Identidades de educadoras sociais: trajetórias de vida e formação
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UNIVERSIDADE DE SO PAULO
FACULDADE DE EDUCAO
ISABEL CRISTINA BUCCINI
Identidades de educadoras sociais:
Trajetrias de vida e formao
So Paulo,
2007
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ISABEL CRISTINA BUCCINI
Identidades de Educadoras Sociais:
Trajetrias de Vida e Formao
Dissertao de Mestrado apresentada ao Programa de
Ps-Graduao da Universidade de So Paulo para
obteno do ttulo de Mestre em Educao.
rea de Concentrao: Psicologia e Educao
Orientadora: Prof Dr Teresa Cristina Rego
So Paulo
2007
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FOLHA DE APROVAO
Isabel Cristina Buccini
Identidades de educadoras sociais:
trajetrias de vida e formao
Dissertao de Mestrado apresentada ao Programa de
Ps-Graduao da Universidade de So Paulo para
obteno do ttulo de Mestre em Educao.
rea de Concentrao: Psicologia e Educao
Aprovado em:
Banca Examinadora
Prof. Dr _______________________________________________________________________
Instituio ___________________Assinatura: __________________________________________
Prof. Dr _______________________________________________________________________
Instituio ___________________Assinatura: __________________________________________
Prof. Dr _______________________________________________________________________
Instituio ___________________Assinatura: __________________________________________
Prof. Dr _______________________________________________________________________
Instituio ___________________Assinatura: __________________________________________
Prof. Dr _______________________________________________________________________
Instituio ___________________Assinatura: __________________________________________
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DEDICATRIA
memria dos meus pais, com meu amor e saudade,
pela forma admirvel com que ensinaram
a amar a vida e as pessoas.
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AGRADECIMENTOS
Agradece a todas as coisas do Cu e da Terra; pois quando agradeceres a todas as coisas
do Cu e da Terra, tudo ser teu amigo, e, quando todo o universo tornar-se teu amigo, coisa
alguma do universo poder causar-te dano... Sutra Sagrada.
Ao Comunitria, pela oportunidade de realizao da pesquisa e todo apoio fornecido.
Prof Dr Teresa Cristina Rego, pela dedicao, oportunidade de aprendizado e competncia
profissional com que me apoiou durante todo o processo de desenvolvimento desta pesquisa.
Aos meus familiares, pelo apoio e compreenso sobre a importncia da realizao deste
trabalho para a minha vida.
s minhas queridas amigas e amigos, que com todo carinho sempre me apoiaram e
compreenderam todas as minhas ausncias neste perodo de pesquisa.
A todos os amigos (as) da Ao Comunitria, que tanto me incentivaram e ajudaram em todos
os momentos que necessitei.
s educadoras sociais participantes desta pesquisa e a todas que elas representam, pelo
trabalho que realizam, pelo aprendizado, disponibilidade, carinho e profissionalismo como me
receberam.
A Deus, pela oportunidade da vida e pelo amparo onipresente.
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RESUMO
BUCCINI, I. C. Identidades de educadoras sociais: trajetrias de vida e formao. 2007. 214 f. Dissertao (Mestrado) Faculdade de Educao, Universidade de So Paulo, So Paulo, 2007.
O presente trabalho objetiva investigar os impactos do processo de formao
sistemtica em servio, a partir do estudo de um grupo de oito educadoras sociais que
trabalham na Organizao No Governamental Ao Comunitria, localizada no bairro do
Campo Limpo, extremo da zona sul de So Paulo. Partindo do princpio de que a formao e o
desenvolvimento pessoal e profissional destas educadoras so pautados tambm no seu espao
de atuao, procurou-se identificar as possveis contribuies do processo de formao
permanente realizado pela instituio na constituio das identidades pessoais e profissionais
das educadoras pesquisadas. Alm dos possveis impactos decorrentes da formao contnua,
sero examinadas tambm as influncias exercidas pelas trajetrias de vida e as experincias
pessoais que marcaram os ambientes familiares e escolares do grupo estudado. Por meio da
produo de registros escritos significativos, depoimentos orais, entrevistas semi-estruturadas
e registros de memria pessoal (fotos), as educadoras sociais, participantes desta pesquisa,
puderam realizar um intenso exerccio autobiogrfico, propulsor de uma possvel tomada de
conscincia dos processos que influram em suas trajetrias de vida pessoais e profissionais.
Buscando aportes nos referenciais tericos da Psicologia Histrico-Cultural, foi possvel
perceber que este processo de formao pode gerar mudanas significativas nas formas de ser,
pensar, agir e relacionar-se daqueles que dele participam. Os processos psquicos de
constituio identitria, podem muitas vezes passar despercebidos pelos sujeitos que vivem
mergulhados nas exigncias da sociedade moderna, iminentemente imediatista, capaz de
compreender o ser apenas em seu aqui e agora, desconsiderando o carter permanente de
busca de si mesmo, de inconcluso, de devir ou vir a ser, inerentes constituio da
identidade humana.
Palavras-chaves: Identidade, Formao, Auto-Biografia, Educadoras Sociais.
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ABSTRACT
BUCCINI, I. C. Identities of socials educators: trajectories of life and formation. 2007. 214
f. Dissertation (Masters degree) Faculty of Education, University of So Paulo, So Paulo,
2007.
The present work objective to investigate the impacts of the process of systematic formation
in service, from the study of a group of eight social educators that work at no government
organization Ao Comunitria located at Campo Limpo area, extreme southern zone of So
Paulo. To coming from of the principle of that the formation and the personal and professional
development of these educators are also methodicals in its space of performance, looked for
identify the possible contributions of the process formation permanent realized by institution
in the constitution of the personal and professional identities of the educators. Beyond the
possible decurrent impacts of the continuous formation, the influences exerted for the personal
trajectories of life and experiences will also be examined that marked in familiar and school
environments of the studied group. By means of the production of written registers significant,
verbal account through half-structuralized interviews and registers of personal memory
(photos), the participant social educators of this research, had been able to carry through an
intense autobiographical, exercise of a possible taking of conscience of the processes that had
influenced in its personal and professional trajectories of life. Searching support in the
theoretical reference of Historical-Cultural Psychology, was possible to perceive that this
process of formation can generate significant changes in the forms in the forms of being,
thinking, to act and to become related of that of it they participate. The phychic processes of
identity constitution, can many times pass unobserved for the citizens that live dived in the
requirements of the modern society, imminently immediate, capable to understand the being
only in its here and now, disrespecting the permanent character of search of itself exactly,
no conclusion of devir or coming to be inherent to the constitution of the identity
human being.
Keywords: Identity, Formation, Autobiographical, Social Educators
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SUMRIO
INTRODUO..............................................................................................................1
Ensaio de um memorial: meu exerccio autobiogrfico..................................................1
Em busca do objeto de pesquisa.....................................................................................5
CAPTULO I. O TERCEIRO SETOR E AS ONGS PLURALIDADES E
SINGULARIDADES....................................................................................................8
1.1 Conceitos e papis do Terceiro Setor e ONGs.........................................................8
1.2 Um breve histrico das ONGs.................................................................................11
1.3 Caractersticas da ONG estudada............................................................................16
1.4 O educador social e seu trabalho: uma identidade a ser desvelada.........................19
CAPTULO II: A QUESTO DA FORMAO DE EDUCADORES E O
PROCESSO DE CONSTITUIO DA IDENTIDADE
PROFISSIONAL.........................................................................................................22
2.1 A relao eu/ns e os processos de constituio da identidade no campo da
psicologia histrico-cultural..........................................................................................22
2.2 A formao da identidade profissional....................................................................31
2.3 Identidade e afetividade: a busca da cognio pelo afeto........................................35
CAPTULO III: METODOLOGIA: A PROPOSTA DE PESQUISA-
FORMAO...............................................................................................................45
3.1 A escolha e fundamentao do mtodo (auto) biogrfico.......................................45
3.2 A busca de si pela busca de ns: experincias de vida em formao......................51
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CAPTULO IV: OS RELATOS AUTOBIOGRFICOS: DANDO VOZES
S EDUCADORES SOCIAIS E DIALOGANDO COM OS DADOS DAS
SUAS HISTRIAS DE VIDA..........................................................................60
4.1 Sobre o mtodo da pesquisa, as entrevistas, os instrumentos da coleta e suas
protagonistas........................................................................................................60
4.2 Relatos significativos sobre a identidade pessoal..........................................66
4.3 Relatos significativos sobre a identidade familiar.........................................75
4.4. Relatos significativos sobre a identidade escolar.........................................88
4.5 Relatos significativos sobre a identidade profissional..................................98
CONSIDERAES FINAIS: TECENDO ALGUMAS REFLEXES
ACERCA DOS DADOS E ESTABELECENDO NOVO DILOGO COM
OS REFERENCIAIS TERICOS.................................................................135
REFERNCIAS..............................................................................................147
ANEXOS...........................................................................................................154
I. Ficha identitria..............................................................................................154
II. Roteiro da entrevista.....................................................................................156
III. Autorizaes para publicao......................................................................159
IV. Materiais biogrficos secundrios (fotos e depoimentos escritos)..............168
V. Entrevistas na ntegra em cd room................................................................214
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INTRODUO
A formao depende do que cada um faz do que os outros
quiseram, ou no quiseram, fazer dele. Numa palavra, a
formao corresponde a um processo global de autonomizao,
no decurso do qual a forma que damos nossa vida se
assemelha se preciso utilizar um conceito ao que alguns
chamam de identidade (DOMINIC, 1985, p. 61).
Ensaio de um memorial: meu exerccio autobiogrfico
Pareceu-me bastante oportuno pensar na escrita inicial de um memorial neste
momento da minha vida, visto encontrar-me mergulhada em teorias e reflexes sobre
identidades, sobre as memrias destas identidades, sobre a vida das pessoas que me
cercam e porque no dizer, sobre a minha prpria vida.
A primeira lembrana que surgiu em minha mente foi o delicioso cheiro de
pssego que sentia nos meus primeiros anos de vida escolar, o qual impregnava no s
as minhas narinas como tambm meus cabelos, minha roupa, meus materiais escolares.
como se eu pudesse senti-lo agora, neste exato momento, em paralelo a todas as
sensaes de frescor e delcia que me proporcionava.
Vivia pelos ptios daquela escola a procurar aquele pessegueiro, que imaginava
ser enorme, coberto de frutos suculentos e rosados, prontos para o sabor de minha
primeira mordida... Salivava, (e ainda salivo) s de pensar...
No entanto, as minhas primeiras descobertas, aos sete anos de idade, naquela
escola estadual, no foram to prazerosas assim.
Contrariamente s demais crianas, no primeiro dia de aula, no chorei na
entrada, mas sim na sada, quando tive a temvel surpresa de no encontrar minha
me por l, esperando por mim. Senti-me esquecida naquele imenso prdio - na poca
ele assim me parecia, no entanto, hoje sei que esta era a forma como eu o enxergava; at
que minha me surgiu ofegante, rubra e molhada em suor para resgatar-me. Minha
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querida mezinha havia cochilado e perdido a noo das horas, j apresentando os
primeiros sinais de uma sade comprometida, mas recompensou-me prontamente com
seu afeto, ontem, hoje e sempre to presente em mim.
Apesar de no ter freqentado o pr-primrio, como era chamada naquela poca
a educao pr-escolar, ingressei no ensino fundamental de certa forma j familiarizada
com o universo da escrita atravs do programa televisivo Vila Czamo.
Reconhecendo o alfabeto, j conseguia formar algumas palavras e escrever meu nome
completo. Os contos de fadas, sussurrados baixinho por minha irm e meu pai na hora
de dormir, tambm me fizeram querer aprender logo a ler e desvendar outras histrias.
Acho importante falar um pouco sobre os meus primeiros educadores escolares.
Minha primeira professora (Ligia Padilha), no me traz boas recordaes. Alm de
trocar frequentemente meu nome (chamava-me sempre de Tereza Cristina), insistia aos
berros em exerccios tenebrosos de coordenao motora, os quais eu nunca conseguia
fazer e com certeza no conseguiria faz-los ainda hoje. Chorava exaustivamente.
Trocaram-me de professora e daquela vez dei mais sorte, recebi um anjo dos
cus. Seu nome era Clia, jovem, meiga, voz serena e pronta para receber todos seus
alunos de uma forma muito acolhedora. Era tudo que precisava para poder exercitar os
meus supostos dotes de aluna inteligente. Clia valorizava sempre minha disposio e a
rapidez com que eu estabelecia as relaes cognitivas. Mas, como nem tudo so flores,
na segunda srie, deparei-me com uma nova fera de mesmo nome, a professora Lygia
Caricatti. Ela tinha o pssimo costume de quebrar pelo menos trs rguas ao dia nas
cabeas de seus alunos. Novamente, a velha e exaustiva choradeira, at que me
mudaram de sala.
Da em diante, percebi que o mundo escolar deveria ser encarado de frente,
mesmo que no me proporcionasse momentos de prazer com tanta freqncia, como
quando pensava no pessegueiro. Esta passagem me faz lembrar dos ideais de Rubem
Alves (1994):
Que a aprendizagem seja extenso progressiva do corpo, que vai
crescendo, inchando, no apenas em seu poder de compreender e
conviver com a natureza, mas em sua capacidade de sentir o prazer, o
prazer da contemplao da natureza, o fascnio perante os cus
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estrelados, a sensibilidade ttil ante as coisas que nos tocam, o prazer
da fala, o prazer das histrias e das fantasias, o prazer da comida, da
msica, do fazer nada, do riso, da piada... Afinal de contas no para
isto que vivemos, o puro prazer de estar vivos? (p.81).
A partir de ento, enfrentei todos os sabores e dissabores naturais da vida de
estudante, sempre apostando em mim mesma, em meu esforo pessoal de aprender o
prazer em aprender. Sempre fui considerada pelos professores como uma boa aluna,
dedicada, esforada em aprender e tirar as melhores notas da classe - tarefa imposta por
mim mesma, pois nunca houve em casa um forte acompanhamento a respeito do meu
desempenho escolar.
Cursei o ensino mdio tambm em escola estadual, onde desta vez, o fantasma
maior foi o processo de ingresso, o antigo vestibulinho. O colgio, E.E.P.S.G Ferno
Dias Paes, escolhido por mim naquela poca, era muito concorrido, por ser reconhecido
como uma escola forte. Foi l que comecei a descobrir minhas afinidades em relao s
reas do conhecimento das humanidades. Encantavam-me as aulas e os professores de
Literatura e de Histria. No optei por cursar o Magistrio pois os comentrios que
circulavam entre os alunos era de que tal curso era fraco, no preparava para o
vestibular, visto no contemplar as disciplinas de Fsica e Qumica em sua grade
curricular. No terceiro ano colegial, fui contemplada com uma bolsa integral de
cursinho pr-vestibular e sabia que precisava usufruir ao mximo desta oportunidade, j
que a continuao dos estudos estava atrelada ao ingresso em uma universidade pblica.
Em 1987 ingressei no curso de Pedagogia na Faculdade de Educao da
Universidade de So Paulo. Instalei-me como moradora do Centro Residencial da USP -
CRUSP, pois meus pais haviam mudado para o interior de Minas Gerais e confesso que
no sabia ao certo aonde me levaria aquela escolha.
Naquela poca eu j trabalhava em regime de perodo integral no Banco
Bradesco, o que me impedia de participar plenamente da vida acadmica (dos centros
acadmicos, movimentos estudantis, palestras ministradas durante o dia, etc.), e isto
algo que lamento muito.
Terminei minha graduao no ano de 1990, e naquela poca j trabalhava com
formao de pessoas, atuando no Centro de Formao do Banco. Ocupava o cargo de
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coordenadora pedaggica, cuja funo era de diagnosticar, encaminhar e avaliar os
treinamentos tcnicos e comportamentais oferecidos aos funcionrios das agncias
bancrias.
Continuei a trabalhar nos anos seguintes na rea de Treinamento e
Desenvolvimento de pessoas, passando por outras empresas at o ano de 1997 quando,
finalmente, consegui realizar meu sonho de ingressar na rea educacional. Desde ento,
venho me dedicando ao trabalho de formao continuada de professores e lideranas
comunitrias dos programas scio-educacionais da ONG Ao Comunitria.
Por questes familiares, s consegui retomar meus estudos no curso de ps-
graduao no ano de 2003, quando procurei na Faculdade de Educao uma vaga como
aluna ouvinte, a fim de inteirar-me novamente e de forma gradual dos discursos e
discusses acadmicas. Busquei por vrios professores e a retrica era a mesma: aluno
ouvinte s traz problemas. Numa ltima tentativa, tive a felicidade de ser ouvida e
recebida por uma professora que no julga ser coerente a gerao de mais excluso em
uma Universidade Pblica: a minha atual orientadora. Desse modo, no primeiro
semestre de 2003, participei como aluna ouvinte do curso Cultura e Desenvolvimento
Humano: o papel da escola na constituio de singularidades, ministrado pela Prof.
Dr. Teresa Cristina Rego. Ao longo daquele semestre tive a oportunidade de
amadurecer um projeto de pesquisa para inscrever-me junto ao processo seletivo do
curso de Mestrado em Educao.
Em 2004, iniciei, finalmente, meu percurso como aluna regular do Programa de
Ps-Graduao da Faculdade de Educao na Universidade de So Paulo. Gostaria de
enfatizar que as escolhas das disciplinas cursadas foram primordiais, na medida em que
contriburam para que eu adquirisse os subsdios terico-metodolgicos necessrios a
esta pesquisa.
A competncia profissional/pessoal presente na singularidade de cada um dos
professores doutores mostraram-me desta vez que os saberes podem ter muito mais
sabores. Foram eles: Teresa Cristina Rego (Cultura e Desenvolvimento Humano: o
papel da escola na constituio de singularidades); Marta Kohl de Oliveira
(Desenvolvimento Cultural e Modalidades de Pensamento); Belmira A. Barros Oliveira
Bueno (Etnografia aplicada pesquisa educacional); Denice Brbara Catani (Memria
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e Histria da Profisso Docente); Jorge (A Viragem Lingstica e o Relanamento do
Ofcio Historiogrfico); Flvia Schilling (Educao, poder e resistncia).
O ingresso no curso de Mestrado em Educao e o exerccio do estgio docente
proporcionado pelo programa PAE Programa de Aperfeioamento de Estudos - da
Faculdade de Educao da Universidade de So Paulo, realizado no primeiro semestre
de 2005, sob a superviso de minha orientadora, Prof Dr Teresa Cristina Rego,
contribuiu de certa forma para o meu ingresso como professora universitria,
ministrando as seguintes disciplinas no curso de Pedagogia: Psicologia Educacional,
Didtica da Educao e Princpios e Mtodos de Administrao Escolar.
Reconheo a importncia de todas as vidas que contriburam e contribuem
para a constituio da minha identidade pessoal e profissional, e ainda continuo
procurando por aquele pessegueiro recoberto de frutas em minha caminhada...
Em busca do objeto de pesquisa
Conforme mencionado anteriormente, o impulso de realizao desta pesquisa
teve origem no primeiro semestre do ano de 2003, quando tive a oportunidade de
participar como aluna ouvinte do curso de ps-graduao na rea de Psicologia da
Educao, intitulado Cultura e Desenvolvimento Humano: o papel da escola na
constituio de singularidades ministrado pela Prof Dr Teresa Cristina Rego, na
Faculdade de Educao da Universidade de So Paulo. O acesso aos pressupostos da
psicologia histrico-cultural e as principais idias do terico russo Levy Vygotsky, bem
como as discusses proporcionadas no decorrer daquele semestre, revelaram-me que o
reconhecimento do complexo processo de configurao das singularidades, pode
contribuir significativamente para uma melhor compreenso do trabalho docente.
Alm do impulso acadmico, inquietaes da vida profissional tambm
fomentaram a realizao deste trabalho. Em minha trajetria profissional, venho
atuando nos ltimos dez anos como formadora de um grupo de sessenta educadores
sociais da ONG Organizao No Governamental, Ao Comunitria. A ONG realiza
em sua sede encontros de formao sistemticos (mensais) com todo o grupo de
educadores sociais para tratar das propostas pedaggicas a serem implementadas com o
grupo de crianas e adolescentes atendidos. A instituio realiza tambm encontros
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regionais (bimestrais) por rea de atuao em grupos menores (cerca de quinze
pessoas), para trocas a respeito da prtica pedaggica.
Estes profissionais tm como funo atender, a partir de um trabalho
denominado de educao informal1, crianas e adolescentes da comunidade em que
moram, em horrio alternativo ao da escola formal com atividades que complementem
os contedos desenvolvidos no mbito escolar. O grupo composto, em sua maioria,
por educadores do sexo feminino, moradores do bairro onde atuam, com diferentes
nveis de formao e que demonstram uma forte identificao com a proposta scio-
educativa que desenvolvem.
Meus questionamentos tm sido direcionados para a compreenso da
diversidade dos resultados pedaggicos apresentados por cada um destes profissionais,
ou seja, tenho me preocupado em compreender como se revela, ou como tem sido
apropriada, a formao contnua oferecida pela ONG aos educadores sociais, na
constituio das suas identidades.
Existem inmeros trabalhos que se dedicam s questes relacionadas formao
de professores de escolas pblicas ou particulares e que discutem se estes espaos de
atuao funcionam efetivamente como centros de formao. Apesar de ser crescente o
nmero de ONGs no Brasil que realizam trabalhos scio-educativos, existem poucos
estudos atuais que discutem o trabalho de formao profissional em servio levando em
conta as caractersticas e a abrangncia dos resultados pedaggicos apresentados.
A intencionalidade deste trabalho a de contribuir para um maior conhecimento
e compreenso das aes de formao oferecidas a esses educadores. Espera-se tambm
que os frutos desta pesquisa possam ultrapassar os limites do espao acadmico. Neste
sentido, objetiva-se que este trabalho possa vir a tornar-se um instrumento de reflexo
no s dos indivduos pertencentes ao universo externo pesquisa, como tambm dos
prprios sujeitos- participantes desta investigao.
Do ponto de vista terico recorri aos pressupostos da abordagem histrico-
cultural, especialmente as idias de L. S. Vygotsky, por entender que este paradigma
ajuda a compreender os aspectos relacionados ao complexo processo de constituio de
singularidades. Procurei tambm ao longo desta jornada investigativa, estudar outros
autores que se dedicam compreenso da temtica de formao de educadores, tais
1 As ONGs normalmente utilizam-se deste termo para distinguirem a proposta pedaggica (ao e contedos)
desenvolvida com suas crianas e adolescentes, daquelas realizadas pela escola formal.
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como Antnio Nvoa, Marie-Christine Josso, Isabel Alarco, Franco Ferraroti, Pierre
Dominic, Paulo Freire entre outros.
O objetivo central desta pesquisa buscar subsdios que auxiliem a responder as
seguintes questes:
Em que medida o trabalho do educador social e a formao
oferecida pela ONG tm contribudo para o processo de constituio da
identidade destes educadores?
Quais as influncias recebidas pelos educadores sociais em suas
histrias de vida que contriburam significativamente para a constituio de
sua(s) identidade(s) docente(s)?
Em que dimenso a trajetria de vida se relaciona com a
qualidade de atuao e formao profissional destes educadores?
Na medida em que tais questes forem sendo respondidas, poderemos
(re) conhecer os efeitos representados por este processo de ao educativa, tanto
na vida profissional como pessoal destes profissionais.
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CAPTULO I: O TERCEIRO SETOR E AS ONGS - PLURALIDADES E
SINGULARIDADES
1.1 Conceitos e papis do Terceiro Setor e ONGs
A expresso Terceiro Setor que comumente utilizada para referir-se s
organizaes da sociedade civil sem fins lucrativos, abriga alm das ONGs outros
segmentos com identidades diversas, como entidades filantrpicas e institutos
empresariais.
O lugar que a expresso Terceiro Setor ocupa hoje no imaginrio social,
mesmo que no intencionalmente, produz confuses significativas de interpretao. Na
maior parte das vezes, atribui-se a estes outros segmentos um carter equivocado de
homogeneidade. Apesar de aparecerem diludos sob o ttulo de Terceiro Setor, cada um
destes segmentos se caracteriza por misses, histrias, trajetrias e, portanto,
identidades polticas e sociais completamente diferenciadas.
Se pensssemos em primeira instncia numa anlise semntica, diramos que a
nomenclatura Terceiro Setor, sugere que ele esteja situado num estrato da esfera
social abaixo ou subordinado a outras duas existentes, o Primeiro Setor (Empresas), e o
Segundo Setor (Estado). Esta, porm no a melhor interpretao na realidade. O
Terceiro Setor coexiste com os outros dois citados e vem assumindo cada vez mais um
papel significativo em nossa sociedade.
Conforme define o antroplogo Rubem Csar Fernandes (1997), o Terceiro
Setor :
composto de organizaes sem fins lucrativos, criadas e mantidas pela
nfase na participao voluntria, num mbito no governamental,
dando continuidade s prticas tradicionais da caridade, da
filantropia, do mecenato e expandindo o seu sentido para outros
domnios, graas sobretudo, incorporao do conceito de cidadania e
de suas mltiplas manifestaes na sociedade civil (p. 27).
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A criao do conceito de Terceiro Setor e sua confuso com o conceito de
ONGs, traz a estas ltimas um constante questionamento a respeito das suas identidades
e objetivos. Podemos compreender que as identidades das ONGs se constituem por
meio do processo histrico das relaes que elas estabelecem e pelo delineamento dos
seus objetivos no tempo e espao que atuam.
Len e Coscio (1998) nos alertam para a seguinte questo:
A confuso entre o conceito de organizaes no governamentais
orientadas para o desenvolvimento social e o Terceiro Setor traz
conseqncias no s estatsticas, mas tambm ideolgicas. As ONGs
de desenvolvimento social haviam incorporado como parte essencial
de sua identidade a busca de alternativas democrticas de
desenvolvimento baseadas no conceito de justia social, o que as
diferenciava de outras instituies meramente assistenciais. Nos
ltimos tempos h uma tendncia das ONGs de redefinir seu universo
de beneficirios e de ampliar sua aliana com outros setores sociais,
o que tem levando muitas ONGs a se abrigarem debaixo do conceito
de Terceiro Setor. As ONGs, confundidas com o movimento do
Terceiro Setor, vm perdendo o espao conquistado nos anos 70 e 80
enquanto expresso dos interesses dos excludos e
marginalizados...(p. 374).
O prprio termo Organizao No Governamental tambm tem sido objeto de
disputa de significados em nossa sociedade pelo fato de esta terminologia agregar
mltiplas e heterogneas organizaes com diferenas gritantes de trajetrias, misses,
estrutura e mtodos de ao. A definio literal de organizaes sem fins lucrativos e
que no fazem parte do mbito estatal no suficiente para revelar o que elas so, visto
que nenhuma identidade pode ser definida por sua negao, neste caso o no-
governamental, e sim pela afirmao da sua misso e atuao em sociedade.
Alm disso, a sua definio textual, ou seja, organizao que no do governo,
torna-se to ampla que capaz de admitir qualquer instituio de natureza no estatal.
Sob o enfoque formal, uma ONG constitui-se pela vontade autnoma de homens e
mulheres que reunidos tm a finalidade de promover objetivos comuns de forma no
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lucrativa. Segundo Toro (1994), para que este processo de mobilizao social ocorra, o
mesmo deve ser gerado a partir da vontade dos atores sociais em suprirem as
necessidades do cotidiano de sua comunidade:
A mobilizao ocorre quando um grupo de pessoas, uma comunidade
ou uma sociedade decide e age com um objetivo comum, buscando,
quotidianamente, resultados decididos e desejados por todos. Por
isso, mobilizar convocar vontades para atuar na busca de um
propsito comum, sob uma interpretao e um sentido tambm
compartilhados. Sendo a mobilizao uma convocao ela um ato
de liberdade, oposto da manipulao, um ato pblico de vontade, de
paixo (p. 13).
Algumas definies sobre as ONGs, que ultrapassam o sentido da mera negao.
Landim (2005), por exemplo, conceitua as ONGs como:
um conjunto de atores, que se articulam em redes e se situam dentro
de um determinado plo do espectro poltico e social brasileiro, com
densidade sociolgica e consistncia poltica construdas nas trs
ltimas dcadas (p. 29).
J Duro (2001) alm de mencionar os aspectos sociais e polticos destaca a
dimenso econmica e ambiental das ONGs:
as ONGs so marcadas pelo sentido pblico de sua atuao e pelo
papel de agentes democrticos do desenvolvimento social, econmico
e poltico, contribuindo para a construo de alternativas de
desenvolvimento humano, social e ambientalmente sustentveis
(p. 19).
O socilogo brasileiro, Herbert Jos de Souza (1995), por sua vez enaltece os
aspectos ideolgicos envolvidos na atuao das ONGs:
uma ONG se define por sua vocao poltica, por sua positividade
poltica: uma entidade sem fins de lucro cujo objetivo fundamental
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desenvolver uma sociedade democrtica, isto , uma sociedade
fundada nos valores da democracia liberdade, diversidade,
participao e solidariedade. As ONGs so comits de cidadania e
surgiram para ajudar a construir a sociedade democrtica que todos
sonham (p. 3).
Apesar das inmeras definies existentes, acreditamos que s elas no sejam
suficientes para explicitar a construo identitria destas organizaes e, portanto, faz-se
necessrio um resgate histrico para a contextualizao das ONGs em especial no
Brasil, a fim de situ-las no tempo e espao em que foram constitudas.
1.2 Um breve histrico das ONGs
A denominao ONG apareceu pela primeira vez em 1945, em documento
emitido pela Organizao das Naes Unidas, para caracterizar as iniciativas da
sociedade civil compromissadas com a proposta de reconstruo da vida social, aps a
Segunda Guerra Mundial. Na poca a denominao NGOs Non-Governamental
Organizations - era usada para designar organizaes supranacionais e internacionais
que no foram estabelecidas por acordos governamentais.
No Brasil, o surgimento das ONGs deu-se no perodo da ditadura militar a partir
dos anos 1960 e 1970, com uma postura explcita de resistncia e oposio conjuntura
poltica vigente na poca, baseada na idia de busca de autonomia em relao ao Estado,
ou melhor, uma conotao de anti-Estado, e portanto, uma oposio poltica ao regime
autoritrio vigente. Estas organizaes eram frutos de movimentos sociais fortemente
reprimidos e que buscavam uma alternativa contra o predomnio militar, uma vez que ao
acreditarem na construo da democracia, sabiam que o nico caminho possvel seria
por meio da participao dos atores sociais.
Naquela poca estas organizaes no eram conhecidas pelo termo ONG, mas
por centros de educao popular, promoo ou assistncia social.
Segundo a antroploga Landim (2005), mesmo entre os seus agentes no havia a
representao de pertencimento a um universo institucional particular, pois essas
organizaes pregavam que estavam a servio de setores dominados da populao. A
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falta de visibilidade social ou at mesmo um certo carter de clandestinidade das aes,
era uma caracterstica da poca no s pela conjuntura autoritria, mas tambm pela
crena de que os verdadeiros protagonistas das transformaes sociais eram os
movimentos sindicais.
O surgimento das ONGs com objetivos de promoo da cidadania, defesa pelos
direitos humanos e luta por uma democracia social e poltica, desempenharam um papel
bastante significativo nos processos de organizao, mobilizao e formao de
diversos movimentos sociais, rurais e urbanos, bem como de lideranas sociais,
trabalhadores rurais, oposies sindicais e populares. Foi no sindicalismo que se
fortaleceu a idia de organizar as classes trabalhadoras.
As primeiras ONGs nasceram juntamente com as demandas e dinmicas dos
movimentos sociais onde eram enfatizados os trabalhos de educao popular e de
atuao na elaborao e controle social das polticas pblicas. Elas contriburam para
uma nova articulao da sociedade brasileira, para alm da Igreja progressista e dos
partidos polticos, construindo uma identidade baseada no apoio e assessoria aos
movimentos sociais e s organizaes de trabalhadores. Distinguiam-se, por isso, das
entidades filantrpicas ou de assistncia social e das organizaes associativas como os
sindicatos, associaes de moradores ou profissionais.
No Brasil, as ONGs tiveram nos anos entre 1970 e 1980 perfis fortemente
marcados pelos pressupostos marxistas, da educao popular de Paulo Freire e pelo
movimento cristo da Teologia da Libertao. a partir dos anos de 1980 que as
organizaes comeam a se espalhar e assumir a terminologia de ONG, diferenciando-
se das demais organizaes da sociedade civil.
Nesse perodo, as ONGs comearam a estabelecer relaes com agncias
internacionais de cooperao com sede na Europa e Canad. So relaes de grande
significado tanto pelo fornecimento de aportes financeiros, e que possibilitaram uma
independncia e autonomia em relao ao Estado, diferenciando-as das entidades
filantrpicas e assistenciais, como pela participao em debates sobre diversas questes
relacionadas sociedade civil.
Com a ecloso do processo de democratizao na dcada de 1980 e a proposta
de elaborao de uma nova ordem constitucional, observa-se uma primeira crise de
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identidade das ONGs. Afinal, elas eram constitudas por atores da sociedade civil com
voz prpria ou eram organizaes auxiliares de apoio aos movimentos sociais?
Na dcada de 1990, o cenrio scio-econmico brasileiro tem sua situao
agravada pela globalizao neoliberal fundada no privatismo e na proposta de reforma
do Estado.
O cenrio de desmoronamento do aparelho estatal, de movimento de retrocesso
nas polticas pblicas, de substituio do conceito de universalizao por focalizao, o
que significava a desconstruo dos direitos sociais, e por ltimo, de desqualificao
das organizaes de trabalhadores e do movimento sindical e popular enquanto
entidades legtimas de representao.
A crise do Estado usada como um argumento para difundir as idias de
antiestadismo a favor das privatizaes, gerando uma postura de crescente desobrigao
do mesmo em relao s polticas pblicas, por sua visvel incapacidade de atuar no
atendimento s necessidades sociais de forma eficaz.
Em meio a todas estas mudanas polticas, observa-se um aumento significativo
de novas organizaes sem fins lucrativos, cujo objetivo de atuao no campo social.
So entidades sociais, assistenciais, organizaes de aes solidrias e fundaes
empresariais, que surgem, disputando o significado do termo ONG e comeam a ser
vistas de formas diferenciadas, ora endeusadas, ora satanizadas como comenta-nos
Haddad (2000):
Muitas vezes, elas so tomadas com tamanha diversidade de olhares
que acabam sendo responsabilizadas por tantos aspectos da
interveno social, que nem sempre correspondem ao que
efetivamente fazem ou so capazes de fazer (...) Para alguns, so
motores de transformao social, uma nova forma de fazer poltica.
Para outros, um campo propcio s aes do neoliberalismo, que
busca repassar as responsabilidades sociais para o campo da
sociedade civil (p. 9).
Surge, neste contexto, a chamada teoria do Terceiro setor, a qual transfere a
responsabilidade pela garantia da coeso social para as empresas e entidades sem fins
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lucrativos. Segundo Rifkin (1997), um dos precursores desta teoria, devemos alertar
para a seguinte questo:
o governo est comeando a desaparecer da vida das comunidades,
seu papel cada vez menos importante, est passando a delegar
verbas e programas... e a responsabilidade da vida cvica passar a
ser cada vez mais do Terceiro Setor, do setor no governamental (p.
20-23)
.
Se por um lado esta teoria pode ser compreendida sem grandes indagaes, visto
reafirmar um dos principais pressupostos da democracia, que o da participao da
populao nos processos de ordem social, por outro cria uma separao estanque entre
Estado e sociedade civil. Neste sentido, torna-se contraditria, visto que em pases ditos
desenvolvidos como Estados Unidos, Frana e Alemanha, 50% do total de gastos do
Terceiro Setor com atividades sem fins lucrativos so pagos com fundos pblicos
oriundos dos impostos.
tambm nos anos de 1990 que se inicia o processo de construo de
legitimidade e uma maior visibilidade das ONGs. Segundo Landim (2002), vrios
acontecimentos importantes marcaram este processo, como a fundao da ABONG
(Associao Brasileira de Organizaes No Governamentais) em 1991, e a realizao
do encontro internacional de ONGs no Rio de Janeiro promovido pelo Programa das
Naes Unidas para o Desenvolvimento (Pnud). Em 1992, ocorre outro grande evento,
o ECO-92, tambm no Rio de Janeiro, pela Unced (United Nations Conference on
Environment and Development), com grande destaque na mdia.
Tambm nesse perodo inicia-se a construo de uma identidade latino-
americana das ONGs, que estimuladas pelas agncias de cooperao, realizam
encontros e a formao de redes continentais como a Asociacin Latinoamericana de
Organizaciones de Promocin (Alop), o Innovacin y Redes para el Desarrollo (Ired) e
o Programa de Promocin de la Reforma Educativa em Amrica Latina y el Caribe
(Pread).
No decorrer da dcada de 90, ocorre uma srie de mudanas nas relaes de
cooperao internacional que financiava o trabalho das ONGs, gerando uma reduo de
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15
recursos e levando vrias organizaes a uma reestruturao interna e atuao como
prestadoras de servios aos rgos pblicos, executando projetos, pesquisas ou
consultorias. Se por um lado esta mudana de posicionamento em relao s esferas do
governo representava uma alternativa de sobrevivncia, por outro colocava em xeque
a preservao da identidade e autonomia poltica das ONGs brasileiras.
Podemos dizer que a partir do final dos anos 90, o significado da terminologia
ONG, perante a opinio pblica encontrava-se bastante vago e ambguo. Observamos
frequentemente uma supervalorizao do papel das ONGs na mdia, enquanto
substituio eficiente de aes do Estado, em atuaes exemplares, porm pontuais pela
impossibilidade das mesmas em desenvolverem aes de grande escala e de massa. Em
contrapartida, nota-se o no reconhecimento das ONGs como sujeitos polticos e
autnomos da nossa sociedade.
Na atualidade, em face deste cenrio de crise generalizada caracterizada por um
descomprometimento do Estado; uma crescente criao de polticas neoliberais; uma
crise no mercado de trabalho e fragilizao dos sujeitos coletivos e dos movimentos
sociais, o grande desafio das Ongs est relacionado redefinio de sua identidade na
sociedade: As Ongs tm como desafio crucial esclarecer se querem ser uma fora
funcional ao esquema de dominao ou se acreditam ter um papel antisistmico, no
funcional na sociedade (DURO, 2001, p.17).
Atualmente, a legislao brasileira considera apenas trs formatos institucionais
para a constituio de uma organizao sem fins lucrativos, sendo elas as associaes,
fundaes e organizaes religiosas.
Juridicamente, toda ONG uma associao civil ou uma fundao privada,
porm nem toda associao civil ou fundao uma ONG.
Se compararmos instituies como hospitais, universidades, clubes recreativos,
associaes de bairro, creches, fundaes, institutos empresariais s ONGs
perceberemos objetivos e atuaes distintas e muitas vezes at opostas.
Segundo dados fornecidos pela ABONG, o estudo mais recente sobre o universo
associativo do qual as ONGs fazem parte, foi lanado em dezembro de 2004 pelo IPEA
Instituto de Pesquisa Econmica Aplicada) e aponta que, em 2002, havia 276 mil
fundaes e associaes sem fins lucrativos no pas, gerando um total de 1,5 milho de
pessoas atendidas pelas mesmas.
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Outros dados desta pesquisa apontam para a imensa pluralidade dessas
organizaes e que, de um modo geral, o conjunto de associaes e fundaes
brasileiras constitudo por milhares de organizaes muito pequenas e por uma
minoria que concentra a maior parte dos empregados das organizaes. Deste total
acima citado, cerca de 77% das ONGs no tm sequer um empregado, no entanto, 2500
organizaes (1% do total), absorvem quase um milho de trabalhadores.
Esse pequeno universo formado por grandes hospitais e universidades
pretensamente sem fins lucrativos, na sua maioria, entidades filantrpicas, com isso, so
portadoras do Certificado de Entidade Beneficente de Assistncia Social o que
possibilita a iseno da cota patronal, em virtude da contratao de funcionrios e
prestadores de servios.
Grande parte destas ONGs, como o caso da Ao Comunitria dedicam-se
atendimentos scio-educacionais, assumindo espaos de educao formal e informal em
muitos bairros perifricos de nossa sociedade, onde a ineficincia do Estado tem
deixado imensos vazios.
1.3 Caractersticas da ONG estudada
Acreditamos que situar o lcus de pesquisa e os sujeitos investigados, auxiliaro
na compreenso a respeito dos objetivos a que se prope esta pesquisa.
A Ao Comunitria uma organizao no-governamental fundada h 39 anos,
no municpio em So Paulo, em plena efervescncia do regime militar.
Sua histria comeou no ano de 1967, quando empresrios paulistas,
sensibilizados com a crescente problemtica social, buscaram referncias em projetos
sociais bem sucedidos de organizao humana na Colmbia e Venezuela, com o apoio
tcnico da Action Internacional (Fundao Americana de Assessoria Tcnica a
Organizaes No Governamentais). Replicaram tais idias no Brasil, escolhendo a
cidade de So Paulo que, j naquele tempo, despontava como o maior plo industrial da
Amrica do Sul.
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Naquela poca a sua misso objetivava o desenvolvimento de trabalhos sociais
voltados formao e articulao de lideranas comunitrias, apoio jurdico para a
constituio de organizaes de bairro e mobilizao de moradores.
Inicialmente foram implantados trs projetos pilotos, num cortio no bairro da
Bela Vista, numa favela do Jaguar e em mais duas vilas operrias no Jardim Vernica e
Jardim Ibirapuera. O atendimento social objetivava contribuir para uma mobilizao em
busca de recursos sociais escassos ou inexistentes.
Na dcada de 80 a sede da Ao Comunitria foi transferida para o bairro do
Campo Limpo e o atendimento tornou-se diversificado. A ONG comeou a definir em
sua misso, objetivos voltados formao profissional de educadores sociais e
lideranas comunitrias. A partir de ento, este trabalho de parcerias com as lideranas
comunitrias oficializado atravs de convnio que define as responsabilidades para
ambas as partes. Este documento prev as formas de relao da parceria, cabendo s
lideranas comunitrias oferecerem um espao adequado ao desenvolvimento dos
trabalhos sociais, a responsabilidade de recrutarem os educadores e acompanharem a
rotina de trabalho realizada pelos educadores sociais. A ONG responsabiliza-se pela
assessoria e superviso pedaggica num trabalho de formao contnua, seleo dos
educadores sociais, merenda e materiais pedaggicos necessrios ao atendimento
oferecido.
No ano de 1987, a ONG iniciou a implantao de diversos projetos sociais, a
fim de atender aos propsitos da sua nova misso: contribuir para o processo de auto-
desenvolvimento (educao, cultura e cidadania) de crianas e jovens atendidos em
parceria com organizaes formalmente organizadas2:
Projeto Sondagem de Aptides: promovia cursos profissionalizantes
(manicura, artesanato e corte e costura) s mulheres moradoras do bairro,
com o objetivo de contribuir para o aumento da renda familiar;
Projeto Educao Infantil: atendimento destinado s crianas na faixa
etria de 04 a 06 anos, cujo objetivo era suprir as demandas no
atendidas pelas EMEIS locais;
2 So consideradas formalmente organizadas as organizaes parceiras que possuem toda a documentao
necessria aos trmites legais como CNPJ, inscrio estadual e um estatuto registrado em cartrio definindo o seu grupo de gestores (diretores, vice-diretores, tesoureiro, secretrios e conselheiros, etc).
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Projeto Cultura e Lazer: cursos de teatro, esportes, bal e propostas de
socializao aos grupos da terceira idade.
A partir de 1990, o atendimento da ONG foi ampliado e expandido s outras
comunidades carentes das regies de Santo Amaro e Capela do Socorro, com projetos
que antes s eram oferecidos no bairro de Campo Limpo. Nessa fase, o trabalho de
formao profissional dos agentes comunitrios3 e lideranas foi intensificado ainda
mais.
Com o surgimento do ECA ( Estatuto da Criana e Adolescente) ainda na dcada
de 1990, a Ao Comunitria v-se obrigada a rever a sua misso e a reformular os seus
projetos de atendimento. O Projeto Sondagem de Aptides passa a destinar seu
atendimento aos jovens acima de 16 anos, passando a chamar-se de PPT Preparao
para o Trabalho e nasce o Programa Cr-Ser, com o objetivo de educao
complementar escola, atendendo s crianas e adolescentes de 07 a 14 anos.
Hoje, a Ao Comunitria trabalha com vinte e quatro organizaes
comunitrias parceiras e vem acentuando cada vez mais os investimentos na formao
profissional daqueles que atuam diretamente com o seu pblico alvo (crianas e
adolescentes), cerca de 120 educadores sociais e 66 lderes comunitrios.
Suas aes so direcionadas essencialmente regio sul da cidade de So Paulo,
nos bairros de Campo Limpo, Capo Redondo (distrito de Campo Limpo), Cidade
Dutra, Graja, Socorro (distrito de Capela do Socorro), Cidade Ademar, Pedreira
(distrito de Cidade Ademar), Santo Amaro, Jardim ngela, Jardim So Luiz (distrito de
M Boi Mirim), Marsilac e Parelheiros (distrito de Parelheiros).
A organizao mantm-se basicamente por meio de recursos prprios, gerados
atravs da produo e comercializao de cartes de Natal e de outros produtos
(camisetas, agendas, canetas, etc.), os quais contribuem para a divulgao do seu nome
institucional, e tambm pelo recebimento de recursos financeiros (doaes em espcie)
de empresrios contribuintes.
3 Nomenclatura usada anteriormente para designar os educadores sociais.
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1.4 O Educador social e seu trabalho: uma identidade a ser desvelada
O termo educador social freqentemente usado nos dias atuais para designar
profissionais que trabalham em projetos sociais diversos, porm, no encontramos
referenciais bibliogrficos pontuais sobre esta designao na rea educacional.
Encontramos o termo trabalhador social, usado de maneira recorrente por
Paulo Freire para discutir o papel poltico deste profissional no processo de mudana
social e por isso tambm considerado um educador:
O papel do trabalhador social se desenvolve num domnio mais
amplo, no qual a mudana um dos aspectos. O trabalhador social
atua, com outros, na estrutura social. Na estrutura social, enquanto
dialetizao entre a infra e a supra-estrutura, no h permanncia
nem mudana da mudana, mas o empenho de sua preservao em
contradio com o esforo por sua transformao. Da que no possa
ser trabalhador social, como educador que , um tcnico friamente
neutro. Silenciar sua opo, escond-la no emaranhado de suas
tcnicas ou disfar-la com a proclamao de sua neutralidade no
significa na verdade ser neutro mas, ao contrrio, trabalhar pela
preservao do status quo. Da a necessidade que tem de clarificar
sua opo, que poltica, atravs de sua prtica, tambm poltica.
Sua opo determina seu papel, como seus mtodos de ao. uma
ingenuidade pensar num papel abstrato, num conjunto de mtodos e
de tcnicas neutros para uma ao que se d em uma realidade que
tambm no neutra (FREIRE, 1987, p.38-39).
Tendo como referncia as idias de Freire percebemos que a funo do educador
social requer indubitavelmente a constituio de uma identidade permeada por uma
crena no seu papel de agente de mudana, o que implica em conhecer com
profundidade a realidade onde atua e mobilizar outros indivduos de sua comunidade
para que este processo de mudana realmente ocorra.
Como dissemos anteriormente, em 1990, quando o Programa Cr-Ser da Ao
Comunitria iniciou as suas atividades, o educador social era chamado de agente
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comunitrio ou professor leigo. Nessa poca, ele no possua necessariamente uma
formao em Magistrio, tampouco em nvel superior. A exigncia era a de que ele
fosse um morador do bairro, com formao em nvel fundamental ou mdio e que
demonstrasse empenho e disponibilidade para realizar um trabalho social junto s
crianas e adolescentes de sua comunidade.
Quando concebido, o Programa Cr-Ser realizava atividades pedaggicas
estritamente manuais e artesanais com as crianas e adolescentes atendidos. Hoje o
programa possui pressupostos definidos e a sua proposta pedaggica no tem o carter
de reforo escolar. Seus contedos visam ampliar aqueles oferecidos pela escola formal,
por meio das reas de conhecimento de artes plsticas, leitura e escrita, jogos ldicos ou
de raciocnio lgico, o que exige um outro perfil profissional dos seus educadores. Para
isso, a formao mnima exigida atualmente para a atuao do educador social a
habilitao em Magistrio ou estar cursando o nvel superior em reas afins.
A funo do educador social concebida pela ONG, exige um perfil profissional
bastante abrangente, embora a sua jornada de trabalho dirio junto s crianas e
adolescentes seja de apenas trs horas, perfazendo um total de quinze horas semanais.
O planejamento pedaggico mensal e dirio das atividades a serem
desenvolvidas realizado pelo prprio educador social, a partir dos contedos sugeridos
pela equipe pedaggica nos encontros de formao. H, portanto, a predominncia de
uma certa dose de autonomia em relao prtica pedaggica implementada. Em sua
atuao pedaggica, o trabalho realizado junto s crianas e adolescentes
constantemente permeado por questes relacionadas aos valores ticos, de cidadania e
mediado por afetividade.
Faz parte da funo destes trabalhadores sociais desenvolverem outras atividades
sociais de atuao em sua comunidade. Dentre elas, destacam-se o trabalho de parceria
constante junto s famlias e a UBS (Unidade Bsica de Sade) para um
acompanhamento em relao s condies de sade das crianas e adolescentes,
acompanhamento do desempenho escolar por meio de propostas permanentes de
parcerias com as escolas (em especial em relao aos contedos de lngua portuguesa e
matemtica) e a busca pelo sucesso dos participantes nas atividades previstas pelo
programa.
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Alm de organizarem e conduzirem reunies sistemticas (mensais/ bimestrais)
com os pais, os educadores sociais visitam regularmente todas as famlias das crianas e
adolescentes atendidos, obedecendo a uma freqncia semestral (ao iniciar e finalizar o
ano letivo). O objetivo destas visitas, alm de conscientizar os responsveis pelo
acompanhamento escolar e de sade dos seus filhos conhecer a qualidade de vida
scio-econmica dos atendidos e a forma pela qual se processam as relaes familiares.
Todas estas atividades de acompanhamento externo aos participantes do
programa, so realizadas pelo educador social em horrio alternativo ao trabalho que
realizado com os atendidos, o que explica a ampliao da sua jornada profissional. As
informaes referentes s crianas e adolescentes atendidos so coletadas e
armazenadas em um sistema de banco de dados chamado SAMIS Sistema de
Avaliao de Mudanas e Impactos Sociais. A partir da caracterizao das funes
desempenhadas por estes profissionais, percebemos uma clara diferenciao entre a
forma e a abrangncia de atuao dos educadores sociais e os professores da escola
formal, cabendo aos primeiros um acompanhamento sobre o desenvolvimento das
crianas e adolescentes que vai muito alm daquele realizado apenas dentro do espao
de sala de aula.
H sem dvida, uma grande diferena entre as formas de atuao desses
profissionais: enquanto alguns educadores tm maior facilidade em explorar
determinados contedos, outros se diferenciam pela forma de atuao pedaggica
dentro de um carter de maior ou menor rigidez em relao s questes de disciplina,
maior ou menor empenho na sua funo ampliada de trabalhador social.
Tais variaes nas formas de atuao, nos remetem novamente questo central
deste trabalho e geradora desta nossa pesquisa: em que medida o trabalho do educador
social e a formao contnua oferecida pela ONG tm contribudo para a constituio da
identidade destes profissionais?
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CAPTULO II: A FORMAO DE EDUCADORES SOCIAS E O
PROCESSO DE CONSTITUIO DA IDENTIDADE PROFISSIONAL
2.1 A relao eu /ns e os processos de constituio da Identidade no campo da
psicologia histrico-cultural
Voc tem a individuao de um dia, de uma estao, de um ano, de
uma vida (independente da durao); de um clima, de um vento, de
uma neblina, de um enxame, de uma matilha (independentemente da
regularidade). Ou pelo menos voc pode t-la, consegui-la
(DELEUZE e GUATTARI apud ROSE, 2001, p. 141).
Facilmente as expresses identidade ou carter identitrio remetem-nos
figura singular vivida e representada pelo eu no conjunto de suas manifestaes
individuais (bio-psico-sociais). No entanto, o sujeito individual constitui-se
permanentemente atravs das relaes interpessoais que estabelece e, portanto, falar em
identidade, falar no plural (CIAMPA, 1988 apud MATRICARDI, 2001).
As inmeras discusses tericas em torno do conceito de identidade tm levado
a uma certa crise da idia do eu, antes considerado universal, estvel, unificado,
totalizado, individualizado, interiorizado. No atual cenrio chamado mundo ps-
moderno, proliferam novas imagens subjetivadas do eu: como socialmente
construda, como dialgica, como inscrita na superfcie do corpo, como espacializada,
descentrada, mltipla, nmade, como resultado de prticas epsdicas de auto-
exposio, em locais e pocas particulares. (ROSE, 2001, p.139-140) Tais imagens
revelam-nos um sujeito demasiadamente fragmentado, multifacetado, suscetvel e,
portanto, muito mais plural do que possamos imaginar.
Refletir sobre a identidade nos dias de hoje, requer mais do que nunca que
consideremos o seu carter fluido, descontnuo, plstico, provisrio e simultaneamente
dinmico. Ao sujeito ps-moderno cabe a possibilidade de ocupar uma diversidade
constante de papis e posies, conferindo-lhe uma variedade de pluralidades ou
identidades. Desta forma, podemos dizer que o processo de constituio da
identidade na ps-modernidade sempre marcado pelas incertezas, pela diferena e
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23
conseqentemente pela excluso: ser fluido impede o sujeito de ser slido, ser
descontnuo impede-o de ser linear, ser provisrio impede-o de ser permanente (HALL,
2000). Todas estas rpidas e permanentes mudanas vividas pelos sujeitos ps-
modernos geram a chamada crise de identidade e que segundo Marx j conferia
modernidade um carter muito especfico:
o permanente revolucionar da produo, o abalar ininterrupto de
todas as condies sociais, a incerteza e o movimento eternos ...
Todas as relaes fixas e congeladas, com seu cortejo de vetustas
representaes e concepes, so dissolvidas, todas as relaes
recm-formadas envelhecem antes de poderem ossificar-se. Tudo que
slido se desmancha no ar...( MARX E ENGELS, apud HALL
2005. p. 14).
Na tentativa de compreender esta crise identitria, tm sido produzidas
exaustivas e variadas discusses acerca do tema dentre as diversas reas do
conhecimento. No campo da Psicologia parecem ser mais profcuas tais discusses,
talvez pelo fato de esta cincia investigar mais a fundo as diversas formas de
comportamento humano ou, em outras palavras, as manifestaes mais significativas da
identidade humana.
A psicologia histrico-cultural em especial, cujas razes ideolgicas encontram-
se ancoradas nos princpios norteadores do materialismo dialtico, consegue
aprofundar-se ainda mais nestas discusses, por apresentar como pressupostos
fundamentais os ideais marxistas de intercmbio e transformao permanente entre o
homem e o seu meio social, visto que para Marx (VI Tese de Feuerbach) , uma vida
uma prxis que se apropria das relaes sociais (as estruturas sociais), interiorizando-
as e voltando a traduzi-las em estruturas psicolgicas, por meio da sua atividade
desestruturante-reestruturante. Portanto, toda vida humana se estrutura a partir de um
processo de apropriao das experincias histrico-sociais e culturais herdadas. O
homem considerado um indivduo (do latim, individum, ou aquele que no se divide),
constitui-se e constitudo, transforma-se e transformado permanentemente a partir da
pluralidade das relaes interpessoais que estabelece em seu meio scio-cultural.
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24
Ao nascer, o indivduo apresenta-se como singular essencialmente por suas
caractersticas naturais biolgicas ou genticas, no entanto, atravs de seu contato com
a sociedade que ele vai se transformando num ser cada vez mais complexo:
Somente na relao com os outros seres humanos que a criatura
impulsiva e desamparada que vem ao mundo se transforma na pessoa
psicologicamente desenvolvida que tem o carter de um indivduo e
merece o nome de ser humano adulto. Isolada destas relaes, ela
evolui, na melhor das hipteses, para a condio de um animal
humano semi-selvagem. Pode crescer fisicamente, mas, em sua
composio psicolgica, permanece semelhante a uma criana
pequena (ELIAS, 1994, p. 27).
Para o socilogo alemo Norbert Elias, os seres humanos pertencem
concomitantemente a uma ordem natural e social, caracterizando assim um duplo
carter de constituio. Esta ordem social, peculiar da natureza humana, confere ao ser
humano uma mobilidade e uma maleabilidade que lhe permite diferir do
comportamento dos animais. Os animais herdam da natureza uma forma padronizada
e fixa de controle comportamental em relao aos outros seres e coisas, j no ser
humano este comportamento produzido na companhia de outras pessoas e pela
interao com estas. Assim, os humanos apresentam em determinados momentos aes
regulares e automticas denominadas sociais, em outros momentos regularidades
orgnicas e naturais, contribuintes constituio da sua individualidade.
Segundo Elias (1994) a individualidade humana s se processa e vai se
delineando em sociedade, seja ela mais simples ou mais complexa. No entanto, o grau
de individuao dos sujeitos equivalente ao grau de complexidade proporcionado
pelas relaes que estabelecem na sociedade onde esto inseridos e, portanto, a
compreenso da historicidade dos indivduos um caminho obrigatrio para a
compreenso da sociedade. De acordo com o autor, a sociedade atual tem difundido
fortemente a idia de auto-imagem, o que leva o indivduo a pensar em sua
singularidade quase que desvinculada dos outros com os quais convive e se relaciona.
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25
O que se veicula atravs dela a autoconscincia de pessoas que
foram obrigadas a adotar um grau elevadssimo de refreamento,
controle afetivo, renncia e transformao dos instintos, e que esto
acostumadas a relegar grande nmero de funes, expresses
instintivas e desejos a enclaves privativos de sigilo, afastados do
olhar do mundo externo, ou at aos pores de seu psiquismo, ao
semiconsciente ou inconsciente. Numa palavra, esse tipo de
autoconscincia corresponde estrutura psicolgica estabelecida em
certos estgios de um processo civilizador (ELIAS, 1994, p. 32).
Por outro lado importante ressaltar que neste processo de constituio da sua
estrutura psicolgica, o indivduo no se posiciona de forma passiva em relao s
influncias culturais recebidas por sua sociedade. Ele capaz de process-las
internamente, selecion-las e ir delineando a sua constituio psicolgica individual:
O indivduo no um epifenmeno do social. Em relao s
estruturas e histria de uma sociedade, coloca-se como um plo
activo, impe-se como uma praxis sinttica. Mais do que reflectir o
social, apropria-se dele, mediatiza-o, filtra-o e volta a traduzi-lo,
projectando-se numa outra dimenso, que a dimenso psicolgica
da sua subjectividade (FERRAROTTI, 1988, p. 26).
Desta forma, podemos dizer que a pluralidade do ser uma pluralidade
permanentemente, mutante e subjetiva, concebida em dois momentos distintos: na
relao dele com a sua sociedade e os outros indivduos e na prpria relao que
estabelece consigo mesmo nos diversos momentos de sua vida presente, passada e
futura. Mesmo dentre os indivduos nascidos e desenvolvidos num mesmo meio social e
familiar, as formas como so subjetivadas e interiorizadas as relaes sociais, histricas
e culturais permitem a cada pessoa escrever a sua histria de vida de modo
essencialmente singular:
H uma pluralidade no ser que no a pluralidade das
partes (a pluralidade das partes estaria abaixo da unidade
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26
do ser), mas uma pluralidade que fica acima desta
unidade, porque a das fases do ser, na relao de uma
fase de ser com outra fase de ser (SIMONDON apud
PINEAU, 1988, p.66).
no reconhecimento permanente das nossas singularidades que identificamos a
pluralidade dos seres que compem as nossas identidades, e por meio deste
conjunto de processos mutantes que recompomos constantemente os nossos processos
de interao intrapessoal e interpessoal. Desta maneira, seria extremamente incoerente
propor ao presente estudo embasamentos tericos ancorados em antigos referencias
psicolgicos inatistas ou nativistas e ambientalistas ou
comportamentalistas/behavioristas4 .
A apropriao dos pressupostos da psicologia histrico-cultural ou scio-
interacionista trazidas pelo terico bielo-russo Lev Semenovich Vygotsky, nos parece a
mais apropriada para alimentar as reflexes geradas no decorrer deste estudo. Suas
idias oportunizam um novo olhar sobre as funes psicolgicas humanas, levando em
considerao os caracteres sociolgicos, biolgicos e culturais, aspectos essenciais ao
estudo da individualidade e historicidade humana, sem gerar dicotomias (mente /corpo,
objetividade /subjetividade, natural/ social, razo/ emoo) ou classificaes em
possveis nveis hierrquicos, tal como previa a psicologia tradicional.
Tais pressupostos, amplamente citados na atualidade pelos profissionais da rea
educacional5, apontam para a necessidade de compreender a constituio do sujeito e
sua subjetividade por meio de um conjunto de processos que contribuem para a
individuao humana, levando em conta toda sua historicidade e cultura:
De acordo com o modelo histrico-cultural, os traos de cada ser
humano esto intimamente relacionados ao aprendizado,
4 A abordagem inatista tem como razes as premissas da filosofia racionalista e idealista de Ren Descartes, do sculo
XVII, definindo os traos de constituio humana como hereditrios, genticos e maturacionais, ou seja pr-determinadas e na dependncia apenas de um amadurecimento temporal para manisfestar-se, ignorando assim as influncias scio-culturais. J a abordagem ambientalista (sculos XVII e XVIII), cujos precursores foram os ingleses Francis Bacon, John Locke e Auguste Comte, atribua exclusivamente ao ambiente e as experincias vividas pelo indivduo a responsabilidade de definir a sua constituio psicolgica.
5 Apesar do legado terico de Vygotsky ser muito debatido e considerado uma fonte valiosa de conhecimentos s
atuais prticas pedaggicas, ainda pouco compreendido nas propores necessrias pelos profissionais do campo educacional, o que gera muitas vezes uma apropriao indevida ou equivocada de suas idias.
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aproximao (por intermdio das pessoas mais experientes, da
linguagem e outros mediadores) do legado de seu grupo cultural
(sistemas de representao, formas de pensar e agir, etc.). O
comportamento e a capacidade cognitiva de um determinado
indivduo dependero de suas experincias, de sua histria educativa,
que por sua vez, sempre tero relaes com as caractersticas do
grupo social e da poca em que ele se insere. Assim, a singularidade
de cada indivduo no resulta de fatores isolados (por exemplo,
exclusivamente da educao familiar recebida, do contexto
sciopoltico da poca, da classe social a que pertence), mas da
multiplicidade de influncias que recaem sobre o sujeito no curso de
seu desenvolvimento (REGO, 1995, p.25).
O foco principal das pesquisas desenvolvidas por L.S. Vygotsky intencionava
caracterizar os aspectos tipicamente humanos do comportamento e elaborar hipteses
de como estas caractersticas se formaram ao longo da histria humana e de como se
desenvolvem durante a vida de um indivduo (VYGOTSKY, 1984, 21). Tal interesse
levou-o ao estudo do que ele denominou de processos psicolgicos tipicamente
humanos ou funes psicolgicas superiores: controle consciente do comportamento,
ateno e lembrana voluntria, memorizao ativa, pensamento abstrato, raciocnio
dedutivo, capacidade de planejar e estabelecer relaes, imaginao etc. Tais funes,
consideradas por Vygotsky como mecanismos psicolgicos mais sofisticados, no esto
presentes no indivduo desde o seu nascimento. Elas necessitam de um processo de
desenvolvimento e maturao, viabilizado atravs das interaes scio-culturais
estabelecidas. A forma como se processam tais funes nos diversos momentos de
constituio do sujeito carregada por uma grande carga de subjetividade e interpretada
das mais diversas formas pelos estudiosos da obra vygotskyana.
Dentre os seguidores de Vygotsky, existe uma variedade de perspectivas no que
se refere ao estudo dos processos subjetivos de interao e sobre as implicaes destes
processos na constituio do sujeito. As anlises realizadas proporcionam reflexes
sobre as influncias dos aspectos intrapsicolgicos ou intra-individuais e os aspectos
interpsicolgicos ou interindividuais no desenvolvimento e aquisio das funes
psicolgicas superiores.
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Valsiner por exemplo, analisa a constituio do sujeito tendo como ptica
central os seus aspectos intrapsicolgicos, desenvolvendo uma proposta terica a qual
denominou de perspectiva co-construtivista:
A noo de cultura pessoal refere-se no somente ao fenmeno
subjetivo internalizado (processo intrapsicolgico), mas s imediatas
(centrado na pessoa) externalizaes destes processos (VALSINER,
apud Molon, 2003, p.5).
Para o referido autor no ocorre a dissoluo do sujeito no social. Todas as
pessoas so co-construtoras de idias, contribuindo por entender e ajustar conceitos e
significados de forma totalmente singulares:
a pessoa constri uma cultura pessoal (anticorpus da cultura
coletiva) atravs de sua experincia prvia; a pessoa em
desenvolvimento pode estar imune as sugestes do meio social,
utilizando uma variedade de estratgias: ignorando, neutralizando,
trivializando, resistindo, rejeitando. Essas estratgias desenvolvidas
permitiro a construo de uma cultura pessoal e a diferenciao da
cultura coletiva. A relao da pessoa com a realidade social caminha
em direo co-construo da individualidade da pessoa construindo
a cultura pessoal (MOLON, 2003, p.51).
Wertsch (1988) por sua vez privilegia em seus estudos os processos
interpsicolgicos, que segundo ele possibilitam a transio aos aspectos
intrapsicolgicos. Para ele, tal transio s se torna possvel por meio da utilizao dos
instrumentos semiticos (linguagem e instrumentos). O autor utiliza como exemplos as
situaes de aprendizagem compartilhada entre o adulto e a criana, em que os nveis de
intersubjetividade vo se desenvolvendo. Num primeiro momento a forma como a
criana vai definindo a situao que colocada pelo adulto to diferente deste, que
no possvel que ela vivencie um processo intersubjetivo. Num segundo momento j
existe para a criana um entendimento da situao que compartilhada. Num terceiro
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momento ela j consegue interpretar e realizar inferncias em relao situao
proposta pelo adulto e, num quarto momento a criana e o adulto conseguem estabelecer
uma intersubjetividade completa; a criana j consegue dominar a situao que
colocada pelo adulto tornando-se co-responsvel pela mesma.
Autores como Smolka, Ges (1993) e Pino (1990) insistem na proposta de
superao do dualismo entre os aspectos intrapsicolgicos e interpsicolgicos,
enxergando a constituio do sujeito a partir do estabelecimento de processos dialticos
entre ambos, sob o enfoque de uma dimenso semitica e subjetiva: no o plano do
outro, mas o da relao com o outro. A intersubjetividade inter-relao,
interao.[...] Dessa forma, o mundo o lugar de constituio de subjetividade (Ges,
1993, p.8).
Considerando a citao de Ges, que enxerga o mundo como o lugar de
constituio de subjetividade (ibidem), no podemos deixar de considerar que nos
processos de formao em servio so experienciadas, nas mais diversas formas e
dimenses, as esferas intra e interpsicolgicas de aprendizado.
Este carter subjetivo e intermitente entre os aspectos inter e intrapsicolgicos
vividos pela pessoa na infncia continuam presentes nos processos de desenvolvimento
e aprendizado durante todas as etapas da sua vida adulta.
Reportando aos processos de formao em servio dos educadores sociais,
podemos considerar que todos os contedos e vivncias experienciadas e as formas de
interao, interpretao e interiorizao destes mesmos contedos e mtodos pertinentes
prtica pedaggica contribuam para as formas subjetivas de constituio da identidade
profissional e pessoal dos mesmos.
Os estudos relacionados aos aspectos da mente humana no se constituem
tarefas fceis de investigao, visto contarem com uma gama enorme de complexidade
e subjetividade. Se atravs da mediao com o outro social que me constituo enquanto
pessoa, atravs desta mesma mediao que poderei autoconhecer-me , desvelar-
me, compreender melhor quais princpios valorizo, que desejos e aspiraes
impulsionam minhas aes e de que forma o meu modo de ser, pensar, agir e sentir
contribuem para o alcance das minhas realizaes pessoais e daqueles com os quais me
relaciono. A identidade , portanto, sempre marcada pela diferena, visto que atravs
do reconhecimento do outro que nos autoconhecemos: A identidade define, portanto,
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nossa capacidade de falar e de agir, diferenciando-nos dos outros e permanecendo ns
mesmos (MELUCCI, 1991, p.45), ou parafraseando Sartre (1960): para o homem
conhecer-se necessrio primeiramente, que o outro o reconhea (informao
verbal). Assim s vamos reconhecendo a nossa prpria identidade na medida em que os
outros vo nos dizendo, ainda que tambm de forma subjetiva como eles nos vem:
A construo da identidade depende do retorno de informaes
vindas dos outros. Cada um deve acreditar que sua distino
ser, em toda oportunidade, reconhecida pelos outros e que
existir reciprocidade no reconhecimento intersubjetivo. (Eu
sou para Ti o que Tu s para Mim) (MELUCCI, 2004, p. 45).
Esta subjetividade, segundo Leite (1999) expressa primeiramente atravs da
nossa conscincia individual, que se constitui a partir das influncias recebidas pela
conscincia social. A conscincia social expressa toda a herana cultural de uma
sociedade e atravs da apropriao deste legado social que a pessoa vai delineando a
sua conscincia individual. Neste sentido, conseguimos reconhecer a nossa constituio
identitria, se reconhecermos a constituio identitria daqueles com os quais nos
relacionamos e vice-versa.
Sendo assim, a subjetividade pode ser compreendida como o produto das
relaes e mediaes emocionais que surgem no decorrer do desenvolvimento da
pessoa, dessa articulao social-individual (LEITE, 1999).
A subjetividade pode ser melhor compreendida pela intrnseca relao existente
entre identidade e conscincia, decorrentes do prprio significado conceitual dessas
palavras. Se recorrermos s explicaes propostas pelos dicionrios (FERREIRA,
2004), encontraremos as seguintes definies para os conceitos acima: identidade -
caracteres prprios e exclusivos duma pessoa; conscincia - percepo que um
organismo tem de si e do que o cerca (Ferreira, 2004, p. 459, 259). A subjetividade,
portanto, sugere a forma relativa como compreendemos nosso prprio eu e envolve os
nossos pensamentos e emoes (HALL, 2000, p. 55).
A definio terica de conscincia trazida por Damsio (2000) nos parece a mais
oportuna para as reflexes que realizamos neste trabalho:
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A conscincia, de fato, a chave para que se coloque sob escrutnio
uma vida, seja isso bom ou mau; o bilhete de ingresso, nossa
iniciao em saber tudo sobre fome, sede, sexo, lgrimas, riso, prazer,
intuio, o fluxo de imagens que denominamos pensamentos, os
sentimentos, as palavras, as histrias, as crenas, a msica e a
poesia, a felicidade e o xtase. Em seu nvel mais simples e mais
elementar, a conscincia permite-nos reconhecer um impulso
irresistvel para permanecer vivos e cultivar o interesse pelo self. Em
seu nvel mais complexo e elaborado, a conscincia ajuda-nos a
cultivar um interesse por outras pessoas e a aperfeioar a arte de
viver (p.20).
Sendo assim, tudo aquilo que somos e sabemos, ou tudo aquilo que sabemos que
somos, s possvel pelos acessos mentais proporcionados por nossa conscincia,
levando em conta o carter subjetivo segundo o qual ela se constitui. Desta forma, a
partir das relaes estabelecidas pelo homem com a sua realidade que vo sendo
delineadas as formas subjetivadas dos pensamentos em sua mente, ou seja, a sua forma
consciente de enxergar esta mesma realidade e de enxergar-se a si prprio.
A identidade, portanto, sendo considerada como um estado permanente de
inconcluso e devir conserva o seu carter mutante pelos sucessivos momentos de
tomada de conscincia que a pessoa vai tendo das suas caracterstica pessoais e dos
outros que o cercam. Portanto, no possvel discutirmos o conceito de identidade
pessoal e profissional sem levarmos em conta o carter subjetivo e perceptivo inerente a
este tema.
2.2 A formao da Identidade Profissional
A formao assemelha-se a um processo de socializao, no decurso
do qual os contextos familiares, escolares e profissionais constituem
lugares de regulao de processos especficos que se enredam uns nos
outros, dando uma forma original a cada histria de vida. Na famlia
de origem, na escola ,no seio dos grupos profissionais, as relaes
marcantes, que ficam na memria, so dominadas por uma
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bipolaridade de rejeio e de adeso. A formao passa pelas
contrariedades que foi preciso ultrapassar, pelas aberturas
oferecidas(DOMINIC, 1985, p.60).
A crise da identidade docente j vem sendo discutida h algumas dcadas e tem
sido pauta permanente de reflexes nas mais diversas reas no campo cientfico, como a
sociologia, a filosofia, a histria, as cincias polticas e, inclusive, a psicologia. Mas, se
estas discusses esto ficando cada vez mais acirradas, necessrio explicitarmos de
qual crise estamos falando. Em cada uma destas cincias, o olhar sobre a constituio da
identidade docente denota as especificidades da rea que privilegiam, no entanto, se
valorizamos a formao integral do homem, devemos considerar os diversos pontos de
vista relativos a esse assunto em cada uma destas reas.
Neste trabalho o foco das reflexes sobre a temtica da identidade docente
considera as questes relativas ao percurso histrico-cultural dos sujeitos, aos
momentos de valorizao/desvalorizao profissional pelo qual passaram e considera a
formao em servio como uma das possveis alternativas de reafirmao identitria.
Dentro desta perspectiva, revisitar o passado pode ser um caminho importante
para a compreenso do momento presente no mbito da identidade docente. Recorrendo
aos estudos histricos da profisso docente realizados por Antnio Nvoa (1995, p. 27)
em seu livro Profisso Professor encontramos descries sobre as trajetrias destes
profissionais nas ltimas dcadas. Na Europa, no incio da histria docente a profisso
de professor era muito pouco especializada e exercida por membros da Igreja Catlica
ou outros profissionais leigos. No decorrer dos sculos XVII e XVIII a Igreja Catlica
foi conferindo ao corpo docente uma srie de conhecimentos, tcnicas, normas e valores
da profisso, configurando-lhe um carter mais uniforme. A partir do final do sculo
XVIII inicia-se a interveno do Estado num processo de transformao, passando a
conceber de forma coorporativa o ofcio da profissionalizao docente, sendo permitido
ensinar somente queles que possuam licena ou autorizao do Estado. Na dcada de
1960 os professores eram praticamente ignorados, reconhecidos apenas como nmeros
estatsticos e por seus papis formalizados e a profisso docente era reduzida a um
conjunto de competncias tcnicas. No decorrer dos anos 1970 eles eram vistos como
viles e acusados de contriburem para acirrar a reproduo das desigualdades sociais.
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A dcada de 1980 caracterizou-se por um aumento dos recursos de controle sobre os
docentes e o desenvolvimento de prticas institucionais de avaliao.
No Brasil o percurso histrico destes profissionais recebeu constantes
influncias dos pases europeus dentre outros. Embora as discusses acerca dos aspectos
de formao e profissionalizao docente tenham se iniciado no Brasil j no incio da
dcada de 1970, elas s se intensificaram a partir do final dos anos de 1990, quando foi
concretizada a aprovao da Lei de Diretrizes e Bases da Educao Nacional (n
9394/96), a qual reconheceu os professores e pedagogos como profissionais da
educao (art.61 e 67). Foi justamente no decorrer dos anos de 1990 que se acentuaram
os interesses pelas abordagens autobiogrficas, dando vozes aos professores como
uma forma de valorizao destes profissionais.
Pesquisas realizadas pela ANPED, no perodo compreendido entre 1995-2002
constataram uma acentuada utilizao do termo profissionalizao nas produes
acadmicas.
Tomando como referncia este histrico, percebemos o quanto ainda recente a
temtica da formao de professores no campo das reformas educativas:
s a partir deste perodo que gradualmente as prticas de ensino
comeam a ganhar maior ateno, complementadas,
progressivamente, por um olhar sobre a vida e pessoa do professor.
De fato, no parece ser mais possvel aos e pesquisadores deixarem
de considerar como prioritrias as questes que afetam diretamente a
vidas dos professores, entre os quais o desprestgio profissional e o
desnimo que toma conta da maioria deles em decorrncia,
principalmente, da perda de autonomia e da degradao salarial
(BUENO, apud NVOA, 1994, p. 13).
Para Nvoa esta falta de autonomia justifica o fato de os docentes se apoiarem
cada vez mais na figura dos especialistas e desvalorizarem os conhecimentos e
experincias prprias acumulados no decurso profissional, alm do que, a falta de
estima profissional coloca por terra qualquer proposta de formao e desenvolvimento.
Ao revermos a histria da profisso docente podemos identificar fortes paradigmas
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culturalmente instalados na figura do professor em nossa sociedade, e que necessitam
serem rompidos a fim de possibilitar uma nova reafirmao identitria.
Atribui-se identidade docente uma srie de caracteres muito generalistas e na
maioria das vezes pouco fundamentados, como por exemplo, a questo da formao
bsica precria, a falta de envolvimento e motivao profissional, o baixo grau de
identificao vocacional, pois:
no imaginrio social, as professoras no tm histria porque repetem,
repetem cursos, programas, conhecimentos, prticas, dia a dia, ano a
ano, durante dcadas de sua carreira profissional ... necessrio
propiciar a gerao de formas de contra-memria, ou seja, ao propor
aos professores um trabalho de pesquisa e de reflexo a respeito de
suas histrias de formao intelectual, desenvolve-se um tipo de
anlise que no apenas ultrapassa os limites dos estudos centrados
nas prticas docentes mais imediatas, mas os leva sobretudo a
desenvolver um processo de desconstruo das imagens e esteretipos
que se formaram sobre o profissional no decorrer da histria
(CATANI, 1997, p. 29).
A ruptura com estes paradigmas no pretende desconsiderar o passado histrico
da carreira docente, nem tampouco fechar os olhos para a difcil realidade na qual esto
inseridos estes profissionais, mas sim deflagrar contra um discurso comum inculcado
neste imaginrio social.
Os processos de formao em servio e pesquisas realizadas a partir das
histrias de vida dos professores podem ser considerados como propulsores de reflexes
acerca da construo da identidade docente, construtos de ruptura destes paradigmas e
resgate da auto-estima profissional.
Dumazedier (apud PINEAU 1985, p. 65), considera que o processo de formao
alm de um processo de heteroformao (ao dos outros) e ecoformao (ao do
meio ambiente) um processo de autoformao, num reforo do desejo e da
vontade dos sujeitos de regular, orientar e gerir cada vez mais eles prprios o seu
processo educativo.
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Dentro deste conjunto de proposies, as histrias de vida remetem os
indivduos para um processo de interioridade onde a prpria pessoa que se forma.
Em virtude da inerente disponibilidade que lhes exigida de entrar em cont