HerbertoHelder_PublicoIpsilon14Jun2013

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    Herberto Helder em Angola,numa otografia indita de 1961

    Servides, o novssimo(e esgotadssimo) livro donico poeta portugus vivo que

    verdadeiramente alvoroa anossa pequena cena literria,

    mais uma evidncia a juntar aocaso Herberto Helder: o rarocaso da entrega absoluta a umpercurso artstico assumidocomo predestinao pessoal.

    HerbertoHelder

    Lus Miguel

    Queirs

    ser nicoA arte de

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    Aos 82 anos, Herberto Hel-der publicou um novo li-

    vro, Servides, e voltou aalvoroar a cena literriacomo nenhum outro poe-ta portugus seria hoje

    capaz de fazer. A obra suscitou deimediato uma sucesso de notciase recenses, e a edio, de cincomil exemplares um nmero pou-co menos do que impensvel paraum livro de poemas esgotou empoucos dias nas livrarias e tambmj no est disponvel na editora (ovolume tem a chancela da Assrio& Alvim, que pertence agora ao gru-po Porto Editora).

    O prestgio do autor, intensifica-do por dcadas de uma exemplarrecusa em contribuir para a nossapequena feira das letras, ajudardecerto a explicar a expectativacom que foi recebido este seu novolivro. Mas, em boa verdade, o pr-prio livro bastaria para a justificar.SeA Faca No Corta o Fogo (2008)

    reconhecidamente trouxera novasinflexes a esta poesia, Servidesno menos surpreendente. O

    como seHerberto Heldertivesse a audciade se despedir deuma lngua comoquem se despede

    de uma vida, nummomento em queestamos sobocupao polticaManuel Gusmo

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    que nele desde logo impressiona oleitor a assustadora criatividadede que Herberto d provas aos 80anos, mas no menos not vel queestes seus ltimos livros, com tudoo que trazem de novo, e por vezesat de exuberantemente novo, nempor isso deixem de manter com asua obra anterior uma coerncia

    sem falhas.Ou, dito de outra maneira: a mes-

    tria verbal de Herberto Helder, res-ponsvel por esse efeito quase hip-ntico que a sua poesia sempreproduziu e que milagrosamentesobreviveu transio para o regis-to mais rugoso inaugurado em A

    Faca No Corta o Fogo , , em sen-tido muito literal, fascinante, masno o menos a evidncia de estar-mos perante um desses raros casosde entrega absoluta a um percurso

    artstico assumido como predesti-nao pessoal.Diferente em quase tudo de Fer-

    nando Pessoa, se alguma coisaaproxima Herberto Helder, cada

    vez mais obviamente o poeta cen-tral da poesia portuguesa da segun-da metade do sculo XX, daqueleque desempenhou idntico papelna primeira metade do sculo, ser

    justamente essa ideia de predesti-nao, que em ambos tambmum tpico da prpria obra. A ca-bea ficara marcada, invisvel, masquando me deitava de costas, naescurido, sentia uma queimadurana tmpora, a crosta fervendo porbaixo, da nuca testa. Interpretava-a como uma cicatriz que me acom-panharia at morte, o emblemade uma guerra assombrosa de que

    j esquece ra os pormenores e osentido, l-se no texto em prosaque antecede Servides. E um dospoemas do livro abre com estes ver-sos pungentes, de quem sabe quea estrela do gnio, se ainda tem

    energia para inesperadamente vol-tar a brilhar, no o proteger da

    velhice e da morte: uma espumade sal bateu-me alto na cabea,/nunca mais fui o mesmo,/ passeipor todos os mistrios simples, eagora estou to humano: morro,/s vezes ressuscito para fazer uma

    gran de surpre sa a mim mesmo(...).

    Talvez passe por aqui a razo deHerberto Helder ter tido, desde ce-do, dois tipos de leitores: os que

    suspeitavam que aquela belezasumptuosa e aterradora poderiano ser isenta de alguma arbitra-riedade, e os que nela intuam umacoerncia profunda, adivinhandoque tudo ali batia implacavelmentecerto. EmA Faca No Corta o Fogo,o poeta escreve: () paixo: tirar,/pr, mudar uma palavra, ou me-lhor: ficar certo/ com a vrgula nomeio da luz (...).

    O tributo que Herberto paga pe-la sua fidelidade a essa espcie de

    predestinao, e simultaneamentea exigncia que esta lhe coloca, a necessidade de conquistar umasingularidade absoluta. Mais doque criar beleza sabe Deusquanto a beleza me custa e quantoo ganho impondervel, diz emServides , talvez a verdadeiraessncia do seu trabalho, o

    O tributo queHerberto pagapela sua fidelidadea essa espcie de

    predestinao, esimultaneamentea exigncia queesta lhe coloca, a necessidadede conquistaruma singularidade

    absoluta: maisdo que criarbeleza, talvezo seu verdadeirotrabalho sejao de se tornarradicalmentenico

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    Mal tinha sado, j Servides (numa ediode cinco mil exemplares e com reediointerdita pelo autor, informou a editora)estava esgotado na maior parte daslivrarias. Estranho fenmeno este, deprecipitao e multiplicao de leitores e

    compradores de um livro de poesia o nicomedium de massa em que o nmero de produtoresultrapassa o dos consumidores, como escreveu uma

    vez o poeta e ensasta Hans Magnus Enzensberger.Um dos factores que explicam o que aconteceu aomesmo tempo perverso e irnico: Herberto Helderzela tanto pela autonomia da sua obra (e istosignifica, sobretudo, fazer com que ela aparea, livrede tudo o que a parasite ou a desvie para um espaoque no o seu), que acabou por criar as condiesaptas a um investimento mercantil: o seu livro capturado por especuladores, como se se tratasse deum produto financeiro ou de uma mercadoria rara. Epara que seja considerada rara preciso que se torneobjecto de um desejo de posse e no de leitura, poiso acesso a esta est sempre garantido e no se podemanter como desejo, no pode ser objecto deespeculao. A este triunfo do valor de troca (oumelhor, da perspectiva de que ele vai triunfar, comoacontece nos valores cotados na bolsa) soma-se umoutro factor que o potencializa: o papel que nasociedade de massa tm os filisteus cultivados (taldesignao, em que a palavra cultivados no deveser substituda por cultos, de Hannah Arendt).Mas o fenmeno s possvel porque a mercadoriano cega, tem as suas argcias e as suas sondas.No que seja crtica: ela no julga e age, reage. E,neste caso, podemos dizer que se trata mas noexclusivamente de reaco reauratizao que apoesia de Herberto Helder realiza em si mesma. Ela

    suscita e ressuscita um valor aurtico, que lhe advmde uma viso mgica, do apelo da mscara mtica edemonaca (diramos religiosa, se a palavra no seprestasse a equvocos) com que nela surge o que daordem da histria e do temporal. O poeta moderno e Baudelaire foi talvez o primeiro a manifestar demaneira muito lcida esta condio no tempblico. A relao entre sociedade e poesia problemtica, e quando Max Weber falou dodesencanto do mundo estava tambm adiagnosticar esta situao. Em termos de umahistria de longa durao, a histria da poesia ahistria de uma regresso que foi explicada mais ou

    menos desta maneira a partir do Romantismo: apoesia tem um valor, uma funo e uma influnciaque se perderam medida que as crenas e o saberdo lugar a uma racionalidade instrumental e que oespao da existncia espiritual foi ocupado poroutras linguagens. Mas, como dizia um romnticoalemo quase desconhecido (Carl Gustav Jochmann),muito consciente dos retrocessos da poesia, nemtudo o que passou est perdido; nem tudo o que seperdeu substitudo; nem tudo o que no foisubstitudo insubstituvel. Ora, o enigma da poesiade Herberto Helder reside aqui: sem deixar de serprofundamente do nosso tempo, ela parecerecuperar uma voz antiga e fazer com que o leitorsinta que a eternidade assedia o presente de todos oslados e h qualquer coisa que ela reactiva com umafora poderosa, diablica: algo que no da ordemdo aqui e agora, que tem a dimenso das anacronias,mas que o curso da Histria, como quer que ele sejaentendido, no consegue suprimir. disto quefalamos quando dizemos que a poesia de HerbertoHelder tem um efeito de reauratizao.

    Estao Meteorolgica

    Herberto Helder,

    poeta da aura

    Antnio Guerreiro

    propsito da sua arte, seja o de setornar radicalmente nico. a es-sa luz que deve ler-se, por exem-plo, o facto de, em diferentes po-emas deste livro, Herberto se in-surgir contra algum que h muitosanos se apropriou de um peque-no achado seu, a expresso rosaesquerda, argumentando: rou-

    bam-me um erro apenas que acer-tava s comigo. Noutro poemaevoca o pedido que recebeu paraenviar um indito para uma revis-ta (a revista onde colaboram to-dos), e escreve: E eu respondi:mando se no colaborar ningum,porque/ nada se reparte: ou se de-vora tudo/ ou no se toca em nada/() s colaboro na minha mor-te.

    Que lngua esta?

    Para indagar o modo como algunsdos leitores mais qualificados deHerberto vem a posio que Ser-vides vem agora ocupar nesse po-ema contnuo que Herberto vaiconstantemente reescrevendo, opsilon ouviu poetas e ensastas dediferentes geraes Manuel Gus-mo, Rosa Maria Martelo (que assi-na tambm um texto neste suple-mento), Manuel de Freitas e DiogoVaz Pinto , cujas opinies vmsomar-se s que o crtico AntnioGuerreiro exprime nos textos queassina neste suplemento.

    Os vrios inquiridos revelam al-gum consenso na convico de queeste novo livro intensifica a inflexomais spera que A Faca No Cortao Fogo j trouxera a esta escrita,mas tambm precisam que essa li-nha de continuidade no impedeServides de ser um recomeo,para usar uma palavra que tantoGusmo como Freitas lhe apli-cam.

    O prprio Herberto Helder, na-

    quele que , aps um camonianodstico de abertura, o primeiro po-ema do livro, coloca expressamen-te Servides sob o signo de um re-nascimento: saio hoje ao mundo,/cordo de sangue volta do pesco-o (...). Gusmo v neste textouma certido de nascimento, aafirmao de um novo recomeoaos 80 anos, mas tambm notaque esse recm-nascido de que opoema fala traz volta do pescooum cordo que o pode estrangular,

    que uma ameaa e tambm umamarca do sofrimento e do traumado nascimento.

    Para Manuel Gusmo, tantoA Fa-ca No Corta o Fogo (2008) comoServides so quase uma espciede exploso inicial. E se v dife-renas assinalveis entre ambosos livros, interessa-lhe sobretudopensar o modo como Servides co-loca o problema da lngua, a ques-to de saber qual a lngua destapoesia. Uma pergunta que, lem-

    bra, Ro sa Mar ia Martelo j tinhalevantado em relao aA Faca NoCorta o Fogo, mas que este novo li-

    vro vem tornar ainda mais pert i-nente.

    A poesia de Herberto Heldermanteve sempre com o portuguseuropeu uma relao impressio-nantemente viva, diz Gusmo, mas

    em Servides fica definitivamenteafastada qualquer ideia de purezada lngua. Se j emA Faca No Cor-ta o Fogo o poeta convocava outraslnguas, como o francs, e irritavaos puristas do portugus comefeitos que pareciam brasileiris-mos fonticos e sintcticos, nestenovo livro a sabotagem agora

    feita do interior da lngua, mistu-rando contextos discursivos e lin-gusticos e alterando a hierarquiados diferentes nveis de utilizaoda lngua. Um bom exemplo dessetrnsito constante entre diferentesnveis de que fala Gusmo o ex-traordinrio poema que abre como verso cheirava mal, a morto, atme purificarem pelo fogo, no qualum falecido Herberto Helder fala,na primeira pessoa, do destino da-do ao seu corpo e sua obra. Como

    se v neste breve excerto, em pou-cos versos vai-se de Deus mer-da e dos esgotos a uma vitanuova de ecos dantescos: queDeus, ou o equvoco dos peixes, oua ressaca,/ o receba como ambrosiasutilssima nas profundas dos esgo-tos,/ merda perptua,/ e fique en-fim liberto do peso e agrura do seunome:/ vita nuova para este rouxi-nol dos desvos do mundo (...).

    H em Servides um vocabulrioobsceno que era muito raro nos pri-meiros livros do autor, observaGusmo, e tambm um lxico sa-trico no qual o ensasta intui apresena de Mrio Cesariny. Gus-mo elogia ainda a audcia deHerberto em deixar entrar na suapoesia palavras como cuecas, quesurge num breve poema altamentealiterativo: no mais carnal das n-degas/ as marcas/ das frescas cue-cas.

    Logo a seguir ao texto em prosaque abre o volume, dois versos iso-lados, funcionando como uma es-

    pcie de epgrafe, parecem quererassumir um tom deliberadamentecamoniano: dos trabalhos do mun-do corrompida/ que servides car-rega a minha vida. Manuel Gusmorecorda que sempre houve nestapoesia, desde os primeiros livros,toques camonianos, e atribui ofascnio de Herberto ao facto de tersido Cames que, em muitos senti-dos, inventou a lngua em que apoesia portuguesa se escreve. Masa presena do poeta quinhentista

    neste ltimo livro parece-lhe assu-mir contornos particulares: Reco-nheo que ainda no pensei isto

    bem, mas como se Herberto Hel-der viesse fechar o ciclo aberto porCames, como se tivesse a audciade se despedir de uma lngua comoquem se despede de uma vida, nummomento em que estamos sob ocu-pao poltica.

    Rosa Maria Martelo tambm re-corre ao j referido poema que Her-

    berto ter escrito no seu 80. ani-versrio, e cujo verso final imi -nente para sempre, para sugerirque Servides vem fechar a obra,mas fech-la de um modo em queesse poema perfeito prometidocitado no final de outro poema, es-se desejo absoluto de perfeio,estar para sempre iminente nopoema que fica feito.

    No importa seHerberto Helderescrever ou nooutros livros, este

    ser sempre umlivro finalDiogo Vaz Pinto

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    psilon | Sexta-feira 14 Junho 2013 | 11

    Um livro finalDiogo Vaz Pinto, poeta, crtico eco-responsvel da editora LnguaMorta e da revista Criatura, con-fessa que embora j gostasse dapoesia de Herberto Helder antesde A Fac a N o Co rta o Fogo , noachava que esta fosse uma espciede revelao ltima. Reconhecia-

    lhe o mrito de ter conseguido con-ciliar a liberdade do surrealismocom uma disciplina que no adeixava cair no caos lrico, econstatava que depois de ler Her-berto Helder continuava a ouvir amsica, aquela voz ia ficando. Masfoi o livro de 2008, ou mais preci-samente o ter ouvido o livreiroChanguito, que entretanto se radi-cou no Brasil, a ler em voz alta al-guns poema s de A Faca No Cortao Fogo, que o deixou abismado:

    Mais do que um poema, aquilo eraum discurso poltico dirigido a umacomunidade, ao mundo, era al-gum a ascender condio mxi-ma do humano para, chegado aessa altura, dizer uma coisa que vaipara l do literrio e que tem umahumanidade profunda.

    E Diogo Vaz Pinto acha que estadimenso poltica e cvica est ain-da mais radicalizada em Servides. um livro que interessa a muitagente que no se interessa por po-esia, com indicaes muito fortespara dentro e para fora da literatu-ra, e tambm para o momento his-trico que vivemos. Para a genteda gerao de Herberto, sugere

    [EmA FacaNo Corta o Fogoe Servides,assistimos ]

    lenta e rudepassagem dodemiurgo aocidado civilManuel de Freitas

    Vaz Pinto, estes ltimos seis ousete anos no mundo devem ter sidouma coisa incrvel: j antes se viaque isto ia por mau caminho, masa percebeu-se que estava tudo en-tregue bicharada.

    Vendo em Servides mais umpasso adiante do que algo essen-cialmente diferente deA Faca No

    Corta o Fogo, Diogo Vaz Pinto acha,ainda assim, que h agora uma for-a testamentria, um dizer as l-timas palavras que no se sente nolivro anterior. No importa se es-crever ou no outros livros, esteser sempre um livro final.

    Partindo da ideia de que a poesia um discurso que est ao mesmotempo antes e depois da Histria,o autor deNervo profetiza: Estespoemas dizem-nos muito a ns queestamos a passar por tudo isto, mas

    no fim vo acabar por ser sobretudoum testemunho muito claro de co-mo um poeta pode ascender a umverdadeiro estado de graa.

    E confrontando Herberto comFernando Pessoa, diz que o segun-do dominava a lngua, mas que oprimeiro fez uma coisa mais inte-ressante: construiu a sua prprialngua a partir do portugus. Estanoo de que Herberto, sem que-

    brar as amarras com o portugus,desenvolveu uma lngua prpria partilhada por Rosa Maria Martelo,que chama a ateno para o modocomo essa conquista de uma gra-mtica pessoal se vem mesmo in-tensificando nos ltimos livros.

    Do demiurgo ao cidadoO poeta e crtico Manuel de Frei-

    tas, co-editor da Averno e da revis-ta Telhados de Vidro, onde Herber-to publicara um dos textos queagora recupera na prosa que abreServides, est de acordo com Gus-mo ao ver neste livro um reco-meo, algo extremamente impro-

    vvel, acrescenta, quando se tema idade e o percurso de HerbertoHelder. Tambm no se afastamuito dos restantes inquiridos, esobretudo de Diogo Vaz Pinto,quando, recorrendo a duas expres-ses do prprio poeta, descreve anatureza desse recomeo comouma substituio do canto inteiropor uma fala cantante mais rente linguagem comum e ao mundo,entendido num sentido histricoe j no exultantemente atempo-

    ral. Uma substituio que Manuelde Freitas considera brutal, dan-do como exemplo um poema deServides em que as mes, temaobsessivo da poesia de Herberto,adquirem uma conciso aterrado-ra: as manhs comeam logo coma morte das mes (...). E para sever a dimenso da mudana de re-gisto, sugere este excerto retiradodo livroDo Mundo (1994): ureas/mes aracndeas furando os gan-chos nos tecidos suaves/ rasgandonos tecidos/ os orifcios/ verme-lhos.

    A tese de Freitas, e nisto j come-a a no coincidir exactamente comnenhum dos outros poetas e ensa-

    stas ouvidos, a de que HerbertoHelder chegara em Do Mu ndo auma espcie de limite intranspon-

    vel, a part ir do qual no haviafuturo para aquela msica arreba-tada e quase intemporal. O mesmoHerberto que emDo Mundo reco-nhece que no pode escrever maisalto diz num verso de Servides

    que quer encontrar uma voz pau-prrima, nota Manuel de Freitas.Aps ter chegado emDo Mundo

    ao grau mximo de beleza, ao talcanto inteiro que, justamente porser inteiro, no era continuvel,Herberto Helder, lembra Freitas,no publicou nenhum livro duran-te muitos anos. At surgir, em 2008,

    A Faca No Corta o Fogo, no qual vum retorno spera beleza e tona msica mnima que, de-fende, j se deixavam ler em cer-

    tas passagens de Os Passos em Volta,dePhotomaton & Voxou at do re-negadoApresentao do Rosto.

    O poeta de Game OvereBoa Mor-te observa que essa violncia quemuitos tm detectado nos dois l-timos livros de Herberto Helder,sendo pouco habitual na poesiaanterior, sempre foi omnipresen-te na sua prosa. Mas o salto maisarriscado da sua tese aquele emque sugere que assistimos, em A

    Faca No Corta o Fogo e Servides, lenta e rude passagem do de-miurgo ao cidado civil.

    Ver crtica de livros pgs. 33

    e segs.

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    Li

    vro

    s

    Poesia

    Poesia e terror

    O carcter demonaco dapoesia de Herberto Helder

    est latente, e chega mesmoa ser tematizado, neste novolivro onde se polarizam osaspectos do hino e da elegia.

    Antnio Guerreiro

    Servides

    Herberto HelderAssrio & Alvim

    mmmmm

    Assim se iniciaServides: comum texto emprosa de forteinclinaoautobiogrfica,muito maistransparentenessa sua

    dimenso de escrita da prpriavida (Era uma vida que absorverao mundo e o abandonara depois,abandonara a sua realidadefragmentria) do que qualquertexto anterior de Herberto Helder.Trata-se de um texto que, nalgunsaspectos fundamentais, temtambm marcas visveis daquilo aque se costuma chamar umapotica, isto , uma exposio,mais ou menos programtica, deprincpios poetolgicos.

    Mas tudo muito maiscomplicado do que aquilo queacabmos de sugerir. A dimensopara onde este texto nos conduz mais originria do que umapotica porque o que nele se trata

    da prpria vinda da palavrapotica; e a questo que o habita o de uma mimesis originria deonde emerge a poesia. Nestesentido, ele apresenta-se maiscomo uma fenomenologia doesprito poetante (e uma razo oufundo da poesia), para o qualpodemos encontrar um anlogoem Sobre o Procedimento do

    Esprito Potico, de Hlderlin. E,quanto ao aspecto autobiogrfico,dir-se-ia que ele refere apenas

    cenas primitivas, originrias, quetrazem consigo no a memria deuma histria, mas de uma pr-histria do poeta. Erguer-se aonvel do puro eco dessa infnciaoriginria e das servidescarregadas pela vida eis otrabalho desta poesia. Percebemosassim que ela seja ao mesmotempo uma voz antiga, queprovm do fundo dos tempos, euma palavra actual, do agora emque se sente a caducidade. Elaassenta entre dois extremos: porum lado, um nascimento iterativoque, por isso, semprerenascimento: saio hoje aomundo,/ cordo de sangue voltado pescoo,/ e to sfrego edelicado e furioso,/ de um lado oude outro para sempre numsufco,/ iminente para sempre,

    diz-nos um poema deabertura, um poema comdata (23.XI.2010: 80 ANOS),a data do aniversrio dopoeta; por outro, a morte nogerndio. Oscilando entre estesdois plos, contaminando-os, ospoemas de Servides tantotraduzem a inteno do hino sob a

    forma da elegia, como tm umainteno elegaca sob a forma dehino. Tanto palavra que canta(ofcio cantante) como palavraque recorda. E, por aqui, somoslevados a entrar na dimensorfica da poesia de HerbertoHelder. O orfismo desta poesiasignifica que ela assenta numaregio que no aquela,integralmente profana, da lricaburguesa moderna e da noo deindividualidade que lhe

    corresponde. Ela situa-se do ladodo terror e de uma potica dotrgico (a tragdia move-se namesma rbita de significado que oorfismo); do lado de umdemonismo alegrico e de umanoo mstica de daimon que dorigem a versos como este: osces gerais ladram s luas quelavram pelos desertos fora (p.68). No conseguimos l-lo semum sobressalto porque ele tornapatente, no mais alto grau, aconexo entre a noo de imageme a de demonismo. E atemtica demonaca,sublinhemos, referidaexplicitamente neste livro,desde logo no texto em prosa de

    abertura, onde podemos ler:Vivemos demoniacamente toda anossa inocncia.

    Mas Servides impe quefalemos dessa regio do terror,da relao da beleza com o terror uma relao eminentementeherbertiana. Essa relaopressupe uma aco latente

    do mito (algo que prprio deuma poesia rfica), como se apoesia de Herberto Helder nosconvidasse a ter em conta ahiptese histrico-evolutiva deuma elaborao em sentidoconciliador do mito nas formas dapoesia (da o fascnio do poetapelas magias, pelas formaspoticas xamnico-cultuais), masobrigando-nos a fazer o percursoinverso: da poesia para o mito. Apoesia assim entendida no

    como superao do terror mtico(como nos dizem as teorias dasecularizao), mas comoinevitvel via de acesso a ele. Osparmetros da beleza, nestapoesia, no tm nada a vercom a aparncia da totalidade,com uma poticarepresentativa e apolnea. Abeleza herbertiana trgica, sempre uma composio apartir do caos e no trazconsigo nenhuma salvao.Apresenta-se sob a formademonaca da imaginaoalegrica: anti-representativa,anti-humanista, anti-mimtica.Esta poesia interrompe o curso domundo. uma catstrofe.

    O novo livrode Herberto Helder trata da prpria vinda da palavra

    potica e ao mesmo tempo uma voz antiga e actual

    48.

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