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ENCICLOPÉDIA JURÍDICA DA PUCSP DIREITO ADMINISTRATIVO E CONSTITUCIONAL 0 COORDENAÇÃO GERAL Celso Fernandes Campilongo Alvaro de Azevedo Gonzaga André Luiz Freire ENCICLOPÉDIA JURÍDICA DA PUCSP TOMO 2 DIREITO ADMINISTRATIVO E CONSTITUCIONAL COORDENAÇÃO DO TOMO 2 Vidal Serrano Nunes Júnior Maurício Zockun Carolina Zancaner Zockun André Luiz Freire

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ENCICLOPÉDIA JURÍDICA DA PUCSP DIREITO ADMINISTRATIVO E CONSTITUCIONAL

0

COORDENAÇÃO GERAL

Celso Fernandes Campilongo

Alvaro de Azevedo Gonzaga

André Luiz Freire

ENCICLOPÉDIA JURÍDICA DA PUCSP

TOMO 2

DIREITO ADMINISTRATIVO E

CONSTITUCIONAL

COORDENAÇÃO DO TOMO 2

Vidal Serrano Nunes Júnior

Maurício Zockun

Carolina Zancaner Zockun

André Luiz Freire

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ENCICLOPÉDIA JURÍDICA DA PUCSP DIREITO ADMINISTRATIVO E CONSTITUCIONAL

1

PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA

DE SÃO PAULO

FACULDADE DE DIREITO

DIRETOR

Pedro Paulo Teixeira Manus

DIRETOR ADJUNTO

Vidal Serrano Nunes Júnior

ENCICLOPÉDIA JURÍDICA DA PUCSP | ISBN 978-85-60453-35-1

<https://enciclopediajuridica.pucsp.br>

CONSELHO EDITORIAL

Celso Antônio Bandeira de Mello

Elizabeth Nazar Carrazza

Fábio Ulhoa Coelho

Fernando Menezes de Almeida

Guilherme Nucci

José Manoel de Arruda Alvim

Luiz Alberto David Araújo

Luiz Edson Fachin

Marco Antonio Marques da Silva

Maria Helena Diniz

Nelson Nery Júnior

Oswaldo Duek Marques

Paulo de Barros Carvalho

Ronaldo Porto Macedo Júnior

Roque Antonio Carrazza

Rosa Maria de Andrade Nery

Rui da Cunha Martins

Tercio Sampaio Ferraz Junior

Teresa Celina de Arruda Alvim

Wagner Balera

TOMO DE DIREITO ADMINISTRATIVO E CONSTITUCIONAL | ISBN 978-85-60453-37-5

Enciclopédia Jurídica da PUCSP, tomo II (recurso eletrônico)

: direito administrativo e constitucional / coord. Vidal Serrano Nunes Jr. [et al.] - São Paulo: Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, 2017

Recurso eletrônico World Wide Web (10 tomos) Bibliografia.

1.Direito - Enciclopédia. I. Campilongo, Celso Fernandes. II. Gonzaga, Alvaro. III. Freire,

André Luiz. IV. Pontifícia Universidade Católica de São Paulo.

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HERMENÊUTICA CONSTITUCIONAL

Lenio Streck

INTRODUÇÃO

A hermenêutica jurídica, analisada a partir da matriz que venho denominando

Crítica Hermenêutica do Direito, tem como ponto de partida o estudo da interpretação

jurídica, levando em consideração que, na medida em que o Poder Judiciário aplica o

Direito constituído sob as bases de um Estado Democrático de Direito, não tem

legitimidade para que interprete o Direito conforme suas preferências políticas, morais ou

econômicas, mas encontrar a resposta adequada à Constituição. Não há espaço, em uma

democracia, para decisões arbitrárias. Desse modo, a questão da hermenêutica jurídica

está intimamente relacionada com uma Teoria da Decisão Judicial preocupada em

preservar as condições intersubjetivas pelas quais se permita chegar a melhor

interpretação do Direito. Assim, a Crítica Hermenêutica do Direito se desenvolve através

de uma imbricação entre o pensamento de Hans-Georg Gadamer e Ronald Dworkin,

preocupando-se em especial com os problemas da discricionariedade judicial da maneira

como se mostram no país, na busca da construção de uma teoria que possibilite apontar

qual a interpretação adequada do Direito, ou, em outras palavras, o modo como os juízes

devem decidir.

SUMÁRIO

Introdução ......................................................................................................................... 2

1. Hermenêutica constitucional ................................................................................... 2

Referências ..................................................................................................................... 23

1. HERMENÊUTICA CONSTITUCIONAL

Partindo da concepção de que hermenêutica não é método e que não existem

hermenêuticas “regionais”, trabalhar com a concepção de hermenêutica constitucional

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tem apenas o sentido de situar com mais especificidade a “coisa” Constituição. Assim,

hermenêutica não é algo que operamos (apenas) para uma determinada finalidade ou

somente para alguns momentos. Ao contrário, faz parte do modo como somos. Gadamer

explica que a ideia de verdade nas ciências humanas tão apegada ao método estaria

equivocada, uma vez que Hermenêutica é filosófica e não (metodo)lógica. Nesta senda o

filósofo afirma que na leitura do maior de todos os “livros” é possível demonstrar a tensão

e a solução que estruturam o compreender e a compreensibilidade, talvez também a

compreensão, e nesse sentido não se pode duvidar da universalidade do problema

hermenêutico. Não se trata de um tema secundário. A hermenêutica não é uma mera

disciplina auxiliar das ciências românticas do espírito.1

A linguagem não sendo um instrumento, portanto, não sendo uma terceira coisa

entre o sujeito e o objeto, mas sim a condição de possibilidade de acesso ao mundo (da

vida), também aponta para a universalidade do labor hermenêutico, que, por isso, não

poderia/deveria ser pensado de forma regionalizada nem limitada a textos de determinada

natureza. Do mesmo modo, A universalidade da hermenêutica é confirmada pelo fato de

que qualquer compreensão do ser sobre qual os intérpretes chegam a concordar ocorre na

linguagem, e a compreensão da linguagem requer interpretação e aplicação, ou seja,

hermenêutica.2

Dito isto, sempre é relevante lembrar que a palavra hermenêutica deriva do grego

hermeneuein, adquirindo vários significados no curso da história. Por ela, busca-se

traduzir para uma linguagem acessível aquilo que não é compreensível. Daí a ideia de

Hermes, um mensageiro divino, que transmite – e, portanto, esclarece – o conteúdo da

mensagem dos deuses aos mortais. Ao realizar a tarefa de hermeneus, Hermes tornou-se

poderoso. Na verdade, nunca se soube o que os deuses disseram; só se soube o que

Hermes disse acerca do que os deuses disseram. Trata-se, pois, de uma (inter)mediação.

Desse modo, a menos que se acredite na possibilidade de acesso direto às coisas (enfim,

à essência das coisas), é na metáfora de Hermes que se localiza toda a complexidade do

problema hermenêutico. Trata-se de traduzir linguagens e coisas atribuindo-lhes um

determinado sentido.

1 GADAMER, Hans-Georg. Verdade e método II, p.271. 2 SCHMIDT, Lawrence K. Hermenêutica, p. 180.

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Na história moderna, tanto na hermenêutica teológica como na hermenêutica

jurídica, a expressão tem sido entendida como arte ou técnica (método), com efeito

diretivo sobre a lei divina e a lei humana. O ponto comum entre a hermenêutica jurídica

e a hermenêutica teológica reside no fato de que, em ambas, sempre houve uma tensão

entre o texto proposto e o sentido que alcança a sua aplicação na situação concreta, seja

em um processo judicial ou em uma pregação religiosa. Essa tensão entre o texto e o

sentido a ser atribuído ao texto coloca a hermenêutica diante de vários caminhos, todos

ligados, no entanto, às condições de acesso do homem ao conhecimento acerca das coisas.

Assim, a) demonstra-se que é possível colocar regras que possam guiar o hermeneuta no

ato interpretativo, mediante a criação, p. ex., de uma teoria geral da interpretação; b)

reconhece-se que a pretensa cisão entre o ato do conhecimento do sentido de um texto e

a sua aplicação a um determinado caso concreto não são de fato atos separados, ou c)

reconhece-se, finalmente, que as tentativas de colocar o problema hermenêutico a partir

do predomínio da subjetividade do intérprete ou da objetividade do texto não passaram

de falsas contraposições fundadas no metafísico esquema sujeito-objeto.

A viragem hermenêutico-ontológica, provocada por Sein Und Zeit (1927) de

Martin Heidegger, e a publicação, anos depois, de Wahrheit Und Methode (1960), por

Hans-Georg Gadamer, foram fundamentais para um novo olhar sobre a hermenêutica

jurídica. A partir dessa viragem ontológica (ontologische Wendung), inicia-se o processo

de superação dos paradigmas metafísicos objetivista aristotélico-tomista e subjetivista

(filosofia da consciência), os quais, de um modo ou de outro, até hoje têm sustentado as

teses exegético-dedutivistas-subsuntivas dominantes naquilo que em sendo denominado

de hermenêutica jurídica.

A hermenêutica jurídica praticada no plano da cotidianidade do Direito deita

raízes na discussão que levou Gadamer a fazer a crítica ao processo interpretativo

clássico, que entendia a interpretação como sendo produto de uma operação realizada em

partes (subtilitas intelligendi, subtilitas explicandi,subtilitas applicandi, isto é, primeiro

compreendo, depois interpreto, para só então aplicar). A impossibilidade dessa cisão

implica a impossibilidade de o intérprete retirar do texto algo que o texto possui-em-si-

mesmo, numa espécie de Auslegung, como se fosse possível reproduzir sentidos; ao

contrário, para Gadamer, fundado na hermenêutica filosófica, o intérprete sempre atribui

sentido (Sinngebung). O acontecer da interpretação ocorre a partir de uma fusão de

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horizontes, porque compreender é sempre o processo de fusão dos supostos horizontes

para si mesmo. Veja-se que, já desde sempre, a hermenêutica exsurgida a partir da invasão

da filosofia pela linguagem coloca em cheque a cisão dual-estrutural que mantém o

positivismo, isto é, de que existam descrições e prescrições. Na descrição já existe

prescrição. O olhar externo do positivismo exclusivo, para falar apenas do “positivismo

duro” já vem impregnado por aquilo que o positivismo quer evitar: a impregnação do

direito pela moral. Assim, ter uma posição que exclua a moral do direito já é, por si, uma

posição moral.

Tudo isto porque temos uma estrutura do nosso modo de ser no mundo, que é a

interpretação. Podemos dizer, então, que estamos condenados a interpretar. O horizonte

do sentido nos é dado pela compreensão que temos de algo. Compreender é um

existencial, que é uma categoria pela qual o homem se constitui. A faticidade, a

possibilidade e a compreensão são alguns desses elementos existenciais. É no nosso modo

da compreensão enquanto ser no mundo que exsurgirá a norma, produto da síntese

hermenêutica, que se dá a partir da faticidade e historicidade do intérprete.

A superação da hermenêutica clássica – ou daquilo que tem sido denominado de

hermenêutica jurídica como técnica no seio da doutrina e da jurisprudência praticadas

cotidianamente –, implica admitir que há uma diferença entre o texto jurídico e o sentido

desse texto, isto é, que o texto não carrega, de forma reificada, o seu sentido (a sua

norma). As palavras não “carregam” o seu próprio sentido ou seu sentido próprio. Trata-

se de entender que entre texto (lei) e norma (sentido da lei) não há uma equivalência e

tampouco uma total autonomização. Entre texto e norma há, sim, uma diferença, que é

ontológica, isto porque – e aqui a importância dos dois teoremas fundamentais da

hermenêutica jurídica-filosófica – o ser é sempre o ser de um ente e o ente só é no seu

ser. O ser existe para dar sentido aos entes. Por isso há uma diferença ontológica (não

ontológico-essencialista) entre ser e ente, tese que ingressa no plano da hermenêutica

jurídica para superar, tanto o problema da equiparação entre vigência e validade, como o

da total cisão entre texto e norma, resquícios de um positivismo jurídico que convive com

uma total discricionariedade no ato interpretativo. A incorporação da diferença ontológica

da fenomenologia hermenêutica foi incorporada pela Crítica Hermenêutica do Direito

(ver Lições de Crítica Hermenêutica do Direito, segunda edição, pela Livraria do

Advogado) para melhor podermos compreender a diferença entre Lei e Direito. Em

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Hermenêutica jurídica e(m) crise (décima primeira edição, pela Livraria do Advogado)

essa questão está explicitada amiúde.

Nesse sentido, a afirmação de que o “intérprete sempre atribui sentido

(Sinngebung) ao texto”, nem de longe pode significar a possibilidade de este estar

autorizado a atribuir sentidos de forma arbitrária aos textos, como se texto (lei) e norma

(sentido atribuído) estivessem separados (e, portanto, tivessem existência autônoma).

Como bem diz Gadamer, quando o juiz pretende adequar a lei às necessidades do

presente, tem claramente a intenção de resolver uma tarefa prática (veja-se, aqui, a

importância que Gadamer dá ao programa aristotélico de uma praktische Wissenschaft).

Isso não quer dizer, de modo algum, que sua interpretação da lei seja uma tradução

arbitrária.

Portanto, ficam afastadas todas as formas de decisionismo, discricionariedade e

teses como “a interpretação do Direito é um ato de vontade”. O fato de não existir um

método que possa dar garantia a correção do processo interpretativo – denúncia presente,

aliás, já no oitavo capítulo da Teoria Pura do Direito de Hans Kelsen – não autoriza o

intérprete a escolher o sentido que mais lhe convém, o que seria dar azo à

discricionariedade, característica do positivismo. Sem textos, não há normas. A vontade

e o conhecimento do intérprete não permitem a atribuição arbitrária de sentidos, e

tampouco uma atribuição de sentidos arbitrária. Afinal, e a lição está expressa em

Verdade e Método (Wahrheit und Methode), se queres dizer algo sobre um texto, deixe

que o texto te diga algo.

Dito de outro modo, podemos fazer uma relação entre a concepção clássica da

metafísica com o “segundo nível” da Teoria Pura de Kelsen. Nesses paradigmas o

sujeito/intérprete está aprisionado por estruturas das quais não lhe resta nada a se não ser

aceitar as essências, no primeiro caso, e a descrição das normas jurídicas como uma forma

de fazer ciência, no segundo. A aproximação se dá pelo fato de que o sujeito está preso a

determinada estrutura, sem qualquer tipo de interferência sobre ela. No entanto, para o

Direito, a construção deste “segundo nível” acaba esquecendo dos problemas práticos,

como a discricionariedade interpretativa dos juízes. Enquanto o “cientista” descreve o

Direito – aqui o resquício da metafísica clássica objetivista –, o juiz o aplica conforme

sua vontade, o que implica a possibilidade de lançar mão de argumentos morais, políticos,

pessoais, etc. (Kelsen chama a isso, efetivamente, de ato de vontade). Essa problemática

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se estende aos positivismos pós-hartianos, em especial os “positivismos duros”, que

cindem moral e direito a partir de um pretenso ato descritivo (ato externo), deixando o

ato de aplicação do direito a cargo de raciocínios práticos, espaço inexorável do poder

discricionário, seja o nome que se dê a esse ato subjetivista.

Por tudo isso, não basta dizer que o Direito é concretude, e que cada caso é um

caso, como é comum na linguagem dos juristas. Afinal, é mais do que evidente que o

Direito é concretude e que é feito para resolver casos particulares. O que não é evidente

é que o processo interpretativo é applicatio, entendida no sentido da busca da coisa

mesma (Sache selbst), isto é, do não esquecimento da diferença ontológica (de novo,

sempre apontando a impossibilidade de se cindir descrição da prescrição). O Direito é

parte integrante do próprio caso e uma questão de fato é sempre uma questão de Direito

e vice-versa, Hermenêutica não é filologia. É impossível cindir a compreensão da

aplicação. Uma coisa é deduzir de um topos ou de uma lei o caso concreto; outra é

entender o Direito como aplicação: na primeira hipótese, estar-se-á entificando o ser; na

segunda, estar-se-á realizando a aplicação de índole hermenêutica, a partir da ideia de que

o ser é sempre ser-em (in Sein).

Assim, embora os juristas – nas suas diferentes filiações teóricas – insistam em

dizer que a interpretação deve se dar sempre em cada caso, tais afirmações, infelizmente,

não encontram comprovação na cotidianidade das práticas jurídicas. Na verdade, ao

construírem pautas gerais, conceitos lexicográficos, verbetes doutrinários e

jurisprudenciais (hoje existe uma verdadeira fetichização em torno de “precedentes”) ou

súmulas aptas a resolver casos futuros, os juristas sacrificam a singularidade do caso

concreto em favor dessas espécies de pautas gerais, fenômeno, entretanto, que não é

percebido no imaginário jurídico. Daí a indagação de Gadamer: existirá uma realidade

que permita buscar com segurança o conhecimento do universal, da lei, da regra, e que

encontre aí a sua realização? Não é a própria realidade o resultado de sua interpretação?

A rejeição de qualquer possibilidade de subsunções ou deduções aponta para o próprio

cerne de uma hermenêutica jurídica inserida nos quadros do pensamento pós-metafísico.

Trata-se de superar a problemática dos métodos, considerados pelo pensamento

exegético-positivista como portos seguros para a atribuição dos sentidos. Compreender

não é produto de um procedimento (método) e não é um modo de conhecer. Compreender

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é, sim, um modo de ser, porque a epistemologia é substituída pela ontologia da

compreensão.

Uma hermenêutica jurídica capaz de intermediar a tensão inexorável entre o

texto e o sentido do texto não pode continuar a ser entendida como uma teoria ornamental

do Direito, que sirva tão-somente para colocar capas de sentido aos textos jurídicos. No

interior da virtuosidade do círculo hermenêutico, o compreender não ocorre por dedução.

Consequentemente, o método (o procedimento discursivo) sempre chega tarde, porque

pressupõe saberes teóricos separados da realidade.

Antes de argumentar, o intérprete já compreendeu. Esta é uma conquista da

Critica Hermenêutica do Direito (ver Lições de Crítica Hermenêutica do Direito,

segunda edição, pela Livraria do Advogado), pela qual não se interpreta para

compreender, mas, sim, compreende-se para interpretar. A compreensão antecede, pois,

qualquer argumentação. Ela é condição de possibilidade. Consequentemente, quando as

teorias analíticas (como o positivismo) dizem que o teórico descreve e o juiz-aplicador

faz raciocínios práticos, ali está nitidamente posta o esquecimento da diferença

ontológica. Aliás, essa falha filosófica acaba sendo repetida como um vício profissional:

as petições dos advogados sempre começam expondo os fatos, para só depois

“encaixarem” o Direito.

Do mesmo modo, é equivocado afirmar, por exemplo, que o juiz, primeiro

decide, para só depois fundamentar; na verdade, ele só decide porque já encontrou, na

antecipação de sentido, o fundamento (a justificação). Fundamento e finalidade não são

a mesma coisa. Caso contrário, estaríamos diante do sacrifício de qualquer intermediação

linguística, tendo o intérprete, assim, “acesso direito aos entes, às coisas”. A “busca da

verdade real” sustentada por parcela da comunidade jurídica espelha claramente esse

atravessamento epistêmico, que anula a linguagem. A “verdade real” acaba sendo um

sonho ontológico-essencialista dos juristas.

Todavia, somente é possível compreender isso a partir da admissão da tese de

que a linguagem não é um mero instrumento ou terceira coisa que se interpõe entre um

sujeito (cognoscente) e um objeto (cognoscível). O abismo gnosiológico que separa o

homem das coisas e da compreensão acerca de como elas são, não depende – no plano da

hermenêutica jurídico filosófica (e, portanto, da Crítica Hermenêutica do Direito) – de

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pontes que venham ser construídas - paradoxalmente - depois que a travessia (antecipação

de sentido) já tenha sido feita. É o que denomino de “aporia da ponte”.

Daí a importância da pré-compreensão (Vorverständnis), que passa ao patamar

à de condição de possibilidade nesse novo modo de olhar a hermenêutica jurídica. Nossos

pré-juízos que conformam com nossa pré-compreensão não são jamais arbitrários. Pré-

juízos não são inventados; eles nos orientam no emaranhado da tradição, que pode ser

autêntica ou inautêntica. Mas isso não depende da discricionariedade do intérprete e

tampouco de um controle metodológico. O intérprete não domina a tradição. Os sentidos

que atribuirá ao texto não dependem de sua vontade, por mais que assim queiram os

adeptos do esquema representacional sujeito-objeto. E se o intérprete impuser sua

vontade, já não haverá hermenêutica. Não haverá compreensão. Haverá uma extorsão de

sentido. Evidente que pré-compreensão não deve ser confundida com subjetivismo,

ideologia, opinião pessoal, etc. Isso seria confundir a pré-compreensão com preconceitos

no sentido ruim da palavra.

Uma das preocupações fundamentais da hermenêutica filosófica e, por

consequência, da CHD, é enfrentar as críticas do risco do relativismo. Essas acusações se

dão pela errônea compreensão de que, contra o formalismo dedutivista do positivismo

clássico, bastaria colocar qualquer coisa em seu lugar, como fizeram, por exemplo, as

diversas teorias voluntaristas no final do século XIX e no início do século XX, chegando

até mesmo ao século XXI, como se pode ver pelas posturas neoconstitucionalistas. Longe

disso, a hermenêutica é uma postura não-positivista ou, se quisermos, pós-positivista. A

teoria hermenêutica não é uma mera especificação para o Direito de propostas

procedentes de um plano filosófico mais geral, lembra bem Rodrigues Puerto (2011). E

Ulfried Neumann (1984) e Ulrich Schroth (1989) também advertem para a agregação que

o jurídico fez à hermenêutica filosófica. Há, pois, uma especificidade nisso: o texto

jurídico. A lei. A jurisprudência.

Nesse sentido, é importante entender que a hermenêutica jurídica, que exsurge

desse viés, é parte de uma vertente de racionalidade prática preocupada com o Direito e

com o que este tem a ver com os diversos campos de conhecimento no qual se abebera.

Por isso, pode-se dizer que foi a ciência jurídica que foi absorvendo a fenomenologia

hermenêutica, a partir dos elementos fulcrais como o círculo hermenêutico, a diferença

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ontológica, a noção de pré-compreensão (que, insisto, não é uma mera subjetividade e

nem ideologia) e a própria noção de verdade.

Quem interpreta já compreendeu e sempre tem uma pretensão de verdade. Como diz

Gadamer, mais do que combater o relativismo, é necessário destruí-lo. Em termos

jurídicos, o relativismo é inimigo da autonomia do Direito e da própria democracia.

Gadamer deu uma enorme contribuição para um novo tipo de hermenêutica jurídica. A

filosofia que brotou de sua obra inundou o Direito e contribuiu sobremodo para limpar a

falsa imagem de irracionalidade que a prática jurídica tinha em relação a uma certa

epistemologia moderna. A hermenêutica veio para ficar, exatamente porque é esse

intermédio filosófico entre o objetivismo e o subjetivismo.

Por tudo isso, é fácil afirmar que uma sentença judicial é um ato de decisão e

não de escolha. É um ato de poder, em nome do Estado. Dworkin diz que a sentença é um

ato de responsabilidade política. Por isso mesmo é que a sentença não é uma mera opção

por uma ou mais teses. Nesse sentido, Heinrich Rombach deixa claro que a análise

autêntica do fenômeno da decisão exige um desprendimento com relação às

representações e modelos habituais do fenômeno. Afirma que tanto o decisionismo

irracional quanto o racionalismo – e as correspondentes teorias da decisão que se formam

a partir deles – acabam por entulhar o problema na medida em que tornam indiferentes o

fenômeno da decisão e o fenômeno da escolha. Segundo o autor, decidir é diferente de

escolher. E essa diferença não se apresenta em um nível valorativo (ou seja, não se trata

de afirmar que a decisão é melhor ou pior que a escolha), mas, sim, estrutural. “Respostas

de escolha são respostas parciais; respostas de decisão são respostas totais, nas quais entra

em jogo a existência inteira”.3

No caso da decisão jurídica (sentença), é possível adaptar a fórmula proposta por

Rombach para dizer que ela pressupõe um comprometimento por parte do agente

judicante com a moralidade da comunidade política. Isso significa, em termos

dworkinianos que a decisão é um ato de responsabilidade política. É por isso que a

jurisdição, em um quadro como esse, não efetua um ato de escolha entre diversas

possibilidades interpretativas quando oferece a solução para um caso concreto. Ela

efetua “a” interpretação, uma vez que decide – e não escolhe – quais os critérios de ajuste

3 DWORKIN, Ronald. Decisión. Conceptos fundamentales de filosofía, vol. I., pp. 476-490.

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e substância (moralidade) que estão subjacentes ao caso concreto analisado. Portanto, há

uma diferença entre o decidir, que é um ato de responsabilidade política e o escolher, que

é um ato de razão prática. O primeiro é um ato estatal; o segundo, da esfera do cotidiano,

de agir estratégico.

Para uma hermenêutica (constitucional) preocupada com a democracia, é

necessário evitar discricionariedades, decisionismos e a correção moral do direito. Nessa

seara, o dever de fundamentar – que é mais do que motivar – não é simplesmente um

adereço que será posto na decisão. Tampouco será uma justificativa para aquilo que o juiz

decidiu de forma subjetivista-solipsista, substituindo o direito pela moral, política ou

economia ou até mesmo suas opiniões pessoais. O Estado Democrático e a Constituição

são incompatíveis com modelos de motivação teleológicos do tipo “primeiro decido e só

depois busco o fundamento”. Superado o paradigma subjetivista, é a intersubjetividade

que será a condição para o surgimento de uma decisão (ver Verdade e consenso, sexta

edição, pela Saraiva). Nesse sentido, o juiz deve controlar a sua subjetividade por

intermédio da intersubjetividade proveniente da linguagem pública (doutrina,

jurisprudência, lei e Constituição). As suas convicções pessoais são – e devem ser –

irrelevantes para a decisão. Por isso, a decisão judicial não é fruto do pensamento pessoal

ou da “consciência do julgador”. Se a decisão jurídica for fruto de uma “hermenêutica

pessoal-solipsista”, obviamente já estaremos falando de hermenêutica, e, sim de uma

“interpretação como ato de vontade”. Decisão nesse sentido será nula. Como bem lembra

Arruda Alvim, o juiz não decide arbitrariamente, em função de sua mera vontade.4 Como

se pode ver pela leitura do art. 371, o novo Código de Processo Civil aboliu a livre

apreciação da prova e qualquer forma de livre convencimento. A expulsão do livre

convencimento é um elemento de extrema relevância para demonstrar o significado

democrático da hermenêutica. Uma hermenêutica apta para implementar a Constituição

não pode depender de livres convicções, mesmo que sucedidas da falácia “livre convicção

ou livre convencimento motivado”. De novo, a aporia da ponte desmonta a tese do livre

convencimento, que, aliás, já desde há muito nada tem a ver com a superação da prova

tarifada, passando a ser uma “tese” que nada mais faz do repristinar o protagonismo

judicial do final do século XIX e início do século XX.

4 ARRUDA ALVIM, José Manoel de. Manual de direito processual civil, p. 1133.

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O advento da Constituição de 1988 exigiu um novo olhar sobre a hermenêutica

(constitucional). Por óbvio já não se pode(ria) pensar em trabalhar com

instrumentalizações pós-exegéticas, que, sincreticamente, passaram a incorporar posturas

como a jurisprudência dos valores alemã, o ativismo judicial norte-americano, a

metodologia de Savigny, a ponderação advinda da teoria da argumentação jurídica (não

há pistas de que a teoria alexyana tenha sido, efetivamente, aplicada em alguma decisão

no Brasil) e outras correntes voluntaristas que, em vez de centrar o olhar na Constituição

e seu propósito, passaram a apostar em elementos criteriais, naquilo que Dworkin tão bem

denunciou como “aguilhões semânticos”.

Dito de outro modo, se até o advento da Constituição de 1988 apostava-se em

um certo ativismo judicial baseado, por exemplo, nas diversas formas de positivismo

fático (realismos jurídicos dos mais variados) como forma específica de luta por espaços

no interior do “sistema” na busca de inclusões sociais – mormente no que diz respeito aos

direitos de liberdade em um regime político-jurídico autoritário/ditatorial que deixou de

fora do direito os conflitos e aspirações sociais –, na sequência, já na vigência da nova

Constituição, não foram construídas as condições necessárias para a concretização de um

direito agora produzido democraticamente e com feições nitidamente transformadoras da

sociedade. Destarte, parece óbvio que a solução para (ess)as novas demandas não adviria

de uma aposta nas velhas posturas acionalistas.

Exsurge, assim, a necessidade de se dar novos contornos à interpretação do

direito (constitucional), sem que se confundam, contudo, os princípios da interpretação

constitucional com os princípios jurídico-constitucionais. Fundamentalmente – e a

lembrança é de Gomes Canotilho – há que se ter claro que uma hermenêutica ligada ao

caráter compromissório do constitucionalismo contemporâneo terá que construir as

condições de possibilidade para que a retórica dos juristas adquira positividade, abrindo

“caminhos hermenêuticos capazes de auxiliarem a extrinsecação do direito

constitucional”.5 E essa tarefa é indelegável.

Diante disso, uma nova perspectiva hermenêutica vem se forjando a partir de

duas rupturas paradigmáticas: a revolução do constitucionalismo, que institucionaliza um

5 Ver CANOTILHO, J. J. Gomes. O direito constitucional como ciência de direção. Revista da Academia Brasileira de Direito Constitucional, v. 10, p. 118.

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elevado grau de autonomia do direito, e a revolução copernicana provocada pelo giro-

linguístico-ontológico. De um lado, a existência da Constituição exige a definição dos

deveres substanciais dos poderes públicos que vão além do constitucionalismo liberal-

iluminista, diminuindo-se o grau de discricionariedade do Poder Legislativo, assim como

do Poder Judiciário nos denominados “casos difíceis”. De outro, parece não restarem

dúvidas de que, contemporaneamente, a partir dos avanços da teoria do direito, é possível

dizer que não existem respostas a priori acerca do sentido de determinada lei que

exsurjam de procedimentos ou métodos de interpretação. Nesse sentido, “conceitos” que

tenham a pretensão de abarcar, de antemão, todas as hipóteses de aplicação, nada mais

fazem do que reduzir a interpretação a um processo analítico, que se caracteriza pelo

emprego “sistemático” da análise lógica da linguagem, buscando descobrir o significado

dos vocábulos e dos enunciados.

Nesta quadra da história, já não pairam dúvidas de que os métodos de

interpretação propalados pela teoria geral do direito – mesmo que esta se ocupe apenas

da estrutura dos diversos sistemas jurídicos, e não propriamente do conteúdo normativo

– são incompatíveis com esse novo paradigma compreensivo. Não percebemos, de forma

distinta (cindida), primeiro os textos para, depois, acoplar-lhes sentidos. Ou seja, na

medida em que o ato de interpretar – que é sempre compreensivo/aplicativo – é unitário,

o texto (pensemos, fundamentalmente, na Constituição) não está, e não nos aparece,

desnudo, como se estivesse à nossa disposição. Com isso também desaparece qualquer

distinção entre estrutura e conteúdo normativo. Destarte – insisto – não podemos esquecer

que mostrar a hermenêutica como produto de um raciocínio feito por etapas foi a forma

que as diversas formas de subjetivismo encontraram para buscar o controle político-

ideológico do “processo” de interpretação. Daí a importância conferida ao método, que

sempre teve/tem a função de “isolar” a norma (sentido do texto) de sua concretização.

Uma questão, assim, é vital para a hermenêutica de cariz constitucional. Se alguém tem

que decidir por último, a pergunta que se põe obrigatoriamente é: de que modo podemos

evitar que a legislação – suposto produto da democracia representativa (produção

democrática do direito) – seja solapada pela falta de legitimidade da jurisdição? Ou,

melhor dizendo, com Miranda Coutinho, não propriamente uma “falta de legitimidade”,

mas uma “possível” expropriação de um espaço de poder que ele – o juiz – não tem e,

portanto, para tal “atribuição” é que não encontra legitimidade. Aponte-se, ademais, que,

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à diferença da compreensão de outros fenômenos, a hermenêutica jurídica contém uma

especificidade: a de que o processo hermenêutico possui um vetor de sentido, produto de

um processo constituinte que não pode ser alterado a não ser por regramento próprio

constante no próprio processo originário. E isso faz a diferença. A Constituição é o elo

conteudístico que liga a política e o direito, d’onde se pode dizer que o grande salto

paradigmático nesta quadra da história está exatamente no fato de que o direito deve servir

como garantia da democracia. Trata-se, no fundo, de um paradoxo: a Constituição é um

remédio contra maiorias, mas, ao mesmo tempo, serve como garantia destas.

Assim, na medida em que estamos de acordo que a Constituição possui

características especiais exsurgidas de um profundo câmbio paradigmático, o papel da

hermenêutica passa a ser, fundamentalmente, o de preservar a força normativa da

Constituição e o grau de autonomia do direito diante das tentativas usurpadoras

provenientes do processo político (compreendido lato sensu). Nesse contexto, a grande

engenharia a ser feita é, de um lado, preservar a força normativa da Constituição e, de

outro, não colocar a política a reboque do direito. E não permitir que a moral corrija o

direito produzido democraticamente.

Essa (inter)mediação é o papel a ser desempenhado pelos princípios forjados na

tradição do Estado Democrático de Direito. Princípios funcionam, assim, como Leitmotiv

do processo interpretativo, como que a mostrar que cada enunciado jurídico possui uma

motivação (Jede Aussage ist motiviert, dirá Gadamer). Princípios têm a função de

mostrar/denunciar a ruptura com a plenipotenciaridade das regras; o direito não isenta o

intérprete de qualquer compromisso com a realidade.

Por tais razões, é fundamental que se passe a entender que “metodologia” ou

“principiologia” constitucional não querem dizer “cânones”, “regras” ou “metarregras”,

mas, sim, um modo de concretizar a Constituição, isto é, o modo pelo qual a Constituição

deve ser “efetivamente interpretada”. Afinal, a fragilidade dos “cânones” reside

precisamente no fato de que não existe um “método” ou uma “regra” que estabeleça o

modo de aplicá-los, a menos que se acredite na possibilidade de um “método dos

métodos” ou de um metafísico “método fundamental” (Grundmethode). Do mesmo

modo, não há um metaprincípio apto a servir de norte para a aplicação dos diversos

princípios cunhados nas diversas fases do constitucionalismo.

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Desse modo, propõe-se, aqui, um conjunto mínimo de princípios

(hermenêuticos) a serem seguidos pelo intérprete. Tais princípios, sustentados na

historicidade da compreensão e na sedimentação dessa principiologia, somente se

manifestam quando colocados em um âmbito de reflexão que é radicalmente prático-

-concreto, pois representam um contexto de significações históricas compartilhadas por

uma determinada comunidade política, uma vez que abarcam e apontam para além dos

diversos princípios, subprincípios, pontos de vista, standards interpretativos, postulados

etc. forjados na tradição do Estado Democrático de Direito, tais como a inviolabilidade

da Constituição, da vinculação do direito, da rigidez do direito constitucional, da

segurança jurídica, da delimitação normatizada de funções, da unidade da Constituição,

do efeito integrador, da máxima efetividade, da conformidade funcional, da concordância

prática, da força normativa da Constituição e da interpretação conforme, para citar apenas

os principais. Mas, se as diversas tentativas de autonomizar esses critérios interpretativos

fracassaram – em face da própria impossibilidade de se construir uma “teoria geral dos

princípios” ou dos cânones – visando a conceder autonomia a estes ou a alguns destes,

isso não quer dizer que a interpretação do direito deva ficar à mercê de procedimentos

ad hoc ou de atitudes pragmatistas. Por essas razões é que a interpretação do direito

somente tem sentido se implicar um rigoroso controle das decisões judiciais, porque se

trata, fundamentalmente, de uma questão que atinge o cerne desse novo paradigma: a

democracia. E sobre isso parece não haver desacordo.

Desse modo, a partir da Crítica Hermenêutica do Direito estabeleci cinco

princípios-padrões interpretativos como suportes epistêmicos. Princípios não devem ser

vistos como um conjunto de topoi argumentativos, nem como componentes de uma

hermenêutica (jurisprudencialista) baseada na tópica ou na nova retórica (por todos,

lembremos Theodor Viehweg e Chaïm Perelman), ou, ainda, dependentes, para a sua

aplicação, das fórmulas para resolver “casos difíceis” (é o caso, v.g., da ponderação de

valores, que não escapa às fortíssimas críticas advindas de autores que vão de Friedrich

Müller a Jürgen Habermas). Princípio é, assim, condição de possibilidade de qualquer

interpretação, estando presente, de forma transcendental, em cada relação regra-princípio

(por isso, não há distinção estrutural entre regra e princípio). Por isso, o princípio funciona

como um acentuado grau de “blindagem” contra os desvios hermenêuticos

(conveniências políticas, argumentos morais, etc.). Talvez o principal problema da

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compreensão do princípio esteja em localizá-lo ou confiná-lo no plano analítico, como se

fosse uma regra “com adereços” e “comandos de otimização”. E, à medida que essa

circunstância, segundo determinadas leituras, leva à “abertura” da interpretação e ao

aumento do poder discricionário do intérprete, tem-se, inexoravelmente, um segundo

problema: o enfraquecimento da autonomia do direito diante de discursos “corretivos”

que, assim compreendido o papel de abertura dos princípios, “penetram” nestas “frestas”,

configurando a aludida correção interpretativa com fulcro na moral, na economia, na

política, etc. (STRECK, Lenio. Comentários à Constituição do Brasil). Na mesma linha,

a (simples) equiparação dos princípios a valores significa negar a historicidade da

compreensão. Somente podemos falar no conteúdo dos princípios constitucionais quando

nos apropriamos do horizonte histórico hermeneuticamente correto. No caso, p. ex., do

due process of law, sua determinação concreta na decisão judicial não poderá obedecer

às simples opiniões e aos preconceitos do intérprete-juiz, mas, sim, prestar contas a uma

carga histórica complexa que se arrasta no tempo histórico.

Assim, tem-se o primeiro princípio/padrão: a preservação da autonomia do

direito, que abarca vários padrões compartilhados pelo direito constitucional a partir do

segundo pós-guerra, denominados de métodos ou princípios, tais como o da correção

funcional (designado por Müller como princípio autônomo que veda a alteração, pela

instância decisória, da distribuição constitucionalmente normatizada das funções nem por

intermédio do resultado dela), o da rigidez do texto constitucional (que blinda o direito

contra as convicções revolucionárias acerca da infalibilidade do legislador), o da força

normativa da Constituição e o da máxima efetividade (sentido que dê à Constituição a

maior eficácia, como sustentam, por todos, Pérez Luño e Gomes Canotilho). Mais do que

sustentáculo do Estado Democrático, a preservação do acentuado grau de autonomia

conquistado pelo direito é a sua própria condição de possibilidade e por isso é erigido,

aqui, à condição de princípio basilar, unindo, conteudisticamente, a visão interna e a visão

externa do direito. Trata-se, também, de uma “garantia contra o poder contramajoritário”,

abarcando a garantia da legalidade na jurisdição. Trata-se de uma autonomia entendida

como ordem de validade, representada pela força normativa de um direito produzido

democraticamente. Afinal, não se pode perder de vista que as palavras que o legislador

escolhe são aquelas e não outras, mas são sempre palavras (textos), cuja relação com os

objetos dependerá de um longo processo de sedimentação hermenêutico (tradição,

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coerência, integridade, fusão de horizontes, etc.). Por isso, a validade do direito perante a

política, a economia e a moral, não pode depender de uma jurisprudencialização do direito,

isto é, não é a jurisprudência que garante o indispensável grau de autonomia do direito, e,

sim, é a autonomia do direito, sustentada em um denso controle hermenêutico, que

assegura as possibilidades de a Constituição ter preservada a sua força normativa. Ou

seja, não se pode confundir o direito (e suas possibilidades autônomas) com a instância

judiciária e, tampouco, a política com a lei (vontade geral sem controle) (Ver Comentários

à Constituição do Brasil). Para aferir esse grau de autonomia estabeleci as seis hipóteses

pelas quais um juiz pode deixar de aplicar uma lei (texto jurídico), explicitadas em

Jurisdição constitucional e decisão jurídica (quarta edição, pela Revista dos Tribunais). O

segundo princípio é o controle hermenêutico da interpretação constitucional (ratio final,

a imposição de limites às decisões judiciais – o problema da discricionariedade),

desenvolvido em vários textos e livros, como O que é Isto – decido conforme minha

consciência? (quinta edição conforme o novo CPC, pela Livraria do Advogado). Aqui

deve ser respondida a pergunta que atormenta os juristas desde o século XIX: o que fazer

com a moral e como resistir ao canto da sereia do subjetivismo. Em outras palavras, o que

se chama de discricionariedade judicial nada mais é que do que uma abertura criada no

sistema para legitimar, de forma velada, uma arbitrariedade, não mais cometida pelo

administrador, mas pelo judiciário. Veja-se o exemplo das interceptações telefônicas, em

que o STF (QO no Inquérito n. 2.424-RJ) vem autorizando, com base em um juízo de

proporcionalidade, o exercício da interceptação telefônica também na esfera civil para ser

utilizada como prova emprestada em processos de outra natureza que não processos

criminais. Por isso, a afirmação de que o “intérprete sempre atribui sentido (Sinngebung)

ao texto” nem de longe pode significar a possibilidade de ele estar autorizado a atribuir

sentidos de forma discricionária/arbitrária, como se texto e norma estivessem separados

(e, portanto, tivessem “existência” autônoma). Se a partir da autonomia do direito

apostamos na determinabilidade dos sentidos como uma das condições para a garantia da

própria democracia e de seu futuro, as posturas axiologistas e pragmatistas – assim como

os diversos positivismos stricto sensu – apostam na indeterminabilidade. É por tais

caminhos e condicionantes que passam as novas demandas de uma renovada

hermenêutica constitucional.

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O terceiro princípio é o respeito à integridade e à coerência do direito, agora

colocados no art. 926 do Código de Processo Civil, conforme explicitado em

Hermenêutica e jurisprudência no novo Código de Processo Civil: coerência e

integridade, a integridade está umbilicalmente ligada à democracia, exigindo que os

juízes construam seus argumentos de forma integrada ao conjunto do direito.6 Trata-se,

pois, de “consistência articulada”. Com isso, afasta-se, de pronto, tanto o ponto de vista

objetivista, pelo qual “o texto carrega consigo a sua própria norma” (lei é lei em si), como

o ponto de vista subjetivista-pragmatista, para o qual – aproveitando a relação “texto-

norma” – a norma pode fazer soçobrar o texto. Nesses casos – e estaríamos sucumbindo

ao realismo jurídico – esse texto acaba encoberto não pela nova norma (sentido), mas,

sim, por outro (novo) texto, o que pode facilmente ocorrer quando da edição de súmulas

vinculantes. Ou seja, esse respeito à tradição, ínsito à integridade e à coerência, é

substancialmente antirrelativista e deve(ria) servir de blindagem contra sujetivismos e

objetivismos. Na verdade, a tese hermenêutica da integridade coloca-se contra os dois

polos do positivismo – e a feliz observação é de Blackburn (Verdade e consenso, p. 251):

um polo é a visão positivista de que a prática legal é inteiramente ditada por fatos

preexistentes, tal como estatutos e decisões em letra gótica que estão, por assim dizer, na

folha, ou “simplesmente seja lá como for”; o outro polo, confusamente chamado de

“realismo” na filosofia do direito, é, no fundo, o ponto de vista subjetivo ou puramente

pragmático, segundo o qual o que os juízes e advogados fazem a nada corresponde, exceto

às próprias percepções que eles têm das necessidades momentâneas da sociedade (ou até

mesmo apenas às próprias necessidades dos juízes).

A integridade faz respeitar a comunidade de princípios, colocando efetivos

limites às atitudes solipsistas-voluntaristas. Mas, será a integridade apenas coerência

(decidir casos semelhantes da mesma maneira) sob um nome mais grandioso? Dworkin

responde que isso dependerá do que entendemos por coerência ou casos semelhantes. Se

uma instituição política só é coerente quando repete suas próprias decisões anteriores o

mais fiel ou precisamente possível, então a integridade não é coerência; é, ao mesmo

tempo, mais e menos. Há um direito fundamental a um tratamento equânime. Uma

instituição que aceite esse ideal às vezes irá, por esta razão, afastar-se da estreita linha das

6 Cf. DWORKIN, Dworkin. Law’s empire, p. 176.

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decisões anteriores, em busca de fidelidade aos princípios mais fundamentais da

comunidade política como um todo. A integridade é uma norma mais dinâmica e radical

do que parecia de início, pois incentiva um juiz a ser mais abrangente e imaginativo em

sua busca de coerência com o princípio fundamental. Fundamentalmente – e nesse sentido

não importa qual o sistema jurídico em discussão –, trata-se de superar as teses

convencionalistas e pragmatistas a partir da obrigação de os juízes respeitarem a

integridade do direito e a aplicá-lo coerentemente.

O quarto princípio quatro é o dever fundamental de justificar/fundamentar as

decisões. Se nos colocamos de acordo que a hermenêutica a ser praticada no Estado

Democrático de Direito não pode deslegitimar o texto jurídico-constitucional produzido

democraticamente, parece evidente que a Sociedade não pode ser “indiferente às razões

pelas quais um juiz ou um tribunal toma suas decisões. O direito, sob o paradigma do

Estado Democrático de Direito, cobra reflexão acerca dos paradigmas que informam e

conformam a própria decisão jurisdicional”.7 Há, pois, uma forte responsabilidade

política dos juízes e tribunais, circunstância que foi albergada no texto da Constituição,

na especificidade do art. 93, IX, que determina, embora com outras palavras, que o juiz

explicite as condições pelas quais compreendeu. O dever de fundamentar as decisões (e

não somente a decisão final, mas todas as do iter) está assentado em um novo patamar de

participação das partes no processo decisório. A fundamentação está ligada ao controle

das decisões, e o controle depende dessa alteração paradigmática no papel das partes da

relação jurídico-processual. Por isso, o protagonismo judicial-processual – que, como já

se viu, provém das teses iniciadas por Büllow, Menger e Klein ainda no século XIX –

deve soçobrar diante de uma adequada garantia ao contraditório e dos princípios já

delineados. Decisões de caráter “cognitivista” (em termos de meta ética, “não-

cognitivistas”), de ofício ou que, serodiamente, ainda buscam a “verdade real” se

pretendem “imunes” ao controle intersubjetivo e, por tais razões, são incompatíveis com

o paradigma do Estado Democrático. Veja-se que a Corte de Cassação da Itália (n.

14.637/02) recentemente anulou decisão fundada sobre uma questão conhecida de ofício

e não submetida pelo juiz ao contraditório das partes, chegando a garantir que o recurso

deve vir já acompanhado da indicação da atividade processual que a parte poderia ter

7 CATTONI, Marcelo. Jurisdição e hermenêutica constitucional, p. 50.

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realizado se tivesse sido provocada a discutir. Em linha similar – e em certo sentido indo

além –, o Supremo Tribunal de Justiça de Portugal (Rec. 10.361/01) assegurou o direito

de a parte controlar as provas do adversário, implementando a garantia da participação

efetiva das partes na composição do processo, incorporando, no decisum, doutrina8 no

sentido de que o contraditório deixou de ser a defesa, no viés negativo de oposição ou

resistência à atuação alheia, para passar a ser a influência, no sentido positivo do direito

de influir ativamente no desenvolvimento do processo. O Supremo Tribunal Federal do

Brasil (MS 24.268/04, Rel. Min. Gilmar Mendes) – embora venha impedindo,

historicamente, a análise de recursos extraordinários que invoquem o aludido princípio –

dá sinais sazonais da incorporação dessa democratização do processo, fazendo-o com

base na jurisprudência do Bundesverfassungsgericht, é dizer, a pretensão à tutela jurídica

corresponde à garantia consagrada no art. 5º, LV, da CF, contendo os seguintes direitos:

(a) direito de informação (Recht auf Information), que obriga o órgão julgador a informar

a parte contrária dos atos praticados no processo e sobre os elementos dele constantes;

(b) direito de manifestação (Recht auf Äusserung), que assegura ao defensor a

possibilidade de manifestar-se oralmente ou por escrito sobre os elementos fáticos e

jurídicos constantes do processo; (c) direito de ver seus argumentos considerados (Recht

auf Berucksichtigung), que exige do julgador capacidade, apreensão e isenção de ânimo

(Aufnahmefähigkeit und Aufnahmebereitschaft) para contemplar as razões apresentadas.

O mesmo acórdão da Suprema Corte brasileira incorpora a doutrina de Durig/Assmann,

sustentando que o dever de conferir atenção ao direito das partes não envolve apenas a

obrigação de tomar conhecimento (Kenntnisnahmeplicht), mas também a de considerar,

séria e detidamente, as razões apresentadas (Erwägungsplicht). Portanto, a historicidade

da compreensão gera, para o intérprete-juiz, uma série de compromissos a serem

cumpridos na fundamentação de sua decisão. A necessidade da fundamentação impede

que as decisões se resumam à citação de enunciados assertóricos, anti-hermenêuticos na

origem, por obnubilarem a singularidade dos casos (veja--se que o princípio é o mundo

prático do direito; nem mesmo o princípio pode ser resumido a um enunciado assertórico).

Este princípio – que é um dever fundamental – vem a ser complementado por outro

igualmente fundamental: o do direito de obter uma resposta constitucionalmente

8 FREITAS, José Lebre de. Introdução ao processo civil: conceito e princípios gerais, p. 96.

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adequada à Constituição, isto é, o do direito a obter uma resposta baseada em pretensões

juridicamente tuteladas. Advirta-se, por relevante, que o trabalho do intérprete não exclui

a dimensão pessoal-valorativa inerente a qualquer atividade compreensiva. Como já

referido, o controle rigoroso da interpretação, a preservação da autonomia do direito, o

respeito à integridade do direito e o dever fundamental de justificar detalhadamente às

decisões não implicam uma “vedação de atribuir sentidos aos textos jurídicos”, ou seja –

e me permito insistir nisso –, nada disso implica uma “proibição de interpretar”. Longe

disso! Insista-se: a superação (morte) do esquema sujeito-objeto acarretou também o fim

da filosofia da consciência, pensada como elemento de fundamentação transcendental.

Mas tal circunstância – e isso é de fundamental importância, para evitar mal-entendidos –

, não representou a eliminação do sujeito, que evidentemente está presente em qualquer

relação de objeto que faz parte de qualquer enunciado (jurídico ou não). Que fique bem

claro: não se pode confundir pré-compreensão com visão de mundo, preconceitos ou

qualquer outro termo que revele uma abertura para o relativismo.

Por último, o quinto princípio: o direito fundamental a uma resposta

constitucionalmente adequada, tese central para a Crítica Hermenêutica do Direito. Esse

princípio/padrão tem uma relação de estrita dependência do dever fundamental de

justificar as decisões e daqueles princípios (ou subprincípios) – cunhados pela tradição

constitucionalista – que tratam do efeito integrador (ligado ao princípio da unidade da

Constituição), da concordância prática ou da harmonização, da máxima efetividade e da

interpretação conforme a Constituição. Como princípio instituidor da relação jurisdição-

democracia, a obrigação de fundamentar – que, frise-se, não é uma fundamentação de

caráter apodítico – visa a preservar a força normativa da Constituição e o caráter

deontológico dos princípios. Consequentemente, representa uma blindagem contra

interpretações deslegitimadoras e despistadoras do conteúdo que sustenta o domínio

normativo dos textos constitucionais. Trata-se de substituir qualquer pretensão solipsista

pelas condições histórico-concretas, sempre lembrando, nesse contexto, a questão da

tradição, da coerência e da integridade, para bem poder inserir a problemática na superação

do esquema sujeito-objeto pela hermenêutica jurídica. Se o desafio de uma metódica

jurídica, no interior desse salto paradigmático, é “como se interpreta” e “como se aplica”,

as próprias demandas paradigmáticas do direito no Estado Democrático apontam para

uma terceira questão: a discussão acerca das condições que o intérprete/aplicador possui

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para encontrar uma resposta que esteja adequada ao locus de sentido fundante, isto é, a

Constituição. Quem está encarregado de interpretar a Constituição a estará concretizando,

devendo encontrar um resultado constitucionalmente justo (a expressão é de Gomes

Canotilho). E esse resultado deve estar justificado, formulado em condições de aferição

acerca de estar ou não constitucionalmente adequado.

Há, assim, um direito fundamental ao cumprimento da Constituição. Mais do que

isso, trata-se de um direito fundamental a uma resposta adequada à Constituição ou, se

assim se quiser, uma resposta constitucionalmente adequada (ou, ainda, uma resposta

hermeneuticamente correta em relação à Constituição). Essa resposta (decisão) ultrapassa

o raciocínio causal-explicativo, buscando no ethos principiológico a fusão de horizontes

(Horizontverschmelzung) demandada pela situação que se apresenta. Antes de qualquer

outra análise, deve-se sempre perquirir a compatibilidade constitucional da norma jurídica

com a Constituição e a existência de eventual contradição. Deve-se sempre perguntar se, à

luz dos princípios e dos preceitos constitucionais, a norma é aplicável ao caso. Mais ainda,

há de se indagar em que sentido aponta a pré--compreensão (Vor-verständnis), condição

para a compreensão do fenômeno. Para interpretar, é necessário compreender (verstehen)

o que se quer interpretar. Este “estar diante” de algo (ver-stehen) é condição de

possibilidade do agir dos juristas: a Constituição.

A decisão constitucionalmente adequada é applicatio (superada, portanto, a

cisão do ato interpretativo em conhecimento, interpretação e aplicação), logo, a

Constituição só acontece enquanto “concretização”, como demonstrado por Friedrich

Müller a partir de Gadamer. Isso porque a interpretação do direito é um ato de

“integração”, cuja base é o círculo hermenêutico, sendo que o sentido hermeneuticamente

adequado se obtém das concretas decisões por essa integração coerente na prática jurídica,

assumindo especial importância a autoridade da tradição (que não aprisiona, mas funciona

como condição de possibilidade). A tradição é ponto de partida e não de ponto de chegada,

por isso os sentidos, ainda que atualizados, sempre guardam um “DNA”, uma história a

ser (re)construída. Não esqueçamos que a constante tarefa do compreender consiste em

elaborar projetos corretos, adequados às coisas, como bem lembra Gadamer.

Por fim, o direito fundamental a uma resposta constitucionalmente adequada não

implica a elaboração sistêmica de respostas definitivas. Isso porque a pretensão de se

buscar respostas definitivas é, ela mesma, anti-hermenêutica, em face do congelamento

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de sentidos que isso propiciaria. Ou seja, a pretensão a esse tipo de resposta sequer teria

condições de garanti-la. Mas o fato de se obedecer à coerência e à integridade do direito,

a partir de uma adequada suspensão da pré-compreensão que temos acerca do direito,

enfim, dos fenômenos sociais, por si só já representa o primeiro passo no cumprimento

do direito fundamental que cada cidadão tem de obter uma resposta adequada à

Constituição. Veja-se, nesse sentido, que Habermas, em seu Era das transições, embora

a partir de uma perspectiva não propriamente próxima à hermenêutica, mas,

evidentemente antirrelativista – e esse ponto interessa aos propósitos da hermenêutica

aqui trabalhada –, afirma que a busca da resposta correta ou de um resultado correto

somente pode advir de um processo de autocorreções reiteradas, que constituem um

aprendizado prático e social ao longo da história institucional do direito. O direito a uma

resposta constitucionalmente adequada será, assim, consequência da obediência aos

demais princípios, isto é, a decisão (resposta) estará adequada na medida em que for

respeitada, em maior grau, a autonomia do direito (que se pressupõe produzido

democraticamente), evitada a discricionariedade (além da abolição de qualquer atitude

arbitrária) e respeitada a coerência e a integridade do direito, a partir de uma detalhada

fundamentação. O direito fundamental a uma resposta adequada à Constituição, mais do

que o assentamento de uma perspectiva democrática (portanto, de tratamento equânime,

respeito ao contraditório e à produção democrática legislativa), é um “produto” filosófico,

porque caudatário de um novo paradigma que ultrapassa o esquema sujeito-objeto

predominante nas duas metafísicas (clássica e moderna).

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São Paulo: Revista dos Tribunais, 2014.

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