Historia da america, josé miguel arias neto

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UNIVERSIDADE ESTADUAL DE LONDRINA CENTRO DE LETRAS E CIÊNCIAS HUMANAS DEPARTAMENTO DE HISTÓRIA LABORATÓRIO DE ENSINO DE HISTÓRIA TEXTOS DIDÁTICOS HISTÓRIA DA AMÉRICA 2 0 0 4

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UNIVERSIDADE ESTADUAL DE LONDRINACENTRO DE LETRAS E CIÊNCIAS HUMANASD E P A R T A M E N T O D E H I S T Ó R I ALABORATÓRIO DE ENSINO DE HISTÓRIA

T E X T O S D I D Á T I C O SHISTÓRIA DA AMÉRICA

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Arias Neto, José Miguel, org.Textos didáticos - História da América. Curitiba : 2004, 47 p.

Bibliografia.ISBN 85.86534.56-0

1. História da América ; 2. Textos didáticosI. Título

Ficha Catalográfica

Copyright ©2004 by Laboratório de ensino de História - HIS - CLCH - UEL

Capa: Codex Mendoza

2004Todos os direitos desta edição estão reservados à

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SUMÁRIO

Agradecimentos .................................................. 05

Apresentação ...................................................... 07

Formas de repartição da terra entre os Incas(Garcilaso de la Vega)Fábio Siqueira Batista ......................................... 11

Entre a cruz e a espada: sociedades de sacrifício esociedades de massacreMaria José de Melo Prado e Silvia Varela ............. 19

Bartolomé de Las Casas e os índios: o visionáriodas “Américas”Fábio Jesus de Lima ............................................ 25

Análise da questão do outro na conquista daAmérica por Tzvetan TodorovCristiano da Veiga Sambattie Edmar Everson Alves ........................................ 33

Labéus da conquista espanholaWander de Lara Proença ...................................... 37

Notas ...................................................................... 45

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AGRADECIMENTOS

Este trabalho é produto do esforço conjunto de alu-

nos e professores do curso de História da Universidade

Estadual de Londrina. Assim, gostaria de registrar os

seguintes agradecimentos:

aos meus colegas do Laboratório de Ensino de His-

tória, que tão bem acolheram a idéia e, em particular à

profa. Marlene Rosa Cainelli, coordenadora do mesmo,

pelo apoio;

à professora Sônia Adum que colaborou na indica-

ção e seleção dos trabalhos aqui apresentados;

aos alunos, pela dedicação e esforço empregados

na reformulação e correção dos trabalhos;

especialmente à Maria José de Melo Prado e Fábio

Jesus de Lima que trabalharam muito para que esta

coletânea se tornasse uma realidade.

Londrina, Primavera de 1997

José Miguel Arias Neto

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APRESENTAÇÃO

José Miguel Arias Neto1

Ao longo do curso de graduação, os alunos do cur-so de História realizam vários trabalhos com o propósitode avaliação de seu desempenho. Encerrado o ano leti-vo os mesmos são a eles devolvidos, permanecendo, por-tanto, no restrito âmbito da relação professor-aluno. Noentanto, muitos destes trabalhos são de ótima qualida-de e podem servir de algum modo a professores e alunosde 1º e 2º graus.

Essa coletânea nasceu dessa preocupação, ou seja,de tornar utilizável - para a rede pública de ensino - otrabalho que vem sendo desenvolvido pelos alunos daUniversidade de Londrina na área de História da Améri-ca, no ano de 1996. Foram reunidos cinco bons traba-lhos de diferentes origens: análises de documentos, re-senhas, relatórios de seminários, provas e trabalhos fi-nais.

Assim, também as contribuições que oferecem sãode diferentes níveis: alguns podem ser utilizados em salade aula, outros pretendem provocar reflexões sobre de-terminadas questões que afligem o século XX. A inven-ção da América2 fundou o mundo moderno3 e, ahistoriografia que trata do tema permanece ainda pordemais eurocêntrica.

Aliás este parece ser uma marca dos estudos e doensino de História do e no Brasil: ao contrário dos Esta-dos Unidos ou do México, onde o continente é profun-damente investigado, permanece-se aqui de frente paraa Europa e de costas para a América. Tudo se passacomo se não houvesse relação entre a América portu-guesa e os países de colonização hispânica e anglo-saxônica.

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Os trabalhos aqui apresentados demonstram quea investigação da conquista e colonização da América éfundamental para a compreensão da modernidade fun-dada no século XVI e que, as problemáticas que emergi-ram deste contato entre civilizações tão distintas estãopresentes nos dias atuais.

A problemática consolidação das democracias docontinente, o desrespeito à diversidade cultural que ca-racteriza a América, a difícil implementação dos direitoshumanos bem como a contínua violação dos mesmossão marcas da violência, da intolerância e daincompreensão em relação ao outro, seja este mulher,negro ou indígena.

O esforço dos alunos obedeceu às reflexões deTzvetan Todorov, quando este afirma que o conhecimen-to pode conduzir à compreensão e à comunicação não-violenta. Este programa está vinculado à uma concep-ção de democracia como formação social e não apenascomo regime político4 , cujo fundamento parte da consi-deração de que os homens são iguais em direitos,mas diferentes do ponto de vista de sua formação cultu-ral, religiosa , etc., e que, essa diversidade, ao invés deseparar e isolar os homens deveria enriquecer a socie-dade e a cultura humana. Neste sentido a democraciasó pode existir do jogo destes dois princípios: a igualda-de e a diferença.

A radicalização de qualquer um dos pólos destarelação, conduziu e conduz às tragédias, das quais aHistória está repleta. A pretensão de uma igualdade totalimplica em um ideal de uniformidade totalitária: trata-se de reduzir o outro à sua própria imagem. Quando osmissionários construíram as reduções, o objetivo eraexatamente este: reduzir os indígenas à fé cristã. AInquisição, o Terror na Revolução Francesa, o Nazismo,o Stalinismo são outros exemplos de tentativas deuniformização dos homens. A uniformidade conduz aoextermínio e massacre dos diferentes. Não é fruto do

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simples acaso o fato de que as ditaduras e as formastotalitárias, de esquerda e de direita, sejam similares etenham o terror como fundamento da política5.

Por outro lado, colocar a ênfase no princípio dadiferença, implica, quase sempre, em uma hierarquizaçãodas sociedades, o que significaria dizer, por exemplo,que os homens são superiores às mulheres, os brancosaos negros ou aos índios, e que, portanto, são portado-res de direitos e deveres diferenciados: o apartheid naÁfrica do Sul é um exemplo da desigualdade transfor-mada em fundamento de instituições políticas. O Bra-sil, por outro lado, ostenta o orgulho de ser uma demo-cracia racial, o que é, na verdade, um discurso conser-vador. Este campeão das injustiças sociais - como ob-serva Hobsbawn6 - pode ser caracterizado como umaÁfrica do Sul sem apartheid - “isto é, uma sociedade sema segregação racial imposta pelo Estado e, não obstante,afligida por extrema desigualdade racial”7. Também oprincípio da desigualdade conduz ao massacre e ao ex-termínio.

Vale recordar duas Histórias igualmente terríveis.A primeira delas, narrada por Diego de Landa na

Relación de las cosas de Yucatán, e citada por TzvetanTodorov, é a seguinte: “ O capitão Alonso Lopes de Avilatinha-se apossado, durante a guerra, de uma jovem ín-dia, uma mulher bela e graciosa. Ela havia prometido aomarido, que temia ser morto na guerra, não pertencer anenhum outro, e assim nenhuma persuasão pôde impedi-la de perder a vida a deixar-se seduzir por outro homem;por isso ela foi atirada aos cães”8.

A segunda. Em 1911, Von Ihering, defendeu nojornal O Estado de São Paulo, o extermínio dos índiosKaingang em nome da construção da estrada de ferroNoroeste do Brasil : “Utilizando-se de modelosevolucionistas e deterministas, o naturalista alemão con-denava ‘grupos indígenas inferiores’, que, em sua ótica,‘ desapareceriam pela mera ação da natureza’. Frente aos

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prognósticos científicos, nada havia a obstar; nem mes-mo ‘uma moral de fundo humanista’, afirmava(...)”9.

Já em 1996, a Comissão sobre Governança Glo-bal da ONU, observava que uma das características domundo contemporâneo é “ a propagação de uma culturada violência”10: a brutalização de milhares de jovens quelutam em guerras civis, o uso sistemático do estruprocomo arma de guerra, o terrorismo, o narcotráfico, o cri-me organizado, a violência étnica, a violência contra amulher , etc., atingem proporções alarmantes, compro-metendo a consolidação das democracias em termos glo-bais.

“Viver a diferença na igualdade: é mais fácil dizerdo que fazer” - observa Todorov. No entanto, é necessá-rio tentar. Nesse sentido, o conhecimento é um dos mei-os para se resistir ao poder. Não se pode combater o quenão se conhece. Mas é necessário sair do campo defen-sivo e propor alternativas: investigar a conquista daAmérica significa refletir acerca dos mecanismos de do-minação no mundo contemporâneo e tentar superá-los.

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FORMAS DE REPARTIÇÃO DA TERRA

ENTRE OS INCAS( Garcilaso de La Vega )

Fábio Siqueira Batista11

A conquista da América, por parte dos espanhóis,fez nascer no seio de um povo submetido uma espéciede indivíduo que não era europeu nem índio, o mestiço,seja ele cultural ou de sangue. Este esboço sobre a re-partição da terra entre os Incas, escrito no século XVIpor Garcilaso de La Vega, misto de espanhol e índio,tenta explicar como se processava a divisão de terrasentre os povos do antigo Império Inca. Garcilaso de LaVega, é mais um daqueles homens que viviam sob a som-bra da coroa espanhola e relembravam ou tentavamrescrever partes da História dos povos pré-colombianos,conquistados pelos europeus; é mais um dos notáveismestiços daquela época devendo ser considerado ao ladode outros como Felipe G. Poma de Ayala, Bautista Po-mar, Alvarado Tezozomoc e Diego Durán na busca porfontes do passado que ajudem a compreender a Históriadaqueles povos.

Ao abordarmos a problemática da divisão de ter-ras entre os povos pré-colombianos, deparamo-nos comquestões difíceis de responder dada a exígua quantida-de de material que restou da época da conquista e, mui-to mais ainda, devido aos graves problemas que se im-põem quando da análise de um texto do referido perío-do. As dificuldades de análise devem-se ao fato de al-guns desses textos sofrerem “influências” da culturareinante, a mestiça, isto é, uma cultura que era cristã eespanhola, mas ao mesmo tempo guardava lembrançasda cultura indígena.

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Como primeiro aspecto, é necessário fazer as apre-sentações do texto, do escritor e do momento em foi es-crito. Garcilaso de La Vega, era filho de um espanhol ede uma princesa Inca, nasceu na cidade de Cuzco em1539. Viveu alguns anos na Espanha e lutou contra osmouros, aprendeu italiano e fez algumas traduções, es-creveu Comentários reales de los Incas12, obra em quese aprofunda nos costumes, ritos e cerimônias de seupovo; foi um indivíduo aculturado que sempre se consi-derou mais indígena que espanhol. Contudo, ele legiti-ma e aceita a conquista espanhola. A obra, escrita al-guns anos antes de sua morte, se insere num momentocrucial da História da América, época em que os indíge-nas sobreviventes sofrem o processo de cristianização ea servidão sob o jugo dos conquistadores; época em queas feridas estão abertas ainda ( se é que algum dia estasferidas cicatrizaram, particularmente creio que não! ).Na obra de Garcilaso, não restam dúvidas de que existea exaltação do índio, porém ele escreve como um euro-peu. Mas quem são os Incas? A resposta nós sabemos;entretanto, a História é a eterna análise do passado, aeterna busca por respostas de perguntas que não ces-sam de surgir. Mesmo que soubéssemos tudo a respeitodos Incas, não cessaríamos de tentar entendê-los, debuscar outras respostas que não fossem aquelas que jáconhecemos. Esta é a grande virtude da História, o pas-sado não morre, Hic Mortui Vivunt et Pandunt OraculaMui ( Aqui os mortos vivem e proferem muitas sentenças).

Em finais do século XIII, a tribo dos Incas ao Valede Cuzco e se alia a três etnias diferentes: Sahuasiray,Allcahuisa e Maras. Por meio de uma fulminante expan-são militar e política, em alguns decênios eles subme-tem outros povos e criam o Tawantisuyu, o “Impériodos Quatro Quadrantes”, o domínio dos Incas sobre asoutras etnias. Um império com uma organização formi-dável, contando com redes de estradas, depósitos de

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provisões e uma burocracia muito bem estruturada hie-rarquicamente.

Passemos então ao conteúdo do documento. O au-tor observa como se processa a acomodação dodominador Inca sobre o povo submetido, as disposiçõestomadas pelo Inca para posterior “aculturação” dos con-quistados, a chegada de homens para a construção depoços a canais para irrigação. Para os pré-colombianos,não existiam outras riquezas que não fossem a terra eos produtos advindos da mesma, destarte, logo após aocupação eles davam início ao processo de divisão daslocalidades. Ocupando a função de “Civilizadores”, épossível que a construção dos referidos poços e canaisde irrigação se tratasse da contribuição dos dominadoresaos povos conquistados, encaminhado-os à civilização.

Garcilaso fala muito sobre as acéquias, isto nos levaa crer que as terras deveriam ser pobres de recursosnaturais, o que conseqüentemente levaria os Incas airrigá-las constantemente. Depreendesse isto quando oautor diz “...porque é de se saber que a maior parte detoda aquela terra é pobre de terras de pão...”. No mesmoparágrafo, ele faz referências as pastagens e ao gado: ébom relembrar que as micro-regiões eram divididas em

“ Ayllus, formados por famílias interliga-das com laços de parentesco e que nes-tes as terras dividiam-se em terras culti-váveis e pastos de uso coletivo... onde secriavam animais, lhamas a alpacas...”13

Garcilaso fala da técnica de construção de terraçospor parte dos Incas. Tal fato se devia à estreiteza dasterras cultiváveis e mais ainda, a necessidade de au-mento da cultura do milho e da batata, ligada direta-mente ao aumento da população, conquistada ou não,que acontecia. Garcilaso de La Vega diz que as terraseram divididas da seguinte forma: uma parte para o Sol,outra para o Inca e a terça parte para os naturais da

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terra . Em Incas e Astecas - Culturas pré-colombia-nas, de Jorge Luiz Ferreira, a explicação é diferente: oprimeiro beneficiado é o Inca; depois vem as terras doSol e por último “a maior parte”, as terras da comunida-de. Talvez a explicação de Jorge Luiz Ferreira seja a maisacertada, pois enquanto soberano, o Inca era represen-tante direto do Sol, na qualidade de “deus-vivo”.

De acordo com Garcilaso, os Incas não semeavammais de um ano ou dois as terras cultivadas, repartindooutros e deixando em estado de repouso as primeiras.Isto poderá levar-nos a pensar que a rotatividade de ter-ras era comum, e é provável que sim, principalmente selevarmos em conta Ciro Flamarion S. Cardoso, quandofala da hipótese causal hidráulica14 . No entanto, nãopodemos deixar de lado Jorge Luiz Ferreira (Cf. Incas eAstecas) que diz que a distribuição das terras era rotativae anual, para impedir que algumas famílias pudessemusufruir de terras mais férteis por longos períodos, épossível ainda, que existisse o sistema de pousio curto,devido à fragilidade da terra.

Ainda segundo Garcilaso, o cultivo da terra se faziade maneira ordenada e harmônica. Suas palavras dei-xam transparecer um certo idealismo, dando-nos a im-pressão de que a sociedade de que fala é justa e iguali-tária. Aqui, supomos que fala o “índio” Garcilaso, mos-trando o que era antes dos espanhóis chegarem e apon-tando a aparente “anarquia” que agora existe com a pre-sença dos conquistadores. Quando da submissão, osIncas mantinham os deuses e o culto local introduzin-do, logo depois, a adoração do Sol e ao Inca. Aos aldeõescabia oferecer trabalho aos novos senhores. O trabalho,“harmônico”, talvez se devesse ao fato do soberano Incadistribuir cereais, roupas e outros alimentos em épocasde carestia, excedente este que era acumulado do tra-balho praticado pelos aldeões.

O autor fala do processo de lavração da terra.Podemos ver que o controle estatal era rígido e nenhum

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terreno ficava sem ser cultivado, mesmo aquelespertencentes aos homens que deveriam servir ematividades guerreiras. Estas colocações são corroboradaspelas afirmações de Jorge Luiz Ferreira em Incas eAstecas. Garcilaso de La Vega, afirma ainda que

“mandava o Inca que as terras dosvassalos fossem preferidas às suas; por-que diziam que da prosperidade dos sú-ditos redundava o bom serviço para o Rei,que estando pobres e necessitados malpodiam servir na guerra nem na paz...”

Este discurso sobre a “justiça social” deixatransparecer mais uma vez a cultura indígena que restaem Garcilaso de La Vega. Provavelmente este é mais umalerta sobre a situação de descaso, miséria e indigênciaque deviam viver seus irmãos indígenas, desolados pelafalta de comando e explorados pelos fidalgos espanhóis.

É destacado ainda, o sistema de divisão das terrasindígenas. Cada um deles recebia um Tupu, extensão deterra equivalente à quantidade de alimento necessáriapara suprir as necessidades de um indivíduo. Mas deve-mos ter sempre em mente, que o indivíduo isolado nãoexistia em relação à comunidade, é possível que estesTupus fossem usados em comunidade para a subsistên-cia de uma família. As palavras de Garcilaso poderiaminduzir o leitor a pensar que a orientação individualistafosse comum entre os povos pré-colombianos, o que nãoé certo.

O documento diz que “proporcionalmente às terrasque davam para semear o milho, repartiam as que davampara semear os demais legumes que não se regava...”. Épouco provável que houvesse igualdade entre o númerode terras para o plantio do milho e outras culturas queporventura existissem. O milho era a base de toda ali-mentação das populações da América pré-colombiana.As outras culturas existentes serviriam, provavelmente,

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como acréscimo à cultura do milho, já muito difundidaou ainda como meio de alimentação quando fracassavaa colheita daquele cereal como, por exemplo, a batata (Solanum tuberosum).

Garcilaso fala ainda sobre os outros tributos pagosem formas materiais, roupas e calçados para os guerrei-ros do Inca. Há um parágrafo que trata quase exclusi-vamente de produtos e situações ligados à guerra. Paraopor-se ao discurso de Garcilaso cito Jorge Luiz Ferreira:

“A justificação ideológica para a expan-são e a conquista era semelhante à doespanhol: levar a civilização aos povosque vivam na barbárie (...) Ao contráriodos Astecas, os Incas não tinham umamentalidade belicosa, e a paz era o bemsupremo da humanidade...”15.

Vemos então, que o discurso civilizatório era bompara os conquistadores, visto que eles levavam a reli-gião para os povos derrotados e lucravam com os benstomados a estes povos. Em matéria de psicologia coleti-va, é possível que uma espécie de idéia ou ideal animas-se aqueles homens. Se é verdade que eles tentavam dis-seminar os benefícios da religião ( e neste caso devemosenquadrar tanto os espanhóis quanto os indígenas ) eda civilização é, por conseguinte, mais verdade aindaque eles não se sentiam envergonhados quando tinhamque matar, destruir ou saquear em nome destes ideais.

Garcilaso diz que os Incas não tinham o ouro nem aprata em conta de metais valiosos, mas apenas comoobjetos de adorno e de embelezamento. As grandes ri-quezas destes povos vinham da terra e de produtos liga-dos à mesma, pois para eles estava mais em voga o fatode comerem, beberem e vestirem-se do que construíremcasas belíssimas e em grandes tesouros.

Neste momento é bom fazer uma autocrítica do quefoi escrito. Em primeiro lugar, a análise de um indivíduo

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como Garcilaso de La Vega ou qualquer outro “mestiço”é complicada. O elemento que descende de dois povosou duas linhagens diferentes deve padecer constante-mente de uma certa “agonia interna”: de um lado elevive determinada realidade e, de outro, ele tenta escre-ver ou esquecer uma realidade que não existe mais ouque pouco a pouco sofre deterioração. Isto é bastantefácil de notar em outros escritores miscigenados. É pos-sível até imaginar o que ele sentia mas não é possíveldescrever. Na sua obra ele submete-se à autoridade es-panhola mas exalta o índio. Resta-nos perguntar se eletentava reduzir o mundo europeu à categoria dos Incase vice-versa. Pode ser que tentasse utopizar toda a rea-lidade, um misto de justiça social Inca com realidadeespanhola e religião cristã.

Garcilaso não deixa transparecer totalmente o queestá pensando, apesar de seu texto ser bastante inteli-gível. Um homem que faz apologia do indígena, do “pa-raíso perdido” e contrapõe a justiça Inca à desigualdadeespanhola. Mas será que ele é um apologista? O quepouco temos em mãos nos impede de emitir um parecermais acertado. Mas mesmo que tivéssemos todas as suasobras e o conhecêssemos como ele se conhecia, aindaassim, ficaríamos impedidos de entendê-lo, afinal decontas, a História não é só feita de causas econômicas epolíticas, por trás de tudo isso existe o ser humano.

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Refereências Bibliográficas

CARDOSO, Ciro Flamarion S. (Org.). Modo de produ-

ção asiático: nova visita a um velho conceito.

Rio de Janeiro: Campus, 1990.

FERREIRA, Jorge Luiz. Incas e Astecas - culturas pré-

colombianas. 3 ed. , São Paulo: Ática, 1995.

VEGA, Garcilaso de La. Formas de repartição da terra

entre os Incas. In Comentários reales de los Incas.

México: Fundo de Cultura Económica, 1991.

WEPPMAN, Denis. Cortez. São Paulo: Nova Cultural,

1987.

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ENTRE A CRUZ E A ESPADA: SOCIEDADES DESACRIFÍCIO E SOCIEDADES DE MASSACRE

Maria José de Melo PradoSílvia Maria Varela16

O objeto deste artigo é o livro A conquista da Amé-rica: a questão do outro de Tzvetan Todorov, mais es-pecificamente o terceiro capítulo, intitulado Compreen-der, tomar e destruir, no qual se discute o processo deaproximação, compreensão e posterior domínio da soci-edade Asteca pelos espanhóis.

O autor analisa o processo que considera um “terrí-vel encadeamento”: compreender leva a tomar, e to-mar leva a destruir. Entretanto, questiona essa afir-mação: afinal a compreensão não deveria vir acompa-nhada de simpatia e, nesse caso específico, da preser-vação da fonte de riquezas? Ou, em outra hipótese, setal compreensão viesse acompanhada de um julgamen-to de valor negativo? O que se verifica, no entanto, é aocorrência de um sentimento de admiração seguido dedestruição.

Nota-se claramente esta admiração nas tentativasde equiparação entre a América e a Europa que os espa-nhóis fazem todo o tempo. Eles referem-se, porém, aosobjetos e construções, nunca a seus produtores - comoum turista contemporâneo em relação a artesanatosexóticos. Os indivíduos são vistos como sujeitos, masenquanto coletividade produtora de objetos ou como “cu-riosidades naturais”, como plantas e animais, que cau-savam espanto pela sua originalidade.

Percebe-se, portanto, que este sentimento é superfi-cial, distante e de superioridade. Não há nuncaintegração entre admirador e admirado; prova contun-dente disso é que a arte Asteca jamais exerceu qualquerinfluência na Europa, como a arte negra no século XX.A admiração não implica em assimilação, e, conseqüen-

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temente, não há motivo para preservação.Os cronistas espanhóis falam “dos” índios e não “aos”

índios e, segundo Todorov:

“...é falando ao outro (não dando-lhe or-dens, mas dialogando com ele), e somen-te então, que reconheço nele a qualidadede sujeito, comparável ao que eu mesmosou.” 17

Ou seja, se não houver a imbricação entre a com-preensão e o reconhecimento do outro como não-supe-rior e não-inferior, esse saber (e essa relação) estarásubordinado ao poder.

A idéia central da obra é justamente esta comunica-ção do eu com o outro. A compreensão da sociedadeAsteca que os espanhóis tinham era muito maior que oentendimento dos indígenas em relação aos europeus, eesta torna-se um instrumento para a conquista, poispossibilita a total desestruturação do império deMontezuma. É mais fácil combater o que se conhece,formulando-se estratégias baseadas em seus pontos fra-cos.

Todorov considera a conquista da América como omaior genocídio de que se tem notícia na História, e apon-ta a destruição em números grandiosos: em cem anoshouve a extinção de 70 milhões de nativos na Meso-América e América do Sul, 24 milhões de mortes so-mente no México. O autor defende também que as pro-porções da matança foram inversamente proporcionaisà responsabilidade dos espanhóis. A saber (em numerocrescente e em responsabilidade decrescente): guerra,maus-tratos e doenças.18 Embora a responsabilidade dosespanhóis seja evidente, o autor afirma que, dentro des-te contexto, outros conquistadores teriam agido do mes-mo modo, visto que o objetivo era a conquista.

Os relatos dos cronistas da época (Bartolomé de LasCasas e T. Motolinia, entre outros) revelam uma realida-

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de brutal e sangrenta, apresentando os indígenas comovítimas passivas e indefesas. A conquista da América:a questão do outro endossa essa opinião, assim como amaioria dos autores que tratam do assunto, reprodu-zindo, portanto, a visão derrotista da conquista, em queos indígenas figuravam resignados, aceitando sem con-testar a violência a que eram submetidos.

Uma visão totalmente oposta é colocada por HectorHernán Bruit, que percebe, no que outros autores enca-ram como covardia e passividade, uma forma de reação,de resistência. Bruit afirma que essa resistência fundaa identidade latino-americana. Ainda hoje se perceberesquícios dessa não adequação aos moldes europeus,os quais estão presentes na cultura, como o hábito ali-mentar, religião, estrutura mental, entre outros. Os in-dígenas não podem ser vistos como covardes incapazesde resistir. A recusa tomaria forma nos suicídios, abor-tos, desinteresse pela procriação, indolência, mentiras,roubos, falsa conversão ao cristianismo, ou mesmo, nosilêncio (recusa a falar, à aculturação), inclusive por viasmilitares. Nas palavras de Bruit:

“Quer dizer, nada de incapacidade raci-al, de inferioridade cultural. Simplesmenterenúncia voluntária de viver a História dooutro, mas simulando vivê-la.(...) A atitu-de indígena, em suas formas diversas,se transformou em arquétipo de resistên-cia à dominação total. Escolheu do con-quistador os valores que mais lhe servi-am, mas não assimilou a cultura do bran-co e jamais abandonou suas crenças ecostumes.” 19

Esta constatação se verifica facilmente através daobservação dos relatos existentes sobre a sociedadeAsteca antes de Cortez. O que vemos é uma civilizaçãoavançada (construções grandiosas e de extrema

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engenhosidade, alta tecnologia agrícola, noções de as-tronomia,...), organizada hierarquicamente (religião,política e sociedade), trabalhadora e guerreira.

A questão que se coloca ao final desta discussãoé aquela referente aos motivos pelos quais houve, du-rante a conquista, a extinção quase total da populaçãonativa. É interessante a correlação que Todorov faz so-bre o desejo de poder e de riqueza dos europeus com amentalidade moderna, na qual o dinheiro compra e so-brepuja todo e qualquer princípio moral. Mesmo assimsalienta que só esse desejo não explica todo o massacre.Há que se levar em conta a crueldade como um traçomórbido inerente ao homem, presente nos Astecas deMontezuma e nos alemães de Hitler. No caso dos espa-nhóis, há relatos da época que demonstram este fato,como os apresentados abaixo:

“Alguns cristãos encontraram uma índia,que trazia nos braços uma criança queestava amamentando; e como o cão queos acompanhava tinha fome, arrancarama criança dos braços da mãe, e, viva, jo-garam-na ao cão, que se pôs adespedaçá-la diante da mãe.”20

“ Um espanhol, subitamente, desembai-nha a espada (que parecia ter sido toma-da pelo diabo), e imediatamente os ou-tros cem fazem o mesmo, e começam aestripar, rasgar e massacrar aquelas ove-lhas e aqueles cordeiros, homens e mu-lheres, crianças e velhos, que estavamsentados, tranqüilamente, olhando es-pantados para os cavalos e para os es-panhóis. Num segundo não restam sobre-viventes de todos os que ali seencontravam.” 21

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O autor propõe uma problemática: considerando quetodos os povos cometem assassinatos e estes não se re-vestem sempre do mesmo valor, o que os diferencia?Para Todorov seria o código e o contexto, a sociedade desacrifício e a sociedade de massacre. E qual delas podeser considerada mais contestável? Julgamento difícil deser feito com isenção.

O sacrifício é uma morte religiosa - mata-se por umaideologia oficial revestida de uma função social (alimen-tar e apaziguar os deuses). É realizado em praça públicae com o consentimento de todos; a identidade do sacri-ficado é pré-determinada e conhecida, porém o laço so-cial predomina sobre o individual. Em contrapartida, omassacre inverte todos esses princípios, e pode ser con-siderado um assassinato ateu, é feito (de preferência) àsescondidas e fora de qualquer regulamentação. Não temuma função social, justifica-se por si mesmo.

A dificuldade consiste em se distinguir com clarezao que se convenciona como uma ou outra. A sociedadeeuropéia quinhentista pode ser reconhecida como soci-edade de massacre pelo próprio advento da conquista.Mas o que dizer então da Santa Inquisição, que possuitraços de sacrifício? Trazendo essa discussão para acontemporaneidade, como caracterizar a nossa socieda-de atual, que possui traços óbvios de massacre, masrealiza o sacrifício a cada cerimônia da missa católica(que é a religião predominante no Ocidente), com a mor-te e comunhão do Cristo, semelhante ao ritual Asteca,que sacrificava a vítima e comungava-a, num rito de an-tropofagia?

Essa questão nos remete a uma reflexão sobre a ditasociedade contemporânea, onde, longe de ser atávica, aviolência se revela em todas as esferas sociais, econômi-cas e ideológicas. O que foi considerado no século XVIcomo guerra justa, se assemelha às atuais guerras reli-giosas no Oriente Médio, que o mundo moderno conde-na e, com o que, ao mesmo tempo, é conivente.

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Referências Bibliográficas

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entre a resistência e a revolução. Revista Brasileira

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TODOROV, Tzvetan. A conquista da América: a ques-

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BARTOLOMÉ DE LAS CASAS E OS ÍNDIOS: O VISIONÁRIO DAS “AMÉRICAS”

Fábio Jesus de Lima22

Com base no livro, Bartolomé de Las Casas e a si-mulação dos vencidos23, de Héctor Bruit, entre outros,procurei compreender um pouco mais sobre odominicano, Frei Bartolomé de Las Casas Homem arrai-gado na fé cristã viveu no conturbado período de tran-sição do século XVI e levantou sua voz em defesa dospovos indígenas que vinham sendo massacrados com oprocesso violento da conquista.

Esta tarefa não se torna fácil, à medida que se buscadesvendar traços da mentalidade de um homem medi-eval, que mesmo tendo lutado contra o processo violen-to da conquista, não abandonou seus objetivos de colo-nização. Sua imagem de bom religioso ao lado dos indí-genas, passada por ilustrações, não corresponde à dehomem severo, que não poupou críticas aos seus reis,superiores religiosos, conquistadores ou até mesmo aosíndios, ou à toda sua perspicácia e ímpeto frente ao Dr.Juan Ginés de Sepúlveda, no debate ocorrido emValladolid, onde travaram um duelo de eloquência e eru-dição sobre as condições dos nativos na América.

Neste livro, Héctor Bruit faz análises sobre os es-critos de Las Casas, nos quais vê, um homem visioná-rio, preocupado com o tipo de sociedade que se formavana América.

Meu objetivo não é traçar a vida deste homem, con-siderado persona non grata em seu país , por ir contraos anseios desmedidos dos conquistadores, o que já fi-zeram outros autores, mas apresentar alguns traços daforma de pensar do Frei Bartolomé de Las Casas, acer-ca dos índios e da sociedade que surgia no Novo Mundo.

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A IMAGEM LASCACIANA SOBRE OS ÍNDIOSLas Casas via os hábitos dos indígenas como uma

segunda natureza, um conceito de cultura próximo aomoderno, seguindo Aristóteles. Por mais aberrantes econtra a natureza espanhola que pudessem parecer, LasCasas não considerava os hábitos dos índios puníveispelos homens, nem como justificativa à violência, consi-derando que estes poderiam ser mudados através dareligião cristã, que deveria ser implantada através demétodos pacíficos.

Quanto à preguiça, considerava que devido a ter-ra fértil e abundante, os índios viviam naturalmente esustentavam-se tendo pouco trabalho. Sendo assim, otempo livre restante passavam em suas casas, pescari-as, festas e danças, e que este vício e incapacidade detrabalho ( à maneira espanhola ), na verdade seria a in-capacidade de trabalho em proveito dos espanhóis, sen-do uma das justificativas para impor, sem embargo, ins-tituições interessadas nos rendimentos materiais queos índios pudessem ofertar.

Nos seus escritos, aponta os índios também, comoque, destituídos de personalidade ou reações positivasfrente aos invasores, utilizando a imagem de um povofraco, pois raramente admitia a guerra contra os espa-nhóis e quando admitia, era uma guerrinha. Isto consa-grou na historiografia sobre a conquista, lascaciana ounão, a visão negra dada aos conquistadores e que temmarcado a História latino-americana.

Héctor Bruit analisa assim, um Las Casas quelevantou a imagem de um povo sacrificado e humilhadopela conquista; em última análise, um povo com “voca-ção à escravidão”. O que levou este autor, a questionar“qual é nossa vocação revolucionária ?”24, que instiganossos pensamentos nesses 500 anos. Contudo, discordodesta colocação do autor, pois vejo que a submissão àescravidão, está subordinada a fatores que influencia-ram no processo da conquista, como por exemplo, a in-

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fluência psicológica exercida pelas armas, cavalos e daviolência25. Além do mais, o próprio curso da Históriademonstra nossa vocação revolucionária, como os mo-vimentos guerrilheiros da América Central e no caso doBrasil ha pouco tempo, o movimento dos “cara-pinta-das”, no processo de impeachment do ex-presidenteFernando Collor.

Em outra perspectiva, Tzvetan Todorov no livro Aconquista da América: a questão do outro, apresentaum Las Casas igualitarista, que via a existência de igual-dade entre índios e espanhóis, e quando reconhecia al-guma diferença entre os mesmos que pudesse ser des-favorável aos primeiros, as reduzia através de um es-quema evolucionista único26. Desta forma, originou-secom freqüência esses tipos de formulações em seus es-critos, e isto, segundo Tzvetan Todorov, em nome deuma religião particular, o cristianismo. Para este autor,Las Casas ao mesmo tempo ignora os índios e desco-nhece os espanhóis. Todorov vê o dominicano como umamante dos índios, apesar do mesmo não reconhecer asdiferenças culturais.

Mesmo assim, Las Casas não defendeu todos os ín-dios, assim como não condenou todos os espanhóis. Elecriticava os índios que traíam suas tribos e aprovava oscolonizadores hispânicos pobres e lavradores. Assim aimagem de “bom índio” e “branco mau”, colaborou pararealçar a realidade e conseqüentemente melhorar a si-tuação dos indígenas; entretanto , esta posição (consci-ente ou não), acabou por negar aos índios, a condiçãode sujeitos plenos, capazes de ver, pensar e agir, o quefaziam, dentro de suas concepções.

Na análise de Héctor Bruit, Las Casas passa a visãode não resistência militar por parte destes povos, paranão dar razões a seus adversários, os conquistadoresespanhóis.

Sem anular a importância de outras conseqüênciasda conquista, como no tocante a questão do outro, ana-

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lisada no livro de Tzvetan Todorov 27, concordo comHéctor Bruit, quando este coloca que pouco importa queo dominicano não tenha amado os índios, acusação fei-ta freqüentemente pelos estudiosos modernos.

“Mas porque devia amá-los? Alguém osamou alguma vez? São amados agora?”28

Em suma, Bruit vê um Las Casas que se envolveucom outro problema, que não só o desamor e o despre-zo, mas problemas suscitados pela conquista violenta ecaótica, um Las Casas preocupado e envolvido com asociedade que surgia sem justiça, sem direito e sem le-gítimo poder. A sociedade ao revés.

O GRANDE EMBATE: A SITUAÇÃO DOS NATIVOS NAAMÉRICA; A QUESTÃO DA GUERRA JUSTA, INFIDE-

LIDADE , CANIBALISMO E ANTROPOFAGIA

O cerne desta questão, permeia a forma com que serealizava o processo de conquista e catequização, vistoque para Las Casas a conquista deveria ser feita comouma ampla empresa religiosa, levada a cabo por religio-sos. Uma empresa cristã e profundamente humana, paraa difusão da doutrina cristã. O dominicano, como foidito, não abandonou os seus ideais de colonização sen-do apenas contrário a violência desmedida, utilizada noprocesso de conquista para fazer valer os anseios dosconquistadores espanhóis. Isto bateu de frente com osinteresses econômicos dos espanhóis, trazendo à tona,um grande debate sobre a questão das condições dosnativos na América, questionando-se a validade da guerrajusta ou não, como forma de se impor a conversão àreligião cristã.

O grande opositor de Las Casas, foi o Dr. Juan Ginésde Sepúlveda, que embasado em concepçõesaristotélicas, justificava a utilização da guerra justa comomeio de submeter os povos indígenas aos anseios dos

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conquistadores. Assim sendo, nestes princípios, a ser-vidão natural seguiria uma hierarquia racional que exi-ge a sujeição do imperfeito ao mais perfeito, sendo que,para Aristóteles, esta sujeição poderia ser feita atravésdo uso da força. Já o Frei Bartolomé de Las Casas, acre-ditava que os povos, qualquer que fosse seu estágio debarbárie, teriam a possibilidade, enquanto seres huma-nos de receber as formas de cultura ocidental, particu-larmente a religião cristã, e superar sua atual condição.

Por este prisma, possuidor de uma concepçãotomista, segundo a qual há uma natureza comum à to-dos os homens que lhes confere unidade, o dominicanointerpretou os mesmos princípios aristotélicos em opo-sição a Sepúlveda. Em sua Apologética Histórica , afir-ma que os fundamentos aristotélicos ( característicasaristotélicas para definir os servos naturais e os senho-res naturais ) não correspondiam com as característicasfísicas dos povos americanos. Um outro fator quedescaracterizava o uso da guerra justa contra os indíge-nas, para Las Casas, era a questão da infidelidade29, vin-culada à concepção dos índios com os bárbaros. Nestaquestão havia três tipos de infiéis: 1) os que injusta-mente usurpavam as terras dos cristãos; 2) os que ata-cavam os cristãos, procurando desfazer o estado tempo-ral e espiritual da república, e 3) os que não sabem denada, não conhecem a Deus, por isso não usurpam dasterras cristãs. Segundo Las Casas, a esses infiéis, den-tre os quais estavam os indígenas americanos, não ca-beria a guerra justa. No que se refere ao canibalismo e àantropofagia praticados pelos indígenas e criticados se-veramente pelos espanhóis, o que reforçaria a imagemde bárbaros, Las Casas as justifica dentro de um pro-cesso evolutivo, pelo qual os espanhóis já teriam passa-do, e que estes não teriam razão alguma para se espan-tarem com os defeitos e costumes não civilizados dentreas nações indígenas, não as desprezando por isto, poisa maior parte das nações do mundo já haviam também

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demonstrado provas de menor prudência, deirracionalidade, de confusão de modos e de costumesanimalescos.

Assim, com este trabalho, procuro não fazer umjulgamento moral, quanto ao caráter de Las Casas, quan-to menos defendê-lo piamente, mas procuro entenderum pouco mais sobre a conquista na visão destedominicano, através do estudo de sua obra repleta deexageros numéricos e narrativos. Além disto, se remon-tarmos à época de Las Casas, encontraremos uma soci-edade em mutação. Uma sociedade medieval que estavapassando por um período de rompimentos de dogmas,reestruturações de ordem sócio-econômicas e oflorescimento de métodos mais racionais para se com-preender o mundo. Neste quadro conflituoso, onde tam-bém se processa a conquista, com objetivosexpansionistas e econômicos, surge um homem que ousair contra a violência empregada na conquista, meio am-plamente utilizado para se alcançar este objetivo.

LAS CASAS: O VISIONÁRIO DAS AMÉRICAS A CONCEPÇÃO POLÍTICA

A imagem passada por Las Casas sobre a destruiçãodas Índias, permeada de todo seu clamor impetuoso, é ade uma História construída no sangue derramado dospovos americanos, como é o caso da obra Brevíssimarelação da destruição das Índias30. Las Casas deixatransparecer nos seus escritos, a sua preocupação coma sociedade que se organizava no caos da conquista.

O Frei dominicano dava muita importância às leis,que formavam todos os fundamentos de sua concepçãopolítica de sociedade, tendo por fim próprio, o bem co-mum. Sua forma de pensar é aparentemente ortodoxa,como aponta o escritor Héctor Bruit, tinha inspiraçãonas concepções tomista e aristotélica, que em certoscasos era rompida pela busca de certas teorias dos

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escolásticos italianos do século XIII e XIV 31.Las Casas transmite sua preocupação com a liber-

dade pública e individual, com os fundamentos jurídi-cos da sociedade que se organizava. Ele tinha o desejode ver na América, uma sociedade de direito e justiçasocial, de respeito aos direitos humanos, o que na per-cepção de Héctor Bruit configura sua visão do destinodo continente. Las Casas conta a História da conquistaviolenta: guerras, mortes, violências, explorações, do-enças, vendo surgir a “sociedade ao revés” 32. Constitui-se assim, o visionário dos destinos da América. Na pers-pectiva de Héctor Bruit, Las Casas viu o surgimento dasociedade “melada”33. Concordando com Bruit, conside-ro que esta questão é ponto de partida para muitos au-tores, que, através de análises sobre a conquista daAmérica, procuram compreender sua sociedade , comoo lingüista búlgaro Tzvetan Todorov, com sua crítica aototalitarismo, ou Eduardo Bueno, que na apresentaçãodo livro Brevíssima relação34, faz uma analogia entre aAmérica ontem e hoje, a espada e a metralhadora.

Considero a América Latina, filha da conquista,que ainda hoje deixa transparecer uma História de mar-cas profundas, resultante do descobrimento e encontrocom o outro. Nos vejo como descendentes de duas soci-edades: européia e índia, uma cultura híbrida, criadorade uma cultura popular, latino-americana.

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Referências Bibliográficas

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TODOROV, Tzvetan. A conquista da América: a ques-

tão do outro. 3 ed. São Paulo: Martins Fontes, 1993.

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ANÁLISE DA QUESTÃO DO OUTRO NA CONQUISTADA AMÉRICA POR TZVETAN TODOROV

Cristiano da Veiga SambattiEdmar Everson Alves35

O processo de conquista da América serviu debase para a exposição de Tzvetan Todorov, que tomacomo exemplo este período para analisar a questão dooutro. Todorov trabalha esta questão mostrando comoocorre o contato entre duas culturas. Alerta para as con-seqüências do não-reconhecimento do outro como pes-soas de direitos iguais mas de culturas diferentes. Res-salta o papel da comunicação, pois é através dela quepode ocorrer um reconhecimento enganoso do outroenquanto ser pleno a partir do momento em que hámanipulação desta comunicação visando a dominação (a exemplo de Cortez ). Tzvetan Todorov nasceu naBulgária no dia 1º de março de 1939, é investigador agre-gado no Centre National de Recherches Scientifique; pu-blicou diversas obras: Theorie de la Littérature, Textesdes formalistes Russes ( Seuil, 1965), RecherchesSémantiques ( Larousse ), Litterature et Signification( Larousse, 1967 ), Grammaire du Décamerom ( Mouton).

A questão principal que Todorov cerca com suaobra A conquista da América - a questão do outro, dizrespeito ao reconhecimento do outro, mais precisamente,mostra a conseqüências sociais quando se desconsideraa diversidade cultural. Todorov mostra que há um choqueentre duas culturas distintas (europeus e americanos),aprofunda em sua obra uma análise do resultado destetipo de procedimento, por meio do qual o outro édesprovido, descaracterizado e transformado em suaoriginalidade cultural. Aborda a comunicação que podeservir como instrumento de reconhecimento do outro,mas também como um meio de assimilação e dedominação, apresenta a percepção de vários personagens

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da época acerca do outro. Sua obra divide-se nosseguintes aspectos: a não percepção do outro enquantohumano, a comunicação como um instrumento dedominação e variações da percepção do outro.

Na primeira parte da obra evidencia-se o contatoentre Europa e América decorrente da busca das Índiaspor Colombo e que resultou na descoberta do Novo Mun-do . A relação com o outro neste mundo é difícil. O autorobserva: ...Colombo descobre a América, mas não os ame-ricanos...”, esta frase expressa a representação de infe-rioridade do outro para o europeu. A indiferença do ou-tro torna-se evidente neste momento, visto que só é pos-sível visualizar a presença do outro em meio as descri-ções que Colombo faz da natureza. Colombo tinha umamaior percepção da natureza, em contrapartida ignora-va a comunicação humana. Por isso quando chega aAmérica ele não a descobre, mas a encontra. Sua crençareligiosa, enfim, sua mentalidade servirá de base para ainterpretação da realidade, ou seja, ele não descobriualgo novo, mas encontrou algo que estava previamenteformado em seu imaginário.

Na segunda parte da obra Todorov expõe o modopelo qual se consolidou a conquista da América apre-sentando a comunicação como um fator decisivo para adominação do outro. A comunicação é diferente entreCortez, que a concebe de modo inter-humano, eMontezuma, que a concebe com o mundo ( assim comoColombo ). Cortez é um estrategista que conhece o valorda informação, utiliza a linguagem como um instrumentoeficiente na conquista, a comunicação inter-humanamelhor lhe serviu para o domínio do outro, tentou com-preender a mentalidade do outro de maneira a sobrepu-jar esta outra cultura.

A terceira parte da obra apresenta uma variaçãode intensidade na recusa que se faz do outro. Por umlado, têm-se uma parcela que vê o outro como um obje-

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to “...estão a meio caminho entre os homens e os ani-mais...”, e por outro os menos radicais atribuem ao ou-tro uma certa “humanidade”, porém inferior a eles. Nãohá um respeito em relação à identidade do outro, umavez que a defesa, a exemplo de Las Casas, é feita sobsua ótica particular, ocorrendo portanto só a medida quese exerce a conversão do outro. A humanidade do outrosó é concebida se integrada na cultura do “eu”, ocorren-do então uma assimilação, uma integração da culturado outro à européia.

Ao abordar a relação entre dois mundos totalmen-te diferentes, a obra A conquista da América - a ques-tão do outro remete-nos a nossa sociedade, leva-nos afazer um auto-exame de nossas próprias atitudes comrelação ao tratamento ou julgamento que fazemos deoutras sociedades ( ou de outros grupos menores, ouaté de outras pessoas ). Todorov mostra desta forma queesta questão de projeção de “meus” valores sobre o “ou-tro” é uma questão atual. Assim, a mensagem que trans-mite em sua obra leva-nos a indagar, por exemplo, senossas atitudes de certa maneira não são o reflexo domodo de agir dos espanhóis na época da conquista, quetomaram a sua sociedade, os seus valores como o per-feito e como o correto a ser seguido pelos outros? Seráque não projetamos nossos valores e princípios comobase de julgamento de outras sociedades no sentido deadmitir a igualdade do outro? Sob esta perspectiva, aobra de Todorov não só apresentou um valor significati-vo para a própria História da América ao analisar o pro-cesso de conquista, como contribuiu de maneira impor-tante para a Antropologia ao abordar a questão do ou-tro, mais precisamente ao relacionar-se com oetnocentrismo estudado nesta ciência como um meioincorreto de se analisar as sociedades.

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Referência Bibliográfica

TODOROV, Tzvetan. A conquista da América: a ques-

tão do outro. 3 ed. São Paulo: Martins Fontes , 1993.

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LABÉUS DA CONQUISTA ESPANHOLA

Wander de Lara Proença36

O processo de colonização da América Espanholaestá integrado ao novo momento econômico que forja operíodo moderno. Impulsionados pela avidez do acúmuloprimitivo de capital - segundo a linguagem marxista - ebeneficiados pelo avanço de determinadas técnicas denavegação, os europeus singram os mares em busca deprodutos comerciais e da expansão de seus mercados,dando origem, já naquele período, ao fenômeno daglobalização sobretudo econômica.

A América pré-colombiana será, portanto, palcodeste afã capitalista, cujo enredo foi protagonizado porabusos, violência e destruição étnico-cultural. A chega-da de Colombo em 12 de outubro de 1492 em terrasamericanas propiciava não só o contato entre dois mun-dos culturalmente muito distintos e separados histori-camente por milhares de anos, mas também o confrontoentre sociedades de valores e perspectivas econômicasantagônicas. Por exemplo, o ouro que tanto fascina osespanhóis devido ao seu valor monetário, aqui, numaeconomia basicamente de subsistência e voltada para oauto-abastecimento, é utilizado como enfeite estético ouadorno.

Na busca de um sentido para a colonização, pode-se dizer que as colônias existem em função da metrópo-le. Inicialmente, a conquista caracterizou-se pelo saque,passando-se posteriormente à organização de um siste-ma produtivo, sendo que as descobertas das minas emmeados do século XVI vão determinar as áreas a sereminicialmente ocupadas.

Se, inicialmente, os nativos prestavam serviços tem-porários nas mitas, com a chegada dos espanhóis, sãoforçados ao trabalho pesado, mediante a exploração. Sãoobrigados a “conviver” com a fome, com a

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desestruturação familiar, com epidemias, etc.Ao lado das mitas, foram organizados os pueblos

ou reduções, com a função de produzir mantimentos eanimais para às minas e cidades, além de fornecer mão-de-obra às mesmas. Com a queda populacional indíge-na, as aldeias foram progressivamente declinando, dan-do origem à produção nas haciendas - produção agríco-la em grandes latifúndios. A colonização espanhola com-preendia um complexo empreendimento. A grande mai-oria dos empreendedores que para cá vieram, provinhamdas classes pobres da Espanha, em busca de prestígio eriquezas. A montagem de uma máquina administrativapela coroa, logo demonstrou deficiências e não foi capazde propiciar plena segurança à exploração. Deve-se di-zer ainda que as encomiendas foram abolidas em 1540pelas Leis novas, por representarem a fragmentação dopoder real. Também o declínio da população indígenaviria a resultar, em algumas áreas, na busca da escravi-dão negra, como forma alternativa de produção.

Em sua obra Economia e sociedade na AméricaEspanhola, Ronaldo Vainfas afirma que a produção eexploração comercial de metais teve seu pico no séculoXVI, vindo a sofrer uma intensa crise no início do XVII.São apontadas algumas razões para isto: primeiro, osmetais são intermediados pela Espanha mas o seu fimúltimo é Inglaterra e França, para o pagamento de dívi-das; segundo, as guerras religiosas contra os protestan-tes (o metal da América vai patrocinar tais guerras); ter-ceiro, o conseqüente endividamento da Espanha juntoaos credores internacionais; quarto, o sustento de gran-des exércitos em diferentes lugares; soma-se a tudo isto,a crise demográfica da América, dentre outros.

Vale lembrar que neste processo de conquista este-ve presente a igreja, conjugando interesses comuns aosda coroa. E, a pluralidade de relações de trabalho e deprodução na América espanhola, não nos permite ca-racterizar tal período nos moldes conceituais do marxis-

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mo clássico. Tentar fazê-lo, seria incorrer noreducionismo, como bem determina a análise feita porVainfas. Segundo este mesmo autor, o processo de colo-nização legou-nos como herança não somente uma de-pendência econômica, mas também a deformação dasculturas indígenas e a inserção pejorativa das palavras“índio” e “negro”, não somente no vocabulário comum,mas também no emprego feito por historiadores e soció-logos.

Também merece destaque a análise feita porTzvetan Todorov, em sua obra A conquista da América:a questão do outro. Tendo como pressupostos ques-tões relacionadas à democracia do tempo presente, esteautor propõe-se a buscar as origens do totalitarismo, dadesigualdade e da intolerância que hoje nos cercam. Daío seu objetivo maior em prescrever um caráter exemplarde conduta moral, mediante a análise das atitudes econceitos empreendidos no processo de conquista daAmérica, pelos espanhóis em relação ao “outro”. Todorovdenuncia a responsabilidade coletiva dos espanhóis ede toda a Europa Ocidental em tais empreendimentos,de forma direta ou indireta. Conclui que o totalitarismoque hoje impregna a Europa Oriental já se manifestavano afã espanhol de banir a alteridade exterior naqueleperíodo, fundando nos territórios americanos a estrutu-ra de intolerância e desigualdade sócio-econômica queperdura até os nossos dias.

Chama-nos a atenção a citação feita por este autorde um texto denominado “A profecia de Las Casas”, reti-rada do Testamento do dominicano, na qual este pres-creve o derramamento da ira divina sobre a Espanhanum tempo futuro:

“Creio que por causa dessas obrasímpias, criminosas e ignominiosas, per-petradas de modo tão injusto, tirânico ebárbaro, Deus derramará sobre a

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Espanha sua fúria e sua ira, porque todaEspanha, bem ou mal, teve o seu quinhãodas sangrentas riquezas, usurpadas àcusta de tanta ruína e extermínio”37

Tal profecia representa importante objeto de análi-se, não só pela riqueza de elementos de âmbito sócio-econômico e religioso, mas também por apontar para ofuturo, futuro este que constitui o nosso presente. Evi-dentemente, para não incorrermos no erro do anacro-nismo, o pensamento de Las Casas precisa ser situadono seu contexto temporal, marcado sobretudo pelo ima-ginário religioso cristão, que se caracteriza pela menta-lidade de que os acontecimentos históricos estãoaprioristicamente abarcados pela vontade divina.

A profecia de derramamento da ira divina sobreos representantes futuros da civilização européia se cum-priu? Todorov afirma que alguns acontecimentos histó-ricos recentes parecem dar razão a Las Casas. Entre-tanto, afirma que mesmo sofrendo crises econômico-so-ciais, ou ainda guerras e calamidades, ou seja, por piorque venha a ser o presente/futuro dos Estados euro-peus, tais conseqüências jamais poderão equilibrar abalança de crimes perpetrados pelos mesmos nos terri-tórios americanos.

Desta afirmação de Todorov, podemos concluir que,mesmo apresentando algum caráter cíclico em determi-nadas situações, os fatos históricos são ímpares e deimpossível repetição idêntica; daí, a História ser dinâ-mica, imprevisível e impossível de ser abarcada em suatotalidade. Por isso, é louvável a afirmação do referidoautor, quando diz:

“Somos parecidos com os conquistadorese diferentes deles; seu exemplo é instru-tivo, mas jamais teremos a certeza de quenão nos comportando como eles, nãoestamos justamente a imitá-los.”38

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A meu ver, a Espanha hoje vive muito bem, se com-parada à própria realidade econômico-social da Améri-ca Latina. Por isso mesmo somos levados a concluir quea profecia de Las Casas ainda não se cumpriu. Afinal,ainda que mesmo não acreditando tão ingenuamenteem sua superioridade, a civilização européia continuadesejosa de assimilar “o outro” e fazer desaparecer aalteridade exterior, espalhando para o mundo inteiroseus valores. E é também inegável o sentimento de sub-serviência por parte de alguns segmentos ou setores cha-mados “Terceiro Mundo” em relação ao “Primeiro”. Per-cebe-se isto no inconsciente coletivo de que “tudo o queé de lá, é melhor”: produtos, arte, música, cinema...etc.Ainda permanece arraigado no imaginário latino-ameri-cano, mesmo que de forma velada, o estigma de superi-oridade implantado pela colonização espanhola e portu-guesa a partir do século XVI.

Finalizamos, ressaltando a importância das con-siderações feitas por Ronaldo Vainfas e Tzvetan Todorovpara o momento atual. Primeiro, pela evidência de que aconquista da América iniciada nos séculos XV e XVI -além de propiciar um dos maiores genocídios da Histó-ria - legou-nos uma estrutura que permanece em nossacontemporaneidade, ceifando as condições elementaresda vida. Em segundo lugar, pelo fato do nosso tempopresente poder representar o futuro predito porBartolomé de Las Casas em seu Testamento e, destaforma, podermos verificar, infelizmente, que o enredode intolerância e agressão ao “outro” continua sendoexibido no cenário da História contemporânea, quasesempre mascarado pela concepção de umapseudodemocracia, quando grupos ou segmentos rejei-tam a diferença do seu “semelhante”, desejandocondicioná-lo a valores e normas que julgam ser melho-res ou mais corretos.

Sabemos que o passado - ainda que não possa serressarcido em seus estigmas - ensina o presente, ou

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ao menos o adverte. É nesse sentido que a memória daconquista da América convoca a nós, historiadores, aatentarmo-nos para as descontinuidades e lacunashistoriográficas que ainda restam vazias, e a nos dispor-mos a fazer do nosso labor, não um árido discurso nar-rativo, e sim, uma reflexão crítica que promova a vida, eque ao invés de arvorar os lábaros da conquista, denun-cie a herança de seus labéus.

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tão do outro. São Paulo: Martins Fontes, 1993.

VAINFAS, Ronaldo. Economia e sociedade na América

espanhola. Rio de Janeiro: Graal, 1984.

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Pedra do Sol

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NOTAS

1 Professor de História da América. Universidade EstadualdeLondrina. Organizador da coletânea.2 O’GORMAN, Edmundo. A invenção da América. São Paulo:Editora da UNESP, 1992.3 TODOROV, Tzvetan. A conquista da América: a questão dooutro. 3 ed. São Paulo: Martins Fontes, 1993. DUSSEL, Enri-que. 1492 - O encobrimento do outro: a origem do mito damodernidade. Petrópolis: Vozes, 1993.4 TODOROV, Tzvetan. Em face do extremo. Campinas:Papirus, 1995. LEFORT, Claude. A invenção democrática. 2ed. São Paulo: Brasiliense, 1987.5 BOBBIO, Norberto. Direita e esquerda: razões e significa-dos de uma distinção política. 2 ed. São Paulo: Editora daUNESP, 1995.6 HOBSBAWM, Eric. Era dos extremos: o breve século XX,1914-1991. 2 ed. São Paulo: Companhia das Letras, 1995.7 ANDREWS, George Reid. Democracia racial brasileira 1900-1990: um contraponto americano. Estudos Avançados. SãoPaulo, n 30, v 11, maio/agosto, 1997, p. 95.8 TODOROV, Tzvetan. A Conquista da América...Op.cit.9 SCHWARCZ, Lilia M. O espetáculo da miscigenação. Estu-dos Avançados. São Paulo, n 20, v 8, janeiro/abril, 1994,p.140.10 COMISSÃO SOBRE GOVERNANÇA GLOBAL. Nossa comu-nidade global. Rio de Janeiro: Fundação Getúlio Vargas, 1996,p. 12-3.11 Aluno do 1º ano do curso de História. Trabalho apresentadoà disciplina: História da América I.12 VEGA, Inca Garcilaso de la. Comentários reales de los Incas.México: Fundo de Cultura Económica, 1991.13 FERREIRA, Jorge Luiz. Incas e Astecas - Culturas pré-colombianas. São Paulo: Ática, 1995, p. 40.14 “Em condições naturais causadas pela aridez e por terraspotencialmente férteis, e sendo as forças produtivas disponí-veis relativamente limitadas, se e somente se se desenvolverum controle institucionalmente centralizado do abastecimentode água, tornar-se-á possível o surgimento da civilização (orga-nização, Estado, grandes construções, sociedades estratificada,

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etc.). CARDOSO, Ciro Flamarion. Modo de produção asiático:nova visita a um velho conceito. Rio de Janeiro: Campus,1990.15 FERREIRA, Jorge Luiz.Op. cit.16 Alunas do 2º ano do curso de História. Trabalho apresenta-do à disciplina: História da América II.17 TODOROV, Tzvetan. A conquista da América: a questãodo outro. 3 ed. São Paulo: Martins Fontes, 1993, p. 128.18 Por guerra se entende o assassinato direto, mesmo fora desituação de batalha; por maus-tratos, a escravidão, asubnutrição, a mudança de ritmo e estilo de vida, etc.; emrelação ao choque microbiano, além da falta de imunidade dosíndios, havia uma suscetibilidade extra, causada pela fragili-dade física e espiritual em que se encontravam. A isso acres-centa-se o tráfico de escravos e a diminuição da taxa de nata-lidade.19 BRUIT, Héctor. América Latina: quinhentos anos entre aresistência e a revolução. Revista Brasileira de História. SãoPaulo: ANPUH/Marco Zero, v.10, n. 20, mar/ago., 1990, p.156.20 Apud. TODOROV, Tzvetan. Op. cit., p. 136.21 Idem, p. 136-7.22 Aluno do 2º ano do curso de História. Trabalho apresentadoà disciplina: História da América II.23BRUIT, Héctor Hernan. Bartolomé de Las Casas e a simu-lação dos vencidos. Campinas: Iluminuras, 1995.24 Bartolomé de Las Casas... Op. cit. p. 110.25 TODOROV, Tzvetan. Op. cit.26 Idem., p. 195.27 Idem. Op. cit.28 LAS CASAS, Bartolomé. Op. cit., p. 109.29 SALAS, Alberto M. Três cronistas de Índias: Pedro Majetirde Anglería, Gonzalo Fernandes de Oviedo, Fray Bartoloméde Las Casas. México: Fondo de Cultura Ecónomica, 1975.30 LAS CASAS, Bartolomé de. O paraíso destruído: brevíssimarelação da destruição das Índias. 5. ed. Porto Alegre: LP&M,1991.31 SALAS, Alberto. Op. cit.32 LAS CASAS, Bartolomé. Op. cit., p. 110.33 Idem., p. 200.

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34 Idem35 Alunos do 2º ano do curso de História. Trabalho apresentadoà disciplina: História da América II.36 Aluno do 2º ano do Curso de História . Trabalho apresenta-do à disciplina: História da América II.37 Apud. TODOROV, Tzvetan. Op. cit., p. 250.38 Idem.