Inconstitucionalidade Do Sistema de Cotas Raciais

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Monografia apresentada para a Faculdade de Direito da UESC, em 2007. Sustenta a inconstitucionalidade de qualquer sistema de cotas para o acesso ao ensino superior.

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UNIVERSIDADE ESTADUAL DE SANTA CRUZ

EDGARD DA COSTA FREITAS NETO

A INCONSTITUCIONALIDADE DO SISTEMA DE COTAS PARA O ACESSO AO ENSINO SUPERIOR

ILHUS BAHIA 2007 2007 Edgard da Costa Freitas Neto Divulgao permitida, desde que devidamente citada a fonte Contato: [email protected]

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EDGARD DA COSTA FREITAS NETO

A INCONSTITUCIONALIDADE DO SISTEMA DE COTAS PARA O ACESSO AO ENSINO SUPERIOR

Monografia apresentada Universidade Estadual de Santa Cruz, para obteno do ttulo de Bacharel em Direito. rea de concentrao: Direito Constitucional. Orientador: Prof. Nascimento Ms. Carlos Valder do

ILHUS BAHIA 2007 2007 Edgard da Costa Freitas Neto Divulgao permitida, desde que devidamente citada a fonte Contato: [email protected]

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Freitas Neto, Edgard da Costa A inconstitucionalidade do sistema de cotas para o acesso ao ensino superior. Ilhus (BA): UESC, 2007, 64 p. Monografia (Graduao) Universidade Estadual de Santa Cruz Bibliografia. 1. Constituio Federal 2. Direitos e garantias fundamentais 3. Cotas Raciais 4. Aes Afirmativas 5. Princpio da Igualdade. 6. Acesso educao

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EDGARD DA COSTA FREITAS NETO

A INCONSTITUCIONALIDADE DO SISTEMA DE COTAS PARA O ACESSO AO ENSINO SUPERIOR

Ilhus BA, 20/11/2007.

______________________________________________ Carlos Valder do Nascimento - Mestre UESC/BA (Orientador)

_____________________________________________ Luiz Antnio dos Santos Bezerra - Doutor UESC/BA

_____________________________________________ Marcos Alberto de Oliveira - Doutor UESC/BA

CONCEITO FINAL_____________

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DEDICATRIA

memria de meus avs, Edgard da Costa Freitas e Valdete Actis de Freitas e Joaquim Teixeira dos Santos e Celina Barbosa, dedico, com afeto, este trabalho.

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AGRADECIMENTOS

A Deus, Arquiteto Universal, pelo dom da vida e a graa do conhecimento. A toda minha famlia, pelo apoio incondicional. A meu irmo, por escutar pacientemente minhas dvidas e questionamentos. A minha tia Vera e a Verena Dalton, pela ajuda indispensvel na reviso do texto, e a Luiz Barreira, pelo suporte tcnico. queles meus amigos, em especial a Leo Melgao, Kaio Abreu, Mateus Wildberger, rika Batista, Naiana Lima, Bruna Nunes, Joo Filho, Anselmo Cunha, Jeoval Garcia, Anderson Silva, Leonardo Santos e Anderson da Silva, os quais, com crticas, sugestes de leituras, opinies ou simples palavras de apoio e incentivo, me ajudaram a construir este trabalho. Aos amigos e companheiros feitos no decorrer deste curso. Aos funcionrios da Casa pela ajuda e ateno que sempre me dispensaram

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Em toda luta de idias ou de sentimentos, sempre que virdes que de um lado combatem muitos, e de outro, poucos, suspeitai que a razo se encontra com os ltimos. Nobremente, ento, prestai o vosso auxlio aos que esto em minoria contra os que esto em maioria. Jos Ortega y Gasset 2007 Edgard da Costa Freitas Neto Divulgao permitida, desde que devidamente citada a fonte Contato: [email protected]

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A INCONSTITUCIONALIDADE DO SISTEMA DE COTAS PARA O ACESSO AO ENSINO SUPERIOR

RESUMO

A reserva de vagas no ensino superior a alunos oriundos de escolas pblicas tem ganhado adeso cada vez maior de Universidades pblicas brasileiras. Tais polticas so, obviamente, desenhadas com o objetivo manifesto de sanar injustias histricas. Estas polticas, entretanto, se utilizam de critrios incompatveis tanto com a letra, como com o esprito da Constituio Federal de 1988. O presente trabalho, por meio de um estudo dialtico sobre a natureza do sistema de cotas, o princpio da igualdade e misso da Universidade, e utilizando alguns dos meios mais comuns de interpretao da Constituio, buscar demonstrar dialeticamente a inconstitucionalidade de se reservarem vagas no ensino superior a indivduos determinados com base em fatores de ordem racial e social. PALAVRASCHAVES: Constituio Federal; Direitos e garantias fundamentais; Cotas Raciais; Aes Afirmativas; Princpio da Igualdade; Acesso educao.

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SUMRIO1. 2. 2.1 2.2 2.3 3. 3.1 3.2 4. 4.1 4.2 4.3 INTRODUO...........................................................................................09 O SISTEMA DE COTAS NO ACESSO UNIVERSIDADE.......................10 CONCEITO.................................................................................................10 CONTEXTO HISTRICO INTERNACIONAL............................................11 O CONTEXTO BRASILEIRO.....................................................................15 A ABORDAGEM JUSFILOSFICA DA IGUALDADE................................20 CONCEITO E ABORDAGEM HISTRICA................................................20 O CONTEDO JURDICO DO PRINCPIO DA IGUALDADE...................26 A UNIVERSIDADE.....................................................................................32 A FUNO SOCIAL DA UNIVERSIDADE................................................32 A IGUALDADE NO ACESSO AO ENSINO SUPERIOR............................37 DESIGUALDADES RACIAIS E SOCIAIS NAS UNIVERSIDADES

PBLICAS BRASILEIRAS.........................................................................40 5. 5.1 5.2 O SISTEMA DE COTAS E A INTERPRETAO DA CONSTITUIO....46 A INCONSTITUCIONALIDADE FORMAL DO SISTEMA DE COTAS ......46 A INCONSTITUCIONALIDADE MATERIAL DO SISTEMA DE COTAS....48

5.2.1 AS COTAS E O MTODO GRAMATICAL.................................................49 5.2.2 AS COTAS E A INTERPRETAO SISTEMTICA..................................50 5.2.3 AS COTAS E O POSTULADO DA IGUALDADE.......................................51 5.2.3.1 AS COTAS E A ADEQUAO DOS MEIOS..........................................52 5.2.3.2 A NECESSIDADE DAS COTAS..............................................................54 5.2.3.3 AS COTAS E O EXAME DA SUA PROPORCIONALIDADE EM SENTIDO ESTRITO................................................................................56 6. 7. CONCLUSES..........................................................................................58 REFERNCIAS CONSULTADAS..............................................................60

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1.

INTRODUO O incio do sculo XXI representou, para o Brasil, o marco da implantao das

primeiras aes estatais em larga escala baseadas no fator racial. As universidades constituram a ponta-de-lana para a implementao de polticas raciais que vinham sendo gestadas com apoio do governo federal desde meados da dcada anterior. Os brasileiros nos deparamos, a partir do ano de 2001, com uma nova realidade histrica e social: o Brasil seria um pas intrinsecamente racista, dividido entre dois grupos raciais antagnicos, mas disposto, ante a comunidade das naes, a cumprir as penitncias necessrias aps o mea culpa oficial. Este Brasil de incio do sculo se proclamava to racista quanto o fora a frica do Sul sob o apartheid e os EUA na Era Jim Crow. Algumas almas, ainda mais crticas, esclareciam que o nosso racismo seria pior que o dos sul-africanos ou americanos, pois invisvel e inconsciente nas vtimas e agressores. Sem bombas, sem segregao, sem Ku Klux Klan, sem partidos racistas, ou conflitos de rua teramos desenvolvido uma ideologia racista ao mesmo tempo forte e invisvel: ampla e silenciosa. A implementao de cotas nas Universidades pblicas brasileiras passou, de imediato, a bandeira de luta prioritria. E assim, com pouco, ou nenhum debate srio prvio, mais de 30 universidades brasileiras passaram a segregar oficialmente os candidatos no exame vestibular com base em critrios raciais e recortes sociais. O presente trabalho pretende lanar algumas luzes sobre o debate constitucional sobre as cotas nas Universidades, debate esse atualmente travado mais com o fgado e o corao do que com os dados da razo, buscando responder ao questionamento: Ser a reserva de vagas para candidatos no exame vestibular um procedimento amparado pela Constituio? Para tanto, abordaremos, no primeiro Captulo, a histria do sistema de cotas, no Brasil e no mundo, suas definies e alcances. Em seguida, traaremos uma anlise jurdico-filosfica sobre o alcance do princpio da Igualdade. Trataremos, tambm, da Universidade, e seus fins. Por ltimo, aproveitaremos os subsdios lanados nos captulos anteriores para esboar uma interpretao jurdica das cotas luz da Constituio.

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2. 2.1

O SISTEMA DE COTAS NO ACESSO UNIVERSIDADE CONCEITO Ao afirmativa o nome genrico que se d a determinadas polticas

pblicas que, por meio de promoo, subveno, instaurao de privilgios legais, preferncias ou preteries, visam a beneficiar determinada parcela da populao tida como vitimada por injustias histricas e estruturais, tendo por meta a correo e a eliminao destas injustias. No dizer da atual Ministra do STF, Carmen Antunes Rocha:A definio jurdica objetiva e racional da desigualdade entre os desiguais, histrica e culturalmente discriminados, concebida como uma forma para promover a igualdade daqueles que foram e so marginalizados por preconceitos encravados na cultura dominante da sociedade. Por esta desigualao positiva promove-se a igualao jurdica efetiva; por ela afirma-se uma frmula jurdica para promover uma efetiva igualao social, poltico-econmica e no segundo o direito, tal como assegurado formal e materialmente no sistema constitucional democrtico. A ao afirmativa , ento, uma forma jurdica para se superar o isolamento ou a diminuio social a que se acham sujeitas as minorias. (ROCHA,1996 apud ATCHABAHIAN, 2004).

No dizer do hoje tambm Ministro Joaquim Barbosa Gomes, as aes afirmativas seriamum conjunto de polticas pblicas e privadas de carter compulsrio, facultativo ou voluntrio, concebidas com vistas ao combate discriminao racial, de gnero, por deficincia fsica e de origem nacional, bem como para corrigir ou mitigar os efeitos presentes da discriminao praticada no passado, tendo por objetivo a concretizao do ideal de efetiva igualdade de acesso a bens fundamentais como a educao e o emprego. (GOMES, 2003, p. 27)

O sistema de cotas constitui uma espcie de poltica de ao afirmativa que, por meio da reserva de determinada percentagem de vagas, pretende garantir espao ou presena significante a membros de determinado grupo, o qual se entende vitimado por variados fatores histricos que lhe impuseram uma situao de desigualdade de fato em relao aos demais nos resultados de concursos pblicos diversos, dentre os quais o exame vestibular. Em sua prtica, o sistema de cotas institui critrios diferenciados de admisso no ensino superior, separando os candidatos pela sua origem escolar (se de escolas 2007 Edgard da Costa Freitas Neto Divulgao permitida, desde que devidamente citada a fonte Contato: [email protected]

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pblicas ou privadas) e, ainda, pela sua classificao tnico-racial, aplicando tais dados cumulativamente com a nota do exame, com vistas ao preenchimento das vagas reservadas no edital aos membros de cada categoria dentro da proporo entendida como necessria para a correo da desigualdade. Segundo Joaquim Barbosa Gomes,A realidade que as aes afirmativas se justificam de maneira mais convincente luz dos princpios da justia distributiva do que da justia compensatria, embora no sejam raras as hipteses (...) de conjugao dessas duas noes. (GOMES, 2001, p. 66)

No Brasil, este sistema, aplicado no exame vestibular de mais de trinta Universidades pblicas e proposto pelo PLS 213/20031 para quase todos os aspectos da vida social nacional, incluindo elencos de programas de televiso, representa o carro-chefe de programas de ao afirmativa que tm por objetivo proclamado a correo de desigualdades histricas s quais se submete a populao negra no Brasil. 2.2 CONTEXTO HISTRICO INTERNACIONAL O sistema de cotas tem sua gnese com o aparecimento das primeiras polticas de ao afirmativa. Thomas Sowell (2004) relata que a primeira experincia de amplo espectro se iniciou na ndia, logo aps a independncia, e visava a integrar sociedade os chamados intocveis indivduos que no pertenciam a nenhuma das quatro castas da religio hindu e tambm a membros de cls mais pobres. Concebidas, poca, como poltica provisria, as aes preferenciais permanecem em vigor, ampliadas, inclusive, para grupos que no poderiam, por definio, sofrer efeitos de discriminao histrica transmitida descendncia, como os eunucos. Diversos pases implantaram polticas preferenciais para seus grupos nacionais tidos como vulnerveis, como foi o caso da Malsia, visando a proteger os malaios da competio com os trabalhadores chineses; do Sri Lanka que, buscando nivelar socialmente os tmeis aos cingaleses, adotou polticas que

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Projeto de Lei de autoria do Senador Paulo Paim (PT-RS), que institui o Estatuto da Igualdade Racial. Dentre as medidas previstas esto a classificao racial obrigatria, o estabelecimento de cotas fixas para atores em toda a grade de programao televisiva e prioridade no atendimento no SUS para cidado identificados como negros.

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preteriram aqueles em face destes; a Nigria, que adotou a mesma postura para equalizar as relaes tribais e, por fim, os Estados Unidos. Segundo a pesquisa emprica conduzida por Sowell, as polticas preferenciais tiveram o condo de acirrar as disputas intertnicas, chegando mesmo a servir de estopim para duas guerras civis (no caso da Nigria e do Sri Lanka), alm de gerarem fraudes, vantagens exageradas para os que se encontravam em melhores condies dentro dos grupos beneficiados, e no significarem melhoria substancial na qualidade de vida, quer da nao, quer dos grupos beneficiados. O caso dos Estados Unidos da Amrica, por ser o de maior influncia para a realidade brasileira, merece maior ateno. Naquela nao, a abolio da escravatura s se consumou aps uma violenta guerra civil. Mesmo aps a edio da 14 emenda constitucional (1868), que instituiu a chamada Equal Protection Clause, o racismo permaneceu como ideologia fortemente arraigada no sentimento nacional, ampliado pelo ressentimento de guerra, permanecendo um antagonismo geral entre brancos e negros, o qual j fora percebido, desde o incio do sculo XIX, por Tocqueville, que enxergara no problema racial americano a semente da principal luta futura daquele pas (TOCQUEVILLE, 1988). Uma das facetas do racismo, ento institucionalizado, foi o segregacionismo, chancelado pela Suprema Corte quando do julgamento do caso Plessy versus Fergusson, quando os julgadores entenderam que no haveria violao genrica ao princpio da isonomia na prtica segregacionista em si, mas somente em caso de prestao desigual, qualitativamente, nos servios segregados (Doutrina Separate, but equal, tambm conhecida como Era Jim Crow). A Segunda Guerra Mundial gerou uma demanda tremenda por mo-de-obra, e a prosperidade do ps-guerra elevou a qualidade de vida da populao negra, conduzindo a um estado de contestao s leis segregacionistas vigentes, que comearam a ser derrubadas. Atravs da Ordem Executiva 9981, de 26 de julho de 1946, foi formalmente proibida a segregao racial nas Foras Armadas americanas. Marco importante deste perodo, tambm, foi a deciso do julgamento Brown versus Board of Education of Topeka, de 1954, no qual a Suprema Corte reformou o seu ponto de vista sobre a segregao, declarando-a inconstitucional. A efervescncia dos anos 60, no campo racial, redundou na idealizao, ainda no governo Kennedy, dos primeiros programas de ao afirmativa voltados

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aos negros, alm da proibio total da segregao por meio da Lei dos Direitos Civis, de 1964. Durante o governo do republicano Richard Nixon (1968-1973), tais programas se ampliaram, extrapolando a prestao dos servios pblicos e atingindo tambm a esfera privada, inclusive com a proibio de aplicao de quaisquer testes em processos de admisso empregatcia que redundassem na reprovao de grande nmero de membros de minorias. Implantados em diversas Universidades, os sistemas de cotas raciais foram primeiro questionados no mbito da Suprema Corte quando julgamento do caso Bakke versus Regents of University of Califrnia (1978), tendo aquela Corte julgado inconstitucional a aplicao do critrio raa de maneira prioritria nos critrios de admisso numa Universidade. Ao longo dos anos 80 e 90, a posio da Suprema Corte daquele pas acerca dos sistemas de cotas e aes afirmativas permaneceu bastante varivel. Firmou-se, entretanto, uma tendncia acentuada de restrio do alcance de tais polticas (MENEZES, 2001, p. 135 e ss), como no julgamento dos casos Gratz versus Bollinger e Grutter versus Bollinger (ambos em 2003) e, mais recentemente, na deciso do julgamento Parents involved in Community Schools versus Seattle School District nr. 1, em junho de 2007, que julgou inconstitucional a reserva de vagas em escolas fundada no critrio raa. Existe um clamor, reproduzido entre os defensores brasileiros, de que a implementao dos sistemas de Ao Afirmativa teria tido o condo de equilibrar as relaes raciais nos Estados Unidos. Joaquim Barbosa, comentando Dworkin, sustenta queO objetivo final dessas medidas seria a reduo do grau de conscincia racial da sociedade. Noutras palavras, enquanto certas posies de mando, poder e prestgio continuarem sendo privilgio de pessoas da raa branca, continuar a existir a fratura racial na sociedade. Porm, medida que negros, mulheres e outras minorias forem ocupando essas posies, conseqentemente reduzir-se-o na mesma proporo os sentimentos de frustrao e injustia e sobretudo a forte conscincia racial dos negros tender tambm a desaparecer, na medida em que passaro a acreditar que podem obter sucesso na vida unicamente em funo de suas capacidades individuais. (GOMES, 2001, p. 69)

Apesar do inegvel otimismo, esta tese encontra forte oposio acadmica naquele pas.

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O cientista poltico norte-americano Allan Bloom, por exemplo, analisando o que entende por decadncia do ensino superior nos EUA, percebeu que a implementao das cotas e de outros programas de aes afirmativas gerou um distanciamento cada vez maior entre os estudantes negros e brancos, com aumento da animosidade inter-racial nos campi e mesmo o surgimento de novos obstculos para a integrao dos formandos negros no mercado de trabalho aps a graduao:No exato momento em que todos se transformaram em pessoas, os negros se transformaram em negros (...). Atualmente, a ao afirmativa institucionalizou os piores aspectos do separatismo. (...). Tambm verdade que o diploma do negro vem maculado, pois os empregadores desconfiam dele ou viram cmplices ao tolerar a incompetncia. E o pior que os negros, a maioria dos quais apia entusiasticamente o sistema, odeiam suas conseqncias. Um clima de vergonha e de ressentimento se instalou em muitos desses alunos, beneficirios de tratamento preferencial, pois quer dizer que os brancos esto em posio de lhes fazer favores. Pensam que todo mundo duvida do mrito deles, de sua capacidade para conseguir resultados iguais. O xito se torna discutvel a seus prprios olhos. Os que so bons alunos receiam ser igualados aos que no so, vendo suas credenciais arduamente conquistadas perderem o valor. So vtimas de um esteretipo escolhido pelas lideranas negras. Os que so maus alunos, mas tm as mesmas vantagens dos bons, querem proteger sua posio, mas os persegue a idia de no merecerem. Ganham assim um poderoso incentivo para fugir a uma associao estreita com os brancos, quem sabe dotados de maior capacidade e prontos, talvez, para olh-los com superioridade. melhor no se misturar, para que no surjam dificuldades sutis, mas dolorosas. No surpreende que hoje a poltica extremista dos negros encontre em seus irmos de cor das classes mdia e superior, o que indito. A fonte comum, que unia as raas na cpula, ficou poluda. A razo no pode adaptar-se s exigncias seja de que poder for, assim como a sociedade democrtica no pode aceitar outro princpio de progresso que no seja o baseado no mrito. (...) As aes afirmativas (quotas), pelo menos nas universidades, representam a fonte do que temo seja a deteriorao, em longo prazo, das relaes raciais nos Estados Unidos. (BLOOM, 1989, passim)

Um dos principais estudiosos das aes afirmativas nos EUA, o economista negro Thomas Sowell, por seu turno, contesta a noo amplamente difundida de que as aes afirmativas serviram como propulsoras da melhoria geral da capacidade econmica e insero acadmica da populao negra naquele pas. Segundo o seu estudo, o progresso daquela populao deveu-se muito mais derrubada dos obstculos legais isonomia formal e melhoria econmica do ps-guerra do que propriamente s polticas de compensao:Embora simples diferenas quantitativas na educao no sejam os nicos critrios na discriminao racial contra os negros, as diferenas a este respeito, em termos histricos, tm sido suficientemente dramticas para

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tornar desnecessria tambm a anlise das diferenas qualitativas. (...) J em 1940, os homens no-brancos completavam apenas 5,4 anos de escolaridade, comparados a 8,7 dos brancos. (...) Vinte anos mais tarde, a diferena entre homens negros e brancos diminuiu para menos de dois anos. Por volta de 1970, caiu para menos de um ano 12,1 anos em mdia de escolaridade para jovens negros e 12,7 anos para jovens brancos. Em suma, a educao dos negros aumentou bastante, em termos absolutos como em relao aos brancos, nas dcadas que precederam a legislao dos direitos civis nos anos 60 e as aes afirmativas nos anos 70. Que mudanas econmicas acompanharam esta melhor educao dos negros? Em 1940 87% das famlias negras tinham rendas abaixo do nvel da pobreza. Em 1960 a taxa caiu para 47% das famlias negras. A impressionante diferena de 40 pontos percentuais ocorreu numa fase em que no existia legislao federal de vulto sobre os direitos civis. (...) Enquanto se pode discutir o papel da legislao e das polticas de oportunidades iguais dos anos 60, to bem exemplificado na Lei dos Direitos Civis, o efeito das polticas federais de ao afirmativa que comearam nos anos 70 claramente menos sugestivo. Durante a dcada de 1970 a taxa de pobreza entre as famlias negras caiu de 30 para 29%. Mesmo que todo esse nico ponto percentual fosse atribudo ao afirmativa, ainda no seria parte significativa da histria de ascenso econmica dos negros, por mais crucial que se queira pintar politicamente a ao afirmativa. (SOWELL, 2004, passim)

A anlise de Sowell demonstra claramente que no h nexo causal direto entre a incluso econmico-social do negro nos EUA e as aes afirmativas adotadas especialmente em nvel de cotas universitrias. O prprio pesquisador, j nos anos 70, alertava que as aes afirmativas, ento em fase de implantao, seriam desnecessrias e mesmo contraproducentes, arriscando a demolir o modelo de Universidade que sempre serviu de base aos Estados Unidos sob o pretexto de democratiz-lo em termos raciais e de gnero, sustentando que a melhoria do ensino bsico e mdio das comunidades pobres bastaria para equilibrar as relaes raciais em menos de uma dcada (SOWELL, 1975). 2.3 O CONTEXTO BRASILEIRO O marco histrico para a adoo de polticas afirmativas no Brasil foi o ano de 2001. Naquele ano, o Brasil participou da Conferncia Mundial de Combate ao Racismo e Xenofobia, promovido pela ONU em Durban, frica do Sul, e a sua delegao, para espanto geral, confessou que o Brasil era um pas racista e que existiria aqui um racismo institucional, o qual agiria de maneira implcita2,H uma diferena enorme entre afirmar h racismo no Brasil e afirmar O Brasil um pas racista. A veracidade da primeira afirmao se deduz a partir da constatao da existncia de indivduos2

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comprometendo em seguida o Brasil, no plano internacional, a adotar polticas de reparao. Tal postura gerou crticas diversas por conta do carter ideologicamente enviesado da delegao enviada a Durban e da pouca divulgao dos debates preparatrios, ficando as discusses restritas interna corporis do assim chamado Movimento Negro (MAGGIE; FRY, 2002). Atravs do Decreto 4.886/2003 o poder executivo federal traou diretrizes para o Estado na implementao de programas poltico-administrativos voltados com nfase para a populao negra, visando eliminao de qualquer fonte de discriminao e desigualdade raciais direta ou indireta, mediante a gerao de oportunidades e conferindo participao ativa aos movimentos no-governamentais no planejamento e execuo destas mesmas polticas governamentais, sob a justificativa de gesto democrtica. Neste contexto, os movimentos raciais negros ganharam significativa fora para pleitear a implantao de sistemas de cotas, baseados nas seguintes premissas: a) A populao negra se encontra sub-representada nas Universidades; b) Esta sub-representao fruto de racismo institucional histrico e/ou atual; c) Para quebrar o racismo institucional e corrigir este estado de desigualdade, preciso reservar vagas nas universidades para alunos negros, os quais comporo uma massa crtica, arete para a concretizao da igualdade material entre as raas (ATCHABAHIAN, 2004; GOMES, 2001). Na esteira da participao brasileira em Durban, a Assemblia Legislativa do Rio de Janeiro promulgou a Lei 3.708, de 9 de novembro de 2001, que "institui cota de at cinqenta por cento para as populaes negra e parda no acesso Universidade do Estado do Rio de Janeiro e Universidade Estadual do Norte Fluminense.

racistas num pas, fato do qual nenhum pas escapa. Afirmar, entretanto, que o pas racista depende necessariamente de ser a ideologia racista ali operante, o que redunda na existncia de conflitos de rua entre grupos racistas, difuso miditica da ideologia, reflexos legais de tal ideologia por meio de medidas indubitavelmente racistas que, por serem institucionais, so ipso facto explcitas. A idia de um racismo ao mesmo tempo institucional e implcito constitui, a nosso sentir, uma insanvel contradio em termos.

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O critrio de seleo dos beneficiados pelas cotas dplice: os candidatos devem ter cursado o ensino mdio em escolas pblicas e, tambm. estar enquadrados em algum dos critrios de classificao racial vigentes. Via de regra, o critrio adotado de classificao racial o da autodeclarao. No caso da Universidade Estadual de Santa Cruz (UESC), o sistema de cotas para o vestibular 2008, implantado pela Resoluo 064/2006, prev a reserva de 50% de todas as vagas oferecidas para alunos de escolas pblicas, as quais sero divididas em 75% para os autodeclarados negros e 25% para os que no se declararem, havendo a previso de vagas extras para ndios e quilombolas. J na Universidade de Braslia (UnB), o candidato tinha, at o vestibular 2007, que submeter uma fotografia sua a uma comisso que decidia, com base nos aspectos morfolgicos visveis, se ele seria ou no afrodescendente, alm de se submeter a uma entrevista (MAIO; SANTOS, 2005). Aps uma intensa polmica envolvendo a reprovao de um gmeo univitelino e a aprovao do outro3, a comisso alterou o processo, devendo o candidato que optar pelas cotas, a partir do vestibular 20084, ser submetido somente entrevista, onde, caso seja mantido o nvel das questes dos vestibulares anteriores, ser indagado sobre sua autoafirmao racial, condio econmica, ligaes e opinies ideolgicas acerca do movimento negro etc. (MAIO; SANTOS, 2005, p. 195). Por essncia, o sistema de cotas s possvel mediante uma dicotomia entre brancos e negros. No caso dos Estados Unidos, manteve-se o one drop rule, verdadeiro fssil vivo da era segregacionista, segundo o qual basta a ancestralidade africana, mesmo que remota, para o indivduo ser considerado black. Ressalte-se que, por fora da ideologia racista imperante naquele pas at a dcada de 40 do sculo XX, a miscigenao racial era rara, e, em determinados estados, at proibida por lei. Alguns destes estados, at a aprovao da 14 emenda Constituio negavam o status de cidado mesmo aos escravos forros5, proibindo-os de adquirir propriedades e transitar livremente, por exemplo.

No Concurso Vestibular 2007.1, os irmos brasilienses, gmeos univitelinos, Alex e Alan Teixeira da Cunha, filhos de pai preto e me branca, candidataram-se pelo sistema de cotas. Um deles foi aprovado e o outro teve a sua afrodescendncia rejeitada pela comisso. O fato gerou um escndalo nacional (cf. Revista Veja n 2011, de 06 de Junho de 2007). Em apreciao a recurso impetrado por Alex, a comisso reconheceu que o mesmo era afrodescendente. 4 Disponvel em http://www.cespe.unb.br/releases/1Vest2008abertura%20_2_.pdf, acesso em 13 de outubro de 2007, 09:41 5 O instituto da alforria, inclusive, no ganhou grande aplicao naquele pas.

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No Brasil, a fronteira branco opressor x negro oprimido no clara. A miscigenao e a alforria eram prticas constantes, e mesmo escravos forros constituam parcela considervel de proprietrios de escravos (MOTTA, 1999; SOWELL, 2004). A ttulo de exemplo, o Brasil, que importou cerca de 4 milhes de escravos ao longo de trs sculos, possua, em 1888, cerca de 1,2 milhes de indivduos em cativeiro e contava com metade da sua populao livre qualificada como de cor, ao passo que os EUA, que importaram 400.000, possuam, s portas da Guerra Civil, cerca de 4 milhes de cativos (SOWELL, 2004, pp. xiv-xv). A imigrao europia posterior abolio da escravido decretada em 1888, fez aumentar a proporo da populao branca. Esta, entretanto, vem decrescendo continuamente desde a dcada de 1940, perodo em que se acentuou a miscigenao. Este dado verificvel atravs do aumento contnuo da populao parda (BRASIL, 2000, p. 02) e da constatao cientfica de que 87% da populao brasileira possuem mais de 10% de ancestralidade africana (PENA; BORTOLINI, 2004, p. 43). Neste contexto, razovel deduzir que os 13% restantes encontram-se numa mirade social de grupos estritamente eurodescendentes ou orientais, de imigrao recente e ps-escravatura, ou aborgenes. O sonho de Martin Luther King de ver, no futuro dos EUA, os filhos de ex-escravos e filhos de ex-escravagistas juntos na mesa da fraternidade6 se concretizou, no Brasil, com os filhos de ambos os grupos juntos na mesma cama. A distncia entre a Casa Grande e a Senzala no constitua no Brasil, como ocorria nos EUA, obstculo intransponvel (FREYRE, 1998). O racismo, ideologia inventada pelos delrios cientificistas do Iluminismo, que ganhou projeo com as teorias darwinianas, acabou refutado pelo avano do conhecimento na Gentica. Sobrevive exclusivamente, como construo social, entre aqueles que preferem a celebrao da diferena fenotpica afirmao da igualdade gentica. Segundo o socilogo John Rex,a raa, como tal, no pode ser considerada aco causadora. O consenso da opinio dos biologistas parece ser que, embora as populaes do mundo possam ser classificadas em termos de algumas caractersticas fsicas desde que se reconhea que mesmo para estas caractersticas existe uma considervel amplitude e coincidncia estatsticas no existe evidncia de caracteres mentais associadas (sic) a estas caractersticas6

No notrio discurso original, proferido em 1963, em Washington D.C., o lder anti-racista americano disse: I have a dream, that one day, in the red hills of Georgia, the sons of former slaves, and the sons of former slave owners, will sit together in the table of brotherhood.

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fsicas. E ainda menos se pode considerar a raa como relevante para a distribuio diferencial dos direitos entre os homens. (REX, 1988, p.32)

Para garantir a funcionalidade de um sistema de cotas, entretanto, preciso ir contramo do acmulo de conhecimento anti-racista legado pela tradio e instaurar no pas a idia da identidade racial como valor a ser cultivado (FRY et al, 2007), o que, certamente, entra em contradio direta com a esperana publicamente cultivada pelos seus defensores de que sua adoo conduzir reduo do grau de conscincia racial. Como sagazmente observado pelo colunista Diogo Mainardi,Quando se considera a histria da humanidade, os alemes so to miscigenados quanto ns. Raa uma noo arcaica. No tem base cientfica. A luta contra o racismo no se d glorificando a figura de Zumbi nos livros escolares, mas ensinando que os brancos so negros e os negros so brancos. (MAINARDI, 2004, p. 127).

Mais que isso, num pas essencialmente mestio como o Brasil, preciso negar a mestiagem, outrora razo de orgulho nacional, e criar, por meio da manipulao estatstica, dois grupos distintos e antagnicos, os brancos e os negros7 (KAMEL, 2006, p. 49). Trata-se na prtica, por paradoxal que seja, da introduo institucional, no Brasil, da one drop rule adotada nos Estados Unidos desde a poca do segregacionismo racista, com profundas implicaes no ordenamento constitucional ptrio, historicamente neutro em questes raciais, instaurando a uma preponderncia da noo de conscincia de raa em substituio a uma conscincia de nao.

O grupo estatstico negro obtido pela soma aritmtica dos indivduos classificados sob as bandeiras preto e pardo pelo IBGE. Por meio de uma manipulao semntica preto e negro so sinnimos infla-se esta categoria no levantamento populacional, obtendo-se assim a propalada maioria negra no pas, ao mesmo tempo em que se retiram os pardos deste grupo em determinadas contagens, a fim de criar provas estatsticas do racismo no pas.

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3. 3.1

A ABORDAGEM JUSFILOSFICA DA IGUALDADE CONCEITO E ABORDAGEM HISTRICA A idia de igualdade exprime uma relao entre pessoas e objetos. No se

trata de uma qualidade, como liberdade, mas de uma relao em que se deve estabelecer de antemo quem so os iguais e em que o so, ou seja, o que devido a cada qual e por que o (BOBBIO, 1997, p. 12). Tocqueville (1988), ao analisar a democracia americana, enxergou na igualdade a maior paixo dos homens livres, os quais estariam dispostos, inclusive, a sacrificar esta em funo daquela. Equilibrar igualdade e liberdade tem sido, talvez, o problema capital de todas as noes de justia da civilizao ocidental, constituindo um verdadeiro n grdio para os regimes democrticos existentes. O mais importante modelo transubstanciou-se talvez nas obras de Aristteles, de Estagira (384-322 a.C), notadamente na sua tica a Nicmaco e na Poltica, nos quais o estagirita se debrua sobre as noes de justia distributiva e comutativa (ou corretiva), interpretando a igualdade como parte indissocivel do justo dikaion (ARISTTELES, 2005). A idia da justia distributiva de Aristteles foi eternizada na idia de que se deve quinhoar desigualmente aos desiguais na medida em que se desigualam (BARBOSA, 1970, p. 25). Trata-se da constatao da existncia de uma desigualdade inerente condio de cada um, o que conduz a uma desigualdade tambm na distribuio dos objetos da vida em sociedade. Afirma o jusfilsofo Michel Villey:Ora, no caso das distribuies en tais dianomais, escreve Aristteles no a igualdade simples, aritmtica que se visa. Antes, porm, uma proporo (un analogon) entre os bens e as pessoas. (VILLEY, 1977, p. 65).

Plrimas distines ocorrem aos homens, umas naturais (fora, altura, cor, talento, etc.) e outras oriundas da vida social (destreza, status econmico-financeiro, habilidades adquiridas, etc.). Desta maneira, ensinava o mestre grego, o valor mrito, dentro da teoria poltica, deveria orientar a distribuio das benesses, visto ser o critrio mais razovel que, por exemplo, o bero ou a fora fsica. Tal valor, por sua vez, desdobrava-se em questionamentos acerca de sua prpria natureza, visto

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que os democratas enxergavam o mrito na sua prpria condio de homem livre, ao passo que os oligarcas viam o mrito na riqueza ou na nobreza hereditria, enquanto os aristocratas entendiam ser a excelncia o fator correto a ser levado em considerao. O critrio correto, na opinio do filsofo, o da relevncia da habilidade ou caracterstica para o objeto dividido (ARISTTELES, 2000, p. 235), pois a liberdade, a riqueza, a excelncia constituem, todas, diferentes formas de mrito, mas no possuem a mesma relevncia para todos os objetos. O ideal para a plis seria o equilbrio entre a excelncia, o poder e a liberdade. Na concepo do Estagirita,as dessemelhanas entre os membros [da plis] so essenciais para a constituio de um Estado. Como eu j disse em minha tica, o equilbrio perfeito entre diferentes partes que d existncia cidade. Esse equilbrio fundamental at mesmo entre cidados livres e iguais, por que eles no podem ocupar cargos simultaneamente (ARISTTELES, 2000, p. 171).

Na sua Poltica, o filsofo aprofunda para o campo da teoria poltica o que esboara na tica, demonstrando que no qualquer superioridade ou diferena que justifica a distribuio, por exemplo, de cargos pblicos, assinalando em seguida, que somente a qualidade que possua nexo com o objeto relevante para a vida poltica, posto que razovel e proporcional. A justia distributiva, pois, significa uma igualdade geomtrica, na qual os objetos distribudos o so segundo uma regra proporcional ao valor, excelncia de cada um para a comunidade, sendo esta a regra para a manuteno da ordem e harmonia na plis. Em verdade, a igualdade distributiva no propriamente uma igualdade, mas, antes, uma proporcionalidade, uma analogia, de aplicao nas relaes do indivduo com o coletivo e vice-versa. J a justia corretiva, nas lies eternas do filsofo, cuida no das relaes dos indivduos com a comunidade, mas das relaes interpessoais. Trata-se de uma igualdade aritmtica, em que o magistrado reinstaura a igualdade entre os indivduos rompida para prtica de um ato inquo de um contra o outro. O meio a aplicao de uma pena, em que o juiz, constatado o rompimento do meio-termo pelo ato injusto subtrai a parte excedente do inquo e a adiciona parte da vtima, de modo que a eqidade (ison), ou um ponto mais prximo dela, volte a prevalecer, restabelecendo, ainda que em parte, o status quo ante.

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Diversas concepes de igualdade e, portanto, de justia ocupam coraes e mentes dos juristas hodiernos. Grosso modo, podemos identificar as concepes libertrias e utilitrias, dentro das quais projeta uma ampla gama de opes e distines por vezes sutis entre as escolas (DWORKIN, 1999, p. 357). As concepes utilitrias tm por base uma igualdade material, visando ao bem-estar comum, no qual deve o Estado dar a cada qual segundo sua necessidade, pretendendo proporcionar o mximo de benefcios ao coletivo com o mnimo de prejuzo. Nos dizeres de Joaquim Barbosa Gomes,A redistribuio de benefcios e nus na sociedade tem o inegvel efeito de promover o bem-estar geral, eis que, ao se reduzirem a pobreza as iniqidades, tendem igualmente a desaparecer o ressentimento, o rancor, a perda do auto-respeito decorrente da desigualdade econmica. (GOMES, 2001, p. 68).

Recuando um pouco no tempo, podemos chegar ao pensamento de Jean Jacques Rousseau, no seu clssico discurso A origem da desigualdade entre os homens8. Identificava o filsofo genebrino a existncia de duas desigualdades, a natural e a moral. A desigualdade natural diz respeito s caractersticas inatas do indivduo (sade, compleio, sexo etc.) e o problema da sua natureza encerra-se na definio da palavra (ROUSSEAU, s/d, p. 27). A desigualdade moral, por seu turno, teria sido uma inveno da sociedade com o fim de perpetuar o mando e a dominao inaugurados com o advento da propriedade privada, subordinao esta que inexistiria no estado de natureza. O direito positivo, criado em seqncia propriedade privada, chancelou a posse daquela, impondo a guerra ou a dominao dos ricos contra os pobres. O entusiasta do bon sauvage sustentava que as distines morais (ou seja, qualquer uma que se baseasse em critrios que no os naturais, tais como a inteligncia e a aptido) no deveriam ser contempladas pelo direito positivo, posto que antinaturais. Sendo o homem naturalmente bom, igual e livre, sua felicidade estaria condicionada ao retorno ao estado natural, com o restabelecimento do valor intrnseco desigualdade natural.

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ROUSSEAU, Jean Jacques. A origem da desigualdade entre os homens. So Paulo: Escala, s/d

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Inspirado no raciocnio, o pensador alemo Karl Marx, ao imaginar a histria como uma linha contnua e com um sentido, enxergando na luta de classes o seu motor, previu que o capitalismo fatalmente sucumbiria diante de uma relao geomtrica inversamente proporcional entre o nmero dos explorados e dos exploradores, os quais se engoliriam na competio de mercado at o monoplio. Desta maneira imaginou o pensador germnico que a formao da conscincia de classe do proletariado, alienado pela ideologia e moral burguesas, conduziria a humanidade ao socialismo, ante-sala do comunismo, que representaria, por seu turno, o fim da histria, a redeno do homem (MARX, 1993, p. 92). No comunismo, o homem retornaria sua virtude inata e vida comunal que teria existido antes do advento da propriedade privada. Neste seu retorno s origens, o homem j no teria direito a bens de acordo com as suas capacidades ou sua produo, mas segundo as suas necessidades (MARX, s/d, p. 08), instalandose, assim, a igualdade material entre os indivduos. Numa outra seara, menos radical que a proposta de igualdade material, mas no menos utpica, h os que pugnam ser dever do governo pr os homens estritamente no mesmo ponto de partida, ou seja, que dever do Estado dotar os homens de uma quantidade mnima igual de recursos materiais para que, da, eles possam competir livremente. o caso do jusfilsofo John Rawls, para quem as desvantagens naturais devem ser compensadas com benesses sociais em nome da igualdade (RAWLS, 2002). Allan Bloom, analisando a teoria de justia proposta por Rawls, aduziu que, para este,os que no tm vantagem, ou, para significar o que Rawls quer de fato dizer, os pobres, devem ser ouvidos no condescendidos ou instrudos de como devem viver; e a ateno a eles dada deve ser com base no direito mais fundamental que anterior s instituies e de acordo com os quais estas so formadas. Um homem no tem, como disse Plato, um direito ao que pode usar bem; ou, como disse Locke, ao que misturou ao seu trabalho; ou at, como disse Marx, ao que necessita; ele tem um direito ao que pensa que precisa para realizar o seu plano de vida, seja l qual for. Em relao aos fins, o governo, para Rawls, deve ser o de laisser-faire; com respeito aos meios para os fins, deve ser beaucoup faire. (BLOOM, 1990, p. 317)

No outro campo do embate filosfico, perfilam-se os autores que admitem a existncia das desigualdades como condio necessria da sociedade, que podem, no mximo, ser mitigadas, mas jamais eliminadas.

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Argumenta-se que a idia de Rousseau da naturalidade boa do homem no passa de um mito, visto que, mesmo entre as tribos mais remotas de ndios, relaes de poder se instauravam9, e que os homens, sendo animais sociais e animais polticos, associam-se desde sempre visando proteo mtua e organizao do trabalho para enfrentar as intempries e a fome. Das diferenas de fora, aptido, talentos, gostos e habilidade surgiriam novas distines que fatalmente levariam os indivduos novamente a posies de desigualdade, que poderiam existindo liberdade ser transmitidas a seus descendentes na forma de ensinamentos, lies, legados, transmisso de valores e heranas materiais. O filsofo austraco Friedrich Hayek, ao refletir sobre a igualdade e o mrito individual, afirmou:Do fato de que as pessoas so muito diferentes segue-se que, se dispensarmos a todas tratamento igual, o resultado ser a desigualdade das suas posies reais e que a nica maneira de colocarmos essas pessoas em posio de igualdade seria dispensar-lhes tratamentos diferenciados. Igualdade perante a lei e igualdade material no so, portanto, apenas categorias diferentes, mas mesmo conflitantes; podemos obter uma ou outra, mas no as duas ao mesmo tempo. (HAYEK, 1983, p. 94).

Para evitar a desigualao material ex post facto seria preciso a ao do Estado para equalizar os indivduos, o que requer necessariamente a concentrao do poder poltico. Ocorre que o Estado no um ente etreo, imparcial. administrado por homens, os quais tm a tendncia a agir em seu prprio benefcio quando possuidores de poder suficiente para abusar do mesmo, como j alertava Montesquieu (1979). Dotados de poderes especiais e intrinsecamente absolutos para igualar os indivduos, os equalizadores fatalmente estariam numa posio de poder francamente desigual em relao maioria da populao. E, nesta tendncia cada vez maior de as sociedades democrticas delegarem poderes especiais ao Estado numa busca desenfreada por igualdade, Tocqueville enxergou o surgimento de um novo tipo de servido:Acima desta massa, se ergue um poder imenso e tutelar que se encarrega, com exclusividade, de garantir os direitos de todos e de controlar os seus9

Deve-se sempre ressaltar que Rousseau nunca visitou uma tribo indgena, baseando suas observaes nas descries idlicas dos viajantes do Novo Mundo e em visitas a exposies de nativos, trazidos Europa para este fim.

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destinos. absoluto, detalhado, regular, previdente e suave. Assemelharse-ia autoridade paterna se, como esta, tivesse como objetivo preparar os homens para a idade adulta, mas, na realidade, o que faz mant-los irrevogavelmente na infncia; Apetece-lhe que os cidados vivam bem, desde que no pensem em outras coisas. Interessa-lhe de bom grado seu bem-estar desde que seja seu nico agente e rbitro. Olha por sua segurana e garante e atende suas necessidades, facilita seus prazeres, dirige seus principais assuntos, impulsiona sua indstria, regula suas sucesses testamentrias, divide suas heranas e, se pudesse, lhes desobrigaria por completo da maldio de pensar e viver. Desta forma, torna-se cada vez menos til e raro o exerccio do livre-arbtrio, circunscreve a vontade a um mbito cada vez menor e arrebata pouco a pouco, de cada cidado, sua prpria personalidade. A igualdade foi preparando o homem para tudo isto; preparou-o para suportar e at para ver este processo como benfico. (TOCQUEVILLE, 1988, p. 136).

Para o pensador francs do sculo XIX, a presena de uma aristocracia10 era insuportvel numa democracia, que pressupe necessariamente a igualdade em direitos e deveres. A atribuio ao Estado do poder de eqalizar materialmente os cidados conduz concentrao de poder entre os seus agentes, gerando, pois, uma nova aristocracia. Este processo, entretanto, no seria percebido imediatamente pelos cidados, seno pelos clarividentes que, todavia, evitam assinalar o perigo, poissabem que as misrias que temem esto distantes e que provavelmente no alcanaro sua gerao, mas a geraes futuras. Os males que s vezes traz a liberdade costumam ser imediatos: visveis para todos e com conseqncias diretas sobre eles. Pelo contrrio, os males que a extrema igualdade pode produzir s se manifestam pouco a pouco, insinuam-se gradualmente pelo corpo social; aparecem de tempos em tempos e, quando resultam violentos, o costume faz com que j no se advirtam. (TOCQUEVILLE, 1988, p. 105).

O pensamento liberal traa uma diviso clara entre a igualdade de direitos e igualdade de oportunidades garantida pela isonomia formal e polticas universalistas e a igualdade material ou de rendas tangveis somente pela atuao desigual do Estado nos casos particulares. A igualdade fundamental dos indivduos, para os liberais, deve ser a liberdade para exercer livremente suas potencialidades com o mnimo de interferncia positiva ou negativa do Estado, o qual deve ter sua ao orientada para evitar monoplios e garantir o cumprimento das leis (FRIEDMAN, 1988). UmaEntendida no contexto no como os excelentes (aristoi) do pensamento aristotlico, mas como uma casta poltica hereditria portadora de direitos prprios superiores aos da plebe, mais prxima do conceito aristotlico de oligarquia.10

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sociedade deste tipo oferece possibilidades de ascenso social muito maiores que uma sociedade fechada (como si ocorrer onde h ingerncia estatal sobre mltiplos aspectos da vida privada), tendendo, assim, a uma diminuio progressiva das desigualdades, mas no a sua eliminao. A histria do sculo XX deu razo segunda corrente. Em nome da igualdade material regimes totalitrios dominaram mais da metade da populao mundial, promovendo, com o fim de eliminar as barreiras de classe que separavam os homens, o maior massacre conhecido da histria humana, servindo, ainda, de mvel para uma desigualdade gritante entre os membros da burocracia estatal e os equalizados11. O alerta de Tocqueville se concretizara. 3.2 O CONTEDO JURDICO DO PRINCPIO DA IGUALDADE O princpio constitucional da igualdade encontra-se prescrito no art. 5, caput, da Constituio Federal. Trata-se de um princpio constitucional de ampla repercusso, visto que orienta no s a ao do legislador, que no pode editar leis dissonantes da isonomia, como vincula tambm o aplicador da lei, na medida em que a fonte da axiologia jurdica o valor do justo, o qual identificado como coexistncia harmnica e livre entre as pessoas segundo proporo e igualdade (REALE, 2002, p. 272). Como afirma Villey,O jus objeto da justia uma coisa, uma realidade, realidade justa (res justa), realidade esta inerente ao corpo poltico que nele a justa relao dos bens e das coisas repartidos entre os cidados. Uma igualdade (quandam qualitatem importat). Mas, certamente, como em Aristteles e no direito romano, igualdade proporcional. A igualdade aritmtica, a idia de uma sociedade sem classes e sem distino de fortunas seria to deplorvel quanto utpica pelo que nela h de posse das coisas exteriores; a grandeza da Cidade terrestre reside na sua diversidade, que implica, pois, em diferenas entre as condies sociais, dos ricos e dos pobres, de bens materiais. O jus uma proportio. (VILLEY, 1977, p. 102).

O princpio da isonomia, dentro da classificao dos princpios constitucionais sob a tica da eficcia e da aplicabilidade, uma norma de eficcia absoluta. Sendo

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Cf. COURTOIS, Stphane (org). O livro negro do comunismo. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1999

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a primeira norma elencada dentre os direitos e garantias individuais, a isonomia se encontra protegida por fora do Art. 60, 4, IV, da Constituio Federal. Assim dispe o texto constitucional ptrio:Art. 5 Todos so iguais perante a lei, sem distino de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no pas a inviolabilidade do direito vida, liberdade, igualdade, segurana e propriedade, nos termos seguintes: I Homens e mulheres so iguais em direitos e obrigaes, nos termos desta Constituio.

Por norma de eficcia absoluta se entende aquela protegida de supresso por via de emenda, possuidora de poder paralisante sobre toda norma inferior na hierarquia que a contradiga ou restrinja (BULOS, 1997, p. 10), pois independe de legislao posterior que a regulamente, como o caso das normas de eficcia contida. A ratio do princpio evitar que a lei seja fonte de privilgios ou de perseguies, mas que sirva como reguladora da vida social e que trate eqitativamente os cidados (BANDEIRA DE MELLO, 2006, p. 10). Ainda, funciona, segundo Humberto vila,Como regra, prevendo a proibio de tratamento discriminatrio;como princpio, instituindo um estado igualitrio como fim a ser promovido; e como postulado, estruturando a aplicao do direito em funo de elementos (critrios de diferenciao e finalidade da distino) e da relao entre eles (congruncia do critrio em razo do fim). (VILA, 2006, p. 137)

O princpio da igualdade no constitui um direito subjetivo em si, mas antes uma proibio de que a lei fira a igualdade formal mesma entre os cidados. No significa somente uma proibio de que tais leis sejam postas em vigor, mas tambm que, se postas, possam ser anuladas. Na lio do mestre do positivismo jurdico,A igualdade dos indivduos sujeitos ordem jurdica, garantida pela Constituio, no significa que aqueles devam ser tratados por forma igual nas normas legisladas com fundamento na Constituio, especialmente nas leis. No pode ser uma tal igualdade aquela que se tem em vista, pois seria absurdo impor os mesmos deveres e conferir os mesmos direitos a todos os indivduos sem fazer quaisquer distines, por exemplo, entre crianas e adultos, sos de esprito e doentes mentais, homens e mulheres. Quando na lei se vise igualdade, a sua garantia apenas pode realizar-se estatuindo a Constituio, com referncia a diferenas completamente determinadas, como talvez as diferenas de raa, de

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religio, de classe ou de patrimnio, que as leis no podem fazer acepo das mesmas, quer dizer: que as leis em que forem feitas tais distines podero ser anuladas como inconstitucionais. (KELSEN, 1999, p. 158).

O sentido do princpio em comento no o de proibir que se faam distines, mas, sim, condicionar uma correlao lgica entre o objeto de discriminao e o fator de discrmen. Isto implica num retorno regra aristotlica da justia distributiva. Como dito antes, a justia distributiva se revela por meio de uma relao geomtrica, com a distribuio proporcional dos bens. Envolve, sempre, uma relao de alteridade (REALE, 2002, p. 642). Como sabido, mltiplos aspectos fsicos e morais diferenciam os homens uns dos outros, mas nem toda diferena relevante para a teoria poltica. Na lio do mestre helnico:Se um homem se sobressai como flautista, mas bem inferior em nascimento ou boa aparncia (supondo que o nascimento ou boa aparncia sejam mritos maiores do que tocar flauta, e maiores, em proporo, superioridade do flautista sobre o resto), at mesmo ento, diria eu, o bom flautista deve ter o melhor instrumento. Pois a superioridade apenas relevante quando contribui para a qualidade do desempenho, ao qual a riqueza e o bero no contribuem de maneira alguma. (ARISTTELES, 2000, p. 235).

Nem toda diferenciao, entretanto, se d exclusivamente pelo mrito da excelncia. Por vezes a prpria natureza do objeto implica na adoo de fatores de discrmen exclusivamente naturais ou morfolgicos, como, por exemplo, a vedao para homens concorrerem a uma vaga de policial feminino e o estabelecimento de alturas mnimas para os concorrentes a vagas num corpo de guarda de honra (BANDEIRA DE MELLO, 2006, p. 12). Na sua obra clssica sobre o princpio da igualdade, Bandeira de Mello (2006) identifica, alm da citada anlise do fator de discrmen adotado e sua correlao lgica com o objeto, a necessidade de se observar a consonncia desta correlao com os objetivos e valores da Constituio como um todo. H quem sustente, com base neste modelo, que o preceito da isonomia deve ultrapassar o seu aspecto formal e abraar tambm a igualdade material, posto que a erradicao da pobreza e marginalizao e reduo das desigualdades sociais e regionais constituem um dos objetivos da Repblica (ATCHABAHIAN, 2004; SOUSA, 2006).

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Como afirma Joaquim Barbosa Gomes,O cerne da questo reside em saber se na implementao do princpio constitucional da igualdade o Estado deve assegurar apenas uma certa neutralidade processual (procedural due process of law) ou, ao contrrio, se sua ao deve se encaminhar de preferncia para a realizao de uma igualdade de resultados ou igualdade material. A teoria constitucional clssica, herdeira do pensamento de Locke, Rousseau e Montesquieu, responsvel pelo florescimento de uma concepo meramente formal de igualdade a chamada igualdade perante a lei. Trata-se em realidade de uma igualdade meramente processual (process-regarding equality). As notrias insuficincias dessa concepo de igualdade conduziram paulatinamente adoo de uma nova postura, calcada no mais nos meios que se outorgam aos indivduos num mercado competitivo, mas nos resultados efetivos que eles podem alcanar. Resumindo singelamente a questo, diramos que as naes que historicamente se apegaram ao conceito de igualdade formal so aquelas onde se verificam os mais gritantes ndices de injustia social, eis que, em ltima anlise, fundamentar toda e qualquer poltica governamental de combate desigualdade social na garantia de que todos tero acesso aos mesmos instrumentos de combate corresponde, na prtica, a assegurar a perpetuao da desigualdade. Isto porque essa opo processual no leva em conta aspectos importantes que antecedem a entrada dos indivduos no mercado competitivo. J a chamada igualdade de resultados tem como nota caracterstica exatamente a preocupao com os fatores externos luta competitiva tais como classe ou origem social, natureza da educao recebida -, que tm inegvel impacto sobre o seu resultado. Vrios dispositivos da Constituio brasileira de 1988 revelam o repdio do constituinte pela igualdade processual e sua opo pela concepo de igualdade dita material ou de resultados. Assim, por exemplo, os artigos 3, 7-XX., 37-VIII e 170. (GOMES, 2003, p. 10).

Temos ainda, a opinio de Carmen Lcia Antunes Rocha no sentido de quea Constituio Brasileira de 1988 tem, no seu prembulo, uma declarao que apresenta um momento novo no constitucionalismo ptrio: a idia de que no se tem a democracia social, a justia social, mas que o Direito foi ali elaborado para que se chegue a t-los(...)O princpio da igualdade resplandece sobre quase todos os outros acolhidos como pilastras do edifcio normativo fundamental alicerado. guia no apenas de regras, mas de quase todos os outros princpios que informam e conformam o modelo constitucional positivado, sendo guiado apenas por um, ao qual se d a servir: o da dignidade da pessoa humana (art. 1, III, da Constituio da Repblica (...).Verifica-se que todos os verbos utilizados na expresso normativa construir, erradicar, reduzir, promover so de ao, vale dizer, designam um comportamento ativo. O que se tem, pois, que os objetivos fundamentais da Repblica Federativa do Brasil so definidos em termos de obrigaes transformadoras do quadro social e poltico retratado pelo constituinte quando da elaborao do texto constitucional. E todos os objetivos contidos, especialmente, nos trs incisos acima transcritos do art. 3, da Lei Fundamental da Repblica, traduzem exatamente mudana para se chegar igualdade. Em outro dizer, a expresso normativa constitucional significa que a Constituio determina uma mudana do que se tem em termos de condies sociais, polticas, econmicas e regionais, exatamente para se alcanar a realizao do valor supremo a fundamentar

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o Estado Democrtico de Direito constitudo (ROCHA, 1996, apud GOMES, 2003, p. 10).

A despeito das autorizadas interpretaes, cremo-las temerrias na sua sugesto de um papel transformador do direito, como um instrumento revolucionrio. A Carta de 88 no uma Constituio que abraa irrestritamente o laisser-faire, certo. Tampouco, entretanto, abraa o socialismo, optando pelo meiotermo da social-democracia. A prpria presena da livre-iniciativa como um dos fundamentos da Repblica (Art. 1, IV) e a garantia do direito propriedade como direito e garantia fundamental (Art. 5, caput) j so suficientes para afastar in limine a presuno de que a Constituio teria na igualdade material um objetivo ou fundamento12, visto que a igualdade material no coexiste com o regime de propriedade privada (MARX, 1993, p. 93), nem pode firmar-se seno com a negao do pluralismo poltico e do indivduo como agente concreto da vida social. Ademais, a experincia histrica concreta demonstra que os pases que atingiram os maiores graus de igualdade social conjugada com liberdade poltica foram precisamente aqueles que se apegaram ao longo de sua histria muito mais isonomia formal e a uma menor atividade estatal no campo econmico e social13. Neste sentido, a lio de Celso Ribeiro de Bastos:A preocupao com o social uma dimenso inextirpvel do Estado moderno. Sobre o que se tergiversa com relao aos meios que havero de ser postos disposio desta causa, uma vez que a imposio em si da erradicao da pobreza est presente em toda constituio democrtica. No se pode imaginar que a riqueza sirva apenas a alguns. inconcebvel tambm que populaes enormes caream do mnimo indispensvel sua sobrevivncia com dignidade. Ocorre, entretanto, que esse objetivo fundamental tem que ser atingido dentro do contexto dos demais princpios constitucionais, onde figuram os princpios da livre-iniciativa e da propriedade privada. O Brasil acredita, pois, que a erradicao da pobreza h de se dar principalmente pela multiplicao da riqueza, pelo aumento da produo nacional, pelo desenvolvimento, enfim. (BASTOS, 2001, p. 492).

12

Note-se que no se confunde a erradicao da pobreza e marginalizao com a igualdade material propriamente dita. As concepes no so sinnimas e, a julgar pelas experincias concretas do socialismo real, so contraditrias. 13 Para conhecer as conseqncias desastrosas do intervencionismo estatal, sempre bem intencionado, nas relaes interpessoais na histria latino-americana, cf. VARGAS LLOSA et al. O manual do perfeito idiota latino-americano. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1997

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A adoo, por princpio, de direitos e garantias individuais elementares como a propriedade e a livre-iniciativa implica, ipso facto, na rejeio da idia de uma prescrio do texto constitucional em prol da igualdade material seno como uma conseqncia utpica desejvel, mas no sine qua non, decorrente das relaes livres entre os indivduos e o Estado, cabendo a este ltimo o papel regulatrio, adotando, ainda, uma postura ativa somente naquele mnimo indispensvel, conforme entende Milton Friedman (1988, p. 175). Trata-se, pois, de uma igualdade de liberdade.

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4. 4.1

A UNIVERSIDADE A FUNO SOCIAL DA UNIVERSIDADE Como vimos, o princpio constitucional da igualdade suporta determinadas

desequiparaes, desde que estejam lastreadas em critrios coerentes e lgicos de discrmen, levando-se em conta o objeto e as pessoas. As Universidades constituem o primeiro front na luta pela implementao das polticas raciais no Brasil. O uso poltico das Universidades, processo que se iniciou com a sua institucionalizao pelos monarcas do perodo de transio entre a era moderna e a era contempornea (CARVALHO,1998), uma das caractersticas mais marcantes da decadncia intelectual, institucional e cvica de um pas, processo que se agravou no sculo XX, com o fortalecimento das ideologias totalitrias. O pensador austraco radicado no Brasil, Otto Maria Carpeaux, relembrando a ltima visita sua Universidade antes de fugir da ustria para o Brasil em razo do Anschluss14, observou que o prdio estava vazio por conta da participao dos estudantes numa manifestao popular qualquer em defesa de algum dos totalitarismos em voga fascismo ou comunismo. Assim escreveu, refletindo sobre o fato:Por toda parte, as universidades so doentes, seno moribundas, e isto grande coisa. Os iniciados bem sabem que no esta uma questo para os pedagogos especializados. Das universidades depende a vida espiritual das naes. O fim das universidades seria um fim definitivo. O abismo entre o progresso material e a cultura espiritual aumenta de dia para dia, e as armas desse progresso nas mos dos brbaros fato que clama aos cus. Os edifcios das universidades resistem ainda, e neles trabalha-se muito, demais, s vezes, mas o edifcio do esprito, esta catedral invisvel, est ameaado de cair em runas. Em tempos mais felizes a sueca Ellen Key dizia com sutileza: "Cultura o que nos resta depois de termos esquecido tudo quanto aprendemos. E, deste modo, somos riqussimos de saber e mendigos de cultura. Hoje em dia Herbert George Wells pode dizer: "We are entered in a race between education and catastrophe" "Entramos numa corrida entre educao e catstrofe. A est a questo da Universidade. (CARPEAUX, 1999, p. 211).

Carpeaux fora muito influenciado pelo filsofo espanhol Jos Ortega y Gasset. Este, em sua meditao sobre a misso da Universidade, escreveu:

14

A anexao da ustria pelo III Reich nazista, em 1938.

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La sociedad necesita de buenos profesionales jueces, mdicos, ingenieros -, y por eso est ah la Universidad com la enseanza profesional. Pero necesita antes que eso, y ms que eso, asegurar la capacidad em outro genero de profesin: la de mandar. En toda la sociedad manda alguien grupo o clase, muchos o pocos. Y por mandar no entiendo tanto lo ejercicio jurdico de una autoridad como la presin e influjo difusos sobre el cuerpo social. Hoy mandan en las sociedades europeas las clases burguesas, la mayora de cuyos individuos es profesional. Importa, pues, mucho a aquellas que estos profesionales, aparte de su especial profesin, sean capaces de vivir e influir vitalmente segn la altura de los tiempos. Por eso es ineludible crear de nuevo en la universidad la enseanza de cultura o sistema de las ideas vivas que el tiempo posee. Esa es la tarea universitaria radical. Eso tiene que ser, antes y ms que ninguna otra cosa, la Universidad. (ORTEGA Y GASSET, 2001, p. 05).

A Universidade moderna, herdeira do universitas magistrorum et scholarium medieval, se tornou universitas scientiarium, detentora e transmissora do sistema total do saber (CARVALHO, 1998) e guardi da cultura, assim entendida como o sistema de idias vitais de cada tempo (ORTEGA Y GASSET, 2001, p. 04). Trata-se, pois, do templo da excelncia, do aristoi de uma sociedade democrtica, uma excelncia no somente tcnica e cientfica, mas tambm e principalmente cultural. O conflito de ideologias do sculo XX, entretanto, marcou profundamente a Universidade. Como afirma o filsofo brasileiro Olavo de Carvalho,as prioridades tpicas da nossa poca, pelas quais os homens matam, morrem e o que s vezes pior escrevem so no fundo duas e apenas duas: a eficcia do aparato tecno-econmico, a diviso do poder poltico. Quase tudo o que fazemos, pensamos e dizemos em pblico tem uma destas duas finalidades: azeitar a mquina da produtividade, alterar a constituio do Estado. Essa alternativa expressa o conflito entre a burguesia capitalista e a intelligentzia de classe mdia, tantas vezes mais poderosa que ela; este conflito, por sua vez, se expressa na dupla concepo da cultura como mercado e da cultura como militncia, oposio que por fim vai gerar as duas idias de universidade que esgotam o repertrio do que geralmente se diz a respeito nos debates nacionais: a universidade como formadora de mo-de-obra especializada, a universidade como berrio de tericos e militantes da revoluo. fatal que os adeptos da primeira concepo enfatizem a praticidade imediata, enquanto os da outra lhes opem argumentos de natureza fingidamente tica e idealstica, fundados no pressuposto absurdo de que a fome de poder poltico coisa essencialmente mais nobre que o desejo de riquezas. A constelao das idias em debate esgota-se em dois lindos sistemas de racionalizaes pro domo sua, ambos baseados no princpio de que a universidade deve servir a alguma classe, e divergindo apenas quanto a quem deve levar o prmio: os senhores do capital ou a vanguarda autonomeada das foras populares. Que ambas as classes em disputa devam, elas sim, servir a algo que as transcenda (e transcendendo unifique na busca do bem comum); e que este algo possa estar simbolizado precisamente na idia mesma de universidade, eis algo que escapa ao horizonte visual do debate universitrio brasileiro; e esta limitao, por sua

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vez, projeta-se retroativamente sobre quanto digam uns e outros da universidade de outros tempos. (CARVALHO, 1998)

O advento da Escola Filosfica de Frankfurt alterou radicalmente o equilbrio de foras nas Universidades ocidentais. O niilismo catedrtico, o relativismo, o desconstrucionismo, o avano da ideologia de ocupao de espaos e revoluo passiva de Antnio Gramsci15 transformaram as Universidades do mundo ocidental em um verdadeiro cavalo de Tria cultural. Desta crise da Universidade decorre a crise de valores da sociedade hodierna (BLOOM,1989). Parte desta crise moderna vem no bojo da assim chamada democratizao da Universidade. Segundo Bloom (1990), este processo de democratizao se revelou, na realidade, a subjugao da Universidade aos interesses prprios de grupos poltico-ideolgicos internos e externos, tudo sob o rtulo de demanda da sociedade. Narrando a sua experincia pessoal nos conflituosos anos 60, afirmou:O exemplo mais impressionante disso que eu conheo o que aconteceu 16 em Cornell . Quando estudantes negros carregando armas, com o apoio de milhares de estudantes brancos, insistiram que a direo da faculdade abandonasse o sistema judicial da universidade, condio mnima de uma comunidade civil dentro da universidade, e reforou essa insistncia com ameaas, a direo da faculdade capitulou. A maioria dos professores que votaram pela capitulao disse que era esta a vontade da comunidade, o que os estudantes queriam. (...) To democrticos tinham se tornado que aceitaram como um pblico de verdade uma turba reunida num clima de 17 violncia. (BLOOM, 1990, p. 382) .

Sendo ou pretendendo ser o Templo do Saber, a Universidade sempre elevou o conhecimento e o estudo a um patamar de superior relevncia. Assim se estrutura o sistema meritrio da Universidade, no na fora fsica ou quantidade de bens materiais, mas no esforo intelectual dos alunos traduzido em resultados.

Cf. CARVALHO, Olavo de. Nova Era e Revoluo Cultural. So Paulo: Stella & Caymmi, 1994. Uma das Universidades que compem a chamada Ivy League, liga das mais tradicionais e elitistas instituies de ensino daquele pas. 17 Impossvel no notar as coincidncias: Vrias Universidades Brasil afora esto atualmente com suas Reitorias ocupadas por estudantes que exigem o atendimento de seus pontos de vista como se fossem efetivamente um grupo democrtico e representativo. Em agosto de 2006, a simples meno, pelo Reitor da UFBA, Naomar de Almeida Filho, da possibilidade de reviso a mdio prazo do sistema de cotas adotado por aquela Universidade foi o suficiente para servir de estopim para uma manifestao de diversos movimentos negros em defesa da manuteno daquele sistema no Vestibular da UFBA. Numa manifestao que oscilava entre o caricato e o nonsense, manifestantes queimaram pneus, ocuparam a Reitoria e gritavam palavras de ordem que exortavam eliminao dos demnios brancos e derrubada do apartheid. Jornal A Tarde, 19.08.2006, disponvel em http://diversidade.mec.gov.br/sdm/publicacao/engine.wsp?tmp.area=2&tmp.templ=noticia&tmp.noticia =22316

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No obstante, o jusfilsofo americano Ronald Dworkin, numa defesa utilitria das aes afirmativas no caso DeFunis v. Odegard18, chega a pugnar pela existncia de uma espcie de mrito racial para o ensino superior, representado por uma massa crtica racial19:Any standard will place certain candidates at a disadvantage as against others, but an admission policy may neverthless be justified if it seems reasonable to expect that the overall gain to the community exceeds the overall loss, and if no other policy that does not provide a comparable disadvantage would produce even roughly the same gains. (...) Any admission policy must put some applicants at a disadvantage, and a policy of preference for minority applicants can reasonably be supposed to benefit the community as a whole, even when the loss to candidates such as DeFunis is taken into account. If there are more black lawyers, they will help to provide better legal services to the black community, and so reduce social tensions. It might well improve the quality of legal education for all students, moreover, to have a greater number of blacks as classroom discussants of social problems. Further, if blacks are seen as successful law students, then other blacks who do meet the usual intellectual standards might be encouraged to apply, and that, in turn, would raise the intellectual quality of the bar. In any case, preferential admissions of blacks should decrease the difference in wealth and a power that now exists between different racial groups, and so make the community more equal overall. It is, as I said, controversial whether a preferential admissions program will in fact promote the various policies, but it applicants such as DeFunis is, on that hypothesis, a cost that must be paid for a greater gain; it is in that way like the disadvantage to less intelligent students that is the cost of ordinary admission policies (DWORKIN, 1978, apud GOMES, 2001, pp. 70/71).

A este argumento se contrape o de Thomas Sowell ao afirmar queA maioria dos estudantes da Dunbar High School que se saiu muito bem no Amherst College entre 1892 e 1954 dificilmente viu um professor negro. A ascenso espetacular da gerao nissei de nipo-americanos, depois da Segunda Guerra Mundial, ocorreu numa poca em que tampouco tiveram professores ou catedrticos nipo-americanos, ou conheceram, ou sequer viram, algum cientista ou engenheiro de ascendncia nipnica, uma vez que a maior parte de seus pais trabalhava na lavoura. (...) Este argumento [de que uma maior diversidade tnica contribuir para a melhoria dos servios pblicos] tambm no joga com o fato de muitos mdicos no-negros trabalharem em grandes hospitais nas zonas pobres das cidades sem sinal de que pacientes negros passem pior por isso. (...) Primeiro caso de aes afirmativas em educao a ser levado Suprema Corte, o caso DeFunis no foi julgado por perda do objeto material, visto que o Autor acabou aprovado posteriormente no curso desejado. 19 A idia de massa crtica aqui empregada, explica Sowell, 2004, p.142, a suposio de que a criao de um ambiente etnicamente varivel representa condio necessria para a melhora no aprendizado dos membros de minorias. 20 A Dunbar High School era uma escola de elite s para negros, citada anteriormente por Sowell por conta do extremo sucesso de seus egressos antes da Lei dos Direitos Civis.18 20

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A discusso da poltica de admisso s faculdades normalmente decorre como se a questo fosse de distribuio de benefcios a vrios candidatos, quando de seleo daqueles que podem melhor dominar a espcie e o nvel do trabalho acadmico em determinada instituio. Os que vem o problema como distribuio de benefcios fazem objeo aos critrios de admisso que beneficiam em princpio os brancos de classe mdia. Focalizar arbitrariamente os diferentes grupos de candidatos ignorar aqueles que tm mais em jogo no caso da medicina, os doentes que necessitam de tratamento mdico. Tambm noutros campos, ignorar o interesse de terceiros a quem mais importa o que fazem as instituies de ensino superior e a qualidade com que o fazem. Os candidatos s escolas de engenharia no tm tanto em jogo quanto milhes de outras pessoas cuja vida depende da qualidade da engenharia aplicada nas pontes sobre as quais transitam, ou nos avies em que voam, ou nos equipamentos com que trabalham. (SOWELL, 2004, passim)

A Universidade no um espao propriamente democrtico, mas, sim, aristocrtico; aquele elemento aristocrtico necessrio para o equilbrio e harmonia de uma sociedade democrtica, pois, afinal, como afirmou Allan Bloom, se a democracia no pode tolerar a presena dos mais altos padres de aprendizado, ento a prpria democracia se torna questionvel (Bloom, 1990, p. 245). Entretanto, o esforo igualitarista para democratizar a Universidade ataca precisamente o mrito. Afirma o clebre jusfilsofo John Rawls queTalvez alguns pensaro que uma pessoa com maiores dons naturais merea aquelas vantagens e o carter superior que tornou possvel seu desenvolvimento. Porque mais digno neste sentido, merece as maiores vantagens que puder alcanar com seus dons. Esta viso, entretanto, certamente incorreta. Um dos pontos recorrentes de nossos juzos analisados at agora que ningum merece o seu lugar na distribuio dos dons naturais, mais do que merea seu ponto de partida na sociedade. Afirmar que um homem merece o carter superior que lhe permite esforarse para cultivar suas habilidades igualmente problemtico, pois seu carter depende largamente de uma famlia privilegiada e de circunstncias sociais, pelas quais no tem mrito algum. No parece aplicar-se a noo de merecimento a tais casos. Dessa forma, o homem representativo mais privilegiado no pode dizer que o merea e, portanto, que tenha direito a um esquema de cooperao no qual lhe seja permitido adquirir benefcios de modo que no contribuam ao bem-estar alheio. (RAWLS, 1973 apud MOEHLECKE, 2004)

O problema com tal proposio reside no fato de que Rawls toma a desigualdade natural de talentos, bem como o aperfeioamento proporcionado pela entidade familiar que podem tornar uns mais preparados que outros como injusta a priori, ocultando a uma petio de princpio21. Ele no esclarece, ademais, seOcultamos uma petitio principii ao postular o que desejamos provar: (...) se precisamos demonstrar uma verdade geral e fazemos com que se admitam todas as particulares SCHOPENHAUER, Arthur. Como vencer um debate sem precisar ter razo. Rio de Janeiro: Topbooks, 1997, p. 13821

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essa rejeio se d porque esta desigualdade logicamente falsa ou simplesmente porque no politicamente correta. Contrapondo-se a Rawls, aduz Sowell queFaculdades e Universidades no foram criadas para distribuir benefcios a candidatos, mas para cultivar mentes e capacitar gente para servir sociedade. Os critrios que valem so os que permitem que as instituies se desempenhem dessa responsabilidade, a qual no se pode subordinar impossvel tarefa de equalizar possibilidades de sucesso acadmico de pessoas nascidas e criadas em circunstncias que prejudicaram o seu desenvolvimento, mesmo no por culpa delas e por motivos fora de seu controle. (SOWELL, 2004, p. 152)

O igualitarismo radical, nas Universidades, redunda numa posio tal que se supe que o mrito acadmico deveria ser um bem igualmente repartido. Os igualitrios interpretam a desigualdade de dons de duas maneiras alternadas: aquele que no possui as qualificaes acadmicas necessrias, ou foi delas privado, ou so elas falsas (BLOOM, 1990, p. 389). A produo e a proteo da alta cultura aplicada aos avanos tcnicos e cientficos: tal se afigura a misso precpua do ensino superior22, aquilo que o distingue do ensino mdio, fundamental e tcnico strictu sensu. Para o alcance destes valores e para frear a converso das instituies de ensino superior em meras escolas polticas a servio dos inimigos das sociedades abertas preciso defender o mrito e a excelncia como condies sine qua non para a vida e a liberdade acadmica. 4.2 A IGUALDADE NO ACESSO AO ENSINO SUPERIOR NO BRASIL A Constituio Federal, tratando da educao superior e do seu acesso, consagrou-a como um direito de todos os indivduos, nos seguintes termos:Art. 6 So direitos sociais a educao, a sade, o trabalho, a moradia, o lazer, a segurana, a previdncia social, a proteo maternidade e infncia, a assistncia aos desamparados, na forma desta Constituio. (...) Art. 205. A educao, direito de todos e dever do Estado e da famlia, ser promovida e incentivada com a colaborao da sociedade, visando ao22 o

Ainda que a Universidade no seja detentora do poder monopolista sobre tal produo e proteo, especialmente no campo das cincias humanas.

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pleno desenvolvimento da pessoa, seu preparo para o exerccio da cidadania e sua qualificao para o trabalho. Art. 206. O ensino ser ministrado com base nos seguintes princpios: I - igualdade de condies para o acesso e permanncia na escola; (...) VII - garantia de padro de qualidade. (...) Art. 208. O dever do Estado com a educao ser efetivado mediante a garantia de: I - ensino fundamental, obrigatrio e gratuito, assegurada, inclusive, sua oferta gratuita para todos os que a ele no tiveram acesso na idade prpria; II - progressiva universalizao do ensino mdio gratuito; (...) V - acesso aos nveis mais elevados do ensino, da pesquisa e da criao artstica, segundo a capacidade de cada um; (grifos nossos)

A Constituio Federal previu a universalizao do ensino bsico e mdio (Art. 208, I e II). O acesso ao nvel superior, entretanto, no restou condicionado universalizao, sequer progressiva, como o ensino mdio, mas sim num acesso baseado em um critrio meritocrtico, visto que o constituinte de 88 reconheceu a realidade inescapvel de um nmero limitado de vagas no ensino superior contraposto ao nmero ilimitado de candidatos a estas vagas, prescrevendo a igualdade nas condies de acesso (Art. 206, I). Vimos, com Aristteles, que o mrito possui diferentes facetas, devendo, entretanto, restar coerncia entre o fator de discrmen e o objeto discriminado. Desta maneira, o nico critrio de relevncia para a Academia , obviamente, o mrito acadmico, medido pelo exame vestibular. O exame vestibular um processo seletivo por meio do qual o candidato avaliado na quantidade de informaes apreendidas durante o ensino mdio e fundamental, tanto na rea de humanidades como nas reas naturais, havendo somente a distribuio de pesos diferentes s matrias em funo da rea escolhida pelo vestibulando. Em que pese o vestibular ser objeto de crticas, em face da sua falibilidade, no existe outro sistema que a curto ou mdio prazo possa ser adotado em sua substituio, diante das distores gritantes na qualidade do ensino ministrado nas escolas nacionais, pblicas e privadas. A disputa pelo nmero limitado de vagas nas Universidades pressupe a possibilidade de diferenciao dos candidatos. Por isto, a igualdade nas condies de acesso Universidade no pode ser interpretada como uma igualdade de ponto de chegada, por razes bvias. A igualdade absoluta no aprendizado tambm no

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conditio sine qua non para a viabilidade do sistema, porquanto tecnicamente impossvel que todos recebam absolutamente a mesma educao, e nem razovel supor que todos apreendero na mesma razo, ou se empenharo o mesmo tanto nos estudos pr-vestibulares. Ademais, o carter igualitrio do Vestibular se reveste no fato de que se trata de uma prova absolutamente igual para todos os candidatos, independentemente de sua cor, classe, origem tnica, religio, gnero ou orientao sexual. Mais que isso, trata-se de uma prova impessoal, em que aqueles encarregados da sua correo exercem seu ofcio sem qualquer tipo de identificao pessoal com o candidato, o qual identificvel apenas por um nmero na folha de resposta, preenchendo, pois, os comandos constitucionais de igualdade (Art. 3, IV e 5 caput, 206, I e 208, V da Constituio) e da impessoalidade, moralidade e eficincia (Art. 37, caput do mesmo diploma poltico). Note-se, ainda, que a no aprovao no vestibular no significa a incapacidade do candidato para o ingresso no ensino superior, mas somente o seu distanciamento do nvel demonstrado pelos demais candidatos quela instituio especfica em que pleiteia admisso. Um determinado candidato, oriundo de escola pblica, pode no possuir nota suficiente para o ingresso na USP, na UFBA ou na UESC, mas possuir qualificaes suficientes para a UNEB ou a UCSal. A ao afirmativa estatal a muda de espcie: de forar a acessibilidade deste estudante numa Universidade na qual ele no possuir (em tese) o mesmo nvel de seus colegas para polticas pblicas que garantam a sua permanncia num curso compatvel com o seu nvel demonstrado na prova, o que se resolve com programas de ao afirmativa tais como financiamento estudantil, bolsas de estudo ou vouchers. Ganhou destaque na mdia nacional, no ano de 2006, a divulgao de pesquisa pela Universidade Federal da Bahia indicando uma paridade nos desempenhos acadmicos entre cotistas e no-cotistas, indicando que os cotistas obtiveram mdias iguais ou superiores s dos no-cotistas23. Estes dados, segundo os defensores das polticas de reserva de vagas, comprovariam a inexistncia de nexo entre as cotas e a queda do nvel acadmico da Universidade.

Desempenho de no cotista e cotista na BA semelhante. O Estado de So Paulo, 19 de julho de 2006. Disponvel em http://txt.estado.com.br/editorias/2006/07/19/ger-1.93.7.20060719.5.1.xml

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Permanecemos cticos, entretanto. A pesquisa da UFBA no conclusiva, por uma razo singular. Naquela Universidade, 80,3% dos candidatos que optaram pelo sistema de cotas no Vestibular 2005 foram aprovados sem o uso daquela poltica (ALMEIDA FILHO et al, 2005, p. 22). A Universidade, entretanto, no distinguiu na pesquisa o desempenho acadmico dos cotistas que foram aprovados independentemente do sistema os quais, aprovados por mrito prprio, no teriam por que figurar em plo oposto ao de outros aprovados no-cotistas para os fins propostos pela pesquisa dos que s puderam se matricular em funo das cotas estes sim, objetos reais de comparao com os demais estudantes.

4.3

DESIGUALDADES RACIAIS E SOCIAIS NAS UNIVERSIDADES PBLICAS BRASILEIRAS A base fundamental de todo pleito pela implementao dos sistemas de cotas

se lastreia na alegao de que pobres e/ou negros estariam sub-representados nas Universidades, como conseqncia de discriminao e racismo (MOEHLECK, 2004; ALMEIDA FILHO et al, 2005). Por esta razo, as cotas seriam necessrias, visando a romper com a tradio de excluso. A interpretao dos dados mais atuais, entretanto, no sustenta a tese da sub-representao. No ano de 2005, a Associao Nacional dos Dirigentes das Instituies Federais de Nvel Superior (ANDIFES) e o Frum Nacional de Pr-Reitores de Assuntos Comunitrios e Estudantis (FONAPRACE) tornaram pblico o contedo do 2 Perfil Socioeconmico e Cultural dos Estudantes de Graduao das Instituies Federais de Ensino Superior, uma pesquisa que contesta, nos seus dados, os dados de desigualdade e de nexo causal normal