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    Revista de Estudos da Religio maro / 2008 / pp. 142-166

    ISSN 16-1222

    Influncia Ismaili nos Batinis de Al-Andalus

    Cecilia Cintra Cavaleiro de Macedo*[cavaleirodmacedo uol.com.br]

    Resumo

    Tratada frequentemente pela denominao genrica de Sufismo (conceito construdo

    externamente e ocidentalizado a partir do termo tasawwuf), a espiritualidade islmica guarda

    em si uma mirade de facetas, expresses e diferentes abordagens cujo estudo reserva

    problemas especficos que so pouco considerados pelos estudiosos do tema. A questo

    central deste trabalho o estudo dos primeiros msticos de Al-Andalus (a Pennsula Ibrica

    islamizada), chamados batinis, levantando possveis influncias xiitas, especialmente dacorrente ismaili, atravs de textos e de missionrios (dai) que foram intencionalmente

    enviados a todas as partes do mundo islmico. Estes missionrios teriam vivido ocultos sob

    a proteo externa do ascetismo Sufi, especialmente a partir da queda do califado de Bagd.

    Palavras-chave: Ismailismo, Sufismo, Al-Andalus, Islam, dawa.

    Abstract

    Islamic spirituality, frequently referred to as Sufism (an externally constructed and

    Westernized concept based on the word tasawwuf), includes a myriad of facets, expressions,

    and different approaches, whose study raises specific issues which are rarely considered by

    Islamic scholars. The central question of this work is the study of the early mystics from Al-

    Andalus (the Islamized Iberian Peninsula). These mystics were refered to as batinis,

    indicating possible Shiite influences, particularly of the Ismaili sect, through texts and

    missionaries (dai) which were intentionally sent to all parts of the Islamic world. These

    missionaries would have lived hidden under the external protection of Sufi ascetism,

    especially after the fall of the Caliphate of Baghdad.

    Keywords: Ismailism, Sufism, Al-Andalus, Islam, dawa.

    * Doutora em Cincias da Religio PUC-SP

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    O Estudo da Mstica Islmica

    A Mstica1 enquanto fenmeno ou categoria de experincia humana (bem como seus

    produtos e expresses, sejam eles apresentados como obras literrias ou no) j nosoferece suficientes problemas como objeto de estudo. Tais problemas decorrem das mais

    diferentes dificuldades, dentre as quais podemos citar: a prpria definio do objeto de

    estudo ou sua delimitao frente a outras produes semelhantes, sua classificao, alm

    da delimitao entre seu mbito e o dos demais fenmenos e experincias humanas. A

    diversidade de fenmenos e produes aos quais podemos atribuir o qualificativo de

    msticos complica ainda mais o quadro. Por fim, o estranhamento que nos invade, ao

    entrarmos em contato com um tipo de material que no necessariamente segue as regras

    lgicas e a ordem com a qual estamos acostumados, completa o quadro de dificuldades. Isto

    faz com que o estabelecimento de uma ou mais disciplinas especficas para o estudo deste

    objeto seja uma tarefa extremamente difcil.

    Ao tratarmos dos fenmenos e produes de cunho mstico no seio do Cristianismo, pelo

    fato de estarmos mais acostumados linguagem utilizada e mais familiarizados com o

    1 Explico a preferncia pela utilizao do termo Mstica, em razo de sua origem grega e apropriao latina,ainda que no exista nas lnguas semitas (ao menos no rabe e no hebraico) palavra que correspondaexatamente a este significado. Ao consultarmos um dicionrio comum verificamos que o termo Mstica

    apresenta as seguintes definies: estudo das coisas divinas e espirituais; vida religiosa e contemplativa;misticismo; crena ou sentimento arraigado de devotamento a uma idia; essncia doutrinria (BUARQUEDE HOLLANDA, A. verbete Mstica), o que indica que os termos Mstica e Misticismo poderiam, grossomodo, ser utilizados como sinnimos. Porm, ao nos deslocarmos em direo a obras de referncia maisespecializadas, notamos que o termo Msticamantm suas relaes com sua origem grega e utilizaolatina, implicando necessariamente no conceito de segredo ou mistrio, o qual est intimamente relacionadoao sentido que lhe foi conferido inicialmente por Plato: At nossos dias, o significado religioso da palavratem sido mais ou menos o derivado da maneira que Plato utilizou. Segundo este, a divindade transcendente a nossa inteligncia, entretanto, esta pode alcanar certo conhecimento daquela o qual, aindaque seja obscuro, real e permite que os privilegiados adentrem a esfera divina. (DE SUTTER, 1987: 619;verbete Mstica). No mbito das religies monotestas, o termo Mstica foi utilizado e consagrado pelopensador neoplatnico Pseudo-Dionsio Areopagita, em sua obra Teologia Mstica (vertido para o latim comoDe Mystica Theologia), tendo sido largamente debatido e citado por todos os pensadores cristos medievais.Por outro lado, o termo misticismo adquiriu em nosso idioma e em grande parte das lnguas latinas um

    sentido pejorativo, associado a prticas mgicas e estados alterados de conscincia. Autores catlicoscostumam denominar estes processos independentes da especulao sistemtica em busca de Deus demisticismo (DE SUTTER, 1987: 629; verbete Misticismo), a fim de estabelecer a diferenciao. Ainda emrelao sua utilizao no contexto islmico, esta discusso abordada por Titus Burkhardt e apresentadalongamente em seu estudo Du Soufisme, p. 10 et seq. Aqui apresentamos a sua posio resumida: O termoMstica perdeu sua preciso por efeito do individualismo religioso, produto do Renascimento e, sem dvida,tambm por um certo choque de rejeio ao Racionalismo. Entretanto, seu sentido original nunca se perdeu,ainda que lhe tenham atribudo com freqncia significaes abusivas. Em todo caso, se Evgrio Pontico,Gregrio do Sinai, Mximo Confessor e Mestre Eckhart para no citar mais do que alguns exemplos somsticos, os sufis tambm o so. O termo misticismo aplica-se exclusivamente a uma variante muitoespecial e relativamente tardia da espiritualidade crist (BURKHARDT, In AL_YILI, 2001: 100, nota 1).

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    contexto no qual aquele tipo de pensamento se desenvolve, o estranhamento radical , de

    certo modo, amortecido. Mas se, por um lado, a familiaridade facilita a compreenso da

    linguagem utilizada e da situao social envolvida, por outro, a tendncia interpretao dosfenmenos, relatos e textos em geral como meras produes religiosas comuns e

    explicveis pela chave teolgica pode fazer com que percamos aqueles elementos de

    originalidade propriamente mstica (experiencial) e mistrica (inicitica) que sobrevivem

    abaixo da superfcie da linguagem religiosa socialmente compartilhada. Na via inversa, ao

    passarmos ao estudo das expresses msticas de outras religies que no so dominantes

    em nosso meio social, os elementos propriamente msticos saltam mais aos nossos olhos,

    reforando o estranhamento. Entretanto, devido dificuldade que se apresenta pela falta de

    familiaridade com o contexto da linguagem teolgica das religies no-crists, enfrentamos orisco de interpretar inadequadamente o significado social e cultural de imagens, ritos ou

    mensagens em geral. Isto pode condenar-nos a tomar equivocadamente por msticos

    elementos e imagens comuns quela forma religiosa em geral.

    O estudo da mstica islmica, especialmente no Ocidente, est longe de ser um tema

    esgotado, classificado e propriamente conhecido. Tratada frequentemente pela

    denominao genrica de Sufismo (conceito construdo externamente e ocidentalizado a

    partir do termo tasawwuf), a espiritualidade mstica islmica guarda em si uma mirade defacetas, expresses e diferentes abordagens, cuja anlise reserva problemas especficos

    que so, de modo geral, evitados pelos estudiosos do tema, ainda que encontremos

    excees. Conforme Burkhardt, Parece-nos legtimo denominar o sufismo mstica

    muulmana, sempre com a condio de utilizar o termo mstica em seu sentido original e

    preciso2: o sufismo tem por objeto um conhecimento cuja natureza ntima um mistrio que

    no pode ser plenamente comunicado pela palavra(BURKHARDT, Introduo, In AL-YILI,

    2001: 2). Segundo Poliakova, o estudo desse importante fenmeno apresenta dificuldades

    considerveis, porque o Sufismo caracterizado por um grande nmero de interpretaes

    individuais (POLIAKOVA, 2003). Poliakova levanta ainda uma dificuldade adicional, posto

    que uma das grandes questes seria, a seu ver, a aparente discrepncia entre a

    terminologia utilizada na poesia e nos tratados mais especulativos. Mas muito alm dos

    problemas apontados pela autora, e antes mesmo de buscar pontes entre a literatura

    2 Explicado acima na nota 1.

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    especulativa e a poesia ou de estabelecer as diferenas entre os autores individuais (como

    faramos em qualquer corrente mstica ou filosfica), cabe indagar se o termo genrico

    Sufismo uma categoria justa, aplicvel e adequada s diferentes expresses da msticaislmica. Cabe indagar se no seria esta, ao menos como utilizada pelos orientalistas

    ocidentais, uma categoria vaga que se refere genericamente a toda e qualquer expresso

    mstica nos moldes da tradio islmica, aguardando por estudos mais detalhados que

    diferenciariam uma srie de formas mais especficas a partir de novos critrios.

    Diferentes correntes do sufismo so caracterizadas por uma extrema variedade

    e um nico Sufismo jamais existiu. Esta a razo pela qual, ao tentar distinguir

    os princpios que so mais ou menos comuns a todas as correntes,inevitavelmente chegamos a um (alto nvel) de abstrao que s

    aproximadamente reflete o real estado das coisas. (BERTELS apud

    POLIAKOVA, 2003: 1)

    A nosso ver, a adequada compreenso da mstica islmica no pode ser atingida

    independentemente do estudo da construo e desenvolvimento do Islam enquanto tal. Com

    isto queremos dizer que no podemos olhar para as expresses da mstica islmica como

    uma sabedoria desprovida de um arcabouo terico ao qual necessariamente se filia, bem

    como de expresses literrias e imagticas j sedimentadas, sob pena de interpretarmos

    erroneamente a inteno daqueles autores. Consequentemente, esse arcabouo terico

    est relacionado tambm s diferentes expresses regionais, s correntes de pensamento,

    s escolas de interpretao e aos movimentos teolgicos, simultneos ou que se

    sucederam, no processo de constituio do Islam enquanto religio estabelecida com

    pretenses universais.

    Conforme a crena, Maom j previra as diversas facetas nas quais o Islam iria se

    desdobrar. As 73 seitas previstas pelo hadithrelatado por Abdullah bin Amar tomam forma

    atravs do curso da histria, oferecendo-nos a riqueza de interpretaes que compem o

    universo da espiritualidade islmica. Do ponto de vista dos estudiosos do mundo ocidental

    cristo, poucas diferenas so levadas em considerao alm das mais bvias,

    apresentadas entre os ramos xiita e sunita. Mas apesar de compartilhar da mesma crena,

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    dos mesmos compromissos bsicos e obrigaes, a Umma3 apresenta uma srie de

    variantes adicionais, devidas tanto ao estabelecimento do Islam sobre as mais diversas

    culturas preexistentes, quanto aos diferentes desenvolvimentos filosfico-teolgico-jurdicos.Deste modo, o Islam do Maghrebno o Islam da antiga Prsia e no pode ser analisado

    com as mesmas categorias. Assim, a mstica islmica que se h de encontrar em um lugar

    no ser de modo algum idntica que encontraremos em outro. Mesmo em termos de

    diviso poltica, h que lembrar que, durante certos perodos da Idade Mdia, chegamos a

    contar com as orientaes concomitantes de trs califados comandados por dinastias muito

    diferentes entre si: Bagd (Abssida), Cairo (Fatmida) e Crdoba (Omada). Apesar desse

    fato, temos sempre que considerar que as influncias das diferentes escolas de pensamento

    atravessaram rapidamente terras e mares, durante o perodo medieval, nas bagagens deperegrinos, viajantes e comerciantes.

    No caso particular deste trabalho, interessa-nos o chamado Islam Ocidental, e mais

    especificamente, Al-Andalus. Contando com no mnimo sete sculos de influncia e poderio

    islmico, ainda que concentrados num processo um pouco mais tardio, e apresentando,

    talvez, uma gama mais restrita de tendncias, o universo de influncias tericas que

    podemos encontrar na Espanha Medieval no de todo diferente do encontrado no restante

    do mundo islmico medieval. Por esta razo, ao analisarmos a produo ibrica devemosconsiderar as mesmas tendncias intelectuais que encontramos no Oriente, equivocando-se

    os estudiosos que desejam ver uma unidade artificial construda sobre a dispensa das

    diferenas que os grandes msticos ibero-muulmanos ofereceram.

    exceo de Ibn Arabi (Al-Sheikh Al-Akhbar), o qual em si j representa uma sntese de

    seus antecessores, a espiritualidade andaluza pouco explorada. Isto ocorre no somente

    no Ocidente, mas tambm no Oriente islmico. Disso decorre que suas origens encontrem-

    se ainda mergulhadas em sombras que confundem nosso olhar mais analtico quanto sinfluncias que, por ventura, veio a incorporar. Dentre estas influncias, chama-nos a

    ateno a possibilidade de que o pensamento xiita Ismailitenha sido muito mais expressivo

    do que a primeira vista podemos avaliar, seja atravs das obras que circulavam livremente

    na poca e regio, seja atravs da presena fsica dos dai os missionrios fatmidas:

    3 Umma: Comunidade islmica.

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    Em meados do sculo 3/9, os Ismailis organizaram um movimento poltico-

    religioso secreto designado al-dawa(a misso) ou, mais precisamente, al-dawa

    al-hadiya. (...) A mensagem revolucionria da dawa Ismaili foi propagadasistematicamente por uma rede de dais, ou missionrios poltico-religiosos em

    diferentes partes do mundo islmico, da Transoxnia ao Yemen e Norte da

    frica (DAFTARY, 1999: 29).

    Estes missionrios enviados a todas as regies, bem como as obras que consigo levavam,

    podem ter deixado sua marca com fortes tintas no pensamento ibrico, ainda que a maioria

    dos estudiosos no tenha atentado para este fato, e esta corrente de pensamento se

    encontre historicamente mesclada com a imagem geral do Sufismo na pennsula. Mas, uma

    vez que a atividade de propaganda fatmida foi to influente no norte da frica, foroso

    pensar que tenha tambm atravessado o estreito de Gibraltar. Conforme Alves,

    Para alm do clima de crise e dissoluo poltica que reinava na pennsula

    islmica, o Gharb, como zona perifrica mais distante do controle teolgico do

    poder central Almorvida, fervilhava da influncia das idias sufis, em boa parte

    trazidas do Oriente, a que se adicionavam, no raro, contribuies tingidas de

    xiismo, principalmente ismaelita (ALVES, 2001: 78).

    O prprio termo Sufismo apresenta diferentes significados conforme os autores que o

    utilizam. Entendido genericamente como mstica islmica organizada em ordens esotricas,

    estruturadas segundo regras e hierarquias definidas em torno de um sheikhou pirao qual os

    discpulos devem obedincia, a histria mostra que nem sempre foi assim. Num primeiro

    momento, o termo se referia aos ascetas, na maior parte das vezes solitrios e mendicantes.

    Denominados Ahl al-Sufa, numa fase inicial, era associado aos homens que aguardavam

    pela mensagem de Maom e, mais tarde, esperavam nas mesquitas pela caridade alheia.

    Este breve perodo foi caracterizado por seu carter asctico e eremtico, ainda que o Coro

    condene textualmente o afastamento da sociedade. Numa fase um pouco posterior, a

    mstica islmica passa a assumir uma feio mais intelectualizada que veio a nos legar

    pensadores profundos, ainda que a filosofia racional moderna no os reconhea enquanto

    filsofos. Tais ascetas e mesmo os grandes pensadores eram, na maior parte das vezes,

    homens tambm solitrios que eventualmente se cercavam de um crculo restrito de

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    discpulos. Podemos notar que a busca do companheiro de jornada tema recorrente,

    tanto na literatura, quanto nas biografias dos grandes santos ou pensadores.

    Posteriormente, estes discpulos vieram a conformar ordens regulares a fim de eternizar oensinamento ou o mtodo dos grandes mestres, na maior parte das vezes, somente aps

    suas mortes.

    Em maior ou menor grau, dependendo do momento histrico que o Islam como um todo ou

    alguma provncia determinada atravessava, os crculos msticos passaram a ser vistos pela

    hierarquia poltica e jurdica como ameaas. Isto fez com que, na tentativa de resguardar-se

    de acusaes e perseguies, os Mestres do Caminho Mstico se revelassem cada vez mais

    adeptos da ortodoxia. Sabemos que falar em ortodoxiano Islam no fcil, uma vez queno h estrutura hierrquica estabelecida e as obrigaes bsicas j esto previstas no

    Coro. O conceito mesmo de ortodoxia foi sendo modificado, variando histrica e

    geograficamente, conforme o grupo que assumia o poder. Mas essa ortodoxia, em grande

    parte da histria e em grande parte das regies administradas pelo Islam, foi

    majoritariamente sunita. Este processo fez com que o tasawwuf ou Sufismo tenha sido

    entendido por muitos autores como a espiritualidade inerente ao Islam sunita, em

    contraposio espiritualidade xiita, corrente que, pelo fato de carregar consigo desde seu

    incio uma proposta de regra de vida mais dedicada espiritualidade, considerava a simesma a autntica depositria da espiritualidade islmica (SEGOVIA, 2005: 34). Vale

    ressaltar que, nos dias atuais, a maioria das ordens Sufisainda em atividade refora sua

    independncia frente a sunitas e xiitas, advogando representarem uma vertente

    independente no Islam.

    Os problemas principais que a busca mstica apresentava para as autoridades estabelecidas

    partiam do fato de que aqueles crculos se dedicavam s atividades de interpretao do

    texto cornico de um modo mais livre dos preceitos e regras religiosas, tal como eramentendidas pelo vulgo e pelos telogos. E mais: esta atividade tinha lugar, no raramente,

    em comunidades apartadas das grandes instituies religiosas coletivas, o que gerava,

    obviamente, uma maior desconfiana por parte das autoridades estabelecidas. Para alm

    destas questes, um srio assunto teolgico provocado pela busca mstica, precisamente

    um problema em torno da relao entre Revelao, Profecia e Santidade. Uma vez que

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    Maom o Selo da Profecia4, ningum pode afirmar ter recebido orientao direta sem

    despertar suspeitas de heresia. Em um sem-nmero de casos esta questo teolgica

    fundamental, supostamente desrespeitada pelos crculos msticos, gerou problemas emrelao ortodoxia dos fuqaha5, e grande parte das acusaes formuladas contra os

    msticos no Islam esteve relacionada a este ponto especfico.

    Como pensar o caminho mstico sem mediaes, ou o contato direto com a Luz divina, se a

    Profecia est encerrada com o Profeta Maom? Muitos autores, tanto os msticos quanto os

    chamados telogos racionais, dedicaram-se a tentar diferenciar profecia de santidade6 e

    explicar os tipos de uma e de outra, com os mais diversos fins. Uns o fizeram para justificar-

    se perante a comunidade, como no caso dos msticos como Ibn Arabi, definindo a si prpriocomo selo da santidade; outros se dedicaram ao assunto a fim de que este dogma no fosse

    abalado por afirmaes sugerindo deificao ou contato direto com Deus, como os telogos

    frente famosa frase Ana Al-Haqq ("Eu sou a verdade") de Hallaj, a qual terminou por

    valer-lhe a vida.

    Por advogar a possibilidade de continuidade da Revelao proftica, ainda que no com a

    mesma fora que inspirou o profeta Maom, o Islam xiita em geral e, em especial a corrente

    Ismaili, foi visto com reservas por aqueles que acreditavam que toda a verdade j estavarevelada no Coro, que professavam a interpretao literal das escrituras e confiavam na

    retirada radical da inspirao proftica do mundo humano aps seu selo, Maom.

    A simples walaya(proximidade de Deus, traduzida normalmente por Santidade) advogada

    pelo Sufismo, dependendo da extenso que vem a assumir, pode j ser o bastante para

    configurar ameaa aos olhos dos juristas mais extremados. As ordens esotricas, muitas

    delas j estabelecidas a partir do sculo XIII em torno de um mestre ou wali reconhecido

    pela comunidade ao qual deviam obedincia, concorriam tambm, enquanto comunidadesautnomas dotadas de regras de vida particulares, com a estrutura hierrquica jurdico-

    poltica estabelecida, gerando mais suspeitas. Porm, se comparamos as suspeitas que

    4 O ltimo entre os Profetas.

    5 Fuqaha juristas; plural de faqih.

    6 Este tema discutido tambm em meu artigo anterior Profecia e Santidade em Heschel e Ibn 'Arabi. ltimoAndar, So Paulo, n.10, p. 59-77, 2004.

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    recaam sobre as ordens sufis declarada inteno de eliminao de algumas das correntes

    do Islam situao pela qual passaram particularmente os ismailis a situao dos sufis

    poderia parecer confortvel. Isto se deveu especialmente perseguio que se instalou emdiversas regies, especialmente aps a queda do califado fatmida (909-1171) e da

    anexao do Egito por Saladino.

    Vale observar que a dinastia fatmida foi fundada originariamente a partir da Ifriqya, na qual

    um dirigente, legitimando suas pretenses por sua descendncia do Profeta atravs de sua

    filha Ftima e Ali ibn Abu Talib, declarou-se califa. A partir de seu estabelecimento em

    Kairoun, estendeu seu poder a todo o Maghreb (Marrocos, Arglia, Tunsia e Lbia); os

    fatmidas entraram no Egito em 972, estabelecendo a capital em Al Qahira (Cairo) eseguiram conquistando localidades vizinhas chegando a governar da Tunsia Sria, tendo

    aportado at mesmo Siclia. Com a supresso do califado, muitos ismailis passaram a

    viver ocultos, desenvolvendo secretamente suas reais crenas religiosas sob muitos

    disfarces.

    As relaes entre os Ismailise outras comunidades religiosas do mundo Islmico

    foram frequentemente caracterizadas por longos perodos de conflito, uma vez

    que eles foram muitas vezes entendidos e perseguidos por outros comohereges. Sob tais circunstncias adversas, os Ismailisforam obrigados atravs

    de grande parte de sua Histria a praticar taqiyya, ou dissimulao por

    precauo, ocultando suas verdadeiras crenas religiosas ou adotando

    diferentes aparncias externas, incluindo Sufi, Sunita, xiita duodecimano ou

    mesmo Hindu, para sua prpria proteo (DAFTARY, 2001, s.pp.):

    No processo de represso aos concorrentes levado a cabo pelos abssidas e frente

    poltica de aniquilao de qualquer vestgio do poderio fatmida, o tasawwufrepresentou um

    excelente esconderijo para os msticos das mais diversas origens e diferentes crenas. No

    caso especfico da Pennsula Ibrica, o fato de que os primeiros msticos consideramos

    aqui aqueles que precederam a Ibn Arabi foram referidos sempre como batinis, refora

    mais ainda nossa hiptese, uma vez que o termo que se aplica tanto aos ismailis, porque

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    afirmavam que o Coro continha um sentido oculto (batin), como aos sufis, que acentuavam

    o aspecto interior (batin) da religio (STERN, 1983).

    O Pensamento Ismaili

    A teologia ismailifoi elaborada primeiramente sob a dinastia fatmida estabelecida no Egito.

    A partir daquele plo, missionrios propagandistas (d ) foram enviados a diversos lugares,

    ganhando a simpatia de diversos grupos descontentes (HALM, 1996: 91-93). O reinado de

    Al-Mutansir (1036-94) foi um tempo de particular prosperidade, pois, ainda que tivessem

    perdido o controle poltico das regies do norte da frica, conseguiram um nmero imenso

    de converses. Estes primeiros ismailis tambm lanaram as bases das suas tradies

    intelectuais elaboradas posteriormente.

    Ainda no perodo fatmida,

    Fizeram uma distino fundamental entre os aspectos exotricos (zahir) e

    esotricos (batin) das sagradas escrituras e mandamentos religiosos,

    sustentando que todo significado literal implica uma realidade interna oculta

    (haqiqa). Essas verdades imutveis, as verdades comuns e eternas das religies

    reconhecidas no Quran foram efetivamente desenvolvidas, em termos de um

    sistema de pensamento gnstico pelos primeiros Ismailis. Este sistema

    representa um mundo esotrico de realidade espiritual, uma realidade comum s

    grandes religies monotestas da tradio Abrahmica (DAFTARY, 1996: 2).

    Em linhas gerais, certas particularidades da crena ismailipodem ter propiciado a facilidade

    de dilogo entre diferentes correntes e sistemas religiosos e filosficos. Dentre elas, figuram

    certas idias que representam verdadeiras pontes entre as correntes msticas das diferentes

    tradies. Neste sentido podemos citar:

    A. Pretenso universalista, acreditando poder aprender de diferentes fontes,

    especialmente com as diferentes religies e filosofias inspiradas. Essa caracterstica

    conferiu amplas possibilidades de trnsito em tradies msticas de diferentes

    religies.

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    B. Reconhecimento amplo da importncia dos Profetas como inauguradores e

    representantes das eras: Ado, No, Abrao, Moiss, Jesus e Maom, e, da stima

    era o Mahdi. Alm do reconhecimento explcito da importncia das figuras das outrasreligies abramicas, a espera do Messias estabelece um dilogo com a mstica

    judaica. J foi apontada a importncia da crena no Mahdi especialmente no Islan

    iraniano, no qual essa doutrina facilitou a converso do Zoroastrismo:

    Que a doutrina do Mahdiencontrou seu meio intelectual mais apropriado na

    cultura iraniana agora compreensvel. Iranianos que eram familiarizados com a

    idia do retorno do salvador atravs do Zoroastrismo, quando convertidos ao

    xiismo e, ento compartilhando ambos a escatologia xiita e suas condies devida infelizes, foram mais receptivos idia do Mahdi. (AHMADI, 1995: p. 275)

    C. Crena no Imam oculto, que compartilhavam com a totalidade dos xiitas, mas

    enquanto os Imamitas se contentavam com ter um Imamna completa ocultao, os

    Ismailis tendem a procurar por um Imamativo no mundo presente (WATT, 1985:

    127); conforme indicamos anteriormente, esta uma idia extremamente perigosa

    para a ortodoxia islmica.

    Vale ressaltar que a questo da relao entre linguagem e significao de fundamentalimportncia para a viso de mundo e sistema de crenas da vertente ismaili, representando

    mesmo a espinha dorsal da compreenso deste ramo do Islam. O tratamento conferido

    linguagem tornou-se praticamente um sinal distintivo assumido pelos prprios lderes dessa

    comunidade. Isto pode ser ilustrado atravs da importncia conferida ao tema por Azim Nanji

    (diretor do Instituto de Estudos Ismailis, sediado em Londres), o qual dedica ao assunto

    quase um quarto de um verbete de enciclopdia destinado apresentao das doutrinas

    dessa vertente islmica:

    Entre as ferramentas de interpretao das escrituras que esto associadas

    particularmente com a filosofia xiita e Ismaili est a do tawil. A aplicao deste

    termo cornico, que significa retornando ao primeiro/ ao incio marca o esforo

    no pensamento Ismaili de criar um discurso filosfico e hermenutico que

    estabelece a disciplina intelectual para a abordagem da revelao e criou uma

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    ponte entre filosofia e religio. Deste modo, a filosofia, como concebida no

    pensamento Ismaili, busca estender o significado da religio e revelao para

    identificar o visvel e o aparente (z hir

    ) e tambm para penetrar nas razes,reencontrar e revelar aquilo que seu interior ou segredo (b tin ). Em ltima

    instncia, essa descoberta engaja o intelecto (aql) e o esprito (ruh), funcionando

    de maneira integral para iluminar e revelar verdades (haqaiq). O modo

    apropriado de linguagem que melhor nos serve nessa tarefa , de acordo com os

    filsofos Ismailis, a linguagem simblica. Essa linguagem, que emprega

    analogia, metfora e smbolos, permite-nos fazer distines e estabelecer

    diferenas em direes em que uma leitura literal da linguagem no nos permite.

    Essa linguagem emprega um sistema especial de signos, o significado ltimodaquilo que pode ser desvelado pela aplicao apropriada da hermenutica

    (tawil). (Nanji, 2003: s.pp.)

    Por outro lado, as idias em relao linguagem apresentadas pelos ismailis so

    amplamente compartilhadas e defendidas por correntes msticas das demais tradies

    abramicas, especialmente aquelas que seguem o modelo neoplatnico (modelo este que

    influenciou profundamente a espiritualidade Ismaili, principalmente a partir de Nasir Kusraw).

    As idias gerais sobre a linguagem defendidas pela corrente ismaili possuem grandecorrespondncia com as linhagens msticas judaico-helnicas influenciadas por Filon de

    Alexandria e, com as correntes crists descendentes da proposta do Pseudo-Dionsio

    Areopagita. Dentre as idias que apresentam correspondncia podemos ressaltar: a

    utilizao necessria do tawil(interpretao esotrica das escrituras); a distino entre zahir

    (sentido externo ou literal) e batin (sentido interno ou esotrico) aplicado sua total

    compreenso do mundo, bem como aos textos sagrados; a abordagem negativa das

    qualidades de Deus. Muitos tericos afirmam a defesa desta abordagem negativa, uma vez

    que Ele (Deus, Allah) no seria nem substncia, nem matria, nem forma, nem teria nomes

    ou atributos, ainda que todos aceitassem a utilizao dessas expresses, desde que

    entendidas sempre numa chave simblica ou alegrica. Outra caracterstica comum tambm

    originria tanto das Escrituras como do platonismo/neoplatonismo utilizao do simbolismo

    da luz para a Criao, que ocorre por vontade livre de Deus:

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    Conforme um tratado sem ttulo de Ab s al-Mushid, nada existiu antes do

    espao e antes do tempo a no ser somente Deus. Sua vontade chamou a ser a

    criao, e a criao emergiu da luz, a qual emana do prprio Deus. A essa luzDeus disse o comando criativo: Kun! [Seja!] ou Torne-se! (HEINZ, 1996: 78).

    Esta abertura em direo s demais linhas da tradio abramica conferia aos adeptos da

    corrente ismailiuma grande vantagem em relao s linhas islmicas mais radicais. Isto se

    traduziria numa maior capacidade de penetrao em regies cuja populao no era

    predominantemente muulmana, como era o caso da Espanha medieval, ocasionando

    inclusive a disperso de certas idias para alm das comunidades muulmanas. Por outro

    lado, a proximidade geogrfica dos territrios j perdidos no norte da frica pode, do mesmo

    modo, ter levado adeptos a atravessarem o estreito de Gibraltar em busca de um ambiente

    em que reinasse maior tolerncia religiosa.

    Rasail Ikhwan Al-Safa

    Uma influncia que parece ter sido bastante importante em Al-Andalus tanto no que diz

    respeito s idias veiculadas quanto proposta de formao de crculos heterogneos de

    discusso filosfica a chamada Enciclopdia dos Irmos da Pureza (Rasail Ikhwan al-

    Safa). Este texto annimo gerou controvrsias entre os estudiosos a respeito de suaverdadeira autoria. Acredita-se nos dias de hoje que tenha sido composto, provavelmente,

    por um grupo de pensadores de Basra que formavam uma sociedade secreta. Consta que

    essa sociedade no era composta exclusivamente de indivduos de confisso islmica, o

    que, colabora tambm para a identificao deste material com as vertentes ismailis, uma vez

    que sempre primaram historicamente pela tolerncia religiosa, inclusive no aspecto poltico,

    especialmente para com cristos e judeus. Os Ikhwan jamais hesitaram em apelar em seus

    Rasail a outras escrituras do monotesmo abrahmico, como a Torah ou os evangelhos

    cannicos cristos(EL-BIZRI, 2006: 118).

    A relao do termo pureza ou sinceridade como por vezes traduzido Safacom o termo

    Sufij foi amplamente apontada. Suzanne Diwald, tradutora do texto ao alemo, parece crer

    que a Enciclopdia de origem exclusivamente sufi e no ismaili e seu contedo

    simplesmente mstico (DIWALD, 1975: 27). Na via inversa, diversos autores defendem a

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    orientao ismailido texto, posio que corroborada pela alta aceitao do texto entre os

    tericos dessa corrente e pelo fato de que essa obra reconhecida atualmente pelos

    filsofos ismailiscomo material prprio (NASR, 1993: 27). Em verdade, a dificuldade emestabelecer com certeza e exatido que alguma produo seja um material de origem ismaili

    imensa, a menos que alguma obra tenha sido publicamente assumida por algum dos

    autores que foram notoriamente dais. Esta extrema dificuldade decorre de vrias razes,

    das quais podemos sublinhar duas como as mais importantes: a primeira delas o fato de

    que o trabalho de recuperao dos materiais procedentes desta corrente ainda est em fase

    inicial, ao contrrio das demais vertentes filosficas e msticas do Islam.

    A descoberta dos estudos Ismailisteve que esperar a recuperao e estudo detextos genunos Ismailis em larga escala fontes manuscritas que foram

    secretamente preservadas em numerosas colees privadas. (...) Paul

    Casanova (1861-1926), que produziu importantes estudos sobre moedas

    Fatmidas e Nizari, foi o primeiro orientalista europeu a reconhecer a origem

    Ismailidos Ras il Ikwan al-Safa ... (DAFTARY, 2002: 11).

    A segunda razo a prtica constante da adoo de disfarces, no somente na vida pessoal

    dos autores, mas tambm na linguagem utilizada para a exposio de suas idias e nas

    posies defendidas veladamente em muitos textos. Em diversas obras, a linguagem foi

    intencionalmente atenuada, em virtude da perseguio qual estavam sujeitas aquelas

    idias, a fim de provocar menores reaes.

    O conjunto de textos que ficou conhecido como Enciclopdia dos Irmos da Pureza, ainda

    que no o tenha sido do modo como compreendemos o termo atualmente, conta com 52

    epstolas curtas abordando disciplinas diversas como astronomia, medicina, metafsica,

    angeologia, entre outras. Estes textos, ou Epstolas (Rasail-plural; Risalat-singular) como

    so chamados normalmente, apresentam ntidos propsitos educacionais, ou seja, de

    trazer perfeio as faculdades latentes do homem para que ele possa alcanar a salvao

    e a liberdade espiritual(NASR, 1993: 30). Vale ressaltar que, em termos de organizao

    social, a Irmandade (Ikwan Al-Safa) provavelmente era composta, conforme seus prprios

    escritos, no somente de indivduos oriundos das diversas tradies religiosas e regies

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    geogrficas, mas de seus crculos participaram tambm homens das mais diversas

    formaes profissionais e origens sociais. Acredita-se que, dentre eles, alguns chegavam a

    atravessar centenas de quilmetros para encontr-los.

    A introduo dessas idias no medievo espanhol deveu-se inicialmente a um resumo das

    Epstolas que circulava em Al-Andalus, supostamente trazido (ou mesmo composto) por

    Abu-l Qasim Maslama b. Ahmad, Al-Majriti, conhecido matemtico e astrnomo. Parece ter

    sido ele o primeiro em Al-Andalus a conhecer profundamente o Almagesto de Ptolomeu e o

    mais sbio na cincia das esferas celestes e dos movimentos das estrelas (SAID, 2000:

    146). Entre os discpulos que formou, figurava Abu-l Hakam Amr b. Abd al-Rahman b.

    Ahmad b. Ali al-Kirmani, figura notvel por seu conhecimento em aritmtica e geometria.Tendo viajado este ltimo ao Oriente, consta que chegou at Harran, onde aprofundou seus

    conhecimentos de medicina e geometria. Ainda conforme Said, a partir do comentrio de

    um discpulo seu, apesar de no ter ficado famoso por estas cincias, Abu-l Hakam al-

    Kirmani dominava a fundo as disciplinas tericas como a lgica e a astronomia. Retornando

    a Zaragoza, Al-Kirmani trouxe consigo, pela primeira vez a Al-Andalus, o texto completo das

    Epstolas dos Irmos da Pureza (SAID, 2000).

    O conceito de filosofia utilizado por estes autores bastante distinto daquele que veio a sero objetivo perseguido posteriormente por Ibn Rushd (Averrois) ou pelos filsofos puramente

    peripatticos (mashaiyun). Para eles, a filosofia era equivalente Hikhma(Sabedoria) e no

    seria admissvel adquirir conhecimento independentemente da busca da perfeio das

    qualidades espirituais e da proximidade do homem com Deus:

    Ao invs disso, eles identificavam filosofia com Hikmah, (Rasail, III, 324)

    contrariamente a um grande nmero dos primeiros escritores muulmanos que

    usaram a filosofia como sendo sempre sinnimo da sabedoria puramentehumana e Hikmahcomo uma sabedoria que tem sua fonte ltima na revelao

    trazida pelos antigos profetas. Filosofia, para os Ikhwan, a similitude maior

    possvel do homem com Deus. So os meios pelos quais mais uma vez a elite

    dos homens ou os anjos na terra aproximam-se do Criador Altssimo (Rasail, I,

    221). Seu uso a aquisio da virtude especfica da raa humana, aquela de

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    trazer atualizao todas as cincias que o homem possui potencialmente...

    Pela filosofia, o homem realiza as caractersticas virtuais de sua raa. Ele

    alcana a forma da humanidade e progride na hierarquia dos seres atatravessar o caminho reto (ponte) e a via correta, ele se torna um anjo... (Risalat

    al-Jamia, I,101) Pode ser facilmente visto que h uma conexo mais ntima

    entre essa concepo e o objetivo Pitagrico-Socrtico de purificao da alma

    humana do que com a lgica peripattica. (NASR, 1993: 34)

    Por esta concepo de filosofia como sabedoria em todos os sentidos e, especialmente,

    como gnose, os Ikhwan foram associados aos pensadores de Harran, entendidos como

    defensores de um certo pitagorismo Oriental e propagadores do Hermetismo no mundo

    islmico. Os nmeros desempenham um papel fundamental em suas teorias e na linguagem

    utilizada nas epstolas como um todo, sendo compreendidos enquanto a forma de expresso

    do Livro da Natureza, da qual derivaram os valores numricos das letras, que seriam

    capazes de desvelar os segredos tambm do Livro da Revelao (NASR, 1993). Assim, os

    Irmos da Pureza, bem como os antigos pitagricos e hindus, desenvolveram um

    simbolismo das letras (ilm al-jafr) similar ao utilizado pelos cabalistas judeus medievais, que

    veio a desempenhar importante papel na interpretao simblica ( tawil) do Coro entre as

    escolas iniciticas xiitas posteriores.

    Vale ressaltar tambm, conforme afirma Nasr, ao discorrer acerca da utilizao dos nmeros

    pelos Ikwan al-Safaque,

    Os nmeros pitagricos, sendo entidades qualitativas muito mais do que

    quantitativas, no podem ser identificados simplesmente com a diviso e

    multiplicidade como os nmeros modernos. Eles no so idnticos quantidade,

    ou seja, sua natureza no esgotada por seu aspecto quantitativo somente.

    Pelo contrrio, porque eles so uma projeo da unidade que jamais

    separada de sua fonte, os nmeros pitagricos, quando identificados com uma

    certa entidade existente no mundo da multiplicidade, integra essa entidade

    Unidade, ou Puro Ser, que a fonte de toda existncia. Identificar um ser com

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    um determinado nmero relacion-lo com a sua fonte atravs do vnculo

    interno que conecta todos os nmeros Unidade (NASR, 1993: 48).

    Para alm da influncia geral que o texto das epstolas possa ter exercido em Al-Andalus,sabe-se que o primeiro grande mstico hispano-muulmano, Ibn Masarra de Crdoba, esteve

    no Oriente, tendo entrado em contato com os crculos de estudo dos irmos da Pureza.

    Os Batinis de Andaluzia

    Considera-se que o primeiro importante mstico muulmano na pennsula ibrica foi

    Mohammed Ibn Masarra. Conforme Asn Palacios,

    bem significativo o fato de que antes de Ibn Masarra no se mencionassemtais escolas ou sociedades msticas na Espanha muulmana, ao passo que,

    depois de sua morte e ao lado daquela que ele fundou, aparecem duas similares

    em Sevilha e em Crdoba que se perpetuam at finais do sculo VI/XII (ASIN

    PALACIOS, 1992: 142).

    Mas a escola que ser considerada como herdeira do pensamento masarriser a chamada

    Escola de Almeria. A Ibn Masarra e seus discpulos seguiram-se, portanto, Ibn al Arif de

    Almeria e aqueles que disseminaram suas idias por outras cidades e suas regies deorigem, especialmente: Abu Bakr em Granada, Ibn Barrajan em Sevilha e Ibn Qas em

    Algarves (hoje Portugal).

    Ibn Masarra foi considerado herege desde cedo. No incio, as mensagens divulgadas por

    seu pensamento filosfico confundiam-se aos ouvidos da populao em geral com os ecos

    do bispo cristo Prisciliano de vila, cujo movimento hertico e provavelmente unitarista teve

    enorme aceitao na Espanha pr-islmica. Por sua amplitude, no podemos avaliar a

    grande repercusso que teve o fenmeno priscilianista, o qual pode ser abordado a partir demuitas perspectivas: desvios doutrinais, conflito social, relao entre o poder civil e

    eclesistico, monaquismo e ascetismo, etc. (MARTINEZ; BELTRN; GONZLES, 1999:

    71). Conforme Asn Palacios, os seguidores de Ibn Masarra poderiam ser entendidos como

    continuadores da gnose de Prisciliano (ASIN PALACIOS, 1992)7. Ainda que esses ecos no

    7 Miguel Asn Palacios tem uma trajetria intelectual curiosa. Iniciando seus estudos convencido de que em Al-Andalus encontraria um processo de cristianizao do Islam, parece ter modificado sua idia nos escritos

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    tenham sido satisfatoriamente demonstrados em termos de filiao filosfica, inegvel que

    em termos de repercusso e aceitao popular o movimento iniciado por Ibn Masarra

    manteve semelhanas com o ascetismo cristo de Prisciliano. Ambos representaram umareao frente mundanizao e politizao das respectivas religies de origem, significando

    o movimento priscilianista, conforme considera Blzquez, um protesto radical (BLZQUEZ,

    1982). Mas apesar do ncleo central do pensamento desses dois msticos ser comum, essa

    viso pode parecer demasiadamente cristianizante, se analisarmos a vida de Ibn Masarra e

    o conjunto de influncias s quais esteve sujeito.

    Ibn Masarra j trazia de famlia o gosto pelas discusses teolgicas especulativas. Seu pai

    Abd Allah o qual, curiosamente, no era de origem rabe era um freqentador decrculos sufis e mutazilitas e interessou-se por transmitir muito cedo ao filho esses

    interesses. Quando de sua morte, durante peregrinao Meca em 889, o filho contava

    ainda com dezesseis anos, mas j se encontrava rodeado de discpulos. Ibn Masarra retirou-

    se com seus discpulos a uma ermida na serra de Crdoba. Sua fama cresceu atraindo a

    ateno dos lderes religiosos e, muito cedo, recaiu sobre sua escola a acusao de

    atesmo. Aps as primeiras suspeitas de impiedade levantadas pelos fuqaha, Ibn Masarra

    partiu para Meca, sob pretexto de peregrinao. Durante esta viagem encontrou-se com as

    doutrinas do filsofo persa Al-Razi (Rhazes, morto em 932), adversrio declarado doaristotelismo e revivificador dos pr-socrticos, especialmente de Pitgoras e Empdocles.

    De sua amizade com Khalil Al-Ghafla, que advogava a interpretao simblica do Coro

    decorre o acirramento das desconfianas dos fuqaha. A situao torna-se mais grave devido

    sua ligao com os crculos de estudo dos Irmos da Pureza, desenvolvida tambm

    durante estas viagens. Conforme Garaudy, Os Irmos da Pureza estiveram obrigados

    clandestinidade desde o comeo de sua sociedade e ainda antes mesmo da publicao de

    seus trabalhos. Para este autor esta a razo pela qual formaram uma sociedade secreta.

    Ibn Masarra teria mantido contato em Basra com aqueles ambientes nos quais novas

    correntes iriam nascer, e nos quais o Islam ou algumas de suas vertentes d provas de

    sua abertura e de seu universalismo (GARAUDY, 1987). No Oriente, Ibn Masarra conhece

    mais tardios. Este processo verificado de modo bastante claro pelos estudos de Luce Lpez Baralt emdiversas passagens de suas obras.

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    tambm os ensinamentos do asceta egpcio Dhul Nun, para quem Deus a pura Luz, e o

    verdadeiro conhecimento a iluminao direta do corao pelo prprio Deus.

    Retornando pennsula, faz no Ocidente a sntese desse pensamento, sempre assentado

    na leitura alegrica das escrituras, seguindo a tradio comum s escolas batinis, seita

    ismaili no Islam, a Filon de Alexandria e posteriormente a kabbalah no Judasmo e a

    Prisciliano no Cristianismo ibrico. Infelizmente, mesmo os mais importantes textos de Ibn

    Masarra no nos so hoje acessveis8. Isto compreensvel por uma srie de circunstncias

    que cercaram sua vida e seus ensinamentos: compreensvel que o vu sob o qual se

    ocultava sua doutrina, o nmero restrito de seus discpulos, a imputao de heresia e

    impiedade que se uniu a seu nome sejam outras tantas circunstncias que explicam aescassez de meios com que hoje contamos para reconstruir seu sistema (CORBIN, 2000:

    204).

    Quanto s doutrinas que lhe so atribudas, destacam-se principalmente a preeminncia e

    esoterismo da filosofia e da psicologia; a absoluta simplicidade, inefabilidade e mvel

    imobilidade do ser primeiro; a teoria das emanaes estruturada sobre as cinco substncias,

    na qual entende as almas individuais como emanaes da alma do mundo; a preexistncia

    da alma e sua redeno. Mas o ponto que mais chamar a ateno e que prosseguir seucaminho pela histria da mstica e filosofia andaluzas, transcendendo os domnios do Islam

    e vindo inclusive a assumir sua forma filosfica mais perfeita no pensador judeu Ibn Gabirol,

    a questo da matria como primeira hipstase e a conseqente composio universal de

    tudo o que existe (sensvel e inteligvel) por matria e forma.

    Ainda que representasse ameaa ortodoxia estabelecida, a escola masarrfloresceu em

    Crdoba com relativa tranqilidade durante os reinados de Abd al Rahman III (912 a 961) e

    Al-Hakam II (961 a 976). Com o fim do perodo de Al-Hakam II e a subida de Al-Mansur aopoder, comea a chamada inquisio dos fuqahae a escola Masarr definitivamente

    condenada clandestinidade. Organizada sob o modelo do imamato, durante o perodo do

    ltimo Imamda escola, Ismail Ibn Abdullah Al-Roayni, produz-se um cisma a partir do qual

    8 Joseph Kenny traduziu ao ingls uma epstola de Ibn Masarra, um dos dois nicos textos a ele atribudos quesobreviveram aos sculos. Ver KENNY, J. 2002 Ibn-Masarra: His Risla al-i`tibr. Orita: Ibadan Journal ofReligious Studies, Nigeria, n. 34: 1-26.

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    os rastros da escola se perdem, ainda que os elementos de sua linha mstica tenham

    deixado marcas profundas nos pensadores posteriores. Aps a morte daquele Imam, no

    incio do sculo XI, Abu-l Abbas Ibn Al Arif fundou em Almeria uma nova tariqa(via espiritual)apoiada nos ensinamentos de Ibn Masarra.

    Nesse incio do sculo XI, Almeria passa a ser a capital espiritual de Al-Andalus; para aquela

    cidade acorrem diversos personagens ibricos em busca de ensinamento. No intervalo entre

    o desaparecimento oficial da escola masarri e o surgimento daquela organizada por Ibn Al

    Arif, um asceta muito popular pregava a unio da alma com Deus num sentido claramente

    pantesta: Muhammad ibn Isa. Esse ambiente religioso formou o esprito de Ibn Al-Arif, ainda

    que este autor ou seus bigrafos no tenham nos deixado os nomes de seus professores(ASIN PALACIOS, 1992). Sabe-se apenas que organizou uma nova tariqae restou-nos sua

    obra principal, Mahasin al Majalis(conhecida como Conferncias ou Sesses, tambm

    traduzida por Asn Palacios), obra esta que foi amplamente citada por Ibn Arabi. Vale aqui

    ressaltar que o termo majalis (plural de majlis) justamente o termo utilizado para as

    sesses de ensinamento que consistiam o ncleo da atividade de divulgao intelectual dos

    ismailis.

    Dos dais(missionrios) eram exigidas fortes qualificaes intelectuais, uma vez que a dawaera originariamente destinada educao religiosa dos convertidos e sua instruo na

    doutrina religiosa esotrica ismaili (hikhma). Este fato, associado estima que nutriam os

    dirigentes fatmidas pelo conhecimento, gerou uma srie de tradies e instituies de

    ensino. Neste sentido, eram organizadas sesses de ensinamento (majalis) direcionadas

    s mais diferentes audincias. Estas sesses foram formalizadas na poca do califa Imam

    al-Hakim (DAFTARY, 1999).

    De outros livros de sua autoria no nos sobraram maiores notcias. Sua insistnciarecorrente na necessidade da leitura alegrica e na utilizao de palavras acerca de Deus

    somente enquanto metforas extremamente acentuada:

    O conhecimento de Deus transcende a percepo da inteligncia e da alma

    sensitiva, exceto no que Deus um ente real. Toda expresso verbal (que tente

    explicar o que Deus ) mediante semelhanas com as coisas criadas ou

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    imagin-lo (por analogia) com os seres compostos e simples completamente

    diferente, aos olhos de um entendimento so, daquilo que Deus, por sua

    grandeza, . Racionalmente, nem essa concepo imaginativa de Deus lcitanem a Ele aplicvel aquela expresso verbal, de modo que uma e outra so

    prprias das criaturas. Se, pois, por acaso, alguma vez se empregam, ser to

    somente de modo aproximativo, que facilite a inteligncia do ouvinte a percepo

    da existncia de Deus, mas no a compreenso de sua essncia (BEN ALARIF,

    1987: p. 41-42).

    Pouco sabemos acerca do funcionamento de sua escola. Mas o medo que este novo

    personagem e sua escola geraram mais uma vez nos fuqahae que terminou por valer-lhe o

    exlio em Marrocos junto a alguns discpulos, bem como a adorao demonstrada quando de

    sua morte, indicam que Corbin deva estar correto ao afirmar que mais uma vez essa escola

    tambm esteve desde seu incio organizada em torno de um Imam. A propsito da tariqade

    Ibn Al-Arif, Corbin extremamente claro quando afirma que tanto sua doutrina teosfica

    como sua organizao apresentam significativos traos em comum com o Ismailismo

    (CORBIN, 2000: 207).

    O mesmo se deve dizer a respeito de seu discpulo Ibn Qas em Portugal que, organizando

    uma confraria armada, resistiu em Silves investida berbere. Passando para a histria de

    Portugal como lder da revolta dos muridin, Ibn Qas personagem extremamente

    controvertido, ao qual figuras como Ibn Arabi, por exemplo, recusam-se a dedicar qualquer

    palavra benvola. Conforme Alves, diversos aspectos da militncia dos muridinde Ibn Qas

    em Portugal correspondem ao pensamento ismaili e este autor traa inclusive algumas

    pontes com a doutrina dos Assassinos, escola lendria que funcionou sob a direo do

    Velho da Montanha (Shaikh al-Jabal), Hasan Sabbah:

    A propsito do ensinamento de Ibn Qas, afloraremos alguns aspectos da

    mensagem ismailita, bastando-nos por agora, reter que, para esta, a

    incognoscibilidade de Allah no obsta a que a humanidade dEle se aproxime,

    pois que a Razo Universal, em cadeia sucessiva, produz a Cincia, a alma

    universal (a Vida), a Matria Universal, o espao e o Tempo. As criaturas,

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    incluindo o homem, so animadas por um impulso para a alma Universal. No

    final dos tempos, Alma, Matria e Razo so impelidas para Allah, ingressando

    em Seu seio. A via para essa ascenso o saber transmitido por sete profetas:Ado, No, Abrao, Moiss, Jesus e Muhammad Ibn Ismail. A cada Profeta

    corresponde o seu Imam, ou guia espiritual que ministra os sete graus de

    Sabedoria Inicitica. (ALVES, 2001: 49)

    Se confiarmos que os primeiros dois desses trs mestres espirituais, Ibn Masarra e Ibn Al-

    Arif, os quais tambm foram lderes em suas comunidades, compartilhavam das mesmas

    idias e que Ibn Qas de Silves prosseguiu essa mesma linhagem, nossa hiptese parece

    ainda mais plausvel, posto que reforada pela militncia armada mahdista (messinica)

    dos muridinem Portugal. Ainda que ambos os lderes dessas escolas (Crdoba e Almeria)

    tenham sido altamente cultos, letrados e versados em filosofia, a insistncia na limitao da

    linguagem, associada ao modelo de organizao adotado, justifica nossa suspeita de que,

    longe de terem sido ascetas comuns recolhidos em suas ermidas, foram profundamente

    influenciados pelas idias fatmidas, se no foram, eles prprios, missionrios.

    Infelizmente, a organizao e o funcionamento da dawa Ismailiencontram-se at os dias

    atuais entre os aspectos mais secretamente guardados do Ismailismo Fatmida (DAFTARY,

    1999). Portanto, no de surpreender que a literatura ismailirecuperada modernamente

    seja to pobre no que se refere a tais informaes, especialmente quanto aos missionrios

    enviados a locais que jamais chegaram a formar parte do califado do Cairo.

    A influncia direta das concepes Ismailisna Pennsula Ibrica um tema que ainda est

    para ser bem explorado. Mas a partir da grande repercusso da Enciclopdia dos Irmos da

    Pureza e da ntida expresso ismailique passa a apresentar a herana do pensamento

    masarri desde a escola de Ibn Al-Arif de Almeria at a revolta dos muridinem Portugal com

    Ibn Qas no nos restam dvidas quanto fora de penetrao que essas idias deveriam

    dispor nesse momento. Conforme Schlomo Pines, nada h de impossvel sobre o fato de

    certas concepes Ismailis terem circulado nos ambientes intelectuais da Espanha, muito

    acolhidas pelos filsofos e as cincias do Oriente(PINES, 1996: 20).

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