dizendo que o planejamento e o desenho de uma

cidade, ou seus tipos de ruas e de vida urbana, possam vencer

automaticamente a segregação e a discriminação. Várias outras

iniciativas são imprescindíveis para corrigir essas injustiças.

Todavia, af irmo, sim, que urbanizar ou reurbanizar metrópo-

les cujas ruas sejam inseguras e cuja população deva optar entre

partilhar muito ou não partilhar nada pode tornar muito mais di-

fiei para as cidades norte-americanas superar a discriminação,

sejam quais forem as iniciativas empreendidas.

Levando em consideração a intensidade do preconceito e do

medo que acompanham a discriminação e a encorajam, superar

a segregação espacial é também muito dificil se aspessoas se sen-

tem de algum modo inseguras nas ruas.

É

dificil superar a discri-

minação espacial onde as pessoas.não tenham como manter uma

vida pública civilizada sobre uma base pública fundamental-

mente digna e uma vida privada sobre uma base privada.

Sem dúvida podem ser executados aqui e ali planos-modelo

de integração habitacional em áreas da cidade prejudicadas pelo

perigo e pela falta de vida pública - executados mediante grande

empenho e a insti tuição de uma seleção incomum (nas cidades)

de novos vizinhos. Isso é uma fuga em relação

à

dimensão do

problema e à sua premência.

A tolerância, a oportunidade para aparecerem grandes dife-

renças entre vizinhos - diferenças que freqüentemente são mais

profundas do que as raciais -, as quais são possíveis e normais

numa vida intensamente urbana mas tão estranhas a subúrbios e

78

M O R TE E V I D A D E G R A N DE S C I DA D ES

A N A TU R E ZA P EC U L IA R D A S C I DA D ES

79

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pseudo-subúrbios, são possíveis e normais só quando as ruas das

grandes cidades dispõem de uma infra-estrutura que permita uma

convivência pacífica com estranhos, em condições civilizadas

mas fundamentalmente dignas e reservadas.

Aparentemente despretensiosos, despropositados e aleatórios,

os contatos nas ruas constituem a pequena mudança a partir da

qual pode florescer a vida pública exuberante da cidade.

Los Angeles é um exemplo extremo de metrópole com vida

pública escassa, que depende principalmente de uma natureza

social mais privada.

De um lado, por exemplo, uma conhecida minha de lá comen-

ta que, apesar de viver na cidade há dez anos e saber que há me-

xicanos entre os habitantes , e la nunca viu um mexicano ou uma

peça da cultura mexicana, e muito menos trocou uma palavra

com algum deles.

Por outro lado, Orson Welles escreveu que Hollywood é o

único centro de artes cênicas do mundo que não conseguiu abrir

um bistrô para o pessoal de artes cênicas.

E, em outro aspecto ainda, um dos mais influentes homens de

negócios de Los Angeles deparou com uma falha nas relações

públicas que seria inaceitável em outras cidades desse porte.

Esse executivo, dizendo espontaneamente que a cidade estava

 cultura lmente atrasada , como ele próprio se expressou, con-

tou-me que ao menos ele estava trabalhando para remediar isso.

Chefiava uma comissão de coleta de recursos para um museu de

arte de primeira classe. Mais adiante na conversa , depois de me

revelar como é a vida no clube dos homens de negócios de Los

Angeles, no qual e le despontava como um dos líderes , pergun-

tei-lhe como e em que local a população de Hollywood tinha en-

contros semelhantes. Ele não foi capaz de responder. Acres-

centou então que não conhecia ninguém ligado à indústria do

cinema nem sabia de ninguém que conhecesse. Sei que parece

estranho , argumentou. Estamos felizes de a indústria do cine-

ma estar aqui, mas os que pertencem a ela não são pessoas com

quem se tenha contato social. 

Aí aparece de novo o partilhar ou isolar-se. Imagine a des-

vantagem desse sujeito na tentativa de abrir um museu metropo-

litano de arte. Ele não tem como se aproximar com desembara-

ço, destreza ou confiança dos melhores contribuintes potenciais

de sua comissão.

Nos altos escalões econômicos, políticos e culturais, Los An-

geles obedece às mesmas premissas provincianas de isolamento

social que as ruas com o calçadão ajardinado de Baltimore ou da

Chatham Village de Pit tsburgh. Faltam a uma metrópole como

essa os meios para reunir as idéias necessárias, o entusiasmo ne-

cessário, o dinheiro necessário. Los Angeles lançou-se numa em-

preitada estranha: tentar administrar não apenas conjuntos habi-

tacionais, não apenas áreas apagadas, mas uma metrópole inteira

à força do ou parti lhar ou isolar-se. Entendo que essa seja uma

conseqüência inevitável nas grandes cidades cuja população ca-

reça de vida pública urbana na vida e no trabalho cotidianos.

\

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4 OS USOS DAS CALÇADAS:

INTEGRANDO AS CRIANÇAS

/

Entre as superstições do planejamento urbano e do planejamen-

to habitacional existe uma fantasia sobre a transformação das

crianças. Ela é assim: a população infantil é condenada a brincar

nas ruas. Essas crianças pálidas e raquít icas, num ambiente mo-

ral funesto, contam umas às outras mentiras sobre sexo, abafan-

do o riso maldoso e aprendendo novas formas de degradação de

modo tão eficiente como se estivessem num reformatório. Essa

situação é chamada de preço moral e físico pago por nossas

crianças nas ruas , às vezes denominada apenas sarjeta .

Pudera essas crianças carentes serem retiradas das ruas e co-

locadas em playgrounds, com equipamentos para se exercitar,

espaço para correr, gramados para lhes encantar a alma Lugares

l impos e alegres, cheios de risos de crianças correspondendo a

um ambiente saudável.

É

demais para uma fantasia.

Vejamos uma história real, registrada por Charles Guggenheim, .

documentaris ta de St. Louis . Guggenheim estava fazendo um

filme a respeito das atividades numa creche de período integral

em St. Louis . Ele observou que no final da tarde quase a metade

das crianças ia embora com muita relutância.

Guggenheim ficou tão curioso, que decidiu investigar. Sem

exceção, as crianças que iam embora a contragosto vinham de um

conjunto habitacional próximo. E, também sem exceção, todas

A NATUREZA PECULIAR DAS CIDADES 83

2 MORTE EVIDA DE GRANDES CIDADES

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o

primeiro tumulto ocorreu por volta do meio-dia, quando os

Esportistas invadiram o território dos Garotos da Rua Forsyth, no

Parque Sara Delano Rooseve lt ' ( . .. ). De tarde, os Garotos da Rua

as que saíam de boa vontade vinham dos cortiços antigos de ruas

próximas. O mistério, concluiu Guggenheim, era simples . Ao

voltar para o conjunto habitacional, com seus generosos grama-

dos e playgrounds, as crianças passavam por um corredor polo-

nês formado por valentões, que as faziam esvaziar os bolsos ou

então as espancavam, às vezes ambas as coisas . Essas crianças

pequenas não conseguiam voltar para casa todos os dias sem

sofrer essa provação aterrorizante. Guggenheim descobriu que

as crianças que voltavam para as ruas tradicionais não corriam o

risco de extorsão. Elas t inham uma quantidade enorme de ruas

para escolher e, espertas, escolhiam as mais seguras. Se alguém

implicasse com elas, havia sempre um comerciante a quem po-

diam recorrer ou alguém que as ajudasse , relata Guggenheim.

 Tinham também várias rotas de fuga, caso alguém tentasse em-

boscá-Ias. Esses garotinhos sentiam-se seguros e cheios de si e

gostavam de voltar para casa.  Guggenheim notou que o terreno

ajardinado e o

playground

do conjunto habitacional eram extre-

mamente desinteressantes; pareciam sempre desertos, em com-

paração com as ruas tradicionais da vizinhança, cheias de coisas

interessantes, diversidade e elementos tanto para a máquina fo-

tográfica quanto para a imaginação.

Vejamos outra his tória real , uma guerra de gangues juvenis

durante o verão de 1959, em Nova York, que culminou com a

morte de uma garota de quinze anos que não tinha relação algu-

ma com a briga, e estava apenas no espaço do conjunto habita-

cional onde morava. Os acontecimentos que levaram à tragédia

desse dia e o palco onde ocorreram foram descri tos da seguinte

maneira pelo New YorkPost, mais tarde, durante o julgamento:

Forsyth decidiram utilizar suas armas mais poderosas, uma espin-

garda e bombas de gasolina ( ... ) . Em meio à batalha, também no

Parque Sara Delano Roosevelt ( ... ) um garoto de 14 anos da Rua

Forsyth foi morto a facadas , e dois outros meninos, um de 11anos,

ficaram gravemente feridos ( ... ) . Por volta das 9 horas da noite

[sete ou oito garotos da Rua Forsyth] apareceram de repente no

reduto dos Esportistas, perto do conjunto habitacional Lillian Wald,

e, da te rra de ninguém daAvenida D [limi te do te rreno do conjun-

to], lançaram as bombas de gasolina sobre o grupo, ao mesmo tem-

po que Cruz se agachava e disparava a espingarda.

1. A Rua Forsyth margeia o Parque SaraDelano Roosevelt , que ocupa várias quadras; o reveren-

do Jerry Oniki, pas to r de uma igrej a v iz inha , f oi cit ado pelo

N ew Y or k T i mes

com referência à

influên ci a d o p ar qu e s ob re as crianças:  No p ar qu e h á t o do t ip o d e i mo ra li da de q ue s e p ossa

imaginar.  Contudo, o próprio parque já havia recebido elogios de especialistas; ent re os exem-

p los u ti li zados num art igo de 1942 sobre o barão Haussmann, que reurbanizou Paris, escrito

p or R ob er t M os es , q ue r eu rb an iz ou N ov a Y or k, o r ec ém -c onstruIdo Parque Sara Delano

Roosevelt foi considerado um feito comparável à Rue de Rivoli de Paris

Onde ocorreram essas t rês batalhas? Num parque e numa

espécie de parque do conjunto habitacional. Após revoltas desse

tipo, um dos paliativos a que invariavelmente se recorre são mais

parques e playgrounds. Ficamos desnorteados pela força dos

símbolos.

As gangues de rua  travam suas brigas de rua principal-

mente em parques e

playgrounds.

Quando o

New YorkTimes,

em

setembro de 1959, fez uma retrospectiva das piores batalhas de

gangues juvenis durante a década na cidade, absolutamente to-

das ocorreram num parque. Além do mais, e cada vez com maior

freqüência, não só em Nova York como também em outras cida-

des, as crianças que participam desses horrores são identificadas

como moradoras dos conjuntos habitacionais das superquadras,

onde se conseguiu tirar das ruas as brincadeiras cotid ianas (as

próprias ruas foram eliminadas na maioria). A área de maior cri-

minalidade no Lower East Side de Nova York, onde ocorreu a

guerra de gangues descrita acima, é exatamente uma espécie de

parque existente nos conjuntos habitacionais. As duas gangues

mais famosas do Brook1ynestão enraizadas nos dois conjuntos mais

antigos. Ralph Whelan, diretor do Conselho Juvenil de Nova York,

revela, segundo o New YorkTimes,  um aumento constante nos ín-

dices de delinqüência  onde quer que se construa um novo con-

junto habitacional. A mais temida gangue de garotas de Filadélfia

nasceu no segundo mais antigo conjunto habitacional, e a r egião

de maior delinqüência coincide com a região dos maiores conjun-

tos habitacionais. Em St. Louis, o conjunto onde Guggenheim des-

VID A S CIDADES

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A N A T U RE Z A P E CU L IA R D A S C I DA D E S 8 5

cobriu a prática de extorsão é considerado relativamente seguro em

comparação com o maior conjunto da cidade - 230 mil metros qua-

drados ocupados na maioria por gramados, pontilhados de

play-

grounds

e despojados de ruas urbanas, o principal ninho de delin-

qüência daquela cidade'. Esses conjuntos habitacionais mostram,

entre outras coisas, a intenção de tirar as crianças das ruas. Esse

objetivo faz parte de sua concepção.

Os resultados decepcionantes não surpreendem. As mesmas

normas de segurança urbana e vida pública que servem para os

adultos servem para as crianças, a não ser pelo fato de que as

crianças são bem mais vulneráveis aoperigo e

à

violência que os

adultos.

Na vida real, que mudança significativa ocorre de fato se as

crianças são transferidas de uma rua cheia devida para osparques

oupara os playgrounds públicos ou de conjuntos habitacionais?

Na maioria dos casos (não em todos, fel izmente) , a mudança

mais significat iva é esta : as crianças saem de sob os olhos vigi-

lantes de uma grande quantidade de adultos para um lugar onde

a proporção de adultos é baixa ou inexistente. Achar que isso

representa um progresso em termos de educação infantil urbana

é pura ilusão.

As próprias crianças da cidade sabem disso, e há muitas ge-

rações. Quando queríamos fazer alguma coisa proibida, sempre

íamos ao Parque Lindy, porque lá não havia adultos para nos vi-

giar , diz Jesse Reichek, artista que cresceu no Brooklyn. A

maior parte do tempo brincávamos na rua, onde não conseguía-

mos driblar a vigilância.

A vida de hoje é igual. Meu filho , ao contar como escapou de

quatro garotos que tentaram bater nele, disse: Tive medo que eles

me pegassem ao atravessar o parquinho. Se eles me pegassem lá,

eu estaria ferrado

Poucos dias depois do assassinato de dois garotos de dezes-

seis anos num playground do West Side, na região central de

Manhattan, fiz uma visita melancólica ao local. As ruas vizinhas

tinham evidentemente voltado ao normal. Centenas de crianças,

sob a vigi lância dos olhos de inúmeros adultos, que também

usavam as calçadas ou estavam nas janelas, estavam entre tidas

numa variedade enorme de brincadeiras de rua e pega-pegas ba-

rulhentos . As calçadas eram sujas , estrei tas demais para o que se

exigia delas e careciam da sombra de árvores. Mas aí não se via

nenhum incêndio criminoso, nem violência contra pessoas, nem

a proliferação de armas perigosas. No parquinho onde ocorrera

o assassinato de noite, aparentemente tudo também voltara ao

normal. Três garotinhos estavam acendendo uma fogueira sob um

banco de madeira . Alguém batia a cabeça de outro garoto contra

o concreto. O zelador estava compenetrado em arriar do mastro,

solene e vagarosamente, a bandeira norte-americana.

Ao voltar para casa e passar pelo relativamente pacífico

play-

ground próximo do local onde moro, percebi que seus únicos

freqüentadores, no final da tarde, após a saída de todas as mães e

do zelador, eram dois meninos pequenos ameaçando golpear

com seus patins uma garotinha, e também um bêbado, que se ti-

nha recomposto para balançar a cabeça e resmungar que eles

não deviam fazer aquilo. Mais adiante na rua, num quarte irão

cheio de imigrantes porto-riquenhos, havia outra cena contras-

tante. Vinte e oito crianças de todas as idades brincavam na cal-

çada, e nada de violência, incêndios criminosos ou qualquer ocor-

rência mais séria que uma disputa por um saco de balas. Elas

estavam sob a vigilância ocasional de adultos que se encontra-

ram e conversavam na calçada. A vigilância era só aparentemen-

te ocasional, como ficou provado quando estourou a disputa

pelas balas, e a paz e a justiça foram restabelecidas. Os adultos

nem sempre eram os mesmos, porque outros apareciam nas ja-

nelas e outros passavam para lá e para cá, ou se detinham um

pouco. Mas a quantidade de adultos permaneceu praticamente

constante - entre oito e onze - durante a hora em que fiquei ob-

servando. Chegando a minha casa, notei que do nosso lado da

quadra, defronte do prédio de apartamentos, da alfaiatar ia, de

casa, da lavanderia, da pizzaria e da quitanda, doze crianças brin-

cavam na calçada sob as vistas de catorze adultos.

2. Este t ambém ganhou e logios de especialistas; fo i m ui to r everenciado nos clrculos habitacio-

nais e arqui tetõnicos ao ser construido. entre 1954 e 1956. e rece be u a mp la divulgação como

um esplêndido exemplo de planejamento habitacional.

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Sem dúvida, nem todas as calçadas têm essa espécie de vigi-

lância, e esse é um dos problemas urbanos que o planejamento

deveria ajudar a corrigir. Calçadas pouco usadas não oferecem

vigilância adequada para a e.ducação de crianças. E as calçadas

também não podem ser seguras, mesmo com olhos voltados para

elas, se tiverem uma vizinhança que troca de endereço constante

e rapidamente - outro problema premente do planejamento ur-

bano. Mas os playgrounds e os parques próximos dessas ruas são

ainda menos saudáveis.

Nem todos osplaygrounds e os parques são perigosos ou têm

vigilância insuficiente, como veremos no próximo capítulo. Po-

rém, os que são saudáveis normalmente se situam em vizinhan-

ças de ruas movimentadas e seguras e onde prevalece nas calça-

das um forte espír ito de vida pública civilizada. Sejam quais fo-

rem as diferenças de segurança e salubridade que existam entre

os playgrounds e as calçadas de qualquer local, elas invariavel-

mente favorecem as tão difamadas ruas.

As pessoas que têm a responsabilidade real , não teórica, de

criar crianças nas cidades sabem disso muito bem. Pode sair ,

dizem as mães nas cidades, mas fique na calçada . Eu mesma

digo isso a meus filhos. E com isso queremos dizer mais do que

 não vá para a rua porque lá há carros .

Ao descrever o resgate milagroso de um menino de nove anos

que foi empurrado para dentro de uma vala de esgoto por um

agressor não identificado - num parque, é claro -, o New York

Times relatou: A mãe dissera no mesmo dia aos garotos que não

brincassem no Parque High Bridge ( ... ). Depois, ela disse que

podiam. Os amigos do garoto, assustados, tiveram a presença

de espír ito de correr do parque e voltar para as ruas maléficas ,

onde conseguiram ajuda rapidamente.

Frank Havey, diretor da associação comunitária do North

End, em Boston, diz que os pais toda vez comentam esse proble-

ma com ele:  Dizemos aos nossos filhos que brinquem na calça-

da depois do jantar. Mas temos ouvido falar que as crianças não

devem brincar na rua. Será que estamos errados? Havey diz que

estão certos. Ele atribui boa parte dos baixos índices de crimina-

l idade do North End à excelente vigilância das pessoas sobre as

A N AT UR EZ A P EC ULIA R D AS C ID AD ES 8 7

6 M ORT E E V ID A D E G RA ND ES CID AD ES

crianças que estão brincando no lugar em que a comunidade se

faz mais presente - as calçadas.

Os planejadores da Cidade-Jardim, em seu ódio pelas ruas,

acharam que a solução para manter as crianças longe das ruas e

sob uma vigilância salutar ser ia construindo para elas pátios no

centro das superquadras. Essa conduta foi herdada pelos proje-

tistas da Cidade-Jardim Radieuse. Hoje, várias amplas áreas

reformadas estão sendo replanejadas segundo o princípio dos

parques encravados no meio dos quarteirões.

O problema desse arranjo, como se pode constatar nos exem-

plos existentes de Chatham Village, em Pittsburgh, e Baldwin

Hills Vil lage, em Los Angeles , e em núcleos menores com quin-

tais em Nova York e Baltimore, é que nenhuma criança com ini-

ciativa e perspicácia vai permanecer voluntariamente num lugar

tão ented iante depois dos seis anos de idade. A maioria, antes

ainda. Esses mundos para part ilhar protegidos servem e são

uti lizados na prática durante três ou quatro anos da vida de uma

criança pequena, em vários sentidos os mais fáceis de lidar com

elas. Nem mesmo os moradores adultos desses lugares querem

desempenhar o papel de crianças mais velhas nesses pátios pro-

tegidos. Na Chatham Village e na Baldwin Hills Village, isso é

expressamente proibido. Os pequerruchos são decorativos e re-

lativamente dóceis, mas as crianças mais velhas são barulhentas

e vigorosas e interferem no ambiente em vez de deixar que ele

mexa com elas. Quando o ambiente já é perfeito , isso não dá

certo . Além do mais, como se pode verificar em exemplos con-

cretos e em plantas de construção, esse tipo de planejamento

exige que os prédios estejam voltados para a parte de dentro do

pátio. Não fosse assim, a graça do pátio não seria aproveitada e

se perderia a facilidade de vigilância e acesso. Dessa forma, os

fundos dos prédios , quase sem uso, e, pior a inda, as paredes ce-

gas voltam-se para as ruas. A segurança das calçadas, que não

têm um fim específico, é substituída por uma forma de seguran-

ça específica para uma parcela específica da população, durante

um curto período de sua vida. Quando as crianças ousarem ir

mais longe, como se espera que façam e farão, elas estarão mal

servidas, como todas as outras pessoas.

8 8 M O RT E E V I DA D E G R AN D ES C ID AD ES

A N AT U RE Z A P EC U LI AR D AS C ID AD ES 8 9

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das crianças. Por exemplo, atualmente as redes municipais de edu-

cação têm em média de trinta a quarenta crianças por sala de aula

- às vezes mais -, e entre elas se encontram crianças com todo

tipo de problema, de desconhecimento do idioma a sérios dese-

quilíbrios emocionais. As escolas públicas necessitam de um au-

mento em tomo de 50por cento no número deprofessores para en-

frentar problemas graves e também precisam reduzir o tamanho

das turmas para proporcionar melhor ensino. Em 1959, os hos-

pita is municipais de Nova York tinham 58 por cento das vagas de

enfermagem não preenchidas, e em muitas outras cidades a falta

de enfermeiras tomou-se alarmante. As bibliotecas, e mais ainda

os museus, têm reduzido o período de funcionamento, principal-

mente o horário das seções destinadas a crianças. Faltam recursos

financeiros para o aumento imprescindível do número de institui-

ções comunitárias nos novos cortiços e nos novos conjuntos habi-

tacionais urbanos. Até mesmo as instituições existentes não dis-

põem de recursos para a expansão e a alteração necessárias em seus

programas, em poucas palavras, mais pessoal. Esse tipo de neces-

sidade deveria ter prioridade máxima nos recursos públicos e fi-

lantrópicos - não apenas nos recursos tristemente escassos dehoje,

mas em recursos substancialmente maiores.

As pessoas das cidades que têm outros trabalhos e afazeres e ,

além disso, não dispõem da formação necessária, não podem

aventurar-se como professores, enfermeiras, bibliotecários, guar-

das de museu ou assistentes sociais. Mas, como já o fazem nas

calçadas vivas e diversificadas, elas têm condições ao menos de

supervisionar a recreação informal das crianças e incorporá-Ias

à sociedade. Elas fazem isso enquanto se ocupam de suas outras

atividades.

Os urbanistas parecem não perceber quão grande é a quanti-

dade de adultos necessária para cuidar de crianças brincando.

Parecem também não entender que espaço e equipamentos não

cuidam de crianças. Estes podem ser complementos úteis, mas

só pessoas cuidam de crianças e as incorporam à sociedade

civilizada.

É uma insanidade urbanizar c idades de modo a desperdiçar

esse potencial humano de cuidar das crianças e deixar incomple-

Tenho insistido num aspecto negativo da criação das crianças

nas cidades: o da segurança - a segurança das crianças contra

sua própria perversidade, contra adultos perversos e contra ou-

tras crianças. Tenho insistido nisso porque minha intenção é de-

monstrar, por meio do problema de mais fácil compreensão, a

absoluta fal ta de sentido da fantasia de que os

playgrounds

e os

parques sejam locais naturalmente bons para as crianças e as ruas

sejam locais naturalmente maus para elas.

Porém, as calçadas movimentadas têm também aspectos po-

sit ivos para a diversão das crianças, e esses aspectos são no mí-

nimo tão importantes quanto a segurança e a proteção.

\

As crianças da cidade precisam deuma boa quantidade de lo-

cais onde possam brincar e aprender. Precisam, entre outras coi-

sas, de oportunidades para praticar todo tipo de esporte e exerci-

tar a destreza fisica - e oportunidades mais acessíveis do que

aquelas de que desfrutam na maior parte dos casos. Ao mesmo

tempo, no entanto, precisam de um local perto de casa, ao ar li-

vre, sem um fim específico, onde possam brincar, movimentar-

se e adquirir noções do mundo.

É essa espécie de recreação informal que as calçadas propi-

c iam, e as calçadas movimentadas da cidade têm ótimas condi-

ções de fazê-lo. Quando se transfere esse divertimento quase ca-

seiro para playgrounds e parques, ele não só é garantido com certo

risco como há também um esbanjamento de funcionários contra-

tados, equipamentos e espaço que poderiam ser mais bem empre-

gados na forma de novos rinques de patinação, pisc inas, lagos

com botes e diversas outras ativ idades específ icas ao ar l ivre. O

uso genérico e ruim da recreação consome recursos que poderiam

ser utilizados para uma recreação específica e saudável.

É uma enorme leviandade desprezar a presença normal de

adultos em calçadas cheias de vida e, ao contrário, apostar (idealis-

ticamente) na contratação de substitutos para ela. É uma levian-

dade não só doponto devista social como também econômico, por-

que as cidades sofrem de uma escassez drástica de dinheiro e de

pessoal para utilizar o espaço de maneira mais interessante que com

playgrounds - e de dinheiro e pessoal para outros aspectos da vida

90 M O R TE E V I D A D E G R A N DE S C I DA D ES

A N A TU R E ZA P E CU L I AR D A S C I DA D ES

9

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ta essa tarefa essencia l- com conseqüências terríveis - ou obri-

gar à contratação de substitutos. O mito de que os playgrounds e

os gramados e os guardas ou supervisores contra tados são ine-

rentemente benéficos para as crianças, enquanto as vias públicas,

cheias de pessoas comuns, são inerentemente nocivas, revela um

profundo desdém pelas pessoas comuns.

Na prática, é só com os adultos das calçadas que as crianças

aprendem - seé que chegam a aprender - o princípio fundamen-

tal de uma vida urbana próspera: as pessoas devem assumir um

pouquinho de responsabilidade pública pelas outras, mesmo que

não tenham relações com elas. Trata-se de uma l ição que nin-

guém aprende por lhe ensinarem. Aprende-se a partir da expe-

riência de outras pessoas sem laços de parentesco ou de amiza-

de íntima ou responsabilidade formal para com você, que assu-

mem um pouquinho da responsabilidade pública por você. Quan-

do o Sr. Lacey, o chavei ro, dá uma bronca num de meus filhos

que correu para a rua e mais tarde relata a desobediência a meu

marido quando ele passa pela loja, meu filho recebe mais que

uma lição clara sobre segurança e obediência. Recebe também,

indire tamente, a l ição de que o Sr. Lacey, com quem não temos

outras relações que não a de vizinhos, sente-se em certo sentido

responsável por ele. O garoto que ficou preso no elevador sem

ajuda no conjunto habitacional do partilhar ou isolar-se apren-

de lições diferentes com essa experiência. O mesmo acontece

com as crianças que espirram água para dentro das janelas das

casas e em transeuntes e não são repreendidas, porque são crian-

ças anônimas num local anônimo.

O ensinamento de que os moradores da cidade devem assu-

mir responsabilidade pelo que acontece nas ruas é dado conti-

nuamente a crianças que usufruem a vida pública nas calçadas.

Elas conseguem assimilá-lo surpreendentemente cedo. Mostram

que o assimilaram ao reconhecer que também fazem parte desse

processo. Elas dão indicações (antes de elas serem solicitadas) a

pessoas que estão perdidas; advertem um sujeito de que ele leva-

rá uma mul ta se estacionar o carro naquele lugar; sugerem es-

pontaneamente ao síndico do prédio que use sal grosso em vez

de talhadeira para part ir o gelo. A existência ou a ausência desse

}

~

t ipo de comportamento nas crianças da cidade é uma indicação

muito boa da existência ou da ausência do comportamento res-

ponsável de adultos em relação à calçada e às crianças que a uti-

lizam. As crianças imitam as atitudes dos adultos. E issonão tem

relação alguma com a renda familiar. Em certas áreas, das mais

pobres das cidades, as crianças demonstram que se faz por elas o

que há de melhor; em outras, o que há depior.

Trata-se de uma lição de urbanidade que as pessoas contrata-

das para cuidar de crianças não têm condições de ensinar, por-

que a essência dessa responsabilidade é que ela seja exercida

sem a necessidade de um contrato. Trata-se de um ensinamento

que ospais, por si sós, são incapazes de dar. Se os pais assumem

uma pequena responsabilidade por estranhos ou vizinhos numa

sociedade em que ninguém a assume, isso vem a significar que

esses pais são embaraçosamente diferentes e intrometidos, e não

que essa seja a conduta correta. Tal ensinamento deve emanar da

própria sociedade, e nas cidades, quando isso ocorre, é quase

sempre no período em que as crianças estão brincando esponta-

neamente nas calçadas.

A diversão em calçadas movimentadas e diversificadas dife-

re de praticamente todos os outros t ipos de lazer de que as crian-

ças norte-americanas dispõem hoje: é uma recreação que não se

encontra sob as rédeas do matriarcado.

Planejadores e projet istas são, em sua maioria , homens. Es-

tranhamente, eles criam projetos e planos que desconsideram os

homens como integrantes da vida diária e normal de onde quer

que haja moradias . Ao planejar a vida residencial , o objet ivo de-

les é satisfazer as pretensas necessidades cotidianas de donas de

casa ociosas e criancinhas em idade pré-escolar. Resumindo, eles

fazem projetos estritamente para sociedades matriarcais.

O ideal do matriarcado está inevi tavelmente presente em

todo planejamento urbano em que as residências estejam isola-

das dos outros aspectos da vida . Está presente em todo planeja-

mento para crianças em que a recreação informal esteja isolada

em seus próprios domínios. Qualquer sociedade adulta presente

na vida diária das crianças at ingidas por tal projeto tem de ser

9 2 M OR TE E V ID A D E G R AN DE S C ID AD ES

A N AT UR EZ A P EC UL IA R D AS C ID AD ES 9 3

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um matriarcado. A Chatham Village, aquele modelo de Pittsburgh

da vida na Cidade-Jardim, tem uma concepção e um funciona-

mento tão cabalmente matriarcais quanto a mais recente das ci-

dades-dormitórios. Todos os conjuntos habitacionais são assim.

,- 'Localizar o trabalho e o comércio próximos das residências,

mas mantê-Ios afastados, de acordo com a tradição imposta pela

teoria da Cidade-Jardim, é uma solução tão matriarcal quanto

situar as residências a quilômetros de distância do trabalho e dos

homens. Os homens não são uma abstração. Ou estão por perto ,

em pessoa, ou não estão. Os locais de trabalho e o comércio de-

vem mesclar-se às residências se se tiver a intenção de que os

homens, como, por exemplo, os que trabalham na Rua Hudson

- ou próximo dela, estejam perto das crianças na vida diária - ho-

mens que participem da vida cotidiana normal, em contraposi-

ção aos homens que fazem uma aparição ocasional no parquinho

quando tomam o lugar das mulheres ou imitam as ocupações

femininas.

A oportunidade (que na vida moderna se tornou um privilé-

gio) de brincar e crescer num mundo cotidiano composto tanto

de homens como de mulheres é possível e comum para crianças

que brincam em calçadas diversi fi cadas cheias de vida. Não

consigo entender por que essa situação deva ser desencorajada

pelo planejamento urbano e pelo zoneamento. Ao contrário, de-

veria ser induzi da a partir da análise das condições que estimu-

lam a mescla e a mistura do trabalho e do comércio com as resi-

dências, assunto que retomarei mais adiante neste livro.

(...). O

playground

deve ser bem administrado para ter êxito na

competição com as ruas, cheias de vida e aventura. A capacidade

de tomar as atividades doplayground tão irresistivelmente atraen-

tes a ponto detiraras criançasda rua emanter seu interesse dia após

dia

é

uma qualidade rara nosrecreadores, e ela deve associar perso-

nalidade e especialização de alto nível.

A fascinação das crianças pela vida nas ruas foi constatada há

muito tempo por especialistas em recreação, geralmente com de-

saprovação. Já em 1928, a Associação de Planejamento Regional

de Nova York, em relatório que é até hoje o mais exaustivo estudo

norte-americano sobre recreação nas metrópoles, diz:

Mais adiante, o mesmo relatório deplora a tendência inflexí-

vel das crianças de vadiar , em vez de jogar jogos reconheci-

dos (reconhecidos por quem?). Esse anseio pela Organização

Criança por parte daqueles que encarcerariam a recreação infor-

mal, e a preferência teimosa das crianças pela vadiagem nas ruaS

da cidade, cheias de vida e aventura, são tão característicos hoje

I, como em 1928.

 Conheço o Greenwich Village como a palma da minha mão ,

gaba-se meu filho mais velho ao levar-me para ver uma passa-

gem secreta que descobriu sob uma rua, descendo uma escada

do metrô e subindo por outra, e um esconderijo secreto de uns

20 centímetros de largura, entre dois edificios, onde ele guarda

os tesouros que encontra no caminho para a escola - coisas que

as pessoas jogaram fora para o lixeiro levar - para pegá-los na

volta da escola. (Eu também tinha um esconderi jo assim, com a

mesma finalidade, quando era da idade dele , mas o meu era uma

fenda num barranco no caminho da escola, em vez de uma fenda

entre dois prédios, e ele encontra tesouros mais inusitados e

valiosos.) ,

Por que as crianças acham, com tanta freqüência, que peram-

bular por calçadas cheias de vida é mais interessante do que fi-

car nos quintais ou nos parquinhos? Porque as calçadas são mais

interessantes. É uma pergunta tão sensata quanto: por que os

adultos acham as ruas cheias de vida mais interessantes que os

parquinhos?

A ext raordinária comodidade das calçadas é um trunfo im-

portante também para as crianças. As crianças estão à mercê da

comodidade mais do que ninguém, exceto os idosos. Boa parte

da diversão das crianças ao ar livre, principalmente depois da ida-

de escolar e de elas terem descoberto algumas atividades organi-

A análise detidaem váriascidadesnum raio de400 metrosao re-

I~ dor de

playgrounds,

sobum espectroamplode situações,mostra que

cerca de 1/7da população infantil de 5 a 15anos deidade seencon-

tra nesses locais (... ) . O chamariz da rua é um concorrente forte

94 M OR TE E V ID A D E G R AN DES CIDADES

A N AT UR EZ A P EC UL IA R D AS C ID AD ES 95

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~ t

zadas (esportes , artes , trabalhos manuais ou aquilo que seus in-

teresses ou as oportunidades existentes ditarem), ocorre em ho-

rários imprevistos e deve adequar-se a isso. Grande parte da vida

das crianças fora de casa desenvolve-se aos poucos. Acontece no

pequeno intervalo depois do almoço. Acontece depois da escola,

no momento em que as crianças podem estar pensando no que

fazer e imaginando quem vai aparecer. Acontece enquanto elas

esperam ser chamadas para o jantar . Acontece em breves inter-

valos entre o j antar e a lição de casa, ou entre a lição de casa e a

hora de dormir.

Nesses momentos, as crianças dispõem e util izam de todos

os meios para exercitar-se e divertir-se. Batem com os pés em

poças d' água, escrevem com giz, pulam corda, patinam, jogam

bolas de gude, exibem o que têm, conversam, trocam figurinhas,

jogam stoopball*, andam em pernas de pau, enfeitam patinetes

fe itos de caixa de sabão, desmontam carros de bebê velhos, so-

bem em grades, correm de um lado para o outro. Não tem senti-

do valorizar demais essas atividades. Não tem sentido ir a algum

lugar formalmente para fazê-Ias de acordo com um plano for-

mal. Parte do seu atrativo reside na sensação que as acompanha,

de liberdade de vaguear para cá e para lá nas calçadas, situação

diferente de estar fechado dentro de um espaço. Se for impossí-

vel desempenhá-Ias informal e convenientemente, elas raramen-

te são realizadas.

À medida que as crianças crescem, essa atividade informal

fora de casa - por exemplo, enquanto esperam ser chamadas para

a refeição - passa a exigir menos do físico e acarreta um tempo

mais prolongado com os outros, formando opinião sobre eles,

flertando, conversando, provocando, empurrando, lutando. Os ado-

lescentes são quase sempre criticados por essa maneira de matar

o tempo, mas é quase impossível amadurecer sem ela. O proble-

ma aparece quando ela é praticada não na sociedade, mas como

uma forma de vida marginal.

O requisi to para qualquer uma dessas variedades de recrea-

ção informal não é a existência de nenhum tipo de equipamento

* Jogo baseado no beisebol que consiste em jogar a bola c ontra um muro e contar o número

de vezes que elapu la no ch ão . Essenúmero indica a quantidade de bases percorridas. (N. do T.)

.~

rebuscado, mas sim de espaço num local conveniente e interes-

sante. A brincadeira é prejudicada se as calçadas forem muito

estre itas em relação ao que se exige delas.

É

prejudicada princi-

palmente se as calçadas não tiverem pequenas irregularidades no

alinhamento das construções. Uma parte considerável do ócio e

da recreação ocorre em reentrâncias da calçada, fora do tra jeto

dos pedestres.

Não há sentido em planejar a recreação nas calçadas, a me-

nos que elas sejam uti lizadas para uma grande variedade de ou-

tros f ins e também por uma grande variedade de outras pessoas.

Esses usos são interdependentes, tanto para uma vigilância ade-

quada, quanto para uma vida pública de certa vita lidade e inte-

resse geral. Se as calçadas de uma rua movimentada tiverem lar-

gura suficiente, a recreação surge com força junto com os outros

usos. Se as calçadas forem acanhadas, a brincadeira de pular

corda é a primeira a ser prejudicada. Depois vêm os patins, os

triciclos e as bicicletas. Quanto mais estreitas forem as calçadas,

mais sedentária se toma a recreação informal. E mais freqüentes

as escapadas das crianças para a rua. _

~ Calçadas com nove ou dez metros de largura são capazes de

comportar praticamente qualquer recreação informal - além de

árvores para dar sombra e espaço sufic iente para a circulação de

pedestres e para a vida em público e o ócio dos adultos. Há pou-

cas calçadas com largura tão farta . Invariavelmente, a largura

delas é sacrificada em favor da largura da rua para os veículos,

em parte porque as calçadas são tradicionalmente consideradas

um espaço destinado ao trânsito de pedestres e ao acesso a pré-

dios e.continuam a ser desconsideradas e desprezadas na condi-

ção de únicos elementos vitais e imprescindíveis da segurança,

da vida pública e da criação de crianças nas cidades.

Ainda podem ser encontradas calçadas de seis metros, que

geralmente impossibilitam a brincadeira de pular corda mas per-

mitem a diversão com patins e outros brinquedos de rodas, em-

bora os que gostam de alargar as ruas as abocanhem ano após ano

(geralmente segundo a crença de que as desprezadas esplanadas

e os passeios públicos  as substituem adequadamente). Quanto

mais movimentadas e atraentes forem as calçadas e quanto maior

u

~.

~

96

M O R TE E V I D A D E G R A N DE S C I DA D ES

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o número e a variedade de usuários, maior deverá ser a largura

total para comportar seus usos satisfatoriamente.

Contudo, mesmo com a falta de espaço adequado, a localiza-

ção conveniente das ruas e o interesse despertado por elas são

tão importantes para as crianças - e a boa vigilância, tão impor-

tante para os pais - que elas se adaptam ao acanhado espaço da

calçada. Isso não significa que seja correto tirar vantagem dessa

adaptabilidade inescrupulosamente. Na verdade, é errado tanto

com relação às calçadas quanto com relação às cidades.

Algumas calçadas são sem dúvida ruins para a criação das

crianças. São ruins para qualquer pessoa. Nesses lugares, preci-

samos promover as virtudes e as insta lações que propiciam se-

gurança, vitalidade e estabilidade nas ruas. Trata-se de um proble-

ma complexo e fundamental no planejamento urbano. Em bair-

ros com tais deficiências, enxotar as crianças para parques ou

playgrounds é, além de improdutivo, uma solução ainda pior para

os problemas das ruas e para as crianças.

A idéia de se livrar das ruas, desde que isso seja possível, e

depreciar e menosprezar sua função social e econômicacrra vida

urbana é uma das mais nocivas e destrutivas do planejamento

urbano ortodoxo. É o máximo da ironia que ela seja posta em

prática com tanta freqüência em nome de fantasias nebulosas

sobre a criação de crianças nas cidades.

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)t

:f,

5 O S U SOS D O S P A R Q U ES D E B AIR R O

It .-

Os parques de bairro ou espaços similares são comumente con-

siderados uma dádiva conferida à população carente das cida-

des. Vamos virar esse raciocínio do avesso e imaginar os parques

urbanos como locais carentes que precisem da dádiva da vida e

da aprovação conferida a eles. Isso está mais de acordo com a

realidade, pois as pessoas dão util idade aos parques e fazem de-

les um sucesso, ou então não os usam e os condenam ao fracasso.

Os parques são locais efêmeros. Costumam experimentar ex- r

tremos de popularidade e impopularidade. Seu desempenho nada

tem de simples. Podem constituir elementos maravilhosos dos

bairros e também um trunfo econômico para a vizinhança, mas

infelizmente poucos são assim. Com o tempo, podem tornar-se

mais apreciados e valorizados, mas infelizmente poucos duram

tanto. Para cada Rittenhouse Square, na Filadélfia, ou Rocke-

fe ller Plaza ou Washington Square, em Nova York, ou Boston

Common. ou ainda seus amados equivalentes em outras cidades,

há dúzias de vazios urbanos desvitalizados chamados parques,

destruídos pela decadência, sem uso, desprezados. Como me

disse uma mulher em Indiana, quando lhe perguntei se gostava

da praça da cidade: Lá só ficam uns velhos indecentes, que cos-

pem uma gosma de tabaco e tentam olhar por baixo da saia da

gente.

\

9 8 M O RT E E V I DA D E G RAND ES CID ADE S

A NATU RE Z A P E C U L IAR D AS C ID ADE S 99

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pios básicos que afetam profundamente quase todos os parques

urbanos. Além do mais, a compreensão desses princípios ajuda a

entender um pouco as influêrréias presentes em parques urbanos

~de todo tipo - de espaços que funcionam como extensão de ruas

a parques amplos com as grandes atrações de uma metrópole,

como zoológicos, lagos, bosques e museus.

Os parques de bairro revelam certos princípios gerais do de-

sempenho dos parques com mais clareza do que os parques es-

pecíficos exatamente porque são o tipo mais numeroso de par-

que urbano que possuímos. Normalmente se destinam ao uso tri-

vial geral, como pátios públicos, seja a localidade predominan-

temente ligada ao trabalho, predominantemente residencial, ou

uma grande mistura. A maioria das praças enquadra-se nessa

categoria de uso geral como pátio público; o mesmo ocorre com

a maioria dos usos do solo projetados; e o mesmo ocorre com boa

parte das áreas verdes que se aproveitam de acidentes naturais,

como margens de rios ou topos de morros.

A primeira precondição para compreender como as cidades e

seus parques influenciam-se mutuamente é acabar com a confu-

são ent re os usos reais e os fantasiosos - por exemplo, a babosei

r ã de ficção científica de que os parques

são.ros

pulmões d

cidade . São necessários cerca de doze mil metros quadrados de

'árvores para absorver a quantidade de dióxido de carbono que

quatro pessoas geram ao respirar, cozinhar e aquecer a casa . São

as correntes de ar que circulam

à

nossa volta , e não os parques,

que evitam que as cidades sufoquem'.

2 . Lo s An geles, qu e pr ec is a da aju da de u m pu lm ão m ais d o q u e q u alq ue r out ra cidade dos

Estad os U nidos , possui m ai s á r eas liv res qu e q u al qu e r o u tr a cid a d e g r an d e; s u a p olu iç ão at mo s-

férica dev e -s e em p arte a pec u lia rid ade s lo ca is d e c ircu la çã o d o a r, m as t am bé m a o f ato de ser

um a cidade m u i to e sp alha da e à ex te ns ão das á reas liv re s. A s g r an d es dis tâncias u rbana s im pl i-

ca m u m trá fe go intenso de au to m óve is , e este , po r sua vez , c o nt ri bu i c o m c e rc a d e do is terç os

d o s p o lu e n tes atm os férico s. Da s m il t oneladas de po l uen tes l i be r adas d i a ri am en te pe lo s t rê s

m i lh õ e s de veículos licen c iados de Lo s A n g el e s, c e rc a d e 6 0 0 t on e la d as s ã o h i d r oc a rb o ne tos,

qu e pode m ser el im inado s em gra nd e pa rte com a i nstalaçã o d e d i sp o si tivo s n os e sca pamentos

n o s a u t o móve is. Porém , ce rca d e 4 0 0 t on e la d as sã o ó x id os d e n it ro gê n io , e , n o m o me n to e m

q ue e screv o, nem se in iciou a pes qu isa de dis pos i tivo s c ap az es d e r ed uz ir a e missão des sas

sub s tânci as. O p arado xo do a r e das áreas liv re s - e nã o se t r at a, ob vi amente, d e u m p ara doxo

temporári o - é este : nas cida des modernas, a co piosa d is tr ib u iç ã o d e á re as livr e s p r o pici a a

polu iç ão do ar , em lu ga r de co mb atê -Ia . Eben eze r Ho wa rd difici l m en t e p o d eria te r p revisto esse

efeito . Ma s a pr evisã o não é ma is ne cessária ; só a p e rcep ç ã o t ar dia.

r ~   : ~ u   - , : :   J ' , ; { I- :  7 .  D I

No planejamento urbano ortodoxo, as áreas l ivres do bairro

sã uma maneira eendente e 'tica'nqua-

se como os selvagens veneravam fetiches I. Se perguntarmos a

um construtor como fazer para melhorar seu projeto na cidade

tradicional, e le responderá, como se fosse uma virtude patente:

Mais Áreas Livres. Se perguntarmos a um técnico sobre os avan-

ços nos códigos de zoneamento progressistas, ele mencionará,

mais uma vez como uma virtude patente, os incentivos a Mais

Áreas Livres. Se andarmos com um planejador por um bairro

desvitalizado, já marcado por parques vazios ejardins descuida-

dos cheios de papéis velhos, ele vislumbrará um futuro de Mais

Áreas Livres.

Mais Áreas Livres para quê? Para facili tar assaltos? Para

haver mais vazios entre os prédios? Ou para as pessoas comuns

usarem e usufruírem? Porém, as pessoas não uti lizam as áreas l i-

vres sóporque elas estão lá, e os urbanistas e planejadores urba-

nos gostariam que utilizassem.

Em certos aspectos de seu desempenho, todo parque urbano é

um caso particular e desafia as generalizações. Além do mais, os

parques grandes, como o Fairmount, em Filadélfia, o Central, o

Bronx e o Prospect, emNova York, o Forest, em St. Louis, o Gol-

den Gate, em São Francisco, e o Grant, em Chicago - ou mesmo

o Boston Common, menor - , diferem muito, de trecho para tre-

cho, dentro de si próprios, e também recebem influências diver-

sas das diferentes partes da cidade no seu entorno, Alguns dos fa-

tores que interferem no desempenho dos grandes parques metro-

politanos são muito complexos para que os abordemos na primei-

ra parte deste livro; nós os analisaremos adiante, no Capítulo 14,

A maldição das zonas de fronteira desertas.

Não obstante, embora seja i lusório considerar um parque ur-

bano uma duplicata real ou potencial de outro ou acreditar que

as generalizações explicam inteiramente todas as peculiaridades

de cada um deles, pode-se generalizar acerca de alguns princí-

1. P .ex.:  O Sr. Mo ses con co rd ou q u e a lg u ns d o s n ovos c on jun t os res id encia is pode m ser 'fe ios,

padronizados, pr os aic os, id ênt ico s, homogêneos , ine xpre ss ivos '. M as arg u mentou qu e e ss es

con juntos po deriam ser circundados p o r p a rq u es  - d e u m a r ep ortag em do N ew Y ork Tim es de

janei ro de 1961 .

  M OR TE E V ID A D E G RA NDES CID ADE S

A N ATURE ZA PECU LIA R DAS C IDADES  

Além disso, certa metragem de áreas verdes não fornece mais

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res têm má fama, mas o local não é perigoso, nem há crimes.

Entretanto, o parque nunca funcionou co~

imóveis ou da estabilidade social. Planeja-se desocupar inteira-

~ vizinhança. .

O terceiro é a Washington Square, no meio de uma região

que foi centro de comércio mas hoje é u ma área de escritórios -

companhias de seguros, editoras, empresas de publicidade. Há

várias décadas, a Washington Square tornou-se um local de per-

versão, a ponto de ser evitado pelo pessoal dos escritórios na ho-

ra do almoço e consti tuir um problema insolúvel de tráf ico e cri-

me para os funcionários do parque e a polícia. Em meados dos

anos 50, o parque foi revolvido, f icou fechado por mais de um

ano e foi reprojetado. Durante esse período, seus freqüentadores

se dispersaram, e era essa a intenção. Hoje, tem uso escasso e

aleatório e está quase sempre vazio, a não ser na hora do almoço,

nos dias de tempo bom. O bairro da Washington Square, como o

da Franklin Square, não conseguiu preservar os imóveis, quanto

mais valorizá-Ios. Hoje se planeja reurbanizar inteiramente toda

a área

à

volta doperímetro dos escritórios.

A quarta das praças de Penn foi reduzida a uma pequena ilha

de tráfego, Logan Circle, no Benjamin Franklin Boulevard, um

exemplo do modelo do City Beautiful. A rotatória foi adornada

com um chafariz que jorra alto e um jardim bem cuidado. Ainda

que não seja convidativo ir lá a pé e se trate mais de um local para

ser visto para quem passa de automóvel, a rotatória recebe um pu-

nhado de pessoas nos dias claros. O bairro vizinho ao centro cultu-

ral monumental que ela integrou deteriorou-se incrivelmente, teve

seus cortiços removidos e foi transformado em Ville Radieuse.

Os destinos diferentes dessas quatro praças - principalmente

as três que continuam sendo praças - ilustram o desempenho in-

constante que caracteriza os parques urbanos. Elas também ilus-

tram boa parte dos princípios fundamentais que norte iam o de-

sempenho dos parques, e eu pretendo retomá-Ios e a suas lições

em breve.

O desempenho instável dos parques e de sua vizinhança che-

ga a extremos. Um dos parques pequenos mais encantadores de

todas as cidades norte-americanas, o Plaza de Los Angeles, cir-

ara uma cidade do que uma metragem equivalente em ruas. Sub-

trair as ruas e adicionar sua metragem quadrada a parques ou

esplanadas em conjuntos habitacionais não tem o mínimo efeito

sobre a quantidade de ar fresco que uma cidade recebe. O ar não

tem conhecimento algum dos fetiches das áreas verdes e é inca-

paz de atuar de acordo com eles.

Para compreender o desempenho dos parques é também ne-

cessário descartar a falsa convicção de que eles são capazes de

estabilizar o valor de bens imóveis ou funcionar como âncoras

da comunidade. Os parques, por si sós, não são nada e menos

ainda elementos efêmeros de estabil ização de bens ou de sua vi-

zinhança ou distrito.

Filadélfia serve quase como uma experiência controlada nes-

se aspecto. Quando Penn* projetou a cidade, colocou em seu cen-

tro uma praça, hoje ocupada pela Prefeitura, e, eqüidistantes do

centro, quatro praças residenciais. O que aconteceu com essas

quatro, todas da mesma idade, do mesmo tamanho, com a mes-

ma destinação e praticamente as mesmas supostas vantagens de

localização?

O destino de cada uma é muitíss imo diferente.

A mais conhecida das quatro praças de Penn é a Rittenhouse

Square, um parque adorado, bem-sucedido e muito freqüentado,

atualmente um dos maiores patrimônios de Filadélfia, núcleo de

um bairro elegante - na verdade, o único dos bairros tradicionais

de Filadélf ia que está revita lizando espontaneamente sua área

periférica e valorizando seus imóveis.

O segundo dos pequenos parques de Penn é a Franklin Square,

um parque de submundo, onde se juntam os sem-teto, os de-

sempregados e os indigentes, em meio a cortiços, pensões, esta-

belecimentos religiosos, lojas de roupas usadas, salas de leitu-

ra, casas de penhores, agências de emprego, estúdios de tatua-

gem, casas de shows e lanchonetes. O parque e seus freqüentado-

* W il li am P e nn (1644-1718) govern ou a c ol ônia da Pen silv â ni a por dois ano s, en tre 1682 e

1684,

a q u al lhe havi a sid o c onced ida pel o re i in g lê s C arlos 11como pag a me nto d e u m a divi da .

Pennp ro jetou e b at iz ou a cida de de F i ladélf ia . O p la no c onsistia de u ma m alha o r togonal de

22

p o r o i t o q u a dr as. (N . do T .)

102

M ORT E E VID A DE GRAN D ES C ID ADES

A N AT UR EZ A P ECULIAR DAS CIDADES'103

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cundado por imensas magnólias, um lugar adorável, cheio de

sombras e história, está hoje infelizmente rodeado, em três fa-

ces, por prédios abandonados e uma imundície tão deplorável

que o mau cheiro se espalha pelas calçadas. (Na quarta face há

uma loja para turistas que está indo bem.) O Madison Park de

Boston, área verde gramada de uma área residencial com casas

geminadas, exatamente o tipo de parque que está surgindo atual-

mente em muitos dos projetos de revita lização sofisticados,

constitui o núcleo de um bairro que parece ter s ido bombardea-

do. As casas

à

sua volta - muito parecidas com aquelas que são

muito procuradas no entorno da vizinhança da Rittenhouse,

Square, de Filadélfia - perderam o valor e estão desmoronando

com o conseqüente descaso. Quando uma das casas de uma série

sofre uma rachadura, e la é demolida , e a família da casa ao lado

é retirada por segurança; poucos meses depois, esta também se

vai, e a seguinte é evacuada. Não exis te um plano por trás disso; \

nada senão espaços escancarados, entulho e abandono não in-

tencionais, com o pequeno parque fantasma, teoricamente uma

ótima âncora de áreas residenciais, no centro da devastação. O

Federal Hill , em Baltimore, é um parque lindíss imo e tranqüilo,

que proporciona a melhor vista da cidade e da baj;t. A vizinhan-

ça, embora respeitável, está agonizante, como o próprio parque.

Não conseguiu, geração após geração, atrair o interesse de novos

moradores. Um dos fracassos mais amargos da história dos con-

juntos habitacionais é que parques e áreas livres nesses locais

não foram capazes de valorizar a vizinhança ou ao menos estabi-

lizá-Ia, quem diria melhorá-Ia . Observe o entorno de qualquer

parque urbano, praça pública ou área verde de conjunto habita-

cional: é muito raro encontrar uma área livre com um entorno

que espelhe convenientemente o propalado magnetismo ou a in-

fluência estabilizadora que os parques possuiriam.

E lembre-se também dos parques que ficam vazios a maior

parte do tempo, como ocorre com o lindo Federal Hil l, de Balti-

more. Nos dois melhores parques de Cincinnati, voltados para o

rio, consegui contar, numa tarde esplêndida e quente de setem-

bro, um total de cinco pessoas (três garotas adolescentes e um ca-

sal de jovens); ao mesmo tempo, na cidade, uma rua após a outra

fervilhava de gente passeando, mesmo sem dispor das mais in-

significantes instalações para apreciar a cidade e a ínfima gene-

rosidade de uma sombra. Numa tarde parecida , com a tempera-

tura acima de 30°C, consegui contar no parque de Corlears Hook

- um oásis ajardinado diante do rio, com brisa fresca, no super-

povoado Lower East Side de Manhat tan - só dezoito pessoas, a

maioria delas homens sozinhos, aparentemente indigentes'. Não

havia crianças. Mãe alguma, com a cabeça no lugar, permitiria

que seu filho ficasse lá sozinho, e as mães do Lower East Side

não perderam a cabeça. Um passeio de barco

à

volta de Man-

hattan transmite a errônea impressão de que é uma cidade com-

posta principalmente de áreas verdes - e quase desprovida de

habitantes. Por que é tão freqüente não haver ninguém onde há

• •~ - -- :::.--

parques e nenhum parque onde há gente?

Os parques impopulares preocupam não só pelo desperdício

e pelas oportunidades perdidas que implicam, mas também pe-

los efeitos negativos constantes. Eles sofrem do mesmo proble-

m a

das ruas sem olhos, e seus riscos espalham-se pela vizinhan-

ça, de modo que as ruas que os margeiam ganham fama de peri-

gosas e são evitadas.

li

Aléffio mais, os parques de pouco uso e seus equipamentos

Q são alvo de vandalismo, o que é bem diferente do desgaste por

1 V'

Uso. Esse fato foi reconhecido indiretamente por Stuart Consta-

- le, então diretor do Departamento de Parques da cidade deNova

York, quando a imprensa lhe perguntou sobre a proposta fei ta

em Londres de insta lar televisores nos parques. Depois de afir-

mar que os televisores não eram adequados para parques, Cons-

table acrescentou:  Acho que [os aparelhos] sumiriam em meia

hora. 

Em todas as noites agra 'yeis de verão vêem-se televisores

fora de casa, usados em públic ,nas velhas calçadas movimen-

tadas do East Harlem. Cada apar~lho, com uma extensão elétrica

3 . Coinc identemente. quando c h eg u e i a m inh a c as a, en co ntrei u m n úm er o eq u iva le nt e a o d o s

fre qüentad ore s d es se pa rqu e , d ez oit o p e ss o as (d e a m bo s o s se xos e d e t oda s a s idad es), reun i-

do s

à

vo lta d a e n tr ad a d o p ré dio d e a pa r tam en t os v i zi nho. N ão havia aí n e n hu m d o s a t r at iv o s

de um parq ue , a nã o s er a q u ele qu e m a is c o nt a: o pr a z er d o laz er, c om o s o utro s e c om a cida -

d e q u e p as sa.

104 M O RT E E V ID A D E G R AN DES CIDADES

A N A TU R E ZA P E CU L I AR D A S C I DA D ES 105

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estendida ao longo da calçada até a tomada de algum estabeleci-

mento, transforma-se em um quartel-general informal de mais

ou menos uma dúzia de homens que dividem a atenção entre a

televisão, as crianças das quais devem cuidar, as latas de cerveja,

os comentários dos outros e os cumprimentos de quem passa.

Desconhecidos param quando querem e sejuntam à platéia. Nin-

guém está preocupado com danos aos aparelhos. Porém, o ceti-

cismo de Constable quanto à segurança dos aparelhos nas juris-

dições do Departamento de Parques era plenamente justificável.

Ele é um homem experiente, que tem sido responsável por inú-

meros parques impopulares, perigosos e maltratados, além de

alguns poucos bons.

Espera-se muito dos parques urbanos. Longe de transformar

qualquer virtude inerente ao entorno, longe de promover as vizi-

nhanças automaticamente, os próprios parques de bairro é que

são direta e drasticamente afetados pela maneira como a vizinhan-

ça neles interfere.

fUI

\

As cidades são lugares absolutamente concretos. Ao tentar

entender seu desempenho, as boas informações vêm da observa-

ção do que ocorre no plano palpável e concreto, e não no plano

metafis ico . As três praças de Penn, em Filadélfia, são parques

urbanos comuns, prosaicos. Vejamos o que elas revelam a res-

peito de suas interações triviais concretas com a vizinhança.

  Rittenhouse Square, a bem-sucedida, possui entorno variado

e bairros vizinhos também variados. Junto a seus limites, existe,

na seqüência, neste exato momento, um clube de arte com res-

taurante e galerias, um conservatório de música , um edif icio de

escritórios do Exército, um prédio de apartamentos, um clube,

um antigo bot[cári~m edificio de escritórios da Marinha que

foi hotel, apartamentos, uma igreja, uma escola mantida por igre-

jas, apartamentos, uma seção da biblioteca pública, um prédio de

apartamentos, .um terreno vazio de onde foram demolidos casa-

rões com a intenção de construir apartamentos, uma associação

cultural, apartamentos, um terreno vazio onde sepretende cons-

truir uma casa , outra casa, apartamentos. Logo depois desse en-

torno, nas ruas que o cortam em ângulo reto e nas ruas seguin-

tes, paralelas às laterais do parque, há abundância de estabeleci-

mentos e serviços de todo tipo no andar térreo de casas antigas

ou de prédios de apartamentos novos, misturados a grande varie-

dade de escritórios.

Essa disposição fisica afeta concretamente o parque de algu-

ma maneira? Sim. A variedade de usos dós edificios propicia ao

parque uma variedade de usuários que nele entram e dele saem

em horários diferentes. Eles util izam o parque em horários dife-

rentes porque seus compromissos diários são diferentes. Portan-

to, o parque tem uma sucessão complexa de usos e usuários.

Joseph Guess, jornalista da Filadélfiâ que mOra na Ritten-

house Square e se delícia acompanhando o balé da praça , conta

que ele obedece a esta seqüência: Primeiro, uns poucos andari-

lhos madrugadores que moram ao lado do parque fazem cami-

nhadas em passo firme. Logo depois, juntam-se a eles , e fazem o

mesmo, moradores que atravessam o parque para ir trabalhar em

outros bairros. Pouco depois de essas pessoas terem saído da pra-

ça, começam a passar pessoas a trabalho, muitas delas retardando

o passo, e no meio da manhã surgem as mães com os filhos pe-

quenos, junto com um número crescente de comerciantes. Antes

do meio-dia, as mães e as crianças se vão, mas o movimento da

praça continua a crescer com os empregados em horário de almo-

ço e pessoas que vêm não se sabe de onde para almoçar no clube

de arte e em restaurantes próximos. De tarde , as mães e as crian-

ças aparecem de novo, os comerciantes e as pessoas a trabalho

demoram-se mais, e eventualmente escolares juntam-se a eles. No

fim da tarde, as mães já se foram, mas surgem os trabalhadores

que vão para casa - primeiro, os que estão saindo do bairro; de-

pois, os que estão retomando. Alguns destes permanecem na pra-

ça por algum te po. Daí em diante, noite adentro, a praça recebe

muitos jovens co encontro marcado, uns que vieram para jantar

fora por perto, outr s que moram perto, outros que parecem vir

só por gostar dessa istura de animação e lazer. Durante o dia

inteiro, aparecem a s idosos que dispõem de tempo, outros

que são mendigos e ários ociosos anônimos.

Em resumo, a ittenhouse Square tem quase sempre um movi-

mento contínuo pelas mesmas razões que uma calçada viva tem

  6 MO RT E E V IDA D E G R A ND ES C IDA DE S

t'--A NATU REZA PEC UL IAR DAS C IDA DE S

  7

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jar num lugar que, por esta ou aquela razão - ou, mais comu-

mente, por uma série delas -, já perdeu a popularidade. Super-

população, degradação, crime e outras formas de decadência ur-

bana são sintomas superficiais de um fracasso econômico e fun-

cional mais profundo do bairro.

Os degenerados que durante décadas ocuparam inteiramente

a Washington Square de Filadélfia eram uma manifestação em

escala reduzida desse comportamento urbano. Eles não aniquila-

ram um parque que era apreciado e cheio de vida. Eles não ex-

pulsaram freqüentadores respeitáveis. Eles se mudaram para um

lugar abandonado e se entrincheiraram. No momento em que

escrevo, os freqüentadores indesejados já foram enxotados para

outros vazios urbanos, mas esse ato não rendeu ao parque um

número suficiente de freqüentadores bem-vindos.

Num passado longínquo, a Washington Square teve boa quan-

tidade de freqüentadores. Mas, embora seja ainda a mesma 

praça, seu uso e sua essência mudaram inteiramente quando a

vizinhança se transformou. Como todos os parques urbanos, ela

é fruto de sua vizinhança e da maneira como a vizinhança gera

uma sustentação mútua por meio de usos diferentes ou deixa de

gerar essa sustentação.

Não necessariamente foram os escri tór ios que ,despovoar~

~ ',,Qualquer uso específico

e

~smag~~oramente predo-

mmante que impusesse um horário limitado aos freqüentadores

teria provocado efeito similar. A mesma situação se repete em

arques onde o uso~idenci~p'redomina Nesse caso, o único

ran e contingente po cia i  e eqüentadores adul tos

são as mães. Os parques urbanos e osplaygrounds não podem ser

continuamente frequentados apenas por mães, nem apenas por

funcionários de escritório. Ao utilizar os parques em momentos

alternados, as mães podem povoá-los significativamente no má-

ximo por cerca de cinco horas - mais ou menos duas horas de

manhã e três à tarde -, e isso só se houver m~clas-se~ O

~

uso contínuo: pela diversidade fisica funcional deusos adjacentes,

e pela conseqüente diversidade deusuários e seus horários.

A Washington Square de Filadélfia - aquela que setomou um

local de perversão - constitui um contraste extremo nesse aspec-

to. Em seu entorno predominam enormes edif icios de escritó-

r ios , e tanto nela quanto na região vizinha não há nenhuma se-

melhança com a diversidade da Rittenhouse Square - serviços,

restaurantes, atrativos culturais. A região vizinha tem baixa den-

sidade de moradias . Assim, nas últimas décadas, a Washington

Square só teve um contingente de usuários potenciais: os funcio-

nários de escritórios.

Há alguma coisa relacionada a esse fato que afete a praça

concretamente? Sim. Esse contingente principal de' usuários usa

a praça diariamente quase nos mesmos horários. Todos chegam

ao bairro de uma vez. Ficam ocupados durante toda a manhã, até

o horário do almoço, e de novo presos depois do almoço. Depois

do expediente, nem sinal deles. Portanto, a Washington Square,

inevitavelmente, está vazia na maior parte do dia e da noite. Nela

. - -

e insta lou o que normalmente~c,he..os-vazi.os urbanos -

uma espécie del'raga.

117 (

L

7 .

U/

l

Aqui é necessário discordar de uma crença comum a respeito

das cidades - a crença de que os usos de baixo

status

expulsam

os usos de alto status. Não é assim que as cidades se comportam,

e a convicção de que o seja (Combate à Praga ) toma inócua

toda a energia despendida no ataque aos sintomas e no desprezo

às causas. As pessoas ou os usos que dispõem de mais dinheiro

ou de maior respeitabilidade (para uma fi rma de crédito, as duas

coisas estão sempre juntas) podem dominar com muita facil ida-

de aqueles menos prósperos ou de status menor, o que geralmen-

te acontece nos bairros que ganham fama. Raramente ocorre o

contrário. As pessoas ou os usos com menos dinheiro à disposi-

ção, menos alternativas ou respeitabilidade claramente menor

mudam-se para áreas urbanas já deterioradas, bairros que não

são mais cobiçados pelas pessoas que dispõem do luxo do poder

de escolha, ou bairros que só podem almejar algum financia-

mento com dinheiro vivo, capital especulativo ou dinheiro de

agiotas. Os recém-chegados, portanto, precisam tentar se arran-

4. As famllias de operários, p or exemplo, jantam maiscedo que as de funcionários de escritório

porque o expediente dos m ar idos que trabalham e m te mpo integral começa e t ermina mais

cedo. Ass im, no parquinho perto de onde moro, as m ães das famílias operárias vão e mbora an-

tes das quatro horas; as mães das famllia s d e c ol arinhos-brancos chegam m ai s t arde e s aem

antes das cinco.

~

108

M O R TE E V ID A D E G R A N DE S CIDADES

A N A T U R E Z A P E C U L IA R D A S C I D A D ES

109

predomínio diário das mães nos parques não apenas é curto como

lotados, com uma procissão constante à volta. Sempre se formam

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também depende do horário das refeições, do trabalho domésti-

co, da soneca das crianças e,muito claramente, do tempo.

Um parque de bairro genérico, que esteja preso a qualquer

t ipo de inércia funcional de seu entorno, f ica inexoravelmente

vazio por boa parte do dia. E aí se estabelece um círculo vicioso.

Mesmo que o vazio não seja atingido por várias espécies de

praga, e le exerce pouca atração devido ao número restri to de (~-

qüentadores potenciais ..Chega a entediá-los terrivelmente, por-

que a agonia é enfadonha. Nas cidades, a animação e a variedade

atraem mais animação; a a~onotonia repelem a_vid'l E ; ,

esse é um princípio crucial não apenas para o desempenho social

das cidades, mas também para seu desempenho econômico.

f   r

Há, no entanto, uma exceção importante à regra de que é ,ne-

cessária uma mistura funcional ampla de freqüentadores para

povoar e dar vida a um parque de bairro o dia inteiro. Existe nas

cidades um grupo que, sozinho, é capaz de usufruir e povoar os

parques prolongada e satisfatoriamente, embora raramente atraia

outros tipos de freqüentadores. Esse grupo é formado pelas pes-

soas que têm tempo para o lazer , e não têm responsabilidades

domésticas; em Filadélfia são essas as pessoas do terceiro par-

que de Penn, a Franklin Square, o parque do submundo.

Existe uma grande aversão aos parques de submundo, o que é

natural, já que é dificil engolir a decadência humana em doses

tão cavalares. Também é comum fazer pouca dis tinção entre es-

ses e os parques em que há crimes, embora sejam bastante dife-

rentes. (É claro que, com o tempo, um pode setransformar no ou-

tro , como ocorreu com a Franklin Square, inicialmente um par-

que em área residencial que acabou tomando-se um parque de

submundo, depois que ele e sua vizinhança deixaram de atrair

pessoas abastadas.)

Deve-se fazer um comentário a respei to de um bom parque

de submundo, como a Franklin Square. Aíjá houve oferta e pro-

cura, e a má sorte é claramente apreciada por aqueles que foram

deserdados por si próprios ou pelas circunstâncias. Na Franklin

Square, quando o tempo está bom, realiza-se durante o dia todo

uma reunião ao ar l ivre. Os bancos do centro do encontro ficam

rodas de conversa, que se desfazem para formar outras . Os con-

vidados tratam bem a todos e são amáveis mesmo com os intro-

metidos. Tão imperceptivelmente quanto o ponteiro de um reló-

gio, essa reunião heterogênea arrasta-se ao redor do espelho

d'água do centro da praça. E ela é, de fato, um ponteiro de reló-

gio, porque acompanha o Sol, buscando calor. Quando o Sol se

põe, o relógio pára; a reunião é suspensa até o dia seguintes.

Nem todas as cidades têm parques de submundo desenvolvi-

dos. Nova York, por exemplo, não tem, embora tenha muitos par-

ques pequenos eplaygrounds utilizados principalmente por men-

digos, e o deteriorado parque Sara Delano Roosevelt acolha

grande quantidade de mendigos. O maior parque de submundo

dos Estados Unidos - com alta freqüência em comparação com

a da Franklin Square - talvez seja a principal praça do centro de

Los Angeles, a Pershing Square. Ela também mantém uma rela-

ção interessante com a vizinhança. As atividades fundamentais

de Los Angeles são tão espalhadas e descentral izadas que o úni-

co elemento do centro da cidade que se destaca em proporção e

força bem metropolitanas é o indigente desocupado. A Pershing

Square lembra mais uma conferência do que uma reunião, um

seminário composto de várias mesas-redondas, cada uma com

seu palestrante ou moderador. As confabulações estendem-se

por toda a orla da praça, onde ficam os bancos e os muros, e au-

mentam proporcionalmente nas esquinas. Em alguns bancos está

inscrito Reservado para senhoras , e essa delicadeza é respeita-

da . Los Angeles tem sorte de o vazio urbano do centro degrada-

do não ter sido ocupado por predadores, mas foi ocupado, de

modo relativamente respeitoso, por um submundo crescente.

_Porém, não podemos contar com a cortesigdo submundo na

recuperação dos parques impopulares .das nossas cidades. Um

parque de bairro genérico que não seja quarte l-general de indi-

gentes desocupados pode vir a ser freqüen~r-

5 . A I n ã o s e e ncont ram de m anhã b ê b ad o s j o g a do s a o l ad o d e g a rr a fa s . É ma is p rov áv e l encon-

trá-Io s o g ra nd e I ndepen d en c e M a ll, u m novo va zio u r ba no , d es povo ad o d e q ual qu er espé ci e

r ec onhec lv e l de colet ividade , m es m o a d o subm undo.

 

M OR TE E V ID A D E G RA ND ES C ID AD ES

A N AT UR EZ A P EC ULLAR D AS CID ADE S

 

malmente

por estar si tuado bem próximo de onde se concen-

pessoas com horários diferentes, faz sentido para um parque e

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t ram diferentes modos de vida

é

atividade. Se for no cent ro da

cidade, deve ter lojistas, visitantes e transeuntes, além de funcio- .

nários. Se não for no centro, deve situar-se onde a vida pulse,

onde haja movimentação de escrifórios, atividades culturais, resi-

dências e comércio - o máximo possível de toda a diversidade

que as cidades podem propiciar, O principal problema do plane-

jamento de parques de bairro resume-se ao problema de alimen-

tar uma vizinhança díversificada capaz de utilizá-Ios e mantê-Ios. )

Muitos bairros, contudo, já possuem exatamente esses pon-

tos de concentração humana ignorados que anseiam por parques

e praças públicas próximos. É fácil identificar tais locais de

aglomeração e de atividade, porque estão onde se encontram as I

pessoas que distribuem folhetos de mão em mão (se a polícia

permitir).

No entanto, não há por que levar osparques aonde aspessoas

estão se, ao fazê-Io, as razões que motivam as pessoas a estar lá

forem eliminadas e o parque tomar-se um substituto para elas.

Esse é um dos erros fundamentais dos projetos de conjuntos re-

sidenciais e centros administrativos e culturais. Os parques urba-

nos não conseguem de maneira alguma substituir a diversidade

urbana plena. Os que têm sucesso nunca funcionam como bar-

reira ou obstáculo ao funcionamento complexo da cidade que os

rodeia. Ao contrário, ajudam a alinhavar as atividades vizinhas

diversificadas, proporcionando-lhes um local de confluência agra-

dável; ao mesmo tempo, somam-se à diversidade como um ele-

mento novo e valorizado e prestam um serviço ao entorno, como

a Rittenhouse Square e qualquer outro bom parque.

Não é possível mentir para um parque de bairro nem argu-

mentar com ele.  Concepções artísticas e plantas persuasivas

podem compor imagens vivas nos parques de bairro ou nas es-

planadas arborizadas, e a argumentação pode invocar freqüenta-

dores que deveriam apreciá-Ios, mas na realidade somente uma

vizinhança diversificada tem.o.poder efetivo de induzir uma fluên-

cianatural e permanente de vida e de

USQS.

A variação arquitetô-

'nica superficial pode parecer diversidade, mas só uma conjuntu-

ra genuína de diversidade econômica e social, que resulta em

tem o poder de conceder-lhe a dádiva da vida.

Se for bem localizado, qualquer parque de bairro pode tirar

pIoveito de seus trunfos, mas pode também desperdiçá-los. É

óbvio que um lugar que lembre um pátio de prisão não vai a trair

freqüentadores nem interagir com a vizinhança do mesmo modo

que um lugar que lembre um oásis. Contudo, também existem

vários tipos de oásis, e algumas de suas importantes característi-

cas para ter êxito não são tão óbvias.

Os parques de bairro bem-sucedidos raramente têm a concor-

rência de outras áreas livres. Isso é compreensível, pois as pes-

soas da cidade, com seus interesses e deveres, dificilmente con-

seguem dar vida a uma quantidade ilimitada de parques locais de

uso genérico. A população urbana ter ia de dedicar-se ao uso dos

parques como se tratasse de um negócio (ou como os pobres

ociosos fazem) para justificar, por exemplo, a profusão de espla-

nadas, passeios públicos, playgrounds, parques e terrenos infin-

dáveis aceita nos planos típicos da Cidade-Jardim Radieuse e

impostas pelo governo na reurbanização, por meio de exigências

rigorosas de deixar livre grande porção de terreno.

Já podemos concluir que nos bairros que dispõem de uma

quantidade relat ivamente grande de parques genéricos, como

Morningside Heights ou o Harlem, em NovaYork, é raro a popu-

lação concentrar-se com intensidade num deles ou ter adoração

por algum, como a adoração que a população do North End, em

Boston, dedica ao Prado, ou a população do Greenwich Village

devota ao Washington Square, ou a população do distrito de

Rittenhouse Square nutre pelo seu parque. Os parques de bairro

apreciados levam vantagem por serem raros.

A capacidade de um parque de bairro de estimular uma liga-

ção apaixonada ou, ao contrário, a apatia parece ter pouca ou ne-

nhuma relação com a renda ou a ocupação da população do bair-

ro. Pode-se inferir isso pelos grupos de renda, ocupação e cultu-

ra inteiramente diferentes que estão ao mesmo t rofunda-

mente vinculados a um parque como a ~tOll

Sq

e de

Nova York. A ligação de classes de renda diferentes com de r-

minados parques pode ser às Veze;Percebida numa seqüência

112

M ORTE E V ID A D E GRANDE S C IDADES

A N AT UR EZ A P EC UL IA R D AS C ID AD ES

113

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cronológica, tanto positiva quanto negativamente. Com o tempo,

a condição econômica da população do North End, em Boston,

aumentou significativamente. Tanto na época de pobreza como

na época de prosperidade, o Prado, um parque diminuto mas

central, fo i o núcleo do bairro. O Harlem, em Nova York,

é

exem-

plo de uma atuação sempre contrár ia . Através dos anos, o Har-

lem passou de um bairro residencial elegante de classe média

al ta para um bairro de classe média baixa e para um bairro com

predominância de pobres e discriminados. Nessa sucessão de

populações diferentes, o Harlem, com profusão de parques lo-

cais em comparação com o Greenwich Village, por exemplo,

nunca viveu uma época em que um de seus parques tenha se tor-

nado um ponto crucial de vida e identidade comunitária. A mes-

ma triste observação pode ser fei ta com relação a Morningside

Heights. E também se aplica especialmente aos espaços livres

dos conjuntos habitacionais, a í incluídos os que tiveram um pro-

jeto cuidadoso.

Essa incapacidade da vizinhança ou do bairro de vincular-se

com paixão a um parque local- e o enorme poder simbólico re-

sultante - deve-se, penso eu, a uma associação de fatores negati-

vos: primeiro, os parques que são candidatos potenciais têm a

desvantagem da diversidade de usos insuficiente na vizinhança

próxima; segundo, a diversidade e a vida que existam são disper-

sadas e dissipadas entre muitos parques com características bas-

tante similares.

/} Certos traços do projeto podem também fazer diferença. Se o

objetivo de um parque urbano de uso genérico e comum é atrair

o maior número de tipos de pessoas, com os mais variados horá-

rios, interesses e propósitos, é claro que o projeto do parque deve

promover essa generalização de freqüência, em vez de atuar em

sentido contrário. Parques muito usados como áreas públicas ge-

néricas costumam incluir quatro elementos em seu projeto, que

eu identificaria como comR.le~e, centralidade, insolação~

,, -delimitaçãoespacial, .

c:

.J . A complexidade diz respeito à multiplicidade de motivos que

~R f I . as pessoas têm para freqüentar os parques de bairro. Uma pessoa

---- vai a um parque por motivos diferentes e em horários diferentes:

às vezes para descansar, às vezes para jogar ou assistir a um

jogo, às vezes para ler ou trabalhar, às vezes para se mostrar, às

vezes para se apaixonar, às vezes para atender a um compromis-

so, às vezes para apreciar a agitação da cidade num lugar sosse-

gado, às vezes na esperança de encontrar conhecidos, às vezes

para ter um pouquinho de contato com a natureza , às vezes para

manter uma criança ocupada, às vezes só para ver o que ele tem

de bom e quase sempre para se entreter com a presença de outras

pessoas.

Se o espaço puder ser apreendido num relance, como um

bom cartaz, e se cada um de seus segmentos for igual aos outros

e transmitir a mesma sensação em todos os lugares, o parque

será pouco estimulante para usos e estados de espírito diversifi-

cados. Nem haverá motivo para freqüentá-lo várias vezes.

Uma mulher talentosa e competente que mora ao lado da

Rittenhouse Square afirma:  Fui lá quase todos os dias durante

quinze anos, mas uma noite dessas eu tentei desenhar de cabeça

um mapa da praça e não consegui. Achei muito complicado. O

mesmo fenômeno acontece com a Washington Square de Nova

York. Durante a luta da comunidade para evitar que a cortassem

com uma via expressa, os estrategistas sempre tentavam esboçar

a praça durante as reuniões para esclarecer um ponto de vista.

Era muito difícil.

Apesar disso, nenhum desses parques tem uma planta assim

tão complicada. A complexidade que está emjogo é a complexi-

dade visual, mudanças de nível no piso, agrupamentos de árvo-

res, espaços que abrem perspectivas variadas - resumindo, dife-

renças sutis. As diferenças sutis da paisagem são acentuadas pe-

las diferenças de usos que nela proliferam. Os parques bem-su-

cedidos sempre parecem mais complexos quando estão em uso

do que quando estão vazios.

Mesmo as praças muito pequenas que são bem-sucedidas com-

põem-se de uma variação engenhosa nos cenários que propor-

cionam aos usuários . O Rockefeller Center apresenta tal varia-

ção por meio de quatro mudanças de nível. A Union Square, no

centro de São Francisco, tem uma planta que parece extrema-

mente sem graça no papel ou olhada do alto de

/ifiGio. ~

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114

M O R TE E V I D A D E G R A N DE S C I DA D ES

ela tem tantas mudanças no nível do piso, como a pintura dos

  '  

A N AT U RE ZA P EC U LI AR D AS CIDADES

115

dro acima do nível do piso. Na verdade, trata-se de uma arena

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relógios derretendo de Dalí, que se torna bastante variada. (Essa

é, sem dúvida, exatamente a mudança que ocorre, em escala

maior, na malha regular e ortogonal das ruas de São Francisco,

quando elas sobem e descem os morros.) As plantas de praças e

parques são enganadoras - às vezes estão cheias de variações

aparentes que quase nada significam porque estão todas abaixo

do ângulo de visão ou são ignoradas pelo olho por serem muito

repetitivas.

Talvez o elemento mais importante da complexidade seja a

central idade. Os parques pequenos e bons geralmente têm um

lugar reconhecido por todos como sendo o centro - no mínimo,

um cruzamento principal e ponto de parada, num local de desta-

que. Certos parques e certas praças pequenas são quase que uni-

camente um centro, e sua complexidade deve-se a diferenças me-

nores na periferia.

. As pessoas se esforçam por criar um centro e um local de des-

taque nos parques, mesmo remando contra a maré. Às vezes é

impossível. Os parques que são uma faixa longa, como o triste-

mente fracassado Sara Delano Roosevelt, em Nova York, e mui-

tos parques à beira de rios são quase sempre desenhados como

se tivessem saído de uma estamparia de tecidos. O parque Sara

Delano Roosevelt tem quatro construções idênticas com alvena-

ria para recreação encravados ao longo de sua extensão em in-

tervalos regulares. O que os freqüentadores podem achar disso?

Andem para cá ou para lá, estão sempre no mesmo lugar.

É

como

fazer girar penosamente uma roda de suplícios. Esse é também

um erro comum dos conjuntos habitacionais, e nesse caso quase

inevitável, já que a maioria dos conjuntos constitui um projeto

modular padrão feito para atividades padronizadas.

As pessoas são inventivas ao util izar o centro dos parques. O

chafariz rebaixado da Washington Square , em Nova York, tem

uso intenso e inventivo. Há muito, muito tempo, a depressão no

piso teve um ornamento central de ferro com um chafariz. Só

restou a depressão circular de concreto, seca na maior parte do

ano, margeada por quatro degraus que levam a uma mureta de

pedra, que forma uma borda externa de mais ou menos um me-

'circular, um teatro de arena, e é assim que é usado, sem nenhu-

ma dist inção entre quem são os espectadores e quem são os ato-

res. Todos são ambas as coisas, mas alguns são mais que isso: to-

cadores de violão, cantores, grupos de crianças atirando dardos,

dançarinos improvisados, pessoas tomando sol, conversando,

exibicionistas, fotógrafos, turistas e, bem misturado a todos eles,

um punhado esparso de leitores absortos, que não estão aí senta-

dos por falta de opção, já que os bancos que estão a leste, em

local sossegado, ficam praticamente vazios.

Os funcionários municipais estão sempre maquinando esque-

mas de aprimoramento para esse centro do parque, como plantar

grama e flores e circundá-lo com uma cerca . A frase invariável

usada para descrever isso é recuperar o local para uso como

parque .

Esta é uma forma diversa de uso de parques, apropriada em

certos lugares . Mas, em parques de bairro, os centros mais agra-

dáveis servem de palco às pessoas.

O Sol faz parte do cenário para as pessoas, c laro que sob uma

sOI~bra10 verão. Um edificio alto que corte a passagem da luz

do Sol no lado sul de um parque pode comprometê-I o seriamen-

te. A Rittenhouse Square, a despeito de todas as suas qualidades,

tem esse problema. Numa tarde gostosa de outubro, por exem-

plo, quase um terço da praça fica completamente vazio; o manto

da grande sombra de um prédio de apartamentos recente funcio-

na como um enorme apagador de seres humanos.

--7 Embora os edificios não devessem t irar o Sol dos parques -

desde que a meta seja encorajar o uso irrestr ito - , a existência de

construções à volta deles

é

importante nos projetos . Elas os en-

volvem. Criam uma forma defin ida de espaço, de modo que ele

se destaca como um elemento importante no cenário urbano, um

aspecto positivo, e não um excedente supérfluo. Em vez de se

sentirem atraídas por pedaços indefinidos de terreno que sobram

à volta de edif icios , as pessoas agem como se fossem repeli das

por eles. Até atravessam a rua quando defrontam com um des-

ses, o que se pode comprovar , por exemplo, nos lugares em que

os conjuntos habitacionais limitam com uma rua movimentada.

116 M O RT E E V ID A D E G R A N DE S C I DA D ES

A N A TU R E Z A P E CU L IA R D A S C I DA D ES

117

os olhos o penetram e nos levam a um lugar mais distante do que

Richard Nelson, analista do mercado imobiliário de Chicago que

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As cidades estão cheias de parques genéricos que não sejus-

tificam, mesmo que o bairro seja bastante movimentado. Isso

ocorre porque alguns parques são por si sós incapazes, pela loca-

lização, pelo tamanho ou pelo traçado, de proporcionar esse mo-

delo de área pública que tenho discutido. Eles nem mesmo têm

condições, pelo tamanho ou pela variação intrínseca de cenários,

de transformar-se em parques metropolitanos de maior desta-

que. O que fazer com eles?

Alguns, se forem bem pequenos, podem muito bem prestar

outro serviço: serem visualmente agradáveis. São Francisco é

boa nisso. Um pequeno triângulo formado pela intersecção de

ruas, do mesmo tipo que muitas cidades nivelar iam com asfalto

ou no qual colocariam uma cerca viva, a lguns bancos e se torna-

ria uma bobagenzinha empoeirada, em São Francisco é um mun-

do em miniatura cercado, um mundo recôndi to, sereno, com

água e plantas exóticas, habitado por pássaros que se sentiram

atraídos por ele. Não se pode entrar nele. Nem é preciso , porque

os pés o fariam. São Francisco transmite uma impressão de fres-

cor e refrigério na selva de pedra urbana. Ainda assim, é uma

cidade densamente povoada e, para transmitir essa impressão,

usam-se espaços reduzidos. A sensação provém principalmente

de pequenos espaços com muitas plantas e se multipl ica porque

boa parte do verde de São Francisco está na vertical - floreiras

emjanelas, árvores, trepadeiras, uma cobertura espessa nos can-

teiros de ladeiras sem outros usos.

O Gramercy Park, em Nova York, supera a localização desa-

gradável por agradar aos olhos. Esse parque vem a ser uma área

particular cercada num local público; a propriedade pertence aos

edifícios residenciais das ruas vizinhas. Só sepode entrar a í com

chave. Por ser dotado de árvores esplêndidas, manutenção pri-

morosa e um ar de magia, é um lugar que agrada bastante aos

olhos de quem passa e, no que diz respeito à população, isso já o

justifica.

Todavia, os parques que existem em princípio somente para

agradar aos olhos, sem outras finalidades, têm de estar necessa-

riamente onde os olhos os vejam; e devem ser necessariamente

pequenos, porque para cumprir bem sua função, devem fazê-Io

com beleza e intensidade, não superficialmente.

Os parques mais problemáticos localizam-se exatamente nos

locais onde as pessoas não passam e provavelmente nunca vão

passar. Um parque urbano nessa situação, agravada (porque nes-

ses casos é uma desvantagem) por um terreno de bom tamanho,

encontra-se, comparativamente, na mesma situação que uma

loja enorme num local comercialmente ruim. Se uma loja dessas

puder ser recuperada e fizer jus a isso , será por força da concen-

tração total no que os comerciantes chamam de art igos de pri-

meira necessidade , e não na confiança nas compras por im-

pulso . Se esses produtos indispensáveis conseguirem atrair fre-

gueses, é possível que, em seguida, se obtenha um bom lucro

com as compras por impulso.

Da perspectiva de um parque, quais seriam os art igos de pri-

meira necessidade?

Podemos obter algumas dicas observando alguns desses par-

ques problemáticos. O Jefferson Park, no East Harlem, é um exem-

observa o comportamento das pessoas em busca de pistas sobre

valor econômico, declara:  Numa tarde quente de setembro, a

Mellon Square, no centro de Pittsburgh, tinha tantos freqüenta-

dores que era impossível contá-los. Mas naquela mesma tarde,

por um período de duas horas, só três pessoas - uma senhora

idosa tricotando, um mendigo e um sujeito indefinível dormindo

com um jornal sobre o rosto - estavam no Gateway Center, no

centro da cidade. 

O Gateway Center é um conjunto de escritór ios e hotel no es-

tilo Ville Radieuse, com os edif ícios dispostos aqui e acolá num

terreno vazio. Falta a ele o nível de diversidade da vizinhança da

Mellon Square, mas sua diversidade não é assim tão pequena a

ponto de atrair apenas quatro pessoas (contando o próprio Nel-

son) no melhor horário de uma tarde gostosa. Os freqüentadores

de parques urbanos não procuram um cenário feito para os edifí-

cios; eles procuram um cenário fei to para eles mesmos. Para

eles, os parques são o primeiro plano, e os edifícios, o pano de

fundo, e não o contrário.

118

M O R T E E V I D A D E G R A N D E S C I D A D E S

A N A T U R E Z A P E C U L IA R D A S C I D A D E S

119

plo. Ele é çonstituído de várias partes, e a que é claramente a

Só a vivência e a tentat iva e o erro podem indicar que combi-

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principal está voltada para uso genérico da vizinhança - equiva-

lente às compras por impulso do jargão mercadológico. Mas

tudo o que há nele contraria esse propósito. Ele se situa na ponta

extrema do bairro, l imitado de um lado pelo rio. Fica ainda mais

isolado por uma rua larga de tráfego pesado. Seu traçado interno

tende para caminhos longos e isolados, sem um centro efetivo .

Uma pessoa de fora vai achá-lo mister iosamente deserto; para

quem é do bairro, é um foco de brigas , violência e medo. Desde

que adolescentes assassinaram brutalmente um visitante, numa

noite de 1958, todos se esquivam do parque e o evitam.

Contudo, entre as várias partes dist in tas do Jefferson Park,

uma conseguiu impor-se bem. É uma piscina ampla ao ar l ivre,

claro que não ampla o suficiente. Em certos dias há mais gente

que água.

Pensemos em Corlears Hook, aquele trecho de parques do Rio

East onde só consegui ver dezoito pessoas espalhadas em meio

aos gramados e bancos num dia bonito. Corlears Hook possui,

num canto, uma quadra de esportes, nada especial , e mesmo as-

sim, naquele mesmo dia, toda a animação do parque, ainda que

pouca, concentrava-se na quadra. Corlears Hook também con-

tém, entre seus extensos gramados inúteis, uma concha acústica.

Seis vezes por ano, nas noites de verão, milhares de pessoas do

Lower East Side apinham-se no parque para assistir a um pro-

grama de concertos. Num total de dezoito horas por ano, o par-

que de Corlears Hook ganha vida e é muito bem aproveitado.

Nesse caso se trata de mercadoria de primeira necessidade,

ainda que em quantidade obviamente muito limitada e muito es-

parsa no tempo. Fica claro, no entanto, que as pessoas realmente

vão a esses parques em busca de certos produtos indispensáveis

especiais, embora elas simplesmente não apareçam pelo seu uso

genérico oupor impulso. Em síntese , seum parque de bairro ge-

nérico não pode ser sustentado pelos usos derivados de uma

diversidade natural e intensa da vizinhança, precisa ser converti-

do de parque genérico em parque específico. Uma diversidade de

usos verdadeira , que atraia naturalmente uma sucessão de fre-

qüentadores diferentes, deve ser introduzida deliberadamente

dentro do próprio parque.

nações variadas de atividades realmente operam como artigos de

primeira necessidade em qualquer parque problemático. Porém,

podemos arriscar algumas hipóteses genéricas e úteis sobre esses

elementos. Primeiro, uma generalização negativa: vista magnífi-

ca e paisagismo bonito não funcionam como artigos de primeira

necessidade; talvez devessem , mas evidentemente não funcio-

nam. Podem funcionar apenas como complemento.

Por outro lado, a natação funciona como um artigo de primei-

ra necessidade. E também a pescaria, se houver conjuntamente

i scas à venda e barcos. Quadras de esportes também. E ainda

festas, ou atividades que tenham esse caráter'.

Música (inclusive a gravada) e peças de teatro também ser-

vem como artigo de primeira necessidade. É curioso que se faça

muito pouco uso dos parques para esse fim, já que a inserção

espontânea da vida cultural faz parte da missão histórica das ci-·

dades. É uma missão que ainda pode realizar-se plenamente,

como deu a entender o New Yorker neste comentário sobre a

temporada gratuita de Shakespeare de 1958 no Central Park:

o ambiente, o tempo, as cores e as luzes e a curiosidade pura e

simples atraíram o público; alguns nunca tinham visto uma peça tea-

tral ao vivo. Centenas de pessoas já t inham vindo várias vezes ; um

conhecido nosso contou que se encontrou com um grupo de crianças

negras que disseram ter visto Romeu e Julieta cinco vezes. A vida de

muitos desses neófitos foi ampliada e enriquecida, da mesma manei-

ra que a platéia do teatro norte-americano do futuro. Mas espectado-

res como esses, novatos em teatro, são exatamente os mesmos que,

com um ou dois dólares namão, não pagarão por uma experiência que

nem sabem seé agradável.

6 . O D r. K a rl M e n ni ng e r, d ir e to r d a C l fn ic a P siqu i á tr i ca M ennin g er d e T o p ek a, a o d is c o rr e r num a

r e u ni ão s o br e p r ob le m as u r ba no s, e m 1 9 58 , a b or do u o s t ip o s d e a ti vi da de s q u e p ar ec em c om -

b a te r a t e nd ê nc ia à d e g ra d a çã o . E l e o s c ito u co mo (1) c on ta to s n u me ro so s c om m u it a g en te ;

( 2 ) t ra b al h o, i nc lu i nd o o e n fa d o nh o; e ( 3 ) j og o s v io l en to s . M e n ni ng e r

é

d e o p i ni ão q u e a s c id a -

des i n fe li zm e n te d ã o p o u ca s o p o r tu n i da d es p a ra o s j o g os v io le n to s . E n tr e o s t ip o s q u e e le e n u -

m e ro u e p ro va ra m s er ú te is e st av am o s e sp or te s a o a r l iv re , o b ol ic he e a s b a n ca s d e t ir o a o

a lv o, c om o a s q u e s e e n co nt ra m e m f es ta s e p ar qu e s d e d iv er sã o , m a s s 6 o ca si on alm e nt e n as

c i dades (naT im es S qua re ,po r ex em p lo ).

1 20 M ORT E E V ID A D E G RAN DES CIDADES

Isso indica , por um lado, que as universidades dotadas de um

A N AT UR EZ A P EC UL IA R D AS CIDADES

 2

gelo nas cidades atuais, e em cidades com as latitudes deNova York,

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departamento de artes cênicas (e, geralmente, com parques mor-

tos e problemáticos nas redondezas) deveriam tentar unir o úti l

ao agradável , em vez de cultivar políti cas hostis em defesa de

um Território. A Universidade de Colúmbia, em Nova York, está

dando um passo construtivo ao planejar instalações esportivas -

tanto para a universidade quanto para a vizinhança - no Mor-

ningside Park, que por décadas foi evitado e temido. Com o

acréscimo de outras poucas atividades, como música ou espetá-

culos, um ônus comunitário incômodo poderia transformar-se

num notável trunfo do bairro.

Faltam aos parques urbanos atividades menores, que pode-

riam funcionar como artigos de primeira necessidade menos

importantes. Algumas delas podem ser descobertas observando

o que as pessoas tentam fazer escondido. Por exemplo, o gerente

de um shopping center próximo de Montreal encontrava todas as

manhãs o lago ornamental misteriosamente sujo. Ficou espiando

depois do horário de fechamento e viu que crianças entravam

sorrateiramente e lavavam e poliam suas bicicletas lá. Locais

para lavar bicicletas (onde as pessoas tenham bicicletas), locais pa-

ra alugá-Ias e passear com elas, locais para fazer buracos no chão,

locais para montar tendas de índio e cabanas desengonçadas com

tábuas velhas são geralmente enxotados das cidades. Os porto-ri-

quenhos que chegam atualmente às nossas cidades não dispõem

de um local ao ar l ivre para assar porcos, a menos que encontrem

um pátio particular para esse fim, mas o churrasco de porco e as

festas em torno dele podem ser tão divertidos quanto os festivais

derua dos italianos que muitos moradores passaram a adorar. Em-

pinar pipas é uma atividade pouco realizada, mas há os que a ado-

ram, o que sugere a exis tência de locais para empinar pipas onde

também se venda o materia l para constru í-Ias e haja espaços on-

de se possa aprender essa arte. Costumava-se praticar muita pati-

nação no gelo em lagos das cidades donorte, até que essa atividade

foi suplantada. A Quinta Avenida, em NovaYork, teve cinco rinques

depatinação muito freqüentados entre a rua 31 e a 98, um deles a

apenas quatro quadras do rinque existente na Rockefeller Plaza.

Os rinques artificiais propiciaram a redes coberta da patinação no

Cleveland, Detroit e Chicago os rinques artificiais vão além da tem-

porada de patinação e ficam abertos por quase metade do ano.Todo

bairro provavelmente adoraria ter e usar um rinque de patinação

ao ar livre e também iria formar uma platéia de espectadores exta-

siados. Rinques relativamente pequenos, distribuídos por vários lu-

gares, são sem dúvida muito mais adequados e agradáveis que rin-

ques enormes, estabelecidos num local central.

Tudo isso exige dinheiro. Mas as cidades norte-americanas

atuais, movidas pela i lusão de que as áreas l ivres são um bem em

si e de que quantidade equivale a qualidade, estão torrando di-

nheiro em parques, playgrounds e vazios urbanos muito extensos,

muito abundantes, supérfluos, mal localizados e portanto muito

monótonos e incômodos de usar.

Os parques urbanos não são abstrações ou repositórios auto-

máticos de virtudes ou avanços, assim como as calçadas não são

abstrações. Eles nada signif icam se forem divorciados de seus

usos reais, concretos e, portanto, nada significam se divorciados

das influências concretas - boas ou más - dos bairros e dos usos

que os afetam.

Os

Dar,

manz a mais nos bairros ue as essoas consideram atraentes

pela grande variedade de outros usos. Eles desvitalizam ain a

, mais os bairros que as pessoas nâo adiam atraentes pela grande

variedade de outros usos, porque aumentam a monotonia, o peri-

go, o vazio uanto mais a cidade conse ir mesclar a diversidade

de usos e usuários o Ia-a-dia nas ruas, mais a população conse-

gumi ammar e sustentar com sucesso e nafurahdade (e também

,economlC ente os ar ues bem-localizados, que aSSImpo e-

rão dar em troca à vizi ança prazer e a egna, em yez e sensa-

çao de vazlÔ

6 OS USOS DOS BAIRROS

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Vizinhança é uma palavra que passou a soar como um cartão de

Dia dos Namorados * . Como conceito sentimental, vizinhança

é prejudicial ao planejamento urbano. Dá lugar a tentativas de

transformar a vida urbana num arremedo da vida em cidades de

pequeno porte ou subúrbios. O sentimentalismo suscita atitudes

, açucaradas, em vez de bom senso.

~I(

~Um bairro bem-sucedido é aquele que se mantém razoavel-

\ íV mente em dia com seus problemas, de modo que eles não o des-

truam. Um bairro malsucedido é aquele que se encontra sobre-

carregado de deficiências e problemas e cada vez mais inerte

diante deles. Nossas cidades apresentam todos os graus de suces-

so e fracasso. Mas nós, norte-americanos, costumamos ser ruins

na gestão dos bairros, como se pode constatar, por um lado, no

acúmulo de fracassos em nossos vastos bolsões apagados e, por

outro, nos Territórios das áreas reurbanizadas.

Está na moda supor que certos referenciais de uma vida digna

conseguem criar bairros dignos - escolas, parques, moradias lim-

pas e coisas do gênero. Como a vida seria fácil se isso fosse ver-

* A a na lo gi a d a a u to ra f az m a is s en ti do e m i ng lê s. d ev id o à e t im o l ogi a da pa l av r a v i zi nhança ,

em ing lês neighborhood ( c ong regação de v i zi nhos ) e ao s en tim en to de am i z ade e c am a rada -

g em q ue vizin h os e c o nh e ci do s d e m on s tr am , e s pe c ia lm en te e m d ia s c om e mo ra ti vo s c om o o

dos Nam orados, q u an do tro c am c a rt ões bem - hum o rados , j o c os os ou s en tim en ta i s. (N . do T .)

12 4 M ORT E E V ID A DE G RAN DES CIDADES

A N AT UR EZ A P EC UL IA R D AS C ID AD ES 1 25

Da mesma maneira, não podemos concluir que famílias de

dade Que maravilha poder satisfazer uma sociedade complexa e

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classe média ou de classe alta possam constituir bons bairros e

famílias pobres não consigam fazê-lo. Por exemplo, da pobreza

do North End, em Boston, da pobreza da coletividade da orla ma- .

rítima do West Greenwich Village, da pobreza do distrito do ma-

tadouro de Chicago (coincidentemente três áreas declaradas irre-

cuperáveis pelos urbanistas), surgiram bons bairros - bairros em

que os problemas sereduziram com o tempo, ao invés de aumen-

tar .Ao mesmo tempo, da outrora elegante e serena classe alta do

magnífico Eutaw Place , em Balt imore, da outrora sólida classe

alta do South End de Boston, da área culturalmente privilegiada

de Morningside Heights, em Nova York, em quilômetros e mais

quilômetros de áreas cinzentas e desvitalizadas de uma classe mé-

dia respeitável, surgiram bairros ruins, bairros cuja apatia e cujo

fracasso aumentaram com o tempo, em vez de diminuir.

É perda de tempo sair

à

procura de um referencial para o êxi-

to de instalações de alto padrão, ou de coletividades supostamen-

te capazes e livres de problemas, ou de lembranças nostálgicas da

vida em cidades de pequeno porte. Isso foge ao cerne da ques-

tão, que é o que os bairros fazem - se é que fazem - de útil para

as próprias cidades, social e economicamente, e como fazem.

Teremos um elemento concreto para pensar se considerarmos

os bairros como prosaicos órgãos autogovernados. Nossos fra-

cassos com os bairros são, em últ ima instância, fracassos da au-

togestão. E nossos êxitos são êxitos da autogestão. Estou empre-

gando o termo autogestão no sentido amplo, tanto a autogestão

informal da coletividade quanto a formal.

As exigências com relação

à

autogestão e as técnicas para exe-

cutá-Ia nas grandes cidades são diferentes daquelas próprias de

localidades menores. Existe, por exemplo, o problema dos estra-

nhos. Para pensar nos bairros como órgãos urbanos autogeridos

ou dotados de governo próprio, precisamos primeiro refutar a l-

gumas idéias ortodoxas mas descabidas acerca dos bairros que

talvez se apliquem a comunidades de povoados pequenos, mas

não a cidades. Em primeiro lugar, devemos refutar qualquer mo-

delo que encare os bairros como unidades auto-suficientes ou

introvertidas.

- ~

exigente dando-lhe singelas guloseimas concretas Na prática,

causa e efeito não são assim tão singelos. Tanto que um estudo

feito em Pittsburgh, com o intuito de demonstrar a suposta ínti-

ma correlação entre moradias melhores e condições sociais mais

altas, comparou os índices de delinqüência em cort iços com

aqueles em novos conjuntos habitacionais e chegou

à

embaraço-

sa conclusão de que a delinqüência era mais alta nos conjuntos

habitacionais em que havia melhorias . Será que isso significa

que moradias melhores aumentam a criminalidade? De modo al-

gum. Significa, porém, que outras coisas podem ser mais impor-

tantes que a habitação e também que não existe nenhuma rela-

ção direta e elementar entre boa moradia e bom comportamento,

fato que toda a história da civilização ocidental, todas as obras da

nossa literatura e todo o estoque de observações de que dispo-

mos deveriam ter tornado evidente há muito tempo. Um bom

abrigo é um bem útil em si enquanto abrigo. Quando, ao contrá-

rio, tentamos justificar um bom abrigo com o pretenso argumen-

to de que ele fará milagres sociais e familiares, estamos enga-

nando a nós mesmos. Reinhold Niebuhr denominou essa ilusão

_ ~outrina da salvação pelos tijolos .

Acontece o mesmo com as escolas. Não se pode depender

das boas escolas, embora elas sejam importantes, para a recupe-

ração de bairros ruins e a criação de bairros bons. Da mesma ma-

neira, um bom prédio escolar não garante uma boa educação. As

escolas, 'corno os parques, têm tudo para ser elementos passagei-

ros do bairro (assim como elementos de um plano de ação polí ti-

ca mais amplo). Em bairros ruins, as escolas acabam arruinadas,

f ís ica e socia lmente, ao passo que os bairros prósperos aprimo-

ram suas escolas lutando por elas'.

1 . No Upper West S ide de Manha tt an , uma zona bas tant e degradada , onde a des in tegração

soc ia l f oi agravada por demol ições i nsensa tas, pela const rução de con junt os hab it ac iona is e

pelo des locament o f orçado de pessoas , o í nd ice de t rans fe rênc ia de a lunos nas escolas f oi

super io r a 50 por cen to em 1959· 60. Em 16esco las, a ti ng iu a méd ia de92 por cen to. É absur-

do pensar que, sejam quais forem as iniciat ivas, governamentais ou privadas, a té mesmo uma

escola mediana possa subsist ir num bairro a tal ponto instável. t imposslvel haver boas escolas

em qualquer bairro instável com alto Indice de t ransferência de alunos, e a i se i nc luem osba ir -

rosinstáveis que

também

dispõem de boas moradias.

126

M O R TE E V I DA D E G RAND ES C ID ADE S

namento, a não ser em circunstâncias absolutamente extraordi-

A N A T U R E Z A P E C U L IA R D AS C I DADES 127

Infelizmente, a teoria urbanística ortodoxa está profundamen-

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7/18/2019 JANE JACOBS - Morte e Vida de Grandes Cidades

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nárias. E nem mesmo o planejamento de bairros, por mais agra-

dável que tente ser, consegue mudar esse fato. Se conseguisse,

ser ia à custa da destruição da cidade, convertendo-a numa por-

ção de cidadezinhas. Assim, o preço da tentat iva, sem que ao

menos se tenha sucesso nessa meta mal orientada, é a transfor-

mação da cidade numa porção de Territórios hostis e desconfia-

dos uns dos outros. Há muitas outras falhas nesse  ideal de bair-

roplanejado e em suas várias adaptações',

Ultimamente, alguns urbanistas, especialmente Reginald Isaacs,

de Harvard, ousaram questionar se o conceito de bairro em me-

trópoles tem algum sentido. Isaacs ressalta o fato de que os mo-

radores urbanos têm mobilidade. ,Eles costumam escolher , em

toda a cidade e até fora dela, o trabalho, o dentista, o lazer, ami-

g o s ,

lOJas,entretenimento e até mesmo, em certos casos, a esco- -

Ia dos filhos. Os moradores urbanos, diz Isaacs, não se prendem

ao provmclamsmo de um bauro - e por que o fanam? A vanta-

 L gêm das cidades não e lustamente a variedade de opções e a far-

Ju ra de QPoctunida~

Essa é de fato a vantagem das cidades. Além do mais, a pró-

pria f luência de usos e de escolhas dos moradores urbanos cons-

t itui a base que sustenta a maioria das ativ idades culturais e das

empresas especial izadas das cidades. Já que estas podem atra ir

pessoal qualificado, materiais, os fregueses e a clientela desse

grande pool, elas têm condições de existir numa gama extraordi-

te comprometida com o modelo de bairros supostamente acolhe-

dores e voltados para si. Na forma original, o modelo consiste

numa unidade de vizinhança, consti tuída por cerca de 7 mil pes-

soas, que tenha tamanho sufic iente para conter uma escola ele-

mentar e para manter lojas de conveniência e um centro comuni-

tário. Essa unidade foi ainda imaginada com subdivisões em

agrupamentos menores, de um tamanho que atenda à diversão

infantil, ao presumível controle sobre as crianças e ao bate-papo

das donas de casa. Embora esse modelo ideal raramente seja

reproduzido à risca, é o ponto de partida para quase todos os

projetos de revitalização de bairros, todas as construções de con-

juntos residenciais, maior parte do zoneamento moderno e tam-

bém os trabalhos feitos atualmente pelos estudantes de arquite-

tura e urbanismo, que vão impor essas adaptações às cidades de

amanhã. Em 1959, só na cidade de Nova York mais de meio mi-

lhão de pessoas já viviam de acordo com adaptações dessa con-

cepção de bairro planejado. Esse ideal de bairro em forma de

ilha, voltado para simesmo, é um fator importante na vida atual.

Para percebermos por que se trata de um ideal absurdo e

até nocivo às cidades, precisamos reconhecer uma diferença fun-

damental entre essas invenções enxertadas nas cidades e a vida

em cidades de pequeno porte. Em cidades pequenas de 5 mil ou

10 mil habitantes, se você for à rua principal (análoga à infra-

estrutura comercial implantada ou ao centro comunitário de um

bairro planejado), encontrará pessoas que conhece do trabalho

ou foram suas colegas de escola, ou com quem você se encontra

na igreja, ou que são professoras dos seus filhos, ou lhe presta-

ram serviços informais, ou que você sabe serem amigas de co-

nhecidos seus, ou que você conhece de nome. Dentro dos limi-

tes de uma cidadezinha ou de uma vila, os laços entre os habi-

tantes se cruzam e vol tam a se cruzar, o que pode resul tar em

comunidades fundamentalmente coesas , mesmo em cidades

com mais de 7 mil habitantes e, em certa medida, em cidades ain-

da maiores.

Porém, uma coletividade de 5 mil ou 10mil moradores deuma

metrópole não possui esse mesmo grau natural de inter-relacio-

2 . At é m esm o a velha ju stificativ a pa ra as s ent ar u ma popula ção ide a l d e c e rca de 7 m il p e ss o as

- suf icie nt e p ar a o c u pa r u m a es c o la e l em e n ta r - revel a - s eab s u rd a a s si m q u e a p licad a a met ró-

poles, com o p od em os co nclu ir fa ze nd o- no s u m a p erg un ta s im ple s: q ue e sc ola? E m m u i ta s

c idades d o s E s ta d os U n id os , o n ú me ro d e m a tr ic u las e m e s co la s m a n t id a s p o r i g re ja s é igualou

a té m aior do qu e o de esc ola s púb li c as. I s sos i gn i fic ar ia q u e d ev er ia h av er d uas esc o las c om o

e lem ent o d e c o es ão d a co mu ni da de o u q ue a c om u nid ad e d ever ia s er d u a s veze s ma io r? O u o

número d e m o ra do res está corr eto e a s e sc olas é qu e de veriam ter a m eta de d o ta manho? E

p o r q u e u m a e sc ol a e l em enta r? S e a e sc ol a d e ve ser o p a d rã o d e p r op o rc io n a lid ad e, p or q ue

n ão a e sc ola de ens in o m édio, i n s ti t u iç ão no rm a lm ent e m u i to m a is p r ob le m á tica na s nossas

c i da de s q u e a e sc ol a f u n dam en ta l? N u nc a s e f ala p erg un ta Q ue e sco la ?  p or qu e o p la no

v isi on ário n ão se b aseia n em n a r e a li da d e d as es colas ne m em nenhu m a ou tra . A e sc ola é u m a

de scu lp a p la u sív e l e g eralm en te a bst ra ta p a ra d e fi nir algum t am a nh o p ara as ci dades or igina -

d a s e m s on h os s ob re u m a cidade ima ginária . E la é n ecessári a c om o re ferênci a, pa ra e v it a r u m

ca os i nt el ec tu a l e nt re o s p ro je ti st as , m a s n ã o t em nen h u m a o u tr a j u st if ic a tiva. O m od el o d as

C i dades - Ja rd im de Ebenez er H o wa rd é , s em d úvi da , o a ntece ss o r d e ss e c o nce it o, m as su a p e re -

n id a d e a d vé m d a n e cess idade d e p r ee n ch e r u m vaz io int e le ctual.

128

M O R TE E V I D A D E G R AN D ES C I DA D ES

nária, e não só no centro urbano, mas também em outros distri-

A N A TU R E ZA P E CU L IA R D A S C I DA D ES

129

todo; (2) a vizinhança de rua; e (3) distri tos extensos, do tama-

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tos que tenham desenvolvido características e especialidades

próprias . E, ao se aproveitar dessa maneira do grande pool das

cidades, os empreendimentos urbanos, por sua vez, aumentam as

opções de emprego, bens, entretenimento, idéias, contatos e ser-

viços para os moradores urbanos.

[, Sejam os bairros o que forem e seja qual for sua funcionali-

dade, ou a funcionalidade que sejam levados a adquirir, suas

qualidades não podem conflitar com a mobilidade e a flu idez de

uso urbano consolidadas, sem enfraquecer economicamente a

cidade de que fazem parte. A falta de autonomia tanto econômi-

ca quanto social nos bairros é natural e necessária a eles, sim-

plesmente porque eles são integrantes das cidades. Isaacs tem

razão ao concluir que a concepção de bairro em metrópoles não

tem sentido - se encararmos os bairros como unidades autôno-

mas em qualquer grau significativo, inspirados em bairros de

cidades de pequeno porte.

Apesar da extroversão inerente aos bairros , isso não quer di-

zer obrigatoriamente que os moradores consigam viver bem sem

eles como num passe de mágica . Até mesmo o mais citadino dos

cidadãos se importa com o ambiente da rua e do distrito em que

mora, sejam quais forem suas opções fora deles; e os moradores

comuns das cidades dependem bastante de seu bairro na vida

cotidiana que levam.

Presumamos (como é sempre ocaso) que os vizinhos não te-

nham nada em comum além do fato de viverem num mesmo es-

paço geográfico. Ainda assim, se não cuidarem do bairro adequa-

damente, esse espaço entrará em decadência. Não existe um eles

incrivelmente onisciente e dinâmico que assuma o comando e se

encarregue da autogestão. Os bairros metropolitanos não preci-

sam proporcionar a seus moradores uma imitação da vida das

vilas ou das cidades de pequeno porte , e desejar que isso. aconte-

ça é tão inútil quanto prejudicial. Mas os bairros precisam prover

alguns meios de autogestão civilizada. Esse é o problema.

~

Considerando os bairros como órgãos autogeridos, só consi-

go achar produtivos três tipos de bairro: (1) a cidade como um

nho de uma subcidade, compostos por 100 mil habitantes ou

mais, no caso de cidades maiores.

Cada um desses t ipos de bairro tem funções diferentes , mas

um complementa o outro de modo complexo. Não se pode dizer

que um seja mais importante que os outros. Os três são necessá-

r ios para a perenidade em qualquer ponto. Mas acho que outros

bairros que não esses três acabam se interpondo e dificultando

ou impedindo o êxito da autogestão.

O mais óbvio desses três tipos, raramente chamado de bairro,

é a cidade como um todo. Não podemos nunca esquecer ou des-

prezar essa colet ividade maior ao pensar nos segmentos meno-

res de uma cidade. É dessa fonte que flui a maior parte do di-

nheiro público, mesmo que ele provenha, em última instância, do

tesouro federal ou estadual. É aí que se toma a maioria das deci-

sões administrativas e políticas, boas ou ruins.

É

aí que o bem-

estar geral entra num dos piores conflitos, aberto ou velado, com

os interesses ilegais e outros igualmente destrutivos.

Além disso, encontram-se , nesse mesmo plano, grupos com

interesses específ icos e grupos de pressão. O bairro da cidade

como um todo é o local onde as pessoas que têm interesse especí-

fico em teatro ou em música ou em outras formas de arte se

encontram e se reúnem, onde quer que morem.

É

aí que as pes-

soas dedicadas a profissões ou a negócios específicos ou preocu-

padas com determinados problemas t rocam idéias e às vezes

começam a agir. O Professor P.Sargant Florence, especialista bri-

tânico em economia urbana, escreve: Segundo minha experiên-

cia, sem contar um local específico de intelectuais, como Oxford

ou Cambridge, uma cidade de um milhão de habitantes deve ser

capaz de me proporcionar, digamos, os vinte ou trinta amigos

compatíveis comigo de que necessito Isso soa um tanto esnobe,

sem dúvida, mas o que o Professor Florence diz é verdade. Talvez

ele goste que seus amigos fiquem sabendo o que ele está queren-

do dizer. Quando William Kirk, do Núcleo Comunitário Union, e

Helen HaU, do Núcleo Comunitário da Rua Henry, bem distantes

um do outro em Nova York, reúnem-se com o pessoal da Con-

sumers' Union - revista cuja sede também fica longe - , com pes-

130 MO RTE E V ID A D E G RAN DES CIDADES

A N AT U RE ZA P EC U LI AR D AS C ID AD ES 131

quisadores da Universidade de Colúmbia e com os curadores de

uma fundação para discuti r a falência financeira, pessoal e da

Na outra ponta da escala encontram-se as ruas e as minúscu-

las vizinhanças que elas formam, como, por exemplo, a vizi-

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comunidade, provocada pelos empréstimos de agiotas aos con-

juntos habitacionais de baixa renda, sabem o que os outros estão

querendo dizer e, além disso, conseguem associar sua forma pe-

culiar de conhecimento a um tipo especial de capital para conhe-

cer o problema e encontrar meios de combatê-Ia. Quando minha

irmã, Betty, que é dona de casa , participou da elaboração de um

plano para a escola pública de Manhattan que um de seus filhos

cursa, por meio do qual os pais que sabem o inglês ajudam nas

lições de casa as crianças cujos pais não conhecem o idioma, e o

plano deu certo, esse conhecimento se infiltrou pelo bairro da ci-

dade como um todo com um interesse específ ico. Por causa dis-

so, a Betty viu-se uma noite na região da Bedford-Stuyvesant, no

Brooklyn, contando a um grupo de dez presidentes de Associa-

ções de Pais e Mestres (APMs) do distr ito como esse plano fun-

ciona e aprendendo com eles coisas novas.

Um dos maiores trunfos de uma cidade, senão o maior , é for-

mar comunidades com interesses comuns. Por outro lado, um dos

trunfos necessários aos dis tr itos urbanos é contar com pessoas

que tenham acesso a grupos políticos, administrativos e de inte-

resse comum na cidade como um todo.

Na maioria das cidades grandes, nós, norte-americanos, te-

mos certa facilidade para criar bairros úteis que abranjam toda a

cidade. As pessoas que possuem interesses similares ou comple-

mentares não têm dificuldade em se descobrir umas às outras.

Nesse aspecto, normalmente elas têm mais condições de fazê-lo

nas grandes cidades (exceto Los Angeles, que é terrível para

isso, e Boston, que é patética). Além do mais, como Seymour

Freedgood, da revista

Fortune,

tão bem documentou em

The Ex-

ploding Metropolis [A metrópole em explosão], os governos das

cidades grandes costumam ser competentes e ativos em vários

aspectos , mais do que se poderia depreender ao observar os pro-

blemas sociais e econômicos dos inúmeros bairros fracassados

das mesmas cidades. Seja qual for nossa desastrosa deficiência,

dificilmente se trata da mera incapacidade de formar vizinhan-

ças no geral , a partir da cidade como um todo.

nhança da nossa Rua Hudson.

Nos primeiros capítu los deste l ivro, insist i bastante nas atri-

buições da autogestão das ruas: tecer redes de vigilância pública

e, assim, proteger os estranhos e também a si próprios; formar

redes em escala reduzida na vida cot idiana do povo e, conse-

qüentemente, redes de confiança e de controle socia l; e propi-

ciar a integração das crianças a uma vida urbana razoavelmente

responsável e tolerante.

Todavia, as vizinhanças têm ainda outra atribuição vita l na

autogestão: devem ter meios efetivos de pedir auxílio diante de

um problema de grandes proporções que a própria rua não con-

siga resolver. Às vezes, esse auxílio precisa vir da cidade como

um todo, na outra ponta da escala. Esse é um fio da meada que

vou deixar solto, mas que gostaria que vocês recordassem.

Todas as atribuições da autogestão das ruas são modestas mas

indispensáveis . Apesar das várias experiências , p lanejadas ou

não, não há o que substitua as ruas vivas.

De que tamanho deve ser uma vizinhança para que ela funcio-

ne bem? Se atentarmos para as redes de vizinhança bem-sucedi-

das na vida real, veremos que essa pergunta não tem sentido, por-

que, onde quer que funcionem bem, as viz inhanças não têm nem

começo nem fim que as distinga como unidades separadas. O

tamanho difere até para pessoas do mesmo lugar, porque algumas

delas vão mais longe, f icam mais tempo na rua ou têm conheci-

dos que se encontram mais longe que os de outras pessoas. Sem

dúvida, grande parte do êxito dessas vizinhanças depende da sua

sobreposição e da sua interpenetração para além das esquinas.

Essa é uma das maneiras pelas quais elas apresentam a seus fre-

qüentadores uma variação econômica e visual. A parte residen-

cial da Park Avenue, de Nova York, parece ser um exemplo extre-

mo de vizinhança monótona, e o seria se constituísse uma faixa

isolada de vizinhança de rua. Mas, para um morador da Park

Avenue, a vizinhança apenas começa aí; basta sair da avenida e

virar a esquina. Ela não é apenas uma faixa, mas integra um con-

junto de vizinhanças entrelaçadas de grande diversidade.

~

 32

M O R TE E V I D A D E G R A N DE S C I DA D ES

A N A TU R E ZA P E CU L I AR D A S C I DA D ES

 33

Sem dúvida podemos encontrar muitas vizinhanças isoladas

com limites definidos. Elas geralmente existem em quadras lon-

afligidas pela Grande Praga da Monotonia. Não obstante, inú-

meras ruas desempenham bem suas modestas atribuições e tam-

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gas (e daí haver poucas ruas), porque as quadras longas quase

sempre tendem ao auto-isolamento físico. Não há o que fazer

com uma vizinhança nit idamente isolada; o fracasso é uma ca-

racter ís tica comum a elas . Aodescrever os problemas de uma

área de quadras longas, monótonas e isoladas no West Side de

Manhattan, o Dr. Dan W Dodson, do Centro de Estudos de Re-

lações Humanas da Universidade de Nova York, observou: Ca-

da uma [rua] parece ser um mundo à parte, com uma cultura à

parte. Muitos dos entrevis tados não tinham idéia do bairro além

da rua em que moravam.

Resumindo a incompetência do local , o Dr. Dodson comen-

tou: A si tuação atual da vizinhança indica que os moradores

perderam a capacidade de atuar colet ivamente, senão já teriam

há muito tempo pressionado a prefeitura e as instituições sociais

para que resolvessem alguns dos problemas que afetam as con-

dições de vida da comunidade. Essas duas observações do Dr.

Dodson a respeito do isolamento por ruas e da incompetência

estão intimamente relacionadas.

As vizinhanças prósperas não são, em resumo, unidades dis-

tintas. Formam um contínuo físico, social e econômico - sem

dúvida de tamanho reduzido, mas reduzido no sentido de que o

comprimento das fibras que consti tuem uma corda são de tama-

nho reduzido.

Nos locais em que as ruas possuem estabelecimentos comer-

ciais, vivacidade, usos e atra tivos sufic ientes para cult ivar essa

continuidade de vida, nós, norte-americanos, mostramo-nos mui-

to capazes de autogerir as vias públicas.

É

mais comum consta-

tar e comentar-se a existência dessa capacidade nos dis tr itos de

população pobre, ou outrora pobre. Mas vizinhanças de rua ca-

suais e boas no que se espera delas são também uma característi-

ca das zonas de alta renda que mantêm popularidade constante -

em lugar de serem uma moda passageira -, como por exemplo o

East Side de Manhattan, das ruas 50 até as 80, e o distrito da

Rittenhouse Square, em Filadélfia.

Não resta dúvida de que faltam às nossas cidades ruas prepa-

radas para a vida urbana. Em vez delas, temos extensas áreas

bém conquistam a confiança, a não ser que - ou até que - sejam

destruídas pelo impacto de problemas muito grandes ou pela fal-

ta prolongada de melhorias que só possam provir da cidade

como um todo, ou ainda por políticas de planejamento delibera-

das, que os moradores não tenham forças para enfrentar.

E chegamos aqui ao terceiro tipo de bairro que serve para a

autogestão: o distrito. Neste, penso eu, geralmente somos menos

efetivos, e nosso fracasso é mais desastroso. Temos uma profu-

são de locais chamados distritos. Poucos deles funcionam.

A função principal de um distrito bem-sucedido é servir de

mediador entre as vizinhanças que são indispensáveis mas não

têm força política, e a cidade como um todo, inerentemente po-

derosa.

Existe muita ignorância entre os responsáveis pelas cidades

que estão no topo. Não há escapatória, pois as grandes cidades são

simplesmente grandes e complexas demais para que sejam com-

preendidas em detalhe de qualquer perspectiva - quer a das altas

esferas, quer a de qualquer ser humano. Mesmo assim, o detalhe

é fundamental. Os integrantes de um grupo distri ta l do East Har-

lem, antes de um encontro marcado com o prefeito e seus secre-

tários, prepararam um documento relatando a devastação provo-

cada no distrito por decisões de fora (a maioria delas bem-inten-

cionada, é claro) e fizeram este comentário: Devemos salientar

que constatamos freqüentemente que nós, que moramos e traba-

lhamos no East Harlem, que temos contato diár io com o bairro,

o vemos de maneira bem diferente ( ... ) daqueles que apenas pas-

sam por ele a caminho do trabalho ou lêem a respeito dele nos jor-

nais ou, mais ainda, acreditamos, daqueles que tomam decisões

sobre ele em repartições no centro da cidade. Ouvi quase as mes-

mas palavras em Boston, Chicago, Cincinnati , St. Louis. É uma

queixa que não deixa de se repetir em todas as nossas grandes

cidades.

Os distritos precisam ajudar a implantar os recursos típicos da

cidade onde eles são mais necessários para os bairros e devem

134 MORTE E VIDA DE GRANDES CIDADES A NATU REZA PECU LIAR DAS CIDADES 135

\

ajudar a traduzir a vivência real dos bairros em polí ticas e metas

para a cidade como um todo. E precisam ajudar a preservar uma

armada e roubos na rua. As pessoas começaram a ficar com me-

do de voltar para casa às sextas-feiras com o pagamento no bol-

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7/18/2019 JANE JACOBS - Morte e Vida de Grandes Cidades

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região que pode ser utilizada, de maneira civilizada, não sópelos

seus moradores como também por outros usuários - trabalhado-

res, fregueses, visitantes - da cidade inteira.

Para executar essas funções, um distrito competente precisa

possuir tamanho suficiente para ter força na vida da cidade como

um todo. O bairro ideal da teoria urbaníst ica não se presta a

esse papel. Um distrito precisa ser suficientemente grande e for-

te para brigar na prefei tura. Nada mais nada menos. Claro que

brigar na prefeitura não é a única atribuição do distrito ou neces-

sariamente a mais importante. Porém, essa é uma boa definição

de tamanho, no tocante à funcionalidade, porque às vezes o dis-

trito tem de fazer exatamente isso e também porque o distrito

que não tiver força e vontade para brigar na prefeitura - e ga-

nhar - , quando sua população se sentir muito prejudicada, é bem

capaz de não possuir força e vontade para enfrentar outros pro-

blemas sérios.

Vamos voltar um instante às vizinhanças de rua e pegar o fio

da meada que deixei solto: a incumbência que recai sobre uma

vizinhança efetiva de buscar auxílio quando surge um problema

muito grande.

Não há desamparo maior que o de uma rua sozinha quando

os problemas ultrapassam suas forças. Como exemplo, veja o

que aconteceu num caso de tráfico de drogas em uma rua do

Upper West Side de Manhattan, em 1955. Essa rua era habitada

por moradores que trabalhavam por toda a cidade e tinham co-

nhecidos tanto na rua como fora dela. Na própria rua , levavam

uma vida em público razoavelmente ativa, que se concentrava

junto à porta das casas, mas não havia comércio no bairro nem

figuras públicas constantes . Eles também não tinham relações

com outras vizinhanças do distrito; na verdade, a região deles não

era um distri to, a não ser no nome.

Quando num dos prédios começou a ser vendida heroína, uma

enxurrada de viciados invadiu a rua - não para morar, mas para

fazer contatos. Eles precisavam de dinheiro para comprar a dro-

ga. Uma das conseqüências foi uma epidemia de assaltos à mão

so. Às vezes, os moradores se aterrorizavam com gritos lanci-

nantes durante a madrugada. Eles tinham vergonha que seus ami-

gos fossem visi tá- los . Alguns dos adolescentes da rua eram vi-

ciados, e outros estavam a caminho.

Os moradores , a maioria dos quais conscienciosos e honra-

dos, f izeram o que estava a seu alcance. Chamaram a polícia vá-

rias vezes. Algumas pessoas decidiram que o departamento com-

petente a que deveriam recorrer era a Equipe de Narcóticos. Eles

contaram aos investigadores onde se vendia heroína, quem a ven-

dia e quando era vendida e em que dias provavelmente se fazia o

abastecimento.

Não aconteceu nada - a não ser que as coisas continuaram a

piorar.

Não acontece grande coisa quando uma ruazinha desassistida

luta sozinha contra um dos maiores problemas de uma cidade

grande.

Será que a polícia foi subornada? Como é que sevai saber?

À falta de uma vizinhança no distrito, à falta de conhecimen-

to de outras pessoas que se importassem com o problema desse

lugar e pudessem dar mais peso à luta, os moradores foram até

onde sabiam ir. Por que eles não chamaram nem sequer o verea-

dor do local ou ent raram em contato com o diretório polí tico?

Ninguém da rua conhecia essas pessoas (um vereador tem cerca

de 115 mil eleitores), nem conhecia ninguém que as conhecesse.

Resumindo, essa rua simplesmente não tinha relação alguma

com a vizinhança do distri to, quanto mais relações produtivas

com uma vizinhança efetiva. Os moradores da rua que talvez pu-

dessem tratar do problema mudaram-se ao perceber que a situa-

ção era desesperadora. A rua mergulhou em verdadeiro caos e

barbárie.

Nova York teve um comissário de políc ia competente e dili-

gente durante esses acontecimentos, mas ninguém conseguia che-

gar até ele. Sem uma compreensão real nas ruas e a pressão dos

distritos, até ele estaria em certa medida de mãos atadas. Por cau-

sa dessa lacuna, uma grande dose de boa intenção nos altos es-

calões tem poucos resultados lá embaixo, e vice-versa.

1 36 M ORTE E VID A D E G R AN DES CIDADES

A N AT UR EZ A P EC UL IA R D AS CI DA DE S 1 37

Às vezes a cidade não atua em favor da rua, mas contra ela,

e mais uma vez, se a rua não contar com cidadãos influentes,

to, presidente da Associação de Moradores do Greenwich Villa-

ge, e as pessoas da nossa delegação que mais f izeram peso eram

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ficará totalmente indefesa. Recentemente tivemos esse proble-

ma na Rua Hudson. Os engenheiros da região administrat iva de

Manhattan decidi ram reduzir nossas calçadas em 35 cent íme-

tros. Isso fazia parte de um programa municipal rotineiro e des-

cabido de alargamento do leito dasruas para veículos.

Nós, os moradores, f izemos o que pudemos. O gráfico parou

a impressora, ret irou dela um trabalho urgente e imprimiu peti-

ções de emergência no sábado de manhã, para que as crianças,

que estavam de folga da escola, pudessem ajudar a distribuí-Ias.

Os moradores das vizinhanças apanharam as petições e as distri-

buíram em lugares ainda mais distantes. As duas escolas manti-

das pela Igreja Episcopal e pela Igreja Católica f izeram com que

seus alunos levassem as petições para casa. Obtivemos cerca de

mil assinaturas na nossa rua e nas ruas vizinhas; essas assinatu-

ras representavam provavelmente a maioria dos adultos direta-

mente atingidos. Muitos comerciantes e moradores escreveram

cartas, e um grupo de representantes formou uma delegação

para falar com o presidente da região administrativa, o funcioná-

rio responsável eleito.

Sozinhos, dificilmente teríamos tido qualquer chance. Nós nos

insurgimos contra uma política pública enraizada de tratamento

das ruas e nos opúnhamos a uma obra que significar ia muito di-

nheiro para alguém e cujos trâmites já estavam em estágio bem

avançado. Soubemos com antecedência do plano de obras por

pura sorte. A comunicação pública não havia sido necessária, por-

que tecnicamente se tratava apenas do recuo do meio-fio.

Primeiramente nos disseram que o plano não seria alterado; a

calçada tinha de ser recuada. Precisávamos de mais forças para

escudar nosso insignificante protesto. Esse apoio veio do nosso

distrito, Greenwich Village. Na verdade, uma das principais in-

tenções das nossas petições, embora não ostensiva, era alardear

para todo o distrito que havia surgido uma questão polêmica. As

rápidas decisões tomadas pelas organizações do distri to foram

mais valiosas para nós do que a expressão da opinião da vizinhan-

ça. A pessoa que assumiu nossa representação, Anthony Dapoli-

de outras ruas que não a nossa; algumas moravam do outro lado

do distrito. Elas f izeram peso exatamente por representar a opi-

nião pública e os formadores de opinião de todo o distr ito. Com

a ajuda delas, nós vencemos.

Sem contar com tal apoio, a maioria das ruas nem chega a ten-

tar reagir - mesmo que seus problemas tenham origem na prefei-

tura ou em outros inconvenientes da natureza humana. Ninguém

gosta de envolver-se com o que não dá resultado.

A ajuda que obtivemos impõe a algumas pessoas de nossa

rua, é claro, a responsabilidade de auxiliar outras ruas ou apoiar

causas mais genéricas do distri to quando se fizer necessário. Se

descuidarmos disso, talvez não tenhamos ajuda da próxima vez.

Os dis tr itos que conseguem levar a vivência das ruas para os

escalões superiores às vezes ajudam a transformá-Ia em diretri-

zes municipais. Os exemplos disso são infindáveis, mas este ser-

ve como ilustração: neste momento, o município de Nova York

está •supostamente aprimorando o tra tamento dispensado aos

viciados em drogas, e simultaneamente a prefeitura está pressio-

nando o governo federal a expandir e reformular sua polít ica e a

aumentar o empenho em impedir o contrabando de entorpecen-

tes do exterior. O estudo e a movimentação que ajudaram a im-

pulsionar essas ações não tiveram origem num misterioso eles .

A primeira in iciat iva pública pela reformulação e expansão do

tratamento foi fomentada não por autoridades, mas por grupos

de pressão de distritos como o East Harlem e o Greenwich

Village. A denúncia e a divulgação da vergonha que é o fato de

os boletins de detenções estarem forrados de nomes de vítimas,

enquanto os traficantes operam às claras e impunemente, parti-

ram desses grupos de pressão, não de autoridades e menos ainda

da polícia. Esses grupos de pressão analisaram o problema, têm

exigido mudanças e continuarão a fazê-lo, exatamente porque

estão em contato dire to com casos ocorridos nas ruas vizinhas.

A experiência daquela rua sol itária do Upper West Side, por

outro lado, não tem nada para ensinar a ninguém - a não ser

safar-se.

1 38 M OR TE E V ID A D E G RA ND ES CIDADES

A N AT U RE Z A P EC ULI AR D AS C ID AD ES 1 39

É

tentador achar que se pode criar um distrito por meio de

uma federação de bairros distintos. O Lower East Side, em Nova

áreas menores do distrito. Naturalmente, elas tentaram restringir

a luta ao âmbito local , e o governo municipal tentou o mesmo. A

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York, está atualmente tentando formar um distri to de verdade,

nesses moldes, e para isso tem recebido altas somas em doações

filantrópicas. O sistema federativo formal parece funcionar mui-

to bem com metas com as quais praticamente todos concordam,

como exigir um novo hospital. Mas muitas das questões vitais da

vida urbana local são controvertidas . No Lower East Side, por

exemplo, a estrutura organizacional federativa do distrito inclui,

neste momento, pessoas que tentam impedir que tratores ponham

abaixo suas casas e também abrange os construtores de conjun-

tos habitacionais cooperativados e vários outros grupos de inte-

resse que querem que o governo utilize seu poder de condenar

uma área com o fim de despejar esses mesmos moradores. Tra-

ta-se de conflitos de interesses genuínos - neste caso, o antiqüís-

simo conflito entre a caça e o caçador. As pessoas que tentam

preservar-se empenham seus esforços, em vão, tentando que rei-

v indicações e cartas de petição sejam aprovadas por conselhos

diretores compostos por seus principais adversários

Ambas as facções da renhida disputa por questões locais im-

portantes precisam mostrar-se com toda a força que consegui-

rem reunir em todo o distrito (menos que isso é inútil) para me-

xer com a polí tica municipal que eles pretendem alterar ou com

as decisões que pretendem influenciar. Têm de lutar por i sso

entre si e com as autoridades, no âmbito em que as decisões são

efetivamente tomadas, porque é isso que importa para que ven-

çam. Qualquer coisa que leve os competidores a fracionar seu

poder ou diluir sua força, recorrendo a moções de tomada de

decisão envolvendo burocracia e comissões sem poder decisó-

r io no governo, destrói a vida polít ica , a eficácia dos cidadãos e

a autogestão. Passa a ser um arremedo de autogestão, não uma

autogestão verdadeira.

Quando, por exemplo, o Greenwich Village brigou para evitar

que seu parque, a Washington Square, fosse cortado por uma via

expressa, a maioria era esmagadoramente contra. Mas não era

uma opinião unânime. Entre os indivíduos favoráveis à via ex-

pressa estavam pessoas eminentes, com posição de liderança em

opinião da maioria ter ia se esvaziado com essa tát ica , em vez de

prevalecer. Na verdade, ela vinha sendo esvaziada até que a ver-

dade foi trazida à tona por Raymond Rubinow, que trabalhava no

distrito mas não morava lá. Rubinow ajudou a constituir um

Comitê Conjunto de Emergência, uma verdadeira organização

distri ta l que se sobrepunha a outras formas de organização. Os

distritos competentes funcionam como entidades separadas, e os

cidadãos que estejam de acordo sobre questões controversas de-

vem principalmente atuar de modo coletivo no âmbito distrital,

do contrário nada conseguem. Os distri tos não são um conjunto

de principados insignificantes que atuam federativamente. Quan-

do funcionam, funcionam como unidades dotadas depoder e opi-

nião e com tamanho suficiente para se fazerem valer.

Nossas cidades têm muitos bairros parecidos com ilhas, pe-

quenos demais para funcionar como distri tos , e entre eles estão

não só os bairros planejados impostos pelo urbanismo, mas tam-

bém vários bairros espontâneos. Essas unidades espontâneas e

diminutas surgiram ao longo do tempo e quase sempre são en-

craves de grupos étnicos bem definidos. Elas geralmente desem-

penham bem e energicamente as funções que as ruas têm num

bairro e, assim, mantêm surpreendentemente sob controle ospro-

blemas sociais e as mazelas resultantes. Porém, esses mesmos

pequenos bairros também se vêem desamparados, da mesma

forma que as ruas, com relação aos problemas e às mazelas vin-

das de fora. Não possuem infla-estrutura pública e de serviços

porque não dispõem de poder para obtê-Ia. São impotentes dian-

te da morte lenta imposta pelos credores hipotecários por meio

da concessão e da recusa de empréstimos, um problema de solu-

ção extremamente di ficil mesmo quando o distrito tem muita

força. Se entrarem em conflito com os moradores de um bairro

vizinho, tanto eles como os vizinhos não conseguirão ajuda para

melhorar suas relações. Na verdade, o isolamento faz com que

essas relações se deteriorem ainda mais.

Sem dúvida, às vezes um bairro muito pequeno para funcio-

nar como um distrito tem acesso às vantagens do poder por ter

140

M O RT E E V I D A D E G R A N DE S C I DA D ES

A N AT U RE ZA P EC U LIA R D A S C I DA D ES

141

corno morador um cidadão extremamente influente ou uma ins-

t ituição importante. Mas os cidadãos de um bairro desses paga-

tração municipal, assunto de que não precisamos tra tar no mo-

mento. Todavia, precisamos, entre out ras coisas, erradicar as

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rão pela dádiva gratuita de poder no dia em que seus interes-

ses conflitarem com os do Papai Manda-Chuva ou da Mamãe

Instituição. Eles não têm poder para derrotar Papai nos órgãos

públicos, lá nas altas esferas onde as decisões são tornadas,

e

portanto são também impotentes para dizer-lhe o que querem

ou

influenciá-lo, Os cidadãos de bairros que incluem urna uni-

versidade, por exemplo, se encontram sempre nessa situação

sem saída.

A possib il idade de um distr ito com potencial tomar-se com-

petente e capaz de se autogerir democraticamente depende muito

de conseguir ou não vencer o isolamento de seus pequenos bair-

ros. Trata-se principalmente de um problema político e social do

distrito e dos competidores que ele contém, mas é também um

problema fisico. Planejar deliberada e concretamente, segundo a

premissa de que bairros superados e menores que um distri to são

um ideal desejável, significa subverter a autogestão. Motivações

sentimentais ou paternalistas não ajudam em nada. Quando o iso-

lamento fisico é induzido por diferenças sociais gritantes, corno

ocorre em conjuntos residenciais cujos moradores são rotulados

pelo preço, a política administrativa é tremendamente perniciosa

para a autogestão e o autogoverno efetivo nas cidades.

Não é descoberta minha o valor dos distri tos urbanos que os-

tentam um poder real (no qual , porém, as vizinhanças não sejam

unidades infinitesimais desconexas). Esse valor tem sido redes-

coberto e comprovado empiricamente vezes sem fim. Quase to-

das as grandes cidades possuem pelo menos um desses dis tr itos

efet ivos. Muitas outras áreas lutam esporadicamente para fun-

cionar corno um distrito em épocas de crise.

Não surpreende que os distritos razoavelmente prósperos acu-

mulem com o tempo um poder político considerável. Vez ou ou-

tra conseguem produzir indivíduos capazes de atuar simultanea-

mente na vizinhança próxima e no distrito inteiro e também no

distr ito e no bairro da cidade corno um todo.

A superação do nosso desastroso fracasso em criar distri tos

funcionais depende em grande parte de mudanças na adminis-

idéias de planejamento convencionais a respeito dos bairros. O

bairro ideal da teoria do planejamento e do zoneamento,

grande demais para possuir a mesma eficiência e o mesmo sig-

nificado de urna vizinhança, é ao mesmo tempo pequeno de-

mais para funcionar corno um distri to . Não serve para coisa al-

guma. Não serve nem corno ponto de partida. Assim corno a

crença na sangria medicinal, foi urna escolha errada na busca

da compreensão.

Se as únicas formas de bairro que demonstram ter funcionali-

dade proveitosa para a autogestão na vida real são a cidade corno

um todo, as ruas e os distritos, então o planejamento fis ico de

bairros eficientes deve almejar as seguintes metas:

Primeira, fomentar ruas vivas e atraentes.

Segunda, fazer com que o tecido dessas ruas forme urna

malha o mais contínua possível

por todo

um distrito que possua

o tamanho e o poder necessário para consti tuir urna subcidade

em potencial.

Terceira, fazer com que parques, praças e edificios públicos

integrem esse tecido de ruas; u ti lizá- los para intensif icar e ali-

nhavar a complexidade e a multipl icidade de usos desse tecido.

Eles não devem ser usados para isolar usos diferentes ou isolar

subdistri tos.

Quarta, enfatizar a identidade funcional de áreas suficiente-

mente extensas para funcionar corno distritos.

Se as três primeiras metas forem atingidas, a quarta o será na-

turalmente. Veja por quê: poucas pessoas, a menos que vivam de-

bruçadas sobre mapas, conseguem identificar-se com uma abstra-

ção chamada distrito ou preocupar-se com ela. A maioria identifi-

ca-se com um lugar da cidade porque o util iza e passa a conhecê-

10 quase intimamente. Nós nos movimentamos por ele com os pés

e acabamos dependendo dele. O único motivo para aspessoas fa-

zerem isso é se sentirem atraídas por particularidades das redon-

dezas que se mostram úteis, interessantes e convenientes.

- ,

142

MORTE EVIDA DEGRANDES CIDADES

A NATUREZA PECULIAR DAS CIDADES

143

Quase ninguém vai espontaneamente de um lugar sem atrativos

para outro, idêntico, mesmo que o esforço físico seja pequeno'.

rava 30 mil habitantes, ele tinha força como distrito, Hoje sua

população é cerca de metade daquela, em parte devido ao pro-

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As diferenças,

não as cópias,

propiciam a interação de usos

e, assim, a identi fi cação das pessoas com uma área maior que a

da malha de ruas vizinhas. A monotonia é o oposto da interação

de usos e, portanto, da unidade funcional. Da mesma maneira

que ocorre com o Território, planejado ou espontâneo, ninguém

de fora consegue identificar-se naturalmente com ele ou com o

que ele contém.

Os centros de atividades nascem em distritos vivos e diversi-

ficados, do mesmo modo como surgem, em escala menor, em

parques, e tais centros favorecem a identidade do distrito se tam-

bém contiverem um ponto de referência que represente simboli-

camente o lugar e, em certo sentido, o distrito. Porém, os centros

não podem assumir sozinhos a responsabilidade pela identidade

do distr ito; é preciso que estabelecimentos comerciais e cultu-

rais diversos e paisagens diferentes também despontem por toda

parte. Em meio a esse tecido, os obstáculos f ís icos, como gran-

des artérias de tráfego; parques muito extensos, conjuntos insti-

tucionais enormes, são funcionalmente ruins porque impedem a

interação de usos.

Em termos absolutos , qual deve ser o tamanho de um distri to

próspero? Dei uma definição funcional de tamanho: suficiente-

mente grande para brigar na prefeitura, mas não tão grande a

ponto de seus bairros não conseguirem atrair a atenção e ter vez.

Em termos absolutos , o tamanho difere de cidade para cida-

de, dependendo em parte do tamanho da cidade como um todo.

Em Boston, quando o North End tinha uma população que supe-

3. Descobriu-se nas Jef fe rson Houses, no East Harl em. que mui tas das pessoas que moraram

nesseconjunto resi denc ia l duran te qua tro anos nunca hav iam posto oso lhos no cent ro comu-

n it ár io , que f ica num la do m or to d o p roje to ( mo rto n o s ent id o d e q ue l og o d ep oi s n ão existe

vida urbana, só parque). As pessoas de outros loca is do con junt o não t inham um mot ivo

plausí-

vel para i ra t é lá e t inham t odos os mot ivos p laus ívei s para não i r. Lá, t udo semost rava absolu-

tamente igual. Dora Tannenbaum, diretora daAssociação do Núcleo Comunitár io da Rua Grand,

no Lower East Side, comenta sobre os moradores de out ros conjuntos de edi fícios - de um con-

junto residencial vizinho:  Não passa pela cabeça dessaspessoas que elastenham alguma coisa

em comum. Elas secomport am como seasou tras par tes do con junt o estivess em e m outro p la-

neta.  Visualmente, esses conjuntos são uma unidade; funcionalmente, não. As aparências

enganam.

cesso salutar de reduzir o número de pessoas por moradia com a

recuperação dos cort iços e , em parte, devido ao processo nada

salutar de ter s ido implacavelmente seccionado por uma nova

via expressa. Embora ainda seja unido, o North End perdeu boa

parte de seu poder como distrito. Numa cidade como Boston,

Pittsburgh ou talvez até mesmo Filadélfia, 30 mil pessoas são

suficientes para constituir um distrito. Em Nova York ou Chica-

go, no entanto, um distrito com apenas 30 mil habitantes não

significa nada. O distri to mais efet ivo de Chicago, o Back-of-

the-Yards, abriga cerca de 100 mil pessoas, segundo o diretor do

conselho distrital, e sua população tem aumentado. Em Nova

York, o Greenwich Village inclui-se entre os menores distri tos

efet ivos, mas é viável porque consegue compensar o tamanho

com outras vantagens. Abriga aproximadamente 80 mil morado-

res , além de cerca de 125 mil trabalhadores ( ta lvez um sexto de-

les seja de moradores). O East Harlem e o Lower East Side de

Nova York, ambos lutando para constituir distritos efetivos, têm,

cada um, 200 mil moradores , e não podem abrir mão deles .

É

claro que outras características que não o tamanho da

população têm influência no sucesso - principalmente boa co-

municação e estado de espírito favorável. Maso tamanho da po-

pulação é crucial porque representa votos, ainda que na maioria

das vezes só indiretamente. Existem, apenas dois poderes públi-

cos máximos que dão feição a uma cidade e a administram: vo-

tos e controle do dinheiro. Para soar mais simpático, podemos

chamá-los de opinião pública e gastos públicos , mas conti-

nuam sendo votos e dinheiro. Um distri to efet ivo - e, por meio

dele, os bairros que o constituem - possui um desses poderes: o

poder dos votos. Com isso, e só isso, ele pode influenciar o po-

der que será exercido sobre ele, para o bem ou para o mal, at ra-

vés do dinheiro público.

Robert Moses, cujo talento para realizar coisas consiste prin-

cipalmente na compreensão desse fato, transformou em arte o

controle do dinheiro público para ficar acima daqueles em quem

os elei tores votam e de quem dependem para representá-los em

144 M OR TE E V ID A D E G RAND ES CIDA DES

A NA TU R EZ A PEC U L IA R D A S C I D A DES

145

seus interesses geralmente conflitantes. Obviamente essa é, sob

outro prisma, a velha e triste história dos governos democráticos.

no modo como termina ou na aparência que tem numa vista

aérea. Na verdade, os limites de vários distritos urbanos bastante

atraentes expandem-se naturalmente, a menos que barreiras fisi-

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A arte de contrariar o poder dos votos com o poder do dinheiro

pode ser praticada com a mesma eficiência tanto por administra-

dores públicos honrados como por representantes desonestos com

interesses estritamente particulares. De qualquer modo, o alicia-

mento e a corrupção dos elei tos é mais fácil quando o elei torado

está fragmentado em nichos depoder ineficientes.

Quanto aos distritos maiores, não conheço sequer um que

tenha mais de 200 mil habitantes e funcione como um distri to.

Em todos os casos, a área geográfica impõe um limite popula-

cional empírico. Na realidade, o tamanho máximo de um distri to

efetivo que surgiu naturalmente parece ficar em torno de seis

quilômetros quadrados'. Isso talvez ocorra porque uma área maior

é desvantajosa para a necessária interação de usos e a identidade

funcional que fundamentam a identidade polít ica do distri to.

Numa cidade muito grande, deve portanto haver alta densidade

demográfica para que surjam distritos efetivos; do contrário, o

poder político necessário nunca seharmonizará com uma identi-

dade geográfica viável.

Esse aspecto da área geográfica não signif ica que se possa

mapear uma cidade com seções de cerca de 2,5 quilômetros qua-

drados, cada seção definida por fronteiras, e dar vida a distritos.

Não são as fronteiras que fazem um distri to, mas a interação de

usos e a vida. A razão de considerar a dimensão fis ica e os limi-

tes de uni distrito é esta: os elementos, naturais ou criados pelo

homem, que consti tuem barreiras fisicas para a interação de

usos natural, devem estar em algum lugar.

É

melhor que eles se

encontrem nos limites de áreas sufic ientemente extensas para

funcionar como distritos do que interrompendo a continuidade

de distritos que de outro modo seriam viáveis. A face verdadeira

de um distrito está no que ele é por dentro, na continuidade e na

interpenetração de áreas internas que lhe dão funcionalidade, não

cas os impeçam. Um distrito demasiadamente delimitado corre

o risco de afastar visitantes de outros locais da cidade que tra-

riam estímulo financeiro.

O planejamento de bairros, definidos principalmente de acordo

com seu tecido, com a vida e a interação de usos que geram, em

vez de definidos por fronteiras formais, obviamente opõe-se às

concepções do planejamento ortodoxo. A diferença está em lidar

com organismos vivos e complexos, capazes de definir seu pró-

prio destino, e lidar com uma comunidade fixa e inerte, meramen-

te capaz apenas deproteger (se tanto) o que lhe foi outorgado.

4, O Back-of-the-Yards de Chi cago

é

a única exceção

à

regra que conheço,

É

um a exceção que

talvez tenha implicações práticas em certos casos, que não vêm ao caso aqui mas que serão

abordadas mais adiante nest e l ivro como u m a ssunto administrativo,

Ao abordar a necessidade de haver distritos, não pretendo dar

a impressão de que um distrito efetivo seja auto-suficiente eco-

nômica, polít ica ou socialmente. Claro que não é nem pode ser ,

da mesma forma que uma rua. E os distri tos também não podem

ser cópias uns dos outros; são extremamente diferentes, e devem

ser. Uma cidade não é um conjunto de cidadezinhas repetitivas.

Um distrito atraente tem características próprias e especialida-

des próprias. Atrai pessoas de fora (possui uma pequena varie-

dade econômica realmente urbana, a não ser em alguns casos), e

sua própria população sai dele.

Nem é necessário que um distri to seja auto-suficiente. No

Back-of-the-Yards, em Chicago, a maioria dos trabalhadores cos-

tumava trabalhar, até a década de 40, nos matadouros do distrito.

Isso influenciou a formação do distrito, porque sua organização

resultou da organização sindical. Mas esses moradores e seus

filhos, quando se emanciparam do trabalho nos matadouros, as-

similaram o trabalho e a vida da cidade grande. A maioria traba-

lha atualmente fora do distrito, menos os adolescentes, que de-

sempenham pequenas tarefas depois do período escolar. Essa

mudança não enfraqueceu o distrito; no mesmo período, o distri-

to fortaleceu-se.

O fator construtivo que atuou aí simultaneamente foi o tem-

po. Nas cidades, o tempo substitui a auto-suficiência. O passar

do tempo é indispensável nas cidades.

'I

146

M O R TE E V I D A D E G R AN D ES C I DA D ES

A N A TU R E ZA P EC U L IA R D A S C I DA D ES

147

As inter-re lações que permitem o funcionamento de um dis-

tri to como uma Entidade não são nem vagas nem mister iosas .

Consistem em relacionamentos vivos entre pessoas específicas,

de bairros bem situados do que na formação de distri tos, as rela-

ções entre distri tos às vezes surgem casualmente entre pessoas

de determinado distrito que se encontram num bairro que tem

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muitas delas sem nada em comum a não ser o fato de util izarem

o mesmo espaço geográfico.

Os primeiros relacionamentos que se formam em áreas urba-

nas, desde que haja uma estabilidade populacional nos bairros,

são os que ocorrem na vizinhança e entre pessoas que têm algu-

ma coisa em comum e integram insti tu ições - igre jas, APMs, as-

sociações de negócios, diretórios políticos, ligas cívicas, comi-

tês para angariar recursos para campanhas de saúde ou outras

causas públicas, os naturais de tal e tal vila (associações hoje co-

muns entre porto-riquenhos, como já foram entre os ital ianos),

associações de proprietários, sociedades de amigos do bairro,

grupos contra injustiças e assim por diante, ad infinitum.

A profusão de organizações, na maioria pequenas, existente

em quase todas as zonas relat ivamente estáveis de uma cidade

grande, deixa qualquer pessoa tonta. Goldie Hoffinan, uma das

executivas de um departamento de reurbanização de Filadélfia,

decidiu fazer um levantamento das eventuais organizações e ins-

t ituições existentes numa pequena área lúgubre da cidade com

cerca de 10 mil habitantes, designada para revita lização. Para

surpresa geral, encontrou dezenove. As organizações pequenas e

as organizações com fins específicos crescem nas cidades como

as folhas de uma árvore e são, à sua maneira, uma manifestação

impressionante de persistência e obstinação da vida.

Contudo, a etapa crucial para a formação de um distrito efeti-

vo vai muito além disso. Deve desenvolver-se um conjunto dife-

rente de inter-relações; são as relações ativas entre pessoas, ge-

ralmente líderes , que ampliam sua vida pública local para além

da vizinhança e de organizações ou instituições específicas e

proporcionam relações com pessoas cujas raízes e vivências en-

contram-se, por assim dizer, em freguesias inteiramente diferen-

tes. Nas cidades, esses relacionamentos-ponte são mais fortuitos

do que as ligações-ponte análogas, quase impostas, entre grupos

de interesses pequenos e dist in tos de comunidades auto-sufi-

c ientes . Talvez por estarmos bem mais avançados na formação

um atra tivo específ ico e levam tal relacionamento para seu dis-

trito. Muitas relações entre distritos de Nova York, por exemplo,

têm início dessa maneira.

É necessário um número surpreendentemente baixo de pes-

soas que estabeleçam ligação, em comparação com a população

total, para consolidar o distrito como uma Entidade real. Bastam

cerca de cem pessoas numa população mil vezes maior . Mas es-

sas pessoas precisam dispor de tempo para se descobrir em umas

às outras , para investir em colaboração proveitosa - e também

para criar raízes nos diversos bairros menores locais ou de inte-

resse específico.

Quando minha irmã e eu chegamos a Nova York, vindas de

uma cidade pequena, nos divertíamos com um jogo que chama-

mos de Mensagens. Acho que estávamos com isso tentando, va-

gamente, tomar pulso no mundo enorme, estonteante, em que

entramos ao sair de nosso casulo. O jogo consistia (~mescolher

duas pessoas inteiramente díspares - como um caçador de cabe-

ças das Ilhas Salomão e um sapateiro de Rock Island, Illinois - e

f ingir que um tinha de transmitir uma mensagem ao outro boca a

boca; então, em silêncio, cada uma de nós imaginava uma cor-

rente de pessoas plausível, ou pelo menos possível, que faria a

mensagem seguir adiante. Ganhava quem conseguisse fazer a

corrente de mensageiros mais curta e plausível. O caçador de

cabeças falava com o chefe de sua tribo, que falava com o mer-

cador que fora comprar polpa de coco, o qual falava com o pa-

trulheiro australiano quando este aparecesse, que falava com o

sujeito que sairia de folga para Melbourne etc. Do outro lado da

corrente, o sapateiro recebia a mensagem do padre, que a rece-

bera do prefeito, que a recebera do senador do Estado, que a re-

cebera do governador etc. Não demorou para termos uma série

desses mensageiros domésticos para quase qualquer pessoa

que pudéssemos imaginar, mas nós nos enrolávamos no meio

das correntes muito longas, a té que a Sra. Roosevelt veio traba-

lhar em casa. De repente, a Sra. Roosevelt fez com que fosse

148

MORTE EVIDA DE G RANDES CIDADES

A NATUREZA PECULIAR DAS CIDADES

149

nização que abranja quase todo o distri to mas tenha caráter tem-

porário, constituída especificamente com fins ad hoc', Porém,

possível pular vários elos intermediários. Ela conhecia as pes-

soas mais improváveis. O mundo encolheu a olhos vistos. Enco-

lheu tanto que acabou com nosso jogo, que ficou muito rápido e

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para ir adiante, a rede do distri to precisa atender a três requisi-

tos: um ponto departida; um espaço físico com número suficien-

te de pessoas identificadas como freqüentadores; e tempo.

As pessoas que estabelecem as ligações, assim como aque-

las que formam elos menores nas ruas e organizações de inte-

resse específ ico , não são de forma alguma os índices estat ís ti-

cos que supostamente representam pessoas nos projetos urba-

nís ticos e habitacionais. Pessoas-índice são uma fantasia por

várias razões, uma das quais é elas serem encaradas como sem-

pre substituíveis. As pessoas de carne e osso são únicas; inves-

tem muitos anos em relacionamentos significativos com outras

pessoas únicas, e são, no mínimo, insubstituíveis. Desfeitos seus

relacionamentos, destrói-se sua condição de seres sociais ver-

dadeiros - às vezes por pouco tempo, às vezes para sempre .

Se muitos relacionamentos que levaram anos para se desen-

volver forem rompidos de repente, pode ocorrer todo tipo de es-

trago nos bairros - um estrago, uma instabilidade e uma impo-

tência tais que às vezes parece que o tempo nunca mais irá recu-

perar seu ritmo.

Harrison Salisbury, numa série de artigos no N e w Y o rk T im es ,

 The Shook-Up Generation [A geração perturbada], captou

bem esse aspecto vita l dos relacionamentos urbanos e seu rom-

pimento.

sem graça.

Os distritos precisam ter uma pequena cota de senhoras Roose-

velts - pessoas que conheçam outras, bem diferentes, e portanto

eliminem a necessidade de correntes de comunicação longas

(que, na realidade, não existiriam).

Normalmente os diretores de associações comunitárias são o

ponto de partida dessa rede de ligações do distrito, mas eles só

as iniciam e tentam encontrar maneiras viáveis de ampliá-Ias; so-

zinhos, não dão conta de tudo. Esses laços necessitam do au-

mento da confiança, da ampliação de uma cooperação que possa

ser, ao menos a princípio, casual e experimental; e necessitam de

pessoas que tenham considerável autoconfiança ou sufic iente

grau de preocupação com os problemas públicos locais que ga-

rantam sua autoconfiança. No East Harlem, onde se está for-

mando de novo um distrito efetivo a despeito das adversidades,

após uma desagregação terrível e a mudança da população, c in-

qüenta e duas entidades part iciparam em 1960 de uma reunião

para transmitir ao prefei to e a catorze de seus secretár ios as rei-

vindicações do distrito. Entre as entidades havia APMs, igrejas,

grupos comunitários e de assistência social, ligas cívicas, asso-

ciações de locatários, associações comerciais, diretórios políti-

cos e representantes locais do Congresso, da Assembléia e da

Câmara Municipal. Cinqüenta e oito pessoas foram incumbidas

especificamente de marcar a reunião e elaborar as diretrizes; ha-

via entre elas pessoas com todo tipo de qualificação e ocupação

e origens variadas - negros, i ta lianos, porto-riquenhos e outros

desconhecidos. Isso demonstra a existência de muitas l igações

no distrito. Foram necessários vários anos e muita habilidade de

uma meia dúzia de pessoas para chegar a uma rede desse porte, e

o processo está só começando a ter sucesso.

Assim que consiga firmar-se no distrito, uma rede de liga-

ções desse tipo, boa e forte, poderá expandir-se relativamente rá-

pido e assumir qualquer outro feitio. Às vezes, um indício de que

isso está acontecendo é o crescimento de um novo tipo de orga-

 Até mesmo um gueto [ele c ita a declaração de um pastor], de-

pois de anos nessa condição, constrói uma estrutura social, que gera

uma estabilidade maior, mais lideranças, mais grupos para ajudar a

solucionar os problemas públicos. 

5. No Greenwich Vill ag e, elas geralmente têm um nome longo e exp lí ci to: p. ex., Comitê

Conjunto de Emergência para Impedir o Tráfego no Parque da Washingt on Square Exceto para

Vefculos d e E mergência; Comitê de Emergência d os I nq uilinos de Cellar Dwellers; Comissão de

Vizinhos para Fazer Funcionar o Relógio do Jef fe rson Marke t Court house; Comit ê Con junt o do

Village para Derrot ar a Propost a do West Village e F ormu la r Out ra Melhor.

6. Há pessoas que aparent emen te conseguem comport ar -se como números permutáve is e

recomeçam em out ro l ug ar exa tament e do pont o em que pararam, mas provave lmen te se t ra ta

dos integrantes de uma de nossa s c omuni da de s n ôm ad es fe ch ad as e m uito homogêneas,

como os beatniks militares d a a tiv a e f am íl ia ou as novas famflias de executivos i tinerantes dos

subúrbios, descritas por William H. Whyte em The Organiza ti on M an [Ohomem de empresa).

1 50 M O RT E E V ID A D E G R AN D ES CIDADES

rede de relações do bairro. Essas redes são o capital social urba-

no insubstituível. Quando seperde esse capita l, pelo motivo que

for , a renda gerada por ele desaparece e não volta senão quando

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A N ATIJ R EZ A P E CU L I AR D A S C I DA D E S 1 5 1

Mas [prossegue Salisbury], quando se inicia o despejo dos cor-

tiços em determinada área, ele não só destrói casas malcuidadas;

eledesenraíza osmoradores. Desfaz igrejas. Arruina os comercian-

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se acumular, lenta e ocasionalmente, um novo capital.

Certos analistas da vida urbana, ao notar que os bairros sóli-

dos são com freqüência consti tuídos de grupos étnicos - princi-

palmente colônias de italianos, poloneses, judeus ou irlandeses -,

sugeriram ser necessária uma base étnica coesa para que um bair-

ro funcione como uma unidade social. Na verdade, isso quer di-

zer que apenas os meio-americanos são capazes de promover

a autogestão nas metrópoles. Para mim, isso é um absurdo.

Em primeiro lugar, esses grupos coesos devido à origem étni-

ca nem sempre são tão coesos como parecem para quem olha de

fora. Citando outra vez o Back-of-the-Yards como exemplo, a

espinha dorsal de sua população é principalmente centro-euro-

péia, mas é formada por todo tipo de centro-europeus. O bairro

tem, por exemplo, literalmente dúzias de igrejas nacionais. A

animosidade e a rivalidade tradicionais entre esses grupos foram

uma desvantagem grave. Os três principai s setores do Green-

wich Village derivam de uma colônia italiana, uma colônia irlan-

desa e da comunidade de patricios seguidores de Henry James.

A coesão étnica pode ter influenciado a formação desses setores,

mas não ajudou em nada na consolidação das inter-relações dis-

tritais - trabalho iniciado há muitos anos pela notável Mary K.

Simkhovich, diretora de associação comunitária. Hoje, muitas

das ruas dessas antigas comunidades étnicas já assimilaram uma

fantást ica variedade de etnias do mundo inteiro . Também assi-

milaram uma enorme profusão de profissionais de classe média

e suas famílias, que se dão muito bem com a vida das ruas e do

distr ito, apesar do mito do urbanismo de que tais pessoas preci-

sam da proteção de ilhas de partilha pseudo-suburbana. Algu-

mas das ruas que funcionavam melhor no Lower East Side (an-

tes que fossem riscadas do mapa) eram chamadas genericamente

de judias , mas as pessoas que realmente faziam parte da vizi-

nhança tinham mais de quarenta origens étnicas diferentes . Um

dos bairros mais prósperos de Nova York, com uma comunicação

interna maravilhosa, é o East Side da faixa centra l de Manhattan,

tes. Transfere o advogadodo bairro para um escritórionovono cen-

troe desfigura irremediavelmente a malha fechada dasamizades na

comunidade e dasrelações entre grupos.

Ele arranca os antigos moradores de seu apartamento deteriora-

doou de sua casamodesta e osobriga a encontrar um lugar novoe

desconhecido. E ele despeja em outro bairro centenas, milhares de

rostos novos (... ).

Os programas de revitalização, que buscam principalmente

preservar edifícios e ocasionalmente ajudar algumas pessoas

mas espalham o restante dos moradores, têm praticamente o mes-

mo efeito - assim como os empreendimentos concentrados da

iniciativa privada, que lucram rapidamente com a valorização

criada pela estabilidade de determinado bairro. Cerca de 15 mil

famílias foram retiradas de Yorkville, em Nova York, entre 1951

e 1960, por meio daquele expediente; virtualmente todas saíram

a contragosto. No Greenwich Village está acontecendo a mesma

coisa. Sem dúvida, é um milagre não que nossas cidades tenham

poucos distritos, mas que eles funcionem. Em primeiro lugar, há

relativamente pouco espaço urbano hoje em dia adequado - fe-

l izmente - para a formação de dis tr itos com interação de usos e

identidade satisfatórias. Enquanto isso, distritos incipientes ou

ligeiramente instáveis estão sempre sendo seccionados, subdivi-

didos ou convulsionados por políticas urbanas equivocadas. Os

distri tos que são suficientemente eficientes para se defender de

uma ruptura intencional podem acabar esmagados em meio a

uma corrida do ouro inesperada, urdida por aqueles que aspi-

ram a um quinhão desses raros tesouros sociais.

Não há dúvida de que um bom bairro é capaz de absorver no-

vos habitantes, t anto moradores por livre escolha quanto imi-

grantes que lá se instalem por conveniência, e também é capaz

de resguardar uma população transitória considerável. Mas esses

progressos e essas mudanças precisam ser gradativos. Para a au-

togestão de um lugar funcionar, acima de qualquer flutuação da

população deve haver a permanência das pessoas que forjaram a

1 52 M O RT E E V I DA D E G R AN D ES C ID AD ES

A N A TU R E Z A P E CU L I AR D A S C I DA D ES 153

constituído predominantemente por pessoas de alta renda, que

absolutamente não podem ser qualif icadas de outra forma que

não norte-americanas.

Contudo, esse trunfo precisa ser capitalizado. Ele é desperdi-

çado nos lugares em que a mesmice prejudica os distri tos, ser-

v indo, portanto, somente a uma faixa estrei ta de renda, gostos e

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Em segundo lugar, onde quer que se estabeleçam bairros etni-

camente coesos e estáveis, eles possuem outra caracter ís tica

além da identidade étnica: abrigam muitos indivíduos que se re-

cusam a sair de lá. Em minha opinião, mais do que a mera iden-

t idade étnica , esse é o fator re levante. Normalmente são neces-

sários muitos anos depois de esses grupos se terem estabelecido

para que o tempo aja , e os habitantes constituam um bairro está-

vel e efetivo.

circunstâncias familiares. Os recursos que o bairro oferece para

pessoas-índice imutáveis, sem corpo, são recursos para a insta-

bilidade. As pessoas que se encontram nele e são dados estatísti-

cos podem permanecer as mesmas. Mas não as pessoas que se

encontram nele e são pessoas. Tais lugares são eternos locais de

passagem.

Na primeira parte deste l ivro, que termina aqui, enfatize i as

vantagens e os pontos fortes peculiares às cidades grandes e

também suas fraquezas. As cidades, como qualquer outra coisa,

só têm êxito se tirarem o máximo proveito de suas vantagens.

Tentei destacar os tipos de lugares das cidades que conseguem

fazê-lo e o modo como funcionam. Minha idéia, no entanto, não

é que devamos tentar reproduzir, rotineira e superficialmente, as

ruas e os distri tos que demonstram ter força e êxito como nichos

da vida urbana. Isso seria impossível e poderia parecer um exer-

cício de saudosismo arquitetônico. Além do mais, até mesmo as

melhores ruas e distritos comportam melhorias, especialmente

quanto à comodidade.

Porém, se compreendermos os princípios que fundamentam

o comportamento das cidades, poderemos aproveitar-nos de van-

tagens e pontos fortes potenciais, em vez de atuarmos contraria-

mente a eles. Primeiro precisamos definir que resultados genéri-

cos desejamos - o que saberemos ao descobrir como transcorre a

vida na cidade. Precisamos estar convencidos, por exemplo, de

que queremos ruas e outros espaços públicos vivos e bem util i-

zados e por que os queremos. Mas, embora esse seja um primei-

ro passo, ele não é suficiente. O próximo passo é examinar o

funcionamento urbano em outro nível: o funcionamento econô-

mico que produz essas ruas e esses distri tos cheios de vida para

os freqüentadores das cidades.

Aqui há um paradoxo aparente: para manter num bairro um

número sufic iente de pessoas que não saiam de lá, a cidade pre-

cisa ter a mesma fluência e mobilidade de usos que Reginald

Isaacs, citado neste capítulo, observou ao especular se os bairros

poderiam representar algo relevante para as cidades.

De tempo em tempo, mui tas pessoas trocam de emprego ou

de local de trabalho, mudam ou ampliam suas amizades e seus

interesses, sua família muda de tamanho, sua renda aumenta ou

diminui, ou até muitos de seus gostos se alteram. Resumindo, elas

vivem, em vez de simplesmente existirem. Se elas vivem em dis-

tritos diversificados e não monótonos - particularmente em distri-

tos onde muitos detalhes fisicos podem ser constantemente aco-

modados - e se gostam do lugar, e las podem lápermanecer a des-

peito de mudanças locais ou da natureza de seus outros objetivos

e interesses. Ao contrár io das pessoas que precisam semudar de

um subúrbio de classe média baixa para outro de médiamédia e

para outro de média alta à medida que sua renda e suas atividades

de lazer se modificam (ou então serem vistos como excêntricas),

ou de pessoas de uma cidadezinha que precisam se mudar para

uma cidade maior oupara uma metrópole em busca de novas opor-

tunidades, os moradores urbanos não precisam levantar acampa-

mento por tais motivos.

O conjunto de oportunidades de todo tipo existente nas cida-

des e a espontaneidade com que essas oportunidades e opções

podem ser usadas são um trunfo - não uma desvantagem - para

encorajar a estabilidade do bairro.

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7 OS GERADORES DE DIVERSIDADE

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> 1 <

As listas telefônicas classificadas revelam-nos uma grande ver-

dade a respeito das cidades: o imenso número de elementos que

as formam e a imensa diversidade desses elementos. A diversi-

dade é natural às grandes cidades.

 Sempre me diverti , escreveu James Boswell em 1791, pen-

sando em como Londres deveria parecer diferente para pessoas

diferentes. Aquelas cuja mente limitada concentra-se num único

propósito vêem-na apenas sob esse único prisma ( ... ). Mas o

intelectual fica impressionado com ela, pois apreende a totalida-

de da vida humana em sua imensa variedade, cuja contemplação

é inexaurível. 

Boswell não apenas deu uma boa definição de cidade, mas

pôs o dedo num de seus principais problemas. É muito fácil cair

na armadilha de contemplar os usos da cidade um de cada vez,

por categorias. Sem dúvida, exatamente isso - a análise das ci-

dades uso por uso - tornou-se um recurso costumeiro do plane-

jamento urbano. As descobertas fei tas em várias categorias de

usos são então reunidas para compor quadros amplos, globais .

. Os quadros globais que esses métodos produzem são quase

tão úteis quanto o quadro montado pelos cegos que tatearam o

elefante ejuntaram o que descobriram. O elefante afastou-se len-

tamente, alheio à idéia de ser uma folha, uma serpente, um mu-

1 58 M O RTE E V ID A D E G RA ND ES CIDADES

C O N DI Ç Ó ES P A RA A D I VE R SI D AD E U R B AN A 1 59

ro, troncos de árvore e uma corda, de alguma maneira reunidos.

As cidades, sendo uma criação nossa, têm menos defesa diante

de um absurdo solene.

Para compreender as cidades, precisamos admitir de imedia-

porque o local precisa de seus benefic ios . Qualquer pessoa que

abrisse aí um negócio de varejo, por exemplo, seria maluca. Não

conseguiria sobreviver . Esperar que uma vida urbana intensa

brote de alguma forma nesse local é sonhar de olhos abertos. O

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Embora seja dificil de acreditar, quando contemplamos áreas

apagadas e desvita lizadas ou em conjuntos habitacionais ou em

centros cívicos, o fato é que as cidades grandes são geradoras na-

turais de diversidade e fecundas incubadoras de novos empreen-

dimentos e idéias de toda espécie. Além disso, as cidades gran-

des são o centro econômico natural de um número e um leque

imenso de pequenas empresas.

Os principais estudos sobre a variedade e o tamanho das em-

presas urbanas vêm a ser aqueles sobre fabricação de produtos,

especialmente os de Raymond Vernon, autor de' Anatomy of a

Metropolis

[Anatomia de uma metrópole], e P.Sargant Florence,

que examinou o efeito das cidades na ativ idade manufature ira

tanto nos Estados Unidos quanto na Inglaterra.

Normalmente, quanto maior a cidade, maior a variedade de

seus produtos e também maior o número e a proporção de pe-

quenos fabricantes. A explicação disso, resumidamente, é que as

grandes empresas têm maior auto-suficiência que as pequenas;

conseguem manter a mão-de-obra qualificada e o equipamento

de que necessitam; possuem depósitos próprios e podem vender

para um mercado mais amplo, onde quer que ele se encontre.

Elas não precisam estar nas cidades, e, embora àsvezes lhes seja

vantajoso insta lar-se aí , freqüentemente não é. Mas com os pe-

quenos fabricantes tudo acontece ao contrário. Geralmente, eles

precisam recorrer a um abastecimento e a uma mão-de-obra mais

diversificados de fora da empresa; a tendem a um mercado me-

nor, se é que ele existe, e devem estar a tentos às rápidas mudan-

ças desse mercado. Sem as cidades, eles simplesmente não exis-

t ir iam. Ao mesmo tempo que dependem da grande diversidade

de outras empresas urbanas, contribuem para aumentá-Ia . Este

último ponto é muito importante. A própria diversidade urbana

permite e estimula mais diversidade.

to, como fenômeno fundamental, as combinações ou as misturas

de usos, não os usos separados. Já vimos a importância disso

com relação aos parques urbanos. É fácil- muito fácil- encarar

os parques como um fenômeno em si e defin i- los como adequa-

dos ou inadequados quanto, digamos, à proporcionalidade entre

área e milhares de habitantes . Tal abordagem revela um pouco

dos métodos dos planejadores, mas nada nos diz de proveitoso

acerca do comportamento ou do valor dos parques urbanos.

Se tivermos como meta que a mistura de usos seja suficiente-

mente complexa para prover a segurança urbana, o contato do

público e a interação de usos, ela precisa de uma quantidade

enorme de componentes . Nesse caso, a primeira pergunta sobre

o planejamento urbano - a qual, acho eu, é de longe a mais im-

portante - ser ia esta: como as cidades podem gerar uma mistura

suficiente de usos - uma diversidade suficiente -, por uma ex-

tensão suficiente de áreas urbanas para preservar a própria civi-

lização?

Está muito correto condenar a Grande Praga da Monotonia e

entender por que ela destrói a vida urbana, mas isso, por si só,

não nos leva muito longe. Pensem no problema apresentado pela

rua de Baltimore que tem um belo calçadão ajardinado, mencio-

nado no Capítulo 3. Minha amiga dessa rua, a Sra. Kostritsky,

tem toda razão ao ponderar que a rua precisa de algum comércio

para comodidade dos freqüentadores. E, como era de esperar , a

falta de comodidade e a fal ta de vida na rua são apenas dois dos

subprodutos da monotonia residencial desse lugar. O perigo é

outro - o medo das ruas depois do anoitecer. Algumas pessoas

têm medo de ficar sozinhas em casa de dia depois de terem ocor-

r ido dois assaltos horrorosos à luz do dia. Além do mais, fal tam

ao lugar opções de comércio e também atrativos culturais. É fácil

perceber que a monotonia do lugar é fatal.

Dito isso , e daí? Não se pode esperar que a diversidade, a co-

modidade, a atratividade e a vitalidade ausentes propaguem-se só

lugar é um deserto do ponto de vista econômico.

CO N DiÇÕ ES P A RA A D I VE R S ID A D E U R B A N A

161

160

M OR TE E V IDA DE G RA N D ES C ID A D ES

Ocorre quase o mesmo com muitas outras atividades que não

a manufatureira. Por exemplo, a Companhia de Seguros de Vida

Gerais de Connecticut só conseguiu abrir uma nova sede na peri-

constatamos mais uma vez que os grandes desfrutam de todas as

vantagens em comunidades menores. As cidades de pequeno

porte e os subúrbios, por exemplo, são o lugar ideal para super-

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feria de Hartford depois de ter providenciado - além dos costu-

meiros locais de trabalho e instalações sanitárias, posto médico

e que tais - uma grande loja com todo tipo de artigo, um salão de

beleza, uma pista de boliche, uma cantina, uma sala de espetácu-

los e grande variedade de locais para jogos. Essas instalações

são inerentemente contraproducentes, ociosas na maior parte do

tempo. Elas precisam ser subvencionadas, não porque sejam em-

preendimentos necessariamente dispendiosos, mas porque seu

uso aí é muito reduzido. Presumiu-se, no entanto, que elas se-

r iam necessárias para atrair uma força de trabalho e mantê-Ia.

Uma companhia grande pode dar-se ao luxo dessas coisas ine-

rentemente supérfluas e contrabalançá-Ias com os outros benefí-

cios que almeje. Mas as empresas pequenas não podem fazer

nada disso. Se quiserem competir por uma força de trabalho em

condições de igualdade ou superioridade, devem instalar-se num

local movimentado da cidade, onde os funcionários disponham

de grande variedade de facilidades e opções que desejem e das

quais necessitem. Sem dúvida, uma das várias razões pelas quais

o tão propalado êxodo dos grandes escritórios das cidades, no

pós-guerra, não passou de conversa é que as diferenças de custo

territorial e predial nos subúrbios são normalmente neutraliza-

das pela maior quantidade de espaço por funcionário necessária

para instalações, as quais, na cidade, nenhum empregador preci-

saria prover, nem nenhum grupo de trabalhadores ou fregueses

precisaria freqüentar. Outra razão para as empresas terem perma-

necido nas cidades, junto às companhias pequenas, é que muitos

de seus funcionários, especialmente os executivos, precisam es-

tar em contato e ter uma relação próxima, cara a cara, com pes-

soas de fora da firma, inclusive de firmas pequenas.

Os benefic ios que a cidade oferece aos pequenos são igual-

mente marcantes no comércio de varejo, nas instalações cultu-

rais e no entretenimento. Isso acontece porque a população urba-

na é suficientemente grande para fazer uso de uma grande diver-

sificação e de um grande número de alternativas nesses ramos. E

mercados enormes e não para mercearias; para salas de cinema

comuns ou cinemas drive-in e pouca coisa mais no tocante a

entretenimento. Simplesmente não existe tanta gente para man-

ter uma variedade maior, embora haja pessoas (muito poucas)

que freqüentariam esses locais se eles existissem. As cidades, no

entanto, são o lugar ideal para supermercados e salas de cinema

comuns mais confeitarias, padarias finas, mercearias de produ-

tos estrangeiros, cinemas de arte e assim por diante, todos os

quais convivem entre si, o comum com o inusitado, o grande

com o pequeno. Onde quer que existam locais cheios de vida e

atraentes nas cidades, os pequenos são muito mais numerosos

que os grandes '. Como os pequenos fabricantes, essas pequenas

empresas não exist ir iam em nenhum outro lugar à fal ta de cida-

des. Sem as cidades, elas não existiriam.

Seja de que espécie for , a diversidade gerada pelas cidades

repousa no fato de que nelas muitas pessoas estão bastante pró-

ximas e elas manifestam os mais diferentes gostos, habilidades,

necessidades, carências e obsessões.

Mesmo atividades comerciais muito comuns, mas de peque-

no porte , como lojas de ferragens, drogarias , docerias e bares de

um só proprietário e um balconista, podem surgir e surgem nu-

ma quantidade e incidência extraordinárias nos dis tr itos movi-

mentados, porque há gente suficiente para freqüentá-Ias a inter-

valos curtos e convenientes, e por sua vez essa conveniência e a

1. No comércio varejista, essa t endênc ia parece est ar ganhando f orça. Richard Nelson, analista

do mercado imobi liário de Chicago, ao examinar no pós-guer ra a te nd ên cia das vendas de

varejo nos centros de comércio de vinte cidades, descobriu que na maioria das vezes os grandes

magazines perde ram d inheiro; as redes de lojas permaneceram quase namesma si tuação; e os

estabelecimentos pequenos e de especialidades ampliaram os negócios e em geral aumenta-

ram em número. Essasempresas urbanas pequenas e variadas nã o t êm m eios de concorrer fora

das cidad es ; m as é relativamente fácil para as empresas gra nd es e p ad ronizadas, em seus

nichos ideais f or a d as cidades , co mp eti r c om o q ue é grande e padronizado. Por acaso, foi exa-

tamente isso q ue aconteceu no bairr o onde moro. A Wanamaker's, enorme m agazine que f ica-

va no Greenwich Vil lage , f echou as por tas aqu i e se inst al ou num subúrbio, ao mesmo t empo

que as lojas pequenas e especial izadas que eram suas vizinhas mult iplicaram-se e floresceram

vigorosamente.

 62 M O RT E E V I DA D E G R AN D ES CIDADES

C O N DI Ç O ES P A RA A D I VE R SID A D E U R B AN A

 63

força de trabalho da vizinhança são peças importantes no esto-

que dessas empresas. Se não tiverem condições de ser freqüenta-

das a intervalos curtos e convenientes, elas perdem essa vanta-

gem. Em determinado espaço geográfico , metade do número de

mente relacionadas à criação, ou à presença, de outros t ipos de

variedade urbana.

Porém, embora as cidades possam ser apropriadamente cha-

madas de geradoras naturais de diversidade econômica e incuba-

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pessoas não freqüentará metade das empresas que fiquem duas

vezes mais longe. Quando existe o inconveniente da distância, o

pequeno, o variado e o pessoal desaparecem.

Ao nos transformarmos de um país rural e de cidades peque-

nas num país urbano, os empreendimentos comerciais tornaram-

se mais numerosos não só quantitat ivamente, mas também pro-

porcionalmente. Em 1900 havia 21 empresas particulares não-

agrícolas por mil habitantes , no total da população dos Estados

Unidos. Em 1959, apesar do enorme crescimento de megaempre-

sas durante esse período, havia 26,5 empresas particulares não-

agrícolas para cada mil habitantes. Com a urbanização, o grande

ficou maior, mas o pequeno também aumentou em número.

Não há dúvida de que pequenez e diversidade não são sinôni-

mos. A diversidade das empresas urbanas inclui todas as varia-

ções detamanho, mas uma grande variedade significa, sim, maior

proporção de pequenos elementos. A paisagem urbana é viva

graças ao seu enorme acervo de pequenos elementos.

- Do mesmo modo, a diversidade que importa para os distri tos

não se encontra de forma alguma restrita aos empreendimentos

com fins lucrativos e ao comércio varejista, e por essa razão pode

parecer que enfatizei indevidamente o comércio varejista. Não

obstante, acho que não. A diversidade comercial é, em si, imen-

samente importante para as cidades, tanto social quanto econo-

micamente. A maior parte dos usos da diversidade que abordei

na Parte 1 deste livro depende direta ou indiretamente da presen-

ça de um comércio urbano abundante, oportuno e diversificado.

Mas, mais do que isso, onde quer que vejamos um distrito com ~,

um comércio exuberantemente variado e abundante, descobrire-

mos ainda que ele também possui muitos outros tipos de diversi-

dade, como variedade de opções culturais, variedade de panora-

mas e grande variedade na população e nos freqüentadores . É

mais do que uma coincidência. As mesmas condições físicas e

econômicas que geram um comércio diversificado estão intima-

doras naturais de novas empresas, isso não significa que as cida-

des gerem diversidade automaticamente, pelo simples fato de

exis tirem. Elas a geram por causa das diversas e efic ientes com-

binações de usos econômicos que formam. Quando fracassam

na formação dessas combinações de usos, conseguem no máxi-

mo gerar um pouco mais de diversidade do que os núcleos urba-

nos menores. E não faz nenhuma diferença o fato de elas, ao

contrário dos núcleos menores, precisarem de uma diversidade

socia l maior . Dentro do que nos propomos aqui, o fato mais sur-

preendente é a extraordinária inconstância com que as cidades

geram diversidade.

Por um lado, as pessoas que moram e trabalham no North

End, em Boston, ou no Upper East Side, em Nova York, ou em

North Beach- Telegraph RiU, em São Francisco, por exemplo,

podem usufruir e desfrutar de um volume considerável de diver-

s idade e vital idade. As pessoas de fora ajudam imensamente.

Mas não foram os visi tantes que fincaram os alicerces da diver-

sidade em locais como esses, nem nos vários bolsões de diversi-

dade e efic iência econômica que pontilham, às vezes inespera-

damente, as grandes cidades. Os visi tantes farejam os locais em

que já há vida e os procuram para compartilhar dela , a limentan-

do-a ainda mais.

No outro extremo, existem coletividades urbanas enormes,

em que a presença das pessoas não gera nada além de estagna-

ção e, por fim, um descontentamento definitivo com o lugar.

Não é que se trate de um tipo diferente de pessoas, mais apát i-

cas ou menos apreciadoras de movimento e diversificação. Elas

freqüentemente constituem uma multidão de caçadores que ten-

tam farejar essas virtudes em algum lugar, em qualquer lugar.

Na verdade, alguma coisa está errada em seu distri to ; fal ta-lhe

algo que provoque a capacidade dos moradores de interagir

economicamente e de ajudar a formar uma combinação de usos

efetiva.

 64

M O R TE E V I D A D E G R A N D ES C I D AD E S

C O N DI Ç O ES P A RA A D I V ER S ID A DE U R B AN A

 65

Aparentemente, não há limite para o número de pessoas na

cidade cujo potencial como população urbana seja assim desper-

diçado. Pensemos, por exemplo, no Bronx, região administrativa

de Nova York que tem cerca de um milhão e meio de habitantes.

apagados e desvital izados. Nem mesmo o centro da cidade con-

segue gerar uma diversidade significativa.

É

desanimado e sem

graça, e às sete horas da noite já está praticamente deserto.

Se estamos convencidos de que a diversidade urbana signifi-

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O Bronx sofre de uma falta calamitosa de vitalidade, diversidade

e magnetismo urbanos. Seus moradores fiéis estão, não resta dú-

vida, apegados aos pequenos afloramentos de vida nas ruas do

 bairro tradicional , aqui e acolá, mas em número insuficiente.

A população de um milhão e meio do Bronx não consegue

proporcionar uma coisa tão simples para o conforto e a diversi-

dade urbana como restaurantes simpáticos. Kate Simon, autora

do guia turístico New YorkPlaces and Pleasures [Os lugares e os

prazeres de Nova York], menciona centenas de restaurantes e ou-

tros estabelecimentos comerciais, especialmente em locais inu-

sitados da cidade e fora de mão. Ela não é esnobe e realmente

tem prazer em presentear os lei tores com suas descobertas de lo-

cais de preços acessíveis. Mas, apesar de um esforço enorme,

Kate Simon teve de deixar de lado a grande coletividade do Bronx

pela fal ta de opções em qualquer faixa de preço. Depois de elo-

giar as duas eternas atrações metropolitanas dessa região admi-

nistrativa, o Zoológico e o Jardim Botânico, ela teve dificuldade

para recomendar um único lugar para comer fora da área do zôo.

A única opção que ela pôde oferecer veio acompanhada desta

desculpa: O bairro acaba dando num lugar ermo, e o restauran-

te merece uma pequena reforma, mas reconforta saber ( ... ) ser

bem possível que os mais qualificados médicos do Bronx este-

jam sentados à sua volta.

Bem, esse é o Bronx, e é triste que ele seja assim; triste para

as pessoas que lá moram atualmente, triste para as pessoas que

no futuro o herdarão pela falta de opção financeira, e triste de-

mais para a cidade como um todo.

E se o Bronx é um desperdício lamentável de potencialidades

urbanas - e realmente é -, pense no fato ainda mais deplorável

de que cidades inteiras, regiões metropolitanas inteiras, infeliz-

mente existam com muito pouca diversidade e opção. Pratica-

mente toda a área urbana de Detroit é tão pobre em vitalidade e

diversidade como o Bronx. São faixas e mais faixas de bolsões

ca acaso e caos, é claro que sua geração imprevis ível parece um

mistério.

No entanto, é muito fácil descobrir que situações geram a di-

versidade urbana se observarmos os locais em que a diversidade

floresce e pesquisarmos as razões econômicas que permitem seu

surgimento nesses locais. Embora os resultados sejam comple-

xos e os ingredientes que os produzem tendam a variar bastante,

essa complexidade fundamenta-se em relações econômicas tan-

gíveis, que, em princípio, são muito mais simples do que as in-

trincadas combinações que elas possibilitam nas cidades.

Há quatro condições indispensáveis para gerar uma diversi-

dade exuberante nas ruas e nos distritos:

1. O distrito, e sem dúvida o maior número possível de seg-

mentos que o compõem, deve atender a mais deuma função prin-

cipal; de preferência, a mais de duas. Estas devem garantir a pre-

sença de pessoas que saiam de casa em horários diferentes e es-

tejam nos lugares por motivos diferentes , mas sejam capazes de

utilizar boa parte da infra-estrutura.

2. A maioria das quadras deve ser curta; ou seja, as ruas e as

oportunidades de virar esquinas devem ser freqüentes.

3. O distri to deve ter uma combinação de edifícios com ida-

des e estados de conservação variados, e incluir boa porcenta-

gem de prédios antigos, de modo a gerar rendimento econômico

variado. Essa mistura deve ser bem compacta.

4. Deve haver densidade suficientemente alta de pessoas, se-

jam quais forem seus propósitos. Isso inclui alta concentração de

pessoas cujo propósito é morar lá.

A obrigatoriedade dessas quatro condições é o ponto mais

importante deste livro. Associadas, tais condições criam combi-

nações de usos economicamente eficazes . Nem todos os distri-

tos dotados dessas quatro condições produzirão uma diversidade

comparável à dos outros. O potencial de distritos distintos difere

por muitas razões; mas, com essas quatro condições plenamente

166 MO RT E E V ID A D E G RA NDE S C ID A DES

atendidas

(OU

o mais próximo possível de sua plena consecução

na realidade), o distri to deverá ter condições de desempenhar

seu potencial , seja ele qual for . Os obstáculos já terão sido ven-

cidos. Talvez a variedade não inclua a arte africana, escolas de

8 A NECESSIDADE DE USOS

PRINCIPAIS COMBINADOS

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1~CONDIÇÃO: O

dis tr ito, e sem dúvida o maior número possível de

segmentos que o compõem, deve atender a mais de uma função

principal ; depreferênc ia, a mais de duas. Estas devem garanti r a

presença de pessoas que saiam de casa em horários diferentes e

estejam nos lugares por mot ivos diferentes, mas se jam capazes de

utilizar boa parte da infra-estrutura.

teatro ou casas de chá romenas, mas na medida do possível, se

manifeste em mercearias, escolas de cerâmica, cinemas, confei-

tarias, floriculturas, espetáculos de arte, associações de imigran-

tes, lojas de ferragens, locais de alimentação; se ja no que for , os

distritos aproveitarão o que houver de melhor. E, junto com eles ,

a vida urbana seguirá o mesmo caminho.

Nos quatro capítulos seguintes, abordarei , um de cada vez,

cada um desses quatro geradores de diversidade. A razão de ex-

plicá-los um a um é somente facil itar a exposição, e não a possi-

bilidade de qualquer uma dessas condições - ou três delas juntas

- ser válida isoladamente. Todas as quatro , associadas, são ne-

cessárias para gerar diversidade urbana; a ausência de qualquer

uma delas inutiliza o potencial do distrito.

Nas ruas prósperas , as pessoas devem aparecer em horários di-

versificados. Esses horários são calculados em intervalos curtos,

a cada hora, ao longo do dia. Já justifiquei essa necessidade no

âmbito social ao discutir a segurança nas ruas e também sobre os

parques urbanos. Agora destacarei seus efeitos econômicos.

Os parques urbanos, vocês se lembram, precisam de pessoas

que estejam nas vizinhanças com propósitos diferentes, ou então

eles só serão usados esporadicamente.

A maioria das empresas de bens de consumo depende tanto

quanto os parques de pessoas transitando de um lado para o outro

o dia inteiro, mas com a seguinte diferença: se os parques ficam

desertos , isso é ruim para eles e para a vizinhança, mas eles não

desaparecem por causa disso . Se as empresas de bens de consu-

mo ficarem vazias a maior parte do dia, elas talvez fechem. Ou,

para ser mais precisa, na maioria das vezes elas nem chegam a

 68

M O RT E E V ID A D E G R AN D ES CID ADE S

C O N DI Ç O ES P A RA A D I VE R S ID A DE U R B AN A

 69

abrir. Os estabelecimentos comerciais, assim como os parques,

precisam de freqüentadores.

Para dar um exemplo modesto dos efeitos econômicos da

presença de pessoas ao longo do dia, peço que se lembrem desta

pamentos de mergulho, outra que entrega

pizzas

de primeira

qualidade, uma cafeteria agradável.

O total absoluto de pessoas que utiliza as ruas e a maneira

como essas pessoas se distribuem ao longo do dia são duas coi-

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cena de calçada: o balé da Rua Hudson. A existência permanen-

te dessa movimentação (que traz segurança à rua) depende de

um alicerce econômico de usos principais combinados. Os fim-

cionários de laboratórios, frigoríficos, armazéns e mais aqueles

de uma profusão atordoante de pequenas fábricas, gráficas e pe-

quenas indústrias e escritór ios garantem o funcionamento de res-

taurantes e lanchonetes e da maioria do comércio na hora do al-

moço. Nós, moradores da rua e das travessas majoritariamente

residenciais, poderíamos manter sozinhos um comércio peque-

no, mas pouco numeroso. Dispomos de mais facilidades, anima-

ção, variedade e opções do que  merecemos . As pessoas que

trabalham na vizinhança também têm, por nossa causa, mais va-

r iedade do que  merecem . Mantemos isso tudo juntos, coope-

rando inconscientemente no campo econômico. Se o bairro per-

desse o comércio, seria uma calamidade para nós, moradores. De-

sapareceriam muitas empresas incapazes de sobreviver somente

com as compras domésticas. Ou, se o comércio nos perdesse,

desapareceriam as empresas incapazes de sobreviver só das tran-

sações com os trabalhadores'.

Sendo assim, os trabalhadores e os moradores, juntos, conse-

guem gerar mais do que a soma das duas partes. Os empreendi-

mentos que somos capazes de manter a traem, para as calçadas, à

noite, muito mais moradores do que se o lugar fosse morto. E,

com menos intensidade, atraem ainda outro grupo além dos mo-

radores e dos que trabalham no local: pessoas que querem espai-

recer, como nós. Essa atração expõe nosso comércio a um grupo

ainda maior e mais diversifi cado de pessoas, e isso, por sua vez,

permite um crescimento e uma ampliação do comércio depen-

dente dos três tipos de grupos em proporções variáveis : uma loja

mais adiante na rua que vende gravuras, uma loja que aluga equi-

sas diferentes. Tratarei do total absoluto em outro capítulo; neste

momento é importante entender que o total, em si, não equivale

às pessoas distribuídas ao longo do dia.

1. Contudo, peço que se lembrem de que esse fator da p resença de usuár ios o d ia i nt ei ro

é

apenas um dos quatro fatores necessários para gerar diversidade. Não pensem que ele solucio-

natudo sozinho, muito embora seja um fator essencial.

O significado da distribuição de tempo pode ser percebido

com clareza na ponta do centro comercial de Manhattan, porque

esse distri to apresenta um desequilíbr io extremo de horários de

uso. Cerca de 400 mil pessoas trabalham nesse distrito que abran-

ge a Wall Street, os conjuntos de firmas de advocacia e de seguros

vizinhos, o prédio das repartições da prefeitura, algumas reparti-

ções estaduais e federais, escritórios das docas e de transportes

marítimos e conjuntos de vários outros ramos de atividade. Uma

quantidade desconhecida mas considerável de pessoas vai ao dis-

trito no horário comercial, principalmente a escritórios particu-

lares e do governo.

É uma quantidade imensa de freqüentadores para uma área

tão compacta, que se pode alcançar facilmente qualquer ponto a

pé. Esses usuários representam uma demanda diária impressio-

nante de refeições e outros artigos, isso sem falar nos serviços

culturais.

. Ainda assim, o distri to é deplorável em termos de prestação

de serviços e de conforto proporcionais aos necessários. O nú-

mero e a variedade de restaurantes e de lojas de roupas é lamen-

tavelmente insufic iente em relação ao esperado. O distrito já

teve uma das melhores lojas de ferragens de Nova York, mas há

poucos anos ela não conseguiu arcar com as despesas e fechou.

Teve também uma das mais ref inadas, amplas e antigas mercea-

rias de artigos finos da cidade; também esta fechou as portas re-

centemente. Houve época em que o distrito teve alguns cinemas,

mas eles se transformaram em dormitório de mendigos e acaba-

ram sumindo. As opções culturais do distrito são nulas.

Todas essas lacunas, que de relance podem parecer frívolas,

representam uma deficiência. Firmas e mais firmas mudaram

1 70 M O RT E E V ID A D E G R AN D ES CIDADES CO ND IÇOES PARA A DIVERSIDADE U RBANA 171

para a zona central de Manhattan , de uso misto (eela tornou-se o

principal centro comercial da cidade). Como disse um corretor

de imóveis, se não tivessem mudado, seus funcionários não te-

riam contato com pessoas capazes de pronunciar corretamente

presas conseguem cobrir suas despesas fixas e obter lucros apro-

veitando ao máximo a multidão do meio-dia. Mas é necessário

que sejam muito poucas, de modo que cada uma consiga atrair

uma multidão que lote a loja de uma só vez. Os restaurantes

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 molibdênio . Essas perdas, por sua vez, minaram seriamente o

maior trunfo do distrito - os contatos pessoais de negócios -, de

modo que hoje as firmas de advocacia e os bancos estão se mu-

dando para ficar próximos dos clientes que já o fizeram. O dis-

tri to tornou-se de segunda classe em sua atribuição principal -

fornecer sedes administrat ivas - , que é a base do seu prest ígio,

de sua uti lidade e de sua razão de ser.

Ao mesmo tempo, fora dos enormes edifícios de escritórios

que. constituem o surpreendente horizonte da baixa Manhattan,

há um cinturão de estagnação, decadência, vazios e vestígios de

indústrias. Atentem para este paradoxo: há aí muita gente, e gente

que, além do mais, quer e valoriza tão intensamente a diversidade

urbana que é difícil ou até impossível impedir que fujam à procura

de outro lugar que a possua. E aí, ombro a ombro com a procura ,

existe uma profusão de lugares apropriados e vazios onde a diver-

sidade pode florescer. O que está errado?

Para descobrir o que está errado, basta aparecer em qualquer

loja comum e observar o contraste entre a multidão da hora do al-

moço e a monotonia em outros horários . Basta observar a quie-

tude morta l que se abate sobre o distri to depois das cinco e meia

e nos sábados e domingos inteiros.

 Eles chegam como uma avalanche , escreveu o New York

Times, citando a vendedora de uma loja de roupas.  Logo perce-

bo quando se passaram alguns minutos do meio-dia.  O primei-

ro grupo enche a loja do meio-dia até quase uma hora da tarde ,

explicou o repórter do Times.  Então há uma breve pausa. Pou-

cos minutos depois das 13horas, o segundo grupo avança. E de-

pois, embora ojornal não tenha dito, poucos minutos depois das

14 horas, a loja fica morta.

A atividade das empresas de bens de consumo desse lugar re-

sume-se, na maioria, a duas outrês horas por dia, ou seja, a cerca

de dez ou quinze horas por semana. Esse nível de ociosidade im-

possibilita completamente qualquer empreendimento. Certas em-

também conseguem sobreviver com a hora do almoço e a do lan-

che, em vez do almoço e do jantar, se forem relativamente pou-

cos para conseguir fazer uma troca rápida nas minguadas horas

de bonança. De que maneira i sso contribui para o conforto e o

bem-estar desses 400 mil trabalhadores? Muito pouco.

Não é por acaso que a Biblio teca Pública de Nova York rece-

be desse distri to, mais do que de qualquer outro , telefonemas

angustiados - na hora do almoço, é claro - perguntando:  Onde

fica o posto da biblioteca aqui? Não consigo encontrá-Io.  Pois

ele não existe, para variar. Se existisse, seria impossível fazê-lo

grande o suficiente para comportar as f ilas da hora do almoço e

talvez às cinco da tarde e pequeno o suficiente para atender nos

outros horários.

Fora esses estabelecimentos de movimento esporádico , ou-

tros serviços de varejo podem sobreviver e sobrevivem manten-

do suas despesas fixas bem abaixo do normal. É assim que a

maioria dos lugares interessantes e decentes e incomuns que ain-

da não fecharam as portas consegue sobreviver , e é essa a razão

de se instalarem em prédios velhos e decadentes.

As empresas de negócios e de finanças presentes na baixa

Manhattan empenharam-se durante vários anos, junto à prefeitu-

ra, em planejar e iniciar obras de revitalização da região. Agiram

de acordo com as crenças e os princípios do planejamento urba-

no ortodoxo.

A primeira etapa do raciocínio dessas empresas é boa. Re-

conhecem a existência de um problema e também sua natureza

geral. O folheto do projeto elaborado pela Associação do Cen-

tro e da Baixa Manhattan diz: Ignorar os fatores que ameaçam

a saúde econômica da baixa Manhattan é aceitar o contínuo

êxodo de negócios e atividades há muito estabelecidas para áreas

em que eles consigam encontrar melhores condições de traba-

lho e um ambiente mais agradável e conveniente para seus fun-

cionários.

172 M O RT E E V I DA D E G R AN DE S C ID AD ES

C O N DI Ç O ES P A RA A D I VE R S ID A D E U R B AN A 173

o folheto revela, além do mais, um lampejo de compreensão

de que é necessária a presença de pessoas ao longo do dia, ao

afirmar: Uma população de moradores estimularia o desenvol-

vimento de uma infra-estrutura para compras, restaurantes, locais

de diversão e garagens, que se mostrariam altamente desejáveis

A baixa Manhattan tem realmente um problema sério, e o

raciocínio e os tra tamentos de praxe do planejamento ortodoxo

só ajudam a aumentá-lo. O que poderia ser fe ito para efetivamen-

te melhorar o extremo desequilíbrio de horários de uso do distri-

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também para a população diurna de trabalhadores.

Mas é apenas um débil lampejo de compreensão, e os planos

não passam de uma prescrição de remédios inócuos para a doença.

A população de moradores está, sem dúvida, presente nos

planos propostos. Ela ocupará uma área bem extensa , na forma

de edif ícios padronizados, estacionamentos e espaços vazios ,

mas as pessoas - como o próprio folheto afirma - total izarão ape-

nas cerca de um por cento do número de pessoas da população

diurna. Que poder econômico hercúleo se espera que essa cifra-

zinha exerça Que feitos hedonísticos ela deve realizar para sus-

tentar o desenvolvimento de uma infra-estrutura para compras,

restaurantes, locais de diversão ( ... ) altamente desejáveis tam-

bém para a população diurna de trabalhadores

A nova população de moradores será, é claro, apenas uma

parte do plano. As outras partes intensificarão o problema atual.

Elas o farão de duas maneiras . Primeiro, estão orientadas para

uma inserção ainda maior de usos de trabalho diurnos - manufa-

turas , escritór ios de comércio exter ior e um enorme edifício de

repartições federais, entre outras. Segundo, as demolições pla-

nejadas para a insta lação desses novos locais de trabalho e dos

conjuntos residenciais e das conseqüentes vias expressas vão ex-

tinguir - junto com osprédios vazios e osusos de trabalho deca-

dentes - grande parte dos serviços e do comércio de baixo custo

fixo que ainda funcionam para atender à população de trabalha-

dores . As instalações para esta população, já bastante escassas

em variedade (e quantidade), serão ainda mais reduzidas, em re-

sultado do

aumento

da população de trabalhadores e do número

absolutamente insignificante de moradores. A desagradável si-

tuação atual se tornará insuportável. Os planos, além de tudo,

impossibili tarão o surgimento de serviços que sejam minima-

mente aceitáveis, porque não haverá espaço para eles em face do

valor financeiro necessário à gestação de uma nova empresa.

to, que é a raiz do problema?

A área residencial , não importa a maneira como seja implan-

tada, não ajudará efetivamente. O uso diurno do distr ito é tão in-

tenso, que os moradores, mesmo na mais alta densidade possível,

sempre estar iam em quantidade inexpressiva e ocupariam um

território cujo tamanho seria totalmente desproporcional à con-

tribuição econômica que poderiam dar.

O primeiro passo no planejamento da inclusão de novos usos

potencia is é ter uma idéia real daquilo que essa iniciat iva deve

proporcionar para superar o problema fundamental do distrito.

A inclusão ter ia obviamente de resultar na presença de uma

quantidade máxima de pessoas nos momentos em que o distri to

mais precisa delas para equilibrar os horários de uso: no meio da

tarde (entre duas e cinco horas), à noite, aos sábados e aos do-

mingos. A única concentração mais numerosa capaz de fazer di-

ferença seria uma grande quantidade de vis itantes naqueles pe-

ríodos, o que significa, por sua vez, turistas e muita gente da

própria cidade que passassem a freqüentá-lo em seus momentos

de lazer.

Aquilo que atraia essa injeção de público novo deve ser tam-

bém atraente para as pessoas que trabalham no distrito. Sua exis-

tência não pode, no mínimo, incomodá-Ias ou afugentá-Ias.

Esse novo uso (ou usos) pretendido não pode, a lém do mais ,

substituir indiscriminadamente os próprios edifícios e terrenos

em que os novos empreendimentos e melhorias espontâneas, es-

timulados pela nova distribuição horária das pessoas, teriam con-

dições de crescer com a liberdade e a flexibilidade de espaço de

que precisam.

E, por f im, esse novo uso (ou usos) deve combinar com o per-

fil do distrito, e nunca atuar em sent ido contrário. Faz parte do

perfi l da baixa Manhattan ser intensa , empolgante, excitante, e

isso é um de seus maiores trunfos. O que pode ser mais excitante,

e mesmo romântico, do que os arranha-céus irregulares da baixa

174

M O RT E E V I DA D E G R AN D ES CIDADES

C O N DI Ç O ES P A RA A D I V ER SID A DE U R B AN A

175

Manhattan, erguendo-se repentinamente até as nuvens como um

caste lo mágico envolvido pela água? Seu toque único de um re-

corte desigual, seus desfiladeiros ladeados por arranha-céus são

sua grandiosidade. Que vandalismo não seria (que vandalismo re-

um ótimo programa noturno. Outras atrações da orla poderiam

ser pontos de embarque para passeios pelo porto e ao redor da

ilha. Esses terminais deveriam ser o que a arte conseguisse pro-

duzir de mais encantador e pungente. Se isso não atrai r para o

local novos restaurantes de frutos do mar e muitas coisas mais,

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7/18/2019 JANE JACOBS - Morte e Vida de Grandes Cidades

http://slidepdf.com/reader/full/jane-jacobs-morte-e-vida-de-grandes-cidades 95/139

I

presentam os atuais projetos ) diluir essa presença urbana mag-

nífica no enfadonho e no convencional.

O que existe aqui que atra ia visi tantes nas horas de lazer, por

exemplo, nos fins de semana? Ao longo dos anos, infelizmente,

foram ceifados quase todos os principais atrativos diferenciados

que provavelmente seriam ceifados do distrito pelos projetos. O

aquário, que ficava no Battery Park, na ponta da ilha, e era a

maior atração do parque, foi demolido e reconstruído na Ilha

Coney, o último lugar que precisava dele. Uma pequena comuni-

dade armênia, exótica e imprescindível (havia uma área residen-

cial importante como chamariz peculiar de turistas e visitantes)

foi inteiramente removida por causa do acesso viário a um túnel,

e atualmente os guias turísticos e as seções femininas dos jornais

mandam os visi tantes para o Brook1yn para descobrir os rema-

nescentes dessa comunidade para lá transplantados e suas lojas

extraordinárias. Os barcos de excursão, os passeios à Estátua da

Liberdade, têm tido menos charme que as fil as nas caixas dos

supermercados. A lanchonete do Departamento de Parques no

Battery é tão atraente quanto uma cantina de escola. O próprio Bat-

tery Park, situado no local mais agitado da cidade, entrando por-

to adentro como uma proa, acabou lembrando um asilo para an-

ciãos. Tudo o que até aqui foi imposto a este dis tr ito pelos proje-

tos (e todo o resto que tem sido planejado) transmite às pessoas

com a maior franqueza: Vão embora Deixem-me só Nada diz:

 Venham

Muito poderia ter sido feito.

A própria orla marítima é o primeiro patrimônio desperdiça-

do capaz de atrair pessoas nas horas vagas. Parte da orla do dis-

trito deveria ser transformada num grande museu marí timo - o

ancoradouro permanente de navios raros e incomuns, a maior

frota para ver e visi tar em todo o mundo. Um lugar desses trar ia

para o distrito turistas durante a tarde, turistas e habitantes da ci-

dade, juntos, nos fins de semana e nos feriados, e no verão seria

dou minha mão à palmatória.

Deveria haver atrações afins, instaladas propositadamente não

na própria orla, mas um pouco mais para dentro, no meio das

ruas, para levar os visi tantes mais adiante, numa cômoda cami-

nhada. Deveria ser construído, por exemplo, um novo aquário , e

a entrada precisaria ser gratuita, ao contrário do que ocorre na

Ilha Coney. Uma cidade de oito milhões de habitantes tem con-

dições de manter dois aquários e arcar com a exposição gratuita

dos peixes. Aquele tão necessário posto da biblio teca pública

deveria ser constru ído, e não para ser apenas uma biblio teca cir-

culante, mas uma biblio teca especial izada em assuntos marít i-

mos e financeiros.

Deveriam ser realizados, principalmente no período noturno

e nos fins de semana, eventos especiais condizentes com essas

atrações: poderiam ser apresentados espetáculos de teatro e de

ópera a preços reduzidos. Jason Epstein, editor e especialista em

cidades, que pesquisou atentamente as experiências das cidades

européias à procura de alguma que tivesse proveito para a baixa

Manhattan , sugere um circuito permanente de atrações, como o

de Paris . Bem feita, essa iniciativa traria muito mais resultados

econômicos diretos para os negócios a longo prazo do distrito do

que a triste introdução de fábricas, que tomariam espaço e em

nada contr ibuir iam para a necessidade do distri to de preservar

sua força (e em det rimento de outras partes da cidade que real-

mente precisam delas).

À medida que o distrito ficasse mais animado à noite e nos

fins de semana, poderíamos contar com o surgimento espontâ-

neo do uso residencial. A baixa Manhattan já possui várias casas

antigas, malconservadas mas ainda atraentes, do mesmo tipo das

que foram reformadas em outros lugares quando a vida ressur-

giu. Quem est ivesse à procura de algo ao mesmo tempo único e

cheio de vida faria uma descoberta. Porém, uma área residencial

1 76 M O RT E E V ID A D E G R AN D ES C ID A DE S

C O N DI Ç O ES P A RA A D I VE R SI D AD E U R B AN A 1 7 7

porcentagem apreciável de usuários), também o são muitos mu-

seus, bibliotecas e galerias de arte, mas nem todos.

Às vezes os usos principais podem ser incomuns. Em Louis-

ville, f loresceu depois da guerra uma grande parte de estoque de

calçados, em cerca de trinta lojas concentradas em quatro qua-

num local como esse deve necessariamente ser conseqüência da

vitalidade do distrito, e não causa.

Será que as minhas sugestões sobre outros usos baseados em

atividades de lazer parecem frívolas e dispendiosas?

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dras de uma rua. Grady Clay, editor de imóveis do Louisvil/e

Courier-Journal e renomado projetista e crítico de planejamento

urbano, revela que esse grupo tem cerca de meio milhão de pa-

res de sapatos nas vitrinas e em estoque. Fica dentro de uma

área cinzenta , disse Clay em carta para mim, mas assim que a

notícia se espalhou, os fregueses começaram a aparecer de todos

os lugares , de modo que vemos compradores de Indianápolis,

Nashville e Cincinnati, além de um bom comércio de Cadillacs.

Tenho pensado nisso. Ninguém poderia ter planejado esse flo-

rescimento. Ninguém o incentivou. A maior ameaça, na verdade,

é a via expressa que vai cortar a localidade diagonalmente.

Ninguém na prefeitura parece se importar com isso. Espero des-

pertar algum interesse (... ).

Como essa situação sugere, não sepode depreender pela apa-

rência externa ou por outros indícios de suposta importância a

eficácia de um uso principal como atração para as pessoas. Cer-

tas aparências muito marcantes têm desempenho insuficiente.

Por exemplo, o prédio principal da biblioteca pública de Fila-

délfia, implantado num centro cultural monumental, atrai menos

freqüentadores que três postos da biblioteca, incluindo um esta-

belecimento atraente mas despretensioso misturado às lojas da

Rua Chestnut, no centro da cidade. Como muitos empreendi-

mentos culturais, as bibliotecas são uma combinação de uso prin-

cipal com uso de conveniência e funcionam melhor de ambas as

formas quando as duas caracter íst icas estão presentes. Então,

em tamanho e aparência e pelo acervo de livros , o prédio princi-

pal da biblioteca é mais signif ica tivo; mas, na condição de ele-

mento de uso urbano, o posto é mais significativo, contradizen-

do as aparências.

É

preciso sempre pensar em desempenho para

os usuários ao tentar compreender como funcionam as combina-

ções de usos principais.

Qualquer uso principal isolado é um gerador de diversidàde

urbana relativamente ineficiente. Mesmo que ele esteja associa-

Veja, então, os custos previstos dos projetos elaborados pela

Associação do Centro e da Baixa Manhattan e pela prefeitura

para criar ainda mais locais de trabalho, conjuntos habitacionais

e estacionamentos e vias expressas que permitam aos moradores

sair do distrito nos fins de semana.

Essas coisas devem custar, estimam os planejadores, um bi-

lhão de dólares em dinheiro público e privado

A situação extrema de desequilíbrio atual quanto à presença

de pessoas ao longo do dia na baixa Manhattan ilustra um bom

~

úmero de princípios sensatos que se aplicam igualmente a ou-

-, tros distritos:

Nenhum bairro ou distrito, seja ele bem estabelecido, famoso

ou próspero, seja ele, por qualquer razão, densamente povoado,

pode desconsiderar a necessidade da presença de pessoas ao

longo do dia sem com isso frustrar seu potencial de gerar diver-

sidade.

Além do mais, um bairro ou um distrito planejado à perfeição,

aparentemente para atender a uma função, de trabalho ou outra

qualquer, e provido de tudo o que seja obviamente necessário a

essa função, não consegue de fato propiciar o que é necessário

se estiver preso a essa única função.

Se um projeto elaborado para um distri to no qual haja carên-

ciade pessoas ao longo do dia não atuar na causa do problema,

só conseguirá substituir a velha estagnação por uma nova. O dis-

tri to poderá parecer mais l impo por algum tempo, o que, porém,

não justifica um gasto tão grande.

Deve ter f icado claro agora que estou discutindo dois t ipos

diferentes de diversidade. Os usos principais são, primeiro, aque-

les que por si sós atraem pessoas a um lugar específico porque

funcionam como âncoras. Escritórios e fábricas são usos princi-

pais. Moradias também. Certos locais de diversão, educação e re-

creação são usos principais. Em certo grau (quer dizer, para uma

1 78 M O R TE E V ID A D E G R A ND ES C I DADES

do a outro uso principal, que atraia pessoas e as traga para as

ruas ao mesmo tempo, não promoverá grande avanço. Na práti-

ca, não podemos sequer chamá-los de usos principais divergen-

tes. No entanto, quando um uso principal é efet ivamente asso-

C OND I ÇOE S P A R A A D I V ER S I DA D E U R B A N A 1 7 9

Não pretendo menosprezar esse fato; ele é vital para a saúde

econômica das ruas e dos distritos e para as cidades como um

todo. Ele é vital para a fluência de usos urbanos, para a variedade

de opções e para as diferenças atraentes e proveitosas das parti-

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ciado a outro, que traga aspessoas para as ruas em horários dife-

rentes, aí o resultado pode ser economicamente estimulante: um

ambiente fértil para a diversidade derivada.

Diversidade derivada é um termo que se aplica aos empreen-

dimentos que surgem em conseqüência da presença de usos prin-

cipais, a f im de servir às pessoas atra ídas pelos usos principais .

Se essa diversidade derivada servir a usos principais únicos, se-

jam eles quais forem, ela será naturalmente ineficiente', Ao ser-

vir a usos principais combinados, ela pode ser naturalmente efi-

ciente e, se as outras três condições para a geração de diversidade

forem também favoráveis, ela poderá ser exuberante.

Se esse leque de usos distribuir por todo o dia uma boa varie-

dade de necessidades e preferências de consumo, todos os tipos

de serviços e estabelecimentos tipicamente urbanos e especiali-

zados poderão surgir, processo que se multipl ica por si mesmo.

Quanto mais complexa for a mistura de grupos de usuários - e

daí sua efic iência -, maior será o número de serviços e lojas ne-

cessários para pinçar sua clientela dentre todos os tipos de gru-

pos de pessoas, e conseqüentemente maior será o número depes-

soas atraídas. Aqui é necessário fazer outra distinção.

Se a diversidade derivada florescer satisfatoriamente e conti-

ver quantidade suficiente de elementos incomuns ou singulares,

ela poderá tornar-se - e na verdade se torna - ela própria, por

acumulação, um uso principal. As pessoas vêm especificamente

por causa dela.

É

isso que acontece nos bons distri tos com área

comercial ou mesmo, num nível mais modesto, na Rua Hudson.

2 . O s shoppi ng c en te r s q u e s e rv e m a p en a s a o u s o p r in c ip a l r e si de n ci al , p o r exem p l o , ap resen -

ta m u m p ro ble ma p arecid o c om o d a b a ixa M anha tt an, m a s i n ve rt id o c om rel aç ã o a o h o rá rio .

As s im , m u i t o s de ssess hopp ing c en te r s pe rm anec em f ec hados de m anhã e abrem à noite . Do

j ei to q u e a s c o is as estã o , d iss e u m d ir et or d e shopping center cita do p e lo Ne w Yo r k T im e s,

 v o cê p od e d is pa ra r u m ca nh ão n o co r re d o r d e q u a lq u e r sh o pp in g c e nt er a o m eio-d ia e n ão

a t ing i r v i va lm a. A ine fic áci a inerente a o s e r vi r a u m ú n ic o u s o p r incipa l é u m d os m otiv o s ( ju n -

t o c o m v á ri o s o u t ro s ) p e lo s q u a is a ma io r ia d o s s h op p in g cent ers

é

ca p a z d e m a n te r a p en a s e m -

p r es a s p ad r on iz a da s e d e a lt o g ir o .

,

cularidades das ruas e dos distritos.

Entretanto, é raro a diversidade derivada tornar-se, por si só,

um uso principal. Para ter perenidade e vital idade para crescer e

mudar, ela deve preservar seu alicerce de usos principais combi-

nados - a presença de pessoas ao longo do dia por motivos de-

terminados. Isso se aplica também à área comercial do centro da

cidade, a qual se encontra aí, fundamentalmente, por causa de

outros usos principais combinados e se retrai (mesmo que lenta-

mente) quando estes sofrem algum desequilíbrio sério.

Mencionei várias vezes de passagem que as misturas de usos

principais devem ser eficientes para gerar diversidade. O que lhes

dá eficiência? Elas precisam, é claro, estar associadas às outras

três condições que estimulam a diversidade. Mas, a lém disso, a

própria mistura de usos principais precisa funcionar bem.

Eficiência significa, em primeiro lugar, que as pessoas que

utilizam as ruas em horários diferentes devem utilizar exatamen-

te as mesmas ruas . Se seus tra jetos forem diferentes ou separa-

dos uns dos outros, não haverá na verdade mistura alguma. Quan-

to à economia urbana, então, a sustentação mútua das diferenças

seria fictícia ou algo que se deva encarar simplesmente como

uma abstração de diferentes usos contíguos, sem significação al-

guma, a não ser num mapa.

Eficiência significa, em segundo lugar, que aspessoas que uti-

l izam as mesmas ruas em horários diferentes devem incluir pes-

soas que utilizem algumas das mesmas instalações. Podem estar

presentes pessoas de todos os tipos, mas aquelas que aparecem

ao mesmo tempo por determinado motivo não devem formar um

grupo inteiramente incompatível com o daquelas que aparecem

por outro motivo. Como exemplo extremo, no local em que se

instalou a nova sede da Metropoli tan Opera de Nova York, que

deverá usar a mesma rua que um conjunto habitacional de baixa

renda, essa confluência não tem sentido, mesmo que aí houvesse

lugar para o desenvolvimento de uma diversidade mutuamente

180

M O R TE E V I D A D E G R A N D ES C I DA D ES

C O N Di ÇÕ E S P A RA A D I VE R S ID A DE U R B AN A

181

sustentada. Esse tipo de transtorno econômico irremediável sur-

ge naturalmente nas cidades, mas costuma ser provocado por pla-

nos urbanísticos.

E, por fim, eficiência signi fica que a mistura de pessoas na

rua em determinado momento do dia deve ser razoavelmente

Tenho mencionado os centros das cidades por duas razões.

Primeiro, uma mescla insuficiente de usos principais é normal-

mente sua principal deficiência e geralmente a única desastrosa.

A maioria dos centros das grandes cidades preenche - ou já

preencheu no passado - as quatro condições necessárias para ge-

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proporcional ao número de pessoas presentes em outros horários

do dia. Já frisei esse ponto ao abordar os planos para a ponta sul

de Manhattan. Tem-se constatado com freqüência que os centros

urbanos movimentados costumam ter áreas residencia is que os

penetram e se situam bem a seu lado e costumam ter usos notur-

nos que esses moradores apreciam e ajudam a manter . A consta-

tação é precisa até onde ela chega e, com base em seu acerto,

muitas cidades esperam milagres de conjuntos habitacionais im-

plantados no centro da cidade, nos moldes do plano da baixa

Manhattan. Mas, na realidade, nos lugares em que tais combina-

ções têm vital idade, os moradores fazem parte de um conjunto

bastante complexo de usos diurnos, noturnos e de fim de sema-

na do centro razoavelmente equilibrados.

Analogamente, uns poucos milhares de trabalhadores mistu-

rados a dezenas ou centenas de milhares de moradores não cons-

tituem um equilíbrio apreciável, nem em número nem em ne-

nhum aspecto específ ico signif ica tivo . Da mesma maneira, um

edificio de escri tórios solitár io em meio a um amplo conjunto de

teatros significa, na prática, muito pouco ou nada. Resumindo,

com relação às mesclas de usos principais , o que conta é o resul-

tado cotidiano e habitual da mistura de pessoas como grupos de

sustentação econômica mútua. É esse o caso, e se trata de uma

questão econômica tangível, concreta, não de um efeito vago no

 clima do local.

rar diversidade. É por isso que conseguiram se tomar centros das

cidades. Hoje, eles normalmente ainda preenchem três das quatro

condições. Mas passaram a voltar-se predominantemente para o

trabalho (por motivos que serão apresentados no Capítulo 13) e

têm muito pouca gente depois do horário comercial. Essa condi-

ção foi mais ou menos formalizada no jargão do planejamento

urbano, que não mais serefere aos centros , mas a CBDs , que

significa Central Business Districts [Centros comerciais distri-

tais]. Um centro comercial distrital que faça jus ao nome e seja

realmente definido por ele é uma nulidade. Poucos centros de

cidade alcançaram (por enquanto) o grau de desequilíbrio que se

verifica na ponta sul de Manhattan. A maioria deles tem, além

dos trabalhadores, um bom número de consumidores no horário

diurno durante o expediente e aos sábados. Mas a maioria deles

está a caminho desse desequil íbr io e tem menos qualidades po-

tenciais para se restabelecer do que a baixa Manhattan.

A segunda razão da ênfase nas misturas de usos principais no

centro é sua influência direta em outras partes da cidade.

É

pro-

vável que todos saibam que o coração das cidades depende de

várias coisas. Quando o coração urbano pára ou se deteriora, a

cidade, enquanto conjunto de relações sociais, começa a sofrer:

as pessoas que deveriam se encontrar deixam de fazê-lo , em vir-

tude da falta das atividades do centro. As idéias e o dinheiro que

deveriam se complementar - o que ocorre natura lmente num lu-

gar cujo centro tenha vitalidade - deixam de fazê-Io. A rede de

vida pública urbana sofre rupturas insustentáveis. Sem um cora-

ção central forte e abrangente, a cidade tende a tomar-se um

amontoado de interesses isolados. Ela fracassa na geração de

algo social , cultural e economicamente maior do que a soma de

suas partes constitutivas.

Todas essas considerações são importantes, mas minha meta

é um efeito econômico mais específico exercido sobre os outros

distritos por um coração urbano forte.

Tenho mencionado bastante os centros das cidades. Isso não

quer dizer que as misturas de usos principais não sejam necessá-

r ias em outros lugares . Ao contrár io , são necessárias , e o êxito

dessas mesclas no centro (ou nas partes mais movimentadas das

cidades, seja qual for seu nome) está relacionado à mescla possí-

vel em outras partes das cidades.

18 2 M OR TE E VI DA D E G RAND ES CID ADE S

C OND IÇO ES PARA A D IVERSIDAD E U R BAN A 183

As vantagens peculiares que as cidades propiciam à incuba-

ção certamente atuam com mais eficiência, como assinalei, nos

lugares em que se formam associações de usos mais complexos.

Dessas incubadoras de empreendimentos despontam brotos eco-

nômicos que mais tarde poderão transferir seu poder - e o trans-

com mesclas principais, entre outros fatores -, sob pena de defi-

nhar e talvez desaparecer. O deslocamento deles, caso encon-

trem locais que lhes sejam adequados, pode representar uma boa

oportunidade para a cidade. Eles ajudam a intensificar e acelerar

a formação de uma cidade ainda mais complexa. Essa é uma das

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ferem efetivamente - para outras partes da cidade.

Esse deslocamento foi muito bem descrito por Richard Rat-

cliff, professor de economia territorial da Universidade de Wis-

consin. A descentral ização só será um sintoma de degeneração

e decadência , diz Ratcliff, se deixar para trás um vazio. Ela é

salutar se resultar de forças centrípetas. A maior parte dos des-

locamentos de certas funções urbanas para fora ocorre princi-

.•. palmente quando elas são empurradas do centro para fora do

que quando respondem a uma atração gerada em localidades

periféricas. 

Numa cidade próspera, observa o Professor Ratcliff, há uma

substituição constante de usos menos intensos por outros mais

intensos'. A dispersão induzi da por meios artificiais é outra his-

tór ia. Ela apresenta o risco de perda da efic iência e da produtivi-

dade plenas.

Em Nova York, conforme observou Raymond Vernon em

Anatomy of a Metropolis, as grandes melhorias em trechos da

Ilha de Manhattan em benefício do pessoal de escritório têm

provocado a migração de indústrias para outras regiões adminis-

trativas. (Quando crescem e se tornam auto-suficientes, as in-

dústr ias costumam mudar-se para os subúrbios ou para cidades

de pequeno porte, que também dependem economicamente da

poderosa influência da incubação daqueles lugares altamente

produtivos, as metrópoles ativas.)

Os usos restantes nas incubadoras de diversidade e de empre-

sas são de dois tipos, como outras diversidades urbanas. Se fo-

rem de diversidade derivada, servindo a pessoas atraídas pelas

misturas de usos principais, devem encontrar outros lugares onde

a diversidade de usos derivados possa florescer - outros lugares

influências externas que nos têm atingido na Rua Hudson, por

exemplo.

É

a do pessoal que vem à procura de equipamentos de

mergulho e de gravuras e molduras, é o escultor que se insta lou

numa loja vazia. Trata-se de empresas que transbordam de gera-

dores de diversidade mais intensos.

Embora esse deslocamento seja precioso (se não desaparecer

devido à falta de um terreno econômico suficientemente fértil), é

menos significativo e essencial do que o deslocamento da diver- \

sidade de usos principais suplantados nos centros urbanos ativos.

Isso porque, quando as atividades principais, como fábricas, por

exemplo, transbordam de combinações de usos que não conse-

guem mais conter tudo o que geram, elas se tomam ingredientes

de uma mistura principal em lugares em que o uso principal do

trabalho é extremamente necessário. A presença delas pode aju-

dar a criar novas associações de usos principais combinados.

Economista especial izado em uso do solo, Larry Smith cha-

mou os edifícios de escritórios, com muita propriedade, de peças

de xadrez.  Você já usou essas peças , teria ele dito a um urba-

nis ta que tentava revital izar uma quantidade assombrosa de lo-

cais com planos imaginários de novos conjuntos comerciais.

Todos os usos principais, sejam de escritórios e moradias, sejam

de salas de espetáculos, são as peças de xadrez da cidade. Aque-

las que se movem diferente das outras devem ser empregadas

conjuntamente

para lograr o máximo. E, assim como no xadrez,

um peão pode tornar-se uma rainha. Mas o desenvolvimento ur-

bano tem essa diferença em relação ao xadrez: o número de

peças não é determinado por regras. Se bem colocadas, as peças

se multiplicam.

Nos centros das cidades, a administração municipal não pode

injetar diretamente num local os empreendimentos privados que

atendam às pessoas após o trabalho e o animem e contribuam

para sua revitalização. A administração municipal também não

. Esse pro cesso p od e chegar a extre m os e a u to cons um ir-se, ma s e s se

é

out ro aspecto da qu es-

tão , qu e aborda rei n a P a rte 3 d este liv ro . Va m os d eixá -I o de lado por enq u ant o.

 8 MORTE EVID DE GR NDESC ID DES

CONDiÇÕES P R DIVERSID DE UR N   85

pode nem por decreto  manter esses usos no centro. Mas a ad-

ministração municipal pode estimular indiretamente o cresci-

mento deles util izando suas peças de xadrez - e aquelas suscetí-

veis à pressão do público - nos lugares certos como um primei-

ro passo.

segregá-Ias num núcleo planejado chamado Lincoln Center for

the Performing Arts [Centro de Artes Cênicas Lincoln]. O Car-

negie Hall foi salvo por um fio graças

 

obstinada pressão polí-

tica de cidadãos embora não vá mais ser a sede da Filarmônica

de Nova York que se descontaminará da cidade comum.

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O Carnegie Hall na Rua 57  Oeste de Nova York é um exem-

plo excelente desse primeiro passo. Ele teve ótimo resultado na

rua apesar do sério inconveniente das quadras longas demais. A

presença do Carnegie Hall que faz a rua ter intenso uso

à

noite 

gerou com o tempo a presença de vários conservatórios de músi-

ca e dança  oficinas de teatro e salas de recital. Tudo isso se mes-

cla e se entrelaça com os locais de moradia - dois hotéis e mui-

tos prédios de apartamentos bem próximos que abrigam todo

tipo de morador e hóspede mas principalmente um grande nú-

mero de músicos e professores de música. A rua funciona de dia

em razão de pequenos edificios de escritórios e enormes edifi-

cios de escritórios a leste e a oeste e ainda porque o uso em dois

turnos consegue manter uma diversidade derivada que se tornou 

com o tempo igualmente uma atração. A distribuição horária de

usuários sem dúvida é um estímulo para os restaurantes  e há aí

uma boa variedade deles: um ótimo restaurante italiano  um res-

taurante russo charmoso um restaurante de frutos do mar  uma

casa de café expresso diversos bares lanchonetes automatizadas

duas máquinas de refrigerantes uma lanchonete. Em lojas em

meio aos restaurantes podem-se comprar moedas raras jóias

antigas  livros novos ou usados calçados muito bons  material

de arte  chapéus requintados flores comidas finas alimentos

orgânicos  chocolates importados. Podem-se vender ou comprar

vestidos Dior de segunda mão casacos e estolas depele com pou-

co uso ou alugar um carro esporte inglês.

Nesse caso  o Carnegie Hall é uma peça de xadrez vital que

atua

 onjunt mente

com outras peças. O plano mais desastroso

que se poderia arquitetar nessa vizinhança seria a demolição do

Carnegie Hall e sua substituição por outro edificio de escritó-

rios. Foi exatamente isso o que quase aconteceu em resultado da

decisão do município de Nova York de pegar todas as suas peças

culturais mais expressivas ou potencialmente expressivas  e

Ainda assim é um planejamento lamentável que destruiria

cegamente as combinações de usos existentes. na cidade e provo-

caria automaticamente novos problemas de estagnação um sub-

produto impensado da imposição de novos sonhos. As peças de

xadrez - e nos centros da cidade as peças de xadrez de uso no-

turno que podem ser instaladas por decisão administrat iva ou

pela pressão do público - devem ser colocadas para fortalecer e

ampliar a vitalidade existente e também ajudar a equilibrar  nos

locais estratégicos os desequilíbrios de horários existentes. A

faixa central da cidade de Nova York possui muitos lugares com

uso diurno intenso mas sinistramente mortos à noite que preci-

sam exatamente das peças de xadrez que estão sendo tiradas do

jogo no Lincoln Center . O trecho da Park Avenue com novos edi-

• ficios de escritórios entre a Grand Central Station [Grande Esta-

ção Central] e a Rua 59 é um desses lugares. A área logo ao sul

da Grand Central é outro. A zona de compras que tem como

núcleo a Rua 34 é outro. Vários distritos outrora movimentados

infelizmente decaíram depois de perder a antiga mistura de usos

principais que era motivo de atração popularidade e valor eco-

nômico.

  por isso que tais centros culturais e administrativos plane-

jados apesar de serem em geral lamentavelmente desarmônicos 

têm efeitos trágicos sobre a cidade. Eles isolam os usos - e qua-

se sempre também os usos noturnos intensos - dos locais da ci-

dade que precisam deles para não decair.

Boston foi a primeira cidade norte-americana que planejou

um distrito cultural descontaminado. Em 1859 uma Comissão

de Diretrizes instituiu a Preservação Cultural destinando cer-

ta área somente a entidades de caráter educacional científico e

artíst ico decisão que coincidiu com o início do longo e lento

declínio de Boston como principal pólo cultural entre as cidades

dos Estados Unidos. Não posso afirmar que a segregação e a

1 86 M OR TE E VID A D E GRANDE S CID ADE S

COND IÇO ES PARA A D IV ERSIDAD E U R BAN A 187

descontaminação intencionais de várias instituições culturais,

afastando-as da cidade e da vida cotidiana, tenham sido um dos

motivos do declínio cultural de Boston ou simplesmente um sin-

toma e uma confirmação de uma decadência já inevitável por

outras razões. Uma coisa é certa: o centro de Boston sofreu terri-

pacidade às oito horas da noite, exceto a garagem da Mellon

Square, que pode chegar a 50 por cento se estiver sendo realiza-

do algum evento nos hotéis. (Como os parques e os estabeleci-

mentos de consumo, a infra-estrutura de estacionamentos e para

o tráfego de veículos é intrinsecamente contraproducente e exa-

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velmente com a ausência de misturas de usos principais satisfa-

tórias, particularmente uma boa mescla de usos noturnos e de

usos culturais vivos (não obsoletos ou nostálgicos).

Aqueles que têm enfrentado dif iculdade em angariar recur-

sos para grandes empreendimentos culturais dizem que os ricos

contribuiriam muito mais prontamente e com mais dinheiro para

núcleos grandes e descontaminados de prédios monumentais do

que para um conjunto de construções soli tárias instaladas na

matriz da cidade. Esse é um dos raciocínios que resultaram nos

planos do Lincoln Center for the Performing Arts de Nova York.

Não sei se isso se aplica à arrecadação de recursos. Todavia, não

seria de surpreender, já que os especialistas há anos informam as

pessoas abastadas que também têm cultura de que as únicas

construções urbanas que valem a pena são os grandes empreen-

dimentos.

No círculo dos planejadores do centro da cidade e dos grupos

de homens de negócios que trabalham com eles, existe o mito

(ou a desculpa) de que os norte-americanos ficam em casa de

noite assist indo à TV ou então freqüentam reuniões das APMs.

É

isso que eles nos dizem em Cincinnati quando lhes pergunta-

mos a respeito do centro da cidade, que é morto de noite e con-

seqüentemente morto-vivo de dia. Mesmo assim, os habitantes

de Cincinnati atravessam o rio cerca de quinhentas mil vezes por

ano para participar da vida noturna, quase sempre cara, de Co-

vington, Kentucky, que possui um tipo próprio de desequilíbrio.

 As pessoas não saem  é também uma das desculpas usadas em

Pittsburgh para explicar seu centro

morto .

No centro, as garagens do Departamento de Estacionamento

de Pittsburgh funcionam com apenas 10 ou 20 por cento da ca-

gerada sem uma boa distribuição horária de usuários.) Ao mes-

mo tempo, é atroz o problema de estacionamento num lugar cha-

mado Oakland, a cinco quilômetros do centro. Nesse lugar, as-

sim que uma multidão sai, outra já está entrando , revela um

funcionário do departamento.

 É

uma dor de cabeça. 

É

fácil de

compreender por quê. Oakland acolhe a sinfônica de Pittsburgh,

a opereta pública, um grupo de teatro, o restaurante da moda, a

Associação Atlética de Pittsburgh, dois outros clubes grandes, a

sede principal da Biblioteca Carnegie, um museu e galer ias de

arte, a Sociedade de História, o templo dos Shriners*, o Instituto

Mellon, um hotel muito procurado para festas, a Associação Ju-

daica de Jovens, a sede do Conselho de Educação e todos os

principais hospitais.

Como tem grande desproporção entre horas de lazer e usos

pós-expediente, Oakland manifesta também um desequilíbrio, e

Pittsburgh não dispõe de um lugar apropriado, seja em Oakland,

seja no centro comercial, para gerar com intensidade sua princi-

pal diversidade derivada metropolitana. Os estabelecimentos pa-

dronizados e a diversidade mais comum, é fato, encontram-se no

centro da cidade. A maior parte da diversidade comercial mais

especializada aparentemente apostou em Oakland como o me-

lhor dos lugares; mas ela é inerte e deficiente porque Oakland

fica dis tante da verdadeira associação de usos que o coração da

metrópole deveria ser.

O principal responsável por Pit tsburgh ter caído nesse dese-

quilíbrio duplo foi um especulador imobiliário, o falecido Frank

Nicola, que há cinqüenta anos, na época do movimento City

Beautiful, passou a promover a construção de um centro cultural

nos antigos campos de uma fazenda de laticínios. Ele teve um

4. A outra desculpa. dada com certo orgulh o p el os homens de negócios. é:  Nosso centro é

parecido com Wall Street.  Parece que eles não ouviram falar das dificuldades da v izinhança de

Wall Street.

*

Confraria secreta dos Estados Unidos em que são admitidos como membros apenas cavalei-

ros templários e maçons de grau elevado. (N. do T.)

 88

M O RT E E V I DA D E G R AN DES CIDADES

C O N DI Ç OE S P A RA A D I V ER S I DA D E U R B A N A

 89

vos usos de trabalho planejados para a baixa Manhattan não só

aumentarão o problema fundamental desse distrito, mas ao mes-

mo tempo oprimirão os novos empregados e servidores com um

ambiente urbano inadequado e economicamente monótono. Ago-

ra vou dar um exemplo dos efeitos nocivos bastante complexos

que podem surgir quando se menospreza essa organização natu-

bom começo, porque a biblio teca e o centro de artes Carnegie já

haviam recebido uma doação de terras do espólio Schenley.

Naquela época, o centro de Pit tsburgh não era de forma alguma

um local atraente para tais empreendimentos, porque era irreme-

diavelmente soturno, enfumaçado e enegrecido pela fuligem.

Todavia, atualmente o centro de Pit tsburgh tem potencial

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As peças de xadrez de uso principal não podem, é claro, ser

espalhadas aqui e acolá na cidade tendo em conta apenas a ne-

cessidade de distribuir as pessoas ao longo do dia e ignorando as

necessidades part iculares dos próprios usos, ou seja, quais se-

riam locais bons para eles.

Contudo, tal arbitrariedade é dispensável. De vez em quando

tenho falado com admiração da organização latente, complexa,

das cidades. Faz parte da beleza dessa organização que o êxito

da mistura em si e o êxito de seus elementos peculiares e especí-

f icos estejam em harmonia, não em contradição. Já dei alguns

exemplos dessa identidade (ou correspondência) de atrativos nes-

te capítulo e mencionei outros indiretamente: por exemplo, os no-

ral da vitalidade urbana.

Chamaremos esse exemplo de o caso dos paços e da ópera.

Há quarenta e cinco anos, a cidade de São Francisco começou a

construir um centro cívico, que desde então tem ocasionado pro-

blemas. Esse centro , s ituado próximo do centro da cidade e cujo

propósito era fazê-lo expandir-se até lá, obviamente não só repe-

liu a vitalidade como juntou à sua volta a praga que normalmen-

te assola esses lugares artificiais e mortos. O centro inclui, entre

outros componentes arbitrár ios de seus espaços, a ópera, a pre-

feitura, a biblioteca pública e várias repartições municipais.

Pensando no teatro l írico e na biblioteca como peças de xa-

drez, como eles poderiam ter contribuído mais para a cidade?

Cada um deles deveria ter sido utilizado, separadamente, em es-

treita harmonia com os escritórios e os estabelecimentos do cen-

tro, de grande vitalidade. Estes, somados à diversidade derivada

que ajudariam a firmar, teriam constituído também um ambiente

mais adequado para qualquer um daqueles prédios. A ópera não

tem relação com coisa alguma e desfruta a vantagem despropo-

sitada do espaço mais próximo, a sala de espera da Agência de

Empregos do Serviço Público, nos fundos da prefeitura. E a bi-

blioteca é o muro de arrimo do submundo.

Infelizmente, em questões desse tipo, um erro leva a outro,

sucessivamente. Em 1958, deveria ser escolhida uma localidade

para o Palácio da Justiça. O local lógico, logo se reconheceu, se-

ria próximo de outros órgãos municipais, para conveniência dos

advogados e dos serviços que se instalam perto desses profissio-

nais . Mas também se reconheceu que o Palácio da Justiça tende-

r ia a catal isar , em algum ponto dos arredores , uma diversidade

derivada de casas de fiança e bares pouco elegantes . Que fazer?

Colocar o palácio perto do centro cívico ou dentro dele, de

modo a ficar perto de alguns dos órgãos com que ele trabalha?

Todavia, o ambiente dos tribunais penais nada tem a ver com a

para o uso de lazer , graças à maciça limpeza proposta pela Con-

ferência de Allegheny, integrada por negociantes. E, teoricamen-

te, o desequil íbr io no horário do centro deveria ser remediado

em breve com um auditório público e o posterior acréscimo de

uma sala de concertos e prédios de apartamentos, todos vizinhos

do centro. Mas ainda reina o espírito da fazenda de laticínios e

da cultura que se descontamina da cidade. Todos os instrumen-

tos - artér ias de trânsito, cinturões verdes, estacionamentos -

separam esses projetos do centro comercial e fazem com que sua

ligação permaneça como um plano no papel em vez de uma rea-

lidade econômica de pessoas que freqüentam as mesmas ruas

em horários diferentes. A decadência dos centros das cidades

norte-americanas não é misteriosa, nem se deve à sua anacronia,

nem ao fato de os usuários terem sido afugentados pelos auto-

móveis. Eles estão sendo estupidamente assassinados, em boa

parte por políti cas deliberadas de separar os usos de lazer dos

usos de trabalho, em conseqüência do mal-entendido de que isso

seja um planejamento urbano ordenado.

 9 MORTE EVIDA DE GRANDES CIDADES CONDIÇOES PARA A DIVERSIDADE URBANA  9

ópera A sordidez espantosa nas redondezas já é inconveniente o

suficiente.

Qualquer outra solução para um dilema tão absurdo tem de

ser ruim. A solução escolhida foi colocar o Palácio da Justiça a

uma distância incômoda, mas o teatro lír ico foi salvo de ser ain-

da mais contaminado por uma vida que não a cívica , seja lá o

tais, mercados, sedes de associações nacionais, academias e monu-

mentos comemorativos federais em pontos de destaque arquitetônico

por toda a cidade, como se tivesse o propósito específico de deixar a

marca da capital federal em todo canto. Era um sentimento sincero e

uma decisão arquitetônica correta.

A partir da Feira de Chicago de 1893, surgiu o ideário da arquite-

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que isso possa significar.

Essa trapalhada cansativa não provém, de modo algum, de con-

tradições entre as exigências da cidade como organismo e as exi-

gências de vários usos específ icos, nem a maioria das trapalha-

das do planejamento provém de tais contradições. Provém prin-

cipalmente das teorias que contradizem arbitrariamente tanto a

organização das cidades quanto as necessidades de cada uso.

Esse aspecto teórico inadequado - neste caso, de uma teoria

estética - tem tal relevância para as misturas adequadas de

usos urbanos principais e, de uma ou de outra forma, as frustra

de tal maneira, que eu me alongarei um pouco mais em suas

implicações.

Elbert Peets, arquiteto que por muitos anos foi membro dis-

cordante na Comissão de Belas-Artes de Washington, descreveu

bem o conflito e, embora se referisse a Washington, suas afirma-

ções aplicam-se ao mesmo problema em São Francisco e tam-

bém aos de várias outras cidades:

tura que encara a cidade como uma corte de honra monumental, des-

tacada de uma área profana e desordenada de concessões . ( ... )Não

há indício, nesse procedimento, de sentimento pela cidade como orga-

n ismo, matr iz digna de seus monumentos e recep tiva a eles ( . .. ) .A

perda, a lém de esté ti ca , é social ( . .. ) .

Mas alguém poderia objetar impensadamente que se trata de

duas concepções estét icas contrárias , uma questão de gosto , e

gosto não se discute. Mas é mais do que gosto . Uma dessas con-

cepções - as cortes de honra separadas - contradiz as necessi-

dades funcionais e econômicas das cidades e de seus usos espe-

cí ficos também. A outra concepção - a cidade mesclada, com

marcos arquite tônicos intimamente rodeados pela matr iz coti-

diana - harmoniza-se com a atividade econômica e com outras

atividades funcionais das cidades'.

Todos os usos urbanos principais , tenham ou não aparência

externa monumental e especial , necessi tam de que essa matr iz

íntima da cidade profana trabalhe da melhor maneira possível.

Os edificios municipais de São Francisco precisam de outro tipo

de matriz com uma diversidade derivada. E as próprias matrizes

da cidade precisam desses usos, porque a presença deles ajuda a

influenciar a formação delas. Além do mais, a matriz urbana

precisa de misturas internas próprias menos espalhafatosas ( de-

sordens , para os simplórios). De outra forma, não se tra tar ia de

uma matriz, mas, como os empreendimentos residenciais, de

uma monotonia profana , que atua com a mesma insensatez da

monotonia sagrada de centros administrativos como o de São

Francisco.

Sou de opinião que aspectos importantes [do atual planejamen-

to urbano de Washington] são motivados por princípios errados. Es-

ses princípios estabeleceram-se ao longo do tempo e ganharam tanto

apoio, por força do hábito e do capital investido, que aspessoas ocupa-

das que gerenciam o desenvolvimento arquitetônico de Washington

sem dúvida as aceitam sem objeções - o que nós, no entanto, não po-

demos fazer.

Em resumo, é isto que está acontecendo: o governo da capital está

se distanciando da cidade; os prédíos do governo estão sendo concen-

trados e i solados dos edi fí cios da cidade. Isso não foi uma idéia de

I.:Enfant* .Ao contrário, ele empenhou-se em amalgamar os dois, pa-

ra fazer com que um servisse ao outro. Ele situou prédios governamen-

5. A Bib li ot eca Púb li ca de Nova York, na Quint a Avenida com a Rua 42,

é

um exemp lo desse

pon to de ref erênci a a rqui te tõni co ; a velha Jef fe rson Marke t Court house, no meio do Green-

wich Village, é out ro. Estou certa de que todos os lei tores conhecem bem o marco monumental

da mat ri z de uma c idade.

* Referência a Pierre-Charles l' En fan t, a rq ui te to fr an cês q ue c ri ou o p la no u rb an ls tic o d e

Washington. (N. do T.)

1 92 M O RT E E V I DA D E G R AN D ES CIDADES

C O N DI Ç O ES P A RA A D I VE R SI D AD E U R B AN A 1 9 3

Qualquer princípio pode sem dúvida ser aplicado arbitrária e

destrutivamente por pessoas que não consigam entender seus

mecanismos. A teoria estét ica de L'Enfant , que abrange pontos

de referência interdependentes da matriz urbana cotidiana que

os circunda, poderia ser aplicada por meio da tentat iva de disse-

minar usos principais - especialmente os tendentes a uma apa-

Só na teoria do planejamento urbano, isso faria do Harlem

 um pedaço de terra atraente . Desde seus primórdios , quando

predominava a classe média e alta, o Harlem nunca foi um distri-

to residencial v iável e economicamente vigoroso, e provavel-

mente nunca o será, sejam quais forem seus habitantes, enquan-

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rência monumental - sem considerar as relações econômicas ou

outras relações funcionais de que eles necessitam. Porém, a teo-

ria de L'Enfant é admirável não como um produto visual abstrato

isolado da funcionalidade, mas por poder ser aplicada e adapta-

da harmoniosamente às necessidades dos estabelecimentos reais

das cidades reais. Se essas necessidades funcionais forem leva-

das em conta e respeitadas, não poderão ser aplicadas as teorias

estéticas que glorificam os usos selecionados e isolados, sagra-

dos ou profanos .

to não tiver, entre outras melhorias físicas, uma mistura satisfa-

tória e salutar de locais de trabalho e residências.

Os usos principais de trabalho em distri tos residenciais não

podem surgir só porque se quer , nem a diversidade derivada. A

administração municipal pode fazer muito pouco de construtivo

quanto à inserção na cidade de usos de trabalho nos locais em que

não exis tam e sejam necessários, a não ser permiti-Ias e encora-

já-los indiretamente.

Contudo, as tentativas de conseguir chamarizes eficazes não

são, em todo caso, uma necessidade premente , nem a maneira

mais frutífera de despender energia com áreas apagadas que pre-

c isam ser revital izadas. O primeiro problema é tirar o máximo

proveito de qualquer trabalho e de outros usos principais das pe-

ças de xadrez nos distri tos residenciais deficientes em que elas

já existam. O mercado de calçados de Louisvi lle, embora seja

um exemplo invulgar, clama por essa oportunidade. E a maior

parte da região administrat iva do Brooklyn também, e parte do

Bronx e, sem dúvida, os centros urbanos apagados de pratica-

mente todas as cidades grandes.

Como aproveitar oportunamente a presença de locais de tra-

balho e avançar a part ir daí? O que fazer para consolidá-los e le-

vá-los a formar,junto com as moradias, combinações efetivas de

uso das ruas? Aqui é necessário fazermos uma dist inção entre o

típico centro da cidade e o típico distrito residencial problemáti-

co. Nos centros da cidade, a falta de uma mistura adequada de

usos principais é geralmente a deficiência fundamental mais

grave. Na maioria dos bairros residenciais, e principalmente na

maioria das áreas cinzentas, a fal ta de uma mistura de usos prin-

cipais constitui geralmente apenas

uma

das deficiências, nem

sempre a mais grave. Sem dúvida, é fácil encontrar exemplos de

locais de trabalho que se misturam às residências, mesmo que

não contr ibuam muito para gerar diversidade e vital idade. Isso

Nos distritos predominante ou quase exclusivamente residen-

ciais, quanto maior for a complexidade e a variedade de usos

principais que possam ser cultivadas, tanto melhor, assim como

nos centros das cidades. Mas a peça de xadrez mais importante

para esses distritos é o uso principal do trabalho. Como vimos nos

exemplos do parque da Rittenhouse Square ou da Rua Hudson,

esses dois usos principais podem imbricar-se perfeitamente, com

as ruas ganhando vida com os trabalhadores ao meio-dia, quan-

do os moradores seret iram, e animando-se com os moradores de

noite, quando os trabalhadores se retiram.

A necessidade de segregar as moradias do trabalho foi tão in-

cutida em nós, que precisamos fazer um esforço enorme para

enxergar a realidade e perceber que os distritos residenciais não

misturados com o trabalho não dão bons resultados nas cidades.

Num artigo sobre guetos de negros escrito por Harry S. Ash-

more, no New York Herald Tribune, a seguinte declaração foi

a tr ibuída a um líder polí tico do Harlem:  Parece que os brancos

vão vol tar de mansinho para cá e tirar o Harlem de nós. Afinal,

[o Harletn é] o pedaço de terra mais atraente de toda a região.

Temos morros e uma vista dos dois rios, o transporte é bom, e é

a única área de fácil acesso que não tem indústria alguma. 

194 M OR TE E V ID A D E G R AN DES CIDADE S

COND IÇO ES PARA A DI VER SID ADE U RBANA 195

ocorre porque a maioria dos bairros residenciais também tem

quadras muito longas, ou que foram construí das na mesma épo-

ca e nunca superaram essa desvantagem inicial , mesmo quando

os prédios envelheceram, ou, muito comumente, mantêm uma

população total insufic iente. Em suma, são deficientes em vá-

rias das quatro condições que geram diversidade.

tos apagados onde haja ao menos um ponto de partida para a

mistura de usos principais e que os centros da cidade sejam revi-

tali zados por meio de uma distribuição melhor das pessoas ao

longo do dia. Quanto maior for o êxito das cidades na geração de

diversidade e vital idade em qualquer uma de suas zonas, obvia-

mente maiores serão as probabilidades de elas obterem êxito tam-

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Em vez de nos preocuparmos com a origem de um volume

suficiente de trabalho, a primeira questão é ident ificar onde,

nos bairros residenciais, existem locais de trabalho que não são

aproveitados como elementos de uso principal. Nas cidades, é

necessário avançar a partir dos bens existentes para criar mais

bens. Para avaliar como áproveitar ao máximo a integração das

funções de trabalho e habitação nos locais em que elas exis tem

ou dão mostras de vir a existir, é necessário compreender os

papéis desempenhados também pelos outros três geradores de

diversidade.

No entanto, antecipo as considerações dos próximos três ca-

pítulos dizendo o seguinte: dos quatro geradores de diversidade,

dois representam problemas fáceis de lidar na solução das defi-

ciências das áreas cinzentas - geralmente já existem prédios an-

t igos para desempenhar seu potencia l e não é dif íci l cr iar mais

ruas onde forem necessárias . (São um problema menor em com-

paração com a remoção de áreas em grande escala, na qual nos

ensinaram a desperdiçar dinheiro.)

As duas outras condições, todavia - misturas de usos princi-

pais e concentração adequada de moradias -, são mais difíceis

de implantar caso ainda não existam. O mais sensato é começar

por onde pelo menos uma dessas duas condições já exista ou

possa ser fomentada com certa facilidade.

Os distri tos mais difíceis de lidar são as áreas residencia is

apagadas, às quais fal te uma infil tração de trabalho que sirva de

base e também falte alta densidade de moradias . As áreas urba-

nas debilitadas ou fracassadas passam por dificuldades não tanto

pelo que têm (o que sempre pode ser encarado como ponto de

part ida) , mas pelo que não têm. É quase impossível promover a

revitalização dessas áreas apagadas com carências das mais gra-

ves e mais difíce is de suprir, a não ser investir em outros dis tr i-

bém em outras zonas - inclusive, provavelmente, as mais desen-

corajadoras.

Não é preciso dizer que as ruas e os bai rros que possuem boa

combinação de usos principais e têm êxito na geração da diversi-

dade devem ser admirados e não desprezados por causa dessas

mesclas e destruídos pela tentativa de separar seus elementos. In-

felizmente, os planejadores tradicionais parecem ver nesses mes-

mos lugares populares e atraentes apenas um convite irresistível

para empregar os propósitos tacanhos e destrutivos do planeja-

mento urbano ortodoxo. Quando dispõem de recursos federais e

poder suficientes, os urbanistas têm plenas condições de destruir

as misturas de usos principais urbanas mais rápido do que elas con-

seguem florescer nos bairros espontâneos, de modo que o resul-

tado é a perda da mescla principal básica. Na verdade, é isso o que

está acontecendo hoje em dia.

9 A NECESSIDADE DE

QUADRAS CURTAS

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I

2~ CONDIÇÃO:

A maioria das quadras deve ser curta; ou seja, as

ruas e as oportunidades de virar esquinas devem serfreqüentes.

As vantagens das quadras curtas são simples.

Pense, por exemplo, na situação de uma pessoa que more nu-

ma quadra longa, como a Rua 88 Oeste, em Manhattan, entre a

Rua Central Park Oeste e a Avenida Columbus. Ela percorre mais

de 250 metros, no sentido oeste, para chegar ao comércio da

Avenida Columbus ou tomar um ônibus, e segue no sentido leste

para chegar ao parque, pegar o metrô ou outro ônibus. É bem ca-

paz que essa pessoa passe anos sem andar pelas quadras vizi-

nhas entre as ruas 88 e 89.

Isso ocasiona um problema sério. Já vimos que as vizinhan-

ças isoladas, separadas, têm tudo para serem desassist idas pela

população.

É

possível que aquela pessoa disponha de vários ar-

gumentos para não acreditar que as ruas 88 e 89 ou seus mora-

dores tenham alguma afin idade com ela. Para se convencer do

contrário, ela precisa ir além dos indícios da vida diária.

Com relação

à

sua vizinhança, o efeito dessas ruas auto-iso-

ladoras sobre a economia é igualmente inibidor. As pessoas des-

sa rua e das ruas próximas conseguem formar uma combinação

de usos econômicos só onde seus trajetos longos e separados se

1 98 M OR TE E V ID A D E G R AN DE S C ID AD ES

ri

 ~

1 7 - : ]

I ]

COND IÇO ES PARA A D IVE RS ID AD E U RBANA 199

t ipo , do grau de sustentação de que necessi te ou do grau de faci-

lidade (a distância em relação aos fregueses) que lhe seja co-

mum. Bem ao lado estendem-se as longas faixas de insipidez e

trevas - a Grande Praga da Monotonia, com uma bocarra vistosa

após longos intervalos: um retrato t ípico de áreas urbanas fra-

cassadas.

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t5 ~

 

Essa rigorosa segregação física dos usuários habituais de deter-

minada rua dos usuários habituais da rua seguinte estende-se, é

claro, aos visitantes. Por exemplo, vou, há mais de quinze anos, a

um dentista na Rua 86 Oeste, bem perto da Avenida Columbus.

Em todo esse tempo, embora eu tenha percorrido de norte a sul a

Columbus e de norte a sul a Central Park Oeste, nunca utilizei

nem a Rua 85 Oeste nem a Rua 87 Oeste. Não só seria inconve-

niente, como tampouco faria sentido. Se levo as crianças, depois

do dentista, ao planetário, na rua 81 Oeste, entre a Columbus e a

Central Park Oeste, só existe um trajeto direto: descer a Colum-

bus e entrar na 81.

Vamos imaginar, em vez disso, que essas quadras longas de

leste a oeste fossem cortadas por uma rua - não um calçadão

inútil, como aqueles que se encontram em profusão nos conjun-

tos habitacionais de superquadras, mas uma rua contendo pré-

dios onde as coisas pudessem ter início e crescessem em pontos

cruzam e se unem num fluxo. Neste caso, o local mais próximo

onde isso pode acontecer é a Avenida Columbus.

Justamente por ser o único local próximo onde dezenas de

milhares de pessoas vindas dessas quadras estagnadas, longas,

represadas se encontram e formam uma combinação de usos, a

Avenida Columbus tem um tipo próprio de monotonia - lojas

sem fim e deprimente predomínio de comércio padronizado.

Nessa vizinhança há tão pouco espaço de frente para o comércio

se instalar, que ele precisa se apertar, independentemente de seu

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M OR TE E V I DA D E G RA ND ES C ID AD ES

C ON DIÇ ÓE S P AR A A D IV ERS IDAD E U RBANA

201

economicamente viáveis: lugares para comprar, comer, ver coi-

sas, tomar uma bebida. Com essa outra rua, aquela pessoa da Rua

88 não mais precisar ia percorrer um trajeto monótono, sempre

igual, até determinado local. Ela ter ia uma escolha ampla de per-

cursos. A vizinhança literalmente se abriria para ela.

Aconteceria o mesmo para as pessoas que moram em outras

- - -1

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52 

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ruas e para aquelas mais próximas da Columbus que vão a al-

gum lugar do parque ou ao metrô. Em vez de serem isolados,

esses trajetos se cruzariam e entrelaçariam.

A oferta de pontos viáveis para o comércio cresceria conside-

ravelmente, da mesma 'forma que a distribuição e a comodidade

de sua localização. Se um terço das pessoas da Rua 88 for capaz

de justificar a existência de uma banca dejornais ou de uma loja

de objetos usados, parecida com a do Bernie, na esquina da

nossa casa, e o mesmo se poderia dizer das pessoas das ruas 87 e

89, haverá então a possibilidade de acontecer o mesmo nas no-

vas esquinas. Como essas pessoas nunca conseguem suprir o

conjunto de suas necessidades nas redondezas, a não ser percor-

rendo um único trajeto, essa distribuição de serviços, de oportu-

nidades econômicas e de vida pública torna-se impossível.

No caso das quadras longas, mesmo as pessoas que estejam

na vizinhança pelas mesmas razões são mantidas tão afastadas

que se impede a formação de combinações razoavelmente com-

plexas de usos urbanos cruzados. Quando se trata de usos princi-

pais discrepantes , as quadras longas impedem as misturas pro-

dutivas exatamente da mesma maneira. Elas automaticamente se-

param as pessoas por trajetos que raras vezes se cruzam, de mo-

do que usos diversos, geograficamente bem próximos de outros,

são literalmente bloqueados.

O contraste entre a estagnação dessas quadras longas e a fluên-

cia de usos que uma rua a mais propiciar ia não é forçado. Temos

um exemplo dessa transformação no Rockefeller Center, que

ocupa três das quadras longas entre a Quinta e a Sexta Avenida.

O Rockefeller Center tem essa rua a mais.

Peço aos leitores que o conhecem que o imaginem sem essa

rua adicional no sentido norte-sul, a Rockefeller Plaza. Se os

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prédios da instituição fossem contínuos nas ruas laterais, desde a

Quinta Avenida até a Sexta Avenida, ela não mais seria um cen-

tro de atividades. Nem poderia ser. Seria um grupo de ruas isola-

das, que dariam apenas na Quinta e na Sexta Avenida. Nem o

mais engenhoso projeto em outros aspectos conseguiria integrá-

10 , porque é a fluência de usos e a confluência de trajetos, não a

homogeneidade arquitetônica, que fazem as vizinhanças consti-

tuírem combinações de usos urbanos, mesmo que essas áreas se-

jam predominantemente de trabalho ou de moradias.

No sentido norte, o f luxo das ruas do Rockefeller Center es-

tende-se , cada vez menos intenso, até a Rua 53, por causa de um

corredor e de uma galeria que cortam as quadras e são usados

como prolongamentos da rua. No sentido sul, seu efeito como

combinação de usos estanca abruptamente na Rua 48. A rua se-

guinte, a 47, não tem transversais. É principalmente uma rua de

' 11

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I

202 MORTE EVIDA DEGRANDES CIDADES   CONDIÇOES PARAA DIVERSIDADE URBANA 203

comércio atacadista

(O

centro do atacado de pedras preciosas),

um uso surpreendentemente marginal numa rua que fica perto

de uma das maiores atrações da cidade. Porém, da mesma forma

que os pedestres das ruas 87 e 88, os das ruas 47 e 48 podem

passar anos sem freqüentar as outras ruas.

Por natureza, as quadras longas neutralizam as vantagens

potenciais que as cidades propiciam à incubação, à experimenta-

mente a rota das quadras curtas e o uso fluente das ruas - muito

embora as construções nessa direção não sejam tão atraentes ou

aparentemente adequadas quanto as do Chelsea. Esse movimen-

to numa direção e o estancamento em outra não é caprichoso nem

mister ioso, nem obra caótica do acaso . É uma reação realista

àquilo que funciona melhor economicamente para a diversidade

urbana e àquilo que não funciona.

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ção e a numerosos empreendimentos pequenos ou específicos,

na medida em que estes precisam de cruzamentos muito maiores

de pedestres para atrair fregueses ou clientes. As quadras longas

também frustram a tese de que, se se espera que as misturas de

usos urbanos sejam mais do que uma abstração nas plantas , elas

devem provocar a presença de pessoas diferentes, com propósitos

diferentes, em horários distintos, mas usando as mesmas ruas.

Das centenas de longas quadras de Manhattan, umas parcas

oito ou dez estão espontaneamente ganhando vida com o passar

do tempo ou se tornando atraentes.

É

interessante observar em que locais a diversidade e a popu-

laridade superabundantes do Greenwich Village se espalharam e

onde foram contidas. Os aluguéis vêm subindo progressivamen-

te no Greenwich Village, e os futurologistas têm previsto o re-

nascimento do outrora elegante Chelsea, logo ao norte, por pelo

menos vinte e cinco anos. Essa predição parece ter lógica porque

a localização do Chelsea, suas misturas, seus edificios e sua den-

sidade de moradias por quilômetro quadrado são quase idênticos

aos do Greenwich Village, e também porque há uma mistura de

trabalho e residências. Mas o renas cimento nunca aconteceu. Ao

contrário, o Chelsea definha atrás das barreiras das quadras lon-

gas e isoladoras, decaindo mais rápido na maioria delas do que

se recupera em outras. Atualmente está havendo uma ampla er-

radicação de cortiços, e nesse processo o bairro tem ganho qua-

dras ainda maiores e mais monótonas. (A pseudociência do ur-

banismo beira a neurose em sua determinação de reproduzir o

fracasso empírico e ignorar o sucesso empírico.)Ao mesmo tem-

po, o Greenwich Village espraiou-se e levou sua diversidade e

atratividade bem para o leste, esgueirando-se por um gargalo es-

treito entre áreas de concentração industrial, seguindo infalivel-

Outro mistério permanente surgido em Nova York é por que

a remoção da via férrea elevada sobre a Sexta Avenida, no West

Side, provocou tão poucas mudanças e alcançou tão pouca po-

pularidade e por que a remoção da via férrea elevada sobre a

Terceira Avenida, no East Side, desencadeou tantas mudanças e

ocasionou tanta popularidade. Não obstante, as quadras longas

fizeram do West Side uma monstruosidade econômica, princi-

palmente porque elas correm em direção ao centro da ilha, exa-

tamente onde as combinações de usos mais produtivas do West

Side deveriam ter-se formado, se tivessem tido oportunidade.

No East Side, há quadras curtas em direção ao centro da ilha,

exatamente onde as mais produtivas combinações de usos tive-

ram oportunidade de se formar e crescer'.

Quase todas as travessas curtas do East Side , desde a Rua 60

até a 89, são tidas como exclusivamente residenciais.

É

interes-

sante notar que estabelecimentos especializados, como livrarias

ou costureiros ou restaurantes , geralmente se instalaram habi-

tualmente, embora nem sempre, perto das esquinas. O trecho

equivalente do West Side não serve para livrarias nem nunca ser-

viu. E não porque todos os sucessivos moradores , insatisfei tos e

sempre de mudança, tivessem aversão à leitura, ou fossem muito

pobres para comprar livros. Ao contrário, o West Side está cheio

de intelectuais, e sempre esteve. Talvez seja um mercado natural

1 . I ndo daQu in ta Avenida no sen ti do oes te , asp r imei ras t rês quadras , e em certos lugares qua-

t ro , t êm mais de250 met ros deex tensão , excet o nocruzamen to com a Broadway em d iagona l.

I ndo da Quint a Avenida no sen ti do lest e, as p rime iras qua tro quadras variam de 130 a 140

met ros. Na Rua 70, para escolher um ponto aleat ór io onde os doi s la do s d a i lha são divididos

pelo Cen tral Park, os800 met ros deex tensão da linha de const ruções ent re a Rua Central Park

Oeste e a Avenida West End são cor tados por

s o me nt e d u as

vias. No lado leste, uma extensão

equivalente de l inha de const ruções, da Quinta Avenida até pouco depois da Segunda Avenida,

é cor tada por

cinco

vias. O t recho do East S ide com c inco cruzament os é imensamen te mai s

mov imen tado doque o do West S ide, com doi s.

para livros tão bom quanto o Greenwich Village e talvez um mer-

cado natural melhor que o East Side. Devido a suas quadras lon-

gas, o West Side nunca foi capaz de formar as complexas combi-

nações de usos habituais de ruas necessárias para sustentar a

diversidade urbana.

Ao perceber que as pessoas tentam encontrar uma passagem

gio de ruas  em excesso e de usos cruzados fluentes, tem recu-

perado heroicamente os cortiços, a despeito da apatia do gover-

no e dos obstáculos financeiros.

O mito de que um grande número de ruas é um esbanja-

mento , um dos dogmas do planejamento urbano ortodoxo, pro-

vém sem dúvida dos teóricos da Cidade-Jardim e da Ville Ra-

204 MO RTE E V ID A DE GRANDES CIDADES

COND IÇÚES P AR A A D IV ER SI DA DE U RB AN A 2 05

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norte-sul adicional nas quadras muito longas entre a Quinta e a

Sexta Avenida, um repórter do N e w Y o rk er tentou fazer um cami-

nho improvisado através das quadras, da Rua 33 até o Rocke-

feller Center. Descobriu meios aceitáveis, embora esdrúxulos,

de pegar atalhos através de nove quadras, por lojas e galerias que

cortam de lado a lado e pelo Bryant Park, atrás da Biblioteca da

Rua 42. Mas ele precisou espremer-se entre cercas , subir por

janelas e persuadir zeladores para atravessar quatro das quadras,

e em duas quadras teve de fugir à pauta inicial, passando por

corredores do metrô.

Nos distri tos que se tornam prósperos ou atraentes, as ruas

nunca são feitas para desaparecer. Muito pelo contrário. Onde é

possível, elas se multiplicam. Assim, no distrito da Rittenhouse

Square, em Filadélfia, e em Georgetown, Distrito de Colúmbia,

as vielas em meio aos quarteirões t ransformaram-se em ruas

com prédios de frente para elas , e os pedestres as uti lizam como

ruas. Em Filadélfia, elas geralmente incluem comércio.

Nem em outras cidades, que não Nova York, as quadras lon-

gas têm virtudes. Em Filadélfia, há um bairro em que os proprie-

tár ios simplesmente deixam os prédios ruir, numa área entre o

centro e a maior faixa de conjuntos habitacionais da cidade. Há

muitas razões para esse bairro chegar a essa situação irremediá-

vel, incluindo a proximidade da área urbana revital izada com a

desintegração social e a periculosidade que ela acarreta, mas ob-

viamente o bairro não pode tirar proveito de sua estrutura f isica.

A quadra padrão de Filadélfia é de 15 mil metros quadrados (di-

vididas pelas vielas que são futuras ruas, onde a cidade mais

prospera). Nesse bairro arruinado, parte do esbanjamento  de

ruas fOIeliminada no traçado original; suas quadras têm 210 me-

tros de extensão. Ele estagnou, obviamente, desde o momento

em que foi construído. Em Boston, o North End, que é um prodí-

dieuse, que execravam o uso do solo para ruas porque queriam

que o solo se transformasse em áreas verdes planejadas. Esse

mito é particularmente prejudicial, porque mexe com nossa ca-

pacidade intelectual de perceber uma das causas de tanta estag-

nação e fracasso mais triviais, mais evitáveis e mais facilmente

corrigíveis.

Os projetos residenciais de superquadras são passíveis de to-

das as deficiências das quadras longas, freqüentemente de forma

ampliada, e isso também ocorre quando são cortados por calça-

dões e esplanadas e portanto possuem, teoricamente, ruas a in-

tervalos razoáveis, pelas quais as pessoas podem transitar. Essas

ruas não têm sentido porque raramente há um motivo plausível

para serem usadas por um número razoável de pessoas. Mesmo

vistos de fora, levando em conta apenas a mudança de perspecti-

vas visuais quando se vai de um lugar a outro, esses caminhos

não têm sentido porque todos os cenários são essencialmente

idênticos. Essa situação é o oposto daquela que o repórter do

New Y or ker observou nas quadras entre a Quinta e a Sexta Ave-

nida. Lá as pessoas tentam encontrar ruas de que necessitam

mas que não exis tem. Nas superquadras, as pessoas podem evi-

tar as esplanadas e as travessas, que existem mas são inúteis.

Ressalto esse problema não apenas para criticar de novo as

anomalias do planejamento urbano, mas para afirmar que ruas

freqüentes e quadras curtas são valiosas por propiciar uma rede

de usos combinados e complexos entre os usuários do bairro.

Ruas freqüentes não são um fim em si mesmas. Elas são um

meio para um fim. Se esse fim - gerar diversidade e catalisar os

planos de muitas pessoas além dos planejadores - for l imitado

por um zoneamento repressivo ou por construções padronizadas

que obstruam o livre desenvolvimento da diversidade, não se

obterá nada de muito significativo com as quadras curtas. Como

i

  1

as combinações de usos principais, as ruas freqüentes efet iva-

mente ajudam a gerar diversidade sópela maneira como atuam.

O modo como funcionam (atraindo para si misturas de usuários)

e os resultados que elas proporcionam (o crescimento da diversi-

dade) estão intimamente relacionados. A relação é recíproca.

10 A NECESSIDADE

DE PRÉDIOS ANTIGOS

206 MO RTE E V ID A D E G R AN DE S C ID AD ES

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3~CONDIÇÃO: O

distrito deve ter uma combinação de edificios com

idades e es tados de conservação variados, e incluir boa porcenta-

gem deprédios antigos.

As cidades precisam tanto de prédios antigos, que talvez seja

impossível obter ruas e dis tr itos vivos sem eles . Ao falar em pré-

dios antigos, refiro-me não aos edificios que sejam peças de mu-

seu, nem aos prédios antigos que passaram por reforma excelen-

tes e dispendiosas - embora esses sejam ótimos ingredientes-,

mas a uma boa porção de prédios antigos simples, comuns, de

baixo valor, incluindo alguns prédios antigos deteriorados.

Se uma área da cidade tiver apenas prédios novos, as empre-

sas que venham a existir aí estarão automaticamente limitadas

àquelas que podem arcar com os custos dos novos edificios. O

alto custo de ocupação dos prédios novos pode ser compensado

na forma de aluguéis ou na forma depagamento dejuros e amor-

tização pelo proprie tário sobre o custo investido da construção.

Seja como for, os custos precisam ser pagos. Por essa razão, as

empresas que podem arcar com o custo das const ruções novas

devem ser capazes de arcar com uma despesa fixa relat ivamen-

te alta - a lta em comparação com o que necessariamente se exi-

ge em prédios antigos. Para manter esses altos custos f ixos, as

208 MORTE EVIDA DEGRANDES CIDADES

CONDiÇÕES PARA A DIVERSIDADE URBANA 209

empresas precisam ser ou (a) muito lucrativas ou (b) muito sub-

sidiadas.

Ao olhar à sua volta, você verá que somente as atividades bem-

estabelecidas, que têm giro alto e são padronizadas ou muito sub-

sidiadas conseguem normalmente arcar com os custos das cons-

truções novas. Redes de lojas, redes de restaurantes e bancos

que existe em tudo o que é antigo e se deteriora. Mas uma área

urbana em tal situação não fracassa por ser velha. Ao contrário. A

área é velha por ter fracassado. Por alguma razão ou por uma

série delas , suas empresas ou seus moradores são incapazes de

bancar novas construções. Talvez essa área não tenha conseguido

reter os moradores ou as empresas que evoluam a ponto de finan-

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instalam-se em novas construções. Mas bares de bairro , restau-

rantes t íp icos e casas de penhores instalam-se em prédios anti-

gos. Supermercados e lojas de calçados geralmente se instalam

em prédios novos; boas livrar ias e antiquários raramente o fa-

zem. Teatros líricos e museus de arte subvencionados instalam-se

em prédios novos. Mas os fomentadores informais das artes - es-

túdios, galerias, lojas de instrumentos musicais e de material ar-

t ís tico , sa las dos fundos onde os negócios de fundo de quintal ,

de baixo rendimento, permitem travar uma conversa prolonga-

da -, esses se instalam em prédios antigos. Talvez ainda mais

significativo, centenas de empresas comuns, necessárias para a

segurança e a vida nas ruas e nos bairros e reconhecidas por sua

util idade e pela qualidade do pessoal, conseguem sair-se muito

bem em prédios antigos, mas são inexoravelmente aniquiladas

pelos altos custos fixos das construções novas.

Como em qualquer t ipo de idéia nova - independentemente

de algumas delas , em última análise, se mostrarem mais ou me-

nos proveitosas ou acertadas -, não há espaço para tais tentativas,

e erros e acertos na economia de altos custos f ixos das constru-

ções novas. Idéias antigas às vezes podem lançar mão de prédios

novos. Idéias novas devem lançar mão de prédios antigos.

Até mesmo as empresas que consigam financiar novas obras

nas cidades precisam de construções antigas na vizinhança. Do

contrário, serão uma atração única num ambiente único, bastan-

te limitado economicamente - e portanto com muitas limitações,

do ponto de vista funcional, para se tomarem movimentados, in-

teressantes e úteis. O florescimento da diversidade em qualquer

lugar da cidade pressupõe a mistura de empresas de rendimentos

altos, médios e baixos.

O único mal dos prédios ant igos num distrito ou numa rua é

aquele que inevitavelmente não resulta senão da idade - um mal

ciar novas construções ou reformas; assim que têm condições,

eles vão embora. Essa área também não conseguiu atrair morado-

res novos por livre escolha; eles não vêem nela atrativos ou opor-

tunidades. E, em alguns casos, tal área pode ser tão improdutiva

economicamente que as empresas capazes de obter sucesso em

outros lugares e então construir ou reformar sua sede nunca o fa-

zem aqui porque aqui não ganham dinheiro suficiente'.

Um distri to bem-sucedido toma-se uma espécie de cele iro

natural de construções. Ano após ano, alguns dos prédios anti-

gos são substituídos por novos - ou reformados a ponto de equi-

valer a um novo. Portanto, com o passar do tempo, há uma mis-

tura constante de edifícios de várias idades e de vários tipos. Tra-

ta-se, é claro, de um processo dinâmico, em que o que era novo

acaba se tomando velho em meio à variedade.

Mais uma vez estamos tra tando dos efeitos do tempo sobre a

economia, como fizemos com os usos principais combinados.

Mas, neste caso, estamos tratando da economia no tempo não

hora a hora ao longo do dia, mas em termos de décadas e de

gerações.

O tempo transforma os prédios de alto custo de uma geração

em pechinchas na geração seguinte. O tempo salda o valor ini-

cial do dinheiro investido, e essa depreciação pode refle tir-se

nos rendimentos que se esperam de um edifício. O tempo toma

obsoletas certas estruturas para certos empreendimentos, e elas

passam a servir a outros. O tempo pode transformar o espaço

1 . T odos esses mot ivos t êm relação com def iciências inerentes, arraigadas. Há, no entanto,

out ro mot ivo para o envelheciment o p rogressi vo de cer tos d is tr it os , o qua l não t em necessaria-

mente relação com carências inerentes. Podeserque o d is tr it o est ej a na l is ta negra de t odos os

credo res, como acont eceu com o Nor th End de Boston. Essacondenação de um bai rro a uma

decadência i rremediável é não s6 destrutiva c om o tam bém c omum. Mas por enquanto esta-

mos abordando ascondições que afetam a capacidade econômica natural de determinada área

urbana de gerar diversidade e capacidade de permanência.

II

 

2 10 M OR TE E VIDA D E G RAND ES CIDADES

CO ND IÇOE S P A RA A D I VE R SID A D E U R B ANA 211

adequado para uma geração em espaço supérfluo para outra . O

que é lugar-comum nas edificações de um século toma-se aber-

ração no seguinte.

A necessidade econômica de prédios antigos misturados a no-

vos não é uma excentricidade ligada aos vertiginosos aumentos

do custo da construção desde a guerra e especialmente por toda a

walos, um espaço para a mercearia de esquina. Esses planos vi-

.nham com cartas que diziam:  Veja, nós levamos a sério o que

você disse.

Esse recurso da mercearia de esquina representa um entendi-

mento raso e patemalista, da diversidade urbana, talvez apro-

priado para uma vila do século passado, mas pouco adequado a

um distri to urbano movimentado de hoje. Na verdade, mercea-

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década de 50. Na verdade, é bastante acentuada a diferença entre

os rendimentos proporcionados pela maioria das construções do

pós-guerra e os das construções anteriores

à

Depressão. A diferen-

ça entre os custos de manutenção por metro quadrado de espaço

comercial pode atingir de 100 a 200 por cento, muito embora os

prédios antigos possam ser mais bem constru í dos do que os no-

vos e os custos de manutenção de todos os edifícios, inclusive os

antigos, tenham subido. Os prédios antigos eram um ingrediente

necessário

à

diversidade urbana nos anos 1920 e 1890. Os pré-

dios antigos serão ainda necessários quando os prédios novos de

hoje forem velhos. Isso foi , a inda é e será válido, independente-

mente de os custos de construção oscilarem ou se estabilizarem,

porque um prédio desvalorizado requer uma renda menor do que

aquele que ainda não saldou o capital investido. O crescimento

constante dos custos de construção intensif ica a necessidade de

prédios antigos. Talvez eles também tomem necessária uma pro-

porção maior de prédios antigos em toda a diversidade que a rua

ou o distrito contenham, porque os custos de construção crescen-

tes aumentam o patamar do retomo financeiro necessário para

arcar com os custos de novas construções.

riazinhas solitárias dão-se mal nas cidades. São invariavelmente

uma marca de áreas apagadas estagnadas e não-diversificadas.

Entretanto, os projetistas dessas inutilidades bem-intenciona-

das não estavam sendo simplesmente obstinados. Estavam fa-

zendo provavelmente o possível em face das condições econômicas

que lhes foram apresentadas. Um shopping center t ípico de su-

búrbio em algum lugar do projeto e essa frágil inclusão das mer-

cearias de esquina era o máximo que se poderia esperar. Isso

porque esses projetos contemplavam tanto grandes áreas de cons-

truções novas quanto novas construções combinadas com reformas

amplas e predeterminadas. Os custos fixos sempre altos frustra-

vam antecipadamente qualquer tipo de diversidade. (As perspec-

tivas são ainda mais fracas devido a uma combinação insuficiente

de usos principais e, portanto, a uma distribuição insuficiente de

fregueses ao longo do dia.)

Até mesmo as mercearias isoladas, se tivessem sido construí-

das', d if ici lmente seriam os estabelecimentos aconchegantes

imaginados pelos projet is tas. Para manter despesas fixas altas,

elas precisam ser (a) subsidiadas - por quem e por quê? - ou (b)

convertidas em fábricas padronizadas, de alta produtividade.

Trechos extensos construí dos ao mesmo tempo são por si

próprios incapazes de abrigar um espectro amplo de diversidade

cultural , populacional e de negócios . São incapazes até mesmo

de abrigar uma diversidade comercial considerável. Isso pode

ser comprovado num lugar como Stuyvesant Town, em Nova

York. Em 1959, mais de uma década após a inauguração, dos

trinta e dois pontos que compreendem o espaço comercial de

Há poucos anos, dei uma palestra num congresso sobre pla-

nejamento urbano a respeito da necessidade social de diversida-

de comercial nas cidades. Não demorou para que aquilo que eu

dissera fosse repetido por projetistas, urbanistas e estudantes em

forma de lema (que eu certamente não inventei):  Devemos dei-

xar espaço para a mercearia de esquina

Em princípio pensei que isso fosse uma figura de linguagem,

a parte pelo todo. Mas em seguida comecei a receber pelo cor-

reio planos e esboços de empreendimentos e áreas de renovação

nos quais, literalmente, se deixara aqui e acolá, a grandes inter-

2. Geralmente elas s ão retiradas dos projetos. ou indefinidamente adiadas, n o m omento em

que é preciso e nc arar a realidade econômica dos aluguéis.

2 12 M O RT E E V I DA D E G R AN D ES C ID AD ES

Stuyvesant Town, sete estavam desocupados ou não eram usados

para vendas diretas (como depósito, para anúncios na fachada e

similares). Isso representava a não-utilização ou a subutilização

de 22 por cento dos pontos. Ao mesmo tempo, na calçada oposta

das ruas limítrofes, onde se misturam const ruções de todas as

idades e em vários estados, havia cento e quarenta pontos co-

merciais, dos quais onze estavam desocupados ou não eram usa-

C O ND IÇ Ó ES PAR A A D I VE R S ID A D E U R BAN A 2 13

corrência consigo mesma. Os primeiros planos desse projeto

continham um

shopping center

centra l t ípico de subúrbio mais

umas poucas lojas de variedades espalhadas - nosso velho co-

nhecido, o recurso da mercearia solitária de esquina. Um ana-

l is ta econômico de

shopping centers

previu que essas lojas de

variedades poderiam provocar uma redução de negócios no cen-

tro comercial principal, típico de subúrbio, o qual já teria de ar-

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dos para vendas dire tas, representando uma não-utilização ou

uma subutil ização de apenas 7 por cento. Na verdade, a dispari-

dade é maior do que aparenta ser ,porque as lojas vazias das ruas

antigas eram na maioria pequenas e representavam em metra-

gem menos de 7 por cento, o que não era o caso das lojas da nova

área projetada. O lado do bom comércio de rua é aquele em que

as idades das construções se misturam, apesar de boa parte de

seus fregueses serem moradores de Stuyvesant Town e a despei-

to de terem de atravessar ruas largas e perigosas para chegar até

lá. As grandes lojas e os supermercados reconhecem essa reali-

dade e estão const ruindo novas instalações nos locais onde há

mistura de prédios de idades variadas, em vez de ocupar os pon-

tos comerciais vazios do espaço planejado.

Atualmente, as construções urbanas da mesma idade são às

vezes protegidas da ameaça da concorrência comercial mais

eficiente e ágil. Essa proteção - que não é nada mais, nada me-

nos que o monopólio comercial - é considerada muito pro-

gressista nos círculos do planejamento urbano. O plano de re-

vitali zação do Society Hill, em Filadélfia, impedirá, com o

zoneamento, que os centros comerciais da empreite ira sofram

concorrência em todo o distrito. Os planejadores da cidade tam-

bém arquitetaram um plano de alimentação para a área, o que

significa dar a uma única rede de restaurantes o monopólio em

todo o distri to . A comida dos outros é proibida O distri to reur-

banizado de Hyde Park-Kenwood, em Chicago, reservou para

um shopping center típico de subúrbio o monopólio de pratica-

mente todas as ativ idades comerciais, para serem exploradas

pelo principal empreiteiro do plano. No enorme distri to South-

west de Washington, que está sendo reurbanizado, a principal

construtora dos edificios parece ter a intenção de eliminar a con-

car com despesas f ixas altas. Para não prejudicá-lo, as lojas de

variedades foram retiradas do projeto. É dessa maneira que os

pacotes monopolistas, repetitivos, de arremedos de cidades são

impingidos como consumo planejado .

O planejamento monopolista pode transformar em sucesso

financeiro esses empreendimentos da mesma idade naturalmen-

te ineficientes e estagnados. Mas só com isso não consegue

criar, como num passe de mágica, um equivalente da diversidade

urbana. Nem consegue reproduzir, nas cidades, a eficiência pró-

pria aos prédios de idades variadas e os custos fixos naturalmen-

te variados.

Émuito rela tiva a idade das construções quanto à util idade e

à conveniência. Nada num distr ito que tenha vita lidade parece

velho aponto de não ser escolhido por quem tem esse poder - ou

a ponto de ser eventualmente substituído por algo novo. E essa

utilidade do antigo não é uma questão pura e simples de excelên-

cia ou de charme arquitetônico. No Back-of-the- Yards, em Chi-

cago, não há sequer uma casa castigada pelo tempo, sem atrat i-

vos, deteriorada, com uma estrutura supostamente ultrapassada

que pareça irrecuperável a ponto de não atrair um investimento

ou motivar um pedido de empréstimo - porque se trata de um

bairro que osmoradores não abandonam quando seu poder aquisiti-

vo aumenta. No Greenwich Village, osprédios antigos quase nunca

são desprezados pelas famílias de classe média que procuram

bons preços num distrito movimentado ou pelos que procuram uma

pérola para reformar. Nos distritos de sucesso, os prédios antigos

estão na crista da onda.

No outro extremo, em Miami Beach, onde o que reina é a no-

vidade, hotéis com dez anos são considerados velhos e são rejei-

tados porque há outros mais novos. A novidade, com seu verniz

superficial de bem-estar, é um bem muito perecível.

Muitos moradores e empresas das cidades não têm necessi-

dade de obras novas. O prédio em que este l ivro está sendo escri-

to é ocupado também por uma academia de ginástica, uma em-

presa de decoradores de igrejas, um diretório recém-fundado

C O N DI Ç O ES P A RA A D I V ER S I DA D E U R B AN A

2 5

2 4 M O RT E E V I DA D E G R AN D ES C ID AD ES

gumas pessoas preferem pôr mãos à obra ou pagar a alguém para

melhorar suas condições de vida, ou escolher as melhorias que

mais lhes agradam, a serem obrigadas a aceitar reformas indiscri-

minadas - e todas elas têm seu preço. Nos corti ços em que se fa-

zem benfeitorias espontaneamente, nos quais os moradores per-

manecem porque querem, é fáci l saber da existência de várias

pessoas comuns que ouviram falar de recursos de cor, iluminação

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para reformas no Partido Democrata, um diretório do Partido Li-

beral, um conservatório de música, uma associação de acordeo-

nistas, um importador aposentado que vende erva-mate pelo

correio, um homem que vende jornais e também cuida do despa-

cho da erva-mate, um laboratório de protético, um estúdio de

aulas de aquarela e um artesão que faz bijuteria. Entre os inquili-

nos que moravam aqui e se mudaram pouco antes de eu vir para

cá, havia um homem que alugava fraques, uma sede de sindicato

e um grupo de dança haitiano. Não há lugar para gente do nosso

tipo nas novas const ruções. E a última coisa que queremos são

novas construções'. O que nós queremos, e muitos outros que-

rem, são construções antigas , num bairro cheio de vida, que al-

guns de nós podem tornar ainda mais cheio de vida.

E a construção de novas residências nas cidades também não

é um bem inquestionável. Há muitas desvantagens na construção

de novas residências nas cidades; e o valor dado a várias das van-

tagens ou as privações resultantes de certas desvantagens têm

pesos diferentes para pessoas diferentes. Por exemplo, algumas

pessoas preferem ter mais espaço na moradia pela mesma quan-

tia (ou o mesmo espaço por uma quantia menor) a ter uma copa

feita para pigmeus. Algumas pessoas gostam de paredes à prova

de som. Essa é uma vantagem que elas têm em muitos prédios

antigos, mas não nos novos apartamentos, sejam de conjuntos

habitacionais públicos, a 14 dólares mensais por cômodo, sejam

de condomínios de luxo, a 95 dólares mensais por cômodo  . AI-

3 . Não, a

última

coisa que queremos é um jul gament o pat ernalista sobre sermos suficiente·

men te bem-comport ados para que nos aceitem nos apartamentos subsidiados de uma c idade

imaginária e utópica.

4. Querido, tem certeza que o fogão

é

um dos 51 motivos incrfveis para morarmos no

Washington Square Village? , p er gu nta a m ul he r n um a c harge divulgada por moradores que

protestavam contr a um novo empreendimento imobiliário de Nova York.  Fale mais alto, benzi-

nho , responde o marido.  O vizinho e st av a p uxando a d escarga. 

e mobiliário e transformam ambientes sombrios e carregados em

espaços agradáveis e úteis, ouviram falar de ar-condicionado no

quarto e de ventiladores elétricos, aprenderam como retirar divi-

sórias e até aprenderam como transformar dois apartamentos pe-

quenos num maior. As combinações de prédios antigos, e as con-

seqüentes combinações de custos de vida e de gostos , são essen-

ciais para obter diversidade e estabilidade nas áreas residenciais,

assim como a diversidade de empresas.

Uma das coisas mais admiráveis e agradáveis que podem ser

vistas ao longo das calçadas das grandes cidades são as engenho-

sas adaptações de velhos espaços para novos usos. A sala de estar

do casarão que se transforma em sala de exposições do artesão, o

estábulo que setransforma em casa, o porão que setransforma em

associação de imigrantes, a garagem ou a cervejaria que se trans-

formam em teatro, o salão de beleza que se transforma em primeiro

andar de um dúplex, o armazém que setransforma em fábrica de co-

mida chinesa, a escola de dança que se transforma em gráfica, a

sapataria que se transforma em igreja com vidraças pintadas com

esmero (os vitrais dos pobres), o açougue que se transforma em res-

taurante - são desse tipo as pequenas transformações que estão

sempre ocorrendo nos distritos em que há vitalidade e que atlndem

às necessidades humanas.

Analisem esta história de um espaço improdutivo que recen-

temente foi convert ido pela Associação Artes em Louisville em

teatro, sala de música, galeria de arte, biblioteca, bar e restauran-

te. Ao longo dos anos, esse espaço foi um clube atlético elegan-

te, tornou-se escola, depois estábulo de uma companhia de lat i-

cínios, depois escola de equitação, e daí escola de etiqueta e es-

cola de dança, outro clube atlético, o estúdio de um artista, esco-

. Ia de novo, oficina de ferreiro, uma fábrica, um armazém e hoje

2 6

M O RT E E V I DA D E G R AN D ES C ID AD ES

C O ND iÇ Õ ES P AR A A DIVERS ID A D E U R B A N A 2 7

é uma ofic ina de artes de sucesso . Quem poderia ter previs to ou

fomentado uma sucessão de planos e proje tos desse tipo? Só um

maluco diria que sim; só um sujeito arrogante tentaria fazê-Io.

Essas transformações e conversões incessantes em prédios

urbanos antigos só com muito esforço podem ser chamadas de

paliativas. É mais como se uma matéria-prima tivesse sido en-

contrada no lugar certo. Ganhou um uso que de outra maneira

nem teria surgido.

tomam lucrativas começam pequenas e com poucos recursos e

chegam a arcar com os custos de reformas ou de uma nova cons-

trução. Mas essa evolução não ocorrer ia se não tivesse havido,

em primeiro lugar, aquele espaço de baixa rentabilidade.

As áreas que precisam cultivar combinações de diversidade

principal mais elaboradas precisam depender dos prédios anti-

gos, principalmente no início de tentativas deliberadas de catali-

sar a diversidade. Por exemplo, se o Brooklyn, em Nova York,

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O que é paliativo e lamentável é encarar a diversidade urbana

como proibida. Fora do vasto conjunto residencial de renda mé-

dia de Parkchester no Bronx, onde o comércio padronizado, re-

petitivo (com seu quinhão de estabelecimentos vazios), está pro-

tegido da concorrência não-autorizada e das diversificações den-

tro do conjunto, pode-se ver aquela profusão de proscri tos que é

mantida pelos moradores do Parkchester. Do outro lado de uma

das esquinas do conjunto, horrendamente aglomeradas num tre-

cho de asfalto esburacado deixado por um gasômetro, há outras

coisas de que a população do condomínio aparentemente neces-

sita: empréstimos rápidos, instrumentos musicais, troca de câ-

maras fotográficas, restaurante chinês, pontas de estoque de rou-

pas. Quantas necessidades não são atendidas? As necessidades

viram discussão acadêmica quando um conjunto de construções

de várias épocas é substituído pelo rigor mortis econômico dos

prédios de uma única época, com sua ineficiência natural e a con-

seqüente necessidade de formas de protecionismo .

quiser cultivar a quantidade de diversidade e o grau de atra tivi-

dade e vivacidade de que necessita, deve aproveitar ao máximo

as vantagens econômicas das combinações de moradia e traba-

lho. Sem essas combinações de uso principais, numa proporção

significativa e efetiva, é dificil o Brooklyn dar vazão a seu po-

tencial de diversidade derivada. .

O Brooklyn não consegue concorrer com os subúrbios na

captura de fábricas grandes e prósperas que estejam procurando

um local para se instalar. Pelo menos, não no momento, ainda

mais se tentar vencer os subúrbios nojogo deles, com as regras

deles . O Brooklyn tem trunfos diferentes . Se o objetivo é tirar o

máximo proveito econômico das combinações principais de

moradia e trabalho, deve apoiar-se principalmente na gestação

de novos locais de trabalho e depois incubá-los pelo tempo que

for possível. Quando os tiver , deve combiná-Ios a uma concen-

tração suficientemente alta de moradores , e em quadras curtas ,

para aproveitar sua presença ao máximo. Quanto maior for esse

aproveitamento, tanto maior será sua segurança em manter esses

usos de trabalho.

Porém, o Brooklyn precisa de prédios antigos para gestar es-

ses usos de trabalho - precisa deles exatamente para a atribuição

que eles têm lá. O Brooklyn é um incubador e tanto. Todo ano,

as fábricas mais saem do Brooklyn para out ros lugares do que

vão de outros lugares para lá. Ainda assim, o número de fábricas

do Brooklyn tem crescido constantemente. Uma tese elaborada

por três alunos do Instituto Pratt do Brooklyn' esclarece bem

esse paradoxo:

As cidades precisam de mesclas de prédios antigos para cul-

tivar as misturas de diversidade principal, assim como aquelas

de diversidade derivada. Elas precisam especificamente dos pré-

dios antigos para incubar uma nova diversidade principal.

Se a incubação tiver êxito, o rendimento proporcionado pelos

prédios pode aumentar , e isso costuma acontecer. Grady Clay

afirma que isso já pode ser constatado, por exemplo, no mercado

de sapatos de Louisville. Os aluguéis eram muito baixos quando

o mercado começou a atrair compradores , diz ele.  Eram de 25 a

50 dólares mensais por uma loja de setenta metros quadrados. Já

subiram para 75 dólares.  Mu1tas das empresas urbanas que se

5 . S t u a r t C o h e n , S t an l ey K o o gan e F r a nk M a r ce llino.

218

M O R TE E V I D A D E G R A N D ES C I D AD E S

CO N D iÇÕ ES P AR A A D IV ERS IDADE URBANA

219

o segredo é que o Brooklyn é um incubador de trabalho. Pequenos

negócios surgem aí constantemente. Pode ser que alguns metalúrgi-

cos secansem det rabalhar para um pat rão e abram um negócio pró-

prio nos fundos de uma garagem. Obtêm exito e crescem; logo a

empresa está grande demais para a garagem, e e les se mudam para

um galpão alugado; depois, compram um prédio. Quando a empre-

sa f ica grande demais para o prédio e eles precisam construir um

prédio próprio, é bem provável que se mudem para o Queens, ou

dade com êxi to -, muitos desses prédios antigos, bem distribuí-

dos, serão essenciais nesse processo. Haverá desenvolvimento

se forem dadas as condições para gerar a diversidade que lhe

falta, não com a demolição de vastas áreas de prédios antigos.

Podemos ver à nossa volta muitos exemplos de bairros deca-

dentes construí dos na mesma época, que datam de antes da cons-

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para Nassau ou Nova Jersey. Durante esse período, porém, vinte,

cinqüenta ou cem pessoas como eles terão iniciado algum negócio.

trução de empreendimentos residenciais planejados. Esses bair-

ros geralmente eram, no princípio, áreas elegantes; outras vezes

começaram como bairros exclusivos de classe média. Todas as

cidades possuem bairros desse tipo, fisicamente homogêneos.

Geralmente esses mesmos bairros sofreram toda sorte de em-

pecilhos no que diz respeito à geração de diversidade. Não se

pode atribuir sua vida curta e sua estagnação inteiramente à sua

infelic idade mais óbvia: a de terem sido constru ídos ao mesmo

tempo. Não obstante, essa é uma das deficiências de tais bairros ,

cujos efeitos podem, infelizmente, persist ir por muito tempo

depois de terem envelhecido.

Quando novo, um bairro desses não oferece nenhuma opor-

tunidade econômica para a diversidade urbana. As privações

reais provocadas pela monotonia, devido àquela e a outras cau-

sas, marcam o bairro logo de início. Ele se toma um lugar para

não morar. No momento em que as edificações ficam velhas,

sua única característica proveitosa para a cidade é o preço baixo,

o que por sisó não é sufic iente.

Em regra, os bairros construí dos ao mesmo tempo mudam

pouco fis icamente com o passar dos anos. A pequena modifica-

ção física que ocorre é para pior - deterioração gradativa, uns

poucos usos novos, esparsos e pobres , aqui e acolá. As pessoas

percebem essas poucas diferenças esparsas e as encaram como

evidência, e talvez causa, de uma mudança drástica. Combate à

Praga Elas lamentam que o bairro tenha mudado. Ainda assim,

é fa to que fis icamente ele mudou muito pouco. O que realmente

mudou foi o apreço das pessoas por ele. O bairro demonstra uma

incapacidade surpreendente de atualizar-se, animar-se, renovar-

se ou de ser intencionalmente procurado por uma nova geração.

Ele está morto . Na verdade, nasceu morto, mas ninguém se tinha

dado conta disso até o cadáver cheirar mal.

Por que eles se mudam quando precisam construir? Por um

lado, o Brooklyn oferece muito poucas atrações além daquilo

que, para as empresas , são necessidades básicas - prédios anti-

gos e proximidade de uma ampla variedade de pessoas qualifi-

cadas e de produtos de que uma empresa pequena precisa. Por

outro lado, houve pouco ou nenhum empenho em atender às

necessidades do trabalho - por exemplo, grandes somas são des-

pendidas em vias expressas abarrotadas de automóveis particu-

lares que são despejados na cidade ou saem dela; não se pensa

nem se investe da mesma maneira em vias expressas para cami-

nhões que sirvam aos fabricantes que util izam os prédios anti-

gos, as docas e as ferrovias da cidade .

O Brooklyn, como a maioria das nossas áreas urbanas deca-

dentes, tem mais prédios antigos do que necessita. Em outras pa-

lavras, muitos de seus bairros careceram, por muito tempo, de

um incremento gradual de construções novas. Ainda assim, se se

espera que o Brooklyn progrida a partir de seu patrimônio e de

suas vantagens - que é a única maneira de desenvolver uma ci-

6. O cus to d o solo. hoje t ido invariave lm en te c om o u m g ran de o bstá cu lo p ar a q ue as empresas

em expansão const ruam na c idade, tem caído constantemente em relação aos custos de cons-

trução e a praticamente todos os out ros custos. Q ua nd o, p or exemp lo , a T ime, Inc. decidiu

const ru ir num t er reno mui to caro per to da zona cen tral de Manha tt an , e não em out ro mui to

mai s barat o na orl a da i lha, ela o f ez p or um a s ér ie d e m oti vo s, e ntr e os quais estava o custo

das corr idas de táxi s u ti li zados pelos f unci onár ios a t raba lho naque le ponto, o qual, num ano,

seria maior que a diferença em despesas territoriais Stephen G. Thompson, da Architectural

Forum  fez a afirmação (nunca publicada) de que os subsídios para renovações urbanas fre-

qüentemente tornavam o preço d o m etr o q ua dr ad o n a cidade mais baixo que o do carpete dos

prédios. Parajustificar um preço da terra mais al to q ue o do carpete, uma cidade precisa ser

cidade n ão u ma m áq ui na o u u m d eserto.

22 MO RTE E VID A D E G RANDE S CIDADES

Por fim, depois de terem fracassado os pedidos para arrumá-

10 e combater a praga, vem a decisão de pôr tudo abaixo e come-

çar um novo ciclo. Talvez alguns dos prédios antigos sejam pre-

servados se puderem ser renovados para se igualarem econo-

micamente aos novos. Projeta-se um novo cadáver . Ainda não

cheira mal, mas mesmo assim está morto, igualmente incapaci-

tado para os ajustes, as adaptações e as transformações constan-

11 A NECESSIDADE

DE CONCENTRAÇÃO

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tes que constituem as etapas da vida.

Não há razão para repetir esse ciclo melancólico e fadado ao

fracasso. Se uma análi se desse tipo de área for feita para averi-

guar qual ou quais das outras três condições estão faltando e en-

tão corrigi-Ias da melhor maneira possível, alguns dos prédios

antigos deverão desaparecer: será necessário rasgar mais ruas,

aumentar a concentração de pessoas, dar mais espaço para os

usos principais, públicos e privados. Mas deve-se manter uma

boa combinação de prédios antigos e, ao serem mantidos, e les se

terão tornado mais do que o mero testemunho da decadência do

passado ou uma evidência do fracasso. Eles se terão tomado abri-

gonecessário - e valioso para o bairro - para vários tipos de di-

versidade de retorno médio, baixo e nulo. Nas cidades, o valor

econômico dos prédios novos é substituível. É substituível des-

pendendo mais dinheiro da construção civil. Já o valor econômi-

co dos prédios antigos é totalmente insubstituível. Ele é criado

pelo tempo. Esse pré-requisito econômico da diversidade os bair-

ros ativos só podem herdar e depois manter ao longo dos anos.

4~CONDIÇÃO: O

distrito precisa ter uma concentração suficiente-

mente alta de pessoas, sejam quais forem seus propósitos. Isso in-

clui pessoas cujo propósito

é

morar lá.

Durante séculos, provavelmente todos aqueles que pensaram a

respeito das cidades perceberam que parece haver relação entre

a concentração de pessoas e as especial idades que elas conse-

guem manter. Samuel Johnson, um deles, fez comentários sobre

essa relação já em 1785. Os homens, quando muito dispersos,

se arranjam , disse ele a Boswell,  mas se arranjam mal, sem

várias coisas ( ... ). É a concentração que propicia o conforto

material.  r

Os analistas estão sempre redescobrindo essa relação em ou-

t ras épocas e em outros lugares . Assim, em 1959, John H. Den-

ton, professor de comércio na Universidade do Arizona, depois

de estudar os subúrbios norte-americanos e as cidades novas 

britânicas, chegou à conclusão de que tais localidades devem

contar com acesso fácil às cidades para salvaguardar suas opor-

tunidades culturais. Ele fundamentou suas descobertas , noti-

ciou o

New York Times,

 na falta de densidade populacional sufi-

ciente para manter as instalações culturais. O Sr. Denton (... ) afir-

mou que a descentra lização produziu uma dispersão tão acen-

2 22 M OR TE E V ID A D E G R A N D ES C I DA D ES

C O N Di Ç ÕE S P A RA A D I VE R SI D AD E U R B AN A 2 2 3

tuada da população que a única demanda econômica efetiva que

poderia exist ir nos subúrbios era a da maioria . Os únicos bens e

atividades culturais existentes serão os que a maioria exigir, de-

clarou ele , e assim por diante.

Tanto Johnson quanto o Professor Denton referiam-se aos efei-

tos econômicos de um grande número de pessoas, mas não um

número de pessoas acrescentado indefinidamente a uma popula-

diversidade ou a vitalidade. Acho absolutamente desnecessário

insistir nesse ponto.

Esse mesmo aspecto, porém, tem importância idêntica no to-

cante às moradias. As moradias precisam também usar intensa-

mente o solo urbano, por motivos que vão muito além do custo

da terra. Por out ro lado, isso não quer dizer que todo o mundo

precise ou deva ser colocado em apartamentos com elevador

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ção bastante dispersa. Eles afirmavam que o fato de as pessoas

viverem em baixa ou alta concentração parecia ser muito impor-

tante. Estavam comparando os efeitos do que nós chamamos de

alta e baixa densidade.

Essa relação entre concentração - ou alta densidade - e con-

forto material e outros t ipos de diversidade é geralmente reco-

nhecida quando se refere aos centros urbanos. Todos sabem que

uma quantidade imensa de pessoas concentra-se nos centros das

cidades e que, senão houvesse tal concentração, não haveria cen-

tro urbano que se prezasse - certamente não com a diversidade

típica dos centros.

Porém, essa relação entre concentração populacional e diver-

s idade de usos quase não é levada em conta quando se refere aos

bairros cujo uso principal é o residencial. Apesar disso, as mora-

dias formam a grande parte da maioria dos dis tr itos urbanos. As

pessoas que habitam o distrito também constituem em geral uma

grande porcentagem das pessoas que utilizam as ruas, os par-

ques e os estabelecimentos locais. Sem o auxílio da concentra-

ção de pessoas que aí moram, só podem exist ir pouca infra-es-

trutura ou pouca diversidade de usos nos lugares habitados e

onde elas são mais necessárias.

Sem dúvida, as moradias de um distr ito (como qualquer ou-

tro uso do solo) precisam ser complementadas por outros usos

principais, de modo que haja uma boa distribuição de pessoas

nas ruas em todas as horas do dia, pelas razões econômicas ex-

plicadas no Capítu lo 8. Esses outros usos (trabalho, diversão ou

o que seja) devem promover um uso intenso do solo urbano a

fim de contribuir efetivamente para a concentração populacio-

nal. Se eles simplesmente ocuparem um espaço físico e envolve-

rem poucas pessoas, contribuirão muito pouco ou nada para a

para viver - ou em qualquer uma das modalidades de habitação.

Esse tipo de solução aniquila a diversidade ao impedi-Ia de outramaneira.

As densidades habitacionais são tão importantes para a maio-

ria dos distritos urbanos e seu desenvolvimento futuro e tão rara-

mente consideradas como fator de vital idade que dedicarei este

capítulo a esse aspecto da concentração urbana.

As altas densidades habitacionais são malvistas no urbanis-

mo ortodoxo e na teoria do planejamento habitacional. Acredita-se

que elas levam a toda espécie de dificuldade e ao insucesso.

Todavia, pelo menos nas nossas cidades, essa suposta corre-

lação entre altas densidades e problemas, ou altas densidades e

cort iços, é no mínimo incorre ta, como pode consta tar qualquer

pessoa que sepreocupe em observar as cidades reais. Eis alguns

exemplos:

Em São Francisco, o distrito com mais alta densidade habita-

cional - e também mais alta cobertura de área residencial com

prédios - é North Beach- Telegraph Hill . É um distrito atraente,

que promoveu espontânea e persistentemente a recuperação dos

cortiços nos anos poster iores à Depressão e à Segunda Guerra

Mundial. Por outro lado, o principal problema de cort iços de São

Francisco ocorre num distrito chamado Western Addition, lugar

que decaiu vertiginosamente e hoje sofre demolições extensas.

O Western Addit ion (que era uma boa localidade quando novo)

tem densidade habitacional consideravelmente mais baixa que a

de North Beach- Telegraph Hill e mais baixa que a do ainda ele-

gante Russian Hill e a doNob Hill.

Em Filadélf ia , Rit tenhouse Square é o único distri to que tem

melhorado espontaneamente e ampliado seus limites, e é a única

porção da área urbana central que não foi designada nem para re-

224

MORTE EVIDA DEGRANDES CIDADES

CONDIÇ6ES PARA A DIVERSIDADE URBANA

225

novação nem para demolição. Possui a mais alta densidade habi-

tacional de Filadélfia. Os corti ços da Zona Norte de Filadélfia

apresentam hoje alguns dos mais graves problemas sociais da ci-

dade. Sua densidade habitacional at inge a média máxima de me-

tade da densidade de Rittenhouse Square.

No Brooklyn, em Nova York, o bairro geralmente mais admi-

rado, mais atraente e remodelado é Brooklyn Heights; tem a mais

alta densidade habitacional do Brooklyn. Há extensas áreas apa-

Os cortiços superlotados da literatura sobre planejamento

urbano são áreas fervilhantes, que têm alta densidade habitacio-

nal. Os cortiços superlotados da realidade norte-americana são,

cada vez mais tipicamente, áreas monótonas, que têm baixa den-

sidade habitacional. Em Oakland, Califórnia, o maior problema

de cortiços é uma área de cerca de duzentas quadras de casas

separadas, habitadas por uma ou duas famílias, cuja densidade

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gadas fracassadas ou decadentes do Brooklyn que têm densida-

de que corresponde

à

metade oumenos da densidade de Brooklyn

Heights.

Em Manhattan, os bolsões valorizados da parte central do

East Side e do Greenwich Village têm densidades habitacionais

na mesma faixa que as do coração de Brooklyn Heights. Mas

pode-se notar lá uma diferença interessante. Em Manhattan, es-

ses bolsões valorizados são circundados por áreas muito popula-

res, caracterizadas por elevado grau de vital idade e diversidade.

Nessas áreas populares, as densidades habitacionais são ainda

mais altas. Em Brooklyn Heights, por outro lado, o pólo valori-

zado é rodeado por vizinhanças em que a densidade habitacional

diminui, e a vitalidade e a popularidade, também.

Em Boston, como mencionei na introdução deste livro, o

North End promoveu a recuperação de seus cortiços e é uma das

áreas mais sadias da cidade. Tem de longe a mais alta densidade

residencial de Boston. O distrito de Roxbury, que decaiu durante

uma geração, tem densidade habitacional de cerca de um nono

da doNorth End'.

não é suficiente nem para caracterizar-se como uma densidade ur-

bana real. O maior problema de cortiços em Cleveland são 2,5 qui-

lômetros quadrados de mesrnice. Detroit é principalmente compos-

ta, hoje em dia, de áreas aparentemente intermináveis, fracassadas

por causa da baixa densidade. O East Bronx deNova York, que po-

de ser considerado símbolo dos cinturões apagados e monótonos

que se tornaram um pesadelo para as cidades, apresenta densidades

baixas para Nova York; na maioria do East Bronx, as densidades es-

tão bem abaixo da média total da cidade. (A densidade habitacio-

nal média emNova York é de 55 unidades por acre [J 3,59 em mil

metros quadrados].)

Contudo, não se pode concluir a partir disso que todas as áreas

urbanas de alta densidade habitacional se saiam bem. Nem todas,

e achar que essa é a resposta seria de um simplismo escandaloso.

24 [3,70-5,93J. Em Manhattan: no bols ão mais va lo ri zado da par te cen tral do East Side, 125-

174 [30 88-42 99]  subindo em Yorkvill e p ar a 175-254 [43,24-62,76]; Greenwich Village, no

bolsão mais valorizado,

124·174 [30 64-42 99] 

subindo para

175-254

[43,24-62,76] na maior

parte do restante, ultrapassando 255 [63 01] no boi são q ue a briga uma comunidade italiana

estável, antiga e sem cortiços. Em Boston, North End, 275 [67,95]; Roxbury, 21-1\0 [5, 19-9,88J.

Com relaç ão a Boston e Nova York, esses dados provêm de coletas e t abu lações do Depar-

tamento de Habitação; com relaç ão a S ão Francisco e Filadélfia, sãoestimativas de membros da

equipe de planejamento e desenvolvimento urbano.

Embora muitas cidades t enham uma fixa ção pela análi se m inuciosa da densidade no pla-

nejamento de obras, surpreendentemente poucas têm dados confiáveis sobre densidades

quando não se trata de projetos de obras. (Um diretor de planejamento disse-me que ele não

via razão para analisá-Ias a não ser para indicar a dimensão do problema da transferência de

moradores se elas baixassem ) Nã o t enho conhecimento de uma única c idade que tenha estu-

dado exatamente que variações de densidade localizadas, prédio por prédio, compõem as

médias de densidade dos bairros bem-sucedidos e atraentes.

  t

difícil fazer generalizações com

distritos como esse , lamentou-se um diretor de planejamento quando perguntei a ele sobre

variações d e d ensidade especificas, em pequena escala, num dos distritos mais prósperos da

cidade.

t

diflcil, ou imposslvel, generalizar sobre tais distritos precisament e porque são consti-

tuídos de agrupamentos muito pouco  generalizados ou padronizados. Exatamente essa in-

constância e essa diversidade de componentes são fa to s d os mais importantes e mai s menos-

prezados sobre as densidades médias em distritos bem-sucedidos.

1. Aqui est ão os dados d e d ensidade desses exemplos. Correspondem ao número de moradias

por acre [por mil metros quadrados] de área residencial. Q ua nd o há dois números, eles repre-

sentam a faixa em que seencontra a méd ia ou asmédias do local citado (que é como essesda-

dos costurnarn'ser tabulados ou mapeados). EmSão Francisco: N or th Beach-Telegraph Hill, 80-

140 [19,76-34,59], quase a mesma que a de Russian H il l e de Nob Hill, mas o s ediflcios cobrem

a maior parte da área residencial em North Beach-Telegraph Hil l; o Western Addit ion, 55-60

[13,59-14,82], Em Filadélfia: Rittenhouse Square,

80-100

[19,76-24,71]; cortiços da Zona

Norte de Filadél fi a, cerca de 40 [9,88J; vizinhanças em dificuldade com casas gemi nadas, nor-

malmente

30-45

[7,41-11, 12J. No Brooklyn: Brooklyn Heights,

125-174

[30 88-42 99]

no cen-

tro e 75-124 [18 53-30 64] na maior pa rt e do res tant e; mai s para fora, caem para 45-74

[11, 12-18,28J; como exemplos de áreas do Brooklyn em decJínio o u em dificuldade, Bedford-

Stuyvesant, cerca de met ad e c om 75-124 [18,53-30,64J e metade com 45-74 [11, 12-18,28J;

Red Hook, em maioria

45-74

[71, 12-18,28] ; a lguns pon tos do Brook lyn chegam a cair para

15-

2 26 M OR TE E VID A D E G R A N D ES C ID A D ES

C O N Di Ç ÕE S P A RA A D I VE R SI D AD E U R B AN A 2 2 7

grande quantidade de moradias por acre. Superlotação significa

muitas pessoas numa moradia em relação ao número de cômo-

dos que ela possui. A definição de superlotação dada pelo censo

é de 1,5 pessoa por cômodo ou mais. Isso não tem relação algu-

ma com o número de moradias na área, assim como as altas den-

sidades não têm de fato relação alguma com superlotação.

Essa confusão ent re al tas densidades e superlotação, que

abordarei rapidamente porque interfere muito no entendimento

Por exemplo, o Chelsea, a maior parte da zona superior bastante

debilitada doWest Side e a maior parte do Harlem, todos em Man-

hattan, têm densidades habitacionais nas mesmas faixas altas das

do Greenwich Village, deYorkville e da faixa central do East Side.

A outrora ultrachique Riverside Drive, hoje atolada em proble-

mas, tem densidades habitacionais ainda mais altas.

Não conseguiremos entender os efeitos das densidades altas

e baixas se encararmos a relação entre concentração de pessoas

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Uma das razões pelas quais baixas densidades urbanas são

bem-vistas, embora desmentida pelos fatos, e por que altas den-

sidades urbanas são malvistas, igualmente desmentida, é que

sempre se confundem altas densidades habitacionais com super-

lotação de moradias. Altas densidades habitacionais significam

da função das densidades, é outro equívoco que herdamos do ur-

banismo da Cidade-Jardim. Os planejadores da Cidade-Jardim e

seus discípulos atentaram para áreas de cortiços que tinham não

só muitas unidades residenciais no terreno (altas densidades ha-

bitacionais) como também muitas pessoas dentro de cada mora-

dia (superlotação), e deixaram de fazer qualquer distinção entre

a ocorrência de cômodos superlotados e a ocorrência inteira-

mente diversa de área densamente construída. Em todo caso,

eles detestavam ambos da mesma maneira e faziam deles um par

como queijo e goiabada, de modo que até hoje os construtores e

os urbanis tas pronunciam a frase como se fosse uma só palavra,

 altadensidadeessuperlotação .

Para aumentar a inda mais a confusão, apareceu uma mons-

truosidade esta tíst ica muito util izada pelos responsáveis pela

reurbanização para favorecer suas cruzadas em prol dos conjun-

tos habitacionais - uma cifra pura com números de pessoas por

acre. Essas cifras perigosas nunca revelam o número de mora-

dias ou de cômodos por acre e, se a estimativa referir- .se a uma

área bastante problemática .: e invariavelmente se tra ta disso -, a

conclusão clamorosa é que deve haver alguma coisa abominá-

vel, indicada por ela, nessas concentrações tão altas de pessoas.

O fato de quatro pessoas usarem um mesmo quarto, ou de que as

pessoas podem ser uma manifestação da miséria sob várias

faces, pode ser tudo, menos irrelevante. Acontece que o North

End de Boston, com 963 habitantes por acre de área residencial

[238 habitantes por mil metros quadrados],

tem uma taxa de

mortalidade (dados de 1956) de 8,8 por mil habitantes e taxa

de óbitos por tuberculose de 0,6 por 10 mil. Ao mesmo tempo, o

South End de Boston tem 361 habitantes por acre de área resi-

e produção de diversidade como uma questão pura e simples-

mente matemática. Os resultados dessa relação (de que o Dr.

Johnson e o Professor Denton falam de maneira nua e crua) são

muito influenciados também por outros fatores; três deles en-

contram-se nos três capítulos anteriores.

A não-concentração de moradores, por maior que seja, é  su-

f iciente se a diversidade de usos é suprimida ou impedida por

outras insuficiências. Como exemplo extremo, a não-concentra-

ção de moradias, embora grande, é suficiente para gerar diver-

sidade em conjuntos residenciais padronizados, porque a diversi-

dadejá foi, de todo modo, padronizada. E quase os mesmos efeitos,

por motivos diferentes, podem ocorrer em bairros espontâneos

onde os prédios sejam muito padronizados ou as quadras longas

demais ou não haja combinações de usos principais que não o

residencial.

No entanto, continua sendo verdade que grandes concentra-

ções de pessoas são

uma

das condições necessárias para o flo-

rescimento da diversidade urbana. E isso quer dizer que nos dis-

tri tos onde as pessoas moram, deve haver alta concentração de

moradias no solo a elas destinado. Os outros fatores que influen-

ciam a quantidade de diversidade gerada e os locais onde ela é

gerada não terão muito que influenciar se não houver pessoas em

número suficiente.

228 MORTE E VID A D E G R ANDE S CID ADE S

COND iÇÕ ES PARA A DI VER SIDADE U RBANA 229

dencial [89 habitantes por mil metros quadrados], taxa de mor-

tal idade de 21,6 por mil habitantes e taxa de óbitos por tubercu-

lose de 12 por 10 mil. Seria ridículo concluir que esses sinais de

que há algo muito errado no South End devem-se

à

existência

de 361 habitantes por acre de área residencial em lugar deperto de

mil. A verdade é mais complexa. Porém, é igualmente ridículo

considerar o caso de uma população miserável com mil pessoas

por acre de área residencial e concluir que esse índice é, conse-

E também a erradicação de cortiços, da forma como é execu-

tada em nossas cidades, geralmente nada tem que ver com a so-

lução do problema da superlotação. Ao contrário, a erradicação

e a reforma de cortiços normalmente aumentam o problema.

Quando os prédios antigos são substituídos por novos conjuntos

habitacionais, as densidades habitacionais quase sempre ficam

abaixo do que eram, de modo que há menos moradias no distri to

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qüentemente, ruim.

É

característico dessa confusão entre altas densidades habita-

cionais e superlotação que um dos grandes planejadores da Ci-

dade-Jardim, Sir Raymond Unwin, tenha denominado de Nada

se ganha com superlotação um panfleto que não tinha relação

alguma com superlotação, mas sim com a disposição de super-

quadras com baixa densidade residencial. Nos anos 30, a superlo-

tação de moradias com pessoas e a pretensa superlo tação  do

solo com edificações (i.e., densidades habitacionais urbanas e

taxas de ocupação do solo) foram aceitas como tendo significa-

dos e efeitos praticamente idênticos, na medida em que nem se

pensava numa diferenciação. Quando anali stas como Lewis

Mumford e Catherine Bauer não puderam deixar de perceber

que certas áreas urbanas muito bem-sucedidas tinham altas den-

sidades habitacionais e alta taxa de ocupação do solo, mas não

muitas pessoas por moradia ou por cômodo, eles se apegaram

à

desculpa (Mumford ainda se atém a ela) de que os felizardos que

vivem confortavelmente nesses locais populares vivem em corti-

ços, mas são muito insensíveis para perceber ou sentir isso.

Superlotação de moradias e altas densidades habitacionais

existem de forma independente uma da outra. O North End e o

Greenwich Vil lage e a Rit tenhouse Square e Brook1yn Heights

têm altas densidades em suas cidades, mas, com poucas exce-

ções, suas moradias não são superlo tadas. O South End e a Zona

Norte de Filadélfia e Bedford-Stuyvesant têm densidades habi-

tacionais muito mais baixas, mas suas moradias são invariavel-

mente superlotadas, com muitas pessoas por domicílio. Atualmen-

te, é bem mais provável que encontremos uma superlotação maior

sob baixas densidades do que sob altas densidades.

do que anteriormente. Ainda que as mesmas densidades habita-

cionais se repitam ou aumentem levemente, menos pessoas são

assentadas do que despejadas, porque as pessoas que foram trans-

fer idas em geral viviam em condições de superlotação. O resul-

tado é que a superlotação vai aumentar em algum lugar, princi-

palmente se as pessoas despejadas forem negras, que não têm

muita opção de moradia. Todas as cidades têm leis contra a su-

perlotação em seus códigos, mas elas não podem ser aplicadas

quando os próprios planos municipais de reurbanização forçam

a superlotação em outros lugares.

Em tese, ser ia possível supor que as altas concentrações po-

pulacionais necessárias para ajudar a gerar diversidade nos bair-

ros possam existir tanto sob densidade habitacional suficiente-

mente alta quanto sob densidade mais baixa de moradias super-

lotadas. O número de pessoas em determinada área poderia ser o

mesmo nessas duas situações, embora, na prática, os resultados

sejam diferentes . No caso de um número adequado de pessoas

num número adequado de moradias, a geração de diversidade é

possível, e as pessoas podem apegar-se

à

mistura de coisas pecu-

liar à sua vizinhança, sem que uma força destrutiva interna - su-

perlotação de moradias, com muitas pessoas por cômodo - entre

necessariamente em conflito com ela. A diversidade e a atração

que exerce ocorrem junto com condições de vida adequadas

quando há moradias sufic ientes para um número apropriado de

pessoas, e, assim, mais pessoas que melhorem de condição ten-

derão a permanecer.

A superlotação de moradias ou de cômodos, em nosso país,

é

quase sempre uma manifestação de pobreza ou de discriminação

e uma (mas apenas uma) das muitas dificuldades revoltantes e

desalentadoras de ser muito pobre ou vítima da segregação resi-

2 30 M O RT E E V I DA D E G R AN D ES C ID A DE S

C O N DI Ç O ES P A RA A D I VE R SI D AD E U R B AN A 2 3 1

Comecemos pela parte de baixo da escala de densidades ha-

bitacionais, para entender, de modo geral , por que uma densida-

de que funciona bem num lugar é ruim em outro .

Densidades habitacionais muito baixas - seis moradias ou me-

nos por acre [1,5 moradia por mil metros quadrados] - podem

ser boas para subúrbios. Os lotes sob tais densidades têm em

média, digamos, 21 por 30 metros ou mais. Algumas densidades

habitacionais nos subúrbios são mais altas, é c laro; os lotes , em

dencial, ou ambos. Na verdade, a superlotação sob baixas densi-

dades pode ser ainda mais deprimente e destrutiva do que a super-

lotação sob altas densidades, porque sob baixas densidades há me-

nos vida pública funcionando como diversão e escape e também

como meio de luta política contra injustiças e negligências.

Ninguém gosta de superlo tação, e aqueles que precisam su-

portá-Ia detestam-na ainda mais. Ninguém vive em locais super-

lotados porque quer . Mas as pessoas geralmente vivem em bair-

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Quais densidades habitacionais urbanas seriam adequadas?

A resposta é parecida com a que Lincoln deu à pergunta: Qual

deve ser o comprimento das pernas de um homem? Suficiente

para alcançar o chão, respondeu Lincoln.

Da mesma maneira , densidades habitacionais urbanas ade-

quadas são uma questão de funcionalidade. Não podem ser ba-

seadas em abstrações sobre a extensão da área que idealmente

deveria ser reservada para tantas e tantas pessoas (vivendo numa

sociedade submissa imaginária).

As densidades são muito baixas, ou muito altas, quando im-

pedem a diversidade urbana, em vez de a promover. Essa fal ta de

funcionalidade é a razão de serem muito baixas ou muito altas .

Deveríamos encarar as densidades da mesma maneira que enca-

ramos as calorias e as vitaminas. As doses corretas são corretas

por causa da eficácia delas. E o que é correto muda de acordo

com as circunstâncias.

relação a dez moradias por acre [2,47 moradias por mil metros

quadrados], fi cam em média pouco abaixo de, digamos, 15 por

27 metros, o que é muito pouco para uma moradia suburbana,

mas, com um planejamento engenhoso do local, um bom projeto

e uma localização tip icamente de subúrbio, pode render um nú-

cleo suburbano ou uma cópia razoável.

Entre dez e vinte moradias por acre [2,47 e 4,94 moradias

por mil metros quadrados] temos uma espécie de semi-subúrbio',

constituído tanto de casas separadas ou com duas famílias em

lotes minúsculos quanto de casas geminadas de tamanho gene-

roso com pátios ou áreas verdes relat ivamente generosos. Tais

projetos , embora costumem ser monótonos, podem ser viáveis e

confiáveis se ficarem longe da vida urbana; por exemplo, se se

si tuarem perto da perifer ia das cidades grandes. Eles não gera-

rão vitalidade e vida públ ica urbanas - sua população é muito

escassa - nem ajudarão a manter a segurança nas calçadas. Mas

talvez nem haja necessidade disso.

Contudo, esse tipo de densidade habitacional ao redor da ci-

dade é uma opção ruim a longo prazo, fadada a transformar-se

numa área apagada. À medida que a cidade se expande, desa-

parece o caráter que torna esses semi-subúrbios razoavelmente

atraentes e funcionais. À medida que forem engolidos e ficarem

incrustados na cidade, perderão, sem dúvida, sua antiga identi-

dade geográfica com subúrbios verdadeiros ou com a área rural.

Porém, mais que isso, perderão a própria proteção contra pes-

soas que não se adaptam econômica e socialmente

à

vida pri-

ros de alta densidade habitacionais porque querem. Bairros com

superlotação, com baixa ou alta densidade habitacional, são ge-

ralmente bairros que não progrediram quando eram habitados em

condições normais por pessoas com poder de escolha. Essas pes-

soas o deixaram. Os bairros que com o tempo resolveram o pro-

blema da superlotação ou mantiveram sua redução por várias ge-

rações costumam ser aqueles que têm progredido e tanto mantêm

quanto atraem a fidelidade de pessoas com poder de escolha . Os

vastos cinturões apagados de densidade relativamente baixa que

circundam nossas cidades, decaindo e sendo abandonados, ou de-

caindo e superpovoando-se, são indícios significativos de um fra-

casso típico da baixa densidade nas metrópoles.

2 . O i de a l c l ás sic o d e u m p la ne ja m en to d e C idade-J a rd im est r it o f ic a nes ta f a ixa: doz e m o rad ias

p o r a c r e [ 2 ,96 m oradias por m il m et ros quadrados].

2 32 M OR TE E VID A D E G RAN DES CIDA DE S

CON D IÇO ES PARA A D IV ERSID AD E U R BANA 233

vada dos outros, e não mais terão distância dos problemas pecu-

liares à vida urbana. Imersos na cidade e em seus problemas co-

tidianos, eles não possuem a vitalidade da cidade para enfrentar

esses problemas.

Em suma, há uma justificativa para uma densidade habitacio-

nal média de vinte moradias ou menos por acre [4,94 moradias

por mil metros quadrados],

e deve haver boas razões para tais

densidades, desde que as moradias e os bairros que as apresen-

As densidades habitacionais intermediárias aumentam, por

definição, até o ponto em que uma vida urbana autêntica come-

ce a surgir e suas forças construtivas passem a atuar. Esse ponto

é variável. Varia de cidade para cidade e varia dentro da mesma

cidade, dependendo do grau de sustentação que as moradias ob-

tenham de outros usos principais e de usuários de fora do distri-

to, atraídos pela vivacidade ou pela singularidade.

Distritos como Rittenhouse Square, em Filadélfia, e North

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tem não sejam componentes habituais da metrópole.

Acima dessas densidades habitacionais de semi-subúrbios, é

raro escapar das realidades da vida urbana, mesmo que por pou-

cotempo.

Nas cidades maiores (as quais, você vai recordar, não pos-

suem a auto-sufic iência local das cidades de pequeno porte),

densidades de vinte oumais moradias por acre implicam que mui-

tas pessoas que moram próximas geograficamente não se conhe-

cem e nunca o farão. Fora isso, facili ta-se a presença de desco-

nhecidos de qualquer outro lugar, porque outros bairros de mes-

ma densidade ou mais alta f icam por perto.

Quando se ultrapassa a densidade habitacional de um semi-

subúrbio ou uma localidade de subúrbio é engolida, passa a exis-

t ir de repente um tipo totalmente diverso de núcleo urbano - um

núcleo que agora apresenta modalidades diferentes de trabalho

diário e exige modos diferentes de lidar com elas; uma comuni-

dade que carece de certas vantagens, mas possui vantagens po-

tenciais de outro tipo. A partir desse momento, esse núcleo urba-

no precisa da vitalidade e da diversidade das cidades.

Infelizmente, porém, densidades suficientemente altas para

trazer consigo problemas típicos das cidades não são, de modo al-

gum, necessariamente altas o suficiente para gerar a vitalidade,

a segurança, a infra-estrutura e a atratividade das cidades. Assim,

entre o ponto em que desaparecem o caráter e a função de semi-

subúrbio e o ponto em que a diversidade e a vida pública dinâ-

micas podem despontar, há uma série de densidades metropoli-

tanas que chamarei de densidades habitacionais intermediárias.

Elas não servem nem à vida suburbana nem à vida urbana. Em

geral, só ocasionam problemas.

Beach- Telegraph Hill, em São Francisco, que ostentam uma

enorme riqueza de combinações de usos e atrações para as pes-

soas vindas de fora, podem comprovadamente manter a vitalida-

de sob uma densidade habitacional de aproximadamente lOOdo-

micílios por acre [24,71 por mil metros quadrados]. Por outro

lado, em Brooklyn Heights essa quantidade evidentemente não

basta. Aí, nos locai s em que a média cai para lOOmoradias por

acre, a vitalidade também decresce'.

Só consigo me lembrar de um dist ri to urbano com vitalida-

de que tenha bem menos de 10 0 residências por acre [24,71

por mil metros quadrados] -

o Back-of-the- Yards, em Chica-

go. Pode ser uma exceção, porque esse distri to desfruta de be-

neficios políticos que normalmente só decorrem da alta con-

centração. Quanto

à

sua densidade habitacional intermediária,

e le tem, contudo, um número suficiente de moradores para ter

peso na metrópole porque sua área funcional é mui to mais am-

pla geograficamente do que a que outros distri tos alcançam, a

não ser no nome, e ele usa toda essa força políti ca com habili-

3. Alguns teóricos do urbani smo defendem a variedade e a vitalidade urb an as e s imultanea-

mente recomendam densidades intermediárias. Por exemplo, na edição de inver no de 1960-

1961 da revista

Landscape,

Lewis Mumford es cr ev e: A go ra a grande função da cidade é ( . ..)

permitir, na v erdade encorajar e incitar, a maior quantidade possível de reuniões, encontros,

desafi os ent re t odas aspessoas, classes e grupos, fornecendo, como já se verifica, um palco em

que se encena o drama da vida urbana, com osatores representando a platéia e osespectado-

res, osatores. No parágrafo seguinte, porém, ele critica duram en te a s áreas urbanas ocupadas

com densidades populacionais de 200 a 500

pessoas

(grifo meu) por acre

[50

a 124

pe ssoas

em

mi l me tro s qu ad ra do s]

e recomenda empreendimentos residenciais que contem com parques

e jardi ns como parte essencial do pro je to , com densidades habitacionais não m ais altas que

cem [25] ou, no máximo, em moradias para pessoas sem crianças, de 125

pessoas

por acre

[ 3 1 p e s s oa s e m m i l m e tr os q u adrados ]. Urbanidade e densidades intermediárias como essas

só podem est ar j un tas na t eo ri a; são incompa trve is dev ido aos f atores econõmicos da geração

de diversidade urbana.

2 34 M O RT E E V ID A D E G R AN D ES C ID A DE S

C O N DI Ç OE S P A RA A D I VE R SI D AD E U R B AN A 2 3 5

dade e tenacidade para .conseguir o que quer. Porém, até mes-

mo o Back-of-the- Yards apresenta algumas desvantagens de-

correntes da monotonia visual, os pequenos inconvenientes do

cotidiano e o receio de desconhecidos que pareçam muito es-

tranhos e que quase sempre aparecem nas densidades habita-

cionais intermediárias. O Back-of-the- Yards vem aumentando

gradativamente suas densidades, seguindo o crescimento natu-

ral da população do distrito. Aumentar as densidades gradativa-

mente, como tem sido feito aí, não significa de forma alguma

Resulta daí, no entanto, que talvez as densidades sejam altas

demais se atingirem um ponto em que, por alguma razão, pas-

sem a inibir a diversidade em vez de estimulá-Ia. Como isso pode

realmente acontecer, a questão principal é considerar quão alto é

esse alto demais.

O motivo pelo qual as densidades habitacionais podem inibir

a diversidade, se subirem demais, é o seguinte: em algum mo-

mento, para acomodar tantas moradias no solo, recorre-se à pa-

dronização. Isso é fatal, pois uma grande diversidade de idades e

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minar as conquistas sociais e econômicas do distrito. Ao con-

trário, significa fortalecê-Ias.

Para defini r uma explicação funcional sobre os l imites das

densidades intermediárias, podemos dizer que um distrito as ul-

trapassa quando seu terri tório destinado a residências for sufi-

cientemente denso para que sua diversidade principal contribua

para o surgimento cada vez maior de diversidades e vita lidade

urbanas derivadas. A taxa de densidade que possibilita isso num

lugar pode ser insuficiente em outro.

A explicação numérica tem menos significado que a explica-

ção funcional (e infelizmente pode tomar o que é dogmático imu-

ne aos dados mais verdadeiros e mais sutis provindos da realida-

de). Porém, posso concluir que numericamente as densidades ha-

bitacionais intermediárias talvez sejam ultrapassadas numa taxa

em tomo de 100 moradias por acre [24,71 moradias por mil me-

tros quadrados],

sob circunstâncias

o mais apropriadas possível

em todos os aspectos para o surgimento da diversidade. Como

regra geral, acho 100 moradias por acre muito pouco.

t ipos de construção tem relação dire ta e explíci ta com a diversi-

dade populacional, a diversidade de empresas e a diversidade de

panoramas.

De todos os vários t ipos de construções (antigas e novas) da

cidade, alguns são sempre menos eficientes que outros no aumen-

to de moradias que proporcionam ao território. Um prédio de três

andares abriga menos moradias em determinada área de terreno

do que um prédio de cinco andares; um prédio de cinco andares ,

menos do que um de dez andares. Se quisermos subir a inda mais,

o número de moradias que ocupam determinado terreno pode ser

estupendo - como demonstra Le Corbusier em seus projetos de

uma cidade com arranha-céus repetitivos num parque.

Porém, ao acomodar moradias em determinadas áreas de ter- •

reno, os resultados efetivos nunca são muito maiores, e nunca

foram. Deve haver espaço para a variedade de prédios . Todas as

variações que não apresentem eficiência máxima acabam su-

plantadas. Eficiência máxima, ou qualquer coisa parecida, signi-

fica padronização.

Em certa época e em certa localidade, sob determinada con-

juntura de legislação, tecnologia e financiamento, algum modo

particular de acomodar moradias no terreno tende a ser o mais

eficiente. Em certos lugares e em certas épocas, por exemplo, as

casas geminadas estreitas de três pavimentos pareceram ser a so-

lução mais eficiente para a disposição de moradias no terreno.

Nas localidades em que suplantaram todos os outros tipos de

construção, elas estenderam um véu de monotonia. Em outro pe-

r íodo, os prédios de apartamentos de cinco ou seis andares , mais

largos e com escadas, foram mais eficientes. Quando a River-

Supondo que se tenha ultrapassado a faixa das problemáticas

densidades intermediárias, voltemos às densidades urbanas viá-

veis. Até onde deveriam chegar as densidades habitacionais ur-

banas? Até onde elas podem ir?

Obviamente, se o objetivo é uma vida urbana movimentada,

as densidades habitacionais devem subir até onde for necessário

para est imular a diversidade potencia l máxima do distri to . Por

que desperdiçar o potencial do distri to e da população da cidade

de criar uma vida urbana atraente e intensa?

2 36 M O RT E E V I DA D E G R AN D ES CIDADES CONDiÇÕES PARA A DIVERSIDADE U RBANA 237

side Drive, em Manhattan, foi construída, os edificios de aparta-

mentos de doze e catorze andares, com elevador, eram aparente-

mente a solução mais eficiente para a acomodação de moradias,

e , com essa padronização específ ica por base, produziu-se um

boi são com a mais alta densidade habitacional de Manhattan.

Os prédios de apartamentos com elevador são hoje a maneira

mais eficiente de ocupar com moradias uma determinada área

edificável. E, nesse tipo de habitação, há certos subtipos mais

me. O Greenwich Village é um lugar assim. Abriga pessoas sob

densidades que variam de 125 a mais de 200 residências por acre

[de 3La mais de 49 residências em mil metros quadrados], sem

padronização de edificios. Chega-se a essas médias reunindo to-

dos os tipos de habitação: de casas de uma só família, apartamen-

tos, casas de cômodos e toda espécie de moradia em pequenos

prédios de apartamentos, a edif icios com elevador, de épocas e

tamanhos variados.

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II I

efic ientes , como aqueles de altura máxima para elevadores de

baixa velocidade, hoje geralmente considerados como sendo de

doze andares , e aqueles com altura máxima economicamente

viável para o despejo de concreto. (Tais a lturas, por sua vez, de-

pendem do avanço tecnológico dos guindastes, de modo que o

número de andares cresce a cada ano.Atualmente, são vinte e dois

andares .) Os prédios de apartamentos com elevadores não são

apenas o modo mais eficiente de acomodar pessoas em determi-

nado terreno; sob circunstâncias desfavoráveis, também podem

ser o modo mais perigoso de fazê-lo, como se vê na prática em

vários conjuntos habitacionais de baixa renda. Sob outras cir-

cunstâncias, são excelentes.

Os prédios de apartamentos com elevador não representam

uma padronização só por serem prédios de apartamentos com

elevador, assim como as casas de três andares não representam

uma padronização por serem casas de três andares . Mas os pré-

dios de apartamentos com elevador representam, sim, uma pa-

dronização quando são o único tipo de habitação do bairro - da

mesma maneira que as casas de três andares representam uma

padronização monótona quando são praticamente o único tipo de

habitação do bairro.

Não há um tipo satisfatório para suprir um bairro com mora-

dias; nem dois ou três tipos são satisfatórios. Quanto mais varie-

dade, melhor. No momento em que o conjunto e o número de

variedades de edificios diminuem, a diversidade da população e

dos estabelecimentos também tende a estagnar ou diminuir, em

vez de crescer.

Não é fácil conciliar altas densidades habitacionais com uma

grande variedade de construções - às vezes, uma variedade enor-

O motivo pelo qual o Greenwich Village consegue conciliar

essas densidades altas com tamanha variedade é que uma grande

porcentagem do solo destinado a habitações (chamada de acrea-

gem habitacional) está ocupada por prédios. Muito pouco é espa-

ço aberto ou sem construção. Na maioria dos locais, estima-se

que as construções na área residencial ocupem em média de 60 a

80por cento do terreno, deixando os restantes 40 ou 20por cento

não construído na forma de quintais, pátios e similares.

É

uma

proporção alta de ocupação do solo. É um uso do próprio solo

tão eficiente, que permite uma boa dose de ineficiência nos pré-

dios. A maioria deles não é necessariamente apertada, mas mesmo

assim atingem-se altas densidades médias.

Agora, suponha que somente de 15 a 20 por cento da área re-

sidencial seja construída, e os restantes 75 a 85por cento fiquem

livres ou sem construções. Essas cifras são comuns em conjun-

tos habitacionais, com enormes espaços abertos, muito dificeis

de fiscalizar na vida urbana e responsáveis por grandes vazios e

muitos problemas. Mais terra nua representa obviamente menos

área construída . Se se duplicarem os espaços vazios de 40 para

80 por cento, a área edif icável será reduzida em dois terços Em

vez de ter 60 por cento do solo para construção, tem-se apenas

20 por cento.

Quando um espaço tão grande é deixado livre, o próprio solo

está sendo usado ineficientemente no tocante à ocupação por

moradias. A camisa-de-força fica muito apertada quando apenas

20 ou 25 por cento do terreno pode ser construído. A densidade

habitacional deve ser muito baixa ou, então , as moradias devem

ser muito bem acomodadas na porção de solo edificável. Sob

tais circunstâncias, é impossível conciliar altas densidades com

variedade. Prédios de apartamentos com elevador, geralmente

muito altos, tornam-se inevitáveis.

O conjunto habitacional de Stuyvesant Town, em Manhattan,

tem densidade de 125 moradias por acre [30,88 moradias em mil

metros quadrados], densidade equivalente

à

faixa mais baixa do

Greenwich Village. Ainda assim, para acomodar tantas moradias

em Stuyvesant Town, onde o índice de ocupação do solo é de

apenas 25 por cento (não há construções em 75 por cento do so-

10 ), as moradias devem ter padronização das mais rígidas, em

C O N DI Ç O ES P A RA A D I V ER S I DA D E U RBANA

239

38

M O R TE E V I D A D E G R A N D ES C I D AD E S

dade urbana, elas são ao mesmo tempo excessivamente altas para

permitir a diversidade. A questão envolve uma contradição.

Entretanto, supondo que a taxa de ocupação do solo seja alta,

a té que ponto as densidades do bairro podem subir sem conde-

ná- lo à padronização? Isso depende muito de quantas e quais va-

r iações herdadas do passado ainda existam no bairro. As varia-

ções herdadas do passado são o alicerce para as novas variações

do presente (e eventualmente do futuro) . Um bairro já padroni-

zado, no passado, com casas de três andares ou edificios de cin-

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fileira e mais fileira de prédios de apartamentos enormes e prati-

camente idênticos. Arquitetos e projetistas mais criativos teriam

distribuído os prédios de outra maneira, mas, qualquer que fos-

se, a diferença seria apenas superficial. A impossibilidade mate-

mática frustraria a própria genialidade de inserir uma variedade

substancial e genuína com esse baixo índice de ocupação do solo

e sob tais densidades.

Henry Whitney, arquiteto e especialista em conjuntos habita-

cionais, elaborou várias combinações teoricamente possíveis de

prédios com elevador e prédios mais baixos, utilizando a baixa

taxa de ocupação do solo exigida em programas habitacionais

públicos e em praticamente todos os projetos de revita lização

subsidiados pelo governo federal. Whitney descobriu que, inde-

pendentemente da maneira como se divida o solo, é fisicamente

impossível ultrapassar as baixas densidades (40 por acre ou per-

to disso [9,88 em mil metros quadrados)) sem padronizar tudo,

com exceção de alguma caracter ís tica mínima das moradias - a

menos que a ocupação do solo seja aumentada, o que significa

exatamente reduzir o espaço livre. Cem moradias por acre [24, 71

em mil metros quadrados], com pequena ocupação do solo, não

produzem indício algum de variedade de características - e, no

entanto, essa é a densidade mínima estimada se se quiser evitar

as inadequadas densidades intermediárias.

Baixas taxas de ocupação do solo - independentemente de

como sejam impostas, por zoneamento local ou até decreto fede-

ral- e diversidade de edificios e densidades urbanas viáveis são,

portanto, situações incompatíveis. Com baixa ocupação, se as

densidades são suficientemente altas para ajudar a gerar diversi-

co andares, não terá um espectro amplo de variações com o acrés-

cimo de mais um t ipo de construção, criando desse modo uma

densidade mais alta e deixando-a assim. A pior possib il idade é

não haver alicerce algum herdado do passado: terra nua.

Difici lmente sepode esperar que muitos t ipos de moradias ou

de construções realmente diferentes sejam acrescentados num

mesmo período. Trata-se de um desejo impossível de realizar .

Há modas na construção. Por trás dessas modas exis tem razões

econômicas e tecnológicas, e tais modas só não excluem umas

poucas possibilidades genuinamente diferentes de construção de

moradias urbanas num mesmo período.

Nos bairros de baixas densidades, podem-se aumentá-Ias e

ampliar a variedade acrescentando simultaneamente novos edifi-

cios em pontos diferentes, separados. Em resumo, as densidades

devem ser aumentadas - e novas construções erguidas com esse

fim - paulat inamente, não com uma elevação repentina , assom-

brosa, sem acrescentar nada por muitas décadas. O próprio pro-

cesso de aumentar as densidades paulatina mas continuamente

pode resultar também em variedade crescente e, portanto, dar lu-

gar a densidades finais altas sem padronização.

O ponto que as altas densidades finais podem atingir sem pro-

vocar padronização é limitado, obviamente, pelo território, mes-

mo que a taxa de ocupação do solo seja muito elevada. No North

End, em Boston, as altas densidades, com média de 275 mora-

dias por acre [68 moradias em mil metros quadrados], ocorrem

com uma variedade considerável; mas essa boa combinação foi

em parte obtida graças à ocupação do solo, que atinge uma pro-

porção bastante elevada nos terrenos atrás de alguns edif icios .

24

M OR TE E V ID A D E G RA ND ES CIDADES

COND iÇÕE S P AR A A D IV ER SI DA DE U R BA NA 24

No passado, houve construções demais de dois andares, nos

quintais e nos pátios localizados em quadras curtas. Na verda-

de, essas construções internas contribuem muito pouco para a

densidade, porque são pequenas e geralmente baixas . E nunca

são um equívoco; como curiosidade ocasional, têm seu encanto.

O problema surge com a quantidade. Com o acréscimo de uns

poucos prédios de apartamento com elevador - variedade de ha-

bitação escassa no North End -, os espaços livres no meio das

ques públicos em lugares movimentados, estaremos também

acrescentando outro tipo de área livre. E se edificios não-resi-

denciais forem inseridos em áreas residenciais (como devem

estar se os usos principais estiverem bem combinados), obtém-se

um resultado similar, em que o total de moradias e de moradores

do distrito é reduzido àquele tanto.

A associação desses recursos - maior freqüência de ruas, par-

ques movimentados em lugares movimentados e vários usos

não-residenciais combinados, junto com uma grande variedade

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quadras poderiam aumentar um pouco sem reduzir as densida-

des do distri to . Ao mesmo tempo, a variedade de tipologias ha-

bitacionais do distrito aumentaria, em vez de diminuir. Todavia,

i sso não poderia ser feito se baixas taxas de ocupação do solo

das pseudocidades fossem implantadas junto com prédios com

elevador.

Duvido que seja possível , sem uma padronização drástica,

ultrapassar a densidade habitacional do North End, de 275 mora-

dias por acre. Na maioria dos dis tr itos - carentes da antiga e pe-

culiar herança do North End de diferentes t ipos de construção -,

o limite máximo para afastar o perigo da padronização deve ser

consideravelmente mais baixo; eu arriscaria, por alto, que ele

tende a oscilar em tomo de 200 moradias por acre [49 em mil me-

tros quadrados].

das próprias moradias - ocasiona resultados totalmente diferen-

tes com altas densidades sinistramente inabaláveis e alta ocupa-

ção do solo. Mas tal combinação também ocasiona vários resul-

tados totalmente diferentes se as altas densidades forem alivia-

das por certo número de terrenos residenciais livres. Os resulta-

dos são muito diferentes porque cada um desses outros recursos

que mencionei ocasiona muito mais do que um alívio em rela-

ção às altas taxas de ocupação do solo. Cada um, à sua maneira

caracter ís tica e indispensável , contribui para a diversidade e a

vitalidade da área, de modo a resultar, das altas densidades, algo

de construtivo, em vez de algo simplesmente inerte.

Agora precisamos colocar as ruas nisso.

As altas taxas de ocupação do solo, necessárias como são para

haver variedade sob altas densidades, podem tomar-se intolerá-

veis, particularmente ao se aproximarem de 70 por cento. Tomam-

se intoleráveis se a área não for entrecortada por ruas freqüentes.

Quadras longas com alta ocupação do solo são opressivas . Ruas

freqüentes, por serem aberturas entre as edificações, compensam

o alto índice de ocupação do solo à volta delas.

Em qualquer caso, se a meta for gerar diversidade, os distri-

tos precisam de ruas freqüentes . Assim, sua importância como

elementos complementares da alta ocupação do solo somente re-

força essa necessidade.

Contudo, é óbvio que, se as ruas são numerosas , e não escas-

sas, acrescenta-se área livre na forma de ruas. Se colocarmos par-

Afirmar que as cidades precisam de altas densidades habita-

cionais e alta ocupação do solo, como tenho dito, é normalmen-

te considerado mais grave do que defender quem come crian-

cinhas.

Mas as coisas mudaram desde a época em que Ebenezer Ho-

ward observou os cortiços de Londres e concluiu que, para sal-

var as pessoas, a vida urbana deveria ser abandonada. Os avan-

ços em áreas menos agonizantes que o planejamento urbano e a

política habitacional, como a medicina, o saneamento e a epide-

miologia, a legislação sobre alimentos e a legislação trabalhista,

revolucionaram profundamente as condições perigosas e degra-

dantes que já foram inseparáveis da vida urbana sob alta densi-

dade populacional.

Ao mesmo tempo, a população das regiões metropolitanas

(cidades centrais com subúrbios e cidades-satélites) continuou

crescendo, a ponto de atualmente representar 97 por cento do au-

mento total da nossa população.

242 MORTE E V IDA DE GRANDES CIDADES

COND IÇOES P AR A A D IV ER SID AD E U RB AN A 243

 Essa tendência deve continuar , diz o Dr. Philip M. Hauser,

d iretor do centro de pesquisa populacional da Universidade de

Chicago, ( .. . ) porque esses aglomerados de pessoas represen-

tam os núcleos de produção e consumo mais eficazes que nossa

sociedade criou até agora. Exatamente o tamanho, a densidade e

o congestionamento de nossos modelos de Regiões Metropolita-

nas condenados por alguns urbanistas , es tão entre nossos mais

preciosos trunfos econômicos.

Entre 1958 e 1980, ressalta o Dr. Hauser, a população dos Es-

~ião metropolitana. Nossas regiões metropolitanas já são ponti-

lhadas de lugares amorfos, desintegrados, que outrora foram cida-

des e vilas relativamente auto-suficientes e integradas. No momen-

to em que são sugadas pela complexa economia de uma região

metropolitana, com sua multipl ic idade de opções de locais de tra-

balho, lazer e compras, e las começam a perder a integridade e a

relativa inteireza, social, econômica e cultural. De duas uma: ou

nossa economia metropolitana do século XX ou uma vida de cida-

de isolada ou de cidade depequeno porte do século XIX.

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tados Unidos terá crescido entre 57 milhões (levando em conta a

queda causada pela baixa taxa de natalidade de 1942-44) e 99

milhões (levando em conta o aumento de 10 por cento na taxa de

natal idade relat iva a 1958). Se a taxa de natal idade continuar no

patamar de 1958, o aumento será de 86milhões de pessoas.

Praticamente toda essa quantidade afluirá para as regiões me-

tropolitanas. A maior parte do aumento se deverá, é claro, às pró-

prias metrópoles, porque elas não mais atraem pessoas, como há

pouco. Elas se tomaram provedoras de pessoas.

O aumento pode ser dividido com os subúrbios , os semi-su-

búrbios e os novos e apagados bolsões intermediários, que se

espraiam a partir de zonas urbanas centrais monótonas, onde pre-

dominam as densidades intermediárias, que têm baixa vitalidade.

Podemos também aproveitar esse crescimento da área metro-

politana e, pelo menos com parte dele , começar a desenvolver os

distritos atualmente inadequados, que sobrevivem com densida-

des intermediárias - desenvolvê-los até o ponto em que essas con-

centrações de pessoas (junto com outras condições que geram

diversidade) possam manter uma vida urbana que tenha qualida-

de e vitalidade.

Nossa dificuldade não é mais alojar, nas regiões metropolita-

nas, uma população densa e evitar os estragos causados pelas

doenças, pelo saneamento deficiente e pelo trabalho infantil. É

anacrônico continuar pensando nesses termos. Hoje, nossa difi-

culdade maior é alojar as pessoas nas regiões metropoli tanas e

evitar os estragos causados pelos bairros apáticos e desassistidos.

A solução não pode estar nas tentat ivas vãs de planejar novas

cidades de pequeno porte ou vilas auto-suficientes, por toda a re-

Como defrontamos a real idade das populações de cidades

grandes e de metrópoles, enormidades que serão ainda maiores,

defrontamos igualmente a tarefa de desenvolver sabiamente uma

vida urbana genuína e aumentar a força da economia urbana. É

tol ice tentar negar o fato de que nós, norte-americanos, somos

seres urbanos vivendo numa economia urbana - e , no processo

de negação, perder também todas as zonas rurais verdadeiras das

regiões metropolitanas, como tem acontecido constantemente à

razão de 1.200 hectares por dia nos últimos dez anos.

No entanto, a razão não reina no mundo, e não reinará neces-

sariamente aqui. O dogma irracional de que áreas saudáveis,

como o North End, em Boston, de alta densidade, têm de ser de

cortiços ou têm de ser ruins, por terem alta densidade, não ter ia

sido aceito pelos urbanistas modernos, como foi, se não houves-

se duas maneiras fundamentalmente diferentes de encarar a ques-

tão das altas concentrações populacionais - e se essas duas ma-

neiras não fossem, no fundo, emocionais.

Pode-se ver como um mal inevitável- ainda que necessário -

o fato de as pessoas se reunirem em concentrações de tamanho e

densidade típicos de cidades grandes. Trata-se de uma suposição

comum: os seres humanos são encantadores em pequenos gru-

pos e nocivos em grandes grupos. Dado esse ponto de vista, se-

gue-se que as concentrações de pessoas deveriam ser fisicamen-

te reduzidas a qualquer preço: diminuindo a quantidade em si,

tanto quanto seja possível, e , além disso, a lmejando a ilusão dos

gramados de subúrbio e da placidez das cidadezinhas. Segue-se

que a exuberante variedade inerente à grande quantidade de pes-

soas, fortemente concentradas, deveria ser desprezada, escondi-

244 MORTE E V ID A D E G R AN DE S C ID AD ES

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da, forjada à imagem da variedade mais rala, mais manejável, ou

da homogeneidade inequívoca, freqüentemente presentes em

populações menos numerosas. Segue-se que essas criaturas des-

norteantes - tanta gente amontoada - deveriam ser seleciona-

das e enfurnadas tão recatada e silenciosamente quanto possível,

como galinhas numa granja moderna.

Por outro lado, as pessoas reunidas em concentrações de ta-

manho e densidade típ icos de cidades grandes podem ser consi-

deradas um bem positivo, na crença de que são desejáveis fontes

12 ALGUNS MITOS

SOBRE A DIVERSIDADE

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de imensa vitalidade e por representarem, num espaço geográfi-

co pequeno, uma enorme e exuberante riqueza de diferenças e

opções, sendo muitas dessas diferenças singulares e imprevisí-

veis e acima de tudo valiosas só por exis tirem. Dado esse ponto

de vista, segue-se que a presença de grande quantidade de pes-

soas reunidas em cidades deveria não somente ser aceita de bra-

ços abertos como um fato concreto. Elas deveriam ser conside-

radas um trunfo, e sua presença, comemorada: aumentando sua

concentração onde necessário para que a vida urbana floresces-

se, e além disso almejando uma vida pública nas ruas inequivo-

camente movimentadas e a acomodação e o encorajamento, eco-

nômico e visual, do máximo de variedade possível.

As formas de pensamento, não importa quão objetivas apa-

rentem ser, têm fundamentos e valores emocionais subjacentes.

O desenvolvimento do planejamento urbano e da política habita-

cional modernos fundamentou-se emocionalmente numa relu-

tância inflexível em reconhecer como desejáveis as concentra-

ções de pessoas nas cidades, e essa emoção negativa acerca das

concentrações urbanas contribuiu para o enfraquecimento inte-

lectual do planejamento urbano.

Não pode haver bem algum para as cidades ou para seu dese-

nho, seu planejamento, sua economia ou sua população na supo-

sição emocional de que uma grande densidade populacional é,

em si, indesejável. Do meu ponto de vis ta, é um trunfo. O objeti-

vo é promover a vida urbana da população urbana, abrigada, es-

peramos, sob concentrações bastante densas e bastante diversifi-

cadas para possib il itar- lhe uma oportunidade viável de desen-

volver a vida urbana.

 A mistura de usos é feia. Provoca congestionamento de trânsi-

to. Estimula usos nocivos.

Esses são alguns dos bichos-papões que fazem as cidades

combater a diversidade. Tais crenças ajudam a moldar as diretri-

zes do zoneamento urbano. Ajudaram a racionalizar a reurbani-

zação, transformando-a na coisa estéril, rígida e vazia que é. Atra-

palham o planejamento urbano, que poderia encorajar delibera-

damente a diversidade espontânea, propiciando as condições ne-

cessárias para seu crescimento.

As intrincadas combinações de usos diversos nas cidades não

são uma forma de caos. Ao contrário, representam uma forma de

organização complexa e altamente desenvolvida. Tudo o que foi

dito neste livro até agora tem como meta mostrar como funciona

esse ordenamento complexo de usos combinados.

Contudo, muito embora as combinações intrincadas de cons-

truções, usos e panoramas sejam necessárias para os dis tr itos

bem-sucedidos, será que a diversidade traz consigo, igualmente,

as desvantagens da má aparência, dos usos antagônicos e do con-

gestionamento que lhes são normalmente atribuídas pela doutri-

na e pela literatura do planejamento urbano?

Essas supostas desvantagens baseiam-se na imagem dos dis-

tritos malsucedidos, que não têm muita, mas pouca diversidade.

2 46 M ORT E E V ID A D E G RA ND ES CIDADES

do tem a sensação de não ter ido a lugar algum. O norte é igual

,

ao sul ou ao leste ou ao oeste. As vezes norte, sul, leste e oeste

são bem parecidos, como quando se está no terreno de um gran-

de proje to habitacional. É necessário haver diferenças - muitas

diferenças - aflorando em várias direções para não perdermos a

orientação. As perspectivas visuais inteiramente uniformes care-

cem desses avisos naturais de direção e movimento, ou os têm

em número insuficiente, e portanto são muito desnorteantes. Is-

so, sim, é uma espécie de caos.

CON DIÇ OE S P AR A A DI VERS IDADE U R BA NA 2 47

Elas evocam a imagem de áreas residenciais monótonas, dilapi-

dadas, pontilhadas com umas poucas empresas miseráveis, de-

pauperadas. Evocam a imagem de usos menos nobres do solo,

como ferros-velhos e pátios de carros usados. Evocam a imagem

de um comércio vulgar, esparso, repetitivo. Nenhuma dessas si-

tuações, no entanto, representa uma diversidade urbana emer-

gente. Ao contrário, elas representam precisamente a senilidade

que se abate sobre os bairros nos quais uma diversidade exube-

rante não pôde crescer e esvaiu-se com o tempo. Representam o

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Geralmente todos consideram esse tipo de monotonia opres-

sivo demais para servir de exemplo, exceto certos projetistas de

conjuntos habitacionais ou incorporadores imobiliários de visão

mais limitada.

Em vez disso, nos lugares em que os usos são realmente ho-

mogêneos, não raro descobrimos que distinções e diferenças pro-

positadas são engendradas em meio aos edificios. Mas essas di-

ferenças engendradas também ocasionam dificuldades estéticas.

Por faltarem diferenças naturais - aquelas que provêm de usos

genuinamente dessemelhantes - em meio aos edificios e seu en-

torno, esses artificios representam o mero desejo de

parecer

diferente.

Algumas das manifestações mais gritantes desse fenômeno

foram muito bem definidas, em 1952, por Douglas Haskell, edi-

tor da Architectural Forum, com o termo arquitetura kitsch . Os

melhores frutos da arquitetura kitsch podem ser vistos nos

estabelecimentos essencialmente homogêneos e padronizados

de beira de estrada: bancas de cachorro-quente em forma de pão

com salsicha, bancas de sorvete em forma de casquinhas de sor-

vete . Esses são exemplos de uma verdadeira mesmice que tenta,

por meio do exibicionismo, parecer singular e diferente de seus

vizinhos de comércio similares. Haskell destacou que o mesmo

afã de parecer especial (apesar de não ser especial) aparecia

também em construções mais sofisticadas: telhados esquisitos,

escadarias esquisitas, cores esquisitas, letreiros esquisitos, qual-

quer coisa esquisita.

Recentemente, Haskell notou indícios de exibicionismo simi-

lares aparecendo em estabelecimentos supostamente dignos.

que acontece aos semi-subúrbios que são engolidos pela cidade

mas não conseguem crescer e atuar economicamente como dis-

tritos bem-sucedidos.

A diversidade urbana emergente, do t ipo que é catalisada

pela associação de usos principais combinados, ruas freqüentes,

mistura de prédios de várias épocas e custos e forte concentra-

ção de usuários, não acarreta as desvantagens da diversidade co-

mumente presumida pela pseudociência do urbanismo. Pretendo

demonstrar agora por que ela faz isso e por que essas desvanta-

gens são fantasias que, como todas as fantasias levadas a sério,

interferem na forma de se abordar a realidade.

Examinemos, primeiro, a crença de que a diversidade é feia.

Sem dúvida, qualquer coisa que foi malfe ita tem má aparência.

Mas essa crença implica outra coisa . Implica que a diversidade

de usos urbanos se assemelha a uma bagunça; e também implica

que os lugares marcados pela homogeneidade de usos têm me-

lhor aparência ou são de todo modo mais suscetíveis a um trata-

mento aprazível ou esteticamente disciplinado. .

Porém, a homogeneidade ou grande semelhança de usos, na

realidade, apresenta problemas estéticos misteriosos.

Se se mostrar a uniformidade de usos francamente como é _

uniforme -, ela parecerá monótona. Superficialmente, essa mo-

notonia pode ser encarada como uma espécie de ordem, embora

enfadonha. Do ponto de vis ta estét ico, porém, ela lamentavel-

mente traz consigo uma desorganização profunda: a desorgani-

zação de não implicar direção alguma. Você anda por lugares mar-

cados pela monotonia e pela mesmice, mas, apesar de ter anda-

••

248 MORTE E V IDA DE GRANDES CIDADES

denciais refinados, e pelas mesmas razões. A Avenida Euclid,

em Cleveland, que muitos críticos costumavam considerar uma

das mais belas avenidas norte-americanas (era, naquela época,

essencialmente uma avenida de subúrbio com residências enor-

mes e excelentes em terrenos enormes e excelentes), acaba de

ser fulminada, com razão, pelo crít ico Richard A. Miller na Ar-

chitectural Forum, como uma das vias públicas mais horrorosas

e desordenadas. Ao ser completamente convertida em via para

uso urbano, a Avenida Euclid converteu-se

à

homogeneidade:

outra vez prédios de escritórios, e outra vez o caos das diferen-

COND IÇO ES PARA A D IVER S ID AD E U R BA NA 249

E apareceram mesmo: em edificios de escritórios, shopping

centers, centros administrativos, aeroportos. Eugene Raskin, pro-

fessor de arquitetura na Universidade de Colúmbia, tratou do

mesmo fenômeno no ensaio On the Nature of Variety [Da

natureza da variedade], na edição de verão de 1960 da Co/umbia

University Forum. A variação arquitetônica genuína, destacou

Raskin, não consiste no uso de cores e texturas diferentes.

Não pode ser usando formas contrastantes? [perguntou ele]. Uma

visi ta a um grande shopping center (lembrei-me do Cross County

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ças gritantes mas superficiais.

A homogeneidade de usos apresenta um dilema estét ico ine-

vitável: a homogeneidade precisa se mostrar homogênea e ser

claramente monótona? Ou deve tentar não se mostrar homogê-

nea e adotar diferenças que chamem a atenção mas sej am ab-

surdas e caóticas? No âmbito urbano, esse é o velho e conhe-

cido problema do zoneamento com preocupações estét icas dos

subúrbios homogêneos: o zoneamento deve exigir uma apa-

rência semelhante ou deve proibir a mesmice? Se proibir a

mesmice, qual seria o limite do que é dessemelhante demais

nos projetos?

Em qualquer área urbana cujos usos sejam funcionalmente

homogêneos, surge um dilema estét ico para a cidade, e mais in-

tenso que nos subúrbios, porque os edificios sobressaem muito

mais 'no cenário geral das cidades.

É

um dilema ridículo para as

cidades, e não há uma solução decente para ele .

Por outro lado, a' d iversidade de usos, ainda que tra tada com

desleixo, oferece a possibilidade decente de apresentar um con-

teúdo com diferenças autênticas. Portanto, essas diferenças po-

dem ser visualmente interessantes e estimulantes, sem hipocri-

sia, exibicionismo ou inovações surradas.

Em Nova York, a Quinta Avenida, entre a Rua 40 e a Rua 59,

tem uma tremenda diversidade de lojas, edificios de bancos, edi-

ficios de escritórios, igrejas e instituições grandes e pequenas. A

arquitetura expressa essas diferenças de uso, e as diferenças re-

sultantes da variação de idade dos edificios, das diferenças de

tecnologia e do gosto da época. Mas a Quinta Avenida não pare-

Shopping Center, no Westchester County, Nova York, mas faça sua

própria escolha) proporciona um bom exemplo: apesar de lajes, tor-

res, ambientes circulares e escadas suspensas pulularem e abunda-

rem por toda a parte, o efeito é de uma uniformidade ater radora,

como os supl ícios do inferno. Você pode ser cutucado com inst ru-

mentos diferentes, mas tudo dói (. .. ).

Quando construímos, digamos, uma área de negócios em que

todos (ou pra ticamente todos) se preocupam em ganhar a vida, ou

uma área residencial em que todos estão mergulhados nos afazeres

domésticos, ou uma área comercial dedicada à circulação de di-

nheiro e produtos - em resumo, onde a atividade humana padrão

possui apenas um elemento, é impossível para a arquitetura realizar

uma variação convincente - convincente em relação ao que se co-

nhece da diversidade humana. O projetista pode variar a cor, a tex-

tura e a forma até que seus recursos de desenho caiam no exagero,

provando mais uma vez que a arte é o único meio em que a mentira

não vence.

Quanto maior a homogeneidade de usos numa rua ou num

bairro, maior a tentação de ser diferente da única maneira que res-

tou para tal. O Wilshire Boulevard, em Los Angeles, é um exem-

plo de tentativas sucessivas de produzir distinções superficiais,

dispostas, ao longo de vários quilômetros de prédios de escritó-

rios intrinsecamente monótonos.

Mas Los Angeles não é a única cidade que nos proporciona

paisagens desse tipo. São Francisco, apesar de todo o seu desdém

por esses elementos de Los Angeles, tem uma nova periferia

muito parecida com isso, com shopping centers e conjuntos resi-

250

MORTE EVIDA DEGRANDES CIDADES

CONDIÇOES PARA A DIVERSIDADE URBANA

251

ce desordenada, fragmentada ou destruída' . Os contrastes e as

diferenças arquitetônicas da Quinta Avenida provêm principal-

mente de diferenças de natureza. O todo se sustenta surpreen-

dentemente bem, sem monotonia alguma.

O novo trecho de escritórios da Park Avenue, em Nova York,

é muito mais padronizado do que a Quinta Avenida. A Park Ave-

nue leva vantagem por ter em meio aos novos edificios de escri-

tórios vários que são obras-primas da arquitetura moderna'. Mas

a homogeneidade de usos e a homogeneidade de idades ajudam

oeste, um prédio de apartamentos de catorze andares; uma igre-

ja; sete casas de três andares; uma casa de cinco andares; treze

casas de quatro andares; um edificio de nove andares; cinco ca-

sas de quatro andares, com um restaurante e um bar no térreo;

um edificio de apartamentos de cinco andares; um cemitério pe-

queno e um edificio de apartamentos de seis andares com um

restaurante no térreo; do lado norte, a inda no sentido oeste, há

uma igreja ; uma casa de quatro andares ocupada por uma escola

maternal; um prédio de apartamentos de nove andares; três casas

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esteticamente a Park Avenue? Ao contrário, os blocos de escritó-

r ios dessa avenida aparentam desordem, e, muito mais do que na

Quinta Avenida, o efeito geral é a perseverança na arquitetura do

caos, recoberta de tédio.

Há muitos casos em que a diversidade urbana inclui o uso re-

s idencial com bons resultados. A área da Rittenhouse Square,

em Filadélfia, Telegraph HiU, em São Francisco, trechos do North

End, em Boston, são alguns exemplos. Pequenos grupos de edi-

ficios residenciais podem ser semelhantes ou até iguais um ao

outro sem impor um véu de monotonia, desde que o conjunto não

ocupe mais que uma quadra curta e não se repi ta logo em segui-

da. Nesse caso, vemos o agrupamento como uma unidade e o en-

xergamos diferentemente, em natureza e aparência, de qualquer

que seja o uso ou o tipo de moradia vizinhos.

A diversidade de usos, associada à diversidade de idade, pode

às vezes contaminar-se da monotonia t ípica das quadras muito

longas - e, mais uma vez, sem necessidade de exibicionismo,

porque existem diferenças substanciais concretas. Um exemplo

desse tipo de diversidade é a Rua Onze, entre a Quinta e a Sexta

Avenida, em Nova York, t ida como nobre e interessante para um

passeio. Ao longo de seu lado sul, ela apresenta, indo no sentido

de cinco andares; um prédio de apartamentos de seis andares;

um prédio de apartamentos de oito andares; cinco casas de qua-

tro andares; uma república de estudantes de seis andares; dois

prédios de apartamentos de cinco andares; outro prédio de apar-

tamentos de idade bem diferente; um prédio de apartamentos de

nove andares; uma nova seção da Nova Escola de Pesquisa So-

cial, com biblioteca no térreo e vista da rua para o pátio interno;

uma casa de quatro andares; um prédio de apartamentos de cin-

co andares com restaurante no térreo; uma lavanderia de um pa-

vimento com aspecto desle ixado e vulgar; um prédio de aparta-

mentos de três andares com uma confeitaria e uma banca dejor-

nais no térreo . Apesar de quase todos esses prédios serem resi-

denciais, eles dão espaço a dez outros usos. Mesmo os edificios

inteiramente residenciais abrangem várias épocas de tecnologias

e gostos, vários modos e custos de vida . Exibem uma profusão

fantástica de diferenças prosaicas e modestas: andares térreos

com alturas variadas e soluções diversas para as entradas e o

acesso pela calçada. Isso tudo se deve ao fato de que os prédios

são realmente de tipos e idades diferentes. O efeito é ao mesmo

tempo sereno e despojado.

Efeitos visuais ainda mais interessantes, e mais uma vez sem

necessidade de exibicionismo ou outras esquisitices, podem pro-

vir e de fato provêm - de misturas de tipos de construções urba-

nas bem mais radicais que as da Rua Onze - mais radicais no

sentido de constituírem diferenças naturais mais radicais. A

maioria dos marcos de referência e de atração visual nas cidades

- cuja quantidade deve ser sempre grande, nunca pequena - de-

ve-se ao contraste provocado por um uso radicalmente diferente

1. Sua úni ca mácula flagrante e também elemento de desestabi li zação é um conjunto de carta-

zes de rua na esquina nordeste da Rua42. A intenção dos cartazes parece boa porque, neste

momento. eles exortam ingenuamente a m ultidão de t ranseuntes a rezar em f amília, a econo-

mizar p ar a épocas de vacas magras e a combater a delinqüência. Sua capacidade de convenci-

mento é questionável. Sua capacidade de obstrui r avista da Quinta Avenida a partir d a b ibliote-

ca é inquestionável.

2. Lever House, Seagram, Pepsi-Cola, Union C ar bide.

2 52 M OR TE E V ID A D E G R AN DES CIDADE S

COND IÇ6 ES PARA A DIVER SIDADE U RBANA 253

daquilo que o rodeia, e portanto com uma aparência especial

toda sua e uma localização feliz, que realcem sua diferença natu-

ral.

É

disso, claro, que Peets estava falando (veja o Capítulo 8)

ao defender a idéia de que os prédios monumentais ou nobres

fossem colocados dentro da matriz da cidade, em lugar de serem

separados e segregados em cortes de honra , em meio a outros

vizinhos intrinsecamente semelhantes.

Além do mais, não se devem menosprezar as outras diferen-

tados vulgares e enganosos. Ou podem ter como meta áreas de

grande diversidade e, uma vez que as diferenças reais já estão ex-

pressas, obter resultados que, na pior das hipóteses, são pelo

menos interessantes e, na melhor das hipóteses, encantadores.

Como harmonizar visualmente a diversidade urbana, como

respeitar sua liberdade ao mostrar visualmente que se trata de

uma forma de ordem, é o problema estético fundamental das ci-

dades. Discorrerei sobre ele no Capítulo 19 deste livro. Por ora,

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ças radicais de elementos mais modestos das combinações urba-

nas por causa da aparência. Elas também podem dar-nos o pra-

zer do contraste, do movimento e do senso de direção, sem su-

perficialismos forçados: as oficinas que acabam misturadas a

residências; os prédios de fábricas; a galeria de arte ao lado do

mercado que me encanta toda vez que vou comprar peixe; a

pomposa mercearia de gastronomia em outro ponto da cidade,

contrastando e coexistindo pacificamente com um bar alegre, do

tipo que atrai novos imigrantes irlandeses que estão

à

procura de

emprego.

As diferenças genuínas no panorama arquitetônico urbano

expressam, como diz Raskin com muita propriedade,

a questão é esta: a diversidade urbana não é intrinsecamente feia.

Isso é um erro de julgamento, e dos mais banais. Porém, a falta

de diversidade é, por um lado, naturalmente deprimente e, por

outro, grosseiramente caótica.

C · · · ) o entrelaçamento de manifestações

humanas.

Há muita

gente fazendo coisas diferentes, commotivos diferentes e com fins

diferentes, e a arquitetura reflete e expressa essa diferença, que

é

mais de conteúdo que somente de forma. Por serem humanas, as

pessoas são o que mais nos interessa. Na arquitetura, tanto quanto

na literatura e no teatro, é a riqueza da diversidade humana que dá

vitalidade e colorido aomeio humano C ).

Comrelação ao risco da monotonia C ) a maior falha das nos-

sas leis de zoneamento encontra-se no fato depermitirem que toda

umaárea seja reservada para umúnico uso.

Será que a diversidade provoca congestionamentos de trânsito?

O congestionamento de trânsito é provocado por veículos,

não pelas pessoas em si.

Nos lugares em que poucas pessoas se instalaram, em vez de

uma grande concentração, delas, ou nos lugares em que a com-

binação de usos diferentes não é muito freqüente, qualquer pon-

to de atração particular realmente ocasiona congestionamento

de trânsito. Tais lugares, como clínicas, shopping centers ou ci-

nemas, provocam concentração do trânsito - e, além disso, pro-

vocam tráfego pesado nas ruas que levam a eles e deles saem.

Até mesmo uma escola primária pode causar congestionamen-

tos de trânsito num meio desses, porque não se pode deixar de

levar as crianças à escola. A inexistência de uma diversidade

ampla e concentrada pode levar as pessoas a andarem de auto-

móvel por praticamente qualquer motivo. O espaço que as ruas

e os estacionamentos requerem faz com que tudo fique ainda

mais espalhado e provoca um uso ainda mais intenso de auto-

móveis.

Isso é tolerável quando a população se encontra muito espa-

lhada. Mas, nos lugares em que a concentração populacional é

alta ou contínua, é uma situação intolerável, que acaba com todos

os outros valores e todos os outros aspectos da comodidade.

Em áreas urbanas diversificadas e densas, as pessoas ainda

caminham, atividade que é impossível em subúrbios e na maioria

Ao buscar uma organização visual , as c idades podem esco-

lher entre três alternativas amplas, duas das quais são irrealizá-

veis e uma, promissora. Podem ter como meta áreas com homo-

geneidade que se mostrem homogêneas e obter resultados depri-

mentes , desconcertantes. Podem ter como meta áreas com ho-

mogeneidade que tentem não parecer homogêneas e obter resul-

2 54 M O RT E E V ID A D E G R AN D ES C ID AD ES

C O N D IÇ O E S P A RA A D I VE R SI D AD E U R B AN A 2 5 5

das áreas apagadas. Quanto mais variada e concentrada for a di-

versidade de determinada área, maior a oportunidade para cami-

nhar. Até as pessoas que vão de carro ou de transporte público a

uma área viva e diversificada caminham ao chegar lá.

natural, brotariam neles exatamente os ferros-velhos e os pátios

de carros usados.

O problema representado pelos ferros-velhos é mais profundo

do que os Combatentes da Praga conseguem perceber. Não

adianta nada gritar: Tirem isso daí Aqui não é lugar para eles

O problema é cult ivar no distrito um ambiente econômico que

tome os usos vitai s do solo mais lucrativos e racionais. Se isso

não for fei to , o espaço pode até ser usado por ferros-velhos, que

afinal têm alguma utilidade. Fora isso, a possibilidade de suces-

Será verdade que a diversidade urbana estimula usos nocivos?

Será prejudicial permitir que todas as modalidades de uso (ou

quase todas) estejam presentes em determinada área?

Para examinar isso, precisamos examinar vários t ipos dife-

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so de qualquer coisa é praticamente nula, e aí se incluem os usos

públicos, como parques ou pátios de escola, que fracassam ca-

tastroficamente exatamente nos locais onde o meio econômico é

muito pobre para as atividades que dependem do magnetismo e

da vitalidade das redondezas. Em síntese, não se soluciona o

problema siÍnbolizado pelos ferros-velhos temendo a diversida-

de ou sua extinção, mas sim formando e cultivando um ambiente

econômico fértil para a diversidade.

Há uma segunda categoria de usos que urbanis tas e planeja-

dores costumam considerar nociva, ainda mais quando tais usos

estão misturados a áreas residencia is. Essa categoria abrange

bares, teatros, clínicas, negócios e fábricas. Essa categoria não é

nociva; os argumentos de que esses usos devem ser controlados

com firmeza advêm dos efeitos que eles provocam nos subúr-

bios e em áreas apagadas, monótonas e inerentemente perigosas,

e não de seus efeitos em distritos urbanos movimentados.

Pinceladas superficiais de usos não-residenciais não trazem

beneficio algum para as áreas apagadas e podem até ser prejudi-

ciais, uma vez que essas áreas não estão preparadas para l idar

com desconhecidos - e também, pelo mesmo motivo, para pro-

tegê-los. Mais uma vez, esse problema resulta de uma diversida-

de muito tênue em meio à monotonia e às trevas reinantes.

Nos distri tos movimentados, onde se catal isou uma diversi-

dade abundante, esses usos não provocam mal algum. São indu-

bitavelmente necessários, seja por sua contribuição direta para a

segurança, para o contato público e a interação deusos, seja por-

que ajudam a sustentar a outra diversidade que recebe esses efei-

tos diretos.

I

rentes de usos - alguns dos quais são realmente prejudic iais, ao

passo que outros costumam ser considerados prejudiciais, mas

não o são.

O grupo dos usos menos nobres, do qual os ferros-velhos são

exemplo, não contr ibui em nada para o bem-estar geral , a a trat i-

vidade do distrito ou a concentração de pessoas. Sem dar retomo

algum, esses usos exigem uma exorbitância de espaço - e exi-

gem demais da tolerância estética. Os pátios de carros usados

inserem-se nessa categoria. Da mesma maneira , os prédios que

foram abandonados ou são muito pouco usados.

Provavelmente todo o mundo (menos, talvez , os proprie tá-

rios dessas coisas) concorda em que essa categoria de uso é

prejudicial.

Porém, não necessariamente os ferros-velhos e similares são

uma ameaça implícita à diversidade urbana. Os distritos próspe-

ros nunca têm ferros-velhos, mas não é

por causa disso

que tais

distritos são prósperos.

É

justamente o inverso. Eles não têm fer-

ros-velhos porque são prósperos.

Os usos econômicos decadentes e que ocupam muito espaço,

como ferros-velhos e pátios de carros usados, espalham-se como

ervas daninhas nos locais que já são mal explorados e mal suee-

didos. Brotam nos locais que têm trânsito de pedestres reduzido,

pouco magnetismo na vizinhança e nenhuma concorrência acir-

rada pelo lugar . O local natural para eles são as áreas cinzentas e

a perifer ia decadente dos centros urbanos, onde é baixa a chama

da diversidade e da vital idade. Se se abrisse mão da vigilância

sobre as esplanadas dos conjuntos residenciais e todos esses lu-

gares mortos e de pouco uso encontrassem seu nível econômico

256

MO RTE E V ID A DE GR AND ES CID AD ES

CO N DI Ç OE S P AR A A DIVERSID AD E U R B AN A 257

OS USOSndustriais despertam outro fantasma: chaminés fu-

megantes e cinzas em suspensão.

É

claro que chaminés fume-

gantes e cinzas em suspensão são nocivas, mas isso não quer di-

zer que atividades fabris intensas na cidade (a maioria das quais

não orig ina tais subprodutos desagradáveis) ou outros usos de

trabalho devam ser afastados das residências. Na verdade, a idéia

de que a fumaça ou os gases devem ser combatidos pelo zonea-

mento e por categorizações do solo é rid ícula. O ar não tem o

mínimo conhecimento dos l imites das zonas urbanas. Só têm

sentido as regulamentações que visem especificamente a fuma-

garam dinheiro na restauração dos casarões, nem para os ho-

mens de negócios que têm investido dinheiro na abertura ou na

reforma de escritórios, nem para o construtor que está erguendo

um edifício de apartamentos de alta renda'.

A idéia esquisi ta de que a morte deveria ser um elemento im-

perceptível ou impronunciável na vida urbana foi claramente

discutida em Boston, há um século, quando urbanistas defende-

ram a remoção dos antigos cemi térios das igrejas do centro da

cidade. Nascido em Boston, Thomas Bridgman, cujo ponto de

vista prevaleceu, disse o seguinte: O local de sepultamento dos

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ça e o mau cheiro.

No círculo dos urbanistas e planejadores urbanos, o grande

tabu do uso do solo costumava ser a fábrica de cola. Você gos-

tar ia de ter uma fábrica de cola no seu bairro? - esse era o bor-

dão. Não sei por que uma fábrica de cola, a não ser que talvez,

naquela época, cola lembrasse cavalos mortos e peixes em de-

composição, e a simples referência a ela fizesse as pessoas dis-

tintas sent irem arrepios e pararem de raciocinar. Havia uma

fábrica de cola perto de nossa casa. Era um prédio de tijolos pe-

queno e atraente, um dos locais do quarte irão que pareciam mais

limpos.

Hoje, a fábrica de cola foi substituída por um bicho-papão di-

ferente, a  funerária , apresentada como exemplo máximo dos

horrores que se insinuam pelos bairros que não dispõem de rígi-

do controle de usos. Ainda assim, as casas mortuárias, ou fune-

rárias, como as chamamos na cidade, parecem não causar mal

algum. Talvez nos bairros diversificados, cheios de vitalidade,

em meio

à

vida, a lembrança da morte não seja tão pesada quan-

to deve ser nas escassas ruas de um subúrbio. Curiosamente, os

defensores dos cont roles rígidos de usos, os quais se opõem tão

firmemente

à

morte nas cidades, parecem opor-se com idêntica

firmeza ao surgimento da vida nas cidades.

Uma das quadras do Greenwich Village que está desenvol-

vendo espontaneamente sua atratividade, sua participatividade e

seu valor econômico, tem neste momento, coincidentemente,

uma funerária, que lá está há quatro anos. Isso é condenável? Ob-

viamente, e la não foi um empecilho para as famílias que empre-

mortos, na medida em que exerça alguma influência, é ao lado

da retidão e da religião ( ... ). Sua voz é a da reprimenda eterna à

leviandade e ao pecado. 

O único indício do suposto mal provocado pelas funerárias

nas cidades que consegui encontrar está em

The Selection of

Retail Locations

[A escolha de locais para o varejo], de Richard

Nelson. Nelson comprova com dados esta tíst icos que as pessoas

que vão a velórios nas funerárias raramente fazem compras' an-

tes ou depois. Portanto, o varejo não tem vantagem alguma em

estar próximo de funerárias.

Nos bairros de baixa renda das grandes cidades, como o East

Harlem, em Nova York, as casas funerárias podem atuar, e atuam,

como um fator positivo e construtivo. Isso porque uma funerária

pressupõe uma pessoa empreendedora. As pessoas empreende-

doras, como farmacêuticos, advogados, dentistas e clérigos, re-

presentam nesses bairros qualidades, como dignidade, ambição

e boa instrução. Normalmente são figuras públicas bastante co-

nhecidas, a tivas na vida social do local. Elas também entram na

vida política com muita freqüência.

Assim como boa parte do planejamento urbano ortodoxo, o

suposto mal causado por este e aquele uso foi reconhecido como

3. Essa mesma quadra, ali ás , é s empre mencionada nas redondezas com o um a ótima rua resi-

dencial, e sem dúvida o uso residencial é predominante, tanto de f ato como na aparência. Mas

veja o que mais ela tem em m ei o às residências, no momento em que escrevo: a funerária, é

claro, uma imobiliária, duas lavanderias, um antiquário, uma f irma de f inanciamento e poupan-

ça, trê s c onsultórios médicos, uma igreja e uma sinagoga (juntas), um pequeno teatro atrás da

igreja e da sinagoga, um cabeleireiro, um conservatório de canto, cinco restaurantes e um edifl-

cio misteri os o q ue pode ser qualquer coisa, de escola a ofi ci na artesanal e centro de reabilita-

ção, mas não diz o que é.

2 58 M OR TE E V ID A D E G R AN DE S C ID AD ES

C ON DIÇ OE S P AR A A D IV ER SID AD E U RB AN A 2 59

tal sem que ninguém perguntasse: Por que é nocivo? Como o

mal se manifesta e que mal é esse? Duvido que haja algum uso

econômico legal (e alguns poucos ilegais) que consiga prejudi-

car tanto um distrito quanto a falta de uma diversidade abundan-

te. Não há praga urbana que seja tão devastadora quanto a Gran-

de Praga da Monotonia.

Dito isso, destaco uma última categoria de usos, os quais, a

menos que sua localização seja regulamentada, são prejudiciais

para os distritos com rica diversidade. Dá para contá- los nos de-

maior, digamos, que a de uma residência comum. Literalmente, e

também figuradamente, os usos se combinam. A rua possui uma

imagem coerente e essencialmente ordenada, além de variada.

Porém, numa rua como essa, um uso que ocupe uma fachada

muito ampla parece provocar a explosão da rua - faz a rua desin-

tegrar-se.

Esse problema não tem relação alguma com o uso do solo, na

acepção comum que o termo tem no zoneamento. Um restauran-

te ou uma lanchonete, uma mercearia, uma marcenaria, uma grá-

f ica pequena, por exemplo, encaixam-se bem numa rua daque-

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dos de uma mão: estacionamentos, garagens de caminhões lon-

gos ou pesados, postos de gasolina, painéis publicitários gigan-

tescos' e empreendimentos inadequados não exatamente por sua

natureza, mas porque

em certas ruas

suas dimensões não são

apropriadas.

Todos esses cinco usos problemáticos têm condições de ser

suficientemente lucrativos (ao contrário dos ferros-velhos) para

manter , e tentar encontrar , um espaço em áreas diversificadas e

vivas. Porém, ao mesmo tempo eles geralmente empobrecem as

ruas. Provocam nelas desorganização visual nas ruas e são tão

dominantes, que é dificil- às vezes impossível- destacar-se mui-

to qualquer senso contrário de organização, tanto no uso quanto

na aparência da rua.

Os efeitos visuais dos quatro primeiros usos problemáticos

são facilmente perceptíveis e analisados com freqüência. O pro-

blema são os usos em si, devido ao tipo que constituem.

Todavia, o quinto uso problemático que mencionei é diferen-

te, porque nesse caso o problema é o da dimensão do uso, e não

do tipo. Em certas ruas, qualquer empreendimento que ocupe

um terreno de frente desproporcionalmente ampla desagrega e

empobrece a rua, embora exatamente o mesmo tipo de uso, em

escala menor, não seja um mal mas, sim, uma vantagem,

Por exemplo, muitas ruas residenciais das cidades abrigam,

além das moradias , todos os tipos de usos comerciais e de servi-

ços, e estes se encaixam bem desde que sua fachada não seja

4. G er al me nt e, m as n em s em pr e. O q ue s eri a d a T im es S qu are n ão fo sse m o s e no rm es c arta ze s

public itár ios?

las. Mas exatamente o mesmo tipo de uso- por exemplo, um café-

restaurante enorme, um supermercado, uma fábrica de móveis

ou uma gráfica grande - pode causar poluição visual (e às vezes

auditiva) por ser deproporção diferente.

Ruas assim necessitam de regulamentações que as protejam

do dano que uma diversificação completamente permissiva sem

dúvida lhes traria. Mas as regulamentações necessárias não se

referem ao tipo de uso. São necessárias regulamentações sobre a

extensão do terreno permitida para determinado uso.

Trata-se de um problema urbano tão óbvio e corr iqueiro, que

se é levado a pensar que sua solução deveria fazer parte das

preocupações da teoria do zoneamento. No entanto, nem a pró-

pria exis tência do problema é reconhecida na teoria do zonea-

mento. Neste momento, a Comissão de Planejamento Urbano de

Nova York está realizando sessões sobre um novo código de zo-

neamento, progressista e bastante atualizado. Organizações e pes-

soas interessadas foram convidadas a analisar, entre outras coi-

sas , as categorias de zonas propostas em que as ruas seinserem e

a recomendar alterações de zonas se isso for necessário. Há

várias dezenas de categorias de uso, cada uma delas diferenciada

com o maior cuidado e ponderação - e todas elas não têm rela-

ção com os problemas de uso da vida real em distritos distintos.

O que se pode recomendar, quando a própria teoria que em-

basa tal legislação de zoneamento - não meramente seu detalha-

mento - precisa ser revisada e repensada radicalmente? Essa tris-

te circunstância deu lugar a muitas sessões absurdas de planeja-

mento estratégico, por exemplo, nas organizações privadas do

260 MORTE E V IDA DE GRANDES CIDADES

C ON DiÇÕ ES PA RA A D IV ER SI DA DE U RB AN A 2 61

Greenwich Village. Muitas travessas residenciais admiradas e

atraentes possuem uma combinação esparsa de estabelecimen-

tos de pequeno porte. Eles geralmente estão presentes com per-

missão do zoneamento residencial, ou então violando-o. Todos

aprovam sua presença, e sua serventia não se discute . A discus-

são gira mais em tomo do tipo de categoria no novo zoneamento

que será menos contraditór io com as necessidades da vida real.

Os inconvenientes de cada uma das categorias apresentadas são

formidáveis. O argumento contra a categoria comercial para essas

ruas é que, embora se vão permitir os usos vantajosos em pe-

preende que tenham perdido, porque sua causa era confusa . Al-

guns dos líderes da contenda, que eram proprietár ios ou mora-

vam em imóveis cujo andar térreo tinha usos não-residenciais

em pequena escala, estavam em desacordo, efetivo ou solidário,

corp a classificação exclusivamente residencial - da mesma for-

ma que a grande padaria. No entanto, precisamente os vários

usos não-residenciais em pequena escala, que vinham aumen-

tando, eram responsáveis por boa parte da atrat iv idade e do va-

lor crescentes da rua para uso residencial. Eles são um beneficio,

e os moradores da rua reconhecem isso, porque tomam a rua

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quena escala, o uso comercial também será admitido, sem men-

ção

à

escala; por exemplo, os grandes supermercados serão per-

mitidos, e os moradores têm receio de que eles fragmentem ruas

desse tipo e dest ruam seu perfil residencial - o que é verdade.

Se se estipular uma categoria exclusivamente residencia l, se-

gundo esse ponto de vista, os pequenos estabelecimentos se in-

filtrarão, desrespeitando o zoneamento, como fizeram no pas-

sado. O argumento contra a categoria residencia l é que alguém

pode realmente levá-Ia a sério e obrigar a aplicação da lei de zo-

neamento contra os usos de pequeno porte não previstos Os

cidadãos íntegros, que se preocupam genuinamente com os in-

teresses da vizinhança, participam das reuniões ponderadamen-

te, maquinando que regulamentação possibili tará as brechas

mais benéficas.

O dilema é premente e real. Uma rua do Greenwich Village,

por exemplo, insurgiu-se há pouco tempo precisamente contra

um problema desses, causado por uma ação que corria na Co-

missão de Padrões e Recursos. Uma padaria dessa rua, que fora

um estabelecimento pequeno de varejo mas cresceu vertiginosa-

mente e se transformou em um grande atacadista, estava reivin-

dicando a abertura de uma exceção no zoneamento para ampliar

consideravelmente suas instalações (apoderando-se do estabele-

cimento vizinho, antes ocupado por uma lavanderia atacadista).

A rua, que havia muito era classificada como residencial, estava

promovendo várias reformas, e muitos dos proprietários e inqui-

l inos, com orgulho e preocupação por ela cada vez maiores , de-

cidiram lutar contra o pedido de exceção. Perderam. Não sur-

a traente e segura. Entre eles há uma imobiliár ia, uma pequena

editora, uma livraria, um restaurante, uma loja de molduras, uma

marcenaria, uma loja que vende pôsteres e gravuras antigas, uma

doceria, uma lavanderia, duas mercearias e um pequeno teatro

amador.

Perguntei a um dos líderes da disputa contra o pedido de ex-

ceção à padaria, homem que é também o maior proprietário de

prédios residenciais reformados da rua, qual alternativa, em sua

opinião , seria mais prejudicial para o valor de seus imóveis: a

eliminação gradual de todos os usos não-residenciais da rua

ou a ampliação da padaria . A primeira alternativa seria mais de-

sastrosa, respondeu ele, acrescentando:

 É

claro que uma opção

como essa é absurda

É

absurda. Uma rua dessas é um quebra-cabeça e uma ano-

malia segundo a teoria tradicional do zoneamento do uso do solo.

É um quebra-cabeça até mesmo como problema de zoneamento

comercial. À medida que o zoneamento comercial se tomou mais

 progressista (i.e. , uma cópia das condições de um subúrbio) ,

ele passou a enfatizar as distinções entre comércio local de bens

de uso cotidiano , comércio distrital e coisas assim. O código

atualizado de Nova York também contém tudo isso. Mas como é

que se classifica uma rua como essa da padaria? Ela dispõe de

um comércio tipicamente local (como a lavanderia e a confeita-

ria) e de atrativos para todo o bairro (como o marceneiro, o

emoldurador de quadros, o café) e para toda a cidade (como o

teatro, galerias de arte, loja de pôsteres). É uma mistura singu-

lar, mas o tipo de diversidade inclassificável que ela representa

2 62 M O RT E E V ID A D E G R AN D ES C ID A DE S

C O N D IÇ O E S P A RA A D I VE R SI D AD E U R B A NA 2 6 3

não é, no mínimo, singular. Todas as áreas urbanas diversificadas

e vivas, cheias de vitalidade e surpresas, existem num mundo

diferente daquele do comércio de subúrbio.

De modo algum todas as ruas da cidade precisam de um zo-

neamento sobre a proporção das frentes das lojas . Muitas ruas,

particularmente aquelas em que predominam edificios grandes

e largos, seja para uso residencial , seja para outro uso ou para

ambos, podem alojar empresas com fachada extensa e misturá-

Ias às pequenas sem aparentar desin tegração ou desagregação e

sem serem oprimidas funcionalmente por determinado uso do

nhecido provoca o questionamento e desestabiliza aquilo que é fa-

miliar, ele faz a razão elevar-se à sua significação máxima (... ).

Não existe melhor comprovação desse fato do que as tentativas de

todos os dirigentes totalitários de manter o desconhecido afastado

de seus assuntos (... ). Corta-se a cidade grande em pedaços, cada

um dos quais é analisado, expurgado e homogeneizado. O mistério

do desconhecido e o raciocínio crítico dos homens são extirpados

da cidade.

Essa é uma noção familiar a todos os que prezam e usufruem

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solo. A Quinta Avenida tem essa combinação do grande com o

pequeno. Porém, é urgente o zoneamento sobre as proporções

dos usos nas ruas que necessi tam dele , não só pelo próprio bem

delas , mas porque a existência de ruas com caracter ís ticas con-

sistentes aumenta a diversidade de perspectivas visíveis da pró-

pria cidade.

Raskin, em seu ensaio sobre a variedade, afirmou que a maior

falha do zoneamento urbano épermitir a monotonia. Acho que é

isso mesmo. Talvez a segunda grande falha seja que o zonea-

mento ignora aproporção do uso, nos locais em que é importan-

te considerá-Ia, ou a confunde com o tipo de uso, e isso leva, por

um lado, à desagregação visual (e às vezes funcional ) das ruas

ou, por outro lado, a tentat ivas indiscr iminadas de separar e se-

gregar certos t ipos de uso independentemente de suas propor-

ções ou efeitos práticos. A própria diversidade, portanto, é des-

necessariamente suprimida, em lugar de se suprimir uma mani-

festação restrita dela, infeliz em certos locais.

as cidades, embora sempre se manifeste de forma mais branda.

Kate Simon, autora de New YorkPlaces and Pleasures [Lugares

e prazeres de Nova York], diz praticamente a mesma coisa quan-

do afirma: Levem seus filhos ao Grant's [restaurante] (... ) pode

ser que eles topem com pessoas que talvez nunca encontrem em

outro lugar e de que talvez jamais se esqueçam.

A própria existência de publ icações turí sti cas de cidades,

com ênfase na descoberta , no curioso, no diferente, é um exem-

plo da afirmação do Professor Tillich. As cidades têm capacidade

de oferecer algo a todos, mas sóporque e quando são criadas por

todos.

Não resta dúvida de que as áreas urbanas com diversidade

emergente geram usos desconhecidos e imprevisíveis e perspec-

tivas visuais peculiares. Mas não se trata de um inconveniente da

diversidade. Trata-se da questão essencial, ou parte dela. Isso está

de acordo com uma das atribuições das cidades.

Paul

J.

Tillich, professor de teologia em Harvard, observa:

Porsua natureza, a metrópole oferece o que só asviagens seriam

capazes de apresentar, qual seja, o desconhecido. Já que o desco-