INSTRUÇÕES DE PAULA SOBRE COMO TOCAR CANÇÃO …saccom.org.ar/v2016/sites/default/files/Martins_...

5
Martins, Velho e Maffioletti INSTRUÇÕES DE PAULA SOBRE COMO TOCAR A CANÇÃO “POLEGARES” ÁUDREA MARTINS, SIMONE VELHO E LEDA MAFFIOLETTI UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO SUL Apresentação O presente artigo foi elaborado a partir das inquietações provocadas pela leitura do capítulo oito do livro “The Mind Behind the Musical Ear” de Jeanne Bamberger (1995), feita para a disciplina “Aprendizagem musical e os novos paradigmas contemporâneos” do PPGEDU/UFRGS (2008/II), ministrada pela Drª. Leda Maffioletti. Neste capítulo a autora tem como objetivo compreender como uma criança que não possui domínio sobre a linguagem musical registraria uma canção conhecida após ter construído esta melodia em um instrumento. Para melhor compreensão, faremos um breve resumo do capítulo citado anteriormente e que é a gênese da nossa investigação. Bamberger, em seu livro, apresenta-nos as tentativas do menino Jeff para registrar a canção “Hot Cross Buns”, que ele havia organizado nos sinos de Montessori. Porém, a construção dessa anotação levou a autora a diversas análises e considerações sobre a escrita musical, fazendo com que ela concluísse que os símbolos - linhas - utilizados pelo garoto representavam os próprios sinos e os números, que Jeff acrescentou abaixo das linhas na sua instrução, possuíam dois significados distintos: primeiro, representar a sua localização na canção e, em um segundo momento, representar o ritmo, isto é, o número de ações a serem exercidas sobre cada sineta na parte B (HA) da melodia. A escrita final de Jeff ficou conforme apresentada na figura 1. Figura 1. Escrita de Jeff A Pesquisa A leitura, citada acima, associada as nossas inquietações sobre o aprendizado musical, foi o que nos mobilizou a querer entender, de forma prática, quais são os esquemas utilizados durante o processo de construção da representação da escrita musical. Para isto, foi realizada uma observação com a menina Paula (11;02), aluna da rede pública de ensino do RS/Brasil que possuía contato apenas com instrumentos de percussão e que, nos últimos quinze dias, havia iniciado o estudo da flauta, porém sem leitura de notação. Solicitamos à Paula que construísse a canção Polegares com o software “Montessori Bells on Line” e, em seguida, que criasse instruções para que outras pessoas pudessem tocar esta música. A escolha da canção para a realização desta atividade ocorreu em função do conhecimento prévio de sua melodia e letra pela aluna. Polegares é uma versão em português da canção francesa Frère Jacques. O trecho da canção escolhido para a construção nos sinos Montessori pode ser conferido na figura 2. Figura 2. Trecho da canção Polegares Martins, Velho e Maffioletti Equivalente à versão original: Frère Jacques, Frère Jacques Dormez-vous? Dormez-vous?

Transcript of INSTRUÇÕES DE PAULA SOBRE COMO TOCAR CANÇÃO …saccom.org.ar/v2016/sites/default/files/Martins_...

Martins, Velho e Maffioletti

INSTRUÇÕES DE PAULA SOBRE COMO TOCAR A CANÇÃO “POLEGARES”

ÁUDREA MARTINS, SIMONE VELHO E LEDA MAFFIOLETTI

UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO SUL

Apresentação

O presente artigo foi elaborado a partir das inquietações provocadas pela leitura do capítulo oito do livro “The Mind Behind the Musical Ear” de Jeanne Bamberger (1995), feita para a disciplina “Aprendizagem musical e os novos paradigmas contemporâneos” do PPGEDU/UFRGS (2008/II), ministrada pela Drª. Leda Maffioletti. Neste capítulo a autora tem como objetivo compreender como uma criança que não possui domínio sobre a linguagem musical registraria uma canção conhecida após ter construído esta melodia em um instrumento. Para melhor compreensão, faremos um breve resumo do capítulo citado anteriormente e que é a gênese da nossa investigação.

Bamberger, em seu livro, apresenta-nos as tentativas do menino Jeff para registrar a canção “Hot Cross Buns”, que ele havia organizado nos sinos de Montessori. Porém, a construção dessa anotação levou a autora a diversas análises e considerações sobre a escrita musical, fazendo com que ela concluísse que os símbolos - linhas - utilizados pelo garoto representavam os próprios sinos e os números, que Jeff acrescentou abaixo das linhas na sua instrução, possuíam dois significados distintos: primeiro, representar a sua localização na canção e, em um segundo momento, representar o ritmo, isto é, o número de ações a serem exercidas sobre cada sineta na parte B (HA) da melodia. A escrita final de Jeff ficou conforme apresentada na figura 1.

Figura 1. Escrita de Jeff

A Pesquisa

A leitura, citada acima, associada as nossas inquietações sobre o aprendizado musical, foi o

que nos mobilizou a querer entender, de forma prática, quais são os esquemas utilizados durante o processo de construção da representação da escrita musical. Para isto, foi realizada uma observação com a menina Paula (11;02), aluna da rede pública de ensino do RS/Brasil que possuía contato apenas com instrumentos de percussão e que, nos últimos quinze dias, havia iniciado o estudo da flauta, porém sem leitura de notação. Solicitamos à Paula que construísse a canção Polegares com o software “Montessori Bells on Line” e, em seguida, que criasse instruções para que outras pessoas pudessem tocar esta música. A escolha da canção para a realização desta atividade ocorreu em função do conhecimento prévio de sua melodia e letra pela aluna. Polegares é uma versão em português da canção francesa Frère Jacques. O trecho da canção escolhido para a construção nos sinos Montessori pode ser conferido na figura 2.

Figura 2. Trecho da canção Polegares

Martins, Velho e Maffioletti

Equivalente à versão original: Frère Jacques, Frère Jacques Dormez-vous? Dormez-vous?

Maria Ines
Cuadro de texto
Actas de la 8va Reunión Anual de la Sociedad Argentina para las Ciencias Cognitivas de la Música © 2009 - SACCoM - ISBN 978-987-1518-37-1

Instruções de Paula sobre como tocar a canção “Polegares”

Análise

As ações de Paula foram analisadas a partir de uma abordagem comparativa com o capítulo “Making Instructions for Playing „Hot Cross Buns‟ do livro “The Mind Behind the Musical Ear” de Bamberger (1995). Na introdução desse livro, a autora relata sucintamente o design dos seus experimentos, afirmando que durante as observações, ela analisa as decisões tomadas pelo sujeito, as estratégias empregadas e como eles participam e falam do problema a resolver, bem como o produto final da atividade.

Esta pesquisa, desenvolvida por Bamberger, se aproxima muito dos estudos de Barbel Inhelder e Guy Cellérie (1996) sobre as microgêneses cognitivas. Nesses estudos, é possível acompanhar o processo cognitivo dos sujeitos durante a realização de uma atividade prática, mostrando que durante a resolução de problemas eles elaboram suas ações para representar para si mesmo o que precisa ser realizado, bem como as etapas do seu procedimento. Desta forma, o papel desempenhado pela representação mental constitui o próprio funcionamento psicológico do sujeito, onde a função semiótica aparece como uma “função de conjunto”, que propicia a reconstrução de conceitos a partir da ação sensório-motora. Para se compreender o que o sujeito enfrenta durante a realização de problemas é fundamental o estudo das noções que permitem aos sujeitos entender o que realizam e sua capacidade de refletir sobre os meios e fins de suas ações (p. 33). Estas representações podem funcionar como um sistema de comportamentos que implicam tanto o “saber” como também o “saber fazer”, tornando-se verdadeiros instrumentos cognitivos ou “objetos que ajudam a pensar”(p. 35). Assim, o principal interesse da pesquisa microgenética está no sujeito psicológico, que envolve não só a dimensão cognoscente, mas também suas intenções e seus valores, pretendendo visualizar o sujeito no contexto das decisões de avaliações que ele mesmo produz, ou no que constitui o seu processo de individuação do conhecimento (p.9). Portanto, o estudo das microgêneses cognitivas analisa de maneira pormenorizada as condutas cognitivas individualizadas, observando o processo interativo, assim como o desenrolar das ações.

Devido à semelhança dos procedimentos de Bamberger com os procedimentos das pesquisas de natureza microgenética, utilizaremos, para apoiar teoricamente o experimento realizado, os princípios do estudo das microgêneses cognitivas como procedimento de coleta e análise do material produzido por Paula.

A primeira atividade que a aluna realizou foi construir a música Polegares com os sinos de Montessori virtuais. Paula organizou a sua música de maneira linear na tela do computador mantendo um espaçamento idêntico entre todos os sinos, não os separando por grupos conforme as partes da canção e, inclusive, demonstrando bastante cuidado para que todos tivessem a mesma distância um do outro. Bamberger (1995), ao analisar Jeff na construção de “Hot Cross Buns”, explica que ele utiliza o espaço da mesa e a organização dos sinos como um tipo especial de esquema de notação (p.154). Paula não pareceu organizá-los dessa maneira. Em um primeiro momento, a disposição dos sinos na tela assemelhar-se-ia mais a um instrumento musical do que a uma representação da notação.

Quando foi solicitado para Paula colocar no papel as instruções para que mais alguém pudesse tocar Polegares nos sinos do jeito que ela organizou, seu primeiro impulso foi escrever seus passos por extenso, conforme apresentamos na figura 3.

Figura 3. Primeira escrita de Paula

Na maneira de sua escrita, Paula nos remete ao seu processo de organização dos sinos na tela, não destacando, nem separando nenhuma informação como sendo mais importante. São apenas passos de um processo linear. No entanto, pelo fato de recorrer à escrita como suporte de sua instrução, ela acaba por demonstrar simbolicamente uma disposição bastante diferente da tela. Paula refletiu sobre sua construção e a transferiu para um meio de comunicação diferente, a palavra.

Instruções de Paula sobre como tocar a canção “Polegares”

Instruções de Paula sobre como tocar a canção “Polegares”

Segundo Frey-Streiff (1990), a dificuldade de tornar explícita a apreensão de uma melodia ao anotar uma canção pela primeira vez, faz com que a criança se volte para um conteúdo mais acessível a ela. Para Paula, a busca pela acessibilidade se deu pela descrição da sua atividade em palavras.

Percebemos, também, que a escrita de Paula referia-se ao seu próprio trabalho, descrevendo os passos que ela mesma fez para encontrar os sinos certos. Ela não estava de fato instruindo alguém que já encontraria os sinos na disposição que ela deixou. Então, foi esclarecido esse aspecto e solicitado que ela fizesse novas instruções, sem apagar a sua primeira produção. Assim, Paula, que conhecia o nome das notas, mas não sua notação musical, utilizou as poucas notas musicais que sabia (sol lá si do ré), pois tinha aprendido na última semana em sua primeira aula de flauta, e as organizou corretamente, transpondo a melodia para Sol Maior, conforme figura 4.

Figura 4. Segunda escrita de Paula

Mesmo sendo as únicas notas que Paula conhece, ela as utiliza como nomes, pois estão

atrelados aos sinos da canção que acabou de montar. Isto justifica a sua transposição exata para a nova tonalidade, pois cada nome de nota “viaja” com o sino a que corresponde, assim como Jeff fez com os números na parte HO de “Hot Cross Buns”.

Nesta segunda instrução, Paula organiza sua música como uma poesia e mostra, pela primeira vez, o entendimento das diferentes partes que constituem a melodia. A divisão rítmica é demonstrada somente através das linhas, não dando enfoque às pausas nos finais da segunda parte da canção - “onde estão, aqui estão”.

Na tentativa de não limitar o registro apenas a palavras, foi sugerido à Paula que deixasse instruções para algum aluno que ainda não soubesse ler e que não conhecesse as notas musicais. Desta vez, ela investe em uma terceira instrução começando a desenhar os sinos. Porém, no início do desenho Paula diz: “é muito difícil desenhar os sinos e são muitos”. Então, foi sugerido que ela criasse um símbolo para os sinos, que fosse mais fácil de desenhar. Paula decidiu: “vou fazer bolinhas, então”. Esta sua representação pode ser conferida na figura 5.

Figura 5. Terceira escrita de Paula

Assim como Jeff, Paula mostra entender a convenção da representação do tempo “indo

para frente” ao escrever seus “sinos” da esquerda para direita no papel, mesmo quando o ato de tocar a faz realizar movimentos no sentido oposto (Bamberger, 1995). Além disso, esta nova tentativa de Paula também nos remete às instruções de Jeff quanto ao uso de desenhos mais simbólicos, não fazendo uma correspondência direta entre os objetos na tela do computador e os representados no papel. Isto se torna significativo, pois Paula não conhece a notação musical melódica formal e, mesmo assim, preocupa-se mais uma vez em demonstrar nas suas instruções a diferença de altura de cada nota, como podemos observar na cuidadosa disposição dos símbolos que representam os sinos (bolinhas), onde os mesmos aparecem alinhados horizontalmente no papel.

Diferente das instruções de Jeff, Paula parece sempre deixar muito clara qual sua intenção no desenho, não deixando muita liberdade para interpretações diferentes. Quando solicitada a tocar a

Instruções de Paula sobre como tocar a canção “Polegares”

música sobre o desenho, ela confirma a suposição anterior, apontando cada símbolo de acordo com as notas dispostas na figura 6.

Figura 6. Linhas imaginárias desenhadas pelas autoras

Analisando a terceira notação de Paula, percebe-se uma mudança de dimensão, assim

como ocorreu nas instruções de Jeff. Ao desenhar os sinos (bolinhas), Paula acaba representando as alturas desta canção dentro de uma grafia convencional da música, utilizando os símbolos de forma coerente, mostrando-nos uma capacidade de “eleger uma propriedade fixa do som para representá-lo” (Beineke, Maffioletti, p.38) que, neste caso, é a altura. Também foi percebido que há uma preocupação no distanciamento dos símbolos propostos por Paula. Porém, estes não coincidem com a divisão rítmica da canção, podendo ser apenas uma lacuna para a nota que não é tocada na escala e que não pertence a esta melodia. Ao observar-mos isto, torna-se possível afirmar que Paula preocupa-se, sobretudo, em demonstrar alturas, em detrimento de ritmo e partes da estrutura da música.

Considerações Finais

Conhecendo agora a maneira como Paula constrói sua notação, retornamos ao questionamento sobre sua organização dos sinos na tela. Paula poderia sim, da mesma forma que Jeff, estar dispondo-os como uma notação musical, considerando a semelhança da sua construção na tela e no papel. Então, por que Paula não deslocou os sinos na tela de acordo com as alturas das notas? Ela agiu diferente de sua notação, alinhando todos horizontalmente. Neste caso, atrevemo-nos a inferir que Paula considerou os sons dos sinos na tela como uma informação completa sobre suas alturas. Um deslocamento, neste caso, seria redundante. Já no papel, ele se fez necessário. Porém, pensando desta forma, poderíamos dizer que representar o ritmo nesta sua última tentativa de escrita, talvez, fosse irrelevante também, pois este poderia ser dado pelo texto da canção, assim como ocorria no Canto Gregoriano (Souza, 1998).

Cientes da história de Paula e de sua capacidade de perceber e de escrever com precisão variações de ritmo em uma melodia simples, torna-se impossível não refletir sobre o motivo de sua abstenção em demonstrar o ritmo de Polegares no papel. “[...] Estas dimensões [ritmo e melodia] são tão interligadas uma com a outra que separá-las é um exercício de abstração” (Bamberger, p.165). Assim Paula, como o garoto Jeff, também poderia ter desassociado a melodia do ritmo. Acreditamos que uma nova intervenção, onde fosse solicitado que ela tocasse e escrevesse apenas o ritmo com palmas poderia esclarecer alguns pontos nesse sentido. Pensamos, também, que isto pode ser apenas um reflexo da nova paixão que Paula acaba de descobrir: a flauta. Depois de quatro meses tocando instrumentos de percussão sem altura definida ou com no máximo duas notas, no caso do agogô, poderíamos afirmar que sua atenção musical no momento está totalmente voltada às notas musicais que seu novo instrumento é capaz de fazer. Depois de acomodado esse novo conhecimento (alturas), provavelmente ele poderá se sobrepor ao mais antigo (ritmo), evoluindo para uma “múltipla representação coordenada” (idem, p. 172).

Em última análise, o que se observa nas três instruções produzidas por Paula seria o que Piaget denomina de processo dialético, onde cada tentativa de escrita gera superações em relação ao registro anterior e a seu aprofundamento nos níveis de abstração (Sanchis, Mahfoud, 2007). Assim, concluímos que as construções das instruções de Paula assemelham-se às de Jeff no momento em que ambos invocam um universo mental coerente onde os elementos e relações que se tornam relevantes para eles são designados de sentido, atribuindo assim, significado para ações particulares, eventos, objetos, elementos e suas relações (Bamberger, 1995).

Instruções de Paula sobre como tocar a canção “Polegares”

REFERÊNCIAS

Bamberger, J. (1995). The Mind Behind the Musical Ear. How children develop musical intelligence.Cambridge: Harvard University Press, 2.ed. Beineke, V. Maffioletti, L. (2005). Olha como eu escrevi a música: um pequeno ensaio sobre as diversas escritas musicais da criança. Coleção Cotidiano Escolar: O Ensino de Artes e Educação Física na Infância. Natal, v.1 n.1, pp.36-42. Frey - Streiff, M. (1990). A notação de melodias extraídas de canções populares. En H. Sinclair, A Produção de Notações na Criança. São Paulo: Cortês, pp. 125-168. Inhelder, B.; Cellérier, G. (1996). O Desenrolar das Descobertas da Criança: um estudo sobre as microgêneses cognitivas. Tradução Eunice Gruman. Porto Alegre: ARTEMED. Sanchis, I. Mahfould, M. (2007). Interação e construção: o sujeito e o conhecimento no construtivismo de Piaget. Ciências & Cognição; Ano 04, Vol 12. En http:www.cienciasecognicao.org. (Página consultada el 28-04/2008). Souza, J. (1998). Sobre as múltiplas formas de ler e escrever música. En I. Neves, J. Souza et al. Ler e Escrever Compromisso de Todas as Áreas. Porto Alegre: Editora da UFRGS, pp. 205-214.