IUS SIVE POTENTIA -...

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UNIVERSIDADE DE LISBOA FACULDADE DE LETRAS DEPARTAMENTO DE FILOSOFIA IUS SIVE POTENTIA. INDIVIDUAÇÃO JURÍDICO-POLÍTICA NA FILOSOFIA DE SPINOZA ANDRÉ DOS SANTOS CAMPOS DOUTORAMENTO EM FILOSOFIA (FILOSOFIA DA POLÍTICA E DO DIREITO) 2008

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UNIVERSIDADE DE LISBOA

FACULDADE DE LETRAS

DEPARTAMENTO DE FILOSOFIA

IUS SIVE POTENTIA. INDIVIDUAO JURDICO-POLTICA

NA FILOSOFIA DE SPINOZA

ANDR DOS SANTOS CAMPOS

DOUTORAMENTO EM FILOSOFIA (FILOSOFIA DA POLTICA E DO DIREITO)

2008

UNIVERSIDADE DE LISBOA

FACULDADE DE LETRAS

DEPARTAMENTO DE FILOSOFIA

IUS SIVE POTENTIA. INDIVIDUAO JURDICO-POLTICA

NA FILOSOFIA DE SPINOZA

ANDR DOS SANTOS CAMPOS

TESE ORIENTADA PELO PROF. DOUTOR DIOGO

PIRES AURLIO E PELO PROF. DOUTOR VIRIATO SOROMENHO-MARQUES

DOUTORAMENTO EM FILOSOFIA (FILOSOFIA DA POLTICA E DO DIREITO)

2008

Aos spinozistas

RESUMO

Pressupondo o direito em Spinoza como processo de produo da natureza em

individualidade (ou como individuao que, quando humana, tem de se especificar na

poltica), o presente projecto intenta averiguar o estatuto do jurdico-poltico na sua filosofia

da perspectiva de uma ontologia do direito. Comea com uma anlise dos trs pilares

fundamentais das suas definies de direito de natureza: o indivduo (captulo I), que absorve

qualquer noo de personalidade e permanece conceito aberto numa ontologia da relao,

enquanto participante da contnua causalidade natural; as leis (captulo II), que em nada se

relacionam com as prescries de uma tradio de jusnaturalismo, expressando ao invs a

natureza no enquanto descries de necessidade, mas enquanto inscries das essncias

individuais na natureza; e a potncia (captulo III), designao da causalidade de e no existir,

que imanente tambm na singularidade (por cada essncia acarretar uma necessidade de

heteronomia), explanando-se na durao pela afirmatividade do conatus. Assentes estes

instrumentos conceptuais, eles so aplicados experincia do homem, pelo que o direito de

natureza penetra ento no projecto poltico spinozano. Primeiro (captulo IV) denuncia-se

uma tenso entre um mtodo compositivo contratualista ainda presente no TTP e a

necessidade de heteronomia inscrita na essncia individual, cuja resoluo surge apenas

quando a individuao humana se concretiza num conceito positivo de multiplicidade a

multido. Esta, ao formar-se por um jogo de afectos, instabilidade sob ameaa permanente

de dissoluo, pelo que carece de uma estabilidade do comum, o imperium (captulo V): o

poder estrutura imaginria de unidade da potncia mltipla de multido, e portanto

dificilmente preenche a definio de indivduo, muito embora haja uma teoria do Estado na

filosofia de Spinoza, enquanto rede dinmica de conceitos reflectindo o moderno Estado-

nao. Por fim, o direito de natureza tambm qualificativo de graduao da liberdade,

epistemolgica e poltica, por meio da expresso sui iuris (captulo VI). Esta a maior

concretizao do direito de natureza poltico: no mais sbio homem vivendo na democracia

mais sui iuris.

Palavras-chave: Spinoza; Direito; Individuao; Potncia; Poltica.

ABSTRACT

Spinozas notion of law is considered a process of production of nature through individuality,

or an individuation (which cannot but be political when it is specified in the singularity of

man), and it is from this basis that the current project is developed, towards the juridico-

political in Spinoza as a sort of ontology of law. It begins with an analysis of the three

cornerstones of Spinozas definitions of natural law: the individual (chapter I), which absorbs

any traditional notion of personality while remaining an open concept in an ontology of

relation, as an element of continuous natural causality; the rules or laws of nature (chapter II),

which relate in nothing to the normative pronouncements of the Natural Law Tradition

instead they are expressions of nature, not as mere description, but as an individual inscription

in nature; and potentia (chapter III), the natural causality of and in existence, immanent even

in singularities (for each individual essence determines its own necessity of heteronomy)

through their conatus. Focusing these concepts on Spinozas main philosophical interest, the

experience of man, the analysis of natural law is forced to penetrate the domain of politics.

First (chapter IV), while facing some inconsistencies between a methodological individualism

still present in the Theologico-Political Treatise and the individual determination by essence

of ones own heteronomy, a resolution is identified solely when a positive concept of

empowerment through multiplicity is presented the multitude. However, the multitude by

itself is pure instability, always facing the threat of its own dissolution (because originated

through an interplay of passions) and requires some ulterior stability of communion, the

imperium (chapter V). This structure of power (potestas) is simply an image of unity given to

the multiple strength (potentia) of the multitude, and hence it is not an individual as Spinoza

conceives it, although there is a theory of State in his later philosophy, as a dynamic network

of concepts reflecting the modern Nation-State. Finally, while being an expression of nature,

the natural law is also a qualification for the individual degrees of freedom, either political or

private it is then called sui iuris (chapter VI). This is the major effectiveness of natural law

in politics: the wisest man living in the freest democracy.

Key-Words: Spinoza; Law; Individuation; Power; Politics.

NDICE GERAL

Siglas e Abreviaturas 9

Nota Preliminar 13

Introduo 17

PARTE I DIREITO DE NATUREZA

Intrito Parte I 31

Captulo I Indivduo 35

1. A absoro da personalidade 35

2. No incio era a causa, no centro estava o homem 48

3. Com janelas escancaradas 62

A) A. E. Antes da tica 62

B) tica 68

C) D. E. Depois da tica 89

Captulo II Regulas seu leges 93

1. A arquitectura da prescrio 93

2. Prescrio vs. descrio vs. inscrio 120

3. A anatomia da inscrio 134

4. Uma inscrio imanente 154

Captulo III Potncia 173

1. A metamorfose da potncia no casulo do direito 173

2. Uma potncia imanente 190

3. Potentia, sive conatus 210

Nota Prospectiva I 235

PARTE II DIREITO DE NATUREZA POLTICO

Intrito Parte II 239

Captulo IV Multido 243

1. Status naturalis devindo esse naturalis 243

2. Os primrdios da imitao de afectos 260

3. Nasce uma multido 276

Captulo V Estado 293

1. Nasce um Estado 293

2. procura de um indivduo-Estado 312

3. Um Estado-Nao 327

A) Contrato e (des)individuao 327

B) Um Estado moderno 344

Captulo VI Sui iuris 357

1. Um direito de si 357

2. A liberdade na poltica, ou a poltica da liberdade 374

Nota Prospectiva II 387

Concluso 389

Bibliografia 399

ndice onomstico 451

ndice temtico 465

SIGLAS E ABREVIATURAS

1 Obras de Spinoza

G - Spinoza Opera, ed. Carl. Gebhardt, Heidelberg, 19722, 4 vols.

TIE - Tractatus de intellectus emendatione (Tratado da Reforma do Entendimento)

Numerao de pargrafos segundo a edio de Bruder, consoante em Tratado

da Reforma do Entendimento, trad. Ablio Queiroz, 1987.

Exemplo de citao: TIE, 3.

KV - Korte Verhandeling van God, de Mensch en deszelfs Welstand (Tratado Breve

sobre Deus, o homem e a sua felicidade)

Numerao romana das partes, numerao rabe dos pargrafos.

Exemplo de citao: KV, II, 3.

PPC - Renati Des Cartes Principiorum Philosophiae, Pars I, & II More Geometrico

demonstratae (Princpios da Filosofia de Descartes. Partes I e II demonstradas

de maneira geomtrica)

Segue as mesmas siglas de citao que a tica.

CM - Appendix, continens Cogitata Metaphysics (Meditaes Metafsicas em

apndice)

Numerao romana das partes, numerao rabe dos captulos.

Exemplo de citao: CM, II, 4.

TTP - Tractatus Theologico-Politicus (Tratado Teolgico-Poltico)

Numerao romana dos captulos.

Exemplo de citao: TTP, XV.

E - Ethica more geometrico demonstrata (tica)

Numerao romana das partes e do que no seja proposio, numerao rabe

das proposies. Siglas:

Aff Gen Def = Definio Geral dos Afectos

App = Apndice

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Ax = Axioma

Cap= Captulo

Cor = Corolrio

Def = Definio

Def Aff = Definies dos Afectos

Dem = Demonstrao

Expl = Explicao

Lem = Lema

P = Proposio

Post = Postulado

Praef = Prefcio

Sch = Esclio

Exemplos de citaes: E I, P28 Dem; E II, P13 Lem III Ax II; E II, P40 Sch.

TP - Tractatus Politicus (Tratado Poltico)

Numerao romana dos captulos, numerao rabe dos pargrafos.

Exemplo de citao: TP, II, 17.

Ep - Epistolae (Correspondncia)

Numerao romana da carta.

Exemplo de citao: Ep. XXXIII.

DPA - Tradues portuguesas por Diogo Pires Aurlio:

Tratado Teolgico-Poltico, Lisboa, INCM, 2004.

O Prncipe, Lisboa, Crculo de Leitores, 2008.

Tratado Poltico, Lisboa, Crculo de Leitores, 2008.

2 Obras de outros autores

DIG - Justiniano, Digesta, ed. Th. Mommsen, 2 vols, Berlin, Weidmannsche,

1962-3.

AT - uvres de Descartes, publies par Adam et Paul Tannery, Paris, Vrin, 11

vols., 1969-1982.

11

W - De Jure Belli ac Pacis, accompanied by an abridged translation by

William Whewell, Cambridge, John W. Parker, 3 vols., 1853.

EW - The English Works of Thomas Hobbes of Malmesbury, collected by

William Molesworth, London, John Bohn, 1839-1841, 7 vols.

OL - Hobbes, Opera Philosophica quae latine scripsit, ed. G. Molesworth,

Londini, apud J. Bohn, 1839-1845. Reimp. Baden, Darmstadt, Scientia

Verlag, 1965, 5 vols.

GP - Die philosophischen Schriften von Gottfried Wilhelm Leibniz, ed. C.

Gebhardt, Berlin, 1875-1890, 7 vols; reimp. Hildescheim/New York, G.

Olms, 1978.

Ak - Leibniz, Samtliche Schriften und Briefe, herausgegeben von der

deutschen Akademie der Wissenschaften zu Berlin.

NOTA PRELIMINAR

1.

usual, no mbito de uma histria do pensamento jurdico, a distino sobretudo

metodolgica entre um pensar filosfico da realidade jurdica e um pensar dos pressupostos

da prtica jurdica enquanto disciplina autnoma de unidade sistemtica. De um lado, posta

a demanda da validade e dos significados da noo de direito no interior dos tratamentos

filosficos da vida humana em comunidade, e, do outro lado, ressurge o direito como temtica

em si do pensar por passos que lhe so especficos numa cincia filosfica do direito. No

fundo, demarca-se uma filosofia do direito impltica (implcita a uma filosofia de sistema

ou, em especial, a uma filosofia poltica) de uma filosofia do direito explcita titulando o

direito como objecto denunciado do pensar.1 Diante de tais categorias paralelas, Spinoza2

sempre empurrado para a primeira.

Com efeito, mesmo entre os estudos spinozistas, raro encontrar anlises do seu uso

da noo de direito que a assumam como conceito de anlise especfica, e no como mero

instrumento de compreenso de uma filosofia poltica.3 E, de facto, o direito em Spinoza

parece ser tratado apenas em excursos sobre a naturalidade da poltica, num tratado

teolgico-poltico ou num tratado todo ele poltico. Seguindo este raciocnio, estudar o

direito em Spinoza reduzir-se-ia a um recortar desconstrutivo de um elemento da sua filosofia

poltica, um particularizar de problemas secundrios na sua poltica.

No obstante, porque no se reduz ao ser ou experincia dos indivduos humanos, e

porque mesmo na poltica no mero conceito de desenvolvimento mas o comeo mesmo

fundamental da poltica que a alimenta de natureza, o direito em Spinoza parece ser algo que 1 Cfr. M. Reale, Filosofia do Direito, pp. 1433-9, sobretudo quando diz: Parece, pois, que cabe distinguir entre uma filosofia jurdica implcita, que se prolonga, no mundo ocidental, desde os pr-socrticos at Kant, e uma filosofia jurdica explcita, consciente da autonomia dos seus ttulos, por ter intencionalmente cuidado de estabelecer as fronteiras do seu objecto prprio nos domnios do discurso filosfico (p.1435). 2 Sendo motivo de controvrsia em lngua portuguesa a grafia e a correspondente pronncia do nome do filsofo (Espinosa ou Spinoza), remete-se a justificao da opo tomada, e dos seus derivados empregados ao longo do texto (spinozismo, spinozistas, spinozano, etc.), para o nosso Spinoza e Espinosa: Excurso Antroponmico, pp. 19-26, onde se defende a legitimidade de qualquer uma das grafias, sendo Spinoza prefervel por se pretender uma maior uniformidade internacional no tratamento do filsofo. 3 So poucos os textos crticos debruando-se sobre o direito em Spinoza que o tomam como temtica em si e no apenas inserida na contextura da sua filosofia poltica: v, a ttulo de exemplo, J. H. Carp, Naturrecht und Pflichtbegriff nach Spinoza, 1921, pp. 81-90; Th. H. Green, Lectures on the Principles of Political Obligation, 1941, pp. 49-59; H. Cairns, Spinozas Theory of Law, 1948, pp. 1032-1048; G. Belaief, Spinozas Philosophy of Law, 1971; M. Walther, Die Transformation des Naturrechts in der Rechtsphilosophie Spinozas, 1985, pp. 73-84; Idem, Spinoza und der Rechtspositivismus, 1985, pp. 401-418; Idem, Natural Law, Civil Law, and International Law in Spinoza, 2003, pp. 657-665.

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extravasa a antropologia e a poltica para ressaltar como realidade afervel de uma ontologia

uma ontologia da necessidade natural individualizada, desde logo, mas tambm uma

ontologia do prprio direito. Um estudo da consistncia mesma do direito na filosofia de

Spinoza consistir sempre num deambular pelo seu sistema, porm no porque esteja nele

implcita ou dissimulada, mas porque o que h de explcito na sua presena alcana (e no

pode ser concebido sem), quer uma ontologia da natureza, quer, quando virada para a

especificidade do homem, uma dimenso poltica.

Que h uma filosofia do direito prpria em Spinoza que se no engole na sua filosofia

poltica nem na sua ontologia do necessrio assim o pressuposto e objectivo primeiro

projectado para um estudo rigoroso da sua concepo de direito. Mas porque essa filosofia do

direito se explicita num deambular pelo sistema, ela no s consiste num averiguar da

natureza (ou ser) do direito dentro de uma filosofia da natureza, como exige ainda a sua

aplicao ao interesse maior do filosofar, o homem, pelo que permanece sempre incompleta

se no se volta para a poltica, enquanto jurdico-poltica. Neste contexto, a poltica um

desenvolvimento inevitvel da filosofia do direito, e no vice-versa (o que, obviamente, no

significa de todo que a filosofia poltica possa ser reduzida a mero desenvolvimento da

filosofia do direito).

com a aparncia de um tal deambular (jamais desorientado) que se reveste todo este

projecto de investigao da natureza do direito na filosofia de Spinoza. A presente dissertao

o resultado afervel no momento da sua interrupo.

2.

Quanto ao aspecto formal do texto da dissertao, h a considerar de antemo as

seguintes opes metodolgicas adoptadas, visando sobretudo facilitar a actividade do leitor:

a) Apesar de nestes ltimos anos terem surgido, nomeadamente em Frana, edies

crticas (bilingues) de alguns textos de Spinoza com bastante qualidade, e apesar

tambm das crticas pertinentes que F. Akkermann chega a dirigir ao que considera

ser a menor qualidade da edio crtica de C. Gebhardt em comparao com a de J.

Van Vloten e J. P. N. Land, mesmo assim, todas as citaes de Spinoza so

remetidas para a edio C. Gebhardt, muito embora se tenham consultado tambm

as restantes edies. A razo para isto reside na permanncia da maior relevncia

ainda hoje atribuda nos estudos spinozistas a essa edio.

15

b) Foram discriminadas no seu estatuto de importncia as peas bibliogrficas

consultadas e citadas, podendo de certa maneira distinguir-se entre peas principais

e peas auxiliares ou crticas: as primeiras so sempre citadas na lngua original de

feitura, as segundas so por vezes citadas em tradues mais disponveis e

consideradas fidedignas.

c) Todas as citaes no corpo de texto foram traduzidas para lngua portuguesa,

independentemente do estatuto de importncia que lhes foi conferido. s citaes

em notas de rodap no foi rendida traduo, no s porque se explanam em

lnguas conhecidas na sua generalidade pela comunidade cientfica portuguesa,

mas tambm para no sobrecarregar desmesuradamente o texto: excepo feita

sobretudo s citaes latinas (e a algumas alems), por se tratar de uma lngua de

conhecimento pouco disseminado.

d) No caso de textos citados no corpo de texto, ou por vezes nas notas de rodap, para

os quais h tradues portuguesas de reconhecido mrito (como tradues de

Maquiavel, Hobbes, Hume, ou Marx), os textos em lngua portuguesa so citados a

partir dessas edies. Em tais casos, a citao sempre acompanhada da meno

do tradutor.

e) Por no ser dada primazia neste trabalho a eficincias de traduo, so citadas de

maneira quase acrtica as obras de Spinoza nas tradues portuguesas j existentes

de reconhecido mrito. No caso presente, merecem tal distino as duas tradues

por Diogo Pires Aurlio do Tratado Teolgico-Poltico e do Tratado Poltico

(cujas pginas citadas so sempre indicadas sob a abreviatura DPA): e s muito

raramente estas tradues no so rendidas ipsis verbis, quando so consideradas

auxiliares insuficientes para a compreenso do contedo em tais casos, essas

passagens permanecem na verso latina (em expresses como imperium ou sui

iuris). Quanto s restantes tradues j existentes, certamente de reconhecido

mrito tambm a traduo portuguesa por Joaquim de Carvalho da parte I da tica:

como porm ela hoje publicada apenas em conjunto com as restantes partes,

traduzidas numa qualidade bem menor, dispensa-se a sua citao acrtica para

evitar confundir o leitor. Como tal, todas as tradues portuguesas de Spinoza, que

no do Tratado Teolgico-Poltico e do Tratado Poltico, so de nossa inteira

responsabilidade.

f) Por motivos de economia de espao, a citao dos textos simplificada ao

mximo, incluindo em geral apenas o nome do autor, o ttulo (citado na ntegra

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quando mencionado pela primeira vez, sendo-lhe retirado o sub-ttulo nas demais

citaes), e a numerao das pginas citadas. Por vezes, quando considerada

informao relevante, tambm indicada a data e quando so citadas obras

consultadas em edies que no a primeira, as citaes mencionam sobretudo a

data da primeira edio (sempre entre parntesis rectos). Ademais, nos casos de

obras mencionadas com alguma frequncia, as respectivas citaes so indicadas

por meio de siglas e abreviaturas, cujo elenco se encontra nas pginas 9-11. De

qualquer das maneiras, concentra-se na Bibliografia final a indicao completa de

todas as obras em referncia.

3.

Um trabalho desta envergadura no teria sido possvel sem a segurana de um

financiamento peridico garantido, prestado no mbito de uma poltica pblica de apoio

investigao cientfica pela Fundao para a Cincia e a Tecnologia, cuja interveno eficaz

se reconhece.

Uma palavra especial de agradecimento fica reservada a quem participou activamente

no caminho conducente a este resultado, orientando o caminhante: ao Professor Doutor

Viriato Soromenho-Marques, pela confiana que sempre demonstrou na viabilidade do

projecto e nas capacidades do aspirante a realiz-lo, e ao Professor Doutor Diogo Pires

Aurlio, que, pelos seus ensinamentos, interesse, e amizade, contribuiu fortemente para

transformar o que partida aparentava ser uma enfadonha investigao filosfica numa

enriquecedora experincia de vida.

INTRODUO

Spinoza no um filsofo do senso comum. A sua construo filosfica em modelo

sistmico de livre acesso a todos os capazes de entendimento, sages e vulgos, mas repleta de

reas restritas ao vulgo que insista em permanecer nos meandros do senso comum. que a

excelncia culminando o sistema rara e inatingvel para a maioria, mas tambm difcil em

equivalncia1: dificuldade que exige um inconformismo por cada um com uma sua situao

estacionria no senso comum e uma necessidade de um incremento de si para fora desse senso

comum. E a dificuldade no consiste apenas no rduo acesso excelncia mas tambm na

rdua obteno e manipulao dos instrumentos que permitem o percurso de rduo acesso.

Ora tais instrumentos de um pensar filosfico so sobretudo lingusticos, pelo que a

penetrao na filosofia de Spinoza acarreta uma declarao de caducidade das noes

compondo o senso comum e em simultneo um requerimento da necessidade de superao

dessas noes. terminologia propagada no intercmbio do quotidiano Spinoza passa um

atestado de insuficncia. A exposio da filosofia depende ento no tanto de um

recenseamento dos termos comuns mais adequados a empregar, mas mais de um suplantar

desses termos, de uma reconceptualizao.

Contudo, uma simples transformao terminolgica traz consigo o perigo bvio de

tornar hermtico o filosofar, pois se o pensar decorrer na pura inveno de uma nova

linguagem que no reconhea linhagem, esse pensar enrolar-se- no interior de si e o filsofo

correr o risco de linguajar to s consigo mesmo risco impondo que dele se fuja quando a

proposta da construo filosfica empreendida uma de livre acesso a todos os capazes de

entendimento. Reconceptualizar pelo contrrio forjar uma nova terminologia em simultneo

reconhecendo a presena de uma terminologia passada de superao necessria,

conceptualizar de novo, a partir do antigo. O livre acesso ao sistema assim assegurado

pelo recurso aos antigos instumentos do senso comum, mas essa construo sistmica

depende da atribuio aos mesmos instrumentos de uma nova funcionalidade que transponha

a caducidade da antiga: a reconceptualizao torna-se sobretudo numa resignificao.

Isto pressupe que o exerccio do filosofar seja acompanhado por um persistente

trabalho de remodelao da linguagem, na medida em que para cada passo dado no pensar

1 Sed omnia praeclara tam difficilia, quam rara sunt. [Mas tudo o que brilhante to difcil quo raro.], E V P42 Sch, G II, p. 308. Esta a frase que culmina a tica.

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seja necessrio o recurso a um instrumento primrio do senso comum convidando a alteridade

a acompanhar esse pensar, recurso este que reconhece a insuficincia terminolgica e acomete

uma resignificao que com frequncia um reviramento de termos. Toda a filosofia de

Spinoza afinal um convite frequente a um reviramento do senso comum.

Revirar um termo no apenas conferir-lhe um novo significado, mas sim conferir-lhe

o significado contrrio quele detido no mbito do senso comum. E a sua exigibilidade de

fcil explicao: como a linguagem no seno o conjunto de imagens inadequadas verdade

do pensamento2, a constncia dos significados correntes representa a constncia dessa

inadequao ou a situao estacionria do ignaro, pelo que o desenvolvimento do pensar que

corresponda explanao da verdade acarreta o contrrio dessa situao estacionria, e por

conseguinte tambm o contrrio dos significados terminolgicos a constando. A linguagem

filosfica mantm-se um conjunto de imagens, mas a sua inadequao degrada-se e o trabalho

de transformao da linguagem progride para uma quase plena reflexo da verdade.

Este revirar do significado de um termo do senso comum para o seu contrrio

explcito nos textos de Spinoza, embora implcita a sua dependncia de um persistente

trabalho de remodelao da linguagem. Da com frequncia se interpretar esse reviramento

como simples ambiguidade terminolgica3 ou como estratgia de sobreposio de duas

linguagens num artifcio que recorre ao equvoco para encriptar prudencialmente o genuno

pensamento do filsofo4. Mas de facto no h em Spinoza nem ambiguidade terminolgica

nem sobreposio de duas linguagens contrrias: assumir a ambiguidade corresponde ao

reconhecimento de um peso equivalente aos dois significados contrrios de um mesmo termo,

quando Spinoza recorre a um segundo significado que inverta o primeiro precisamente pela

2 Adde quod sint constituta ad libitum, et captum vulgi ; adeo ut non sint nisi signa rerum, prout sunt in imaginatione, non autem prout sunt in intellectu [Acresce o facto de as palavras se constituirem consoante o capricho e a percepo do vulgo, de tal maneira que no so seno sinais das coisas conforme esto na imaginao, e no conforme esto no entendimento.], TIE, 88-9, G II, p. 33. Et profecto plerique errores in hoc solo consistunt, quod scilicet nomina rebus non recte applicamus. [E realmente a maioria dos erros consiste apenas nisto, a saber, que no aplicamos correctamente os nomes s coisas], E II P47 Sch, G II, p. 128. 3 o que faz F. Alqui, Le rationalisme de Spinoza, 1981, p. 132, interpretando de maneira tcita e ampla P.-L. Couchoud, Benoit de Spinoza, 1924, p. 300, o qual aponta que Spinoza forma com frequncia uma s palavra a partir de dois termos correntes e opostos, por uso da conjuno sive. 4 esta a tese j clebre de Leo Strauss, in How to Study Spinozas Theologico-political Treatise [1948], Persecution and the Art of Writing, pp. 142-201, muito disseminada com o tempo, tal como em S. Rosen, Spinozas Argument for Political Freedom, 1958, pp. 487-499; B. Lang, The Politics of Interpretation: Spinozas Modernist Turn, 1989, pp. 327-356; e, mais aprofundadamente, reconhecendo no uso de linguagem dupla e esotrica no apenas uma funo defensiva de prudncia, mas tambm uma ofensiva de persuaso e uma de construo hermtica, prprias dos meios de expresso marranos, Y. Yovel, Spinoza and Other Heretics, vol. I The Marrano of Reason [1989], pp. 146-155. Na crtica a esta tese, v. E. E. Harris, Is There an Esoteric Doctrine in the Tractatus Theologico-Politicus?, 1978; P.-F. Moreau, Spinoza. Lexprience et lternit, 1994, pp. 364-9; N. Levene, Ethics and Interpretation, or How to Study Spinozas Tractatus Theologico-Politicus without Strauss, 2000, pp. 57-110; J. Alves de Aquino, Hermenutica e Ambigidade: a estratgia discursiva de Espinosa, 2007, pp. 37-45.

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negatividade deste no sistema;5 e sobrepor duas linguagens contrrias por artifcio estilstico

com o fim de dissimular a clandestinidade de um pensamento afinal reconhecer a

completude de duas linguagens que chocam entre si, e no desvelar a filosofia como exerccio

itinerante do pensar.

O que sobretudo preocupa Spinoza a vera natureza das coisas, o contedo em

formao da filosofia, e no o mais correcto significado das palavras.6 Por isso, ao verificar

que a terminologia do senso comum reflecte com inadequao os objectos e temas para que

aponta, Spinoza corrige-a, revirando-os. Opera ento aquilo a que se chamou j de revoluo

semntica.7

O intento primordial no porm o de subverter o que fora j dado pelo senso comum,

num movimento intelectivo visando apenas a desvalorizao e consequente destruio da

antiga terminologia: subverter virar a partir de baixo, fazer do fundamento cpula e da

cpula fundamento, num mpeto impresso exteriormente em oposio ao que se reverte.

Spinoza vai bem mais longe na sua revoluo semntica: na demanda da vera natureza das

coisas, ele comea por penetrar na terminologia do senso comum para em seguida esta ser

corrigida ao acompanhar esse processo de demanda. A construo de um sistema filosfico de

livre acesso exige o retomar da linguagem de todos, a do senso comum, exige que se fale em

considerao da capacidade de compreenso do vulgo (ad captum vulgi loqui),8 para a partir

do seu interior crescer em verdade ao ponto da remodelao dessa linguagem. Se a exposio

filosfica de Spinoza deixa transparecer uma penria de palavras empregadas, isso deve-se

5 Quando J. Alves de Aquino, in Hermenutica e Ambigidade: a estratgia discursiva de Espinosa, 2007, p. 43, fala de ambiguidade no discurso spinozano no de maneira negativa, mas como mecanismo de reconfigurao e reordenao da realidade, como equivocidade temporria constituindo uma estratgia de desambiguao, est no fundo a reconhecer-lhe um valor positivo em Spinoza. Mas no discurso spinozano no chega a haver uma valorizao do equvoco excepto quando interpretado pelos olhos errneos do senso comum: mesmo que se entenda a necessidade de reconfigurao de significados como uma estratgia de desambiguao, difcil entend-la numa pura positividade do ambguo. Ademais, desambiguar pelo ambguo no isso sim uma ambiguidade? 6 essa a crtica endereada por Spinoza aos gramticos: Attamen non miror, Philosophos verbales sive grammaticales in similes errores incidere: res enim ex nominibus judicant, non autem nomina ex rebus. [Mas no entanto no me espanto por os filsofos das palavras ou da gramtica carem em erros similares, pois julgam as coisas pelos nomes, no os nomes pelas coisas.], CM, I, 1, G I, p. 235. 7 Expresso usada por M. Walther, in Die Transformation des Naturrechts in der Rechtsphilosophie Spinozas, 1985, pp. 73-4, difundindo-se por exemplo em G. H. Jongeneelen, Semantic change and the semantics of spinozism, 2001, pp. 111-128, e em J. Blanco-Echauri, Las concepciones del Ius Naturale o los fundamentos de la politica en Grocio, Hobbes y Espinosa, 2003, p. 121. 8 Cfr. TIE, 17, G I, p. 9. V. a mesma expresso tambm em TTP, VI, G III, p. 84; XIII, G III, p. 172; XV, G III, p. 180. Quanto filosofia de Spinoza como de livre acesso, por oposio a uma sua cautelosa dissimulao, v. as palavras de C. Jaquet, Les expressions de la puissance dagir chez Spinoza, p. 20: Lart de parler et dcrire ad captum vulgi consiste sadapter autant que possible la manire de penser des hommes non pas pour leur voiler, mais pour leur dvoiler la vrit. Il repose davantage sur une mise en scne du vrai que sur le culte du secret.

20

sua penetrao na penria das palavras prpria do senso comum.9 O reviramento

terminolgico de Spinoza no ento uma mera subverso, acima de tudo uma

endoreconstruo.10

Quando portanto Spinoza evoca termos prprios de certas doutrinas tradicionais para

explicitar o que no em comum prprio dessas doutrinas, mas porventura contrrio, no h

em rigor uma oposio subversiva s mesmas, mas um penetrar nelas corrigindo-as,

construindo de novo o seu significado a partir do seu interior.11 Ser porventura o que sucede

com as suas invocaes de um ius naturae.

No porm sem resistncia que podem ser remetidas quaisquer reflexes spinozanas

sobre o direito para uma categoria mais ou menos ampla de jusnaturalismo. At porque esto

longe da unanimidade os elementos de preenchimento de uma tal categoria, chegando a

designar ora um conjunto de enunciados deontolgicos de conformidade a um modelo de

ordem natural pr-estabelecido (por um Deus transcendente ou pelo uso da razo), ora

mandamentos traduzindo uma concepo de justia que independe e se impe enquanto

medida de validade a um mecanismo dentico operando em organizaes polticas de poder

(o chamado direito positivo), ora uma elaborao do direito dentro do quadro terminolgico

dos contratualismos modernos (por exemplo, por menes a estados de natureza e estados de

sociedade, assim como a leis naturais no mbito de um direito natural), ora simplesmente um

qualquer desenvolvimento filosfico de um direito dito natural com densidade suficiente para

9 o prprio Spinoza quem, numa carta a H. Oldenburg, confessa uma sua frequente penria de palavras (penuriam verborum): v. Ep. VI, G IV, p. 36. F. Akkerman, que examina a linguagem de Spinoza em termos de riqueza ou pobreza (in Pauvret ou richesse du latin de Spinoza, Studies in the Posthumous Works of Spinoza, 1980, pp. 25-35, seguindo um pouco as depreciaes da latinidade em Spinoza por I. Kajanto, Spinozas Latinity [1979], pp. 35-54), acaba no fundo por caracterizar toda a latinidade de Spinoza como uma penria de palavras (in La Pnurie de Mots de Spinoza [1976], pp. 9-37) devido ao seu uso frequente de repeties, quer dos seus prprios textos quer de textos clssicos. No sentido oposto, tomando a linguagem como herana de cultura, P.-F. Moreau, Spinoza. Lexprience et lternit, 1994, p. 364, v qualquer transmisso de pensamentos como um reprendre le langage dautrui, assim se explicando as repeties. 10 Facilius enim iis fuit [] praesentem suum et innatum statum ignorantiae retinere, quam totam illam fabricam destruere et novam excogitare. [Foi-lhes mais fcil reter o seu estado presente e inato de ignorncia do que destruir toda aquela estrutura e excogitar uma nova.], E I App, G II, p. 79. Este no fundo o meio pelo qual Spinoza discorre no seu pensar: impe-se destruir uma estrutura que j est e no seu lugar implantar uma nova, mas mantendo a aparncia exterior do que a estava. Tal como um arquitecto pode renovar todo um velho edifcio (a palavra fabrica pode alis tambm designar edifcio) construindo-o de novo, embora mantendo (melhorada) a fachada do edifcio antigo, assim tambm Spinoza constri o novo no lugar do antigo mantendo a fachada (melhorada) do antigo. alis muito interessante que H. A. Wolfson, The Philosophy of Spinoza, vol. I, p. 13, remontando todo o Spinoza a medievalismos, diga das suas leituras latinas que lhe tenham fornecido apenas a new vocabulary for old ideas, quando afinal Spinoza bebe nelas an old vocabulary for new ideas. 11 Neste sentido, sustentando que using familiar words in unfamiliar ways, is not for Spinoza a refutation of the doctrine, v. S. Hampshire, Spinoza, 1951, p. 84, e P.-F. Moreau, Politiques du Langage, 1985, p. 193, para o qual Spinoza afasta-se da linguagem de quaisquer doutrinas quando ela tomada como vrit conceptuelle spontane, mas no ds lors quon lenvisage comme un instrument susceptible damliorations, de substitutions, de transformations conscientes.

21

ser aferido como doutrina do direito natural.12 Esta variao da categoria permite que se

fundamentem em bases distintas quer as inseres de Spinoza no jusnaturalismo quer as suas

explticas excluses.13

O que importa sobretudo averiguar em Spinoza , contudo, no como se explicita ou

especifica uma qualificao dilatada de jusnaturalismo, mas qual o valor que tm na sua

filosofia uma associao do tratamento do direito natureza, e as pretenses a inerentes. H

desde logo dois pormenores relevantes cuja considerao condiciona e problematiza qualquer

anlise do conceito de direito em Spinoza. Por um lado, a filosofia tida como uma dinmica

do entendimento humano na produtividade causal do real, enfim um pensar de sistema do

que e existe na completude de um todo infinito, perfeito, e nico este todo produtivo,

omni-inclusivo do ser e do existir, a realidade mesma em si, a natureza (naturante ou

naturada, consoante a fase de produtividade auto-causal em considerao). Por isso, o

aprofundamento de um qualquer conceito nessa filosofia ser sempre a demanda do que ele

ter de naturalidade ou de quanto se expressa por ele a realidade da natureza,

independentemente da disciplina cientfica que integra, pois todo o saber ento um saber de

natureza. Esta omni-incluso produtiva da natureza, que a faz mbito e objecto de todo e

qualquer conhecimento, impede o desligar de um elemento circunscrito de anlise perante

esse todo os pressupostos de validade desse elemento consistiro no cumprimento

discriminado da realidade mesma da natureza, e a verdade do seu ser depender de uma

adequada insero no ser da natureza. Por conseguinte, no possvel dissociar a busca pelo

que h de real num determinado conceito como o de direito, por exemplo de uma

ontologia do natural ou de uma metafsica de sistema.

Por outro lado, Spinoza adopta uma noo de direito (ius) cuja afirmatividade se

encontra nas remisses natureza (naturae), ao ponto de chegar a defini-lo, enquanto ius 12 O qualificativo mais comum da categoria aquele denunciado j por N. Bobbio, Societ e stato nella filosofia politica moderna, 1979, p. 15: Per quanto lidea del diritto naturale risalga allet classica, e non abbia cessato di aver vita durante let di mezzo, quando si parla di dottrina o di scuola del diritto naturale, senzaltra aggiunta, o pi brevemente, con termine pi recente e non ancora accolto in tutte le lingue europee, di giusnaturalismo, ci si riferisce alla riviviscenza, allo svolgimento e alla diffusione che lantica e ricorrente idea del diritto naturale ebbe durante let moderna, nel periodo che corre tra linizio del Seicento e la fine del Settecento. V. tambm o seu Hegel e il giusnaturalismo [1966], in Studi hegeliani, pp. 3-33, em especial as pp. 5-6. 13 Inserem simplesmente Spinoza numa tradio moderna de jusnaturalismo, por exemplo, N. Bobbio, Societ e stato nella filosofia politica moderna, 1979, p. 53, em virtude ainda das redues da filosofia poltica de Spinoza a um hobbismo levado ao extremo: v. F. Pollock, Spinoza: His Life and Philosophy [1880]; idem, Spinozas Political Doctrine with Special Regard to His Relation to English Publicists, 1921, pp. 45-57; R. H. M. Elwes, Introduction [1883], in The Chief Works of Benedict de Spinoza, pp. v-xxxiii; R. Duff, Spinozas Political and Ethical Philosophy, 1903; L. Roth, Spinoza, 1929. No sentido completamente oposto, sustentando a impossibilidade de Spinoza jamais poder integrar qualquer categoria de jusnaturalismo, por muito ampla que seja, v. A. Negri, Lanomalia selvaggia [1981], p. 111; F. Dias Andrade, Pax spinozana. Direito natural e direito justo em Espinosa, 2001, pp. 34-171; e A. Garrett, Was Spinoza a Natural Lawyer?, 2003, pp. 627-641.

22

naturae, nas suas obras polticas e sempre como comeo dos tratamentos filosficos da

poltica. No TTP, quando o tratado se torna sobretudo poltico, o direito vertido como natural

o ponto de partida (no captulo XVI) para uma projeco constitutiva de sociedades polticas

entre homens, e, apesar de se no reduzir poltica por o seu alcance extravasar o humano, a

sua presena a serve de fundamento e de base justificativa do poltico; na tica, onde h um

tratamento da poltica mas insuficiente para a tornar uma obra sobre e de poltica, o direito

presentifica-se apenas em momentos esparsos, no chega a ser definido, e surge sempre numa

contextura analtica das sociedades polticas, na parte IV, nunca na pura ontologia da parte I,

na fsica e na psicologia da parte II ou na antropologia da parte III; no TP, volta a ser comeo

da produtividade dos indivduos na poltica tal como o fora no TTP, e faz-se noo

fundamental de um tratado que se pretende poltico e no tanto jurdico em temtica. O

direito aponta-se ento como instrumento das reflexes sobre a poltica, e por vezes com uma

intensidade tal que parece o poltico chegar a absorver a noo de direito. Neste sentido,

poder-se- inquirir se o direito remetido ao natural no mais um conceito poltico em escopo

do que propriamente uma derivao de uma ontologia da natureza.

Esta indeterminao do direito como conceito todo inserido numa metafsica de

sistema ou todo engolido por uma doutrina poltica s permanece enquanto dura a indefinio

metodolgica do lugar e relevncia da poltica de Spinoza na sua filosofia. Este um

problema habitual nos estudos spinozistas que perdura at hoje. Desde que os estudos

incidindo sobre a vertente poltica da filosofia de Spinoza conseguiram superar o apegamento

permanente a que estavam sujeitos pela teia enleante do hobbismo, houve um esforo

considervel por arrancar definitivamente a cortina que separa a essncia do poltico em

Spinoza da sua ontologia da natureza.14 A reaco consequente ao constante reportar do

pensamento poltico de Spinoza quele de Hobbes, no seguimento do forte impulso inicial

necessrio para a libertao de tais liames, tendeu a constituir-se como plo oposto condio

anterior, isto , quando antes os textos polticos de Spinoza eram interpretados como um mero

aditamento filosofia de Hobbes, a reaco ulterior desvalorizou-os ao ponto de diluir a

originalidade de um novo pensamento poltico no interior da pura ontologia das primeiras

partes da tica.15 Uma vez assentado o p remexido por este movimento de reaco, embora

constitutivo de um antagonismo de perspectivas na abordagem ao pensamento poltico de

14 Trabalho assumido em especial a partir de G. Solari, La dottrina del contratto sociale in Spinoza [1927], in Studi Storici di Filosofia del Diritto, pp. 119-156, e L. Strauss, Spinozas Critique of Religion [1930]. 15 Parece ser isto o que se conclui de S. Hampshire, Spinoza [1953], pp. 47-8 e p. 177 (his conception of political science, which was directly derived from his metaphysics), sustentada de maneira implcita tambm por E. Curley, Behind the Geometrical Method. A Reading of Spinozas Ethics, 1988, pp. 4-6.

23

Spinoza, foi possvel descobrir a finalmente uma nova filosofia poltica, atravs de um

retorno aos textos, de uma releitura contnua que consegue encontrar ora uma linha evolutiva

de continuidade, ora um ciclo de antecipaes e remisses entre as trs obras que

eminentemente contm em si essa filosofia poltica, o TTP, a tica, e o TP. Este referido

retorno aos textos permite, por um lado, tomar a filosofia de Spinoza como contendo uma

nova filosofia poltica que no almeja insular-se na histria do pensamento poltico, mas que

assume uma tradio conceptual moderna prestes a ser modificada, e, por outro lado, assumir

a impossibilidade de abordar uma tal filosofia poltica sem o recurso fundamental e incessante

a uma ontologia da natureza ou metafsica de sistema.

Mas tambm verdade que o retorno aos textos polticos e uma sobrerelevncia da

problemtica poltica pode chegar a tomar a consequncia de uma desconsiderao da

metafsica e da ontologia na motivao geral da filosofia de Spinoza. Por esta interpretao

extremada que coloca o poltico em frente de tudo o resto, a qualificao de Spinoza como um

subversivo radical pode restringir-se ao ponto de toda a sua filosofia ser tomada unicamente

como pretenso de subverso. Assim, se o Deus de Spinoza for compreensvel menos como

uma efectivao da imanncia e mais como uma desrealizao da transcendncia, ento ser

mero recurso metafsico da pretenso poltica de subverter o Deus legitimador da teocracia; se

a natureza em Spinoza for compreensvel menos como omni-incluso necessria do ser e do

existir e mais como uma desvalorizao de uma conexo causal criadora por parte de uma

personalidade (causa) face a um objecto (efeito), ento ser tambm mero recurso metafsico

da pretenso poltica de subverter o Deus legitimador das religies reveladas; se enfim a alma

em Spinoza for compreensvel menos como ideia do corpo em acto com eternidade em Deus e

mais como uma identidade pessoal perecvel com o corpo, ento ser mero recurso metafsico

da pretenso poltica de subverter o mecanismo de recompensas e punies post mortem que

legitima o poder dos telogos. Spinoza perder-se-ia ento como metafsico e filsofo de

sistema, a sua ontologia sendo apenas expresso do seu pensamento poltico.16

Esta indefinio metodolgica, contudo, parece assentar sobre um punhado de

equvocos. Tomar a poltica em Spinoza como mera derivao metafsica num sistema

filosfico, por um lado, significa incompreender como a filosofia debruando-se sobre a

temtica poltica recorre a conceitos multidisciplinares, como a imanncia e a causalidade

16 esta a tese recente de M. Stewart, The Courtier and the Heretic. Leibniz, Spinoza, and the Fate of God in the Modern World, 2006, pp. 156-182. Diz ainda M. Stewart expressamente: In contemporary histories, Spinoza tends to be portrayed first and foremost as a metaphysician or system builder. I have presented him primarily as a political and moral philosopher one who turned to metaphysical system building as a means of expression rather than an end in itself. (p. 327).

24

necessria, por exemplo, para os tornar prprios, conceitos que fundamentam a maneira de se

pensar a poltica numa perspectiva filosfica. Se a filosofia poltica de Spinoza no reside nos

seus textos polticos, mas nos metafsicos, fica aberto o caminho criatividade dos intrpretes

que se ergue desses pressupostos metafsicos, no havendo a afinal filosofia poltica mas to

s metafsica aplicada poltica; mas se a filosofia poltica residir sim nos seus textos

polticos, e estes manipulando conceitos explanados nos textos metafsicos, h a uma

filosofia poltica original que no mera derivao metafsica mas que, por integrar um

sistema interligado, se no insula como saber filosfico, alcanando sim outros saberes,

reassimilando os seus conceitos.

Por outro lado, tomar a metafsica em Spinoza como mero recurso de um projecto

poltico congeminado de antemo significa incompreender os prprios conceitos-base da

filosofia de Spinoza e o seu mtodo do pensar. O comeo em Spinoza no est no dbio ou no

abalo a alicerces j institudos, mas na ideia verdadeira a partir da qual todo o saber se

constri: as definies que iniciam cada parte da tica, e toda a reflexo poltica do TTP e do

TP, so afirmaes de essncias e no negaes de preconceitos; as rejeies teleologia

tradicional e ao Deus transcendentemente criador funcionam a contrario e concluem-se de

premissas verdadeiras, razo pela qual na tica surgem em apndice parte I e no em

intrito, nem integrando os argumentos demonstrativos; o que seja a alma humana, enfim,

infere-se a partir da imanncia de Deus e no da desnecessidade de um sistema normativo

concebido pela teologia.17

A metafsica no mera derivao da poltica tanto quanto a poltica no mera

derivao da metafsica: ambos so saberes independentes no interior de um mesmo sistema

de filosofia, que se no rejeitam mutuamente, mas que partilham conceitos que se validam

dentro de cada um desses saberes, ora como conceito metafsico, ora como conceito poltico.

Nesta medida, o direito situa-se com um p numa metafsica de sistema e com o outro

numa cincia filosfica da poltica: no fundo, o direito que intermedeia ontologia e poltica,

sendo compreensvel dentro e a partir da natureza e fazendo compreender, enquanto princpio

fundante, a naturalidade expressando-se nos processos de construo poltica. A haver como

que uma fenomenologia do direito, ela decorre decerto atravs da ontologia, mas sem jamais

perder as suas pretenses de devir conceito constitutivo no horizonte da poltica. Que coisa

17 Ademais, se toda a metafsica de Spinoza fosse apenas recurso de um projecto poltico de rejeio da teocracia e da teologia que a sustm, como explicar o Deus-Natureza e a rejeio da imortalidade da alma que surgem no Tratado Breve, redigido antes de se lhe conhecer qualquer pensamento poltico (cfr. KV, I, 2, 12, G I, p. 22, e KV, II, 23, 1-2, G I, pp. 102-3)? E como explicar ainda a sua defesa expressa da utilidade poltica de instrumentos prprios da tradio teolgica, como a prescrio normativa, o credo mnimo, a legitimao religiosa do Estado?

25

o direito descortina-se apenas na expressividade da natureza, no enquanto hiptese ou ideal

mas enquanto elemento de participao na auto-produtividade do real. assim to legtimo

sustentar que h poltica na ontologia spinozana quanto que h ontologia na poltica

spinozana, sob a perspectiva de um itinerrio do direito: o seu pensar do direito uma

filosofia da natureza em direito, com a aplicabilidade poltica como horizonte.18

Todavia, se h uma tendncia em Spinoza para a reconstruo de conceitos filosficos

tradicionais, recebidos de diferentes heranas histrico-culturais, no somente para permitir

o livre acesso a uma filosofia que declara a inadequao dos significados a eles apegados, mas

tambm para melhor exprimir essa noo totalizante de natureza num pensar linguajado que a

presentifique, no num alm ou na abstraco de uma segunda natureza como que

sobrenatural, mas na realidade do que e est no mundo, avalivel na experincia humana do

existir. A rejeio do tradicional que est inerente necessidade de resignificao dessa

tendncia de endoreconstruo no afinal seno uma consequncia inevitvel do facto de o

filsofo penetrar num enquadramento conceptual do mundo e encontr-lo insuficiente na

expresso da realidade da natureza.

Isto, aplicado filosofia do direito em Spinoza como uma filosofia da natureza em

direito, significa que h a uma endoreconstruo das remisses tradicionais do direito para a

natureza no por uma pretenso original de rejeitar quaisquer tratamentos precedentes de um

direito dito natural, enquadrveis numa categoria lata de jusnaturalismo, mas porque o pensar

do direito como manifestao existente do natural prossegue de uma concepo de natureza

diferente daquelas normalmente associadas ao direito. A natureza em Spinoza sobretudo

omni-incluso dinmica do ser e do existir numa produtividade auto-causal, ou seja, potncia

essencial de se existir o direito portanto modalidade conceptual desta potncia que

natureza: ius sive potentia. Ao buscar a realidade desse fenmeno mundano que o direito,

corrente nas bocas do senso comum, ou seja, ao buscar a naturalidade do direito, Spinoza

18 Obviamente, no so de todo adequadas a Spinoza as seguintes afirmaes de S. Goyard-Fabre, Essai de critique phnomnologique du droit, 1972, p. 16: Ds lors, la philosophie du droit de Spinoza [] nest quune partie dans un tout, et, comme telle, il est vident quelle participe de lesprit mtaphysique : elle offre des hypothses, des idaux, bien plus quelle ne sattache la ralit objective du juridique pour la dcrire et llucider. No fundo, relanceia-se aqui a j clssica oposio entre filosofia do direito dos filsofos e a filosofia do direito dos juristas, denunciada desde as discusses entre Hegel e Gustav Hugo (da escola histrica do direito), um sustentando no se poder perguntar aos juristas o que seja o direito por s conseguirem abord-lo na sua abstraco, o outro sustentando que o direito matria de quem tenha competncia jurdica: v., quanto a este tema, J. Barata-Moura, Marx e a Crtica da Escola Histrica do Direito, pp. 237 e 373-4, nota 16. Spinoza, pelo que se infere, aqui precursor das crticas hegelianas.

26

procura o que h nele dessa potncia essencial de se existir, e, no a encontrando nas acepes

tradicionais, v-se forado a reconstruir de dentro o que fora dado.

Se h em Spinoza uma rejeio de todos os tratamentos prvios de uma noo de

direito enquadrvel na amplitude de uma categoria de jusnaturalismo, isso no resultado de

uma desconstruo propositada de todas as menes tradicionais de direito natural, num

objectivo crtico da normatividade associada inadequao de um modelo posto de natureza,

mas mera consequncia inelutvel da construo que empreende do direito enquanto

manifestao da potncia da natureza, que ento mais uma reconstruo. Este pensar do

direito no que ele tem de naturalidade afinal um caminho de descoberta no do significado

mais apropriado a dar ao termo direito, mas da natureza mesma do direito no interior

expressivo dessa potncia da natureza. A sua filosofia do direito um permanente

reconceptualizar do jurdico a partir da ontologia do natural19 um positivar ontolgico do

direito, uma ontologia do direito. Se portanto o direito como realidade sempre associado

natureza porque s a se encontra e concretiza a sua razo de ser, a qual se justifica pela

mostrao do direito na sua verdade a partir dos pressupostos de efectivao dessa natureza-

potncia. O direito no apenas natural (pois o mero reconhecimento da possibilidade da

sua concepo, mesmo que errnea ou inadequada, d-se no interior dessa natureza-potncia,

e portanto, em certo sentido, no pode deixar de ser natural, tal como so naturais as

caducas doutrinas de direito natural), nem um direito da natureza (como se o todo natural

engolisse para si na sua unicidade a mera ideia de direito, caso em que uma ontologia do

direito se reduziria a uma ontologia da infinitude do todo, assim se desligando do interesse

humano). a expresso da natureza das coisas em direito um direito (feito) de natureza.

Pensar o ius naturae enfim reflectir sobre a produtividade da natureza do direito da natureza

das coisas na natureza. Nesse percurso, o direito de natureza rompe com todas as menes

anteriores de direito natural, e, curiosamente, acaba por processar aquele que Spinoza cr ser

o cumprimento de uma tradio de ius naturae da poder dizer-se que endoreconstri o

jusnaturalismo.20

19 No sentido exactamente oposto, v. F. Dias Andrade, Pax spinozana, 2001, pp. 14-171, que coloca Spinoza desconstruindo o jusnaturalismo (p. 27) e a esvaziar qualquer conceito de direito natural (p. 101), reduzindo afinal a sua filosofia do direito a uma antiteoria do direito natural (p. 113) por um trabalho de depurao conceitual e aniquilao terminolgica (p. 239). 20 no decurso desta construo do direito de natureza que surge a positividade da experincia poltica. Por conseguinte, no faz qualquer sentido opor na filosofia de Spinoza jusnaturalismo e positivismo jurdico, consoante ser feito a partir de finais do sculo XVIII: longe de anular num abstracto a positividade jurdica, Spinoza pretende que essa positividade seja expresso de naturalidade e momento de aferio desta na experincia do homem. V. tambm B. Frydman, Divorcing Power and Reason: Spinoza and the Founding of Modern Law, 2003, pp. 624-5.

27

Isto, como evidente, sempre sem perder a poltica como horizonte, o que equivale a

fazer prosseguir a ontologia do direito para a construo poltica quando o homem ressalta

como objecto no seu interior. Mas este dirigir-se para a poltica tem ainda uma consequncia

de no somenos importncia: que, por muito rica e importante que seja no sistema a poltica,

ela no absorve para si o direito ao ponto de o diluir como mera noo de uma cincia

filosfica do poltico. Ao invs, a poltica o mbito de realizao do projecto de consistncia

do direito de natureza focalizado sobre o homem, pelo que, da perspectiva do direito, a

poltica uma modalidade especfica da sua prpria efectivao. Por outras palavras, o direito

de natureza, quando referente naturalidade do homem, no pode deixar de ser um direito de

natureza poltico.

Ora, o homem na natureza um indivduo, e sobre este pilar, o da individualidade,

que Spinoza comea logo por fazer assentar o direito-potncia. Por conseguinte, o direito, e

com ele a individualidade, esto inseridos num plano intermdio dirigindo-se de uma pura

ontologia da natureza circunscrio experiencial da poltica. E quer num campo, o do ser da

natureza, quer no outro, o da construtividade da poltica, jamais h a imposio de um dado

monoltico absolutamente esttico enquanto est em si, mas ambos perspectivam

diferentemente as realizaes da potncia, por processos de produo. Ambos, natureza e

poltica, so pensados no acompanhamento de uma realidade em feitura, enquanto processos

sempre em dinamismo. Nesta medida, tambm o direito conceito em processo e designa a

expresso delinevel da produtividade, a realizao efectiva em contnuo de si com e na

individualidade. Ser indivduo portanto trazer a si as marcas da naturalidade enquanto se

jurdico. Porm, porque o direito processo (enquanto de natureza ou especificamente

poltico), ser indivduo consiste sobretudo num tornar-se jurdico, num fazer em si o direito de

natureza direito e individualidade confundem-se num individuar-se da potncia. Conceitos

abertos, ambos, em contnua constituio. esse o itinerrio conjunto seguido pelas pginas

seguintes.

PARTE I

DIREITO DE NATUREZA

INTRITO PARTE I

Para demonstrar este ponto, comeo, porm, pelo direito natural do indivduo [uniucujusque]1.

Eis as palavras com as quais Spinoza introduz a abordagem perspectiva de

eminncia poltica da liberdade de filosofar. O direito natural feito irromper do texto com

um duplo propsito que logo apropriado e entranhado sua noo mesma, o de ser

demonstrativo e o de ser comeo.

A demonstrao intentada pelo TTP sobretudo a da importncia da liberdade poltica

de filosofar, sendo esse o ponto do qual o direito natural elemento demonstrativo expresso.

Mas no profcuo o confinamento do jurdico a uma mera participao no fundamento que

pe demonstrado o poltico h aqui algo mais. que o direito natural para Spinoza funde a

plenitude de uma elaborao do jurdico com a magnitude de uma concepo sistmica de

natureza enquanto suporta em demonstrao uma liberdade que no apenas poltica mas

condio possibilitante e integrante de um explanar da filosofia. Direito-natureza-poltica-

filosofia so ento etapas em conjunto de uma demonstrao mesma que coloca o

entendimento da existncia do real. O ponto do qual o direito natural elemento

demonstrativo vasto e em ltima anlise assume incidncia sobre o prprio contedo do

pensar e sobre o deslinde da natureza das coisas.

Ademais, qualquer demonstrao o desenrolar de um exerccio do pensar num

caminho e em meios que lhe so prprios, e no possvel se no for processual. Tal processo

no simplesmente o decurso contnuo de um infinito prvio para um infinito ulterior, mas

envolve incipincia, que cumpre as funes de impulso primeiro do processo, seu

fundamento, e apontamento legitimador da direco a perseguir. E o direito natural

apontado precisamente como incipincia: marca o ponto de partida de um itinerrio que

persegue o real almejando em necessidade a poltica, e jamais se perde no decurso desse

empreendimento, mas pelo contrrio sedimenta-se enquanto fundamento permanente de cada

momento desse itinerrio. enfim comeo e razo de ser desse processo demonstrativo, seu

sustento e lugar da sua justificao.

Assim se impe ao leitor de Spinoza a pertinncia de uma anlise que pormenorize o

seu entendimento acerca do direito natural.

1 Ad haec autem demonstrandum a Jure Naturali uniucujusque incipio, TTP, XVI, G III, p. 11 (DPA, p. 131).

32

Acresce que, no obstante o direito natural ocupar um espao eminente no comeo das

discusses de temtica poltica, no TTP e no TP, no por isso que deixa de ser apresentado

na forma expressa de uma definio, tal como as que surgem na tica, factor que

redimensiona uma sua relevncia positiva:

Por direito e instituio da natureza entendo unicamente as regras da natureza de cada indivduo, regras segundo as quais ns concebemos cada um como determinado naturalmente a existir e a agir de uma certa maneira.2

O direito natural entendido como as regras da natureza de cada indivduo, diz o TTP.

Por um lado, o indivduo spinozano identificado como o momento de imputao do direito,

e a natureza da individualidade torna-se componente da natureza do direito. Por outro lado,

esta natureza da individualidade no pensvel na ausncia de um elemento regulador ou

legstico prprio da sua considerao essencial. O que seja o indivduo e o que sejam as regras

da sua natureza so assim os passos primeiros em direco a um recto entendimento do direito

de natureza, pelo que se fazem temas dos dois primeiros captulos desta parte,

respectivamente. O TP insiste porm na definio:

Assim, por direito de natureza entendo as prprias leis ou regras da natureza segundo as quais todas as coisas so feitas, isto , a prpria potncia da natureza, e por isso o direito natural de toda a natureza, e consequentemente de cada indivduo, estende-se at onde se estende a sua potncia.3

O direito de natureza assinala a interveno do ser enquanto este potente. A

linguagem do direito no pode ser seno uma linguagem da presentificao da potncia: da a

incompletude de quaisquer referncias ao direito de natureza spinozano que no contenham a

noo-chave da potncia tal como esta surge na filosofia de Spinoza. esse portanto o tema

do terceiro captulo desta parte.

Nenhuma das temticas que se sucedem o indivduo, as regras, a potncia podem

ser tomadas em isolamento no interior do direito de natureza, como colunas equidistantes

suportando em locais diferentes o mesmo tecto. Elas constituem sim em conjuno uma trade

de materiais de construo erigindo uma mesma coluna que suporta enquanto eixo central

todo o edifcio do direito de natureza, e dessa maneira confluem umas nas outras num

argumento sequencial que pretende empedernir-se a cada passo. Cada captulo deve ento ser

2 Per Jus et Institutum Naturae nihil aliud intelligo, quam regulas naturae uniuscujusque individui, secundum quas unumquodque naturaliter determinatum concipimus ad certo modo existendum et operandum., TTP, XVI, G III, p. 189 (DPA, p. 325). 3 Per Jus itaque Naturae intelligo ipsas Naturae leges seu regulas, secundum quas omnia fiunt, hoc est ipsam Naturae potentiam; atque adeo totius Naturae, et consequenter, uniuscujusque individui, naturale Jus eo usque se extendit, quo ejus potentia, TP, II, 4, G III, p. 277 (DPA, p. 80).

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lido na validade presente do que o precede. E em caso algum o fechamento do terceiro

captulo deve ser tomado como um fim do comeo, uma superao definitiva do direito

natural: o que se intenta no uma autpsia ao direito, mas uma actualizao de si enquanto

comeo ou um derrame luminoso sobre as definies de direito de natureza. Importa que o

leitor assimile esta ideia ao preparar-se para as pginas que se seguem.

CAPTULO I

INDIVDUO

1 A absoro da personalidade

Endoreconstruir o direito de natureza passa por identificar os seus pontos de apoio ou

pilares fundamentais para os fortalecer numa reconstituio de significado da qual resulte

uma maior adequao do todo. E ao escrever imerso num quadro conceptual de herana

hobbesiana que consocia direito e individualidade, no difcil a Spinoza identificar o

indivduo como um desses pilares fundamentais e empreender uma transformao da sua

apreenso.

O indivduo conceito problemtico que precede em muito a sua adopo pelas

filosofias da Modernidade, e nessa longa tradio assume a exclusividade da sua pertena ao

domnio da metafsica, nomeadamente enquanto princpio de individuao ou distino entre

os seres. Em geral, designaria a presena no ser de uma singularidade diferenciada singular

numa indivisibilidade por si e diferenciada numa divisibilidade por outrem (in se indivisum,

ab aliis divisum, nas palavras de Toms de Aquino1) , afervel em contextura platnica

enquanto participao num gnero ou em contextura aristotlica enquanto composto de

matria e forma. A indivisibilidade comea por ser o momento primeiro da unidade, no

sendo portanto por acaso que Ccero tivesse proposto o termo latino individuum como

caracterizao do grego atomon remetido a Demcrito2, pelo que qualquer investigao da

unidade num cosmos de multiplicidade a unidade preconcebendo-se como fonte de um

princpio de harmonia abrange uma discusso da individualidade. Mas uma individualidade

indiferenciada j para Aristteles uma insuficincia para a obteno de um rudimento de

substncia, a se no preenchendo ento o indivduo. Da a importncia do problema da

individuao pela matria ou pela forma, que to caro acaba por ser aos Escolsticos: segundo

Toms de Aquino, que recupera aqui as aluses aristotlicas, cada ser real constitui-se numa

1 Cfr. Toms de Aquino, Quaestiones disputatae. De veritate, 1, q. 1, a. 1, co. Quanto ao significado do conceito de indivduo, cuja definio se procura enquanto determinao operativa da noo de indivduo, v. o interessante trabalho de A. P. Mesquita, O Indivduo. Contributo para uma definio do conceito, 2007, e, quanto sua presena na Modernidade, A. Cardoso, Percursos da Individualidade: do Indivduo ao Sujeito, 2008, pp. 71-91. 2 [] atomos quas appellat, id est corpora individua propter soliditatem [o que chama de tomos, isto , os corpos individuais em razo da solidez], Ccero, De Finibus, I, 5 (17), p. 18.

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composio de forma e matria, e a forma que d em determinao unidade indivisvel ao

ser, mas, ao indiferenciar-se perante outras formas, ela integra a base comum do universal,

pelo que a fonte primordial da individuao tenha de ser o que atribui diferenciao ao ser,

isto , a razo da distinguibilidade legada pelo mbito das limitaes prprio da

divisibilidade e da multiplicidade, que afinal o mbito da matria a individuao uma

produo da matria;3 num sentido diverso, Duns Scott entende a forma como unidade

numrica de um universal quantitativo, havendo j diferenciao nas formas se o problema da

individuao for tomado como um problema matemtico de compatibilizao da unidade com

e na multiplicidade ademais, a forma no simplesmente natureza universal, mas o

princpio da qualidade mesma do individual enquanto singular, enquanto este singular

(haecceitas);4 numa disposio inversa e mais extremada, integrando a controvrsia medieval

dos universais, o nominalismo com expoente em William de Ockham rejeita a existncia no

real do universal, pelo que toda a realidade individual por si5, acarretando a caducidade das

discusses a propsito da fonte formal ou material do princpio interno de individuao, pois

a individuao integra o acto de criao eficiente que d existncia coisa individual.

Este centramento metafsico da unidade individual na natureza existente do real,

evidenciado em especial a partir de William de Ockham, atinge o seu apogeu na transio da

Escolstica para a Modernidade operada na obra de Francisco Surez. Agora, o indivduo a

chave primeira para a averiguao de toda a unidade prpria da metafsica, aqui chamada de

unidade transcendental6, e ele perde referncia tanto a uma pura indivisibilidade7 como a

qualquer fundamento positivo de individuao diferenciada que se encontre fora de si a

individuao enquanto princpio fsico e diferenciao metafsica ocorre por inteiro na prpria

entidade8. Por outras palavras, no plano da essncia que a noo de indivduo encontra

3 Cfr. Toms de Aquino, Summa Theologiae, I q. 14 a. 11 co. Note-se que, como o referir F. Surez a propsito da individuao em Toms de Aquino, esta variante da individuao s aplicvel a substncias materiais, pelo que a abordagem de uma individuao dos anjos, entidades destitudas de materialidade, leva a que a questo da individuao aquinatense possa ser encarada diferentemente conforme a presena de substncias materiais ou imateriais, individuadas estas por princpios outros. 4 Cfr. Duns Scott, Le principe dindividuation [De principio individuationis], pp. 71-250. Embora sem a comparncia da profundidade conceptual da haecceitas, J. B. Haurau (De la philosophie scolastique, 1850, p. 125) aponta as origens da distino formal numrica no islamismo, em Averris, enquanto G. Deleuze (Spinoza et le problme de lexpression, 1968, p. 57) o faz no judasmo, em Hasdai Crescas. 5 Cfr. Scriptum in librum primum Sententiarum ordinatio, I, dist. 2, pars 1, q. 6, in Opera plurima, vol. III, 1962 (sem nmeros de pginas). 6 Cfr. F. Surez, Disputationes Metaphysicae IV, X, 14, vol. 1, p. 560. 7 ratio unitatis [] non consistit in sola divisione, sed in entitate indivisiva [a razo da unidade... no consiste na mera diviso, mas na entidade indivisa], Disputationes Metaphysicae V, I, 3, vol. 1, p. 566. 8 [] omnem substantiam singularem (se ipsa, seu per entitatem suam, esse singularem) neque alio indigere individuationis principio praeter suam entitatem, vel praeter principia intrinseca quibus eius entitas constat. [toda a substncia singular (por si mesma, ou pela sua entidade, singular) e no carece de outro princpio de

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explicitao, numa relao de similitude entre a unidade essencial e a unidade individual, o

indivduo nada acrescentando de novo ou efectivo essncia especfica, designando sim a

unidade expressa e determinada do ser.9 E tudo isto por imposio bastante da razo que

impera sobre a natureza das coisas e se faz cumprir at pela criao divina, pois nem Deus

pode fazer com que

a entidade real, enquanto existe na coisa mesma, no seja singular e individual10.

Curiosamente, a importncia crescente do conceito de indivduo no campo da

metafsica at Modernidade nunca chega a fortalecer-se ao ponto de se tornar instncia de

inteligibilidade de uma ampla considerao filosfica das vrias etapas do real, nunca sendo

causa, razo ou fundamento de qualquer todo unitrio que integre. Assim, o indivduo no

feito personagem dos excursos filosficos sobre a poltica e o direito, no s por estas

temticas serem tradicionalmente especficas do homem e no ser a individuao suficiente

por si para humanizar o ser, mas tambm porque at mesmo o homem inconcebvel fora de

uma integrao prvia num todo poltico do qual parte (da mesma maneira que um corpo,

que entendido como composto por partes, permanece ainda indivduo enquanto

indivisibilidade diferenciada, por nenhuma das suas partes validar-se fora desse composto).

Isto evidente em Aristteles: a plis precede o homem porque o todo precede a parte, e tal

como sem a precedncia de um corpo no h p nem mo excepto por homonmia, tambm

sem a precedncia da plis no h suficincia do homem excepto por analogia com um

bicho ou com um deus.11 E enquanto na passagem para a Escolstica a discusso da

individualidade se vai afastando do princpio de individuao aristotlico, tal no sucede com

esta concepo do homem como ulterior ao todo poltico que integra, a qual vai perdurando

mais ou menos intensamente at aos contratualismos modernos. Nem mesmo Francisco

Surez, que centra a unidade metafsica do princpio de individuao no ente, chega a dar

relevo constitutivo ou demonstrativo ao individual perante o poder de um todo poltico, tal

individuao para l da sua entidade, ou para l dos princpios intrnsecos nos quais consta a sua entidade.], Disputationes Metaphysicae V, VI, 1, vol. 1, pp. 644-5. 9 V., a propsito da individuao em F. Surez, e a ttulo de exemplo, J.-F. Courtine, Suarez et le systme de la mtaphysique, 1990, pp. 496-519, e M. A. Gmez, Sobre el concepto de individuo en F. Surez, 1999, pp. 45-64. 10 [] realis entitas, prout in re ipsa existit, singularis et individua non sit [], Disputationes Metaphysicae V, I, 5, vol. 1, p. 567. 11 Cfr. Aristteles, Poltica, I, 1253a9-29, pp. 3-4.

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poder nascendo e sendo prprio da comunidade natural dos homens e em nada se

relacionando com o princpio de individuao12.

Na verdade, excursar sobre a poltica e o direito, at Modernidade, sobretudo

debruar-se sobre a natureza de um homem (anthropos) j parte de um todo que lhe pr-

existe, e tal ncleo parcial de incidncia nunca dito indivduo na sua unidade, mas cada

um (hekastos), inconcebvel enquanto cada um separado (hekastos christheis)11. Mesmo

no mundo da latinidade da qual provm o termo individuum, no afervel a sua presena em

tais excursos: pelo contrrio, a onde o homem interposto no mago da trama relacionando a

realidade da poltica e do direito, o miolo da unidade (parcial ou inteira) chamado de pessoa

(persona). Desta maneira, paralela progresso da centralidade que o conceito de indivduo

vai tomando no mbito da metafsica, flui a progresso da centralidade que o conceito de

pessoa vai tomando no mbito jurdico-poltico.

Pessoa afinal para os latinos a condio humana daquele ao qual pode ser imputada a

insero numa relao qualificada pelo direito privado romano, em especial de dominium,

imperium, ou patrimonium, pelo que em ltima anlise todo o humano no reduzido ao

estatuto de mera coisa pode ser dito pessoa.13 A genealogia terminolgica remete, como por

demais conhecido desde Hobbes14, para a imagem da mscara dramatrgica que presentifica

em cena actual um determinado humano, o qual esteja j a presente fisicamente (caso em que

se re-apresenta a si, em cena) ou ainda no (caso em que apresentado pelo fsico de outrem,

em cena). E esta no fundo tambm a densidade jurdica atribuda ao conceito de

personalidade, que presentifica numa relao jurdica um determinado humano,

12 Para F. Surez, o poder provm de Deus, mas apenas como origem abstracta, a sua origem concreta residindo na comunidade (v. De Legibus ac Deo Legislatore, III, II, 4-6, vol. 5, pp. 24-7). O homem tem poder, mas no enquanto considerado em si, apenas numa coleco de homens: [] potestatem hanc ex vi solius iuris naturae esse in hominum communitate. Probatur, quia est in hominibus, ut probatum est, et non in singulis vel in aliquo determinate, ut etiam est ostensum. Ergo in collectione ; est enim sufficiens partitio. [este poder partindo da fora do direito de natureza est apenas na comunidade dos homens. Prova-se, porque est nos homens (como se provou) e no no singular ou em algum determinado (como tambm se exps). Est sim na coleco, que de facto diviso suficiente.], De Legibus ac Deo Legislatore, III, II, 4, vol. 5, p. 24. 13 Diz-se aqui mera coisa para salvaguarda do estatuto dos escravos no direito privado romano, que so coisa (res) jurdica e, em simultneo, no dizer de Gaio (v. Institutiones, I, 9, p. 13), pessoas humanas: so enfim no mera coisa, mas coisa humana ou coisa-pessoa. Esta reificao jurdica da pessoa do escravo levou os historiadores do direito romano a conclurem no haver personalidade jurdica tomada como momento de imputao de situaes jurdicas activas e passivas antes da poca justinianeia. V., a ttulo de exemplo, Paul Jrs, Derecho Privado Romano [1927], pp. 88-104; B. Eliachevitch, La personnalit juridique en droit priv romain, 1942, pp. 350-373; M. Kaser, Rmisches Privatrecht [1992], pp. 99-100; A. Santos Justo, Direito Privado Romano, vol. I, 2006, pp. 105-7. Mas se h j na poca pr-justinianeia um direito das pessoas (ius personarum), como no considerar que haja personalidade jurdica? Certamente no essa que imputa direitos e deveres ao alcance de uma capacidade, mas uma outra mais rudimentar que qualifica todo e qualquer humano integrado numa relao jurdica, quer esteja numa posio de controlo ou exigibilidade, quer numa de coisa. 14 Cfr. Leviathan, XVI, EW III, pp. 147-8.

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independentemente da sua presena ou ausncia fsicas no momento da qualificao operada

pelo direito.

em derivao deste sentido que a prpria teologia crist se apropria deste conceito,

por partir de uma associao em analogia entre relaes de poder de um Deus criador

transcendendo e imperando sobre o seu mundo criado e as relaes de poder entre humanos

segundo qualificadas pelo direito privado romano. Deus, sendo intelecto e vontade, gera o

mundo por um amor semelhante quele pelo qual um pai gera um filho, da a Sua paternidade

sobre o mundo, a qual decorre nos cuidados governativos da educao; e tal como um filho

integra no direito romano o dominium do seu pai (paterfamilias), tambm o mundo integra o

dominium de Deus e constitui o Seu patrimonium. Quando ento Deus tido por pessoa trina,

a Sua paternidade insuflada de filiao dentro de si mesma, Deus faz-se experincia do Seu

prprio governo paternal, e o amor que se assemelha ao amor de um pai para um filho agora

tambm semelhante ao amor de um filho para um pai: Deus, ao imperar no seu dominium,

pessoa una na multiplicidade das Suas prprias experincias, pelo que a personalidade se

torna compatvel com a multiplicao. E este o fundamento primrio dos desenvolvimentos

ulteriores da personalidade jurdico-poltica.

Por um lado, quando a partir da poca imperial romana o governo pblico pertence a

um homem tal como o governo privado pertence a um paterfamilias, toda a organizao

poltica monrquica ou imperial dita pelos medievais cristos espelhar a relao mesma de

Deus com a Sua criao, pelo que Deus dito rei do mundo em simultneo a cada governante

legitimar-se enquanto imago Dei. O prprio governante faz-se pessoa una na multiplicidade

das suas experincias, enquanto pessoa humana e pessoa-rei. Mas a vivncia da

compatibilizao da multiplicidade com a personalidade jurdico-poltica vai ainda mais

longe. que o ser pessoa-rei do governante passa a exigir que se encontre a legitimidade e o

fundamento do seu poder em exerccio (do seu imperium) na personalidade da qual imagem

espelhante, a divina; mas passa tambm a condensar em corpo uno uma conglomerao de

pessoas jurdicas constituindo como que o patrimonium governado dessa pessoa-rei

legitimada pela pessoa-Deus o rei tem assim dois corpos, um seu fsico humano enquanto

pessoa humana, e um seu mstico poltico enquanto imperium pblico, enquanto Estado em

persona mystica.15

15 esta no fundo a tese j clssica de E. Kantorowicz, A Kings Two Bodies. A Study in Medieval Political Theology, 1957, pp. 42-313. O corpus mysticum chega alis a ser expandido enquanto momento de personalidade poltica para l da presena do rei, quando F. Surez chama multitudo hominum unida em communi consensu como constituindo unum corpus mysticum: v. De Legibus ac Deo Legislatore, III, II, 4, vol. 5, p. 25.

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A pessoa faz-se momento de imputao do direito e eixo central da sua linguagem,

quer numa naturalidade justa do cosmos imputada pessoa divina, quer numa positividade

legalista do poder poltico imputada pessoa mstica, quer, a partir de certa altura na Baixa

Idade Mdia16, numa caracterstica moral de feitura do justo (grmen dos chamados direitos

subjectivos) imputada pessoa humana.

Centrar porm na personalidade qualquer tratamento cristo medieval do direito no

vem a resultar na atribuio de eminncia personalidade divina ou humana no fundamento

da poltica por um lado, porque com a neo-escolstica as discusses dos fundamentos da

poltica vo-se distanciando do suporte incondicional dos conceitos teolgicos, e, por outro

lado, porque mesmo na perda da expressa e directa legitimao de um poder terreno pela

personalidade divina, a legitimao constitutiva da personalidade poltica nunca chega a

derivar da personalidade humana. o que sucede tanto na vertente protestante de Althusius

quanto na catlica de F. Surez: o primeiro encontra em Deus, o detentor do poder supremo,

uma multiplicidade unida em pessoa, pelo que, todos os homens sendo iguais perante Deus,

uma delegao do Seu poder s pode recair numa pessoa em supremacia natural sobre outras

e em reunio de multiplicidade, isto , na universalidade de uma consocio de consociaes

que ainda pessoa, no tanto mstica mas artificial;17 e F. Surez, por seu turno, no

reconhece na socialidade natural dos homens qualquer necessidade intrnseca de uma relao

imediata de submisso e domnio, pelo que quando a razo (e no directamente Deus) impe

o nascimento consentido de um poder poltico comum aos homens na sua socialidade, o

fundamento desse poder deriva no da mera natureza humana por si, mas de toda a

comunidade social dos homens, que ento personalidade unificando-se na sua universitas.12

Mas tambm se no deve considerar o desvio que a poltica vai assumindo perante a

teologia, numa desvalorizao da personalidade divina enquanto fundamento directo da

personalidade poltica, como acompanhado em proporo por um desvio da poltica perante

um pensar sobre a natureza humana, numa desvalorizao da personalidade humana diante da

personalidade poltica. O itinerrio seguido exactamente o oposto. Os humanismos

renascentistas rompendo ainda na aurora da Modernidade no permitem uma desconsiderao

do homem na contextura da personalidade poltica.

E quando Grotius desvenda o direito como sendo tambm uma faculdade renuncivel

da pessoa humana, a mera ponderao dessa renunciabilidade abre por si uma via percorrvel

por quaisquer doutrinas que pretendam fazer uso do instituto jurdico-privado do contrato para

16 V. infra, cap. III, 1, pp. 177-183. 17 Cfr. Althusius, Politica methodice digesta, VI, pp. 55-6.

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conceber a formao de uma sociedade poltica. verdade que para Grotius os homens

movem-se em direco ao social por aco de um motor intrnseco que lhes natural, o

apetite de sociedade (appetitus societatis), inescapvel e no anulvel, que mitiga a

arbitrariedade opcional daquele que pode vir a constituir sociedade, fazendo da cedncia do

direito-faculdade uma necessidade da natureza humana e no uma contingncia resultando

das deliberaes do homem embora Grotius mencione por vezes o contrato ou o pacto como

momentos instituidores do poltico18, o seu contratualismo apenas o desenho da estratgia

necessria do apetite humano, um desenrolar da naturalidade da cooperao inter-humana.

A sociedade faz-se da obra comum e da conjura entre os homens19 para que cada um

se mantenha em si e no seu, e embora o seu motor seja um apetite natural do social, no por

isso que a sociedade, e o poder civil que a institudo, deixa de nascer da transmisso do

direito de cada pessoa, o poder sendo prprio da pessoa e no, como em Althusius ou Surez,

nas famlias ou na comunidade. Grotius no teoriza explicitamente um estado de natureza,

mas no deixa de relevar que os homens no esto j em sociedade poltica por criao de

Deus, o todo precedendo as partes, mas, pela experincia da perniciosidade violenta de um

isolamento das famlias, so levados sociedade por um movimento espontneo da sua

natureza:

Mas de notar que primeiro os homens unem-se em sociedade civil no por um preceito de Deus, mas espontaneamente conduzidos pela experincia da fragilidade das famlias perante a violncia quando isoladas, e a tem lugar o poder civil20.

As famlias precedem a sociedade civil e o poder civil, e no h poder intrnseco

unidade familiar que constitua direito seno o que lhe trazido pelo homem. O comeo da

poltica no est em Deus, no povo ou nas famlias, mas sim nos homens com experincia em

famlia, naqueles que tm o poder como qualidade moral, como direito prprio de

personalidade.21 O direito no apenas relao, mas tambm atributo de capacidade de facto

18 V. por exemplo De Jure Belli ac Pacis, I, cap. III, 16, W 1, p. 143, e cap. IV, 14, W 1, p. 192, onde surgem referncias a contractus e a pactus, respectivamente. 19 Nam societas eo tendit ut suum cuique salvum sit communi ope ac conspiratione [De facto a sociedade tende a isto, que cada um esteja no seu bem-estar, por obra comum e por conjura], De Jure Belli ac Pacis, I, cap. II, 1, W 1, p. 33. 20 Sed notandum est, primo homines non Dei praecepto, sed sponte adductos experimento infirmitatis familiarum segregum adversus violentiam, in societatem civilem coiisse, unde ortum habet potestas civilis []., De Jure Belli ac Pacis, I, cap. IV, 7, W 1, p. 180. 21 No sentido oposto, v. G. Gurvitch, Lide du droit social, 1932, p. 176 (La position de Grotius est dcidment celle dun anti-individualisme. Il part non dlments composants, mais du tout; non de lindividu, mais du cosmos social, de la natura societatis), e D. P. Aurlio, Imaginao e Poder. Estudo sobre a Filosofia Poltica de Espinosa, 2000, p. 140.

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por uma pessoa, podendo ser transferido, a estando a fonte e a origem de uma Civitas, de um

imperium: a pessoa humana faz-se comeo da emergncia do poltico.

Isto por si evidencia j que a partir de uma certa ocasio o fluxo de ambas as correntes

paralelas de centramento conceptual, uma no tratamento em exclusividade da individuao no

mbito da metafsica, a outra no tratamento em exclusividade da personalidade nos mbitos

da teologia e/ou do jurdico-poltico, se desvia para uma direco mtua e o ponto de encontro

de tal maneira intenso que ambas se enleiam uma na outra em confuso: o indivduo valida-

se ento enquanto conceito metafsico circulando livremente por disciplinas como a fsica e a

epistemologia, as quais assentam nessa metafsica, e ocupa no horizonte do direito e da

poltica uma posio de eminncia (em significado) anloga quela ocupada pela pessoa; em

contraste, a pessoa excede tambm as margens da teologia e do jurdico-poltico para invadir

referenciais epistemolgicos e psicolgicos, em especial na obra de Locke.

Voltando individuao, com Descartes que esta comea a atingir todo um novo

estatuto na Modernidade. Para Descartes, a realidade incorruptvel de todo o substancial

criado por Deus pode ser corporal (com a extenso por atributo principal) ou anmica (com o

pensamento por atributo principal). Ora, no que respeita busca de unidade diferenciada e de

inteireza, a sua concepo no interior de cada uma destas substncias assaz contrastante,

pois enquanto a concepo do corpo exige sempre a sua divisibilidade ininterrupta e a

consequente impossibilidade de uma fsica individuao atomizada22, a concepo da alma

exige sempre a sua indivisibilidade e integrao una:

h uma grande diferena entre o esprito e o corpo, em que o corpo, de sua natureza, sempre divisvel, e em que o esprito inteiramente indivisvel. Pois com efeito, logo que considero o meu esprito, isto , eu mesmo enquanto sou apenas uma coisa que pensa, no posso a distinguir quaisquer partes, mas concebo-me como uma coisa s e in