IV Simpósio Internacional de Ciências Sociais · pertinência de um diálogo com a ideia de...

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1 IV Simpósio Internacional de Ciências Sociais 11 a 14 de novembro de 2015, UFG – Goiânia, GO Grupo de Trabalho: GT 09 – Produção de conhecimentos e seus efeitos: reflexões sobre materiais escritos e visuais entre populações indígenas Título do Trabalho: Ampliando fronteiras: possibilidades e desafios na antropologia da arte Autora: Tatiana Helena Lotierzo Hirano, doutoranda em Antropologia Social, Universidade de Brasília Agência de fomento do trabalho: CAPES

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IV Simpósio Internacional de Ciências Sociais

11 a 14 de novembro de 2015, UFG – Goiânia, GO

Grupo de Trabalho:

GT 09 – Produção de conhecimentos e seus efeitos: reflexões sobre materiais

escritos e visuais entre populações indígenas

Título do Trabalho:

Ampliando fronteiras: possibilidades e desafios na antropologia da arte

Autora:

Tatiana Helena Lotierzo Hirano, doutoranda em Antropologia Social,

Universidade de Brasília

Agência de fomento do trabalho: CAPES

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Ampliando fronteiras: possibilidades e desafios na antropologia da arte

Resumo: São recentes na América Latina as manifestações daquilo que tem

sido denominado “arte indígena contemporânea”. Sob tal epíteto, incluem-se

trabalhos de artistas de origem indígena que se diferenciam da produção

artefatual convencional de seus povos ao assumir formatos mais

evidentemente contemporâneos, buscando engajar-se num diálogo horizontal

com a arte ocidental a partir de seus cânones e dos espaços expressivos que

lhe são próprios. Ao fazê-lo, tais artistas também conferem novos sentidos à

ideia de arte, propiciando elementos para reflexões acerca de suas relações

com a natureza, assim como para uma crítica a partir de perspectivas mais

propriamente indígenas à ideia de representação. A presente comunicação

busca discutir as possíveis contribuições da antropologia para uma apreciação

desse tipo de trabalho, tecendo contribuições sobre trabalhos de artistas

indígenas a partir de um diálogo com questões que nascem da produção

etnográfica e de um pensamento ameríndio. Com isto, visa-se apontar

caminhos para a compreensão da chamada “arte indígena contemporânea”.

Palavras-chave: arte indígena - natureza - representação

Apresentação

Não é a mesma coisa a palavra ‘abstrato’ entendida a partir do

pensamento indígena ou a partir do pensamento europeu. Na

comunidade Nasa, por exemplo, quando se faz uma espiral, a espiral é

um sol. Para o indígena, isso não é uma representação do sol; a espiral

é o sol. Em nenhum momento se falaria de abstração, porque não é

uma representação, a espiral não advém do sol. O sol está presente na

espiral – Marisol Calambás, 2013, tradução livre.

Conta-se que a palavra “paisagem” (landscape, do holandês landskip)

foi introduzida na língua inglesa no fim do século XVI, como um termo técnico

utilizado pelos pintores holandeses (Hirsch, 1995; Stewart e Strathern, 2003).

Isto teria significado, no contexto britânico, uma inversão na maneira de se

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relacionar com a natureza, em que as paisagens pictóricas se tornavam uma

espécie de moldura a instruir modos de ver o meio circundante. Decorre que,

entre os séculos XVI e XIX, uma natureza ideal ou imaginária passaria a servir

de critério não apenas para a apreciação da natureza, mas também para uma

série de intervenções que buscavam estabelecer a máxima correspondência

entre ambiente e pintura – caso da jardinagem e das práticas que ganharam o

sugestivo nome de “paisagismo”.

Essa história guarda em si um problema fundamental para a definição

de arte no marco de um pensamento europeu, qual seja, aqui sintetizado pelo

termo representação. Por um lado, tem-se a ideia de que a natureza se torna

acessível e compreensível por meio das representações constituídas a seu

respeito – apropriações de uma natureza-enciclopédia (Descola, 2010),

entendida como reservatório de propriedades observáveis, cujo manejo

dependeria da produção de cópias ou duplos; por outro, a de que tais

representações podem de fato não guardar nenhuma correspondência com um

modelo exterior que supostamente traduziriam; tal como no caso das

paisagens que emolduram o ambiente, descrito acima, a representação apenas

proveria a forma adequada de vê-lo, senti-lo e transformá-lo.

Gombrich (1966) acrescenta novos elementos à mesma problemática.

Segundo ele, a paisagem teria sido fruto do encontro entre a tradição realista

da Europa do norte e uma teoria estética sulista, gestada pelo Renascimento

italiano. Cada uma dessas vertentes aludiria assim a uma tradição visual

distinta. A primeira, consistindo no primado da descrição, diria respeito à

concepção da pintura como um mapa de acesso a lugares e coisas situadas,

cujas características e detalhes seria capaz de apresentar em minúcia (ver

também Bryson, 1983; e Alpers, 1989), sugerindo coincidências entre um

quadro e um modelo exterior. A segunda privilegiaria o entendimento da arte

como uma esfera autônoma da existência, cujo propósito seria o de promover

efeitos psicológicos sobre o público – e daí a ideia de “perspectiva”, aparato

este capaz de conduzir o modo do olhar a partir de um ou mais pontos de fuga,

de onde emergiriam paralelas convergentes. Uma tradição, portanto, olharia

para fora a partir do quadro; a outra, para dentro dos sujeitos sensientes. No

encontro entre ambas, nasceria uma maneira singular de apreensão de uma

natureza objetificada, entendida como elemento exterior à existência social ou

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cultural, cuja compreensão só seria possível através da interação com uma

“cópia” fornecedora de informação decodificada sensorialmente1.

Daí o exemplo de John Constable (1776-1837), artista inglês cujas telas

representando pradarias passaram a tomar-se como idênticas às do meio rural

britânico, a despeito de sua elaboração em tons de verde inexistentes na

natureza: uma ilusão (Gombrich, 2007), ou afastamento provocado pelos ares

de realidade da cópia, que modela as próprias maneiras de apreensão do

mundo sensível. Segundo o entendimento ocidental, portanto, tudo se passaria

como se os sentidos fossem continuamente enganados por cópias ou

substitutos de um mundo real e inacessível e seus sujeitos, “vítimas passivas,

embora voluntárias, de uma ilusão incontornável” (Gombrich, 2007, p. xvii).

O presente ensaio visa angariar elementos para repensar tal questão –

a das relações entre arte e natureza –, a partir de reflexões de alguns artistas

indígenas “contemporâneos”2: Marisol Calambás, indígena Nasa e autora da

epígrafe acima; os inganos Kindi Llajtu e Benjamin Jacanamijoy; e Santiago

Yahuarcani, artista huitoto. Busca-se indagar em que medida tais trabalhos

ajudam a vislumbrar um caráter não-representacional dessas obras e, com isto,

propor novos entendimentos (que valorizem a criatividade e o pensamento

indígena) sobre a própria ideia de arte: o que, afinal, a define? Pode ela existir

à revelia de qualquer caráter ou função representativa obrigatória frente à

natureza? Como isto se manifesta?

A propósito do caráter inicial de nossas observações, propomos

entretecer alguns apontamentos, relativos a três sub-temas, a saber: em

primeiro lugar, a ideia de uma instabilidade das formas – inclusive aquelas

formas que em certa perspectiva euro-americana poderiam ser tomadas como

as geometrias basilares às diferentes composições –, que cederiam lugar a

interferências e transformações a partir de interpenetrações com ambientes,

forças e materiais de uma arte viva; em segundo, tem-se a questão das

                                                                                                               1 Ora se posiciona a representação no domínio das relações de semelhança entre uma imagem e seu protótipo (Wolheim, 1977; Danto, 1992; Van Gerwen, 2001); ora acentuam-se as relações de simbolização, indexação ou iconicidade, mais do que a semelhança, como elementos centrais (Gombrich, 1972 e 1984; Novitz, 1975; Goodman, 1976). 2 O que não significa que o restante da produção indígena esteja congelado no tempo. Sobre esse e outros pontos relacionados, ver: Price, 1989; Layton, 1981; Clifford, 1988; Coote e Shelton, 1992; Morphy, 1991 e 1994; Mané-Wheoki, 1995 e 2011; Marcus e Myers, 1997; McLean, 1998 e 2013; Merlan, 2001; Altman, 2005; May, 2005; Ohnesorge, 2008; Alder, 2010; Bell, 2011; Neave, 2011; Sugrue, 2012; Goldstein, 2012.

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imbricadas relações tempo-espaço engendradas por esses trabalhos que,

aparentemente, seriam capazes de perfazer espaços em si, habilitando

relações de ordem específica; por fim, há uma relação delineada nos

depoimentos dos artistas entre a arte e a fabricação ou materialização de

naturezas, ora situadas num plano invisível, apontando para a existência de um

universo sensorial particular. Todos os três aspectos nutrem-se de reflexões

tecidas pelos próprios artistas, que, como ilustra a fala de Marisol Calambás,

sugerem um afastamento do modelo ocidental.

Apesar das evidentes interrelações entre cada item, para fins heurísticos

procuraremos discuti-los em separado, cotejando declarações dos artistas com

constatações extraídas da produção etnográfica recente. Em suma, trata-se de

explorar possibilidades de inquirições futuras, à luz de diálogos anteriores, em

que a antropologia empenhou-se na compreensão dos modos de pensar

indígena e dos modelos de mundo que seus conceitos produzem e

transformam (Viveiros de Castro, 2002a), em reconhecimento de sua qualidade

inerentemente filosófica, simétrica ao conhecimento disciplinar ocidental.

Nas páginas seguintes procuraremos apresentar um pouco melhor

algumas questões que embasam a produção indicada, com apontamentos para

discussões futuras.

Formas e sentidos

Marisol Calambás, na epígrafe que inicia este texto, descarta a ideia de

representação, indicando uma espécie de continuidade ontológica entre o sol,

a forma espiral desenhada e outras propriedades materiais e sensíveis.

Afastando-se de um modelo que pressupõe uma separação fundante entre arte

e natureza, a artista ilustra uma relação de tipo diverso, em que uma é

coextensível à outra: o desenho se entrelaça ao sol (para o ocidente, o

modelo), captando-o ou incorporando-o por meio de um processo que parece

dizer respeito à transferência ou partilha direta de qualidades sensíveis de uma

coisa a outra. Por essa razão, a artista também comenta que “não é a mesma

coisa uma espiral se a desenhamos num pedaço de terra. Não é a mesma

coisa essa espiral se a desenhamos com sangue” (Calambás, 2014, p. 194),

indicando uma capacidade diferencial do material empregado. Interessa

perceber uma possível relação de contiguidade pré-estabelecida entre sol e

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espiral: tudo se passa como se o sol se transformasse no desenho e vice-

versa, coexistindo em ambos os lugares (e sob diversas materialidades).

Assim como Calambás, o artista inga Kindi Llajtu (E!, 2011, s.p.) também

indica algo parecido ao afirmar: “Para mim, a linha é um rio, uma árvore, um

horizonte ou uma vasilha. Uma linha não é necessariamente reta, mas pode

ser como um caracol que se contrai e se expande”. É também Kindi Llajtu

quem nos apresenta sua arte como uma série de interações entre forças e

movimentos, em que determinadas formas aparecem como eventos. Conta que

certa vez, ao participar de uma cerimônia na Sierra Nevada (Colômbia), foi

convidado a pintar uma pedra cerimonial com um chumaço de ervas embebido

em tinta. “E quando comecei a fazer essa cerimônia de pintar a pedra com as

ervas, comecei a notar que a cor que as plantas me estavam dando era

secundária. O que estava acontecendo ali foi que estava falando a pedra, me

falava sua textura” (Kindi Llajtu, 2014, p. 248). A intencionalidade, portanto, se

perdia no processo, enquanto “esses grafismos que saíam na pedra

começaram a me contar a história; era minha história o que estava sendo

contado ali no ato de pintar a pedra” (idem).

O tópico reabre algumas questões importantes, do ponto de vista da

antropologia. Um ponto fundamental, nesse sentido, é o tema clássico das

relações natureza-cultura. Seria possível pensar, em primeiro lugar, a

pertinência de um diálogo com a ideia de multinaturalismo (Viveiros de Castro,

1996b), ou seja, a ideia de que a há uma cultura (condição humana

compartilhada entre todos os seres), enquanto a natureza é múltipla –

manifesta sob diversas formas/corpos assumidos pelos diferentes seres e

percebidos sob diversas maneiras, perspectivamente. Sob tal prisma, ganharia

importância a discussão sobre as múltiplas formas/corpos (ou naturezas)

manifestas nas transformações de sol a espiral, de linhas a caracóis, das

pedras aos grafismos; disto implicaria um esforço para compreender em que

medida seria possível falar numa humanidade compartilhada entre os

diferentes seres envolvidos nessas transformações, bem como pensar as

possibilidades diferenciantes que a arte, como forma mediadora, poderia

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estabelecer entre eles – e os contextos particulares em que a diferenciação

ganharia importância3.

De outra parte, é digno de nota que ambas as declarações se refiram à

arte como processos envolvendo coisas vivas (Ingold, 2012) – a começar por

aquilo que entendemos como as próprias formas que, agora, parecem adquirir

um caráter instável. Ingold, como é sabido, propõe que a abordagem da

produção artefatual possa deslocar o foco do produto ou forma final para os

processos de formação e fluxos de transformação que percorrem as coisas e

produzem zonas de interpenetração e mistura com o exterior – incluindo as

outras coisas4. Na perspectiva de o autor (idem, p. 26), “a arte não busca

replicar formas acabadas e já estabelecidas, seja enquanto imagens na mente

ou objetos no mundo. Ela busca se unir às forças que trazem à tona a forma.

Assim, como a planta cresce a partir de sua semente, a linha cresce a partir de

um ponto que foi posto em movimento”. Desse modo, todas as coisas seriam

dotadas de vida própria, encontrando-se em pleno processo de transformação.

Importaria, então, perceber que elas são sempre acontecimentos, provocados

continuamente por um agregado de fios vitais que as percorrem.

As falas desses artistas também convidam a diálogos com a produção

etnográfica relativa ao papel da percepção no estabelecimento das relações

entre seres sensientes e no estabelecimento de relações de manejo ou

associação com as forças constitutivas da matéria e daquilo que poderia ser

entendido com a ordem cósmica – sobretudo naquelas relações que passariam

pela produção artefatual. Surrallés (2005) sintetiza os aspectos da tendência

recente entre os amazonistas, de abordar aquilo que se convencionou chamar

de fenomenologia ou psicologia da percepção. Este seria um desdobramento

do reconhecimento da importância dos processos da construção da pessoa e

do corpo entre os ameríndios (Seeger, DaMatta e Viveiros de Castro, 1979),

consistindo em duas vertentes especulativas: uma, voltada aos sujeitos

                                                                                                               3 A discussão sobre a chamada “vida” das coisas (Appadurai, 2009; Santos-Granero, 2009; Ingold, 2012) faz-se presente na antropologia desde os anos 1920, com autores como Mauss (2003 [1925]) e Malinowski (1972 [1922] e 2003 [1926]). A produção recente ensina que os artefatos engendrariam relações de consubstancialidade, trans-subjetividade e a capacidade agentiva, produtiva e performática (Gell, 1998; Overing, 1989; Lagrou, 2007, 2008, 2009 e 2010; Van Velthem, 2003; Barcelos Neto, 2008). 4 Tal autor elabora uma crítica ao caráter hilemórfico da noção de agência elaborada por Alfred Gell (1998). Questiona-se uma tendência a ver o mundo como uma combinação de objetos e pessoas que os animam.

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perceptivos, suas sensações e sentimentos (Overing e Passes, 2002); outra,

voltada à compreensão das perspectivas perceptivas para as relações com o

cosmos e as entidades que o habitam (Arhem, 1993, 1996; Descola, 1986,

1992, 1996; Stolze Lima, 1996; Rival, 1993; Viveiros de Castro, 1992, 1996b).

A título de exemplo, pensamos, por exemplo, na observação de Lagrou

(2003) a respeito dos tecidos desenhados feitos pelos Kaxinawá. Segundo a

autora, o fato dos padrões gráficos Kaxinawá serem interrompidos seria um

indicativo de duas modalidades de apreensão da beleza: a beleza exterior,

perceptível através dos olhos, encontraria uma correspondente no mundo

invisível, que o espírito do olho nos sonhos seria capaz de ver. Tal dissociação

entre dois sentidos da visão seria parte constitutiva de uma ontologia que nos

obriga “a reinterpretar a relação entre, por um lado, percepção e criação (com a

percepção sendo, de alguma maneira, uma criação) e, por outro, entre

aparência, ilusão e realidade” (2003, p. 104), de modo que o desenho é

considerado um lugar de transição entre “percepção imaginativa e imaginação

perceptiva” (idem, ibidem). Santos-Granero (2006) assinala que, entre os

Yanesha, os sentidos corpóreos tal como concebidos no ocidente são tidos

como imperfeitos. Em contrapartida, o conhecimento verdadeiro só seria

possível através de componentes não corpóreos da pessoa (yecamquëñ) –

vitalidades, dotadas de faculdades sensoriais que permitiram a percepção

correta e, com ela, um conhecimento ‘verdadeiro’ do mundo. Longe da

Amazônia, Feld (1996), a seu turno, recupera interessantes dimensões da

fenomenologia da percepção para estabelecer uma discussão sobre a

sinestesia, ou a interação entre audição, visão e tato na constituição de

paisagens sonoras (soundscapes), fundamentais à apreensão do mundo

sensível entre os Kaluli, na Papua Nova Guiné. Em meio a uma floresta

obscura, em que a visão é enganosa, a combinação entre sentidos que para

um ocidental poderiam ser distintos gera novas possibilidades sensoriais, em

que a audição adquire aromas, texturas e cores. Em investigação que também

toca o tema da preeminência da audição num ambiente refratário à visão – a

floresta –, Gell (1995) argumenta que, para os Umeda da Nova Guiné, a

paisagem é construída a partir de duas experiências: a da paisagem sonora

(soundscape) e a do corpo como uma caixa de ressonância, produtora de som.

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Tais exemplos ilustram modos de sentir que se afastam e diferenciam da

modalidade ocidental, constituídos a partir de matrizes cosmológicas

particulares. Importa notar que tais capacidades sensoriais ou modos de

fruição particulares podem implicar em relações específicas com o universo

artefatual e o ambiente, tanto como lócus da experiência vivida, quanto como

espaço de conhecimento. Assim, interessa pensar as diferentes

concepções/percepções do sensório, bem como nas modalidades sensoriais

que habilitariam as transformações e acontecimentos de caráter artístico.

O espaço nos artefatos Kindi Llajtu, no mesmo depoimento destacado acima, revela uma

preocupação com o tema da história – a sua, contada na pedra. Diz o artista

que, enquanto pintava, estava “refrescando a memória” (Kindi Llajtu, 2014, p.

249). Há, nessa formulação, uma indicação de que existe um tipo de história

assentado na experiência sensível ou nos processos materiais: pintar a pedra

tornara-se um evento na história do artista, um acontecimento duplamente

vivido e rememorado. Além disso, ele também expressa que, a partir desse

acontecimento, o processo de descoberta de texturas se tornaria uma

inquirição permanente de sua obra: “por vezes, pelos compromissos ou por

estar procurando fora, nos esquecemos do interior (...) a partir desses

exercícios quis começar a buscar texturas dentro da minha forma de conceber

a pintura. Na minha maneira de conceber a pintura, na minha forma de criar, a

textura e a cor me servem muito para a parte abstrata. O desenho, por outro

lado, é para a parte mais consciente no espaço” (idem, ibidem). Entre

desenhos e texturas, o artista segue buscando formas de dar vazão à parte

abstrata, num exercício para afastar-se das linhas aprendidas na academia – e

“do que pensamos que se deve fazer para desenhar” (Kindi Llajtu, 2014, p.

250). Assim, ao invés de fazê-las à mão, ora segue procedimentos como

fechar os olhos e buscar uma linha inocente, por efeito de fios de fibras tecidos

por ele. O mesmo tipo de inquirição resulta no método de preparar texturas a

partir de sobreposições de camadas de tintas que vão sendo aplicadas aos

poucos, umas sobre as outras, e depois arranhadas ou descascadas para fazer

emergir aquilo que havia sido encoberto. Ou colar as manchas de tinta seca,

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sedimentadas no fundo dos baldes onde se faz a mistura, em outras

superfícies.

Tem-se nessa breve descrição uma nova abertura para pensar os temas

da arte como processo, da partilha de qualidades sensíveis entre seres

sensientes num mundo de continuidades ontológicas e das formas de

percepção ali engendradas. Por outro, a fala de Kindi Llajtu revela também

concepções de tempo e espaço presentes em seu trabalho. A história coexiste

nas obras, contada pela sobreposição cumulativa das camadas de tinta num

intervalo temporal e a subsequente revelação do estado do processo num

momento anterior. Mas também é uma espécie de camada de texturas que

ativam modos de sentir ora olvidados. Tudo se passa na procura por

desaprender ou despojar-se de procedimentos característicos de um ofício

acadêmico e dar vazão a uma espécie de retorno à semente, “esses momentos

compartilhados da infância em certos territórios aonde a minha pintura gostaria

de chegar, a essa textura da pedra ou a essa textura de uma árvore, a textura

da água...” (idem, ibidem). Ao mesmo tempo, isto é habilitado (ou permitido)

pelas próprias coisas manejadas na pintura, mais do que por meio de um

desígnio do próprio artista – a comunicação é primordial ao processo.

A história também aparece como uma questão central na obra de

Benjamin Jacanamijoy “Uaira Uaua”, outro artista inga que tece um diálogo

entre as superfícies, volumes, materiais, cores e texturas presentes em sua

obra e o chumbe – faixa de tecido de cerca de quatro metros de comprimento e

algo em torno de 100 desenhos bordados que, segundo conta, é utilizada pelas

mulheres com o propósito de manter o ventre aquecido, cujo desenho-símbolo

denomina-se “flor de ventre” ou “mulher grávida”, unindo homem e mulher, flor

e querer. Jacanamijoy (2014, p. 213) explica a importância dessa relação

contida no artefato: “o ventre da mulher representa o mundo com seus quatro

pontos cardeais: Norte, Sul, Leste e Oeste, além de nordeste e sudeste. Assim

é como se descreve o mundo”. Bordado pelas mulheres tecedoras, o chumbe

perfaz um lugar de vida – “espaço onde todos os seres cumprimos uma

determinada função ou tarefa, com a perspectiva de construir uma convivência

harmônica” (Jacanamijoy, 2001, p. 191). Logo, trata-se de um adereço que

entrelaça histórias pessoais a lugares, estabelecendo uma relação entre corpo

e espaço ao mesmo tempo em que ativa determinados aspectos da conjunção

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espaço-temporal entre tais histórias e narrativas mais amplas. Um ponto chama

a atenção: ao perfazer um lugar de vida, o chumbe parece extrapolar aquilo

que um ocidental poderia tomar como a condição de objeto, para tornar-se

espaço, com qualidades transformadoras. Como explica Jacanamijoy (idem,

ibidem), através dos conhecimentos técnicos e ações do cotidiano, “através da

Minga, a toma de yajé, a festa em homenagem ao Arco Íris, a elaboração do

tecido do chumbe, o intercâmbio de conhecimentos ao redor da tulpa: fogueira,

etc.; cada um constrói ou destrói seu próprio mundo” (idem, ibidem).

Foi “decifrando os escritos que há no chumbe”, que Uaira Uaua passou

a escrever histórias de sua família. Num primeiro momento, buscou traduzir

alguns grafismos recorrentes e suas combinações, elaborando com isso uma

espécie de dicionário para a compreensão desses artefatos. Num segundo

momento, conta ele, “comecei a pintar a forma poética ou metafórica com que

as mulheres tecedoras descrevem o mundo no chumbe, a trabalhar a maneira

como se escreve a própria história no chumbe” (Jacanamijoy, 2014, p. 215).

Isto quer dizer que, assim como este artefato, sua produção conta histórias a

partir de lugares de vida, mas também torna-se espaço, definido como “o

elemento que propicia novas situações para mudar a história de um lugar de

vida” (Jacanamijoy, 2001, p. 192).

A noção de história, nesse sentido, é indissociável da noção de lugar e

parece envolver uma possibilidade de reatualização, transformação e

replicação de locais já imbuídos de eventos. Note-se, além disso, que referir-se

ao fato de que tal obra é espaço é aceitar a sugestão, deixada pela fala de

Uaira Uaua, de uma relação particular entre espaço e lugar: o espaço, em tais

depoimentos, parece constituir uma espécie de força transformadora contida

num dado lugar, a partir da qual se pode alterar os eventos associados a ele.

Nesse sentido, sua arte partiria de um conhecimento relacionado aos lugares,

ao mesmo tempo em que se constituiria como uma espécie de abertura para

uma dimensão espacial contida num dado local, onde a história seria contada e

transformada simultaneamente. Daí o encontro entre o trabalho desse artista e

o chumbe, que convida a pensar sobre ambos os artefatos como

transformações de um mesmo princípio, que também poderia apresentar-se na

forma do ventre feminino. Como vimos, na descrição de Jacanamijoy, além de

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constituir uma parte do corpo, este também corresponde ao centro geográfico

do universo, a partir do qual se diferenciam os quatro pontos cardeais.

A antropologia atual provê elementos que podem indicar caminhos para

inquirir esse amálgama, sobreposição ou coincidência, em que chumbe/obra

de arte (artefatos), corpo e espaço se encontram – sem, evidentemente,

suplantar a investigação mais detida do tema, junto às próprias elaborações

indígenas. Citemos um exemplo: ao tratar da maneira pela qual a teoria

Makuna de mundo compreende as relações constitutivas dos seres e do

espaço, Cayón (2013) descreve a forma fractal do Pensamento Makuna, que

constitui o mundo a partir de conglomerados de seres compósitos em

processos de diferenciação e transformação criativa do vigente,

correspondendo eles mesmos a transformações demiúrgicas e de outros seres

primordiais. Todos os seres que existem são, assim, associações entre

substâncias, objetos, lugares, tempo e origem, de maneira que

(...) a mistura de subjetividades ou de fragmentos de agencialidades de

distintos seres primordiais, interrelacionados, produz a particularidade

de cada tipo de ser. A maneira como os makuna chamam essa relação

é üsi oka, literalmente palavra de vida ou linguagem de vida, e que eu

tenho traduzido como vitalidade. Üsi oka demonstra a coexistência,

num mesmo ser, de múltiplos princípios vitais simultâneos, que são a

objetivação das agencialidades, as manifestações transformadas das

qualidades subjetivas do Jurupari primordial e outros seres originários.

E todas estas, por sua vez, estão numa relação transformativa y

multiplicadora” (Cayón, 2013, pp. 301-302)5.

Importa notar que, conforme a mesma teoria, “os estados de

transformação da existência são relacionais e se manifestam simultaneamente

nos lugares” (idem, p. 251). Outro ponto que merece atenção é que, nessa

concepção de mundo, “de alguma maneira, o espaço funciona como uma

grande matriz epistemológica que, apesar de fixada na terra, pode transportar-                                                                                                                5 S. Hugh Jones (2009) comenta que, nos mitos tukano-orientais, o corpo humano original constitui-se de artefatos, como bancos e lanças. Ver também Santos-Granero (2009). Os bancos seriam partes constitutivas dos seres, segundo as mitologias e o Pensamento Makuna (S. Hugh-Jones, op. cit.; Cayón, 2013).

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se conceitualmente a territórios novos ou desconhecidos para se auto-replicar

pela lógica fractal do pensamento makuna” (idem, p. 230).

A despeito de sua especificidade etnográfica, tais observações

convidam a tecer indagações sobre a arte vis-à-vis as relações específicas que

os artefatos – e as obras de caráter declaradamente artístico aí incluídas –

podem estabelecer com concepções de mundo particulares, ou os lugares que

ocupam ou perfazem no interior desses mundos. Conquanto os trabalhos de

Jacanamijoy e Kindi Llajtu, entre outros artistas, assumem múltiplas formas –

muitas das quais são intervenções em lugares específicos ou montagens de

cenários a partir de artefatos do cotidiano, finamente trabalhados, como bancos

e canoas –, é preciso inquirir que sentidos poderiam assumir eventuais

metamorfoses em que os artefatos se convertessem em espaços ou abrissem

espaços para novas transformações. Estarão tais obras de arte aludindo às

histórias que compõem teorias de mundo indígenas (e nesse sentido,

portando-se como artefatos mais próximos da ideia de representação,

exemplificação ou registro de um pensamento), ou serão elas novas

aparências assumidas por princípios criativos – e portanto, partícipes no jogo

relacional que recompõe, remodela, reconfigura tais mundos?

Por fim, dada a conceituação específica acerca da noção de espaço

contida na explanação de Uaira Uaua sobre o chumbe, também seria

interessante perguntar-se, em diálogo com a teoria fenomenológica, sobre as

relações entre o geral e o específico que se desdobrariam de um entendimento

desse artefato como lócus (ou lugar) de acesso ao espaço, ou força

transformadora. Casey (1996) problematiza um contraste entre espaço e lugar

estabelecido a partir de teóricos como Newton e Kant no ocidente, segundo o

qual o primeiro teria precedência sobre o segundo; aquele estaria para o

infinito absoluto e vazio, enquanto o segundo seria seu fracionamento, parcela

ou compartimentalização a posteriori, em decorrência de um processo

localizado de inscrição da cultura e da história no espaço. Contrariamente,

Casey propõe então que o lugar pode ter preeminência sobre o espaço e que

este pode consistir num desdobramento de efeitos sensoriais propiciados pela

localidade – assim como acontece entre os Kaluli da Papua Nova Guiné (Feld,

1996) e os Pintupi da Austrália Central (Myers, 1991 apud Casey, op. cit.), para

quem o Dreaming ou tempo dos sonhos assumiria uma estrutura isomórfica

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com relação à paisagem local. O ato de intervir em determinados lugares,

compor cenários/instalações e artefatos – ou mesmo imagens pictóricas –

capazes de perfazer outras formas e princípios não poderá evocar, quiçá, uma

preeminência desses lugares na criação do espaço? Será este uma espécie de

porção de um lugar que, posta em movimento, torna-se lócus de

transformação?

Naturezas fabricadas Ideias similares aparecem em declarações de outros artistas. É possível,

por exemplo, vislumbrar as possibilidades de correlacionar a ideia de que a

arte constitui um esforço para imprimir um espaço de transformação a partir de

lugares com a de uma sensibilidade que mobiliza disposições perceptivas

particulares – e que podem ser transmitidas para a forma artística. Assim,

Santiago Yahuarcani, huitoto de Pucaurquillo, Amazônia peruana, comenta ter

escutado certos sons inexistentes nas línguas que conhecia, emitindo palavras

como “shimimbro” e “kbnshu”. O artista fala então de como tais sons adquirem

formas, que foi “buscando para poder mostrar as coisas em suas pinturas às

pessoas, ao público, para que possa ver isso” (Yahuarcani, 2014, p. 233):

Também faço minhas investigações quando caminho pela floresta,

quando vou à minha chagra [horta]. Vou olhando as árvores que

existem na floresta, que estão repletas de desenhos. Aproximo-me de

uma árvore e fico duas ou três horas olhando para ela. A árvore está

pintada, há diferentes tipos de figuras. Assim, vou escolhendo, dando

voltas e escolhendo figuras para minha pintura. Há figuras que

coincidem com um som, por exemplo com a palavra “kbunshu”. Parece

que é o som de um animal que pula de dentro da água e mostra a

língua grande. Então o som, eu vou convertendo em ser (idem, ibidem).

A passagem evoca Kindi Llajtu, quando exprime o desejo de aproximar

sua pintura da textura de certas formas naturais – num movimento de retorno à

semente. Esse tipo de declaração sugere que o ato de produção artística pode

ser encarado como uma espécie de processo de criação de naturezas (Viveiros

de Castro, 2002b), que passariam assim a ser fabricadas,

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encontradas/transformadas, adquirindo uma nova aparência material (como no

caso do ser de nome “kbunshu”), ou refeitas por meio de uma texturização

obtida pelo encontro entre artista, seus modos de sentir, os instrumentos que

utiliza e as forças que dão forma à vida (como sugere Kindi Llajtu)6.

Parece existir, nesses movimentos, um processo complexo de

comunicação entre seres, em que a transformação das formas “refresca a

memória”, como formula Kindi Llajtu. Tal procedimento pode constituir um

processo de registro ou transferência de propriedades, em que as

transformações de certas formas ou princípios primordiais contribuem para

impedir seu estancamento. Como explica Marisol Calambás (2014, p. 194), a

memória circula por meio de formas materiais:

Temos, de todo o pensamento ancestral, as pegadas que nos

restaram. Todas essas marcas que herdamos na língua, nas roupas,

em nossos artesanatos, mas que necessitam ser comunicadas de uma

nova forma. Nossos avós nos comunicaram [essas pegadas] com seu

artesanato, sua dança e seu ritual. Mas agora precisamos comunicá-

las de formas diferentes.

Novamente, há espaço para pensar as imbricações entre diferentes

elementos e seres – das pedras de determinados sítios cerimoniais às árvores

a animais míticos que emergem de sons desconhecidos, passando por

artefatos e práticas do cotidiano. Contudo, se tais conexões carecem de um

aprofundamento que respeite as particularidades de cada caso, é interessante

destacar a importância de um empenho continuamente renovado para fazem

emergir novas formas, por meio de mediações sensoriais peculiares, para a

preservação e transmissão de memórias.

Pedimos licença para ampliar um pouco mais o escopo dessas reflexões

com alguns exemplos distantes que podem inspirar diálogos vis-à-vis tais

trabalhos. Margaret M. Bruchac (2005) introduz os fundamentos daquilo que

chama de modeladores de terra (earthshapers) ou transformadores                                                                                                                6 A aprendizagem dessa sensibilidade pode ocorrer com o auxílio de substâncias que abrem caminho para o conhecimento, a exemplo das plantas consideradas visionárias, como o yagé (Águilla, 2014). Não raro, o uso dessas plantas é encarado como um processo de revelação de qualidades e trajetos ora ocultos.

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(transformers) entre os diferentes povos algonquinos da América do Norte – e

mais especificamente, os Abenaki ocidentais. Segundo conta a autora, tais

termos seriam evocativos aos processos ancestrais que, segundo ela,

constituíram as formas naturais tais como são – montanhas, lagos, rios,

glaciares, entre outras –, inscrevendo em cada uma delas a história profunda

da Terra e desses povos, num recuo de milhares de anos antes da chegada

dos europeus. A história, conta ela, pode ser lida ainda hoje em cada elemento

natural que um ocidental poderia chamar de “acidente” geográfico. Já entre os

Apache, diz Basso (1996), a história (e o conhecimento) também reside nos

lugares, que evocam saberes fundamentais, relativos à vida, mas também a

aprendizagem de uma teoria da mente7.

Talvez haja aí uma possibilidade de entender as declarações de James

Lavadour, artista Walla Walla dos Estados Unidos, quando descreve seus

trabalhos como um processo de fabricação de naturezas e/ou de transposição

de naturezas ao papel – remetendo, inclusive, à sorte de continuidade

ontológica entre sol e espiral, expressa anteriormente por Marisol Calambás:

“Eu estava pegando tinta e lançando-a sobre o papel e mexendo e causando

erosões, não montanhas, mas apenas erosão num pedaço de papel. Quando

me sentei e olhei para ele, pude apenas cortar o topo e ali estava uma

paisagem perfeita” (Lavadour, 2011, s.p.).

Convidando-nos a voltar ao início deste texto, a fala de Lavadour

recupera a noção de paisagem. Mas agora estamos, talvez, diante de uma

paisagem distinta, que se afasta do modelo representativo para tornar-se uma

natureza em meio às demais. Resta compreender mais à fundo essa nova

transformação, que parece refazer os caminhos do conhecimento, ao mesmo

tempo em que pode renovar as maneiras de relacionar-se com o vivente.

Apontamentos O trajeto aqui empreendido possibilita sintetizar algumas questões para

desdobramentos futuros. Em primeiro lugar, fica sugerida a importância de

refletir sobre os processos e fios vitais (Ingold, 2012) que percorrem

determinados artefatos, unindo-os a outras coisas em emaranhados

                                                                                                               7 Cf. também Santos-Granero (1998) e sua noção de escrita topográfica.

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complexos. Tem-se aqui a possibilidade de contar uma história de coisas vivas

e suas transformações – o que não é algo alheio a entendimentos expressos

pelos próprios artistas, como no caso das linhas que se contraem e expandem,

das pedras que mostram texturas ou das espirais que são o sol.

Mas além disso – eis uma segunda questão –, os depoimentos dos

artistas indígenas citados indicam que a arte é uma modalidade de

conhecimento que diz respeito a modos de sentir e comunicar o mundo

sensível, bem como aquilo que se entende por memória. Nesse sentido, se os

grafismos contidos na produção artefatual podem ser “lidos” – como no caso do

chumbe, apresentado por Jacanamijoy (2001) –, também seria importante

inquirir uma relação particular entre o sensório – suas qualidades

compartilhadas entre seres sensientes – e determinados processos de

fabricação ou recomposição de naturezas.

Por fim, a questão do conceito de espaço como uma qualidade inerente

a determinados artefatos e seu papel num conjunto de transformações que

unem coisas, pessoas e lugares merece maiores reflexões. Igualmente, a

possibilidade de uma determinada obra tornar-se, em si, um lugar convida a

entendimentos mais apropriados.

Tais questões também permitem rever a ideia de representação, em

particular porque tais artefatos parecem ativar diversos processos de

transformação. Como indica Jacanamijoy, são espaços, ou seja, elementos

que possibilitam mudar a história de determinados lugares de vida. Ao mesmo

tempo, fica indicada a importância de discutir mais a fundo o caráter dessas

mudanças, à luz de pesquisas mais aprofundadas sobre cada artista e as

bases teóricas de seus trabalhos.

Buscou-se uma primeira aproximação com questionamentos em torno

da ideia de representação, tanto do ponto de vista da antropologia, quanto de

certos artistas indígenas interessados em estabelecer uma instigante

discussão com o universo da chamada arte contemporânea. A título de

finalização, é importante assinalar que, se os exemplos citados abrem

perspectivas para rever o debate sobre representação, também apontam para

alargamentos na definição de arte, que agora passaria a referir-se a

modalidades de inserção e experiência no mundo. Logo, cabe entender os

contextos particulares em que tais relações encontram lugar.

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