Historia educação

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Revista “O Teatro Transcende” do Departamento de Artes – CCE da FURB ISSN 2236-6644 Blumenau, v. 16, n. 2, p. 03-14, 2011. 3 SOBRE REQUISITOS DE FORMAÇÃO SUPERIOR EM ARTES CÊNICAS: O ARTISTA COMO EMPREENDEDOR Prof. Dr. Gláucio Machado Santos 1 Doutor em Artes Cênicas PPGAC-UFBA [email protected] Neste trabalho, congrego e consolido observações já esboçadas nas comunicações Um certo olhar sobre a pré-encenação e O diretor teatral como empreendedor: perspectiva histórica e sugestões de formação apresentadas respectivamente no VI Congresso da Associação Brasileira de Pesquisa e Pós-Graduação em Artes Cênicas (ABRACE) e na VI Reunião Científica da mesma entidade. Desta forma, o presente artigo apresenta-se como resultado final das atividades do projeto de pesquisa intitulado Encenação: práticas de ensino e caminhos para a sustentabilidade ligado ao Grupo de Pesquisa em Encenação Contemporânea (G-PEC) registrado no CNPq. Pretendo contribuir para um início de reflexão acerca de novos conteúdos transdisciplinares na formação dos artistas cênicos no Brasil. A necessidade de tal incremento nasce de minha experiência como docente em nível superior na área e tem como inspiração as considerações das professoras Edinice Mei Silva e Lessandra Scherer Severo, constantes no resumo do artigo Sistema Stanislavski: o processo criativo nas organizações, da área de Ciências da Administração: Grande parte dos problemas enfrentados pelas organizações, no atual quadro econômico e comercial, já não aceita soluções anteriormente utilizadas. Isso impõe à sociedade a necessidade de desenvolver a criatividade na busca de diferenciação profissional e organizacional. Dito isto, o presente artigo busca, através de pesquisa teórica, explorar de forma interdisciplinar a interação de duas áreas: Artes Cênicas e Ciências da Administração. (SEVERO e SILVA, 2006:s/p)

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  • Revista O Teatro Transcende do Departamento de Artes CCE da FURB ISSN 2236-6644 Blumenau, v. 16, n. 2, p. 03-14, 2011.

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    SOBRE REQUISITOS DE FORMAO SUPERIOR EM ARTES CNICAS:

    O ARTISTA COMO EMPREENDEDOR

    Prof. Dr. Glucio Machado Santos1

    Doutor em Artes Cnicas

    PPGAC-UFBA

    [email protected]

    Neste trabalho, congrego e consolido observaes j esboadas nas comunicaes Um

    certo olhar sobre a pr-encenao e O diretor teatral como empreendedor: perspectiva

    histrica e sugestes de formao apresentadas respectivamente no VI Congresso da

    Associao Brasileira de Pesquisa e Ps-Graduao em Artes Cnicas (ABRACE) e na VI

    Reunio Cientfica da mesma entidade. Desta forma, o presente artigo apresenta-se como

    resultado final das atividades do projeto de pesquisa intitulado Encenao: prticas de ensino

    e caminhos para a sustentabilidade ligado ao Grupo de Pesquisa em Encenao

    Contempornea (G-PEC) registrado no CNPq.

    Pretendo contribuir para um incio de reflexo acerca de novos contedos

    transdisciplinares na formao dos artistas cnicos no Brasil. A necessidade de tal incremento

    nasce de minha experincia como docente em nvel superior na rea e tem como inspirao as

    consideraes das professoras Edinice Mei Silva e Lessandra Scherer Severo, constantes no

    resumo do artigo Sistema Stanislavski: o processo criativo nas organizaes, da rea de

    Cincias da Administrao:

    Grande parte dos problemas enfrentados pelas organizaes, no atual quadro

    econmico e comercial, j no aceita solues anteriormente utilizadas. Isso impe

    sociedade a necessidade de desenvolver a criatividade na busca de diferenciao

    profissional e organizacional. Dito isto, o presente artigo busca, atravs de pesquisa

    terica, explorar de forma interdisciplinar a interao de duas reas: Artes Cnicas e

    Cincias da Administrao. (SEVERO e SILVA, 2006:s/p)

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    A constatao das professoras indica uma possibilidade de interao que, em minha

    pesquisa, serve de base para um raciocnio em outro sentido. Se, por um lado, h um

    esgotamento de solues detectado dentro das organizaes, por outro, h uma sria carncia

    de recursos de gesto no mbito da criao e manuteno de espetculos teatrais no Brasil por

    parte dos iniciantes na rea. Tal insuficincia fruto de uma formao que afasta o artista da

    intimidade com trmites administrativos.

    Da mesma forma que as docentes percebem a interao dessas duas reas como fonte

    criativa para questes em Cincias da Administrao, acredito que essa mesma interao

    oferece preciosos contedos para a construo da noo de empreendedorismo nas Artes

    Cnicas, encaminhando assim reais oportunidades de sustentabilidade para as realizaes de

    artistas recm formados. Enfatizo que a intimidade com a gesto no estranha tradio de

    criao nessa rea. Para demonstrar esses laos, inicio uma reviso sobre o passado do Teatro.

    Comeo minhas consideraes histricas a partir da sugesto de nio Carvalho, ao

    acenar para uma proto-histria de nossa arte cnica, por volta de 3.000 a.C., segundo a qual:

    As manifestaes religiosas do antigo Egito j conotavam a possibilidade de uma

    continuidade cnica, em que um ser desencarnado poderia readquirir vida atravs de

    um ser vivo. Assim, as representaes dos mistrios, como dramas litrgicos, nas

    cerimnias funerrias do culto do deus Osris prenunciavam os rituais dionisacos,

    que seriam os precursores do teatro grego [...] Tanto a anunciao das personagens

    quanto suas evolues cnicas estariam previamente escritas para que os

    espectadores pudessem distinguir os locais designados na sucesso das cenas.

    (CARVALHO, 1989, p.14)

    Sobre tais manifestaes, Nelson de Arajo salientava igualmente as descobertas com relao

    organizao de representaes litrgicas no Egito Antigo:

    Descobertas relativamente recentes, a que se associaram os nomes dos

    pesquisadores Etienne Drioton, Kurt Sethe e outros mais prximos, deram conta da

    existncia de representaes litrgicas no Egito antigo, confirmando assim

    indicaes do historiador grego Herdoto. (ARAJO, 1991,p.69)

    Quanto a isso, Margot Berthold destaca que os estgios do destino de Osris

    constituem as estaes do grande mistrio de Abidos. Os sacerdotes organizavam a pea e

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    atuavam nela. O clero percebia quo vastas possibilidades de sugesto das massas o mistrio

    oferecia (BERTHOLD, 2001, p.11). J no Egito Antigo, constata-se uma inquietao quanto

    ao comportamento do pblico em face da cena religiosa. A ateno do sacerdote egpcio

    objetivava levantar elementos para aperfeioar o desempenho do conjunto e com isso criar um

    espetculo cuja recepo disseminasse no povo a vontade e a verdade do fara. Conforme

    indica Lon Moussinac, tais encenaes tinham um cunho assumidamente poltico: Podemos

    mesmo pensar, segundo as indicaes que possumos, que ele [o teatro egpcio antigo] teria,

    por vezes, um sentido poltico, que se afirmava, sobretudo fora do templo (MOUSSINAC,

    1957, p.35).

    Ainda com ateno sobre esse momento, a professora Robyn Gillam (2006) organiza

    uma pesquisa visando discutir a performance realizada poca. Por intermdio de seu

    trabalho, pude perceber tambm que a elaborao de cortejos pblicos em Abidos tem ntima

    ligao com a necessidade de disseminao da ideologia que sustenta a credibilidade do fara

    perante o povo. A partir da, cria-se uma rede de interesses para que essa representao

    acontea. Assim sendo, j nos primrdios da elaborao de cenas teatrais, consolida-se a

    necessidade de negociar e arregimentar recursos fsicos para a efetivao da obra.

    Richard Schechner indica que Via Creta e outras rotas mediterrneas os gregos

    tiraram muito dos egpcios incluindo-se a ideia de que o teatro um festival: algo que

    acontece num momento especial e em um lugar especial2 (SCHECHNER, 1973, p.21). No

    se pode ignorar o fato de o Egito ter sido colnia da Grcia. Haja vista a proximidade

    geogrfica veicularam-se inmeros intercmbios por pelo menos mil anos desde as

    manifestaes religiosas de Abidos at as Grandes Dionisacas.

    Considero como um aprimoramento da ateno do sacerdote-diretor egpcio a

    consciente perspiccia do tragedigrafo e do corus didascalus grego ao encarar o espetculo

    teatral per si como um meio especial de comunicao com o povo, como ressalta Moussinac:

    A epopia e a religio nunca deixaram de secundar esse teatro, de tal forma que Plutarco se

    permitir qualificar a tragdia pr-esquiliana de instrumento de educao dos Gregos

    (MOUSSINAC, 1957, p.38).

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    Com isso, a relao do dramaturgo grego com o corega, seu financiador, est imersa

    numa rede de interesses que opera no nvel poltico-social e cujos princpios podem ser

    identificados j no Antigo Egito. Dessa forma, aquele que organiza a cena, ou que constri o

    espetculo, tem a responsabilidade de estar frente de um empreendimento com srios

    impactos. Essa conscincia se estabelece da mesma maneira e ao mesmo tempo em que a

    primeiras convenes da cena so construdas. Alis, tal capacidade de gesto e negociao

    pode ser vista como uma conveno extra palco.

    Michel Pruner (2005) salienta igualmente a complexidade da fbrica teatral e todos

    os elementos que interferem na sua realizao desde os primrdios dessa atividade.

    Propositadamente, esse autor utiliza o termo fbrica para qualificar o seu objeto de estudo

    devido aos intricados desdobramentos ligados ao ato de elaborar um espetculo. A produo

    de peas, ou a organizao da cena mais especificamente, aprimorou-se em funo de sua

    relao direta com as variadas realidades sociais onde o teatro se desenvolvia. As ntidas

    diferenas de temperamento das sociedades na Grcia e em Roma determinaram mudanas

    profundas na estrutura das apresentaes. Ainda segundo o autor constata-se a relao direta

    da transformao do espao teatral com essas condies. As modificaes observadas pelo

    autor refletem as palavras de Jean Duvignaud quando observa que as artes cnicas se

    constituem como uma arte 'enraizada', a mais engajada de todas as artes na trama viva da

    experincia coletiva, a mais sensvel s convulses que abalam uma vida social em estado

    permanente de revoluo (DUVIGNAUD apud SOARES DOS SANTOS, 1994, p.71).

    Os caracteres da sociedade romana vo ditar um novo ambiente dentro do qual os

    artistas cnicos tero que desenvolver as suas habilidades como empreendedores. O termo

    dominus gregis aplicava-se para designar o diretor teatral, enquanto que o curule aediles era o

    responsvel pela fiscalizao e realizao das mais variadas obras pblicas, incluindo-se o

    pagamento de subsdios aos grupos teatrais. Lcio Ambivius Trpio dirigiu peas de Terncio

    em sua companhia. Segundo Margot Berthold: A troupe de Trpio tinha boa reputao junto

    ao curule aediles e como dominus gregis sabia de que maneira conduzir ao sucesso as

    comdias por ele recomendadas (BERTHOLD, 2001, p.48). Nota-se, dessa forma, uma

    contribuio dos conhecimentos de organizao cnica para a boa recepo de um evento

    teatral. Uma vez que os textos eram compartilhados, essa conduo e a capacidade de

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    negociao dos diretores distinguiam as trupes. Cabia ao dominus gregis dominar a estrutura

    de construo do espetculo, inclusive no mbito dos recursos financeiros e materiais, com o

    intuito de levar a sua encenao ao sucesso de pblico. Esse domnio inclua a capacidade de

    negociao com o curule aediles de modo a obter o financiamento e as autorizaes

    necessrias para suas as apresentaes.

    O apelo do sucesso levou o teatro romano a condies extremas de prticas teatrais. O

    deboche, a crueldade, a ousadia, as obscenidades, os excessos tomaram conta das

    apresentaes e, ao serem enaltecidos pelo gosto dos romanos, acabaram por determinar uma

    modificao total da cena:

    Faziam-se apostas nas corridas de cavalos; e os pugilatos, os combates de

    gladiadores, as batalhas navais em miniatura, realizadas dentro dos anfiteatros, e

    todos os festejos, onde, quase sempre se derramava sangue humano, eram tomados

    como uma espcie de droga, cuja dose se tornava indispensvel aumentar em virtude

    do hbito. Tais espectculos haviam comeado, em fins da Repblica, com

    verdadeiros deboches de mise-en-scne: depressa, porm, o povo exigiu que sangue

    verdadeiro corresse e mortes autnticas se dessem. E to bestial realismo destruiu

    por completo a virtuosa purificao que a fico, humilhando assim a Arte.

    (PIGNARRE, 1979, p.44)

    Um dos alvos prediletos desse bestial realismo, os cristos sofreram inmeros

    insultos. Com a ascenso da Igreja na Europa, o teatro fica banido dos palcos construdos e

    das apresentaes oficiais em retaliao a todo o escrnio e toda a falta de respeito tpicos dos

    espetculos latinos. Chega-se a supor que a atividade tenha sido totalmente esquecida. John

    Gassner delimita o teatro como trancado a sete chaves do sc. V ao sc. X e indica que a

    Igreja conseguira suplantar por completo o templo de Dionisos (GASSNER, 1974, p.157).

    No entanto, preciso notar a permanncia da atividade teatral durante toda a Idade Mdia.

    Trabalhos como o de Mikhail Bakhtin permitem o reconhecimento de intensa produo

    artstica popular no perodo (BAKHTIN, 1987). Carlo Ginzburg, ao comentar os estudos de

    Bakhtin, sustenta que:

    [...] os protagonistas da cultura popular que ele tentou descrever camponeses, artesos nos falam quase s atravs das palavras de Rabelais. justamente a riqueza das perspectivas de pesquisa indicadas por Bakthin que nos faz desejar, ao

    contrrio, uma sondagem direta, sem intermedirios, do mundo popular. Porm,

    pelos motivos j levantados, substituir uma estratgia de pesquisa indireta por outra

    direta, neste tipo de trabalho, por demais difcil. (GINZBURG, 1987, p.21)

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    O prprio Gassner (1974) termina por reconhecer a permanncia da arte cnica da rua,

    a arte do vagamundo; porm, a falta de documentao direta, conforme indicada por

    Ginzburg, incentivou a percepo de um hiato na produo teatral.

    J pelos fins da Idade Mdia, nas regies onde se encontram hoje pases como

    Alemanha, Itlia, Frana, Rssia, Hungria e Polnia, mecenas aristocrticos abrigaram em

    seus palcios no somente os eventos artsticos como tambm os seus processos de criao. A

    arte teatral que sobreviveu na rua foi paulatinamente sendo abrigada no interior dos palcios e

    fortificaes.

    Catarina de Mdicis tornou-se figura com destaque dentre esses incentivadores devido

    ao seu grande apreo pelas apresentaes na corte e sua preocupao em fornecer uma

    estrutura que permitisse o melhor desenvolvimento desses espetculos. Ela , inclusive,

    apontada como a grande responsvel pela consolidao do bal clssico, principalmente em

    funo de suas determinaes quando se tornou monarca na Frana:

    O germe daquilo que se converteria no bal foi levado Frana por Catarina de

    Mdicis [...] a rainha ento importou da Itlia artistas e cortesos especializados na

    preparao de luxuosos espetculos, e lhes encomendou um sem-nmero de

    diverses [...] O espetculo era uma combinao de dana, canto e textos falados, e

    seu objetivo era claramente social e poltico: um passatempo elegante para o

    monarca e sua corte. (FARO, 1986, p. 32)

    Em determinados casos, grupos de teatro j formados eram convidados a instalar as

    suas atividades e as suas sedes dentro dos castelos. Em outras circunstncias, o prprio nobre

    selecionava artista por artista, formando elencos, orquestras e ensembles de bal. Tambm

    como exemplo, registro a iniciativa do prncipe Joseph Esterhzy, membro da famlia mais

    rica do Imprio Austro-Hngaro. No Castelo de Joseph Esterhaz, havia um teatro com

    aproximadamente 180 lugares onde trabalhavam inmeros artistas de diversas reas, dentre

    eles Joseph Haydn. No livro sobre a vida do compositor, Pierre Barbaud (1960), menciona o

    contrato de trabalho, com catorze pargrafos, dos quais doze eram sobre as obrigaes de

    Haydn e apenas dois indicavam a sua remunerao.

    Os contratados serviam exclusivamente ao seu patro, sobrevivendo apenas s custas

    desse. Como consequncia, as edificaes da realeza abrigaram salas de espetculos, muitas

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    vezes extremamente bem equipadas, construdas segundo as necessidades profissionais dos

    artistas residentes, mas tambm limitadas pelos recursos financeiros e pelos interesses de seus

    mantenedores.

    J na Gr-Bretanha, poca elisabetana, as trupes teatrais eram convidadas apenas

    para realizar representaes dentro dos castelos durante as festas da nobreza. Conforme

    Paterson (1961) tais apresentaes ocorriam em sales adaptados, havendo, no mximo, um

    depsito de materiais cenogrficos nos palcios sob a responsabilidade do Master of Revels

    Office; uma espcie de chefe, produtor, organizador e censor das peas montadas nessas

    ocasies. Portanto, todas as construes destinadas aos espetculos de teatro, como The Globe

    Theatre, The Swan Theatre ou The Rose Theatre, constituam iniciativas individuais, cujos

    elencos e tcnicos eram mantidos graas remunerao obtida pela receita de bilheteria e

    pelos cachs recebidos por suas apresentaes encomendadas.

    A gerncia do edifcio teatral como negcio obrigatoriamente lucrativo e sustentvel

    nasce na Inglaterra j no perodo elisabetano. Ela foi estimulada pela falta de abrigo sob os

    auspcios da realeza para as companhias conceberem realizaes teatrais mais permanentes.

    Essa conjuntura acabou por incentivar um regime de produo orientado para cada espetculo

    como aglutinador momentneo de artistas e tcnicos. Dependendo do sucesso de pblico de

    cada pea, a prxima poderia contar com a mesma equipe ou no.

    Acredito evidenciar com os recortes e a leitura encaminhada at o momento a ntima

    ligao da atividade teatral com habilidades de gesto dentro de ambientes sociais os mais

    diversos. Tais habilidades indicam aspectos que podem ser reconhecidos, hoje, na realidade

    do mercado teatral brasileiro. A articulao de projetos para editais com diretrizes polticas

    como contrapartidas sociais, a capacidade de busca de financiamento, o discurso junto

    iniciativa privada, a utilizao de leis de incentivo so exigncias para a insero do artista de

    teatro no mercado. Sublinho que a figura do produtor isolado ainda existe, mas cada vez

    maior a necessidade de o ator ou o diretor estar frente de seus empreendimentos, num

    exerccio prximo ao do teatro elisabetano ou romano.

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    Em paralelo a tal constatao, lembro do fato de termos cursos superiores para

    interpretao e direo teatral inseridos no mbito universitrio. Essa caracterstica deveria ser

    melhor aproveitada na medida em que os alunos tm a oportunidade de aprender tambm no

    ambiente das Escolas de Administrao. O trnsito de docentes e discentes poderia suprir

    demandas na interseo das reas, enriquecendo os currculos de ambas as partes e

    preparando o jovem artista para melhor dialogar com a realidade brasileira de produo

    teatral.

    Enfatizo que no se trata apenas de treinar o aluno para a gesto ou de obrig-lo a

    aceitar a realidade de mercado como uma regra a ser seguida. Trata-se, pois, de prepar-lo

    para o dilogo, faz-lo conhecer tambm as necessidades e as solues inerentes ao processo

    de criao teatral como empreendimento. Dentro desse aprendizado, o artista desenvolve

    argumentos e prticas para interferir na dita realidade, transformando-a como agente

    produtivo. Assim sendo, a ideia da arte como ofcio, cujos meios de viabilizao fsico-

    financeira so conhecidos pelo artista, inseparvel da tradio do prprio teatro.

    De fato, a consolidao das casas de espetculos como espaos de contratao de

    artistas e a emergncia dos produtores independentes tanto na Europa quanto nos EUA

    sugeriram uma estrutura curricular para o ensino de Artes Cnicas onde o aprendiz

    preparado para ser um empregado. No entanto, estabelecer-se como um empregado no a

    colocao oferecida pelas oportunidades de trabalho em teatro encontradas na maioria das

    cidades brasileiras.

    Por outro lado, os egressos dos cursos Licenciatura em Teatro encontram, sim, uma

    rede de escolas, sejam pblicas ou privadas, que proporcionam a sua insero como

    empregado. O emprego, no sentido profissional da palavra, existe para o licenciado de modo

    totalmente diferente em relao ao bacharel.

    Faz-se necessrio mudar o paradigma do ensino de Artes Cnicas nos bacharelados

    para uma formao que tambm ressalte a capacidade de obter e lidar com os mais diversos

    recursos. Um sintoma ntido de tal carncia o crescente nmero de montagens com poucos

    atores e quase ausncia de cenrios. Na maioria dos casos, a opo pela simplicidade e pela

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    diminuio dos componentes do elenco no tem sido fruto de uma autenticidade artstica, ou

    de uma potica prpria. Ela o resultado da falta de capacidade de obter materiais e lidar com

    diferentes agendas de atores, o que leva o aluno a escolher trabalhar com menos pessoas e

    dispensar qualquer ambientao cenogrfica mais complexa.

    A dificuldade de conciliar horrios e o desafio de levantar subsdios fsico-financeiros

    so parte integrante do labor do artista cnico desde os primrdios do seu ofcio. A sua

    atividade coletiva e, assim sendo, os problemas advindos dessa qualidade devem ser trazidos

    como foco num processo de aprendizado.

    medida que melhor soubermos aproveitar a oportunidade de estar dentro de uma

    instituio como a universidade, o pensamento sobre a formao do ator e do diretor poder

    incorporar o paradigma do empreendedorismo na concepo da grade curricular. O dilogo

    com os meios de gesto e financiamento atuais determina contedos basilares na preparao

    do jovem artista. Tal incluso seria veiculada ao oferecermos uma leitura do passado da

    atividade teatral sob a sua tica produtiva, como uma fbrica, a exemplo do ttulo da obra de

    Michel Pruner: La fabrique du thtre.

    Um outro sintoma dessa carncia de instrumentos para o artista iniciante se sustentar

    com a atividade teatral a crescente migrao de atores e diretores para o eixo Rio-So Paulo.

    Se analisarmos os valores para manter-se nas cidades de origem, veremos que seria muito

    mais vivel para o artista permanecer; no entanto, ele migra. A razo dessa escolha a falta de

    mercado local. Porm, quem constri esse mercado o prprio artista. A gesto dos grupos de

    teatro, a capacidade que o grupo tem de manter seus componentes, o circuito de festivais, as

    turns, todos esses so contedos que auxiliariam a manuteno de artistas em seus locais de

    origem como agentes fomentadores de cultura.

    O teatro de grupo no o mote central do presente artigo, mas assunto crucial para a

    efetivao da mudana aqui proposta. Como suporte para tal movimento, menciono a tese de

    Edinice Mei Silva: A organizao excelente: diretrizes para o grupo teatral, a dissertao de

    Flvia Janiaski Vale: Produo e gesto no teatro de grupo como forma de construo de

    autonomia, e a atual pesquisa de Doutorado de Karina de Faria, em curso no PPGAC-UFBA,

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    a qual pretende descrever estratgias de sustentabilidade de um grupo de circo-teatro

    nordestino desde o incio do sculo XX at a dcada de 30. Todas essas investigaes e seus

    resultados apontam para solues que visam a autonomia do artista como profissional

    produtivo na sociedade.

    Por fim, menciono o livro da professora Moema Renart de Brito, Manual de

    administrao teatral, que inaugura nossa bibliografia sobre as questes da produo teatral

    no Brasil. De modo direto, a professora avisa que talvez parea dissonante ou fora de lugar

    recorrer a conceitos de administrao para tentar refletir sobre a produo teatral naquela

    poca. Porm, ela avisa o quanto essas noes podem auxiliar o artista na sua labuta. Com a

    mesma perspectiva, encerro estas linhas reconhecendo que pode parecer estranho enfatizar

    conceitos de gesto como foco de aprendizado em Artes Cnicas.

    Fao isso porque, se podemos perceber o teatro por sua qualidade sagrada, sinto-me

    estimulado a perceb-lo pelo seu lado mundano, aquele que viabiliza de fato a realizao da

    obra.

    1 Ator, produtor e encenador. Professor do quadro permanente do PPGAC-UFBA, lotado no Departamento de

    Tcnicas do Espetculo da Escola de Teatro da UFBA. Atua nas reas de produo cultural, direo teatral e

    processos de ensino em Artes Cnicas.

    2 Traduo minha. No original: Via Crete and other Mediterranean stepping-stones the Greeks took much from

    the Egyptians including the idea that the theater is a festival: something that exists at a special time in a special

    place.

    REFERNCIAS

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    Guinsburg, Sergio Coelho e Clvis Garcia. So Paulo: Perspectiva, 2001.

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