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UNIVERSIDADE FEDERAL DO PARANÁ SETOR DE CIÊNCIAS HUMANAS, LETRAS E ARTES CURSO DE LICENCIATURA E BACHARELADO EM HISTÓRIA IVYAN KAROLINE MILDEMBERG CORREA DEPOIMENTOS E MEMÓRIAS: ANA VINOCUR, ENRIQUE BENKEL E ERNESTO KROCH APÓS AUSCHWITZ CURITIBA 2006

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UNIVERSIDADE FEDERAL DO PARANÁ SETOR DE CIÊNCIAS HUMANAS, LETRAS E ARTES

CURSO DE LICENCIATURA E BACHARELADO EM HISTÓRIA

IVYAN KAROLINE MILDEMBERG CORREA

DEPOIMENTOS E MEMÓRIAS: ANA VINOCUR, ENRIQUE BENKEL E ERNESTO

KROCH APÓS AUSCHWITZ

CURITIBA 2006

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IVYAN KAROLINE MILDEMBERG CORREA

DEPOIMENTOS E MEMÓRIAS: ANA VINOCUR, ENRIQUE BENKEL E ERNESTO

KROCH APÓS AUSCHWITZ

CURITIBA

2006

Trabalho realizado para a disciplina de Estágio Supervisionado em Pesquisa Histórica, do curso de Licenciatura e Bacharelado em História, da Universidade Federal do Paraná. Orientadora: Profª. Drª. Marionilde Dias Brepohl de Magalhães.

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SUMÁRIO RESUMO ..................................................................................................................................iii 1 INTRODUÇÃO.......................................................................................................................1

1.1 APRESENTAÇÃO: TEMA, OBJETIVOS, HIPÓTESES E BIBLIOGRAFIA SELECIONADA ....................................................................................................................1 1.2 METODOLOGIA.............................................................................................................3 1.3 AS FONTES.....................................................................................................................6 1.4 DIVISÃO DOS CAPÍTULOS..........................................................................................7

2 ANA VINOCUR .....................................................................................................................9 2.1 OS LIVROS E SEUS CONTEXTOS HISTÓRICOS....................................................10 2.2 AS MOTIVAÇÕES E OS OBJETIVOS DE VINOCUR COM A ESCRITA DOS LIVROS................................................................................................................................12 2.3 FORMAS DE ESCRITA................................................................................................14 2.4 CARACTERÍSTICA DAS OBRAS...............................................................................17

2.4.1 Detalhes e Emotividade ...........................................................................................17 2.4.2 Religiosidade ...........................................................................................................19

2.5 AS LEMBRANÇAS.......................................................................................................21 2.5.1 Memórias Modificadas ............................................................................................21 2.5.2 A Culpa....................................................................................................................23

2.6 O URUGUAI..................................................................................................................24 2.6.1 Contexto Histórico e Políticas Migratórias .............................................................25 2.6.2 Ana Vinocur: a Luta pela Integração.......................................................................26

3 ENRIQUE BENKEL.............................................................................................................29 3.1 MOTIVAÇÕES E OBJETIVOS PARA A ESCRITA DO LIVRO...............................29

3.1.1 Resistências e Fugas ................................................................................................29 3.1.2 A Tatuagem .............................................................................................................32

3.2 ESTRUTURA DA OBRA..............................................................................................34 3.3 CARACTERÍSTICAS DA OBRA.................................................................................35 3.4 DESTAQUES E OMISSÕES.........................................................................................40

3.4.1 Desejo de Vingança .................................................................................................40 3.4.2 O Exército Norte-Americano...................................................................................41 3.4.3 Os apátridas e a criação do Estado de Israel............................................................42 3.4.4 O Uruguai ................................................................................................................44

4 ERNESTO KROCH ..............................................................................................................46 4.1 UMA BREVE BIOGRAFIA DE ERNESTO KROCH..................................................47 4.2 MOTIVAÇÕES E OBJETIVOS DE ERNESTO KROCH AO ESCREVER SUAS MEMÓRIAS.........................................................................................................................48 4.3 FORMA DE ESCRITA E CARACTERÍSTICAS DA OBRA ......................................49

4.3.1 A Relação Entre “Ser Judeu” e a Prisão no Campo de Concentração.....................51 4.3.2 O Movimento Sionista e às Organizações Judaicas ................................................54

4.4 O URUGUAI..................................................................................................................56 4.4.1 A Receptividade e a Dificuldade de Adaptação ......................................................56 4.4.2 A Ditadura Uruguaia ...............................................................................................58

5 CONCLUSÃO.......................................................................................................................66 6 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ..................................................................................74

6.1 OBRAS CONSULTADAS ............................................................................................74 6.2 FONTES SELECIONADAS..........................................................................................75

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RESUMO Os campos de concentração e extermínio nazistas são alvos de muitas pesquisas e debates, tanto nos meios acadêmicos como entre a população em geral. É um tema que causa repulsa e indignação dada à violência e ao próprio absurdo deste acontecimento. Milhares de pessoas foram presas nos campos de concentração nacional-socialistas durante a Segunda Guerra Mundial, como Testemunhas de Jeová, homossexuais, doentes físicos e mentais, membros de partidos de esquerda (como comunistas), ciganos, eslavos e judeus. Neste trabalho, me propus analisar as diferentes formas de lembrar de três sobreviventes judeus dos guetos e campos de concentração, sendo eles Ana Vinocur, com suas obras Sin Título: Testemonio de una sobrevivente del holocausto judío e Volver a vivir después de Auschwitz, Enrique Benkel em B-10279: Sobrevivente de Auschwitz e Ernesto Kroch com o livro Exílio en la pátria, la pátria en el exílio. Além da perseguição e prisão em campos de concentração e extermínio, estas três testemunhas oculares têm em comum o fato terem se refugiado no Uruguai após saírem da Alemanha. O objetivo foi analisar como cada uma delas transmitiu suas memórias acerca do massacre cometido pelos nazistas aos judeus, levando em consideração os mecanismos utilizados pela memória no momento de registrar os acontecimentos vividos, assim como os elementos socio-culturais que os fizeram relatar de forma tão distinta o mesmo fato histórico. Foi constatado, que as motivações e os objetivos com as obras, a situação presente de cada uma das testemunhas, a proximidade que tiveram em relação aos acontecimentos, suas crenças políticas, religiosas e ideológicas, assim como a maneira encontrada por suas memórias para evitar a dor de reviver os episódios passados, seja através do silêncio ou da importância dada a lembranças menos dolorosas, foram em grande medida responsáveis pela maneira como Vinocur, Benkel e Kroch memorizaram, cristalizaram e relataram suas experiências nos livros.

Palavras-chave: Memória, Anti-Semitismo, Campos de Concentração.

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1 INTRODUÇÃO

1.1 APRESENTAÇÃO: TEMA, OBJETIVOS, HIPÓTESES E BIBLIOGRAFIA SELECIONADA

Um dos acontecimentos mais marcantes do século XX foi, sem sombra de dúvida, a

morte de milhares de judeus nos campos de concentração e extermínio durante o período em

que Hitler esteve no poder.

Muitas das provas materiais dos extermínios em massa ocorridos nestes locais, foram

destruídas pelos nazistas quando começaram a perder a Segunda Guerra Mundial. Em 1944,

por exemplo, eles explodiram as câmaras de gás e os fornos crematórios de Auschwitz, mas as

ruínas acabam comprovando suas existências. Entretanto, apesar de possuirmos muitos

vestígios materiais a respeito dos Lager1, as provas mais contundentes são as memórias

daqueles que vivenciaram os acontecimentos, sejam como vítimas ou agressores.

Por isto, resolvi desenvolver este trabalho monográfico com base na memória de três

sobreviventes judeus da perseguição e extermínio nazista, sendo eles Ana Vinocur, Enrique

Benkel e Ernesto Kroch. Meu objetivo é analisar as diferentes formas de lembrar destas três

testemunhas oculares que, além de serem judeus e terem sido presos em campos de

concentração, possuem em comum o fato de, após saírem da Alemanha, refugiarem-se no

Uruguai.

Outro aspecto muito importante, é que ao contrário de muitos sobreviventes que

preferiram silenciar, não falar mais sobre esta fase de suas vidas, devido à dor, à vergonha ou

à humilhação, Vinocur, Benkel e Kroch resolveram relatar suas memórias em livros. Assim,

de acordo com estes relatos procurei identificar como cada um deles recordou e transmitiu

suas vivências como vítimas do anti-semitismo alemão.

A análise dos motivos que fizeram com que estas pessoas resolvessem publicar suas

memórias, seus objetivos com os livros, os episódios mais e menos destacados nas narrativas

e o estilo de escrita das obras, permitiram-me levantar algumas hipóteses sobre os fatores que

fazem com que os autores sejam, ao mesmo tempo, tão semelhantes e tão diferentes entre si.

Assim, notei que a personalidade de cada um dos sobreviventes analisados, suas bases

familiares e religiosas, seus pontos de vista a respeito do massacre judeu nos campos de

concentração e o que pretendem legitimar e validar no presente, são alguns dos fatores que e

1 Campos de Concentração.

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demonstram o que os levou a construírem suas memórias da maneira como foi exposta nos

livros.

Entretanto, para conseguir investigar cada um destes aspectos, foi de fundamental

importância a compreensão da política anti-semita nazista e o funcionamento dos campos de

concentração e extermínio, assim como o entendimento dos mecanismos presentes na

memória humana no momento de registrar e recordar os acontecimentos vividos. Para isto,

algumas obras e artigos foram consultados, dentre eles, o livro de Maria Luiza Tucci

Carneiro, Holocausto: crime contra a humanidade2. Este foi de grande valia, pois menciona

os acontecimentos ligados à política anti-semita alemã desde a ascensão de Hitler ao poder até

o final da Segunda Guerra Mundial, detalhando todas as etapas da perseguição e do

extermínio nazista contra os judeus.

As obras de Primo Levi contribuíram tanto para a compreensão do funcionamento

dos Lager – até pelo fato de também serem testemunhos –, quanto para as questões relativas à

memória das vítimas durante e depois do conflito mundial. Os livros Tabela Periódica3, É isto

um homem?4 e A Trégua5, respectivamente, trazem um relato detalhado sobre a vida de Levi

antes da década de 1930, durante a perseguição e a prisão em Auschwitz e sobre as

dificuldades que enfrentou para voltar à Itália após a queda do regime nazista. Já em Os

Afogados e Os Sobreviventes6, o autor discute como a violência, o medo e a desumanização

empreendidos nos campos de concentração, influenciaram na construção da memória e,

conseqüentemente, na transmissão das lembranças deste período pelos sobreviventes.

Assim como esta última obra de Levi, o livro Memória e Sociedade: Lembrança de

Velhos7, de Ecléa Bosi, cooperou para a reflexão dos mecanismos utilizados pela memória

humana no momento de relembrar os acontecimentos passados, sejam eles bons ou ruins. Os

artigos de Michael Pollak - Memória, Esquecimento, Silêncio8 -, Myriam Moraes Lins de

Barros – Memória e Família9 – e Antonio César de Almeida Santos – Fontes Orais:

2 CARNEIRO, M. L. T. Holocausto. Crime contra a humanidade. Ática, 2000, 96 p. 3 LEVI, Primo.Tabela Periódica. Relume, 1994. 4 Idem. É isto um homem? Rio de Janeiro: Rocco, 1988, 175 p. 5 Idem. A Trégua. Rio de Janeiro: Schwarcz, 1997, 359 p. 6 Idem. Os afogados e os sobreviventes. Os delitos, os castigos, as penas, as impunidades. Rio de Janeiro: Paz

e Terra, 1990, 126 p. 7 BOSI, E. Memória e Sociedade: lembrança de velhos. São Paulo: Companhia das Letras, 1994. 8 POLLAK, M. Memória, Esquecimento, Silêncio. Estudos Históricos, Rio de Janeiro, vol. 2, n. 3, 1989, p. 3-15. 9 BARROS, M. M. L. de. Memória e Família. Estudos Históricos, Rio de Janeiro, v. 2, n. 3, 1989, p. 29-42.

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Testemunhos, Trajetórias de Vida e História10 – também contribuíram e me deram base para

analisar a forma como Benkel, Vinocur e Kroch registraram e transmitiram suas lembranças

sobre o período da perseguição e do extermínio nazista.

1.2 METODOLOGIA

Como já mencionado, as provas mais contundentes sobre os campos de concentração

são constituídas pelas memórias dos sobreviventes. Memórias estas que foram se apagando ao

longo dos anos, mudadas pela imaginação ou suprimidas pela dor da recordação. É, portanto,

a partir da memória que os relatos de judeus sobre o extermínio nazista foram construídos e,

por isto, foi baseada nela que analisei os livros de Ana Vinocur, Enrique Benkel e Ernesto

Kroch.

É muito interessante pesquisar as memórias, pois são vestígios, fragmentos, que

relatam a história do ponto de vista daqueles que presenciaram os fatos. Porém, sabemos que

a memória humana é um poderoso instrumento, embora extremamente falaz. As recordações

não só tendem a se apagar com o passar dos anos, como muitas vezes se modificam

incorporando elementos estranhos à realidade vivida. Mesmo que o fato tenha ocorrido

recentemente, nunca duas testemunhas o relatam de maneira igual, mesmo ambas não tendo a

mínima intenção de deturpar os acontecimentos.

Existem, também, alguns mecanismos que falsificam a memória em condições

excepcionais, como os traumas, a interferência de recordações “concorrentes”, estados

anormais de consciência, repressões, recalques, dentre outros.

Porém, mesmo em condições normais, a memória vai se ofuscando com o tempo. É

verdade que a lembrança freqüente do fato mantém a recordação viva, mas também faz com

que o relato aperfeiçoe-se, ganhe novas formas, cores, modifique-se. Muitas vezes, a

recordação de um trauma é deformada para evitar a dor, como nos diz Primo Levi: “(...) quem

foi ferido tende a cancelar a recordação para não renovar a dor; quem feriu expulsa a

recordação até as camadas profundas para dela se livrar, para atenuar seu sentimento de

culpa”11.

10 SANTOS, Antonio Cesar de Almeida. Fontes orais: testemunhos de vida e história. Comunicação apresentada à Mesa Redonda, A produção historiográfica e as fontes orais, no Evento comemorativo ao Sesquicentenário do Arquivo público do Paraná, em Curitiba, em abril de 2005. 11 LEVI, Primo. Op. Cit. 1990, p. 10.

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Os sobreviventes de guerras ou de outras experiências traumáticas, como os judeus

sobreviventes do massacre nazista, tendem a filtrar inconscientemente suas recordações. Eles

preferem mudá-las, deter-se nos momentos de alívio, evitando os episódios mais dolorosos.

As recordações que causam grande dor não são trazidas de bom grado pela memória, e por

isto tendem a se perder ao longo do tempo.

No caso dos sobreviventes dos campos de extermínio ainda há outro fator: o da

culpa. Muitos dos que sobreviveram aos campos de concentração conseguiram isto “traindo”

seus conterrâneos, ou seja, colaborando com os nazistas. Isto faz com que eles sintam

vergonha de relembrar o que aconteceu, pois sobreviveram às custas de inúmeras vidas.

Assim sendo, suas memórias são modificadas, esquecidas, apagadas, como uma forma de

proteção à dor que estas lembranças causam.

Tão importante como o esquecimento, a vergonha ou o não querer lembrar, é o

porquê recordar. Segundo o sociólogo Halbwachs, “se lembramos, é porque os outros, a

situação presente, nos fazem lembrar: ‘O maior número de nossas lembranças nos vem

quando nossos pais, nossos amigos, ou outros homens, no-las provocam’”12. A memória é na

verdade construída pelos materiais que possuímos a nossa disposição no presente, nos valores

e nas representações que movem nossa atual consciência.

Por mais viva e presente que pareça a recordação dos campos de concentração para

os sobreviventes, não será a mesma imagem que eles presenciaram, porque eles mudaram,

suas percepções, idéias, valores, enfim, suas vidas se alteraram. “O simples fato de lembrar o

passado, no presente, exclui a identidade entre as imagens de um e de outro, e propõe a sua

diferença em termos de ponto de vista”13.

Quando se lê um mesmo livro duas vezes, percebe-se na segunda leitura fatos que na

primeira não tinham relevância. Desta mesma maneira acontece com nossas recordações.

Cada vez que nos lembramos de algo, percebemos, ou nos atemos a fatos que talvez na época

vivida não possuíssem grande importância. Dependendo do motivo que nos faz lembrar de

determinado acontecimento, acabamos dando a ele a entonação, o enfoque, que temos e nos é

relevante no presente. Por isto, não revivemos o que já passou, mas sim refazemos a

experiência vivida.

Assim, os sobreviventes judeus refazem as suas memórias segundo aquilo que eles

querem transmitir às pessoas. Não quero dizer com isto que eles inventam “histórias” que não

12 Apud. BOSI, Ecléa. Op. Cit. 1994, p. 54-55. 13 Id., ibid. p. 55.

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aconteceram, embora isto possa ocorrer, mas sim que podem dar aos acontecimentos

destaques e relevâncias maiores do que na verdade possuíram no passado.

Como Goethe já observava, “quando queremos lembrar o que aconteceu nos

primeiros tempos da infância, confundimos muitas vezes o que se ouviu dizer aos outros com

as próprias lembranças...”14. Assim, não podemos entender a memória somente do ponto de

vista pessoal, mas temos que entendê-la como fenômeno social.

Outro fator de suma importância para a compreensão da memória dos Lager, é o que

os sobreviventes querem passar com seus relatos, ou seja, qual a justificação, a reinterpretação

do passado que os fará serem ouvidos e os dará credibilidade no presente. Para que qualquer

grupo possua credibilidade em seus relatos, é muito importante que haja coerência entre os

discursos emitidos por este grupo. Como Michael Pollak relata, “o que está em jogo na

memória é também o sentido da identidade individual e do grupo”15.

Há uma grande preocupação com a escolha de testemunhas lúcidas e confiáveis aos

olhos da sociedade para que os relatos não caiam no descrédito. Assim, ocorre de certa forma

um controle da memória, que também é feita através dos monumentos, como bibliotecas,

museus, estátuas, entre outros. Com relação ao massacre judeu, percebemos que o Yad

Vashem, famoso Instituto de Comemoração dos Mártires e dos Heróis do Holocausto, possui

esta função de guardar e manter viva a história dos horrores vividos pelos judeus nos campos

de concentração. A cópia do manuscrito original de Sin Título, um dos livros de Ana Vinocur

utilizados nesta pesquisa, foi colocada neste famoso Instituto onde se encontram as fontes

mais valiosas conhecidas mundialmente sobre o massacre dos judeus na Segunda Guerra

Mundial.

Percebe-se então, que os relatos de testemunhas oculares não fornecem somente

informações sobre o acontecimento histórico em questão, mas também sobre a maneira como

cada pessoa vivenciou e qual o significado que determinados episódios possuem para elas no

momento em que irão evocá-los.

Por isto, todas estas questões relativas à memória humana foram levadas em

consideração no momento em que analisei os relatos destes três sobreviventes, sendo de suma

importância para o entendimento de como eles organizaram suas lembranças acerca do

extermínio judeu nos campos de concentração nazistas.

14 Apud. BOSI, Ecléa. Op. Cit. 1994, p. 59. 15 POLLAK, Michael. Op. Cit. 1989, p. 10-11.

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1.3 AS FONTES

Para a realização deste trabalho, utilizei como fonte os livros em que Vinocur,

Benkel e Kroch expõem suas experiências sobre o período de dominação nazista na

Alemanha, sendo eles: SinTítulo. Testimonio de una sobrevivente del holocausto judío16 e

Volver a vivir después de Auschwitz17, de Ana Vinocur; B-10279. Sobrevivente de

Auschwitz18, de Enrique Benkel; e Pátria en el exílio, exílio en la pátria: recuerdos de

Europa e Latino-América19, de Ernesto Kroch.

Ana Vinocur nasceu no dia 25 de setembro de 1926 em Lodz, na Polônia. É

encaminhada junto com sua família em 1944 ao campo de concentração de Auschwitz, sendo

libertada um ano depois. Desde criança sempre gostou de cantar, sendo que na década de

1960 resolve gravar seu primeiro disco, tendo como compositor seu irmão Benkel. A maioria

das letras de suas canções apresenta como tema principal o sofrimento judeu nos campos de

extermínio nazistas.

Em 1972 publica seu primeiro livro, Sin Título, em Montevidéu, no Uruguai. Este

livro foi premiado pelo Ministério da Educação e Cultura, sendo um best-seller no Uruguai e

no México. No ano de 1999, publica outro importante livro, agora não mais relatando suas

experiências em Auschwitz, mas como foi reconstruir sua vida à sombra das recordações do

período em que passou neste campo de concentração. Esta obra intitulada “Volver a vivir

después de Auschwitz” – ampliação de um outro livro seu, Luces y Sombras después de

Auschwitz – teve a introdução escrita pelo ministro da educação e cultura do Uruguai desta

época, Yamandú Fau, sendo também publicada por este Ministério. Vale dizer que a autora

faleceu no dia sete de janeiro deste ano (2006).

O segundo é Enrique Benkel, irmão de Vinocur, nascido no ano de 1925, também em

Lodz, na Polônia. Junto com sua irmã e seus pais, vai para o campo de concentração de

Auschwitz em 1944. Passando por diversos campos de concentração e extermínio, é libertado

no ano de 1945, reencontrando Ana Vinocur em 1947, na cidade de Montevidéu.

16 VINOCUR, Ana. SinTítulo. Testimonio de una sobrevivente del holocausto judío. Montevidéu: Polo Ltda, 2002. 17 Idem. Volver a vivir después de Auschwitz. Montevidéu: Ministerio de Educación y Cultura, 1999. 18 BENKEL, Enrique. B-10279. Sobrevivente de Auschwitz. Montevidéu: Medina, 1986. 19 KROCH, Ernesto. Pátria en el exílio, exílio em la pátria: recuerdos de Europa e Latino-América. Montevidéu: Banda Oriental, 2003.

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Ainda na década de 1940 começa a compor músicas, escrevendo-as até hoje.

Entretanto, será somente em 1986, estimulado por sua irmã e seus filhos, que Benkel resolve

publicar pela editora Medina, no Uruguai, o livro analisado neste trabalho.

Por fim, analisei a obra de Ernesto Kroch, em que ele narra as experiências relativas

aos seus dois exílios, o primeiro em 1938 quando foi perseguido pelos nazistas e o segundo

em 1982, quando voltou para a Alemanha na intenção de escapar da perseguição da ditadura

uruguaia.

Kroch nasceu na cidade de Breslau, na Polônia, mudando-se anos depois para a

Alemanha, onde permanece até ser expulso do país pelos nazistas. Desde sua adolescência

começou a se interessar por política, sendo um conhecedor dos escritos de Marx e Engels. Foi

preso pela Gestapo aos 17 anos de idade e enviado para o campo de concentração, acusado de

“preparativos para a alta traição”, sendo libertado no ano de 1937 com a condição de que

deixasse o país em dez dias.

A escolha destes autores se deu pelo fato de serem judeus, terem sido presos em

campos de concentração, após saírem da Alemanha mudarem-se para o Uruguai e neste país

escreverem suas memórias. Porém, mesmo tendo todos estes aspectos comuns, cada um

recordará deste período de uma maneira distinta, sendo exatamente nestas diferentes formas

de lembrar que minha pesquisa se pautou.

1.4 DIVISÃO DOS CAPÍTULOS

Para a compreensão das diferenças na forma de memorização de cada um dos

sobreviventes analisados, procurei identificar em seus relatos os aspectos que dão indícios dos

motivos que os levaram a transmitir suas memórias da maneira como fizeram. Em cada um

dos capítulos destaquei as motivações e os objetivos dos autores ao publicarem seus livros,

como as memórias foram escritas, quais os episódios mais e menos destacados por eles em

seus relatos, quais as influências – religiosas, familiares, ideológicas, políticas – mais

presentes em suas memórias que acabam norteando a forma como eles relembram do passado,

e qual a importância do Uruguai nas narrativas, ou seja, como cada um deles vai mencionar o

período em que viveram neste país.

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No primeiro capítulo analisei estes aspectos dentro das memórias de Ana Vinocur,

em seus livros SinTítulo. Testimonio de una sobrevivente del holocausto judío e Volver a vivir

después de Auschwitz. O segundo capítulo foi destinado para o exame do relato de Enrique

Benkel, em seu livro B-10279. Sobrevivente de Auschwitz. E o terceiro capítulo se pautará em

Pátria en el exílio, exílio en la pátria: recuerdos de Europa e Latino-América, de Ernesto

Kroch.

Vale ressaltar, que diferentemente das memórias de Benkel e Vinocur que se pautam

na perseguição e no massacre judeu nos campos de concentração, Ernesto Kroch desenvolverá

sua narrativa expondo suas atividades políticas durante o nazismo na Alemanha e depois no

Uruguai, principalmente durante ao período da ditadura militar neste país. Assim, apesar do

livro trazer inúmeras informações acerca da militância política comunista do autor no

Uruguai, ative-me nos aspectos mais relevantes a respeito dos motivos que fizeram com que

ele transmitisse suas recordações priorizando sua resistência aos regimes fascistas e

ditatoriais, em detrimento de sua prisão no Lager e ao próprio fato de ser judeu.

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2 ANA VINOCUR

Por mais que duas pessoas vivenciem os mesmos acontecimentos, nunca seus relatos

serão idênticos, pois existem vários fatores que acabam influenciando tanto a forma como é

assimilado o episódio vivido, quanto o que será cristalizado e transmitido, posteriormente,

pela memória.

Assim, analisando estes três autores – Ana Vinocur, Enrique Benkel e Ernesto Kroch

-, pude constatar que cada um deles, apesar de terem passado pela mesma experiência, ou

seja, a perseguição e o massacre nazista, narram suas memórias de forma muito particular. O

conteúdo dos relatos é muito semelhante, não havendo discrepância entre os discursos, porém

as diferenças estão nos enfoques, nos destaques dados por eles a determinados episódios em

detrimento de outros. Cada uma das obras possui uma seqüência diferenciada, uma forma de

narrar e de se posicionar frente aos acontecimentos passados, destacando aquilo que lhe é

relevante e o que se deseja transmitir. Por isto, eles se tornam ao mesmo tempo tão parecidos

e tão diferentes entre si.

Neste primeiro capítulo mostrarei os pontos mais relevantes dentro das obras de Ana

Vinocur, procurando entender os motivos que a fizeram transmitir suas memórias da maneira

que o fez, com seus destaques e omissões. Neste sentido, analisarei aquilo que mais

transparece em seus relatos, ou seja, as características que marcaram e nortearam toda a sua

narrativa.

Primeiramente, farei uma breve contextualização histórica sobre o período

contemplado e suas obras. Em seguida, pela importância dada pela autora às motivações e

objetivos de suas obras e considerando que sejam o ponto fundamental para se compreender

as demais características apresentadas, iniciarei minha análise mostrando o que a fez escrever

suas memórias. Na seqüência, ater-me-ei ao estilo de escrita do livro que, por sua vez, está

totalmente ligada ao que a autora pretende transmitir com seus relatos.

Além disto, não se pode esquecer que as características pessoais de Vinocur também

fornecem dados para a compreensão de como ela se posiciona frente a seu passado, por isto

contemplá-las-ei em seguida, destacando o grande detalhamento, a emotividade e a

religiosidade da autora, escolhidas entre outras tantas características por serem as mais

presentes nas obras.

Em seguida, apresentarei as questões ligadas ao ato de lembrar, mostrando alguns

elementos que possibilitam a identificação de possíveis modificações feitas por sua memória,

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seja pelo fato de estar recordando acontecimentos há muito tempo vividos, ou por serem

episódios que a fazem reviver sentimentos dolorosos, como a culpa.

Por fim, terminarei este capítulo com as considerações da autora sobre o Uruguai,

país que a acolheu e em que viveu até sua morte20, e do qual ela fala com tanto carinho nos

livros analisados.

Apesar destes não serem os únicos, são os aspectos que considerei mais relevantes

em suas obras e que me darão suporte para analisar e confrontar com as memórias de Enrique

Benkel e Ernesto Kroch, compreendendo as diferentes formas de lembrar de três

sobreviventes judeus do extermínio nazista.

2.1 OS LIVROS E SEUS CONTEXTOS HISTÓRICOS

Ana Vinocur em seu livro Sin Título: Testimonio de una sobrevivente del holocausto

judío, relata suas experiências e de sua família durante a perseguição nazista aos judeus,

começando pela criação do gueto de Lodz e terminando com a sua libertação no ano de 1945.

Vale a pena mencionar que a obra se pauta na segunda e terceira etapa da

perseguição judaica, como menciona Maria Luiza Tucci Carneiro em seu livro Holocausto:

crime contra a humanidade. Carneiro divide a perseguição aos judeus em três fases distintas,

sendo a primeira de 1933 a 1938, a segunda de 1938 a 1941 e a terceira de 1941 a 1945.

Na primeira instituíram-se as leis anti-semitas, destituindo os judeus de suas

atividades políticas, econômicas e sociais, com a intenção de “...reduzir os judeus alemães a

uma minoria não reconhecida na Alemanha, retirando-lhes todas as condições econômicas,

culturais e psicológicas de sobrevivência e expulsando-os do país como apátridas” 21. Vinocur

apenas menciona que sofreu discriminação na escola onde estudava, mas não se prende a

detalhes sobre este período da perseguição aos judeus, talvez até por ser criança nesta época,

não tendo portanto muita noção sobre o que estava acontecendo a sua volta. Além disto, vivia

com sua família na Polônia, ouvindo os comentários sobre as determinações de Hitler através

do que acontecia com seus pais e familiares.

Porém, percebe-se que a segunda fase marcou mais sua vida, pois a cidade onde

vivia tornou-se um gueto, modificando consideravelmente seus hábitos normais. Assim a

autora narra com detalhes como viveu durante este período, mostrando a dificuldade de se

adaptar e de entender as novas regras determinadas por Hitler aos judeus. Carneiro

20 Ana Vinocur faleceu no dia sete de janeiro de 2006. 21 CARNEIRO, M. L. T. Holocausto. Crime contra a humanidade. Ática, 2000, p. 36-37.

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exemplifica esta época dizendo que foi marcada pelo extermínio judaico devido ao trabalho

forçado e a eutanásia, onde houve grande proliferação dos guetos e dos campos de

concentração. Segundo ela, o objetivo dos nazistas era, “...num primeiro momento, impedi-los

de deixar a Alemanha para, em seguida, colocar em prática a ideologia eliminacionista”22.

A criação dos campos de extermínio inaugurou uma nova etapa da eliminação judia,

mostrando que o aparato nazista continuava a recrudescer seus métodos. Vinocur viveu

intensamente esta fase, sendo levada junto com sua mãe no ano de 1944 ao campo de

concentração e extermínio de Auschwitz e sendo transferida posteriormente ao campo de

Stutthof. A maior parte da obra revela memórias sobre seu confinamento nestes Lager23

nazistas, sendo aproximadamente um ano que, como será analisado posteriormente, deixou

marcas profundas em sua vida. Esta seria então a última fase, a Solução Final, onde o

principal objetivo era “reagrupar os judeus em todos lugares onde passassem a residir e, com

a colaboração dos governos locais, enviá-los aos campos de extermínio”24.

Assim sendo, o livro em questão relata as memórias de Ana Vinocur sobre o período

de 1938 a 1945, onde a perseguição e a evolução do aparato terrorista nazista eliminou

milhões de judeus em toda a Europa.

Já em sua outra obra, Volver a vivir después de Auschwitz, ela conta como foi sua

reinserção na sociedade após quatro anos e meio confinada no gueto de Lodz e um ano em

campos de concentração e extermínio. Além disto, relata sua ida ao Uruguai e sua volta à

Alemanha cinqüenta anos após o término da Segunda Guerra Mundial.

Vale a pena mencionar que, com o final da guerra, os sobreviventes judeus

procuraram retomar suas vidas, movimentando-se por toda a Europa na tentativa de encontrar

familiares ou rostos conhecidos. Muitos se refugiaram nos campos de deslocados, outros

ficaram por um longo tempo internados em hospitais na tentativa de restabelecer-se de

pneumonias, diarréia, tifo, e outras tantas doenças contraídas nos campos de concentração, e

há ainda aqueles que auxiliados pelas organizações internacionais judaicas, tentavam chegar à

Palestina.

Como possuía familiares no Uruguai, Ana Vinocur mudou-se para a América Latina

após sua saída do hospital de recuperação para os refugiados. Iniciou uma nova fase em sua

vida, porém, sem esquecer dos anos em que passou em poder dos nazistas.

22 Id., ibid. p. 37. 23 Campos de concentração. 24 Id., ibid. p. 37.

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Assim, a narrativa deste livro começa no ano de 1945, quando a autora é libertada do

Lager, e termina em 1997 após a viagem que ela e seu irmão Enrique Benkel fazem ao antigo

gueto de Lodz, local onde passaram a infância.

Dada a seqüência dos relatos, ou seja, as memórias de Vinocur de 1938 a 1997, será

analisado neste trabalho as duas obras em conjunto, considerando que o livro Volver a vivir

después de Auschwitz é continuação dos relatos de Sin Título.

2.2 AS MOTIVAÇÕES E OS OBJETIVOS DE VINOCUR COM A ESCRITA DOS LIVROS

Muito mais importante que analisar o conteúdo dos relatos, ou seja, as descrições de

como foi viver nos guetos e nos campos de concentração e extermínio - dado até a grande

similaridade dos testemunhos que raramente são contestados -, é entender o que levou a

alguns sobreviventes judeus a escreverem suas memórias, analisando suas motivações e

objetivos com as obras.

Ana Vinocur expressa claramente nos livros analisados o que a levou escrever,

mostrando que o fez por acreditar ser um dever de todo sobrevivente judeu:

“Siempre tuve presente que los que sobrevivimos a la hecatombe nazi tenemos el gran deber de narrar nuestra historia. Es un triste recuerdo o terrible pesadilla, pero que es necesario relatar para que las futuras generaciones no permitam que esto se repita jamás. Lo que voy a contar en este libro es verídico y está escrito con total sinceridade”25.

Nas primeiras décadas após a queda do regime hitlerista, ela procurou manter viva a

memória da perseguição nazista através da música, ou seja, gravando canções que se

pautavam nesta temática. Estas canções eram compostas por seu irmão Enrique Benkel e

cantadas por ela e, como Vinocur mesmo menciona, através delas “espresábamos nuestros

sentimientos respecto a todo lo sofrido”26.

Entretanto, quando os movimentos neonazistas e negacionistas começaram difundir-

se, ela sentiu a necessidade de escrever um livro contanto suas memórias relativas ao tempo

em que passou no gueto e nos campos de concentração:

“Así, durante casi 30 años me expresé a través de la música. Cuando los movimientos nazis, neo-nazis, y los negadores del Holocausto se hicieron sentir con gran fuerza, por medio de libros, charlas en universidades y campañas difamatorias a nivel mundial, comecé a sentir a necesidad imperiosa de

25 VINOCUR, Ana. Sin Título. Testimonio de una sobrevivente del holocausto judío. Montevidéu, 2002, p. 13. 26 VINOCUR, Ana. Volver a vivir después de Auschwitz. Montevidéu, 1999, p. 137.

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escribir mi historia vivida en el gueto, en los campos de concentración y en los barcos bombardeados en el mar Báltico”27.

A princípio, resolveu escrever para que seus filhos e sua descendência conhecessem

sua história. Entretanto, o professor de literatura de sua filha, Roger Mirza28, leu o que viria a

ser Sin Título, e a incentivou a publicá-lo para que o mundo também conhecesse suas

experiências.

O sucesso que este livro alcançou, sendo considerado um documento de extrema

importância29, foi um dos motivos que levaram Vinocur a publicar posteriormente Volver a

vivir después de Auschwitz, segundo relata Mirza no prólogo do mesmo.

Assim, percebe-se que estas motivações – principalmente o surgimento dos

movimentos neonazistas, revisionistas e negacionistas – levaram a autora a escrever suas

memórias com objetivos claros, mencionados em inúmeros momentos ao longo da narrativa

dos dois livros. O principal deles é a necessidade de que o mundo conheça o que aconteceu

nos Lager e não permita que um massacre como aquele venha acontecer novamente:

“¡Tendrán que tener siempre esta tremenda historia para que no se repita jamás! É necesario

que las futuras generaciones sepan defender, comprender y apreciar la palavra LIBERTAD.”30

Conhecendo suas motivações e objetivos, pode-se entender melhor a forma como a

autora desenvolve suas narrativas, assim como o conteúdo das obras, pois, como visto na

introdução, para recordarmos é necessário que alguém ou a situação presente faça com que as

lembranças venham à tona. Assim, a memória é construída e evocada pelos elementos que

possuímos no momento em que lembramos.

É isto que acontece nas obras de Ana Vinocur, ou seja, ela se viu diante de um

resgate da ideologia nazista, e isto a fez recordar do seu sofrimento e do de sua família

durante o período em que Hitler esteve no poder. Assim, a necessidade de que as pessoas

conheçam o que se passou com ela e com todos os judeus, procurando contribuir para que

uma nova onda de discriminação e massacres não ocorra, fez com que suas lembranças

emergissem.

Por isto, ao refazer esta experiência vivida, ela enfatiza determinados acontecimentos

a outros, ou seja, de acordo com estas motivações e objetivos é que a forma de escrita e o

conteúdo de suas obras foram desenvolvidos, como veremos nos tópicos seguintes.

27 VINOCUR, Ana. Op. Cit. 1999, p. 138. 28 Roger Mirza escreveu a introdução de Sin Título e o prólogo de Volver a vivir después de Auschwitz. 29 Sin Título foi incorporado a Coleção de Testemunhos e Memórias do Arquivo Yad Vashem, em Israel. 30 Id., ibid. p. 218.

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2.3 FORMAS DE ESCRITA

As duas obras de Vinocur são escritas de forma linear, respeitando, na maior parte do

tempo, as sucessões cronológicas dos acontecimentos narrados. Entretanto, apesar dos dois

livros serem memórias, ocorre uma diferença na forma em que eles são apresentados ao leitor.

Em Sin Título, a narrativa apresenta-se na forma “presente-passado”, sendo que

mesmo relatando fatos que ocorreram a pelo menos trinta e quatro anos atrás31, a autora

utiliza o presente como tempo verbal. Assim, em inúmeros momentos são mencionadas frases

como: “Hoy sentí hablar en casa de un tal Teodoro Herzl, no le di importância...”32, “En

este momento nos están llamando...”33, “Afuera está nevando...”34, “Estoy observando a mi

compañera de viaje...”35, sendo utilizadas constantemente palavras como “hoje”, “ontem”, e

verbos como “sinto”, “vejo”, “estamos”, dentre outros.

Isto é uma característica da forma de lembrar utilizada pela memória, como

menciona Massaud Moisés, “... a memória age como um presente no momento em que traz à

consciência seus registros e traços, e o tempo acaba sendo um eterno presente que dura, pois o

passado só existe quando presentificado pela memória, e o futuro ainda não existe”.36 O ato de

lembrar transforma o passado impresso na memória de Ana Vinocur em presente, tornando-o

real, na verdade, o passado só se torna real quando passa a ser lembrado, fazendo parte do

presente.

A escolha deste tempo verbal por parte da autora também pode ser visto como uma

forma de legitimação, uma espécie de “prova”, de que os acontecimentos relatados se deram

realmente da maneira como são lembrados. Entretanto, como já mencionado na introdução

deste trabalho, sabemos que os acontecimentos passados no momento de sua ocorrência são

diferentes daqueles recordados posteriormente. Pois além da memória ir se esvaecendo com o

passar dos anos, ela seleciona, separa, inclui e exclui fatos na hora em que as lembranças vêm

à tona, como forma de proteção à dor que elas causam ou mesmo como uma espécie de

ordenação e organização das recordações.

31 Seus relatos remontam ao ano de 1938 em diante, sendo que ela só irá escrever suas memórias no ano de 1972. 32 VINOCUR, Ana. Op. Cit. 2002, p. 99. (Grifo de responsabilidade da autora do trabalho). 33 Id., ibid. p. 114. (Grifo de responsabilidade da autora do trabalho). 34 Id., ibid. p. 172. (Grifo de responsabilidade da autora do trabalho). 35 Id., ibid. p. 80. (Grifo de responsabilidade da autora do trabalho). 36 MOISÉS, Massaud. A Criação Literária. São Paulo: Cultrix, p. 121.

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Em Volver a vivir después de Auschwitz, as idéias de Vinocur aparecem mais

amadurecidas, ou seja, o tom em que a narrativa é desenvolvida passa ao leitor a sensação de

que é realmente alguém experiente que está contando seus relatos, diferente do que ocorre em

Sin Título, onde se percebe as angustias e os questionamentos de uma pré-adolescente que se

vê deparada com uma situação totalmente nova e fora do comum.

Assim, nesta segunda obra a autora narra os fatos como se fosse um romance, não

utilizando a forma verbal do tempo presente, mas relatando os acontecimentos

detalhadamente e até recriando os diálogos que teve com alguns amigos. Esta transcrição dos

diálogos também pode ser entendida como uma forma da autora legitimar e ilustrar os fatos

que aconteceram pois, mesmo sabendo que suas lembranças foram modificadas ao longo dos

anos, fornece ao leitor a impressão de que ela lembra perfeitamente do que aconteceu décadas

atrás.

Vale mencionar que em nenhum momento ela diz ou dá a entender que não se

lembra muito bem de determinados acontecimentos, pelo contrário, tudo é narrado

detalhadamente como se tivesse acontecido há apenas algumas horas. Para exemplificar,

vejamos um diálogo que aparece logo no início da obra, entre Vinocur e sua amiga Ianka:

“ – Ianka ¿qué te parece si le pedimos al doctor que nos dé alta? En realidade estamos bastante recuperadas, ya no tenemos fiebre, aumentamos de peso y nos sentimos más fuertes si tomamos en cuenta que hace poco estábamos en campos de concentración.

– Estoy de acuerdo, pues aunque es imposible recuperar lo perdido, no podemos desperdiciar nuestro tiempo. No son seis años de nuestra mejor época, la adolescencia, sino la pérdida de nuestros familiares y de nuestros hogares – me contestó Ianka.

– Al menos no perdimos nuestra dignidad – repliqué – y lo más importante es que conservamos nuestro optimismo. Por el solo hecho de haber sobrevivido y llegar a ver a libertad, debemos dar gracias a Dios y vivir cada minuto en toda plenitud. En este hogar los días se van sin brilho, sin sentido; simplemente, se van.

– Si es – asintió mi amiga. – ¡Tenemos que salir de aquí donde sólo vemos gente quejándose o muriéndose! – De los campos nazis pasamos a ese hospital para enfermos graves, aunque nuestro estado era

mucho peor. – Tenemos que sentirnos libres para buscar a nuestros familiares y sólo dejando este sitio lo

conseguiremos, ¿no te parece? – Tienes razón – convino mi amiga -. Pero te olvidaste de algo muy importante: ¿cómo vamos a

llevar con nosotros lo más preciado que tenemos? – No había pensado en eso, pero se podrá resolver – le aseguré.”37

Como são memórias, Vinocur poderia ter usado o discurso indireto para

exemplificar suas conversas, tomando como exemplo o trecho acima, poderia apenas

mencionar que conversou com Ianka sobre a possibilidade de pedirem alta do hospital.

37 VINOCUR, Ana. Op. Cit. 1999, p. 15-16.

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Entretanto, ela lança mão do discurso direto, dando ao leitor a sensação de estar ouvindo

literalmente estes diálogos, reafirmando a veracidade dos acontecimentos.

A questão da legitimação, ou seja, da constante necessidade de Vinocur estar

comprovando que os fatos narrados por ela são realmente verídicos, não está presente

somente na forma de escrita da obra, mas também no seu conteúdo. Isto está estritamente

ligado às motivações e aos objetivos da autora em relação às obras, ou seja, que as pessoas

conheçam e não permitam que outro massacre como o cometido pelos nazistas venha a

acontecer. Para isto, ela precisa validar suas memórias, fazendo com que os leitores sintam

que, apesar dos anos, suas recordações ainda estão vivas e claras.

Outra característica muito importante de ser enfatizada é a passagem do “presente-

passado” para um “futuro-passado”, que acontece principalmente em Sin Título. Ou seja,

quando Vinocur está contando um determinado episódio, ela antecipa ao leitor o que irá

acontecer com ela, ou com a pessoa de quem está falando, futuramente.

Pode-se tomar como exemplo a narração relativa aos ditames de Jaime Rumkowiski,

eleito pelos nazistas para ser o dirigente dos judeus no gueto de Lodz. Após terminar de

mencionar algumas determinações e inovações implantadas por ele no gueto, como imprimir

selos e papel moeda com seu retrato, ela coloca o que o futuro destinou a ele entre parênteses,

dizendo:

“(El día de nuestra deportación a los campos de concentración Hans Biebow, hombre siniestro, jefe de la Kripo (Kriminalpolizei) le mandó preparar un vagón especial en un tren de carga con todas las comodidades y honores debidos a su cargo, y le dio una carta sellada que, por supuesto, él no abrió. Esta carta debía ser entregada al jefe del campo de concentración en Auschwitz. Más tarde se supo que contenía su sentencia de muerte. Rumkowski y su esposa fueron cremados en los hornos inmediatamente después de su llegada a Auschwitz).”38

Estas interrupções ao longo do texto também são frutos da relembrança, ou seja,

quando recordamos fatos passados já sabemos de antemão o que acontecerá posteriormente,

pois vivemos aquilo ou nos interamos mais tarde sobre estes acontecimentos. Como menciona

Massaud Moisés:

“lembrar é um ato quase integral, na medida em que passamos em revista não só certos acontecimentos passados mas outros em derredor e correlatos, ao mesmo tempo em que as associações do presente atual do narrador desenterram outros fatos ‘esquecidos’ e nem sempre diretamente vinculados à lembrança dos fatos principais”39.

38 VINOCUR, Ana. Op. Cit. 2002, p. 54. 39 MOISÉS, Massaud. Op. Cit. p. 127.

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Assim, estas pequenas interrupções ao longo da narrativa apresentam-se apenas

como momentos e não como continuidade, que foram trazidos à tona por uma seleção feita

pela memória da autora, transmitindo e legitimando aquilo que se deseja expressar.

2.4 CARACTERÍSTICA DAS OBRAS

Assim como as motivações e a forma de escrita dos relatos, os enfoques dados pela

autora no decorrer das obras são de suma importância para se compreender como sua

memória se cristalizou, foi construída e, conseqüentemente, transmitida em seus livros. Para

isto, selecionei três características fundamentais apresentadas nas obras de Vinocur: o

detalhamento de seus relatos, a expressão de sua emotividade e sua religiosidade.

2.4.1 Detalhes e Emotividade

As obras de Vinocur possuem características muito particulares, expressando a

maneira como ela vê o mundo e lida com o seu passado. Dentre estes pontos marcantes de

suas memórias, destacam-se a riqueza de detalhes e a grande emotividade.

Diferente do que encontramos em Benkel e Kroch, Vinocur prioriza os

acontecimentos micros em detrimento dos macros, ou seja, ela narra fatos da vida cotidiana,

das pessoas que estão próximas dela, não se prendendo ao que está acontecendo no front de

batalha, por exemplo. Isto faz com que ela descreva as situações vivenciadas nos mínimos

detalhes, lembrando fatos que a muitos poderiam passar despercebidos.

Os detalhes estão presentes em sua obra, tanto com relação à precisão numérica:

“Frente a nosotros están todavía colgados los dieciocho hombres”40, quanto na importância

dada aos pequenos acontecimentos: “Los paquetes y mochilas ya están prontos, ¡pero qué

cabeza mía! Me olvidé del espejito y peine, el cepillo de dientes ya lo guardé, pasta de dientes

no hubo nunca en el guetto”41.

Este detalhamento pode ter sido colocado pela autora nos livros apenas para dar uma

maior legitimidade e vivacidade ao que ela está narrando, como recurso literário, ou ela pode

recordar-se destes acontecimentos com a precisão mencionada nas obras. Entretanto, é muito

40 VINOCUR, Ana. Op. Cit. 2002, p. 78. 41 Id., ibid. p. 99.

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perceptível que ele está totalmente ligado ao sentimentalismo da autora, pois ao dar

importância aos detalhes, aos pequenos acontecimentos, ela acaba também transmitindo suas

emoções.

O sentimentalismo é algo marcante nas obras, sendo ele relacionado tanto a sua

família quanto a sua crença religiosa. Na realidade, os relatos não se mostram de maneira

nenhuma racionais, mas sim totalmente emotivos, onde a autora expressa tanto seus

sentimentos bons quanto os ruins. Como veremos no próximo capítulo, seu irmão Enrique

Benkel compartilhou das mesmas experiências de Vinocur enquanto estavam no gueto de

Lodz, entretanto, ele apresenta suas memórias de uma maneira mais fria, apenas mencionando

o que aconteceu, não se importando com os detalhes ou fazendo longos discursos sobre o

sofrimento que determinados acontecimentos lhe causaram.

Já Vinocur procura transmitir ao leitor exatamente quais foram seus sentimentos,

como acontece neste trecho de Sin Título, quando os nazistas levam do gueto as crianças com

menos de dez anos de idade: “...no hay palabras para expresar lo que siento. Si pudera

protestar, gritar, para que todo el mundo me escuche, que vengan y vean los corazones

destrozados de las pobres madres, padres y hermanos, pero no, tengo que dominarme; que no

me vea mi madre. Tengo que fingir para no hacerla sufrir más”42. Ou ainda quando deixa o

campo de Stutthof:

“Estamos dejando el campo de concentración de Stutthof, un campo cruel que tuvo la fuerza de arrebatar tantas vidas inocentes. Entre los miles que fueron massacrados, también se encuentra mi querida madre. Víctimas y más víctimas, seres humanos aniquilados por personas como nosotros, no por accidentes ni diluvios o terremotos, sino por gente que tiene la mente distorsionada”43.

A forma como ela apresenta estas lembranças, de maneira emocionada, acaba

despertando em quem está lendo o sentimento de compaixão, piedade, e, em contrapartida,

levando até a um sentimento de raiva com relação aos nazistas. Isto pode estar ligado, mais

uma vez, às motivações da autora com a obra, ou seja, fazer com que as pessoas conheçam as

brutalidades cometidas pelos nazistas contra os judeus e que não permitam que ideologias que

preguem a discriminação venham se proliferar.

Entretanto, percebe-se também que a emotividade é algo da personalidade da autora,

pois não está presente apenas em momentos isolados, mas sim, na narrativa como um todo.

Seja quando ela recorda das pessoas de quem amava, ou de fatos que foram muito doloridos,

42 Id., ibid. p. 77. 43 VINOCUR, Ana. Op. Cit. 1999, p. 177.

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ela não consegue esconder sua emoção. O forte sentimento religioso, como será analisado

abaixo, também reafirma esta característica pessoal da autora.

2.4.2 Religiosidade

Apesar de não mencionado explicitamente, ao ler as memórias de Ana Vinocur nota-

se que ela foi criada em uma família praticante do judaísmo e, conseqüentemente, a religião

tornou-se algo muito importante para ela. Assim, a profanação de sua religião durante o

período em que Hitler esteve no poder, aparece em suas obras como algo que a afetou

profundamente.

Após 1938, a perseguição aos judeus acirrou-se. Muitas medidas foram tomadas

para eliminá-los de todos os setores da sociedade. Assim, para facilitar sua identificação, “os

judeus deveriam usar, diante de seus prenomes, as palavras ‘d’ Israel’ ou ‘Sara’”44, além

disto, deveriam possuir a Estrela de Davi costurada nas roupas.

Foi Vinocur quem recortou e costurou as Estrelas de Davi em suas roupas e nas de

sua família, tendo este fato se tornado um episódio muito doloroso para ela. Na passagem do

texto em que ela narra a confecção das insígnias ela diz:

“Estoy observando la estrella de David, el símbolo de los judíos. La insignia de la gloria de un rey que honra la Biblia. Quisera hacerte una pergunta, David. - ¿Qué dirías tú si te despertaras y vieras tu estrella convertida en motivo de verguenza? O tal vez ya estarás preparando tu estrella para afilar sus puntas en espadas y como venciste a Goliat, probarás nuevamente tu suerte y llevarás la estrella donde le corresponde, donde nació, donde brilló y donde debe brillar. ¡Sí, allí le corresponde estar!. ¡En la Tierra Prometida, no en nuestros pechos como verguenza!. (...)¿Quién puede dudar de la belleza de una estrella?”45. No final do penúltimo capítulo, onde a autora narra sua libertação, ela também

menciona: “¡Oh, estrella de David, tú jamás fuiste una verguenza para nosotros!”46. O fato de

Vinocur remeter-se freqüentemente a questão da desmoralização da Estrela de Davi, mostra

que este episódio foi algo muito marcante para ela, pois, mesmo muitos anos depois, é algo de

que ela lembra e que faz questão de mencionar inúmeras vezes em seu livro, diferentemente

dos outros dois autores analisados neste trabalho – Enrique Benkel e, principalmente, Ernesto

Kroch.

Estar com a Estrela de Davi costurada na roupa acabou sendo uma vergonha para os

judeus, pois ela os identificava, mostrando a todos que eles eram a raça inferior e como tal

não tinham direito de desfrutar da sociedade nacional-socialista. Assim, pelo relato de

44 CARNEIRO, M. L. T. Op. Cit. 2000, p. 44. 45 VINOCUR, Ana. Op. Cit. 2002, p. 43. 46 Id., ibid. p. 217.

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Vinocur, praticante da fé judaica, pode se ter uma noção de como isto foi difícil e humilhante

para os judeus religiosos.

Já aqueles que não praticavam a religião judaica ou não acreditavam em Deus , as

determinações anti-semitas, dentre elas a obrigatoriedade do uso da Estrela de Davi, tiveram

outro significado, como relata Levi:

“...até então não me importava muito ser judeu: dentro de mim e nos contatos com meus amigos cristãos, tinha sempre considerado minha origem como um fato quase negligênciável mas curioso, uma pequena e divertida anomalia, como quem tem sardas ou o nariz torto; um judeu é alguém que no Natal não arma a arvore, que não deve comer fiambre aos 13 anos e depois o esqueceu”47.

Também neste sentido, não se nota nas memórias destas pessoas nenhuma menção

ou evocação a Deus, como será visto com Ernesto Kroch. O fato de ser judeu acabava

resumindo-se ao fator de nascimento, decreto ou classificação científica, por isto, eles não se

mostram amargurados ou ressentidos pela desmoralização dos símbolos da religião judaica ou

pela destruição das sinagogas. Não quero dizer com isto que os não praticantes do judaísmo

não se importaram com tais fatos, mas sim que estes os atingiram como um sinal da

arbitrariedade nazista e não como uma ofensa a sua crença, como aconteceu com Ana

Vinocur.

A religiosidade da autora aparece em seu livro de uma maneira geral, fazendo com

que sua visão sobre os acontecimentos, tanto bons quanto ruins, sejam pautados com base

nesta crença. Muito diferente de Ernesto Kroch e dos relatos de Primo Levi, em que - se não

for pela sorte, azar ou destino – oferecem explicações racionais para a série de fatores que

culminaram em suas sobrevivências, Vinocur atribui à interferência divina os privilégios que

possuiu nos campos de concentração e o fato de ter sobrevivido: “Dios me había elegido para

sobrevivir...”48, “Lo importante es que Dios nos elegió para ser testigos de esta historia”49.

Além disto, ela recorre a interferência divina em inúmeros momentos, pedindo que a

protegesse ou questionando os motivos por estar sofrendo tanto: “En cambio la mayoría cree

firmemente en Dios, por lo tanto rogaré que nos proteja”50, “...Dios, ¿por qué?”51, “...Si Dios

lo quiere nos volveremos a ver”52, dentre outros. O fato de a autora recorrer constantemente a

Deus, mostra suas sólidas bases religiosas.

47 LEVI, Primo.Tabela Periódica. Relume, 1994, p. 41. 48 VINOCUR, Ana. Op. Cit. 1999, p. 23. 49 VINOCUR, Ana. Op. Cit. 2002, p. 212. 50 Id., ibid. p. 100. 51 Id., ibid. p. 81. 52 Id., ibid. p. 77.

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2.5 AS LEMBRANÇAS

2.5.1 Memórias Modificadas

“O melhor modo para defender-se da invasão de memórias difíceis é impedir seu

ingresso, estender um cordão sanitário ao longo do limite. É mais fácil vetar o ingresso a uma

recordação do que dela se livrar depois que foi registrada”53.Esta afirmativa de Primo Levi

resume bem o que muitos judeus fizeram após suas saídas dos campos de concentração e

extermínio, na tentativa de recomeçar suas vidas sem os fantasmas da tortura nazista. Como a

experiência vivida por eles foi muito traumática, suas memórias acabavam filtrando

inconscientemente as recordações, sendo que ao narrar suas experiências a terceiros muitos se

atinham nos momentos de alívio, deixando de lado os episódios mais dolorosos, e assim,

distorcendo suas recordações.

Ana Vinocur relata em Volver a vivir después de Auschwitz, que foi muito difícil

recomeçar sua vida, pois as lembranças das experiências nos campos de concentração a

assombravam constantemente. Então, como uma espécie fuga ela tentava esquecer do que

aconteceu: “ De ninguna manera quería pensar en el pasado, me tenía que imaginar que nunca

existió, trataría de luchar para que no se apoderase de mí o de lo contrario no poderia vivir”54.

Nesta tentativa de não recordar, com certeza muitos acontecimentos foram apagados da

memória da autora, assim como muitos podem ter sido modificados na tentativa de minimizar

a dor que seria causada quando fossem evocados.

Além disto, durante o período em que passou no hospital de recuperação, ela ouviu

muitos testemunhos, tão ou mais tristes que o seu, que traziam dados que podem ter se

incorporado também às suas próprias recordações. Como Levi menciona, com relação às

reconstruções do passado, “deve-se observar que a distorção dos fatos muitas vezes é limitada

pela objetividade dos próprios fatos, em torno dos quais existem testemunhos de terceiros,

documentos, “corpos de delito”, contextos historicamente definidos”55.

São muitos os testemunhos de terceiros relatados por Vinocur, especialmente em

Volver a vivir después de Auchwitz, sendo que ela os narra com a mesma precisão de detalhes

que se vê nos seus próprios relatos. Vejamos abaixo dois exemplos de recordações transcritas

53 LEVI, P. Os afogados e os sobreviventes. Os delitos, os castigos, as penas, as impunidades. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1990, p. 14. 54 VINOCUR, Ana. Op. Cit. 1999, p. 23. 55 LEVI, P. Op. Cit. 1990, p. 13.

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pela autora, sendo que o primeiro é de um senhor que conta suas experiências relativas ao

gueto:

“- Voy a hablarse con toda franqueza y sinceridad: Al estallar la guerra yo vivía en un pequeño pueblo de Polonia. Estaba casado y tenía dos hijitos. Cierto día los nazis dicidieron evacuar a las pocas familias que vivían en la pequeña localidad de Strykow. Me sapararon de los míos y me enviaron al gueto en Lodz. Los nazis siempre buscabam aumentar nuestras angustias. Esta era un arma muy poderosa. Cuando llegué al gueto, me di cuenta de que estábamos aislados de la ciudad. Alredor nos vigiaban soldados que nos apuntaban con sus metralletas, como si fuéssemos asesinos (...)”56.

Este segundo depoimento é de um senhor sobrevivente de Auschwitz:

“ – Les voy a contar sólo algunos episodios vividos en un campo de concentración. (...) un día teníamos miedo de los golpes sádicos que cualquiera podría recibir, miedo de las selecciones que cada vez se realizaban en el campo para elegir a quién le tocaba morir o vivir por el momento, o de los SS, los más fieles de Hitler, casi siempre acompañados por perros lobos (...)”57.

É notório que, apesar de possuírem particularidades, como o número de filhos e a

localidade em que a pessoa em questão vivia, os testemunhos descritos por Vinocur

assemelham-se muito às suas próprias recordações. Na verdade, aos transcrever estes relatos

transmitidos oralmente, ela apenas menciona aspectos gerais da vida no gueto e nos campos

de concentração, não apresentando nenhum componente novo. Como se vê nos trechos

citados acima, é apenas exposta a dor que o senhor sentiu ao separar-se de sua família e que o

maior medo dos judeus nos campos de concentração era de serem espancados pelos nazistas e

de serem escolhidos nas seleções, sendo estes acontecimentos comuns a todos os

sobreviventes dos Lager, inclusive a Ana Vinocur.

Assim, ao relembrar ela pode ter mesclado aspectos de sua vida ao que ela ouviu de

outros sobreviventes. Isto também é perceptível, nos demais depoimentos citados por ela ao

longo da narrativa, sendo que em determinado momento ela menciona que ao escutar estes

relatos, acabava por relembrar suas próprias experiências: “Sus recuerdos arrastaron los

míos”58. Estas possíveis incorporações de elementos estranhos aos acontecimentos vividos

são muito perceptíveis nas obras de Vinocur, não sendo tão explícitas nos outros dois autores

a serem analisados.

Vale a pena mencionar que a modificação e incorporação de elementos estranhos às

recordações são freqüentes em depoimentos de sobreviventes de guerras e de experiências

traumáticas, não os desmerecendo de maneira nenhuma devido a isto.

56 VINOCUR, Ana. Op. Cit. 1999, p. 68 57 Id., ibid. p. 77. 58 Id., ibid. p. 95.

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2.5.2 A Culpa

O sentimento de culpa e vergonha foi algo que assolou os sobreviventes nazistas

após a libertação dos Lager. Na realidade, a grande maioria dos sobreviventes conseguiu

resistir aos campos de concentração e extermínio por que gozaram de algum tipo de

privilégio, conseguido por possuírem habilidades profissionais, roubos cometidos contra os

próprios judeus, afinidade com algum superior, dentre outros. Entretanto, a maioria dos

prisioneiros era considerada “normal”, ou seja, sem privilégio algum, porém foram

“(...) a exígua minoria entre os sobreviventes: entre estes, são muito mais numerosos aqueles que, no cativeiro, desfrutaram de um privilégio qualquer. Numa distância de anos, hoje se pode afirmar que a história Lager foi escrita quase exclusivamente por aqueles que (...) não tatearam seu fundo. Quem o fez não voltou, ou então sua capacidade de observação ficou paralisada pelo sofrimento e pela incompreensão”59.

O fato de terem sido privilegiados de maneira nenhuma foi o único responsável pelo

sentimento de culpa que sentiam. Havia a vergonha por não terem lutado contra os nazistas, já

que após a libertação soube-se que houvera grupos de resistência60, o ressentimento por não

ter ajudado seus companheiros, nem que fosse ao menos com uma palavra de consolo, dentre

outros. Porém, a sobrevivência foi a maior responsável pela sensação de culpa que sentiram

após a libertação.

É interessante ressaltar, que foram poucos os que cometeram suicídio durante o

período em que ficaram presos, mas após a libertação a culpa, a vergonha e a tristeza levaram

muitos sobreviventes a cometerem tal ato.

Ana Vinocur menciona em Volver a vivir después de Auchwitz, que este sentimento a

atormentou muito, principalmente após a morte de sua mãe “Hubiera sido preferible perder la

vida y no cargar cada día de mí vida con este sentimiento de culpa que cada vez se acrescienta

y pesa más”61. É interessante notar que ela menciona que irá carregar o sentimento de culpa

cada dia de sua vida, deixando transparecer que no momento em que o livro é escrito, por

volta de 1999, é um sentimento ainda presente.

Entretanto, a autora vê na religiosidade, uma válvula de escape para este sentimento,

pois atribuindo sua sobrevivência à vontade divina, acaba por diminuí-lo: “Se Dios me había

59 LEVI, P. Op. Cit. 1990, p. 05 60 A questão da rebelião será analisada mais profundamente no capítulo seguinte. 61 VINOCUR, Ana. Op. Cit. 1999, p. 124.

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elegido para sobrevivir y enfrentar esta vida, lo tenía que hacer con dignidad y

agradecimiento”62.

Estes sentimentos – culpa e vergonha – foram tão fortes que até encobriram a alegria

da liberdade. A autora mesmo diz que não se sentiu feliz ao deixar o campo de concentração:

“No me siento feliz, al contrario, me siento conmovida hasta el fondo de mi alma, pensando

en la catástrofe espantosa y el final horrible que sufrieron mis hermanos de cautiverio”63.

Assim como Enrique Benkel e Ernesto Kroch, Vinocur não foi uma prisioneira

“normal”, mas possuiu alguns privilégios durante o período em que esteve no cativeiro,

recebidos devido a sua vocação para o canto. Uma de suas Kapos , chamada Basia, gostou de

sua voz e a pediu que cantasse para ela, em seu quarto, quando solicitado. Em troca, Vinocur

poderia tomar banho, comer à vontade além de levar comida a sua mãe: “mamá y yo pasamos

relativamente bien, no nos falta comida, no sentimos tanta tristeza, nos olvidamos un poco de

nuestras penurias. Me siento con más fuerzas para aguantar esta amarga situación”64.

Este privilégio foi, sem dúvida, determinante na sobrevivência de Vinocur, pois o

simples fato de estar melhor alimentada a deixava mais forte frente as inúmeras doenças que

assolavam o campo de concentração. Claro que não se pode esquecer de que ter sido

transferida para Auschwitz somente em 1944, permanecendo apenas um ano em cativeiro,

também contribuiu para sua sobrevivência, porém, a melhor alimentação conseguida em troca

de seu canto fez muita diferença.

Apesar de se mostrar consciente que este privilégio foi um fator crucial para sua

sobrevivência, Vinocur não demonstra em nenhum momento sentir culpa por ter cantado para

a Kapo em troca de comida e de um melhor tratamento. Na realidade, ela apresenta-se muito

mais culpada por ter sobrevivido ilesa, sendo que após sua saída do Lager teve que se curar

apenas de tuberculose, ou seja, uma doença ínfima frente a mutilados e doentes terminais.

2.6 O URUGUAI

Assim como também se verá nos relatos de Ernesto Kroch, Vinocur destaca em suas

obras o período em que viveu no Uruguai. Por isto, acredito ser importante mostrar a forma

como o país tratou a questão da imigração, principalmente judia, e as tradições políticas desta

62 Id., ibid. p. 23. 63 VINOCUR, Ana. Op. Cit. 2002, p. 216 64 Id., ibid. p. 147.

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nação, para daí compreender a grande receptividade do povo uruguaio em relação aos

sobreviventes judeus, como Ana Vinocur, Enrique Benkel e Ernesto Kroch.

2.6.1 Contexto Histórico e Políticas Migratórias

Por volta dos anos 30, o Uruguai se encontrava em um ótimo período de

modernização e estabilidade econômica. Diferenciava-se dos outros países da América Latina

por seus avanços sociais, sendo o país das possibilidades, onde até um imigrante pobre tinham

condições de concluir uma universidade e ascender socialmente. Como relata Jorge Amado,

“Houve um tempo relativamente próximo (...) quando a República Oriental do Uruguai, espremida entre o Brasil e a Argentina, era admirável exemplo de um regime democrático que se aproximava da perfeição, sobretudo no que se refere às liberdades individuais e aos direitos humanos. Em meio aos contínuos golpes militares e às ditaduras de todo tipo que proliferavam no continente sul-americano, o Uruguai erguia-se como símbolo de liberdade e cultura. Mirávamos nosso vizinho cheios de admiração e inveja”65.

Apesar da crise da Bolsa de Nova York em 1929 ter desestruturado a economia do

país, os efeitos dela só seriam sentidos anos mais tarde. Ainda nas décadas de 30 e 40 o

Uruguai era considerado a “Suíça da América”.

Como era um país que priorizava a liberdade, os imigrantes que tinham disposição

para o trabalho eram muito bem-vindos, como determinava a lei N° 2.096 (19/06/1890):

“‘todo extranjero honesto y apto para el trabajo, que se translade a la República Oriental del

Uruguay, en buque de vapor o de vela, con pasaje de segunda o tercera clase, y con ánimo de

fijar en ella su residencia’”66.

Com a difusão das políticas anti-semitas alemãs, começou-se a restringir o número

de imigrantes judeus, pois havia o medo de que eles inundassem o país:

“‘ Problema probado que ya tenemos en el país judíos de sobra y que ello plantea un grave problema y atento a que la amenaza de que la colonia semita qumentará con grandes núcleos extraídos de los grupos expulsados de Alemanha, cabe la adopción de medidas tendientes a evitar ese aumento a todas luces perjudicial. La invasión judía es un hecho. Agencias expertas en la meteria se dedican a la introdución ilícita y clandestina de individuos de la raza indeseable, y si no se pone coto a sus actividades la inundación hebrea nos ahogará’”67.

Mas, apesar das restrições jurídicas e políticas, milhares de refugiados continuaram

ingressando no país, sendo que “la prédica de ‘cerrar las puertas’ habría obstaculizado, pero

65 Apud, FIALHO. A. Veiga. Uruguai: um campo de concentração? Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 1979, p. 11. 66 BOURET, Daniela; MARTÍNEZ, Alvaro; TELIAS, David. Entre la Matzá y el Mate. La imigración judía en Uruguay: Una historia en construcción. Montevideu: Ediciones de La Banda Oriental, 1997, p. 25. 67 “La Tribuna Popular”, Ano LVIII, N° 15904, 3/5/37, p.1. Apud. Id., ibid. p. 31.

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no impedido totalmente el arribo de los imigrantes judíos. Más que ‘cerrar las puertas’,

Uruguay las habría entornado”68. Vale a pena ressaltar, que era cobrado para se obter o visto

uruguaio, sendo que aqueles que não possuíam a quantia estipulada ficavam proibidos de

ingressar no país. Isto acaba sendo uma maneira de se levantar capital, já que apesar da

aparente estabilidade, o país havia sido abalado pela crise de 1929. Talvez até por este fator,

mesmo com as restrições, o fluxo imigratório não cessou no Uruguai.

2.6.2 Ana Vinocur: a Luta pela Integração

Quando os refugiados chegavam ao Uruguai, eles se viam frente a uma sociedade

receptiva, mas que também possuía focos anti-semitas, além de cultura, religião, tradições,

ideologias e idioma muito diferente do que estavam acostumados. Isto pode ser percebido

claramente nos relatos de Ana Vinocur, que menciona a boa receptividade do país, entretanto,

destaca a dificuldade em se adaptar a uma cultura diferente e, principalmente, aprender um

idioma novo:

“No fue fácil para mi acostumbrarme a la vida de un país del que no conocía ni sus costumbres ni su idioma. Aunque los uruguayos fueron muy solidarios explicándonos cada detalhe, cada objeto, hablándonos lentamente, aun así nos era dificil aprender, ya que ninguno de los idomas que hablábamos se parecía al español”69.

Além disto, ela relata que seus tios sempre comentavam que o Uruguai era um país

democrático, onde não se ouvia falar em guerra e em falta de alimentos: “Al conversar con la

familia, a menudo nos decían que el Uruguay era un país democrático donde no se hablava de

guerras, cosa extraña y hasta nueva para nosotros. Más aún: aquí no faltava el pan, puesto que

el que quisiera ganarlo podría hacerlo, por supuesto a través de su debido esfuerzo”70.

Ela ainda conta que se espantou com a mentalidade dos jovens uruguaios, muito

diferentes da dos jovens sobreviventes do extermínio nazista: “Un ejemplo muy ilustrativo de

esto era el modo de pensar de los jóvenes. Su mentalidad era radicalmente distinta a la de la

gente que había sufrido el Holocausto, y eso era luy lógico; las chicas hablaban de modas o de

fiestas a las que podían concurrir”71.

Isto foi algo marcante para Vinocur, pois enquanto as moças de sua idade pensavam

em namorar, ficar na moda, passear, ela vivia pensando nos momentos difíceis que passara no

68 BOURET, Daniela; MARTÍNEZ, Alvaro; TELIAS, David. Op. Cit. 1997, p. 51. 69 VINOCUR, Ana. Op. Cit. 1999, p. 131. 70 Id., ibid. p. 132. 71 Id., ibid.p. 132.

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gueto e nos campos de concentração, além de chorar a perda de seus pais e de seu irmão mais

novo. Percebe-se que ela, na realidade, não compreendia como estes jovens conseguiam viver

normalmente, enquanto um massacre acontecia na Europa.

Acredito que o fato destas pessoas com quem ela veio conviver no Uruguai estarem

alheias ao que aconteceu na Alemanha, fez com que a autora sentisse um certo ressentimento,

dizendo que o mundo está em dívida com os judeus, pois estava “dormindo” enquanto os

nazistas os escravizavam: “- ¡Qué el mundo sepa que está en deuda con nosotros, porque fue

demasiado profundo su sueño!”72.

Assim, por perceber que não adiantava contar sobre o seu sofrimento nos campos de

concentração e extermínio, pois os uruguaios, até por viverem em um país democrático, não a

compreendiam, Vinocur resolveu não tocar mais neste assunto: “Por ese motivo, consideré

que en aquellos momentos no debía mencionar más el tema y decidí, en lo posible, callar”73.

É importante também destacar que, apesar da autora ter presenciado o fim da

liberdade no Uruguai, com o início da ditadura no país74, em nenhum momento das duas

obras ela menciona este acontecimento. Seu primeiro livro, Sin Título, é publicado no ano de

1972, ou seja, um ano antes do golpe que levou os militares ao poder no país, sendo um

período de grande instabilidade política e econômica, onde já havia iniciado a repressão às

liberardes individuais. Sua outra obra, Volver a vivir después de Auschwitz, é publicada no

ano de 1999, e mesmo sendo o livro em que ela relata seus dias após a queda de Hitler e sua

mudança para a América Latina, esta questão também não é mencionada, pelo contrário, ela

engrandece a democracia e o respeito pela liberdade existentes no Uruguai. .

Como a finalidade do livro é fazer com que não se permita que outro massacre venha

acontecer, ou como a autora mesmo coloca: “Ojalá los países democráticos puedan lograr la

convivencia pacífica entre los pueblos, y no permitan que se repitan los horrores del nazismo,

para assegurar que las futuras generaciones puedan vivir en armonía y en PAZ”75, ela poderia

ter falado sobre o período em que o Uruguai esteve governado por um regime militar,

mostrando que mesmo os países democráticos estão sujeitos ao autoritarismo.

Como veremos a seguir, Enrique Benkel, também não cita em sua obra fatos

relacionados à ditadura militar, mesmo tendo presenciado esta fase da história do Uruguai.

Talvez isto ocorra por que as memórias de Benkel relatem os acontecimentos ocorridos até

72 VINOCUR, Ana. Op. Cit. 2002, p. 214. 73 VINOCUR, Ana. Op. Cit. 1999, p. 133. 74 A questão da ditadura uruguaia será contemplada de forma mais detalhada no capítulo três. 75 Id., ibid. p. 165.

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logo após sua libertação, somente mostrando que ele foi para o Uruguai morar com seus tios e

sua irmã, porém não entrando em detalhes sobre este período.

Apesar dos dois autores serem irmãos e escreverem suas memórias sobre o mesmo

acontecimento, nota-se muitas diferenças na forma como cada um memorizou esta fase de

suas vidas, como veremos no capítulo seguinte.

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3 ENRIQUE BENKEL

Neste capítulo analisarei a forma como Enrique Benkel, irmão de Ana Vinocur,

lembra e transmite suas recordações em seu livro B-10279 Sobreviviente de Auschwitz76.

Apesar de Benkel e Vinocur serem irmãos, criados pelos mesmos pais e de terem passado

pelas mesmas dificuldades no gueto de Lodz, só sendo separados nos campos de

concentração, a forma como cada um transmite suas recordações acerca deste período são

muito distintas.

Seguindo a mesma linha de pensamento utilizada no capítulo anterior, começarei

apresentando as motivações e objetivos deste autor com sua obra. Na seqüência analisarei a

estrutura do livro e suas características principais. Por fim, me aterei nos aspectos mais e

menos enfatizados pelo autor no desenvolvimento de sua narrativa.

O livro de Enrique Benkel começa relatando os acontecimentos ocorridos no ano de

1939, com a criação do gueto de Lodz, e termina em 1945, quando ele é libertado do campo

de concentração, sendo o mesmo período contemplado pelo livro Sin Título, de Ana Vinocur.

Assim, por já ter sido apresentado no capítulo anterior a contextualização histórica relativa a

esta época, não o farei novamente, iniciando a análise pelas motivações e objetivos do autor

com a obra.

3.1 MOTIVAÇÕES E OBJETIVOS PARA A ESCRITA DO LIVRO

3.1.1 Resistências e Fugas

As motivações e os objetivos de Enrique Benkel com sua obra são semelhantes às

justificativas apresentadas por Ana Vinocur77 nos livros analisados anteriormente. Da mesma

maneira que sua irmã, ele escreve para que, através de um testemunho real e autêntico, as

gerações atuais e futuras possam conhecer o que realmente aconteceu com os judeus durante a

Segunda Guerra Mundial, e não se esqueçam destes acontecimentos para que eles não voltem

e a se repetir: “De modo que va a nacer otro testimonio auténtico y veraz, y creo que la

generación actual y futura podrán sacar sus conclusiones. El daño ocasionado al pueblo judío

76 BENKEL, Enrique. B-10279 Sobreviviente de Auschwitz. Montevidéu: Editorial Medina, 1986, 163 p. 77 Ver capítulo 1, tópico 2.2.

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fue tan grande que no debería pasar inadvertido, no debería olvidarse para que esto nunca se

vuelva a repetir”78.

Assim como Vinocur, ele também menciona que “como sobreviviente de esta odisea,

sentí la obligación moral de relatar los hechos tal como relamente ocurrieron con el propósito

de impedir que otros lo distorsionen. Me refiero a aquellos que tienen la tendencia de

deformar o minimizar lo acontecido”79. Ou seja, que se sente na obrigação de relatar o que

aconteceu, para que não se deturpem os acontecimentos. Entretanto, Vinocur se referia

claramente aos movimentos revisionistas e negacionistas, já Benkel se refere às pessoas que

dizem que os judeus aceitaram passivamente a dominação nazista, sendo este então, seu

principal objetivo com a obra:

“También un motivo importante para escribir este libro fue para que los que juzgan fácilmente se den cuenta, que no fuimos llevados como ovejas al matadero. Los que han tenido oportunidad de leer este testemonio e interiorizarse de la situación em que se vivía habrán comprendido que no fue así. Hubo levantamientos que son conocidos y también actividad guerrillera desde los bosques”80. A questão da rebelião judaica contra os nazistas é algo muito enfatizado por ele em

sua narrativa, deixando claro que mostrar que os judeus não foram levados aos campos de

concentração como “ovelhas ao matadouro”, ou seja, passivamente, foi sua principal intenção

ao escrever B-10279 Sobreviviente de Auschwitz.

Sabe-se que muitos judeus não se mantiveram estáticos frente aos ditames nazistas.

Houve resistência armada e desarmada, tanto nos guetos quanto nos campos de concentração,

principalmente entre os anos de 1942 a 1943, quando se iniciaram os assassinatos em massa.

A resistência mais conhecida foi a que ocorreu no gueto de Varsóvia, como relata Carneiro:

“No gueto de Varsóvia, a resistência surgiu no começo da ocupação alemã. Valendo-se de folhetos e jornais ilegais, tentavam denunciar as atrocidades nazistas, enquanto o Dr. Emanuel Ringelblum, diretor do Arquivo Central Judaico, reunia a documentação sobre o Holocausto. Depois começaram a organizar-se em grupos com o objetivo de estabelecer uma defesa armada”81.

Ela ainda fala que nos campos de extermínio de Kruszyna, Kyrchów, Minsk-

Mazowiwcki, Sobibor, Treblinka e Auschwitz também ocorreram rebeliões.

Porém, não se pode superestimar estes acontecimentos, ou seja, acreditar que houve

uma grande resistência por parte dos judeus. Como se sabe, a primeira atitude tomada pelos

nazistas foi destituir estas pessoas de suas identidades, separá-los de seus familiares,

desestruturar suas bases religiosas e enfraquecê-los fisicamente racionado sua alimentação.

78 BENKEL, Enrique. Op. Cit. 1986, p. 11. 79 Id., ibid. p. 159. 80 Id., ibid. p. 159. 81 CARNEIRO, M. L. T. Holocausto. Crime contra a humanidade. Ática, 2000, p. 62.

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Primo Levi resume muito bem o estado da maior parte dos prisioneiros dos campos

de concentração e extermínio, principalmente do qual ele fez parte:

“a desnutrição, a privação e os outros sofrimentos físicos, que é tão fácil e econômico provocar e em que os nazistas eram mestres, são rapidamente destrutivos e, antes de desnutrir, paralisam; ainda mais quando são precedidos por anos de segregação, humilhação, maus-tratos, migrações forçadas, dilaceramento de laços familiares, ruptura dos contatos com o resto do mundo. Ora, essa era a condição da maior parte dos prisioneiros que chegavam a Auschwitz, após o inferno preparatório dos guetos ou dos campos de triagem”82.

Claro que não se pode desmerecer estes levantes, porém se mostram uma minoria

frente aos judeus que, dada as suas condições físicas e psicológicas, se mantiveram sem ação

diante da dominação nazista. É certo que a manutenção de sua cultura e religião, assim como

a obtenção de alimentos, remédios e roupas no “mercado negro”, também podem ser

considerados uma forma de rebeldia cometida por muitos judeus, dentre eles Vinocur e

Benkel. Porém, a resistência armada e as tentativas de fugas com êxito foram mínimas.

Carneiro relata, por exemplo, fugas que aconteceram nos guetos, sendo que somente

na localidade de Belarus Ocidental cerca de 25 000 judeus escaparam para os bosques. Porém,

muitos dos que fugiam eram capturados, principalmente quando escapavam dos Lager, pois a

dificuldade de se esconder era enorme, até pelo fato de que eram pouquíssimas as pessoas que

se arriscavam dando abrigo aos judeus, seja por simpatizarem com a ideologia anti-semita, ou

pelo medo do que os alemães pudessem fazer com suas famílias se descobrissem que

abrigavam fugitivos.

Além disto, quem era capturado retornava para os Lager, sendo assassinado na frente

dos demais prisioneiros para que servisse de lição a todos. Como exemplo disto, vale

mencionar um episódio relatado por Levi sobre o que acontecia àqueles que se rebelavam ou

eram capturados:

“Desde que entrei no Campo, tive que assistir a treze enforcamentos públicos. As outras vezes, porém, tratava-se de crimes comuns, roubos na cozinha, sabotagens, tentativas de fuga. Hoje é outra coisa. (...) O homem que vai morrer hoje participou, de alguma maneira, da revolta. Parece que tinha ligações com os amotinados de Birkenau, que introduziu armas em nosso Campo, que maquinou um motim simultâneo entre nós. Ele morrerá hoje na nossa frente (...). (...) Todos, porém, ouviram o grito do homem que ia morrer; esse grito transpôs as velhas, grossas barreiras de inércia e remissão, atingiu, em cada um de nós, o âmago de nossa essência de homens (...). Continuamos em pé, encurvados e cinzentos, cabisbaixos, não nos descobrimos a não ser quando o alemão mandou. Abriu-se o alçapão, o corpo estrebuchou, atroz; a banda de música recomeçou a tocar, e nós, novamente formados em coluna, desfilamos à frente dos últimos estremecimentos do moribundo. Aos pés da forca, os SS nos olham passar, indiferentes. A sua obra foi concluída, e bem concluída. Os russos já podem vir: já não há homens fortes entre nós, o último pende por cima de

82 LEVI, P. Os afogados e os sobreviventes. Os delitos, os castigos, as penas, as impunidades. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1990, p. 43.

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nossas cabeças e, para os outros, poucas laçadas de corda bastaram. Os russos podem vir: só encontrarão a nós, domados, apagados, já merecedores da morte inerme que nos espera. Destruir o homem é difícil, quase tanto como criá-lo: custou, levou tempo, mas vocês alemães, conseguiram. Aqui estamos, dóceis sob o seu olhar (...)”83.

Como já mencionado no capítulo anterior, após a libertação dos prisioneiros judeus,

um sentimento que os dominou foi o de culpa, e o fato de pensar que poderiam ter oferecido

alguma resistência e não o fizeram, algo muito doloroso. Mas, o medo, a fraqueza, a falta de

oportunidade, dentre outros motivos, fizeram com que a maioria esperasse o dia da libertação,

ou com a chegada dos aliados ou com a morte.

Meu objetivo aqui não é discutir se houve ou não resistência, mas sim, porque

Benkel dá tanta importância a este fato em sua obra. Entretanto, para se compreender isto, é

necessário entender, primeiramente, o que o levou a escrever suas memórias, ou seja, a

curiosidade de seus filhos em relação a sua tatuagem.

3.1.2 A Tatuagem

O autor relata que quando sua filha era criança, perguntava-lhe constantemente sobre

o número que ele possuía no braço, querendo saber seu significado. Ele respondia que não era

nada importante, somente um número de telefone que havia escrito ali para não se esquecer.

Conforme seus filhos foram crescendo, sentiu necessidade de lhes contar a verdade, a partir

dai, acabaram-no convencendo a escrever um livro relatando seu testemunho:

“Pasaron más de cuarenta años desde la terminación de la Segunda Guerra Mundial. Ahora siendo un hombre maduro, padre de familia y abuelo, a insistencia de uno de mis hijos, más bien de mi hija, decidí escribir mis memorias. Ella siendo pequeña aún, vio el número que tengo tatuado en el brazo, y fue una incógnita que siempre quiso develar. Cuando eram todavía chicos les solía decir que no tenía importancia, que se trataba de un número de teléfono que tenía escrito allí para no olvidármelo. Actualmente son estudiantes avanzados; no tenía sentido no decir la verdad. Surgieron preguntas y explicaciones, y luego me convencieron de que escribiera lo que les había contado”84.

A tatuagem foi mais uma forma de violência gratuita, dentre outras tantas, exercida

pelos alemães, especialmente em Auschwitz. A partir de 1942, neste campo de concentração e

em suas ramificações, o número de identificação dos prisioneiros não era mais somente

costurado nas roupas, mas também tatuado no antebraço esquerdo. Os homens eram tatuados

na parte externa do braço e as mulheres na interna, sendo que o número dos ciganos deveria

ser precedido da letra Z, o dos judeus – a partir de 1944 – de um A, sendo posteriormente

83 LEVI, Primo. É isto um homem? Rio de Janeiro: Rocco, 1988, p. 151-152. 84 BENKEL, Enrique. Op. Cit. 1986, p. 11.

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substituído pela letra B. Só estavam isentos desta operação os prisioneiros alemães não-

judeus.

Além de uma forma de controle, revelando mais uma vez a “o típico talento alemão

para classificações”85, a tatuagem possuía outros significados, como relata Levi:

“Seu significado simbólico estava claro para todos: este é um sinal indelével, daqui não sairão mais; esta é a marca que se imprime nos escravos e nos animais destinados ao matadouro, e vocês se tornaram isso. A violência da tatuagem era gratuita, um fim em si mesmo, pura ofensa: não bastavam os três números de pano costurados nas calças, no casaco e no agasalho de inverno? Não, não bastavam: era preciso algo mais, uma mensagem não verbal, a fim de que o inocente sentisse escrita na carne sua condenação. Tratava-se também de um retorno à barbárie, tanto mais perturbador para os judeus ortodoxos; de fato, justamente para distinguir os judeus dos ‘bárbaros’, a tatuagem é velada pela lei mosaica (Levítico, 19.28)”86.

Por estes motivos, a tatuagem foi algo muito marcante para os prisioneiros, sendo um

símbolo do massacre que eles carregariam em seus braços para o resto de suas vidas. Benkel,

diferente de sua irmã Vinocur, menciona inúmeras vezes em sua narrativa a questão da

tatuagem, mostrando que foi algo muito marcante para ele. Assim como para sua irmã foi

doloroso ter que cortar seu cabelo comprido, a tatuagem como uma marca feita em animais,

foi o que ressentiu o autor.

Cada vez que seus filhos perguntavam sobre o número que estava em seu braço, com

certeza ele sentia uma tristeza muito grande, não só pelo fato de recordar seu passado, mas de

não saber como explicar àqueles que o tinham como referencial, que se espelhavam nele, que

no passado, por ser judeu, foi tratado como um ser inferior.

Isto também pode explicar o fato dele colocar como o principal objetivo de sua obra,

mostrar que os judeus resistiram, que, segundo ele, não foram como “ovelhas ao matadouro”.

É muito humilhante para um pai, principalmente seguidor dos costumes judaicos, contar a

seus filhos sobre as atrocidades cometidas pelos nazistas ao seu povo, até pelo fato de restar a

indagação sobre o por quê de não haver resistência, por que os judeus aceitaram tais

humilhações. Assim, talvez, como uma forma de consolo, não somente para seus filhos mas

para si mesmo, Benkel dá grande destaque às rebeliões.

Vale ainda destacar, que em diversos textos publicados após o término da Segunda

Guerra Mundial, comentou-se muito sobre a ausência de resistência por parte dos judeus.

Somente algum tempo depois, relatos sobre levantes judeus contra os nazistas tornaram-se de

85 LEVI, P. Op. Cit. 1990, p. 71. 86 Id., ibid. p. 72.

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conhecimento geral, como a que ocorreu no gueto de Varsóvia, por exemplo. Isto também é

deve ser considerado ao analisar o destaque dado a Benkel a tais episódios.

Como já foi mencionado, as pessoas que passaram por experiências traumáticas

tendem a filtrar inconscientemente suas recordações, “evocando-as entre eles mesmos ou

narrando-as a terceiros, preferem deter-se nas tréguas, nos momentos de alívio, nos interlúdios

grotescos, estranhos ou relaxados, esquivando-se dos episódios mais dolorosos”87. Neste

sentido, as resistências são uma forma de consolo para Benkel, fazendo com que ele se apegue

a estes episódios, diminuindo, talvez, a dor que as lembranças lhe causam.

3.2 ESTRUTURA DA OBRA

A narrativa de B-10279 Sobreviviente de Auschwitz é desenvolvida de maneira

cronológica, começando em 1939 e terminando em 1945. Diferentemente do que vimos em

Ana Vinocur, Benkel escreve suas memórias relembrando os acontecimentos passados, ou

seja, utilizando o passado como tempo verbal.

Entretanto, seu relato se passa como se fosse uma entrevista, sendo apresentadas suas

recordações a partir de alguns questionamentos. Para exemplificar, vale a pena mencionar

algumas das perguntas contidas no texto: “Y una vez ocupada la cuidad de Lodz, ¿qué

modificaciones introdujeron en la vida diaria de la población?”88, “¿Cómo se manejaban con

el dinero?”89, “¿Por qué los alemanes eligieron ese lugar, y cuál era el objetivo?”90, dentre

outros. São aproximadamente quarenta e cinco perguntas semelhantes a estas respondidas por

Benkel ao longo da obra.

Não é mencionado em nenhum momento se é alguém que faz estas perguntas ao

autor, ou se é um recurso narrativo utilizado por ele para melhor transcrever suas memórias,

facilitando a compreensão do leitor. Analisando o que ele relata sobre o momento em que

contou a seus filhos sobre sua vida no gueto e nos campos de concentração, em que surgiram

muitas “preguntas y explicaciones”91, conclui-se que ele pode ter se baseado nestes

questionamentos e dúvidas expostos por seus filhos para escrever sua obra. Porém, não tem

como se precisar com certeza se é realmente esta a origem das perguntas.

87 BENKEL, Enrique. Op. Cit. 1986, p. 15. 88 Id., ibid. p. 14. 89 Id., ibid. p. 25. 90 Id., ibid. p. 119. 91 Id., ibid. p. 11.

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Outro fato importante de ser destacado é que o livro não é escrito em forma de

romance, como é notório nas obras de Vinocur. Benkel desenvolve sua narrativa de forma

direta, sem diálogos, transmitindo suas lembranças de uma maneira mais racional, e

sistematizando-se na seqüência cronológica dos acontecimentos, sem se prender a devaneios e

sentimentalismos.

Como veremos abaixo, estas são características fundamentais da obra, que

demonstram aspectos da personalidade e da forma como autor se posiciona frente a seu

passado.

3.3 CARACTERÍSTICAS DA OBRA

Como apresentado no capítulo anterior, as duas obras de Ana Vinocur são marcadas

por uma forte emotividade, estando esta ligada a sua família e religião, assim como um grande

destaque aos acontecimentos cotidianos. Já no livro de Benkel, percebe-se que predomina

exatamente o contrário, ou seja, objetividade, poucos eventos comoventes e maior destaque

aos acontecimentos macros.

Muito mais que apenas relatar suas experiências, Enrique Benkel procura analisar,

explicar, interpretar os acontecimentos passados, mostrando ao leitor, a partir de seu ponto de

vista, qual era o intuito dos nazistas ao praticar seus mais variados atos, como se nota nesta

passagem do texto onde ele está falando sobre a questão da discriminação contra a população

judaica: “El objetivo era provocar temor e incertidumbre en la coletividad judía, ganar la

simpatía de los polacos y con el traslado de poblaciones evitar un posible brote de

resistencia”92. Nas obras de Vinocur, não vemos tal preocupação, mas sim a de narrar os fatos

a partir de sua própria subjetividade, tentando demonstrar o que sentiu quando esteve frente a

determinadas situações. Vale a pena destacar, que é muito comum que as pessoas ao

escreverem suas memórias, ou ao contá-las a alguém, analisem e forneçam explicações para

os episódios passados, pois

“‘ na maior parte das vezes, lembrar não é reviver, mas refazer, reconstruir, repensar, com imagens e idéias de hoje, as experiências do passado.’ Assim, as lembranças, além de oferecerem uma descrição dos acontecimentos vividos, trazem também uma análise daqueles mesmos acontecimentos, dada a

92 BENKEL, Enrique. Op. Cit. 1986, p. 17.

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distância em que o entrevistado se encontra deles, e sua posição em avaliar as transformações que vivenciou”93. Além disto, o tom mais explicativo da obra de Benkel também está relacionado à

forma como se dá a suposta “entrevista” que é feita ao autor, pois ele vai desenvolvendo a

narrativa conforme o que lhe é perguntado. Na passagem do texto citada acima, por exemplo,

antes dele explicar os objetivos dos nazistas com a discriminação, foi-lhe perguntado: “La

discriminación se ejerció sólo contra la población judía?”94. Após sua resposta vem o novo

questionamento: “Por qué los alemanes enpleaban estos métodos, cuál era su objetivo?”95.

Na primeira parte da obra, em que são narrados os acontecimentos relativos ao gueto

de Lodz, as respostas são mais curtas e diretas, sendo que a maioria dos questionamentos se

encontra nesta parte do livro. Quando o texto se volta para a vida do autor nos campos de

concentração e extermínio, apesar do relato continuar se desenvolvendo de forma direta, não

há muitos questionamentos, fazendo com que o autor desenvolva mais pausadamente as

descrições sobre os episódios vivenciados.

Exatamente pela forma direta de sua narrativa, Benkel se prende muito mais aos

acontecimentos gerais, estruturais, do que aos fatos cotidianos ligados a sua família, como faz

sua irmã. É claro que Vinocur menciona aspectos gerais do gueto, como o dinheiro utilizado,

as cercas colocadas em volta da cidade, os soldados que os vigiavam, ainda que o faça como

uma espécie de pano de fundo de algum acontecimento familiar ou particular.

Para exemplificar a forma mais direta do pensamento sistematizado de Benkel,

mostrarei um trecho em que ele relata a designação de Rumkowski como líder máximo do

gueto, e depois como Vinocur narra o mesmo acontecimento:

“- Una delegación militar de jerarcas nazis llegó a la sede de la comunidad judía. Allí estaba presente un anciano dirigente de un orfelinato de nombre Jaime Rumkowski. Este anciano de 70 años fue nombrado por esos jerarcas, como principal dirigente del guetto. Le fue suministrada una carroza tirada por un caballo y el contrató a un cochero con quien recorría las calles como si fuera un conde. De vez en cuando paraba la carroza y pronunciaba un discurso que pocos entendían. Lo que quedó claro para nosotros fue que el guetto iba a funcionar con la precisión de un reloj”96. “Esta mañana los alemanes eligieron a una persona para que fuera dirigente de los judíos dentro del guetto. Lo llamaron Der Aelteste der Juden, que quiere decir ‘el mayor de los judíos’. Lo cierto es que es una persona de edad, tiene más de setenta años y se llama Jaime Rumkowski. Es de Lituania, habla el yiddish con acento lituano y también algo de polaco y alemán.

93 SANTOS, Antonio Cesar de Almeida. Fontes orais: testemunhos de vida e história. Comunicação apresentada à Mesa Redonda, A produção historiográfica e as fontes orais, no Evento comemorativo ao Sesquicentenário do Arquivo público do Paraná, em Curitiba, em abril de 2005. 94 BENKEL, Enrique. Op. Cit. 1986, p.15. 95 Id., ibid. p. 16. 96 Id., ibid. p. 23.

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En fin, ahora comienza una nueva era para nosotros. Ya tenemos nuestro ‘rey’. ¿Qué pasará ahora? El guetto ya está casi listo para separarnos del resto de la ciudad. Hoy vino mi amiga Walka a despedirse, me dijo (...) (Neste momento ela conta a conversa que teve com sua amiga, conta a ela sobre a morte de sua avó, ou seja, de acontecimentos relativos a sua família, depois retorna a falar de Rumkowski)97. En abril de 1940 cerraron el guetto. Nuestro ‘rei’ predicó y nos animó, diciendo que el guetto es un campo de trabajo y que si obedecemos no lo pasaremos tan mal. Tambiém dijo que no hay que olvidar que estamos en guerra y que dentro de algunos años el guetto marchará como un reloj. Fue un discurso muy extraño”98.

O autor também dá ênfase aos acontecimentos relativos ao desenvolvimento da

guerra, colocando no começo de alguns capítulos um breve resumo das batalhas, o que não é

contemplado nas memórias de Vinocur:

“ EN EL AÑO DE 1944 Después de la gran derrota de los alemanes en Stalingrado, las divisiones de Hitler, empezaron a perder terreno. El ejército soviético tras duras luchas prácticamente reconquistó todos los territorios perdidos. La línea del frente de batalla se acercaba, pues ya se luchava en territorio polaco. (...)”99. Claro que estas diferenças se dão devido a estrutura de cada uma das narrativas, ou

seja, Vinocur escreve como se fosse um romance, na forma “presente-passado”, já Benkel

apenas descreve suas memórias, relembrando seu passado da forma mais direta e clara

possível, sem se prender a sentimentalismos. Entretanto, muito mais que apenas uma escolha

pessoal de cada um dos autores, a forma como transmitem suas memórias está ligada

diretamente às motivações e objetivos deles com as obras, assim como aos aspectos pessoais e

psicológicos de cada um.

Vinocur deseja comover o leitor mostrando o sofrimento dela e de seus familiares

como um exemplo do sofrimento judeu em geral, para que as pessoas tentem entender como é

a dor de quem é discriminado e, identificando-se com ela, não permitam que ideologias

racistas ou qualquer espécie de preconceitos religiosos se proliferem. Já Benkel não procura

apenas emocionar, mas sim fazer com que através do conhecimento verídico dos

acontecimentos, as pessoas possam tirar suas próprias conclusões acerca do massacre judeu,

não acreditando em tudo que se fala a este respeito.

Isto é perceptível ao se comparar a maneira como os dois autores abordam os mesmos

assuntos. A forma direta e pouco sentimental de Benkel também se faz presente em episódios

em que seus familiares são envolvidos, onde até fatos dolorosos são descritos de uma maneira

mais racional, fria, bem diferente do que faz Vinocur. Pode-se tomar como exemplo, a

97 Comentário feito pela autora do trabalho, não constando na obra. 98 VINOCUR, Ana. Sin Título. Testimonio de una sobrevivente del holocausto judío. Montevidéu, 2002, p. 37. 99 BENKEL, Enrique. Op. Cit. 1986, p. 51.

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passagem onde ele conta a ida de seu irmão menor ao campo de extermínio, e como se saberá

posteriormente, sua morte na câmara de gás:

“Los comandos alemanes acompañados de la policía del guetto, iban de casa por casa y seleccionaban preferentemente a los niños y a los ancianos. (...) Después de finalizada la guerra, se pudo saber que perecieron en el campo de extermínio Maidanek. Entre ellos fue mi hermanito Leibush, de 10 años. En todas las casa se oían llantos, en todas faltaban integrantes. Un verdadero duelo colectivo. Los nazis castigaban a la población del guetto donde más dolía, 25 mil habitantes fueron evacuados, la mayoría niños. Por mucho tiempo los padres de los pequeños que les fueron arrancados de los brazos, no se pudieron reponer del shock, quedaron destrozados y envejecidos”100.

Em contrapartida, o mesmo relato narrado em Sín Título:

“Hoy supimos que los alemanes exigen veinticinco mil judíos. Piensan llevar tres mil por día. Primero piden a los enfermos, luego ancianos y niños. Nos quieren hacer creer que el guetto precisa gente de trabajo y que los niños molestan, así los abuelos cuidarán de los pequeños. De pronto se oyen voces, ¡son ellos, los alemanes! (...) ¡Qué ven mis ojos! ¡Llaman a nuestro hermanito! (...) Mi madre y yo pedimos clemencia. - Por favor devuélvannos a nuestro Leibush. Con una sola palabra o con un solo gesto vuestro bastaría para que Leibush vuelva con nosotros. (...) Quisiera ver otra vez a mi hermanito, a mi querido Leibush, pero no lo puedo ubicar pues ya hay muchos en el camión. Adiós querido, si Dios lo quiere nos volveremos a ver”101.

Esta pouca emotividade também está relacionada à religião. Em nenhum momento

de sua obra Benkel recorre a Deus, porém nota-se que, assim como sua irmã, ele é uma pessoa

que possuiu formação religiosa. Pela descrição que se encontra nos dois relatos sobre seus

pais, percebe-se que eles foram criados em uma família praticante do judaísmo, sendo

portanto tementes a Deus.

Entretanto, como visto no capítulo anterior, as obras de Ana Vinocur são repletas de

apelos religiosos, sendo que ela recorre freqüentemente a uma intervenção divina, assim como

atribui o fato de sua sobrevivência à vontade suprema. Já seu irmão é muito mais sutil,

demonstrando que fica triste ao ver os símbolos de sua religião diminuídos e as sinagogas

judaicas destruídas, mas em nenhum momento ele faz apelos a Deus, ou demonstra acreditar

que sobreviveu devido a Sua vontade:

“Recuerdo nuestra sinagoga, una obra arquitectónica admirable, verdadera y pitoresca muestra de nuestra cultura, a la que solía concurrir participando en el coro. Fue incendiada y ardió durante tres días. Después de consumirse fue dinamitada y destruida completamente. Un comando alemán la convirtió en un montón de escombros. Todos nos sentimos deprimidos”102.

100 Id., ibid. p. 49. 101 VINOCUR, Ana. Op. Cit. 2002, p. 76-77. 102 BENKEL, Enrique. Op. Cit. 1986, p. 14-15.

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Sua religiosidade também é perceptível quando ele está falando sobre a falta de

comida no gueto e o envio de outros alimentos, como a carne:

“De vez en cuando aparecía carne, pero era de caballo. La gente religiosa prefería morir y no consumir esta carne. La Biblia dice que cuando la vida corre peligro es permitido comerla (...). Recuerdo cuando nuestra madre compró esa carne e hizo albóndigas para nuestro hermanito Leibush (...). Un día insistió en que yo probara y comí una, pero sentí que la albóndiga me quedó en el estómago por varios días”103.

Por estas passagens do livro, dentre outras, fica claro que Benkel é seguidor das

doutrinas judaicas e temente a Deus, mas de uma forma muito mais reservada que Vinocur. A

forma com que ele desenvolve suas memórias faz com que procure explicar os

acontecimentos, ou seja, mostrar o conjunto de fatores que levaram a determinado fato

acontecer, não atribuindo a vontade divina todas as responsabilidades.

Outro fator que não se pode deixar de mencionar e que pode ter relação com a forma

direta, priorizando os acontecimentos macros e sem aspectos subjetivos da obra de Benkel, é

o fato dele ser do sexo masculino. Apesar de não ser uma regra geral, sabe-se que a maioria

dos homens, por uma questão educacional, oculta seus sentimentos. Além disto, o autor faz

parte de uma religião conservadora, em que o homem é visto como líder do núcleo familiar.

Conseqüentemente, suas memórias são influenciadas por estes aspectos, assim como eles se

mostram presentes na transmissão destas lembranças e na maneira como ele lida com sua

religião.

Na verdade, são as distinções de sexo, classe social, crença religiosa, forma de criação,

cultura, dentre outros, que fazem com que os testemunhos de sobreviventes dos campos de

concentração e extermínio sejam tão ricos, pois apesar de não haver contradição nos relatos,

pode-se compreender este episódio sob diferentes pontos de vista. Isto acontece pois os

testemunhos são frutos da memória, e como tais “as memórias individuais são construídas a

partir de vivências que os sujeitos experimentaram no curso de suas vidas, no interior de

grupos sociais”104.

Embora não seja meu objetivo neste trabalho traçar um perfil dos sobreviventes judeus

dos campos de concentração, pode-se perceber, a partir dos relatos destes três sobreviventes,

como um mesmo episódio é hierarquizado de maneiras diferentes. Isto já é visível apenas

103 Id., ibid. p. 34. 104 SANTOS, Antonio Cesar de Almeida. Fontes orais: testemunhos de vida e história. Comunicação apresentada à Mesa Redonda, A produção historiográfica e as fontes orais, no Evento comemorativo ao Sesquicentenário do Arquivo público do Paraná, em Curitiba, em abril de 2005.

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nestes dois autores, porém, ao analisar as memórias de Ernesto Kroch se perceberá uma

distinção ainda maior.

Antes de passar para a análise da obra de Kroch, vale a pena destacar os episódios

mais enfatizados por Benkel e os que ele não menciona no decorrer de sua obra, sendo estes

conhecidos através dos relatos de Ana Vinocur.

3.4 DESTAQUES E OMISSÕES

3.4.1 Desejo de Vingança

Assim como a tatuagem, as rebeliões e as fugas também foram enfatizadas pelo autor

em sua obra, como analisado anteriormente. Porém, o desejo de vingança é algo que chama a

atenção por não aparecer nas memórias de Vinocur, nem em outras lidas, como as de Levi,

por exemplo.

Enrique Benkel, mostra que após a sua libertação não foi o sentimento de culpa que

o dominou, mas sim o desejo de vingança. Isto foi algo muito presente também para os seus

companheiros de cativeiro, como mostra o trecho abaixo:

“Los capos alemanes uniformados se encontraban en la plaza principal y se creían todavía dueños del campo. Pero de tarde los presos que estaban en buenas condiciones físicas, salieron a tomar venganza contra ellos. El ober-capo corrió para poder escapar, pero fue alcanzado por un español que trabajaba en la cocina. Le clavó un cuchillo, dejándolo tendido en medio de un charco de sangre, cerca del potón de salida. Los capos fueron linchados por una turba de polacos y ucranianos, que se abalanzaron contra ellos. A uno le cortaron la cabeza con una hacha. Ninguno de los uniformados quedó con vida”105. “Muchos se cambiaban de vestimenta lo que les dio un aspecto aceptable. Pero lo que los sobrevivientes trataron de hacer primero fue vengarse. Esa incontrolable masa estaba dispuesta y con razón a hacer justicia por sus propias manos. La venganza hubiese sido fatal. Todo alemán encontrado hubiera sido masacrado. Pero los soldados americanos coparon todos los portones. No permitieron a los sobrevivientes salir del recinto del campo y aquel deseo no pudo realizarse y esa ansia de desquite no se pudo concretar”106. Estes relatos sobre a vingança podem estar ligados ao desejo do autor de legitimar

sua idéia de que os judeus não aceitaram passivamente aos ditames nazistas, mostrando ao

leitor que quando eles tiveram oportunidade se rebelaram, chegando até a matar alguns de

seus opressores. Segundo o autor, se não fosse os americanos impedirem, o número de

alemães mortos teria sido muito maior, por isso eles não puderam vingar-se completamente.

105 BENKEL, Enrique. Op. Cit. 1986, p. 151. 106 Id., ibid. p. 153.

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Até que ponto estes relatos são verídicos ou fruto da memória de Benkel, que quer

demonstrar que os judeus não foram levados “como ovelhas ao matadouro”, não se pode

precisar. Entretanto, o importante é perceber que ele procura a todo o momento valorizar as

vítimas dos campos de concentração, sendo toda sua narrativa canalizada para este fim.

Como já mencionado, os fatores que podem ter feito com que o autor tenha se detido

nestes aspectos são a necessidade de mostrar para seus filhos que houve resistência, talvez

com o intuito de que eles não se envergonhem de suas origens, e o fato de servirem de

consolo para o autor, ou seja, tanto as rebeliões como a vingança após a libertação dos Lager,

diminuem de certa maneira a dor de relembrar as atrocidades sofridas em mãos nazistas.

Diferentemente do que se nota nas memórias de Ana Vinocur, Benkel não quer

piedade, não deseja emocionar, mais sim contar a sua verdade. Por isto é tão importante

conhecer o que o fez lembrar, pois facilita a compreensão da medida em que o seu presente

colore o passado. Como menciona Michael Pollak,

“conforme as circunstâncias, ocorre a emergência de certas lembranças, a ênfase é dada a um ou outro aspecto. Sobretudo a lembrança de guerras ou de grandes convulsões internas remete sempre ao presente, deformando e reinterpretando o passado. Assim também, há uma permanente interação entre o vivido e o aprendido, o vivido e o transmitido”107. Além disto, ao lembrar de determinado episódio parte-se sempre de pontos de

referência que estruturarão os acontecimentos a serem narrados, sendo que estas lembranças

são ordenadas com “o intuito de conferir, com a ajuda da imaginação, ou da saudade, um

sentido à vivência do sujeito que narra a sua história”108.

Devido a estes fatores, fica claro que o autor pode ter dado importância em demasia à

vingança judaica contra os nazistas, seja para valorizar os sobreviventes judeus ou para

legitimar a sua tese de que houve resistência.

3.4.2 O Exército Norte-Americano

Logo no começo de seu livro, Benkel faz um agradecimento ao exército norte-

americano: “Agradezco por siempre a las gloriosas fuerzas aliadas y en particular al ejército

107 POLLAK, Michael. Memória, Esquecimento, Silêncio. Estudos Históricos; Rio de Janeiro, vol. 2, n. 3, 1989, p.10. 108 SANTOS, Antonio Cesar de Almeida. Fontes orais: testemunhos de vida e história. Comunicação apresentada à Mesa Redonda, A produção historiográfica e as fontes orais, no Evento comemorativo ao Sesquicentenário do Arquivo público do Paraná, em Curitiba, em abril de 2005.

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norteamericano que llegó primero. Llegaron y nos liberaron. Destrozaron las cadenas de la

esclavitud nazi y nos devolvieron la dignidad de seres humanos libres”109.

Ele mostra-se profundamente agradecido aos soldados americanos que os libertaram,

sentindo-se grato pela forma como eles trataram dos sobreviventes judeus e, segundo o autor,

os nazistas encontrados no caminho. Um episódio curioso é relatado no último capítulo do

livro, onde os judeus que se encontravam em melhores condições físicas conseguiram

convencer os soldados americanos, permitindo que fossem em busca dos nazistas que,

segundo se suspeitava, estavam refugiados nas redondezas. Os americanos munidos de

metralhadoras acompanharam os sobreviventes,

“salieron en varios jeeps en busca de ex-guardias o ex-jerarcas del campo (...). Uno de los ex-prisioneros reconoció al ex-comandante del campo de concentración Gussen. El nazi trjo a toda su familia a ese lugar para pasar inadvertido. Un soldado americano apuntaba con su fusil-ametrallador al ex-jerarca nazi y le ordenó tener los brazos en alto. (...) El soldado reaccionó y abrió fuego. Herido de dos impactos fue traído al campo. Su familia no fue molestada (...)”110.

Os aliados, por ganharem a guerra, libertarem os prisioneiros e condenarem os

nazistas são relatados por Benkel como heróis, sendo representados por aqueles que primeiro

chegaram ao campo em que ele estava confinado, ou seja, o exército americano. Já Vinocur

não expressa agradecimento algum aos aliados, demonstrando que acredita que eles poderiam

ter feito alguma coisa antes do massacre acontecer, dizendo que “(...) el mundo sepa que está

en deuda con nosotros, porque fue demasiado profundo su sueño!”111.

3.4.3 Os apátridas e a criação do Estado de Israel

Segundo Hannah Arendt, são muitos os fatores que desencadearam o massacre e

extermínio dos judeus nos campos de concentração e extermínio nazistas durante a Segunda

Guerra Mundial, refutando muitas teorias de que eles foram um alvo escolhido ao acaso,

aleatoriamente. Vale a pena lembrar que o anti-semitismo não nasceu no século XX,

possuindo raízes muito mais remotas: “A história do anti-semitismo, como a história do ódio

aos judeus, é parte integrante da longa e intrincada história das relações que prevaleciam entre

judeus e gentios desde o início da dispersão judaica”112.

109 BENKEL, Enrique. Op. Cit. 1986, p. 5. 110 BENKEL, Enrique. Op. Cit. 1986, p. 154-155. 111 VINOCUR, Ana. Op. Cit. 2002, p. 214. 112 ARENDT, Hannah. Origens do Totalitarismo. Anti-Semitismo, Imperialismo, Totalitarismo. São Paulo: Companhia das Letras, 1989, p. 18.

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Como o objetivo deste trabalho não é analisar as origens do anti-semitismo, não me

prenderei a esta questão, apenas me aterei em um dos fatores que facilitaram a disseminação

do anti-semitismo, ou seja, o fato dos judeus serem apátridas. Na verdade, este fato merece

destaque por ter sido citado tanto por Ana Vinocur quanto por Enrique Benkel, como sendo o

principal motivo da perseguição e do genocídio nazista.

Os judeus sempre se mostraram uma “nação dentro de outra nação”, preservando

seus costumes e crenças religiosas, não se integrando ao país em que viviam, e como analisa

Arendt, este “é ainda um dos aspectos mais comoventes da história judaica o fato de que o

ingresso dos judeus na história da Europa tenha sido motivado por constituírem um elemento

intereuropeu e não-nacional num mundo estruturado nacionalmente”113.

Durante a Primeira Guerra Mundial, o pensamento anti-semita já estava impregnado

na mentalidade dos alemães, acusando os judeus de não ajudar na defesa da nação que os

acolheu, de não participar das Forças Armadas, estando mais interessados em “garantir

benefícios pessoais”114. Assim, a única solução para este problema passou a ser eliminá-los

definitivamente da Alemanha, o que acabou ganhando destaque no decorrer deste conflito

mundial e, posteriormente, com a ascensão de Hitler ao poder.

Vinocur expressa em sua obra que aprendeu com sua avó que, mesmo tendo nascido

na Polônia não era polonesa, mas sim judia:

“- Nosotros somos un pueblo que dimos mucho al mundo. Les dimos la Biblia, que es el Libro de los libros, junto con los diez mandamientos. Durante muchos años vivimos como esclavos en Egipto, pero fuimos liberados por Moisés, y después de llegar a la Tierra Prometida tuvimos grandes guerras y varias invasiones. (...) Así que nuestra Tierra Prometida se llama hoy día Palestina y está bajo manadato británico. Quiere decir que es verdad que Polonia no es mi patria. Aunque nosotros éramos nacidos en Polonia, no se nos consideraba polacos. En nuestros documentos decía: “Nacido (a) en Polonia. Descendencia de Moisés”115. Apesar de nascidos na Polônia, Itália, Alemanha, dentre outros países, os

“descendentes de Moisés” não se consideravam poloneses, italianos ou alemães, mas sim

judeus, constituindo um grupo a parte na sociedade. Assim, a necessidade de voltar à Terra

Prometida, que seria a Palestina, foi algo sempre defendido por muitos judeus, gerando o

movimento sionista116. Este movimento foi uma conseqüência direta da propagação do anti-

semitismo, como menciona Arendt, “a única conseqüência direta e não-adulterada dos

113 ARENDT, Hannah. Op. Cit.1989, p. 43. 114 CARNEIRO, M. L. T. Op. Cit .2000, p. 21. 115 VINOCUR, Ana. Op. Cit. 2002, p. 27. 116 Movimento fundado por Theodor Herzl no século XIX, que tinha como principal objetivo o restabelecimento de uma pátria judaica na Palestina.

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movimentos anti-semitas do século XIX não foi o nazismo mas, ao contrário, o sionismo, que,

pelo menos em sua forma ideológica ocidental, assumiu o aspecto de consciente contra-

ideologia, de ‘resposta ao’ anti-semitismo”117.

Pelos relatos das memórias Vinocur e Benkel, nota-se uma defesa dos ideais

sionistas, acreditando que é um dever dos judeus lutar pelo restabelecimento de sua pátria,

pois se eles tivessem uma nação que os defendesse na época da ascensão de Hitler ao poder, o

genocídio não teria acontecido:

“Pienso que el deber de los sobrevivientes judíos tendría que ser éste: luchar para obtener de vuelta nestra patria, Israel, que nos fue arrebatada hace 2.000 años. Hitler no se hubiera animado a tanto sabiendo que hay quien nos defienda. Es muy fácil aniquilar aun pueblo sin patria, tenemos el ejemplo de los gitanos”118. Benkel também diz: “Desejaría que mi testemonio sirva de mensaje y de reflexión.

Creo que en futuro otro holocausto no podría acontecer, porque algo ha cambiado: el pueblo

judío tiene una Madre Patria; ISRAEL”119.

Na realidade, mesmo com a fundação do Estado de Israel, em 1948, os judeus

sempre dependeram da proteção de outros países, não conseguindo manter-se independentes.

Atualmente, são os Estados Unidos que oferecem a eles esta proteção, ajudando-os na luta

contra os palestinos que não concordam em ceder seus territórios, sendo o motivo de

inúmeros conflitos na região.

É interessante notar que muitos dos sobreviventes judeus da Segunda Guerra

Mundial compartilham destas mesmas idéias relacionadas ao Estado de Israel, considerando o

fato de serem apátridas o principal motivo da discriminação e do genocídio. Porém, não são

todos os sobreviventes que acreditam nesta versão, como veremos no próximo capítulo ao

analisar a obra de Ernesto Kroch.

3.4.4 O Uruguai

O leitor que não leu os livros de Vincour certamente não saberia que Benkel mudou-

se para o Uruguai após o término da Segunda Guerra Mundial. Em nenhum momento de seu

livro ele fala sobre este país, talvez pelo fato de seus relatos terminarem com a sua libertação

do campo de concentração. Entretanto, pelo menos no epílogo ele poderia ter relatado este

fato, o que não acontece.

117 ARENDT, Hannah. Op. Cit. 1989, p. 22. 118 VINOCUR, Ana. Op. Cit. 2002, p. 118. 119 BENKEL, Enrique. Op. Cit. 1986, p. 161.

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Assim como não há menção sobre o Uruguai, o autor também não fala sobre a

ditadura uruguaia, terminando sua obra com a seguinte frase: “Y con las democracias del

mundo de postguerra confío, serán suficiente garantía para que lo ocorrido no se vuelva a

repetir y sea recordado por siempre”120.

Benkel escreveu seu livro em 1986, após ter vivenciado o complicado período da

ditadura e, apesar de não poder ser comparado com o nazismo, foi uma época em que

ocorreram muitas mortes, repressões e violência. Assim, talvez até como exemplo do que

pode acontecer em um país se regimes ditatoriais tomarem o poder, ele poderia ter citado esta

questão.

Percebe-se então, que tanto Vinocur quanto Benkel pautam seus relatos no genocídio

judeu, e mesmo a primeira relatando um pouco sobre sua vida no Uruguai, as memórias destes

dois sobreviventes procuram legitimar e validar a história da perseguição e do massacre

hitlerista, deixando de lado outros acontecimentos importantes, dado até, como já visto, suas

intenções com as obras.

Porém, não são todos os sobreviventes judeus que baseiam suas memórias apenas

neste acontecimento. Ernesto Kroch é um ótimo exemplo disto, pois apesar de ser judeu, ter

vivido a perseguição nazista e também ter sido preso em um campo de concentração, outros

acontecimentos de sua vida fizeram com que este episódio acabasse ficando em segundo

plano em suas memórias, diferenciando-o completamente de Ana Vinocur e Enrique Benkel.

120 BENKEL, Enrique. Op. Cit. 1986, p. 161.

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4 ERNESTO KROCH

Neste capítulo analisarei o livro de Ernesto Kroch, intitulado Patria en el exilio,

Exilio en la patria121, em que o autor relata suas memórias acerca do período em que Hitler

assumiu o poder na Alemanha, até o final da ditadura militar no Uruguai.

Apesar de ser judeu e ter sido preso em um campo de concentração pelos nazistas, o

relato de Ernesto Kroch diferencia-se completamente dos de Ana Vinocur e Enrique Benkel.

Diferentemente dos dois, ele já era um jovem politizado na época em que o nazismo se

estabeleceu na Alemanha. Por isto, suas memórias são muito mais ligadas as causas políticas,

ocupando a sua identidade judaica um lugar secundário em sua narrativa.

Procuro mostrar neste capítulo, as principais características do livro que fornecem

pistas para se compreender a maneira como o autor memorizou a questão da perseguição

nazista aos judeus. Assim, como realizado nos capítulos anteriores, procuro demonstrar as

motivações e objetivos do autor ao escrever suas memórias, o estilo de escrita da narrativa e

os principais episódios destacados por ele em seu livro, sempre levantando os possíveis

motivos que fazem com que seu relato seja tão diferente do de Ana Vinocur e de Enrique

Benkel.

Como seu livro é uma fonte riquíssima de informações, não só a respeito da política

de extermínio nazista na Alemanha, mas principalmente com relação à ditadura uruguaia,

selecionei os dados a serem analisados. Por exemplo, muitas informações sobre os partidos

políticos de esquerda, o movimento de resistência à ditadura militar no Uruguai, dentre outros

acontecimentos que, apesar de importantes, não estão relacionados direta ou indiretamente às

lembranças do autor sobre período em que Hitler esteve no poder, não são mencionados.

Antes de mostrar as motivações de Kroch ao escrever suas memórias, apresento um

resumo de sua biografia, que ajudará na compreensão da maneira como suas recordações são

transmitidas em em Patria en el exilio, Exilio en la patria.

121 KROCH, Ernesto. Patria en el exilio, Exilio en la patria. Recuerdos de Europa y Latinoamérica. Montevidéu: Ediciones de la Banda Oriental, 2003, 205 p.

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4.1 UMA BREVE BIOGRAFIA DE ERNESTO KROCH

Ernesto Kroch nasceu na cidade de Breslau122, na Polônia. Filho de judeus burgueses,

seu pai trabalhava como viajante em uma empresa de confecção e sua mãe cuidava do lar.

Vale ressaltar, como o próprio autor menciona, que seus pais eram “liberales y tolerantes”123,

o que facilitou seu ingresso em grupos políticos de esquerda.

Desde pequeno, gostava muito de ler e de escrever, sendo uma criança tranqüila e

obediente, mas que sabia se impor quando era necessário, confiando mais no “poder de la

palabra que en la fuerza”124.

Aos doze anos, ingressou na Associação Juvenil “Camaradas”, um movimento de

jovens muito tradicional na Alemanha, onde “la joven generación se alzaba contra la forma de

vida de sus mayores”125. Esta associação, cujos membros eram oriundos de famílias judias

alemãs, promovia constantes reuniões em que eram discutidos os problemas políticos,

econômicos e sociais da época. Motivado por estas reuniões e interessado nas questões

políticas, começou a ler alguns livros sobre o assunto, dentre eles Introdução à Economia

Política, de Karl Kautsky, sendo este um resumo de O Capital, de Karl Marx.

No ano de 1932, os “Camaradas” foi dissolvido e seus membros se dividiram em

outros grupos, conforme suas crenças políticas. Assim, uns penderam para o sionismo, outros

apoiaram o nacional-socialismo, e havia ainda aqueles que se renderam aos movimentos de

esquerda, dentre estes, Ernesto Kroch. Ele acaba ingressando no KPO (Partido Comunista

Alemão/Oposição), cuja meta prioritária era impedir que Hitler tomasse o poder, prevenindo a

ditadura fascista e a guerra.

Os anos passam, Hitler assume o poder e Kroch se envolve cada vez mais na luta

comunista, sendo este o motivo que o faz ser preso pela Gestapo por dois anos e meio, e logo

depois “libertado” e enviado para o campo de concentração de Lichtenburg (1936).

Permaneceu neste Lager por aproximadamente oito meses, sendo solto no dia 26 de janeiro de

1937, com a condição de que deixasse a Alemanha no prazo de dez dias e não retornasse mais

ao país.

Com ajuda de um tio de seu amigo, conseguiu uma passagem e viajou para a

América Latina, fixando residência no Uruguai. Passou a viver em Montevidéu, onde

122 Atualmente cidade de Wroclaw. 123 KROCH, Ernesto. Op. Cit. 2003, p. 37. 124 Id., ibid. p. 30-31. 125 Id., ibid. p. 34.

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continuou suas atividades políticas comunistas, porém agora ligadas à sua nova pátria. Além

disto, casou-se e teve dois filhos que, por sua vez, seguiram os mesmos caminhos políticos do

pai.

O autor permaneceu durante toda a Segunda Guerra Mundial no Uruguai, militando

fervorosamente no Partido Comunista uruguaio, e após o fim do conflito mundial passou a se

preocupar com os problemas sociais que assolavam o país.

Entretanto, no decorrer da Guerra Fria e da introdução de ditaduras nos vários países

da América Latina, como Brasil e Argentina, Ernesto Kroch enfrentou um período de

instabilidades políticas no Uruguai e a tomada do poder pelos militares. Como se envolveu na

resistência comunista, teve que sair fugido de sua pátria adotiva, refugiando-se primeiramente

no Brasil e posteriormente na Alemanha, onde permaneceu até o fim da ditadura uruguaia.

Quando não havia mais perigo de ser preso pelos militares, ele retorna ao Uruguai, onde

permanece até hoje.

4.2 MOTIVAÇÕES E OBJETIVOS DE ERNESTO KROCH AO ESCREVER SUAS

MEMÓRIAS

Os dois autores analisados anteriormente, procuraram deixar claro ao leitor o que os

motivou e seus principais objetivos aos escreverem suas obras. Assim, tanto nos elementos

pré-textuais de seus livros quanto no desenvolvimento da narrativa, eles demonstram o que

pretendem com seus depoimentos, sendo este o fator norteador das três obras já analisadas.

Ernesto Kroch não segue, todavia, o mesmo padrão de Vinocur e Benkel. Ao

contrário, não deixa explícito ao leitor o que o levou a escrever suas memórias. É somente no

último capítulo do livro, intitulado “...aun en mi ausencia”126, que sutilmente ele expõe o

porque resolveu publicar a história de sua vida:

“Creo no haber vivido en vano. Siempre habrá de permanecer algo de lo que uno deja. En cuanto a mí, permanecerá alguna estructura de acero, que seguramente se oxidará con el tiempo pero antes habrá servido para esta o aquella producción útil. O un par de palabras que tuvieron resonancia en esta o aquella persona y podrán influir a terceros. Quizá permanezca algo de mi modo de ser o de mi ejemplo en mis hijos. Es difícil adivinhar qué es lo que permanecerá. Pero es un consuelo pensar que algo quedará”127.

126 KROCH, Ernesto. Op. Cit. 2003, p. 204. 127 Id., ibid. p. 204-205.

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Michael Pollak menciona que “no momento em que as testemunhas oculares sabem

que vão desaparecer em breve, elas querem inscrever suas lembranças contra o

esquecimento”128. Analisando o trecho citado acima, percebe-se que este é um dos motivos

que levaram Kroch a escrever Patria en el exilio, Exilio en la patria. De acordo com os dados

fornecidos no livro, o autor possuía mais de setenta anos de idade quando resolveu publicar

suas memórias. Assim, o medo de que sua história de vida, sua luta e os episódios que

presenciou como testemunha caíssem no esquecimento após sua morte, é o que o fez

transformar suas recordações em um livro.

O fato do autor não pretender legitimar um ponto de vista ou querer, a partir do seu

testemunho, evitar que algo aconteça, mas sim relatar os acontecimentos de sua vida que tanto

o orgulham para que estes não sejam esquecidos após sua morte, faz com que sua narrativa

assuma características totalmente diferentes das encontradas nas obras de Vinocur e Benkel,

como procurarei demonstrar nos tópicos abaixo.

4.3 FORMA DE ESCRITA E CARACTERÍSTICAS DA OBRA

Ernesto Kroch procura relatar em seu livro os acontecimentos que vivenciou desde

sua introdução na política, ainda na adolescência, até o fim da ditadura uruguaia. Entretanto, o

livro não segue uma ordem cronológica, ou seja, o autor inicia sua narrativa situando o leitor

sobre sua atual situação no Brasil, e conforme o relato se desenvolve ele vai relembrando os

acontecimentos mais importantes de sua vida, até voltar a falar de seu exílio em São Paulo no

final do livro.

Estas constantes “idas e vindas” de Kroch transmite a sensação de que ele está

realmente contando a um espectador sua história de vida. Até por que, como menciona

Antonio César Santos:

“voltar no tempo é um exercício que necessita de um constante ir e voltar, pois cada lembrança ancora-se a um momento do presente. Do mesmo modo, cada lembrança trazida à tona pelo entrevistado irá associar-se a uma outra que, aparentemente, não mantém qualquer vinculo com a anterior”129.

128 POLLAK, M. Memória, Esquecimento, Silêncio. Estudos Históricos, Rio de Janeiro, vol. 2, n. 3. 1989. 129 SANTOS, Antonio Cesar de Almeida. Fontes orais: testemunhos de vida e história. Comunicação apresentada à Mesa Redonda, A produção historiográfica e as fontes orais, no Evento comemorativo ao Sesquicentenário do Arquivo público do Paraná, em Curitiba, em abril de 2005.

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A forma como o autor desenvolveu sua narrativa mistura-se com a própria forma de

rememoração utilizada por sua memória para remeter-se ao passado. Apesar de Ana Vinocur

também se utilizar deste recurso em alguns momentos de sua obra, ela atém-se mais em narrar

os acontecimentos cronologicamente, situando constantemente o leitor no tempo. Além disto,

o autor posiciona-se claramente no presente relembrando os acontecimentos ocorridos no

passado, utilizando, na maior parte das vezes, o passado como tempo verbal.

Assim como Benkel, ele se pauta nos acontecimentos “macros”, situando o leitor

num contexto histórico mais amplo. Até pelo fato da quantidade de informações presentes na

obra, que remontam aos acontecimentos relativos a perseguição nazista e a ditadura uruguaia,

o autor não detalha minuciosamente todos os episódios vivenciados.

Ao relembrar dos acontecimentos passados, Kroch procura analisar, refletir sobre os

motivos que o levaram a fazer determinadas escolhas, como se nota no trecho abaixo:

“¿Cuándo llegué al punto de inflexión de mi vida? ¿Cuál fue el factor que me fue conduciendo, paso a paso, hacia la opsición al fascismo y a esta celda oscura del “Tercer Reich” y me llevó de un ingenuo egocentrismo a los torbellinos de responsabilidad social? Es absurdo pensar que fuera una situação momentánea la que hubiera dado el impulso para un desarollo tan decisivo. Sin embargo, no queda duda que el primer eslabón em mi evolución estaba dado por mi egreso a los ‘Camaradas’”130.

Mas apesar destas reflexões, o autor não demonstra muita emotividade, ou seja, ele

relembra, reflete, mas não demonstra os sentimentos relacionados a cada experiência relatada,

como faz Ana Vinocur. Isto pode acontecer, como já mencionado nos capítulos anteriores,

devido aos objetivos dos autores com suas obras. Vinocur procura emocionar, comover o

leitor, com a intenção de que as pessoas compreendam o sofrimento dos judeus e não deixem

que outro episódio como este venha repetir-se. Já Ernesto Kroch mostra-se muito mais

intencionado a relatar suas experiências de vida, para que sua história não caia no

esquecimento com sua morte.

Vale a pena mencionar ainda, que o autor não demonstra em seu texto suas crenças

religiosas, nem faz menção alguma a Deus, dando a entender que é ateu.

130 KROCH, Ernesto. Op. Cit. 2003, p. 34.

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4.3.1 A Relação Entre “Ser Judeu” e a Prisão no Campo de Concentração

Algo que chama mais a atenção do que a pouca emotividade ou a omissão religiosa

do autor, é a maneira como ele encara o fato de ser judeu e sua prisão no campo de

concentração.

Como já mencionado, Ernesto Kroch iniciou sua vida política na Associação Juvenil

“Camaradas”. Quando Hitler ascende ao poder na Alemanha, esta instituição é fechada e seus

membros dividem-se em outros grupos, conforme suas ideologias. Kroch insere-se no Partido

Comunista Alemão (KPO), e depois se filia ao Movimento Juvenil Comunista/Oposição

(KJO), onde começa a distribuir panfletos contra o regime nazista.

Vale a pena destacar, que antes de Hitler chegar ao poder na Alemanha, o autor já

possuía afinidade com as causas comunistas, além de ser um conhecedor dos escritos de Marx

e Engels, como ele mesmo afirma:

“Mi primer encuentro con Karl Marx resultó una vivencia muy profunda. Había leído Introducción a la economía política, de Karl Kautsky, un resumen de El Capital, de Marx y estaba entusiasmado tanto por la contundencia de su análisis de la economía de mercado y de capitales como por su método dialéctico para detectar las relaciones sociales en el inanimado mundo de mercancías. Nunca antes me había ocupado de los problemas económicos; más bien los había detestado por monótonos y aburridos. Lo primero que me llamó la atención fue la forma de exposición científica, la misma que me entusiasmaba en las matemáticas, es decir, que fue más el método que el objeto lo que logró fascinarme. (...) Luego de la lectura del libro de Kautsky, me interesé en conocer más de las obras de Marx y Engels y me dispuse a leer alguna de ellas – por suerte algo más accesible El Capital”131.

Este é um aspecto muito importante pois, ao contrário de Vinocur e Benkel que não

possuíam conhecimentos políticos, até por serem crianças na época em que os nazistas

assumem o poder, Kroch é um jovem intelectual marxista. Assim, quando o nacional-

socialismo começou a se afirmar na Alemanha e a ascensão de Hitler ao poder ganhou

contornos mais nítidos, ele já fazia parte de um partido que tinha como “meta prioritaria de

impedir la llegada de Hitler al poder, prevenir la dictadura fascista y la guerra”132.

Diferente da maioria dos judeus que foram tomados pela surpresa com a perseguição

nazista, sem entender os boicotes econômicos, sociais e políticos - como visto nos livros de

Ana Vinocur e Enrique Benkel, onde sua família não compreendia o que estava acontecendo -

131 Id., ibid. p. 42. 132 Id., ibid. p. 44.

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Ernesto Kroch e seus companheiros sabiam muito bem quais os planos do novo governo, ou

seja, o “comienzo en gran escala la caza de ‘marxistas y judíos’”133.

Quando os nazistas tomam o poder e iniciam-se as perseguições aos judeus, o autor

já está totalmente envolvido com as causas comunistas e sindicais, por isto sua preocupação

não se volta tanto para as causas judias, mas sim, nas conseqüências que a ditadura iria trazer

para o proletariado, no fim das liberdades individuais e na perseguição aos partidos de

esquerda.

Antes de ser enviado para o campo de concentração, Kroch é preso pela Gestapo

acusado de “preparativos para alta traición”134, ou seja, por ser comunista e conspirar contra o

regime nazista. Foi julgado e condenado a dois anos e meio de reclusão, sendo descontado o

período de permanência na prisão preventiva, ficou encarcerado por um ano e meio. No dia

nove de maio de 1936 ele foi libertado, porém, como ele mesmo menciona:

“podía entender el punto de vista de la Gestapo: para el ‘delito’ cometido por mí – y para su régimen de terror se trataba realmente de un ‘delito’ – un año y medio de prisión era demasiado poco. En un principio permanecí encarcelado en la jefatura de policía, ‘para mi proteción personal’”135.

Depois disto, foi enviado para o campo de concentração de Lichtenburg, onde

permaneceu por aproximadamente oito meses.

Ao contrário do que aconteceu com Ana Vinocur e Enrique Benkel que passaram

quatro anos e meio confinados no gueto de Lodz, vivendo uma série de restrições e

discriminações, vendo seu irmão menor ser levado pelos nazistas, e depois serem enviados

para diferentes campos de concentração e extermínio, sem compreender o fizeram de tão

grave para estarem presos, Kroch sabia o motivo de estar sendo levando para um Lager. Na

verdade, este foi preso por oferecer resistência ao regime nazista, por ser comunista, e o fato

de ser judeu acabou sendo somente mais um detalhe, que resultou em dois triângulos em seu

uniforme: um vermelho por ser preso político, e um amarelo por ser judeu.

Por isto, o fato de ser judeu não foi algo que o afetou diretamente - apesar de ter

perdido seus pais em um campo de concentração e extermínio -, sendo algo muito menos

importante em sua vida do que sua militância política.

Além disto, o autor sente orgulho de suas conquistas, de ter lutado contra o regime

nazista e a ditadura uruguaia, sendo torturado e humilhado por ter lutado por uma causa. Isto

também justifica o estilo de escrita de seu livro, pois sua intenção não é legitimar um

133 Id., ibid. p. 46. 134 Id., ibid. p. 67. 135 Id., ibid. p. 71.

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discurso, ou tentar provar algo, mas sim, relatar como foi sua vida de luta contra regimes de

extrema direita. Com relação a isto, vale citar uma passagem de Patria en el exilio, Exilio en

la patria, onde o autor diz:

“Cada persona tiene necesidad de una finalidad o un sentido para poder continuar viviendo. Esto podría ser: bienestar material, los hijos, la mujer amada, un auto, viajes alredor del mundo, o paz y comodidad, una jubilación en la vejez. O motivaciones inmateriales: la patria, el credo religioso o la revolución social, el socialismo. O motivaciones personales, como el reconocimiento o la fama, aun el orgullo secreto de haber realizado algo importante, ya sea en el trabajo, en las artes o en las ciencias. Pero sin el impulso orientado a una meta cercana o lejana sería imposible llevar una vida consciente”136.

Já Vinocur e Benkel, sofreram as humilhações por parte dos nazistas, tiveram seus

pais mortos, viram o sofrimento de outras pessoas que, como eles, estavam padecendo pelo

simples fato de serem judeus. Devido a isto, seus livros transmitem a revolta, a dor e a

incompreensão de pessoas que foram torturadas física e psicologicamente, sendo a vergonha e

o sentimento de culpa algo que sempre os atormentou, mesmo depois de décadas do fim da

Segunda Guerra Mundial.

Não se pode também deixar de mencionar, que Ernesto Kroch foi enviado ao Lager

no ano de 1936, quando a perseguição aos judeus não estava tão acirrada, nem havia sido

colocada em prática a “Solução Final”. Além disto, como menciona Carneiro, este foi um ano

de trégua ocasionado pelas Olimpíadas em Berlim:

“Em 1936, diante da possibilidade de os XI Jogos Olímpicos não virem a ser realizados em Berlim e em conseqüência da pressão estrangeira, a política anti-semita recuou por um certo período. A realização das Olimpíadas forçou os nazistas a conterem seus rasgos de ódio. Interessava ao Reich mostrar ao mundo o poder e a força da raça ariana premiada com todos os louros do esporte. Mas nem assim a Alemanha deixou de ser uma vitrine do anti-semitismo e do racismo contra os negros”137.

Kroch foi libertado em 1937, com a condição de que não retornasse mais ao país,

deixando mais uma vez expresso que suas atividades políticas preocupavam muito mais os

nazistas do que o fato de ele ser judeu.

Na verdade, quem sofreu com a perseguição nazista foram seus pais que

permaneceram na Alemanha, sendo que é através das cartas que trocava com eles e pelas

notícias que chegavam no Uruguai sobre a guerra, que ele se interou sobre as medidas

adotadas por Hitler contra os judeus.

136 Id., ibid. p. 78. 137 CARNEIRO, M. L. T. Op. Cit. 2000, p. 43.

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Além disto, devido à recusa das organizações judaicas em ajudar seus pais a fugirem

da Alemanha, Kroch acabou ressentindo-se e culpando os próprios judeus pela morte de seus

pais, como veremos mais detalhadamente no tópico abaixo.

4.3.2 O Movimento Sionista e às Organizações Judaicas

Outro aspecto importante a ser destacado na obra de Kroch, é a sua relação com o

movimento sionista. Paralelamente ao momento de trégua ocasionado pelas Olimpíadas de

Berlim, os grupos envolvidos com o sionismo se mobilizaram na intenção de obterem terras

na Palestina para formar o Lar Judaico. Como menciona Carneiro, “Muitos acreditavam que o

desaparecimento do anti-semitismo se daria a partir do completo reconhecimento dos judeus

como nação. Movidos por este sentimento de conquistar a Terra Prometida, muitos judeus

perseguidos pelos nazistas dirigiram-se para a Terra de Israel (Eretz Israel)”138.

Este pensamento foi algo mencionado tanto por Vinocur quanto por Benkel, como

analisado nos capítulos anteriores, que acreditavam que se durante a Segunda Guerra Mundial

já existisse o Estado de Israel, o genocídio contra os judeus não teria acontecido.

Ernesto Kroch também se posiciona a respeito deste assunto, porém de maneira

contrária aos outros dois autores estudados. No capítulo XI de Patria en el exilio, Exilio en la

patria, quando o autor relata sua ida para a Iugoslávia após a libertação do campo de

concentração, ele afirma:

“Corría el año de 1938 y debíamos partir. Mis padres me habían conseguido un cupo para estudiar en el politécnico de Haifa. Podría haber sido una oportunidad. Pero yo no quería ir a palestina. No solamente porque no era sionista, pues si no hay otra...la necessidad tiene cara de hereje, y la mayoria de los que emigraron a Palestina lo debe haber hecho por necessidad más que por convencimiento. Pues ya en aquella época era evidente que ese territorio no sólo estaba dominado por Inglaterra, sino que también estaba habitado por árabes, y yo no tenía la menor intención de entrar en conflicto com ellos por un “Estado judío” que no me interesaba”139.

Através desta passagem, fica claro que Kroch não compartilha de idéias sionistas. O

autor desfere ainda duras críticas às organizações judaicas, acreditando que elas poderiam ter

ajudado de uma maneira mais efetiva aos judeus que queriam fugir da perseguição nazista:

“Sin embargo, me pregunto, en vista de las enormes sumas enviadas especialmente por los judíos de Norteamérica a Israel en los últimos decenios y que son despilfarradas en parte em la guerra o en la represión de los palestinos, ¿por qué las organizaciones de ayuda judías no ofrecieron ayuda monetariam aunque fuera en calidad de préstamo, en los casos en que se daba la oportunidad de escapar? ¿ Cuántos podrían haberse salvado?”

138 CARNEIRO, M. L. T. Op. Cit. 2000, p. 44. 139 KROCH, Ernesto. Op. Cit. 2003, p. 86.

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Vale a pena ressaltar, que esta crítica do autor se fundamenta no sofrimento de seus

pais na tentativa de deixar a Alemanha. Durante o ano de 1940, eles tiveram a oportunidade

de fugir para a Palestina com um grupo de viagem. Porém, como não possuíam dinheiro para

a passagem, recorreram à União Central dos Judeus da Alemanha em Berlim, que por sua vez

disseram que não tinham como ajudar. O autor ainda relata que “la ‘Unión Central’

seguramente no poseía en aquellos tiempos ningún cobre más, pero debía tener los contactos

necesarios con organizaciones de ayuda en el extranjero, y era justamente de allí que debían

provenir las divisas solicitadas”140. Como seus pais não conseguiram o dinheiro necessário

para deixar o país, acabaram sendo presos pelos nazistas no ano de 1942 e mortos nos campos

de concentração.

Em outra passagem do texto, quando o autor visita Israel na década de 70, ele

repreende as atitudes tomadas pelos judeus em relação aos palestinos, dizendo:

“Bueno, aquí no quisiera vivir. No se trata de la inseguridad, el peligro de la guerra, sino del nacionalismo miope, que no reconoce otros derechos que los propios. Justamente en caso de los israelíes esto me extraña. Fueron perseguidos como judíos. Huyeron hacia aquí de las persecuciones, sea por ‘raza’, religión o como pueblo...y no comprenden lo que sienten otros pueblos, como los palestinos, cuando son perseguidos y oprimidos”141.

Esta crítica à política israelense e aos judeus de uma maneira geral, é demonstrado

em inúmeros momentos do texto. Além disto, como já mencionado, a sua identidade étnica

não é enfatizada. Isto talvez ocorra porque, de certa maneira, ele acabou transferindo a culpa

da morte de seus pais aos próprios judeus, que não se empenharam em ajudá-los a sair da

Alemanha.

Esta é umas das grandes diferenças entre os três autores analisados, que acaba por

delinear a forma como cada um memorizou seu passado, dando mais ou menos ênfase ao

massacre judeu. Pois, enquanto Vinocur e Benkel transferem toda a culpa do sofrimento que

passaram e da perda de seus familiares aos nazistas, Kroch questiona as próprias organizações

judaicas pela morte de seus pais, mas seguramente era contra Hitler.

Vale a pena destacar, que ele não presenciou os horrores da guerra como os dois

outros autores, pois durante o período em que a deportação e as mortes nos campos de

concentração e extermínio se acirraram, a partir de 1941, ele já estava estabelecido no

Uruguai. Assim, as notícias que ele teve sobre esta época se pautam nas cartas de seus pais e

no que ele leu sobre o assunto a posteriori.

140 Id., ibid. p. 100. 141 Id., ibid. p. 140.

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A lutas comunistas, primeiramente na Alemanha e depois no Uruguai, são

acontecimentos mais presentes na vida do autor, ou seja, foram os eventos que ele participou

como testemunha ocular, por isto sua narrativa pauta-se muito mais nestes assuntos do que na

perseguição e no massacre nazista. Além disto, ele não tem a intenção, como Vinocur e

Benkel, de denunciar as atrocidades nazistas, pois como visto, sua revolta é muito mais

voltada aos próprios judeus.

4.4 O URUGUAI

O autor destina a maior parte de seu livro para relatar sua vida no Uruguai,

mencionando fatos relativos a sua viagem à América Latina, sua adaptação no novo país, a

busca pelo emprego, seu casamento, o nascimento de seus filhos, sua introdução no Partido

Comunista do Uruguai, sua militância durante a ditadura, dentre outros.

Entretanto, devido aos meus objetivos com este trabalho, procurarei analisar os

aspectos ligados a sua adaptação e a importância que a ditadura uruguaia tem em suas

memórias frente aos acontecimentos relativos à Alemanha nazista.

4.4.1 A Receptividade e a Dificuldade de Adaptação

Entre os dois autores analisados anteriormente, somente Ana Vinocur comenta como

foi recomeçar a vida no Uruguai após o fim da Segunda Guerra Mundial. Ela exalta a

democracia existente neste país e a receptividade de seus habitantes diante dos recém-

chegados. Além disto, fala a respeito das dificuldades de adaptação a uma nova língua e a

novos costumes, totalmente diferentes do que ela estava acostumada:

“No fue fácil para mi acostumbrarme a la vida de un país del que no conocía ni sus costumbres ni su idioma. Aunque los uruguayos fueron muy solidarios explicándonos cada detalhe, cada objeto, hablándonos lentamente, aun así nos era dificil aprender, ya que ninguno de los idomas que hablábamos se parecía al español”142.

Ernesto Kroch, por sua vez, diz que não teve problemas com relação à adaptação,

pois não havia abandonado a Alemanha da noite para o dia. Foi preso durante dois anos pela

142 VINOCUR, Ana. Volver a vivir después de Auschwitz. Montevidéu, 1999, p. 132.

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Gestapo, enviado para o campo de concentração, depois de libertado foi para a Iugoslávia e só

então veio para a América Latina, tendo se desenraizado aos poucos de sua terra natal:

“Además, en mi caso, o alejamiento se había realizado poco a poco: prisión, campo de concentración, Yugoslavia y recién después Sudamérica. No había abandonado Alemania de la noche a la mañana. Se me había desterrado en etapas, aunque de un modo brutal. Así tuve tiempo de adaptarme. Debido a mi juventud, tempranamente acostumbrado a los golpes del destino y a la privación, habiendo pasado por la escuela de los interrogatorios de la Gestapo y el infierno de Lichtenburg, llegué al Uruguay sin grandes pretensiones. Libre del peso del recuerdo del patrimonio perdido y sin ambiciones de conseguir riquezas materiales”143.

É interessante notar, que ele menciona não ter sofrido pela recordação de um

patrimônio, de uma vida perdida, sendo algo bem diferente do que visto nas obras de Ana

Vinocur. Kroch não se comportou como se tivessem lhe privado de sua vida na Alemanha,

pois ele estava exilado no Uruguai devido às suas convicções, lutando contra o regime

nazista. Como veremos, neste país o autor continuou sua luta política, obtendo maiores

conhecimentos do que possuía na Alemanha, além de se envolver com movimentos sociais.

Por isto, ele encara seu exílio como uma conseqüência de suas escolhas pessoais e um

aprendizado, e não como uma “vida perdida”.

Já para Ana Vinocur, a perseguição e o massacre nazista em nada somaram em sua

vida, somente lhe tiraram a família, os amigos e a adolescência. Como muito bem menciona

Kroch,

“el que piensa en categorías políticas, suprapersolnales, puede superar más fácilmente infortunios y carencias, vivir austeramente, sin que por ello se traume como tantos otros que sólo por su pertenencia al judaísmo fueron perseguidos cruelmente y forzados a emigrar. Se trataba mayormente de personas que, habiendo pertenecido a círculos pudientes, muchas vezes con profesiones académicas, se encontraban ahora en el extranjero sin medios económicos, con títulos que no eran reconocidos, y tenían que recomenzar desde abajo”144.

Os diferentes motivos que levaram Vinocur, Benkel e Kroch a saírem de sua terra

natal, refletem diretamente na maneira como eles vão vivenciar as novas experiências vividas

no Uruguai. Assim, como também refletem na forma como eles relembram e transmitem suas

memórias, pois enquanto Vinocur e Benkel relembram de uma vida que lhes foi tirada pelo

regime nazista, Kroch se recorda do exílio causado por suas atitudes contra o nazismo.

Além da adaptação, o idioma também não se mostrou um grande problema para

Kroch,:

“Tampoco el idioma del país – el español – constituyó un problema para mí. Ya habíamos comenzado a aprenderlo con ayuda de un libro de texto en Zagreb y en el ‘Alsina’ aprovechamos la oportunidad

143 KROCH, Ernesto. Op. Cit. 2003, p. 92. 144 Id., ibid. p. 92-93.

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de utilizarlo conversando con los refugiados de la Guerra Civil Española. Me ayudaba además el latín aprendido en el ‘Liceo del Zwinger’”145.

Na verdade, a maior dificuldade para ele foi compreender a mentalidade e os

costumes dos uruguaios, totalmente diferentes dos europeus:

“Lo que me resultaba nuevo era la mentalidad de la gente, la forma distinta de vivir de los criollos, como se denominaban aquí los habitantes. Un estilo de vida más ligero, más juguetón, quizás algo más superficial, pero igualmente racional, sereno y escéptico, lleno de calidez humana y simpatía. Esto creí encontrar en mis nuevos compañeros de trabajo. Casi no había rivalidades, el trabajo no era tomado tan en serio, se charlaba, se jugaba con una pelota de trapo (...)”146.

Percebe-se então, que por mais diferentes que tenham sido as experiências entre os

três autores, com exceção de Benkel, que nem sequer menciona o Uruguai em seu livro, eles

procuram relatar como foi a adaptação no novo país, mencionado a questão do idioma, dos

costumes e da forma tão diferente de pensar dos sul-americanos.

Entretanto, algo que chama a atenção é que mesmo os três autores vivendo no

Uruguai na época em que o poder do país foi tomado pelos militares, somente Ernesto Kroch

relata esta questão em suas memórias. Vejamos então, como esta fase da história do Uruguai

foi retratada pelo autor, tentando entender os motivos que fizeram com que o mesmo

destinasse grande parte de sua obra para tratar deste assunto.

4.4.2 A Ditadura Uruguaia

4.4.2.1 Um breve resumo sobre a ditadura uruguaia

Como já mencionado no capítulo 2, o Uruguai sempre foi conhecido por sua

democracia, sendo “o país da justiça social, o país das tradições liberais, do asilo irrestrito ao

perseguido político, o país que se atrevera a separar a Igreja do Estado, que implantou o

divórcio, o país do ensino laico, obrigatório e gratuito, que se orgulhava de não ter analfabetos

nem presos políticos”147. Entretanto, enfrentou por doze anos um período de ditadura militar.

A ditadura uruguaia é resultado de um longo processo político e econômico iniciado

logo após o fim da Segunda Guerra Mundial. Porém, contemplarei os acontecimentos mais

imediatos que darão suporte para a compreensão da participação de Kroch neste movimento.

145 Id., ibid. p. 93. 146 Id., ibid. p. 93. 147 FILAHO, A.V. Uruguai: um campo de concentração? Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1979, p. 28.

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Em fins de 1967, o atual presidente do Uruguai, Oscar Gestido, vem a falecer, sendo

que quem assume o poder é o seu vice, Jorge Pacheco Areco. Como menciona Fialho,

“Pacheco Areco era um homem sem doutrina política, literalmente sem idéias, em todo caso, sem ideologia. Na conjuntura interna e internacional, ele se alia à oligarquia – que era o mais cômodo, o mais sem imaginação e o mais seguro. A oligarquia dava ao Presidente homens de empresas. Oferecia-lhe meios simples de dominação, assessorava-o na obtenção de ajuda externa, benquistava-o com as ditaduras vizinhas. Os próprios oligarcas integravam seu gabinete e conduziam o leme sem disfarce”148.

Apoiando os interesses dos banqueiros e dos latifundiários, Areco começou a

reprimir os partidos de esquerda, colocando inúmeros grupos políticos na ilegalidade, como

COS, PS, MRO, FAU, dentre outros. A partir de junho de 1968, implantou uma série de

“Medidas de Segurança”, onde o abuso de poder, prisões, torturas e demissões tornaram-se

comuns.

Vale mencionar ainda, que durante o seu governo as Forças Armadas, “dado seu

modesto status tradicional, foi, em termos econômicos, o setor estatal mais altamente

beneficiado”149. Assim, estimuladas pelas oligarquias e pelos interesses internacionais, as

Forças Armadas começaram a preparar o golpe.

Em 1971, na tentativa de tirar os oligarcas do poder, surge uma coligação

denominada Frente Ampla. Nela participavam comunistas, democratas-cristãos, socialistas,

blancos e colorados batllistas, grupos de esquerda, dentre outros, sendo uma opção popular

frente aos ditames da oligarquia.

O governo temia que a Frente Ampla acabasse ganhando as eleições, pois possuía

grande apoio popular. Porém, sob suspeita de fraude, quem vence e assume o poder é Juan

María Bordaberry, um poderoso fazendeiro representante das oligarquias.

Quarenta e cinco dias após assumir a presidência, Bordaberry suspende as garantias

individuais, o direito de reunião e a inviolabilidade de domicílio, decretando “estado de

guerra”. O caos toma conta do Uruguai,

“as Forças Armadas montam guarda nos edifícios públicos e às pontes, vêem patrulhas armadas pela cidade, cidadãos são revistados com os braços para cima sob a mira atenta dos fuzis; há presos sem processo amontoados nos quartéis, estudantes mortos. A democracia uruguaia chegava ao fim”150.

148 Id., ibid. p. 35. 149 Id., ibid. p. 36. 150 Id., ibid. p. 39.

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Com a desculpa de que a subversão ainda era algo muito presente no país, no dia 27

de junho de 1973, o presidente manda fechar o Congresso Nacional dando início à ditadura

militar, que só chegará ao fim em 1985.

4.4.2.2 Ernesto Kroch e a ditadura uruguaia

Kroch, assim como Vinocur e Benkel, vivia no Uruguai quando o poder político

passou para o domínio dos militares. Mas, ao contrário destes, faz grande referência em suas

memórias sobre este período histórico.

É, principalmente, a partir do capítulo XVII, “Vacaciones del Uruguay”, que o autor

irá relatar os acontecimentos políticos e sua participação na resistência contra a ditadura

uruguaia. Kroch inicia este capítulo situando o leitor sobre como a Guerra Fria afetou a

economia do Uruguai e, conseqüentemente, contribuiu para o golpe dado pelos militares no

país:

“Sin embago, al finalizar la Guerra de Corea, se acabó la era de bonanza. Las especulaciones por parte de los buitres uruguayos con respecto al agudizamiento del conflicto entre la URSS y Occidente, un recalentamiento de la ‘guerra fria’, fallaron. Los precios en el mercado mundial de los productos de exportación – vacunos y lanares – cayeron. El capital europeo y especialmente el norteamericano, comezaron a expandirse, inundando el continente latinoamericano com productos, armas y créditos”151.

Vale a pena mencionar, que a situação política e econômica uruguaia modifica-se,

principalmente, a partir da década de 50, como menciona Fialho,

“até meados de 1950 o Uruguai não entrará num funcionamento dependente, de índole financeira, em relação aos Estados Unidos, nem seu processo se acha estreitamente ligado à órbita norte-americana. Sua dependência comercial era em relação às nações européias. O país não vive, nesses anos, graves problemas de balanço e pagamentos. A situação deficitária de 1930 é invertida, por motivo da II Guerra Mundial, e o Uruguai torna a alcançar posição nitidamente favorável, inclusive mantendo-se como credor em relação a muitos países capitalistas”152.

Devido às mudanças políticas e econômicas mundiais ocasionadas pela Guerra Fria,

o Uruguai a partir da década de sessenta enfrenta grandes instabilidades políticas. Kroch faz

inúmeras consideração acerca deste período, dizendo que “el desempleo y la inflación habían

radicalizado no sólo a los trabajadores, sino también a la clase média”153.

Nota-se que o autor se preocupa em relatar as transformações e instabilidades

políticas do país, para fazer com que o leitor compreenda os fatores que culminaram na

151 KROCH, Ernesto. Op. Cit. 2003, p. 134. 152 FILAHO, A.V. Op. Cit. 1979, p. 30. 153 Id., ibid. p. 135.

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ditadura. Assim, o livro traz informações importantes sobre esta época, mostrando os fatores

políticos mundiais e nacionais que antecederam o golpe, assim como os principais

acontecimentos relativos ao período em que os militares estavam no poder.

Ernesto Kroch não vive este período como um espectador, até por fazer parte do

Partido Comunista do Uruguai, contribuiu para a resistência aos militares, como ele mesmo

menciona “colaboré en la redacción y compaginación de los periódicos barriales y gremiales

de las organizaciones locales comunistas. Era una tarea interesante, ya que de barrio en barrio,

de empresa en empresa los problemas diferían”154.

Além disto, participou de manifestações, dentre elas a que aconteceu no dia 09 de

julho de 1973. Depois de decretado o golpe, os sindicatos de Montevidéu, as mesas regionais

e as forças políticas contrárias à ditadura se reúnem, em uma concentração pacífica na

principal avenida da cidade, a Av. 18 de Julho, sendo que,

“Às dezessete horas em ponto, a multidão transborda as calçadas e enche as ruas da avenida e as laterais, sob a proclama da CNT: ‘Soluções sim, ditadura não’. Algumas organizações sindicais abrem seus cartazes. Cinco minutos mais tarde, forças policiais e militares iniciam feroz repressão com jatos de água, gás lacrimogêneo e tiros”155.

O autor participou deste movimento e relata como foi a concentração na Av. 18 de

Julho:

“La avenida ’18 de Julio’ había quedado totalmente vacía desde que se realizara el llamado a la huelga general y los comercios se encontraban desiertos. Súbitamente, a las cinco en punto de la tarde, aparecieron por las calles aledañas, como provenientes de cien arroyos, inmensas masas humanas que llenaron en pocos minutos la calle principal y dejaron oír sus gritos: ‘¡Abajo la dictadura!’, ‘¡Viva la democracia!’ Enseguida aparecieron los tanques de guerra. Las granadas de gas lacrimógeno explotaban. Colocarse pañuelos húmedos en narriz y la boca no era de mucha ayuda. Fui acometido por una tos de no acabar. Corrí a la frente del ‘Entrevero” – un monumento con gauchos montados en lucha cuerpo a cuerpo – y metí my cabeza en el agua. Sientiéndonos algo mejor volvimos, mis compañeros del taller y yo, al lugar de la ‘batalla campal’. Los milicos y las columnas de humo se habían retirado. Volvimos a gritar las consignas a voz en cuello hasta que volvieron los tanques. Los gritos de libertad expiraban bajo el ruido de los tiros”156.

Outro aspecto que vale a pena ser destacado, é que apesar da militância política na

resistência ao novo regime, após o início da ditadura ele afirma que passou a ter mais tempo

para realizar suas atividades pessoais:

“Puede parecer paradójico, pero en dictadura tenía más tiempo para mis actividades personales. Por razones de seguridad no es conveniente en la ilegalidad asistir diariamente a una asamblea secreta, imprimir o distribuir un periódico ilegal, realizar una pegatina contra la dictadura. A mayor frecuencia

154 Id., ibid. p. 136. 155 Id., ibid. p. 41. 156 KROCH, Ernesto. Op. Cit. 2003, p. 152.

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de actividades, el riesgo aumenta en progreción geométrica mientras que el resultado se incrementa, a lo más, sólo sumando”.157

Fica claro que, durante a ditadura no Uruguai, mais amadurecido e experiente, o

autor não se arriscou tanto como fez durante a resistência fascista. Apesar de ainda participar

das reuniões e ajudar nos periódicos, tinha muito mais cautela do que há quarenta anos atrás.

Agora aproveitava o período de repressão, em que não podia se envolver mais ativamente

com a política, para cuidar de sua família.

Porém, mesmo tendo mais cuidado ele acabou preso por três dias, e com medo do

que pudesse vir a acontecer, já que estava exilado no país por causa de sua resistência ao

nazismo e por possuir vínculos com o partido comunista do Uruguai, acabou mudando-se

para o Brasil e depois para a Alemanha, só retornando ao Uruguai após o fim da ditadura.

Entretanto, o mais interessante é que quando o autor relata sua prisão pelos

uruguaios, ele acaba fazendo uma comparação entre este período e o que viveu durante o

nazismo na Alemanha, como veremos a seguir.

4.4.2.3 Comparação entre a ditadura uruguaia e o governo do Terceiro Reich

Devido ao passado de Ernesto Kroch na Alemanha e sua militância no Partido

Comunista do Uruguai, no dia 6 de janeiro de 1974 ele foi levado junto com sua filha Elly

para a central de polícia em Montevidéu. Passou três dias neste local, sendo que “la mayor

parte del tiempo parado con la cara hacia la pared”158.

Durante o relato sobre como foi permanecer no departamento de polícia uruguaio, o

autor acaba fazendo uma comparação sobre esta situação e aquela enfrentada quarenta anos

antes na Alemanha, dizendo:

“Pero mi situación no era ni comparable con la que había superado hacía cuarenta años en Alemania. Allí me había sentido sin perspectivas ni esperanzas, totalmente abandonado. Aquí no pensé nunca que me encontraba solo: gran parte del pueblo, trabajadores y estudiantes, habían ofrecido resistencia desde el mismo comienzo de la dictadura. Aunque la huelga general debía ser terminada a las dos semanas y no pudo impedir la instauración de la dictadura militar, por lo menos logró aislarla política y socialmente. A pesar de la colaboración de un pequeño sector de grandes empresários, estancieros y políticos reaccionarios, la dictadura militar no logró – como pudo comprobarse en los siguientes doce años – crear un partido fascista ni un nuevo sindicato amarillo bajo su control”159.

157 Id., ibid. p. 161. 158 Id., ibid. p. 154. 159 Id., ibid. p. 155.

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Para ele, a grande diferença entre o nazismo e a ditadura militar uruguaia, era que

nesta, o povo não estava apoiando os militares, enquanto na primeira a população ofereceu

grande apoio a Hitler. Esta resistência à ditadura por grande parte da sociedade foi

fundamental para que não se organizasse no país um partido fascista160.

É interessante notar que como ele presenciou a Alemanha sendo governada por um

regime ditatorial, sabia exatamente as conseqüências que este tipo de poder podia trazer à

população. Então, até por já ter presenciado algo semelhante, em inúmeros momentos de seu

livro há comparações entre os dois acontecimentos, principalmente no que diz respeito aos

sindicatos, como podemos notar neste trecho:

“Anteriormente, en nuestra empresa pocos habían sido miembros del sindicato metalúrgico, el UNTRA. Ahora firmaron todos, sin excepción. Luego de semejante derrota, el Gral. Bolentini archivó todo el proyecto – como había hecho el Dr. Ley en la Alemania del 1934 – y por un tiempo no tentativas de crear sindicatos ‘libres’”161.

A comparação entre as medidas adotadas pela Alemanha nazista e pela ditadura

uruguaia é recorrente na narrativa, o que é normal já que o autor vivenciou neste dois países a

introdução de um governo ditatorial. Assim, esta acaba sendo mais uma característica

presente no livro de Kroch que não é mencionada pelos outros dois autores.

Diante da perseguição política no Uruguai, Kroch resolveu retornar à Alemanha,

voltando como “exilado” para sua primeira pátria:

“el Estado Mayor ya contaba con una denuncia contra mí por actividades sindicales ilegales. No quería volver a pasar por algo similar a los interrogatorios de la Gestapo y el campo de concentración – ni siquiera en el Uruguay -. En aquella época era jovem; ahora tenía 65 años. (...) Iríamos a Alemania, a la República Federal. ¡Volvería como ‘exílado’ a mi primera patria!”162.

Ao chegar no país, sua principal dificuldade foi conseguir emprego, pois seus

conhecimentos na área metalúrgica não eram valorizados neste local, fazendo-o procurar

trabalho como tradutor do idioma espanhol: “Mis conocimientos técnicos de construcciones

de acero, en general, y de calderas de vapor y de gasificación de la madera, en particular, no

160 Na realidade, Hitler conseguiu obter a aprovação popular por causa da propaganda, ou seja, “por intermédio dos meios de comunicação e de uma polícia especializada, o terror e o ódio às raças consideradas impuras se propagaram. A população foi aliciada e mobilizada de tal forma que passou a aceitar a idéia de que os judeus eram indivíduos perniciosos e, comparados a vermes, animais pestilentos e vírus, deveriam ser eliminados” (CARNEIRO, M. L. T. Holocausto. Crime contra a humanidade. Ática, 2000, p. 11). Isto não é recorrente nos regimes militares, que precisam utilizar muito mais da força policial para conseguir se manter no poder. 161 KROCH, Ernesto. Op. Cit. 2003, p. 169. 162 Id., ibid. p. 181.

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tenían aquí ninguno valor. Además, a mi edad no podía esperar conseguir ningún empleo.

Restaban mis conocimientos idiomáticos”163.

Entretanto, o aspecto mais enfatizado por Kroch ao relatar sua volta à Alemanha, é a

saudade que sente do Uruguai. Ele destaca sua dificuldade de adaptação aos costumes

alemães, demonstrando ver-se muito mais como um uruguaio do que como alemão ou

polonês. Vale destacar ainda, que em nenhum momento da narrativa ele menciona sentir

saudades de sua pátria mãe, pelo contrário, quando relata sua volta ao país de origem mostra-

se muito infeliz. Neste trecho percebe-se claramente como o autor se sente deslocado na

Alemanha: “En verdad, aquí me encontraba fuera de lugar, no veía ninguna perspectiva para

mí y no me sentía muy feliz que digamos. Y eso que yo no era un asilado”164.

A maior parte do tempo em que passou refugiado na Europa, Kroch não se desligou

da América Latina, procurando, mesmo de longe ajudar aos uruguaios que estavam

enfrentando dificuldades com o governo militar. Assim, ele e sua atual esposa, Feva,

ingressaram em um “Centro Psicosocial para Refugiados Extrangeiros”, sendo esta uma

instituição financiada pela Alemanha e organizada por uma Igreja Evangélica, onde se

oferecia apoio aos refugiados políticos sul-americanos, africanos, afegãos e paquistaneses.

Como o autor menciona,

“para nosotros dos, la solidariedad con Uruguay se transformó en el centro de nuestra actividad no remunerada. Junto con algunos uruguayos que vivían en Marburg y en Frankfurt formamos un ‘Círculo de trabajo: Uruguay’. Reuníamos dinero y ropa usada que enviábamos a las famílias de los presos políticos en Uruguay”165.

Aos poucos se estabilizou economicamente, dando aulas de alemão aos chilenos e

aos trabalhadores do “Centro Psico-social”, além de traduzir obras escritas em espanhol.

Apesar de mais familiarizado com a Alemanha, continuou lutando pelas causas uruguaias:

“podíamos adaptarnos a la República Federal de Alemania, aunque nuestros pensamientos

estuvieran centrados en el Uruguay”166.

Os relatos de Kroch a respeito de seu exílio na Alemanha reafirmam a

importância que o Uruguai teve em sua vida e, conseqüentemente, em suas memórias. Na

realidade, este país se tornou a sua nação. Mesmo não tendo nascido na América ele sente-se

como um sul-americano. Sua maior proximidade com os eventos uruguaios, sua afinidade

com o país e seus habitantes fizeram com que destinasse grande parte de sua obra aos relatos 163 Id., ibid. p. 182. 164 Id., ibid. p. 183. 165 Id., ibid. p. 183. 166 Id., ibid. p. 185.

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vividos neste local, sendo que mesmo estando na Alemanha sempre procura mencionar o

quanto sentia falta de sua “pátria adotiva”: “Pienso en Montevideo. Hasta en las calles

suburbanas hay vida hasta altas horas de la noche. Los niños juegan, los vecinos están

sentados en la vereda tomando mate, charlando. ¡Qué diferente es aquí en Alemania! La calle

está sumida en silencio y paz”167.

É interessante destacar, que ao chegar no Uruguai ele estranhou exatamente a

maneira alegre e despojada de viver da população, dizendo:

“lo que me resultaba nuevo era la mentalidad de la gente, la forma distinta de vivir de los criollos, como se denominaban aquí los habitantes. Un estilo de vida más ligero, más juguetón, quizás algo más superficial, pero igualmente racional, sereno y escéptico, lleno de calidez humana y simpatía”168.

Porém, quando retornou ao seu país de origem já estava acostumado com a vida na

América, estranhando o recato e a frieza dos alemães.

Kroch voltou à América Latina definitivamente em dezembro de 1985, quando os

militares já haviam deixado o poder, assumindo novamente seu trabalho como metalúrgico na

empresa “Julio Berkes”. Porém, ao deixar a Alemanha não se alegrou:

“Nuevamente una despedida, otro retorno. Me sentía con un ánimo otoñal, algo triste, al tener que despedirme de tantos amigos antiguos y nuevos, algo melancólico por la separación de ese hermoso país, pero también contento y confiado en el futuro, el reencuentro con Uruguay, con Peter y Elly”169.

No entanto, sua tristeza estava muito mais relacionada em deixar os amigos do que o

país. O fato de ter nascido na Polônia e vivido sua adolescência e parte da juventude na

Alemanha não importavam muito para o autor, que já tinha adotado o Uruguai como sua

pátria, sendo por este que lutava e nele que queria voltar a habitar.

167 Id., ibid. p. 185. 168 Id., ibid. 93. 169 Id., ibid. p. 193-194.

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5 CONCLUSÃO

Como menciona Levi, “sabem-no bem os magistrados: quase nunca sucede que duas

testemunhas oculares do mesmo fato o descrevam do mesmo modo e com as mesmas

palavras, ainda que o fato seja recente e nenhum dos dois tenha interesse em deformá-lo”170.

Ana Vinocur, Enrique Benkel e Ernesto Kroch não tinham a mínima intenção de narrar

episódios falsos a respeito de suas experiências nos Lager, pelo menos conscientemente,

verificou-se que eles queriam transmitir em seus livros exatamente o que vivenciaram há

décadas atrás.

Porém, são muitos os fatores que acabam modificando as recordações, fazendo com

que determinados episódios ganhem destaques maiores ou menores do que tiveram na época

em que aconteceram. Um destes fatores é o tempo, ou seja, com o passar dos anos a memória

humana vai envelhecendo, tornando-se falha, por isto muitos acontecimentos acabam sendo

esquecidos. Os três autores analisados escreveram suas recordações, no mínimo, trinta anos

após vivenciarem os fatos narrados, sendo este um ponto muito importante a respeito dos

motivos que fizeram com que eles escrevessem suas memórias da maneira como verificado.

Além disto, a situação atual de cada um dos sobreviventes também se mostrou

fundamental para o entendimento de como eles organizaram suas memórias. Como destaca

Halbwachs, “‘a lembrança é em larga medida uma reconstrução do passado com a ajuda de

dados emprestados do presente, e além disto, preparada por outras reconstruções feitas em

épocas anteriores e de onde a imagem de outrora manifestou-se já bem alterada’”171. Na

verdade, “se lembramos, é porque os outros, a situação presente, nos fazem lembrar: ‘O maior

número de nossas lembranças nos vem quando nossos pais, nossos amigos, ou outros homens,

no-las provocam’”172.

Ana Vinocur deixa claro em suas memórias que o surgimento de movimentos

neonazistas e revisionistas foi um dos grandes motivos que a levou a escrever seu testemunho.

Na verdade, o medo de que as pessoas esquecessem do que aconteceu com os judeus nos

170 LEVI, Primo. Os afogados e os sobreviventes. Os delitos, os castigos, as penas, as impunidades. . Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1990, p. 9. 171 Apud. SANTOS, Antonio Cesar de Almeida. Fontes orais: testemunhos de vida e história. Comunicação apresentada à Mesa Redonda, A produção historiográfica e as fontes orais, no Evento comemorativo ao Sesquicentenário do Arquivo público do Paraná, em Curitiba, em abril de 2005. 172 Apud. BOSI, Ecléa. Memória e Sociedade: lembrança de velhos. São Paulo: Companhia das Letras, 1994, p. 54-55.

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campos de concentração e extermínios nazistas, deixando que grupos que defendem a

discriminação racial e a xenofobia se difundam, culminando talvez em um novo genocídio, foi

crucial para a escrita e publicação de seu livro. Como a memória é construída a partir dos

elementos que possuímos no momento em que lembramos, os fatores que a fizeram recordar

acabam delineando toda a sua narrativa, até mesmo os episódios que serão mais ou menos

enfatizados no texto.

Neste sentido, verifiquei que a escrita da narrativa na forma de “presente-passado”,

os diálogos transcritos como se tivessem ocorrido há apenas alguns minutos, a emotividade e

o detalhamento dos episódios narrados, são, em grande parte, frutos do que a levou escrever e

de suas pretensões com a publicação das memórias.

A utilização do “presente-passado”, assim como o uso do discurso direto, podem ter

sido uma maneira da autora validar e legitimar o conteúdo de seus relatos, transmitindo a

quem lê o livro a sensação de que ela lembra-se perfeitamente de seu passado. O grande

detalhamento também está relacionado com a veracidade do conteúdo da narrativa, assim

como é uma forma de aproximar o leitor das experiências vividas por Vinocur, dando maior

vivacidade ao texto. Já a emotividade, além ser uma característica da personalidade da autora,

tem a intenção de comover, emocionar os leitores, fazendo-os imaginar como os judeus

sofreram em mãos nazistas.

Como a principal razão que a levou a escrever suas recordações foi fazer com que as

pessoas não esqueçam e não permitam que outro massacre venha acontecer, a forma de escrita

de sua obra volta-se exatamente para este fim, ou seja, legitimar, comover, emocionar, fazer

com que o leitor se identifique com o sofrimento dos judeus promovido pelos nazistas. Como

menciona Marionilde Magalhães, as memórias não são fruto somente dos aspectos

emocionais “que se desdobram numa produção estética, mas também de ordem política. Não

apenas de uma política defensiva. É defensiva, sim, e presentifica-se a qualquer ameaça do

anti-semitismo”173. Por isto, diante de teses sobre o revisionismo ou de grupos neonazistas,

alguns dos judeus que vivenciaram os horrores dos Lager sentem-se ameaçados, colocando-se

numa posição de defesa de seus interesses, sendo isto muito presente nas memórias de

Vinocur.

173 MAGALHÃES, M. B. de. Os aspectos histórico-políticos e econômicos. 1945 – Hora Zero de um novo tempo: cinqüentenário do final da Segunda Guerra Mundial. Curitiba: Instituto Goeth de Curitiba: Programa de Pós-Graduação em História do SCHLA da UFPR, 1995, p. 35-36.

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Assim, suas memórias acabam dando destaques a alguns acontecimentos que talvez

não tiveram tanta importância na época, da mesma maneira que a escrita da obra é toda

voltada para enfatizar o sofrimento dos judeus, como forma de comover os leitores, fazendo

com que cresça neles uma aversão aos nazistas, e assim não deixando que esta ideologia volte

a se fortalecer.

Além disto, como Marionilde Magalhães também destaca, “a memória dos judeus,

que se presentifica continuamente e que se recusa estrategicamente a colocar um ponto final

naqueles acontecimentos”174. Isto fica muito perceptível nos livros de Vinocur e de Benkel,

apesar de em menor proporção neste último, onde eles acabam entendendo o passado como

uma herança, algo que apesar de muito dolorido deve ser levado adiante e transmitido. Este

passado é encarado também como um fardo, uma carga que eles vão ter que carregar até o fim

de suas vidas, não se esquecendo jamais.

Apesar de possuir alguns aspectos semelhantes aos relatos de Vinocur, as motivações

de Benkel o fizeram seguir para uma outra linha de pensamento e, conseqüentemente, se

pautam em fatos e trazem características muito diferentes das memórias de sua irmã. Segundo

o que ele demonstra em seu texto, a insistência de seus filhos e a necessidade de comprovar

que os judeus não se mostraram passivos diante dos nazistas, mas que ofereceram resistência,

foi o principal motivo que o levou a escrever suas recordações dos Lager.

Assim, ele não tem a intenção de emocionar, comover os leitores, mas informá-los de

alguns acontecimentos que, segundo o autor, foram negligenciados em muitos livros que

tratam da questão do massacre nazista nos guetos e nos campos de concentração, ou seja, das

resistências e das fugas. Até por este motivo, seu livro é escrito de uma maneira mais

informativa, procurando não relatar somente os acontecimentos ligados à sua família, mas

também aspectos gerais da vida no gueto e nos campos de extermínio, assim como

relacionados ao desenvolvimento da Segunda Guerra Mundial.

Vale ressaltar ainda, que o fato de seu testemunho ser pautado na resistência dos

judeus aos nazistas também pode ser uma espécie de fuga utilizada pela memória do autor

que, para evitar a dor de recordar fatos dolorosos, prefere se ater aos momentos de alívio.

Geralmente nos sobreviventes de experiências extremas

“atuam todos ou quase todos os fatores que podem obliterar ou deformar o registro mnemônico: a recordação de um trauma, sofrido ou infligido é também traumática, porque evocá-la dói ou pelo

174 MAGALHÃES, M. B. de. Op. Cit .1995, p. 39.

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menos perturba: quem foi ferido tende a cancelar a recordação até as camadas mais profundas para dela se livrar, para atenuar seu sentimento de culpa”175.

Além disto, há que se considerar que, conforme o relato de Benkel, foi muito difícil

contar aos seus filhos sobre as torturas e humilhações que sofreu nos Lager. Então, como uma

forma de consolo, ele acaba se atendo às rebeliões dos judeus contra os alemães, transmitindo

a idéia de que foram humilhados e torturados mas, além de não terem se portado como

“ovelhas indo ao matadouro”, muitos soldados nazistas foram mortos pelos judeus.

Assim, devido a estes aspectos, suas memórias mostram-se muito mais objetivas que

as de sua irmã, não se prendendo ao detalhamento dos acontecimentos, mas narrando os

episódios mais racionalmente, até como uma forma de legitimar sua versão sobre a resistência

dos judeus.

Outro fator que diferencia seu relato do de Ana Vinocur, é a ausência de menção ao

exílio no Uruguai após a libertação dos campos de concentração, sendo esta informação

conhecida somente pelas obras de Vinocur, que procura deixar explícito a boa receptividade

dos habitantes do país, que a acolheram e a ajudaram em sua difícil fase de adaptação. Além

disto, esta enfatiza a democracia e a liberdade existentes no Uruguai, porém não citando o

período em que o país foi governado pelos militares.

Ficou claro então, que os objetivos de Vinocur e de Benkel são relatar suas vivências

sobre o período de perseguição e de extermínio de milhões de judeus na Alemanha nazista,

seja para se defender dos movimentos neonazistas e revisionistas, ou para legitimar a sua

versão sobre os fatos que ocorreram durante a Segunda Guerra Mundial. Neste sentido, o fato

de terem sido criados em uma família praticante do judaísmo acaba sendo fundamental, pois a

difamação dos símbolos desta religião e a perseguição aos judeus, seja pela crença ou pelo

fator de nascença, afetou-os profundamente, sendo algo presente até no momento da escrita de

suas memórias. Assim, eles não se prendem em narrar outros acontecimentos vividos, como a

ditadura uruguaia, pois o que aconteceu na Alemanha durante o governo de Hitler é algo

muito mais importante e presente em suas vidas. Em contrapartida, esta é uma das razões que

fazem com que as memórias de Ernesto Kroch sejam escritas de uma forma totalmente

diferente das de Vinocur e Benkel.

175 LEVI, Primo. Op. Cit.1990, p. 9-10.

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Kroch não era religioso, e o fato de ser judeu, foi quase negligenciado em sua

narrativa, talvez até pelo fato de não ter sido criado em uma família praticante do judaísmo e

por seus pais também não serem apegados à questão da descendência.

Além disto, ele fazia parte da resistência comunista ao regime nazista, sendo este o

principal motivo que o fez ser preso pela Gestapo e transferido para um campo de

concentração. Assim, Kroch foi preso porque ofereceu resistência ao regime hitlerista e não

somente pelo fato de ser judeu, como aconteceu com Vinocur e Benkel. Ao ingressar na

militância comunista ele acabou assumindo os riscos de ser preso, sabendo que isto podia

acontecer. Já os dois outros autores não entendiam o que os judeus fizeram para que os

nazistas os prendessem, sendo ainda crianças quando foram tomados pelo medo de serem

levados para um lugar desconhecido e longe de seus pais.

Estas diferenças acabaram delineando a maneira como eles registraram, cristalizaram

e transmitiram suas memórias, fazendo com que para os dois primeiros o passado fosse

doloroso, difícil de recordar, dada a humilhação, a dor, a violência e as perdas materiais,

pessoais e familiares que tiveram devido à perseguição de Hitler aos judeus. Já para o último,

este período é lembrando com orgulho, pois sofreu em mãos nazistas devido à resistência que

ofereceu, a sua não passividade, lutando pelo direito de liberdade e pelas causas em que

acreditava.

Ainda tem que ser levado em consideração, que Kroch não presenciou o período da

“solução final”, ou seja, quando os nazistas acirraram o massacre contra os judeus, sendo

preso no ano de 1936 e libertado em 1937. Então, a sua visão sobre os acontecimentos acaba

se pautando mais na luta de seus pais, que ficaram na Alemanha, em deixar o país. Como não

conseguiram fugir a tempo, foram presos e mortos em um Lager.

Este acontecimento fez com que o autor acabasse se voltando contra os próprios

judeus, que negaram ajuda a seus pais quando eles lhe solicitaram um empréstimo para

conseguir sair da Alemanha. Talvez até devido a isto, o autor critica duramente os judeus que,

segundo ele, poderiam ter feito mais pelos seus conterrâneos, diminuindo até o número de

mortos nos campos de extermínio.

Por isto, diferentemente de Vinocur e Benkel que demonstram em seus livros o

sofrimento judeu e a revolta contra os nazistas, Kroch acaba criticando e responsabilizando as

Instituições Judaicas e os próprios judeus pelo acontecimento, sendo este outro motivo que

fez com que sua narrativa se voltasse mais para o relato de suas experiências no Uruguai e

para sua a militância política, do que nos acontecimentos referentes aos Lager.

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Como mencionado anteriormente, as motivações e os objetivos deste autor com sua

obra também influenciaram na maneira como escreveu suas memórias. Ao contrário dos

demais, ele não deixa claro o que o levou a escrever, mas fica subentendido que o fato dele

estar com mais de setenta anos ao publicar seu livro, e por isso, o medo de que seu

testemunho acabasse caindo no esquecimento com sua morte, levaram-no a escrever suas

memórias.

Pollak mesmo menciona que, “no momento em que as testemunhas oculares sabem

que vão desaparecer em breve, elas querem inscrever suas lembranças contra o

esquecimento”176.

Desta maneira, Kroch não tinha a intenção de legitimar, provar ou validar aquilo que

estava escrevendo, mas sim relatar, transmitir o que presenciou como testemunha ocular. Até

devido a isto, o estilo de sua escrita é mais voltado para informar e explicar os fatos vividos,

além de trazer uma auto-análise, ou seja, o autor procura compreender o que o levou a tomar

certas atitudes, escolher certos caminhos. Como demonstra Santos, “as lembranças, além de

oferecerem uma descrição de acontecimentos vividos, trazem também uma análise daqueles

mesmos acontecimentos, dada a distância em que o entrevistado se encontra deles, e sua

disposição em avaliar as transformações que vivenciou”177.

Este autor, ao contrário dos outros dois, não demonstra culpa, ressentimento ou

sofrimento ao recordar de seu passado. Na verdade, os traumas da violência nazista o

atingiram em menor grau, dado até as circunstâncias em que fora detido. Suas memórias são

muito mais o relato de sua história de vida, de sua militância política, ou seja, de como suas

atitudes acabaram o levando a passar por dificuldades em meio a regimes de extrema direita.

Por isto, suas lembranças mostram-se espontâneas e desejadas, sendo que mesmo

vivendo momentos difíceis, como suas prisões e a morte de seus pais, ele tem orgulho de seus

feitos, tem recordações boas para serem lembradas. Vinocur e Benkel não têm motivos para

desejar relembrar do passado, pois ao fazerem isto eles acabam revivendo a dor e o

sofrimento da violência nazista. Assim, a escrita e publicação de seus livros foram uma

espécie de mecanismo de defesa de seus interesses contra novas ideologias ou versões sobre o

que aconteceu nos campos de concentração.

176 POLLAK, M. Memória, Esquecimento, Silêncio. Estudos Históricos, Rio de Janeiro, vol. 2, n. 3, 1989, p. 6. 177 SANTOS, Antonio Cesar de Almeida. Fontes orais: testemunhos de vida e história. Comunicação apresentada à Mesa Redonda, A produção historiográfica e as fontes orais, no Evento comemorativo ao Sesquicentenário do Arquivo público do Paraná, em Curitiba, em abril de 2005.

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Outro aspecto que faz com que as memórias dos irmãos Benkel sejam tão distintas

das de Kroch, está relacionada à maior ou menor proximidade que eles tiveram com a

perseguição e o massacre judeu nos Lager, o que também pode explicar a importância dada ao

Uruguai em cada um dos livros. Ernesto Kroch baseia suas memórias mais na análise do

período em que viveu e militou no Uruguai do que durante sua prisão no campo de

concentração, pois sua proximidade aos eventos ocorridos na América Latina foi muito maior

do que os ligados à Europa, sendo que sua vida política também contribuiu para que isto

acontecesse.

Dos três autores, Kroch foi o que mais trouxe informações sobre os acontecimentos

políticos mundiais e nacionais, sendo estes tanto relacionados à Alemanha nazista e ao pós-

guerra, quanto ao Uruguai. Sua ligação aos movimentos políticos destes períodos fez com que

ele possuísse uma visão mais crítica sobre os episódios vivenciados, fazendo de suas

memórias uma fonte riquíssima de informações tanto sobre o movimento de esquerda durante

o nazismo, quanto sobre a importância do Partido Comunista na história política do Uruguai

após a Segunda Guerra Mundial.

Em suma, a partir do que verifiquei com a análise das memórias destes três

sobreviventes, concluí que a maneira como eles desenvolveram suas narrativas foi o que

identificou os preceitos pessoais de cada um deles, assim como suas visões sobre os

acontecimentos passados. Esta visão, somada aos seus valores sócio-culturais, tornou as

memórias tão distintas uma das outras, mesmo sendo relatos acerca do mesmo tema. Por isto,

a forma como o massacre judeu atingiu cada um dos sobreviventes, a importância que este

acontecimento teve e tem em suas vidas, suas crenças políticas e religiosas, as motivações e

os objetivos pretendidos com os relatos, ou seja, seus valores individuais foram, em ampla

medida, responsáveis pela maneira como cada um deles organizou e transmitiu suas

lembranças.

No entanto, algumas características não foram reveladas explicitamente pelos

autores, sendo compreendidas através da maneira como eles desenvolveram suas narrativas.

Por exemplo, a religiosidade e os medos de Vinocur, as tendências sionistas de Benkel e as

anti-sionistas de Kroch, assim como a relação entre a morte de seus pais e seu ressentimento

em relação às Instituições Judaicas Internacionais. Além disto, os silêncios também foram

importantes, pois, na maioria das vezes, estavam relacionados ao sofrimento causado ao

recordar determinados acontecimentos, sendo determinantes para se compreender a

memorização destas testemunhas.

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Assim, dentre os sobreviventes analisados, Ana Vinocur foi a que mais se mostrou

emotiva, apegada à religião e à família. Enrique Benkel procurou transmitir informações a

respeito da Segunda Guerra Mundial em geral, demonstrando ser bem menos emotivo e

religioso que sua irmã, porém, muito mais ligado à nacionalidade judia e as causas sionistas.

Ernesto Kroch não se prendeu a sua nacionalidade, mostrando-se muito mais politizado e

disposto a relatar o que estava acontecendo fora da Alemanha, principalmente no Uruguai,

país que adotou como pátria.

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