Heráclito_conflito
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2.
Herclito e o conhecimento: o conflito aparente
entre os fragmentos e o testemunho de Plato
2.1
A questo do conhecimento em Herclito
A leitura de Herclito feita por Plato em seus dilogos pode provocar,
num primeiro momento, uma enorme admirao e muito estranhamento. No
Teeteto, por exemplo, a interpretao dada teoria do fluxo leva a filosofia
heracltica a fornecer fundamentos ao relativismo de Protgoras e a implicar, no
fim das contas, a impossibilidade do conhecimento e da linguagem. O
estranhamento produzido quando vemos que aquilo que Herclito, em seus
fragmentos, exige de comum ao contedo de nossos conhecimentos, aquilo que
ele afirma ser o nico objeto possvel de conhecimento, mostra que, ao contrrio,
ele mais provavelmente se aliaria a Plato contra o relativismo de Protgoras e o
radicalismo dos auto-intitulados heraclticos, e a favor da idia de que o
conhecimento e a linguagem so possveis.
Em minha dissertao de mestrado, estudei os fragmentos de Herclito
com o objetivo de compreender a viso heracltica acerca da possibilidade, do
objeto e do processo de aquisio do conhecimento.1 Vrios fragmentos mostram
que a questo do conhecimento foi tematizada explicitamente por Herclito e que
1 Ver Ana Flaksman, A Questo do Conhecimento em Herclito (Rio de Janeiro, Puc-Rio, Dissertao de Mestrado, 2001).
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a possibilidade e a importncia do conhecimento foram por ele afirmadas. Se, por
um lado, o exame da questo do conhecimento em Herclito diz respeito
formulao de sua ontologia, ao mobilismo nela presente, e aos efeitos desse
mobilismo para o conhecimento, por outro, ele tambm diz respeito aos
fragmentos em que o problema do conhecimento expressamente chamado
baila. E foi principalmente nesses fragmentos que me concentrei.
De fato, um grande nmero dos fragmentos de Herclito se refere
diretamente sabedoria e ignorncia, compreenso e reconhecimento do lgos,
funo cognitiva da alma, importncia mas tambm insuficincia dos
sentidos e da sensao para o conhecimento. E os fragmentos mostram que
Herclito afirmou a possibilidade do saber, criticou veementemente a ignorncia
dos homens e formulou enunciados para sustentar sua pretenso e reivindicao
de conhecimento.
Reconheci em minha dissertao e penso ser bom lembrar aqui que
Herclito no formulou as questes relativas cognio isolando-as ou separando-
as das questes ticas ou ontolgicas, por exemplo. Portanto, quando trato da
questo do conhecimento em Herclito, esse recorte temtico feito com a
considerao de que diversas noes epistemolgicas tm tambm significado
tico e ontolgico, como, por exemplo, as noes heraclticas fundamentais de
sopha e lgos.
Neste captulo, retomarei e apresentarei alguns elementos do exame dos
fragmentos de Herclito que realizei em minha dissertao, para deles procurar
extrair a viso heracltica a respeito da possibilidade, do objeto e do processo de
aquisio do conhecimento. Feito isto, buscarei mostrar de que modo essa viso
de Herclito contrasta com o relativismo e o ceticismo2 que so vinculados s
teses heraclticas apresentadas no Teeteto. Esse contraste tornar patente a
2 claro que Plato no se refere (pois sequer poderia faz-lo) ao ceticismo e tradio ctica propriamente ditos. Entretanto, numa primeira leitura do Teeteto, pode-se muito bem pensar que ele aponta para aspectos da filosofia heracltica que, mais tarde, seriam considerados parte da temtica ctica. Vale lembrar que, mesmo que Sexto Emprico tenha buscado, em suas obras, distinguir o ceticismo autntico (pirrnico ou suspensivo) de ceticismos impropriamente denominados, houve outras concepes e verses de ceticismo no prprio seio da tradio ctica: mesmo a afirmao ou concluso de que o conhecimento impossvel (que seria tomada como uma forma de dogmatismo negativo pelos pirrnicos) poderia ser considerada parte da via ctica por outros.
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necessidade de uma anlise mais detalhada deste dilogo, bem como de uma
distino entre as teses expressamente formuladas por Herclito ou a ele
atribudas, as teses sustentadas pelos seguidores que distorceram e estenderam
muito suas idias, e as teses que podem ser ou deduzidas a partir das doutrinas
heraclticas ou a elas filiadas, por encontrarem nessas doutrinas ao menos uma de
suas condies e um de seus fundamentos.
2.2
O lgos heracltico
Quando nos defrontamos com os fragmentos de Herclito, percebemos
logo a necessidade de investigar a natureza, os significados e as dificuldades
encontradas na interpretao e traduo do termo lgos. Muitos intrpretes
oferecem em seus estudos pequenos sumrios dos significados de lgos, desde sua
origem etimolgica at seus usos correntes na poca de Herclito. Essas
observaes no so suficientes para esgotar os significados de lgos em
Herclito, mas so importantes para a sua compreenso, pois, por mais que
Herclito o torne um conceito peculiar de sua filosofia, ele no o dissocia de seu
uso ordinrio.
A raiz da palavra lgos, leg-, implica basicamente os sentidos de
colher e selecionar. Da viria o significado de lgos como clculo, e ento
os sentidos de medida e proporo. Esse grupo de significados seria ao
menos to primrio quanto as acepes de enunciado ou discurso. Outro
desenvolvimento levaria aos sentidos de frmula, plano ou lei.3 E haveria
ainda mais sentidos correntes do termo lgos no tempo de Herclito, tais como
valor, reputao, fama, causa, motivo, argumento e a verdade sobre
uma questo.4
3 Cf. o sumrio de significados apresentado por G. S. Kirk, Heraclitus. The Cosmic Fragments (op. cit.), p. 38. 4 Cf. W. K. C. Guthrie, A History of Greek Philosophy (op. cit.), vol. 1, p. 420-424.
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De fato, parece haver consenso entre os estudiosos que no fragmento 39
de Herclito5 Em Priene nasceu Bias, filho de Teutames; seu lgos maior que
o dos demais.6 lgos est evidentemente ligado aos sentidos de valor, fama
e reputao. A grande maioria dos autores traduz e/ou interpreta lgos neste
fragmento recorrendo a um desses termos, ou a um sinnimo qualquer. No h
tambm muita polmica ou dificuldade em torno da traduo e interpretao de
lgos no fragmento 31, que diz: Transformaes do fogo: primeiro, mar; do mar,
metade terra, metade ardncia. O mar distende-se e mede-se no mesmo lgos, tal
como era antes de se tornar terra.7 O lgos, aqui, em geral traduzido e
interpretado como medida e proporo.
Os intrpretes de Herclito em geral tanto aqueles que consideraram a
ordenao do discurso heracltico um elemento fundamental para a apreenso de
seu significado total, dividindo-o e organizando-o com o fim de favorecer sua
concepo como um todo orgnico, quanto aqueles que, como Diels, acreditaram
no estilo aforstico da obra heracltica e na ausncia de uma ordem deliberada que
ligasse os aforismos uns aos outros concordam que o fragmento numerado por
Diels8 como fragmento 1, por sua composio e contedo, constitua a abertura ou
promio do livro de Herclito. O livro de Herclito, portanto, comearia assim:
Deste lgos, sendo sempre, so os homens ignorantes tanto
antes de ouvir como depois de o ouvirem; todas as coisas vm a ser
segundo este lgos, e ainda assim parecem inexperientes, embora se
experimentem nestas palavras e aes, tais quais eu exponho,
distinguindo cada coisa segundo a natureza e enunciando como se
5 Nesta tese, utilizarei a numerao e a edio dos fragmentos de Herclito estabelecidas por Hermann Diels e Walther Kranz, Die Fragmente der Vorsokratiker (op. cit.), bem como utilizarei a traduo dos fragmentos realizada e publicada por Alexandre Costa, Herclito: Fragmentos Contextualizados (Rio de Janeiro, Difel, 2002). Toda alterao por mim realizada nesta traduo dos fragmentos ser indicada em nota. 6 Fragmento 39: e)n Prih/nv Biaj e)ge/neto o( Teuta/mew, ou ple/iwn lo/goj h tw n allwn. 7 Fragmento 31: puro\j tropai: prw ton qa/lassa, qala/sshj de\ to\ me\n hmisu gh=, to\ de\ hmisu prhsth/r. qa/lassa diaxe/etai kai metre/etai ei j to\n au)to\n lo/gon o(koioj pro/sqen hn h gene/sqai gh=. 8 H. Diels e W. Kranz, Die Fragmente der Vorsokratiker (op. cit.), p. 150.
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comporta. Aos outros homens, encobre-se tanto o que fazem
acordados, como esquecem o que fazem dormindo.9
Uma das primeiras dificuldades que se apresentam na interpretao deste
fragmento est relacionada sua construo sinttica. J Aristteles notou a
ambigidade ali presente, sem porm resolv-la.10 A dificuldade a que Aristteles
se refere est presente na possibilidade de ligarmos o advrbio sempre (ae) tanto
ao particpio sendo (entos) quanto ao adjetivo ignorantes (axnetoi). Ou seja, no
fcil definir se Herclito teria afirmado que o lgos sempre ou que os homens
so sempre ignorantes. Na traduo apresentada, o advrbio ae est sendo ligado
ao particpio entos, o que me parece se justificar se relacionarmos o fragmento 1
a outros fragmentos.
Antes de estabelecer essa relao, porm, partamos para a interpretao
da traduo do fragmento apresentada. Atentando para as primeiras palavras do
fragmento, Deste lgos (to d lgou), vemos que a expresso uma auto-
referncia, uma introduo da prpria obra.11 O lgos, portanto, ao designar as
9 Fragmento 1: tou= de\ lo/gou tou=d e)o/ntoj a)ei\ a)cu/netoi ginontai anqrwpoi kai pro/sqen h a)kou=sai kai a)kou/santej to\ prw ton: ginome/nwn ga\r pa/ntwn kata\ to\n lo/gon to/nde a)peiroisin e)oikasi, peirwmenoi kai\ e)pe/wn kai ergwn toioute/wn, o(koiwn e)gw dihgeu=mai kata\ fu/sin diaire/wn ekaston kai fra/zwn okwj exei. tou\j de\ allouj a)nqrwpouj lanqa/nei o(ko/sa e)gerqe/ntej poiou=sin, okwsper o(ko/sa eudontej e)pilanqa/nontai. 10 Aristteles diz o seguinte: uma regra geral que uma composio escrita deva ser fcil de ler e portanto fcil de transmitir. Isso no pode ocorrer onde h muitas palavras ou expresses conectivas, ou onde a pontuao difcil, como nos escritos de Herclito. Pontuar Herclito no tarefa fcil, pois freqentemente no podemos dizer se uma palavra determinada est ligada que a precede ou que a segue. Assim na abertura de seu livro ele diz [segue o fragmento 1]. , , . , , , , (Aristteles, Retrica, 1407 b11). 11 Muitos comentadores concordam que o fato de Herclito iniciar seu discurso falando desse lgos indica que ele est se referindo a seu prprio lgos, sua prpria obra, a seu prprio discurso. A expresso poderia ser interpretada como Este discurso que estou agora iniciando.... Vale sublinhar que a tradio literria da historie jnica costumava fazer referncia ao prprio discurso na apresentao das obras. Cf. C. H. Kahn, The Art and Thought of Heraclitus (op. cit.), p. 66-67).
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palavras, ou a obra cuja exposio se iniciava, teria primeiramente o sentido de
discurso, expresso verbal, palavra. Esse discurso, por sua vez, seria a
expresso peculiar do pensamento de um homem particular, a saber, Herclito.
No fragmento 108, De quantos ouvi os lgous nenhum chega a ponto de
conhecer o que, de todas as coisas apartado, sbio,12 tambm podemos
observar o uso do termo lgos com o sentido claro e consensual de discurso ou
expresso verbal. Portanto, at este ponto podemos afirmar que o termo lgos
usado por Herclito reiteradamente com o sentido de discurso.
Entretanto, quando seguimos analisando o fragmento 1, nos deparamos
com as palavras entos ae, que vo apresentar aquele mesmo lgou que foi
antecedido pelo pronome demonstrativo este como aquilo que sempre. Se
observvamos h pouco que o lgos a palavra contingente expressa por um
homem particular, agora nos deparamos com a afirmao de que ele eterno.
Alm disso, o fragmento tambm afirma que todas as coisas vm a ser segundo
este lgos. Muito embora observemos novamente a ocorrncia do pronome
demonstrativo este, o fato de a passagem afirmar que todas as coisas vm a ser
segundo este lgos retira-lhe todo o carter contingente e particular. Um lgos
que determina o vir a ser de todas as coisas no pode ser seno comum e, como o
fragmento explicita, eterno.13
Outro ponto importante a ser observado no fragmento 1 a afirmao de
que os homens so ignorantes tanto antes de ouvir como depois de o ouvirem.
Se tomarmos o lgos neste trecho simplesmente como o discurso de Herclito,
no poderemos responder seguinte questo: como os homens poderiam t-lo
compreendido antes de o terem ouvido? O lgos, para poder ter sido
12 Fragmento 108: o(ko/swn lo/gouj hkousa, ou)deij a)fiknei=tai e)j tou=to, w ste ginwskein oti sofo/n e)sti pa/ntwn kexwrisme/non. Em nota referente sua traduo deste fragmento, na qual, em vez de lgous , se l discurso, Alexandre Costa (Herclito. Fragmentos Contextualizados, op. cit.) declara ter aberto uma exceo sua resoluo de no traduzir o termo lgos, afirmando que o contexto torna evidente o sentido de discurso. Concordo com Costa, mas prefiro manter lgos sempre na forma original, apresentando seu sentido no em tradues, mas em comentrios. 13 Nesta abordagem do fragmento 1 e da tenso entre dois lgoi distintos, um particular e um comum, devo muito a uma srie de textos, especialmente a Alexandre Costa, Thnatos: Da Possibilidade de um Conceito de Morte a partir do Lgos Heracltico (Porto Alegre, EdPUCRS, 1999), cap. 1.
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compreendido pelos homens antes de o discurso de Herclito ser proferido, teria
de ter estado disponvel e acessvel a eles, independentemente de um discurso
particular. Portanto, o lgos no pode ser somente o discurso de Herclito.
Vemos, ento, que h um contraste e uma tenso entre os dois lgoi que
se mostram presentes no fragmento 1, isto , entre o lgos particular (de
Herclito) e o lgos comum e eterno. Ser possvel concili-los? Parece que sim,
pois o contraste entre a natureza de ambos os lgoi no implica uma discordncia
ou incompatibilidade. Se considerarmos que o lgos de Herclito fruto e
portador de sua compreenso efetiva do lgos comum, segundo o qual todas as
coisas vm a ser, concordaremos que seu discurso particular estar de acordo
com o lgos comum; no estar simplesmente com ele contrastado, mas antes,
estar unido a ele, e at certo ponto com ele fundido e identificado. Portanto, j
vemos a insinuao de que os lgoi comum e particular podem concordar em seu
contedo e que, se so distintos em sua natureza, no so por isso simplesmente
opostos e excludentes. Quando Herclito critica os homens por no
compreenderem o lgos, parece estar fazendo uma dupla advertncia: em
primeiro lugar, mesmo sendo o lgos aquilo segundo o que todas as coisas vm a
ser, os homens falham em compreend-lo; em segundo lugar, mesmo com
Herclito expressando o lgos comum em palavras, ainda assim os homens
falham em sua compreenso.
Voltando questo da ambigidade apontada por Aristteles, se
atribuirmos ae a entos, veremos que a implicao desta afirmao, a saber, de
que o lgos sempre, ser confirmada pelo fragmento 1 em conjunto com os
fragmentos 75 e 30. Diz o fragmento 75: Os que dormem so operrios e
cooperadores nas coisas que vm a ser no cosmo.14 O fragmento 1 diz que as
coisas vm a ser segundo o lgos, e o fragmento 75 afirma que as coisas vm a
ser no cosmo. Se for possvel afirmar que o cosmo sempre, isto , que as coisas
vm a ser sempre, tornar-se- evidente que o lgos ter de ser sempre, pois como
todas as coisas poderiam sempre vir a ser, se aquilo sob cuja medida elas vm a
ser no fosse tambm sempre? E, como veremos, a afirmao de que o cosmo
14 Fragmento 75: tou\j kaqeu/dontaj (oimai o( Hra/kleitoj) e)rga/taj einai le/gei kai sunergou\j tw n e)n t% ko/sm% ginome/nwn.
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sempre feita no fragmento 30: O cosmo, o mesmo para todos, no o fez
nenhum dos deuses nem nenhum dos homens, mas sempre (ae) foi, e ser fogo
sempre vivo, acendendo-se segundo medidas e segundo medidas apagando-se.15
Por outro lado, creio no ser prefervel associar ae a axnetoi, pois,
embora entenda que se pode compreender esse sempre ignorantes em um
sentido no literal, fatalista ou universal, h fragmentos suficientes que destacam e
criticam a ignorncia humana, sem dar margem, como essa expresso daria,
idia de uma impossibilidade de compreenso prpria da natureza humana.
Vejamos dois fragmentos, 116 e 113, em que Herclito afirma a possibilidade
cognitiva comum aos homens. Diz o fragmento 116: Em todos os homens est o
conhecer (ginskein) a si mesmo e bem-pensar (sophronein).16 O conhecer a si
mesmo e o bem-pensar pertencem a todo homem, mas isso no impede que
poucos se interessem em efetivar tais capacidades e que raros sejam os que
realmente atingem o resultado de tais atividades, a saber, o autoconhecimento e o
pensamento sensato. As capacidades de pensar sensatamente e de se autoconhecer
podem permanecer irrealizadas, adormecidas, esquecidas. O fragmento 113, ao
afirmar que O pensar (phronein) comum a todos,17 tambm indica que o
pensar de todo homem por direito, o que no garante que os homens o
exercitem de modo adequado, do nico modo que pode caracterizar a
compreenso do lgos. Mais adiante sero analisados outros fragmentos em que o
termo pensar tambm aparece, e nos quais veremos ainda mais indcios de que,
se uma tal capacidade dada ao homem, impedindo qualquer viso determinista
sobre sua ignorncia, a realizao dessa capacidade requer um empenho
especfico, do qual o homem pode ou no se esquivar e do qual sua compreenso
do lgos depender.
Podemos observar, na anlise do fragmento 1 e nas palavras de alguns
comentadores, a dificuldade implicada na traduo da palavra lgos, pois ela
15 Fragmento 30: ko/smon, to\n au)to\n a(pa/ntwn, oute tij qew n oute a)nqrwpwn e)poihsen, a)ll' hn a)ei kai estin kai estai pu=r a)eizwon, a(pto/menon me/tra kai a)posbennu/menon me/tra. 16 Fragmento 116: a)nqrwpoisi pa=si me/testi ginwskein e(wutou\j kai swfronein. 17 Fragmento 113: cuno/n e)sti pa=si to\ frone/ein.
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parece designar duas coisas distintas em sua natureza.18 Se o lgos for traduzido
simplesmente por discurso, como fazem alguns, corre-se o risco de dar a
entender que o lgos apenas o discurso verbal, particular, contingente de
Herclito. Entretanto, h quem o faa com esse propsito deliberado. Conche,19
por exemplo, alm de afirmar que em todos os fragmentos possvel entender o
termo lgos como discurso, diz que na maior parte dos fragmentos possvel
entend-lo como discurso verdadeiro. Esse autor no atribui ao lgos nenhum
sentido prximo dos de lei, frmula, estrutura ou princpio regulador das
coisas que vm a ser como fazem muitos outros autores, na tentativa de resumir
e expressar o significado do lgos comum do fragmento 1. O contedo objetivo
do discurso verdadeiro no seria o lgos, e sim a lei da unidade dos opostos,
tema diversas vezes mencionado por Herclito. Para Conche, no h problema em
afirmar que Herclito declarou que todas as coisas vm a ser segundo este
discurso, pois a no estaria dito que todas as coisas vm a ser em funo ou sob
a medida de um discurso contingente, mas que vm a ser exatamente do mesmo
modo como o discurso contingente descreve ou expressa. Essa concepo do
lgos a que, podemos assim dizer, lhe atribui uma natureza lingstica. Ou
seja, o lgos no teria realidade independente, nem se distinguiria dos discursos
contingentes e verbais. Seria sempre um discurso verbal e descreveria, se
verdadeiro, a lei da unidade dos contrrios, que seria, esta sim, o princpio
regulador de todas as coisas.
H, entretanto, quem veja a questo com outros olhos. Muitos intrpretes
vo afirmar a tenso e diferena entre o lgos que discurso verbal e o lgos que
no se pode restringir a ele, que dele independente, que regula, dirige e governa
o vir a ser das coisas e que, ao ser compreendido, revela a lgica, a
racionalidade, a estrutura, o princpio ordenador em funo dos quais todas
18 Kirk, Gurthrie e Berge mantm a palavra lgos, no fragmento 1, sem traduo, enquanto Kahn a traduz por account. Cf. G. S. Kirk, Heraclitus. The Cosmic Fragments (op. cit.), p. 35; W. K. C. Guthrie, A History of Greek Philosophy (op. cit.), vol. 1, p. 424; Damio Berge, O Logos Heracltico (Rio de Janeiro, Instituto Nacional do Livro, 1969), p. 62-89; e Charles H. Kahn, The Art and Thought of Heraclitus (op. cit.), p. 93-100. Bollack e Wissmann traduziro lgos, no fragmento 1, por discurso, mas diro que o termo grego guarda, neste fragmento, dois aspectos em tenso: o discurso ou a palavra contingente, e o contedo objetivo e eterno desse discurso. Cf. Jean Bollack e Heinz Wismann, Hraclite ou la Sparation (Paris, Minuit, [1972] 1995), p. 59-64. 19 Cf. Marcel Conche, Hraclite: Fragments (op. cit.), p. 23-28.
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as coisas vm a ser. Nesse sentido, o lgos pode ser concebido como uma lei,
que pode ser descoberta, nomeada e descrita pelos homens (assim como, grosso
modo, a lei da gravidade ganha compreenso, nome e descrio em um discurso
cientfico contingente), mas que existe e sempre existiu independentemente deles
e que, alis, os engloba. Esta seria, como Conche prope chamar, a interpretao
ontolgica do lgos.20
Com base nas anlises precedentes do fragmento 1, creio que o lgos,
nesse fragmento, no apresenta uma natureza nem puramente lingstica, nem
puramente ontolgica. E essa complexidade de sua natureza aparecer
novamente no fragmento 2: Embora sendo o lgos comum, a massa vive como se
tivesse um pensamento (phrnesin) particular.21 Neste fragmento, vemos que a
palavra lgos vem seguida pelo adjetivo comum (xyno), que a qualifica de
acordo com a universalidade ou comunidade tambm observada no fragmento
1. Novamente parece que Herclito afirma que o lgos no pode se restringir
particularidade ou contingncia de uma natureza puramente lingstica. Vale
notar, entretanto, que, se Herclito determina a natureza desse lgos fazendo-o ser
acompanhado por um adjetivo, deve supor a existncia de uma espcie distinta de
lgos, a saber, de um lgos de tipo contingente, particular.
Se Herclito alude aqui existncia de um lgos particular, vemos que
ele faz, ainda neste fragmento, um jogo de oposio explcita, usando os adjetivos
comum e particular. Mas j no o lgos que qualificado como particular, e sim
a phrnesis, o pensamento. O que est em jogo nesse contraste entre o lgos
comum e o pensamento particular novamente a crtica ignorncia, pois
Herclito sustenta mais uma vez que os homens podem compreender o lgos
comum, isto , podem pensar de acordo com esse lgos, mas no se interessam em
compreend-lo, no filiam suas idias comunidade representada pelo lgos, e
consideram que seus pensamentos so privados, independentes e no-referidos ao
lgos comum. Se este fragmento trata explicitamente do lgos comum objeto
por excelncia do conhecimento e da ignorncia o pensamento equivocado ,
20 Cf. M. Conche, Hraclite: Fragments (op. cit.), p. 23. 21 Fragmento 2: tou= lo/gou d' e)o/ntoj cunou= zwousin oi polloi wj i dian exontej fro/nhsin.
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trata tambm, implicitamente, do lgos particular que pode concordar ou
discordar do lgos comum e do pensamento consoante com o lgos
pensamento particular na medida em que humano, mas que no se toma por
privado (idan), posto que no ignora o lgos comum. Vemos ento mais uma vez
que, se por um lado os pensamentos e discursos dos homens so por natureza
particulares e contingentes, no esto fadados ao equvoco, nem ao relativismo,
perspectivismo ou parcialidade, mas podem carregar e expressar, em sua
particularidade, a universalidade do lgos comum.
Todavia, se o entendimento e as palavras dos homens no so
equivocados por uma fatalidade, ainda assim a possibilidade do conhecimento no
fornece uma garantia de sua efetivao. Essa impossibilidade de implicao do
comportamento compreensivo na capacidade de pensamento de todo homem
confirmada pelo fragmento 17: No pensam (phronousi) tais coisas aqueles que
as encontram (enkyrseousin), nem mesmo quando aprendidas (mathntes) as
reconhecem (ginskousin), mas a si mesmos lhes parece (dokousi).22 Embora o
pensar seja comum a todos, os homens no pensam as coisas que encontram.
Este fragmento confirma a idia de que a capacidade de pensar no
garante sua efetivao, e vai ainda alm. O que so as coisas que os homens
encontram? So as coisas que vm a ser segundo o lgos (fragmento 1) e que
podem assim ser reconhecidas se, alm de simplesmente encontradas ou
aprendidas, forem tambm pensadas. O verbo encontram, como indicam muitos
autores, sugere o contato fsico e, portanto, a apreenso sensvel resultante desse
tipo de contato. J o termo aprendidas, que tambm aparece nos fragmentos 55
e 40, sugere no apenas uma apreenso sensvel, mas um entendimento dela
derivado. Esse entendimento, no entanto, no significa necessariamente uma
compreenso efetiva do lgos. Portanto, por mais que os homens sintam e
aprendam coisas, no conseguem reconhec-las. Eles no pensam adequadamente
as coisas que encontram, mas formam uma opinio sobre elas, produzindo um
entendimento que no consoante com a compreenso do lgos.
22 Fragmento 17: ou) frone/ousi toiau=ta polloi, o(ko/soi e)gkurseu/ousin, ou)de\ maqo/ntej ginwskousin, e(wutoisi de\ doke/ousi.
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Em uma de suas crticas ignorncia dos homens, Herclito torna a
afirmar que o aprendizado no garante que dele resulte saber, inteligncia,
conhecimento. Nessa crtica, entretanto, Herclito no fala da massa dos homens
annimos, e sim de algumas das maiores autoridades entre os gregos, de homens
reconhecidos por sua sabedoria em toda a Grcia. Diz o fragmento 40: Muito
aprendizado no ensina saber, pois teria ensinado a Hesodo e a Pitgoras,
tambm a Xenfanes e a Hecateu.23 O fragmento se inicia justamente afirmando
que o aprendizado, mesmo que realizado ininterruptamente, em grande quantidade
e variedade, no ensina o tipo de entendimento que caracteriza a inteligncia, o
saber. Alm de afirmar que a compreenso do lgos, o nico tipo de cognio que
pode levar ao efetivo saber, ao efetivo conhecimento, no pode ser conquistada
pelo mero acmulo de experincias, nem por um tipo desarrazoado de idias delas
extradas, o fragmento indica que o homem no se deve fiar nas autoridades por si
mesmas ou por terem elas legado aquilo que tido pela coletividade como o mais
alto conhecimento. Herclito no parece temer ou hesitar em recusar e criticar os
saberes, os tesouros, os discursos dos grandes mestres da tradio.
No fragmento 50, Herclito anuncia o que deve ser feito para alcanar a
sabedoria. O fragmento diz: Ouvindo no a mim, mas ao lgos, sbio
concordar ser tudo um.24 Aqueles que entendem que o lgos o discurso de
Herclito, e nada mais, consideram que a advertncia ouvindo no a mim mas ao
lgos significa que ele est mostrando que a verdade de seu discurso no deve
ser atribuda sua autoridade, sua pessoa. Os homens devem desconsiderar tal
autoridade e, a sim, dar ouvidos ao seu discurso, que, por revelar a verdade
objetiva e comum, vale por si mesmo. Por outro lado, h interpretes e nesse
grupo que me incluo que enxergam nesse lgos novamente a tenso e fuso do
discurso de Herclito com o lgos comum, afirmando que a orao ouvindo no
a mim mas ao lgos indica tanto que Herclito exorta os homens a ouvir um
23 Fragmento 40: polumaqih no/on ou) dida/skei: Hsiodon ga\r an e)didace kai Puqago/rhn, autij te Cenofa/nea/ te kai Ekataion. 24 Fragmento 50: ou)k e)mou= a)lla\V tou= lo/gou a)kou/santaj o(mologei=n sofo/n e)stin e(\n pa/nta ei=)nai. Alexandre Costa traduz hn pnta por tudo-um e explica, em nota, o uso do hfen entre os dois termos. Preferi, todavia, manter as duas palavras separadas, lado a lado, sem conectivos ou sinais entre elas, como no original grego.
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discurso independentemente da autoridade de quem o enuncia, quanto que ele os
conclama a ouvir o lgos segundo o qual todas as coisas vm a ser (fragmento
1), que, por ser comum, a nica coisa a que os homens devem dar ouvidos.
O homem ou no sbio em funo de sua escuta e de sua disposio
aps a escuta. Ouvir o lgos o que leva o homem a concordar, a fazer a coisa
sbia, a tornar-se sbio, a alcanar a sabedoria. Portanto, a sabedoria se d e se
revela na concordncia com o lgos. Ao falar da concordncia (homologa),
Herclito explicita uma possibilidade de conformao do pensamento e do
discurso humanos ao lgos comum. A palavra homologa e a ao de homologar
expressam a capacidade prpria do homem de dizer o mesmo que o lgos
comum.
Atentemos agora para o uso heracltico do verbo ouvir, que aparece em
diversos fragmentos, entre eles o fragmento 1 tanto antes de ouvir como depois
de o ouvirem e o fragmento 50 ouvindo no a mim mas ao lgos. No caso
dos intrpretes que sustentam que o lgos apenas o discurso de Herclito, no
parece haver nenhum problema em considerar que o lgos deve ser ouvido.
Entretanto, se entendemos que o lgos em jogo nesses fragmentos tambm o
lgos que no pode se restringir a um discurso verbal, torna-se evidente que o
verbo ouvir est sendo usado em outro sentido que no o de perceber
sensivelmente os sons ou a voz em que so enunciadas determinadas palavras.
Esse impasse resolvido, por alguns, com o recurso polissemia do
verbo akoo, que tambm pode significar obedecer e acolher, o que levaria
idia de que os homens devem atentar para o lgos comum, acat-lo e acolh-lo.
De todo modo, mesmo quando se interpreta o lgos como um discurso verbal, o
ouvir a que Herclito se refere no pode designar somente o exerccio da
audio, entendida como a faculdade sensvel de perceber sons. Herclito, tanto
no fragmento 1 quanto no fragmento 50, no s indica o que deve ser ouvido, a
saber, o lgos comum e o discurso que o expressa, como tambm mostra que h
modos de ouvir, a saber, h um tipo de audio que leva compreenso,
sabedoria, e um outro tipo de audio que no leva a conhecimento algum. Essa
argumentao se confirmar se observarmos o fragmento 34: Ignorantes:
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ouvindo, parecem surdos; o dito lhes atesta: presentes, esto ausentes.25 A
ignorncia definida aqui como a audio que, no levando a compreenso
alguma, vale to pouco quanto a ausncia de audio dos surdos. Portanto,
podemos concluir que Herclito afirma que a superao da ignorncia, isto , a
escalada em direo sabedoria e ao conhecimento envolve mais do que o
simples ouvir: envolve saber a que se deve dar ouvidos ou seja, distinguir o
objeto ou fonte preeminente de conhecimento e saber ouvir um ouvir
inteligente, que v alm da mera afirmao da sensao momentnea e que
conduza compreenso do que se ouve.
O fragmento 72 enuncia: Do lgos com que constantemente lidam,
divergem, e as coisas que a cada dia encontram revelam-se-lhes estranhas.26
Podemos ver aqui a confirmao de que o convvio e a lida dos homens com o
lgos constante e inevitvel. Portanto, inadequado no s afirmar que os
homens so ignorantes por uma fatalidade, destino ou Moira, como supor ou
sustentar que alguns homens tm, por natureza, independentemente de seu
empenho, acesso privilegiado ao lgos, que o lgos se aproxima apenas de alguns
para contar em seus ouvidos, ou revelar de outro modo, algum segredo.
O contato com o lgos irrevogvel, pois os homens vivem assim
como todas as coisas no cosmo (fragmento 30), e ambos, homens e coisas, vm
a ser segundo o lgos (fragmento 1). Portanto, em tudo o que o homem encontra e
em tudo aquilo com que lida, ele estar irremediavelmente se encontrando e
lidando com o lgos. Todavia, a relao do homem com o lgos e por
conseguinte com todas as coisas , como vimos, pode ser marcada pela
compreenso ou pela ignorncia, pela concordncia ou pela divergncia, e por isso
o fragmento afirma, dos homens ignorantes, que eles estranham as coisas que
encontram ou, como se v no fragmento 17, no as reconhecem.
Atentemos agora para o fragmento 114, que diz: Para falar com saber
necessrio apoiar-se sobre a comunidade de todas as coisas, como a cidade sobre a
25 Fragmento 34: a)cu/netoi: a)kou/santej kwfoijin e)oikasi: fa/tij au)toisin marturei: pareo/ntaj a)peinai. 26 Fragmento 72: % ma/lista dihnekw j o(milou=si lo/g%, t% ta\ ola dioikou=nti, tou/t% diafe/rontai, kai oij kaq' h(me/ran e)gkurou=si, tau=ta au)toij ce/na fainetai.
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lei e ainda mais vigorosamente. Porque todas as leis humanas so alimentadas por
uma lei una, a divina; pois exerce seu domnio to longe quanto se consente, e
basta e envolve a todas as outras.27 Este fragmento carrega, logo em sua abertura,
um jogo de palavras bastante sugestivo: com saber, em grego xn no, indica
uma equivalncia, por sua semelhana fontica, com o comum, em grego xyvo.
Levando em conta essa indicao, podemos crer que o falar inteligente ser
sempre similar ao falar de acordo com o lgos comum. O prprio fragmento
confirma a insinuao presente no trocadilho: Para falar com saber preciso
apoiar-se sobre a comunidade de todas as coisas leia-se, preciso apoiar-se
sobre o lgos comum.
Se continuamos nos atendo ao que diz o fragmento 114, podemos ainda
notar uma comparao tambm muito sugestiva a respeito do modo como o
homem deve se apoiar sobre o comum: como a cidade sobre a lei. O fragmento
ainda diz que todas as leis humanas so alimentadas por uma lei una, a divina. E
nos d uma boa pista para uma possvel interpretao do lgos comum: a lei da
qual todas as leis humanas se nutrem, e sobre a qual as cidades com suas leis
particulares e os homens com suas idias e discursos particulares se devem
apoiar. No toa, portanto, que diversos estudiosos tendem a tentar resumir,
definir ou traduzir o lgos comum usando a palavra lei ou termos e expresses
similares ou relacionadas como, por exemplo, princpio regulador, frmula,
estrutura, plano, princpio ordenador.
Considerando as anlises desses fragmentos que versam sobre o lgos,
podemos concluir que Herclito exortou os homens a superar sua ignorncia,
asseverou a existncia de um lgos comum e a possibilidade de o homem
compreend-lo e, ainda, afirmou que a pura afirmao da sensao, isto , do que
se ouve, v, sente, se no for integrada a um discernimento inteligente, no ser
suficiente para a sua compreenso. Alm disso, vimos tambm que, apesar de o
lgos comum no ser um objeto sensvel, ele pode ser compreendido a partir de
uma percepo sensvel, como por exemplo a observao acurada das coisas que
27 Fragmento 114: cu\n no/% le/gontaj i sxurizesqai xrh\ t% cun% pa/ntwn, okwsper no/m% po/lij kai polu\ i sxurote/rwj. tre/fontai ga\r pa/ntej oi
a)nqrwpeioi no/moi u(po\ e(no\j tou= qeiou: kratei= ga\r tosou=ton o(ko/son e)qe/lei kai e)carkei= pa=si kai periginetai.
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se comportam segundo sua lei, sua ordenao, ou a escuta de um discurso
verdadeiro, isto , um discurso que seja com ele consoante. Vamos agora ver o
que Herclito tem a nos dizer sobre a psych e seu papel na aquisio de
conhecimento.
2.3
A psych em Herclito
A concepo dominante de psych antes de Herclito era a concepo
homrica. Em Homero, a psych a fora vital dos homens, aquilo que os
anima, que os mantm vivos. O significado do substantivo psych est
diretamente relacionado ao sentido do verbo pschein, soprar, respirar e,
portanto, basicamente sopro, alento, princpio vital. Entretanto, a psych
usada em Homero, antes de mais nada, para designar aquilo que abandona o
homem na hora da morte, aquilo que faz dele um ser mortal, e no aquilo que nele
est presente durante a vida. A psych distingue o homem vivo do cadver e se,
por um lado, significa sopro vital, vida, constitui mais enfaticamente o signo
da mortalidade humana, o sopro que expirado pela boca do homem na morte e
que voa ento para o Hades. Homero, portanto, se refere antes psych dos
mortos que psych dos vivos.28
Nem o lugar onde a psych reside nem o modo como ela atua nos
homens vivos tematizado nos poemas homricos, mas, segundo Snell, a psych
pode ser considerada quase como um rgo que se encontra no homem, assim
28 Muitos so os autores que tratam desse uso negativo de psych em Homero. Cf., por exemplo, Bruno Snell, A Descoberta do Esprito (Lisboa, Edies 70, [1975] 1992), p. 28-30; David J. Furley, The Early History of the Concept of Soul, in T. Irwin (ed.), Classical Philosophy: Collected Papers (New York & London: Garland Publishing, 1995), vol. 1, p. 112; Martha C. Nussbaum, Psych in Heraclitus, I, in T. Irwin (ed.), Classical Philosophy: Collected (op. cit.), vol. 1, p. 201-2; Maura Iglsias, Plato: A Descoberta da Alma, Boletim do CPA (Campinas, Unicamp, ano 3, n. 5/6, jan./dez. de 1998), p. 14; e Edward Hussey, Heraclitus, in A. A. Long (ed.), The Cambridge Companion to Early Greek Philosophy (Cambridge, Cambridge University Press, 1999), p. 101.
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como o thyms e o nos.29 O thyms seria responsvel por suscitar os movimentos
e as reaes, e estaria referido s emoes, enquanto o nos seria responsvel por
receber impresses, guardar imagens e conhecer, estando referido no
propriamente ao esforo com vista ao conhecimento, mas simplesmente a insights
momentneos, percepo que inclui a ocorrncia espontnea de um
entendimento. Portanto, vemos que as sedes da emoo e do conhecimento no
pertencem, para Homero, esfera da psych, e que esta no pensa ou sente. Essas
diversas atividades humanas so concebidas separadamente, e no como poderes
interconectados, formadores de uma unidade. Tambm no so referidas ou
relacionadas a uma sede central que as conjugue e rena.
Os poetas lricos continuaram a usar o termo psych para designar o
poder animador dos corpos humanos, mas abriram caminho para o surgimento de
uma nova concepo de psych, como centro ou fonte da personalidade humana.
Na lrica, os poetas surgem pela primeira vez como personalidades, falam de si, de
seus sentimentos pessoais, de conflitos entre emoes.30 Mas, se Homero s via
na psych o princpio de vida nos homens, e se a poesia lrica valorizou a
personalidade e as tenses da intimidade, sem ainda vincul-las explicitamente
psych, Herclito apresenta uma nova concepo da psych a que se atribui, com
razo, uma grande originalidade. No fragmento 67a ele expe com extrema
clareza o papel central que a psych desempenha no homem vivo:
Assim como a aranha no centro da teia logo sente quando uma
mosca rompe qualquer fio de sua teia, e, deste modo, corre pressurosa
para l, como se temesse pela integridade do fio, tambm a alma do
homem, lesada qualquer parte do corpo, dirige-se rapidamente para l,
como se no suportasse a leso do corpo a que est unida firme e
proporcionalmente.31
29 B. Snell, A Descoberta do Esprito (op. cit.), p. 28-30. 30 Ver, para mais consideraes sobre a poesia lrica e a noo de psych, C. H. Kahn, The Art and Thought of Heraclitus (op. cit.), p. 126-127; e B. Snell, A Descoberta do Esprito (op. cit.), p. 81-120. 31 Sicut aranae, ait, stans in medio talae sentit quam cito musca aliquem filum suum corrumpit itaque illuc celeriter currit quase de fili perfectione dolens, sic hominis anima aliqua parte corporis laesa, illuc festine meat, quasi impatiens laesionis corporis, cui firme et proportionaliter
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Herclito faz uso desta analogia para que possamos entender o modo
como a psych atua no homem vivo, para que notemos que a psych no
simplesmente uma sede passiva ou receptiva das impresses corpreas, e sim o
centro ativo, emanador da ao humana. O exemplo que ele apresenta a situao
em que essa ao visa a salvaguardar a integridade do corpo, respondendo a uma
leso corporal. Todos os estmulos e as experincias do corpo esto, para
Herclito, referidos psych, e, portanto, a uma nica sede que garante a unidade
e a integridade do indivduo. Entretanto, a concepo heracltica da alma no se
restringe idia de uma sede meramente central e passiva, e sim remete a uma
sede ou centro extensivo, ativo.
Se as interpretaes sobre a noo de psych baseadas no fragmento 67a
no so unnimes, visto que o fragmento considerado dbio ou inautntico por
alguns autores, a idia de que Herclito desenha uma analogia entre o papel do
fogo no cosmo e o da psych no homem um ponto sobre o qual h consenso
geral. Mas, antes de tratar dessa analogia, preciso tematizar, ainda que
resumidamente, o papel do fogo no pensamento de Herclito.
No fragmento 30, l-se: O cosmo, o mesmo para todos, no o fez
nenhum dos deuses nem nenhum dos homens, mas sempre foi, e ser fogo
sempre vivo, acendendo-se segundo medidas e segundo medidas apagando-se.32
O que podemos notar primeiramente neste fragmento que o cosmo descrito
como um fogo, ou seja, com o fogo identificado. O fato de o fogo se acender e
se apagar segundo medidas mostra que ele se relaciona com, e manifesta, a lei
ou medida do cosmo. Ou seja, se, de um lado, o fogo se transforma de algum
modo, pois possui a dinmica do apagar-se e acender-se, de outro, sua dinmica se
d segundo medidas, explicitando assim o carter ordenado da diversidade do
cosmo. O fogo, nesse sentido, equivale unidade, totalidade e ordem do
cosmo.
iuncta est. 32 Fragmento 30: ko/smon, to\n au)to\n a(pa/ntwn, oute tij qew n oute a)nqrwpwn e)poihsen, a)ll' hn a)ei kai estin kai estai pu=r a)eizwon, a(pto/menon me/tra kai a)posbennu/menon me/tra.
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Por outro lado, se observamos a existncia de um apagar-se e acender-se,
vemos insinuar-se a idia da mudana, das transformaes do fogo. O fogo, como
veremos, no s representa a unidade do cosmo, como tambm o responsvel
por sua multiplicidade e diversidade de caractersticas. Pois disso que fala o
fragmento 31: Transformaes do fogo: primeiro, mar; do mar, metade terra,
metade ardncia. O mar distende-se e mede-se no mesmo lgos, tal como era
antes de se tornar terra.33 Este fragmento afirma que a diversidade dos
constituintes do cosmo no nada alm de fruto das transformaes do fogo.
Todos os elementos so modificaes, estgios, graus ou estados distintos do fogo
em seu processo, apagando-se e acendendo-se. Portanto, toda a diversidade se
resume na unidade do fogo. O fogo o elemento fundamental de todas as coisas, e
pode ser encontrado no cosmo, tanto em sua forma paradigmtica quanto em
todos os seus graus, estados ou estgios de menor ardncia.
Diversos comentadores consideraram que h uma correspondncia entre
a psych e o fogo em Herclito com base na analogia evidente entre os processos
descritos nos fragmentos 36 e 31. Diz o fragmento 36: Para as almas, tornar-se
gua morte; para a gua, tornar-se terra morte; mas da terra nasce gua, da
gua, alma.34 No fragmento 36, a seqncia de mortes alma/psych-gua-terra,
enquanto no fragmento 31, fogo/pyr-gua-terra. A psych, em um fragmento,
ocupa exatamente o lugar que o fogo tinha no outro. Esse paralelo parece oferecer,
entre outras coisas, grande evidncia para a afirmao da natureza gnea da
psych.
Mas h tambm uma relao entre a psych e a gua. O fragmento 118,
Brilho: alma seca, a mais sbia e melhor,35 confirma que a gua e a psych so
de alguma maneira opostas, de modo que a gua tem um poder deletrio sobre a
33 Fragmento 31: puro\j tropai: prw ton qa/lassa, qala/sshj de\ to\ me\n hmisu gh=, to\ de\ hmisu prhsth/r. qa/lassa diaxe/etai kai metre/etai ei j to\n au)to\n lo/gon o(koioj pro/sqen hn h gene/sqai gh=. 34 Fragmento 36: yuxv=sin qa/natoj udwr gene/sqai, udati de\ qa/natoj gh=n gene/sqai, e)k gh=j de\ udwr ginetai, e)c udatoj de\ yuxh/. Alexandre Costa traduz, neste fragmento, psychsin e psychs por vapores e vapor. Preferi seguir as tradues de G. S. Kirk (Heraclitus. The Cosmic Fragments, op. cit., p. 339), de C. H. Kahn (The Art and Thought of Heraclitus, op. cit., p. 237) e de M. Conche (Hraclite. Fragments, op. cit., p. 327), pois creio que neste fragmento a noo de alma no deixa de estar em jogo nem se dissocia do sentido de psych.
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psych. Entretanto, este fragmento indica que nem todas as psychai so
completamente gneas. Portanto, a psych no necessariamente gnea em
Herclito, mas s idealmente ou possivelmente gnea. Haveria ento gradaes da
alma, assim como do fogo.
Quando a psych for mida, isso implicar sempre, para o homem, uma
perda proporcional de vitalidade, de autocontrole e de inteligncia. o que
confirma o fragmento 117: O homem, quando bbado, levado por uma criana
impbere, trpego, no notando para onde anda, tendo mida a alma.36 Este
fragmento oferece forte evidncia da associao da psych com o autocontrole e o
conhecimento. A embriaguez um estado de reduzidos autocontrole, ateno e
discernimento. Herclito pode estar empregando uma metfora, pois nem todo
bbado conduzido de fato por uma criana, isto , por uma criana de carne e
osso. Isso indicaria que o homem bbado guiado por uma criana interna, a
saber, sua prpria faculdade de discernimento num estado de capacidade
diminuda. Isso mostra que, para Herclito, os homens so guiados por uma sede
ou entidade interna, a saber a psych, que pode ser mais ou menos competente,
mais ou menos sbia.
O fragmento 117 sugere que a sabedoria da psych varia em proporo
inversa sua umidade, enquanto a conexo entre a secura da alma e sua
inteligncia atestada pelo fragmento 118, em que dito que a alma seca a mais
sbia e a melhor. Vemos, portanto, que o conhecimento, ou a sabedoria,
correlato da secura da alma, enquanto a ignorncia correlata da umidade
psquica. Mas Herclito parece fazer uma analogia entre a psych e o fogo no
apenas por sua semelhana de natureza, a natureza gnea, mas tambm por ambos
desempenharem o papel de princpio de vida, de integridade e unidade. O fogo
sempre vivo anima o cosmo, ou antes o cosmo, considerado um ser animado,
assim como a psych o princpio vital dos homens.
Essa analogia entre a psych e o fogo pode ser entendida como uma
35 Fragmento 118: au)gh\: chrh\ yuxh\, sofwta/th kai a)risth. 36 Fragmento 117: a)nh\r o(ko/tan mequsqv=, agetai u(po\ paido\j a)nh/bou sfallo/menoj, ou)k e)pai+wn okh bainei, u(grh\n th\n yuxh\n exwn.
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analogia entre microcosmo e macrocosmo, isto , como a identidade de duas
totalidades gneas e vivas, se tomadas proporcionalmente em suas diferentes
escalas. A analogia do microcosmo e do macrocosmo supe a idia de que
pessoas ou outros fenmenos particulares so de algum modo similares ou
isomrficos a alguma estrutura mais ampla qual pertencem, especialmente o
cosmo. Em Herclito, esse princpio de semelhana ou isomorfismo parece
desempenhar um papel muito importante no apenas na relao da psych com o
fogo, mas tambm em sua relao com o lgos. Como foi visto, a psych sbia
gnea, enquanto a psych ignorante mida. Vimos tambm que a psych sbia
sbia em virtude de sua apreenso do lgos. O lgos, por sua vez, a lei do cosmo
gneo, a lei segundo a qual o fogo se acende e apaga, o lgos ele mesmo
intimamente associado ao fogo, a ele imanente. Mas onde Herclito fala
explicitamente da associao entre a psych e o lgos?
Dois fragmentos falam da psych em conexo com o lgos. O fragmento
115 afirma: Da alma um lgos que a si mesmo aumenta.37 Este fragmento de
interpretao muito difcil e variada, mas certo que atribui lgos psych. O
aumento do lgos por si mesmo referido, por uns, por exemplo, ao aumento da
racionalidade em uma psych cuja proporo de fogo est crescendo; por outros,
autonomia da psych, que pode, sem o auxlio dos deuses, se superar em termos
de conhecimento. O fragmento 45 diz: No encontrarias os limites da alma,
mesmo todo o caminho percorrendo, to profundo lgos possui.38 A primeira
coisa que salta vista a ausncia de limites da psych. A outra parte deste
fragmento afirma que a impossibilidade de se encontrar os limites da alma tem
como causa a extrema profundidade do lgos que ela possui. Tal como no
fragmento 115, aqui tambm a psych intimamente associada ao lgos, pois ela
possui lgos, o lgos a ela imanente. Portanto, vemos que a psych tem uma
estrutura semelhante estrutura daquilo que a engloba e que ela pode buscar
conhecer, a saber, do cosmo que, assim como ela, possui lgos.
37 Fragmento 115: yuxh=j e)sti lo/goj e(auto\n aucwn. 38 Fragmento 45: yuxh=j peirata i wn ou)k an e)ceu/roio, pa=san e)piporeuo/menoj o(do/n: outw baqu\n lo/gon exei.
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Um dos fragmentos que mencionam a psych de importncia capital
para a compreenso do modo como Herclito concebeu a relao da psych com o
lgos e com os sentidos. O fragmento o 107: Para homens que tm almas
brbaras, olhos e ouvidos so ms testemunhas.39 Ao afirmar que homens com
almas brbaras tm olhos e ouvidos que so ms testemunhas (kako mrtyres),
este fragmento sugere que os homens cujas almas no so brbaras tm olhos e
ouvidos que so boas testemunhas.
Vale notar que o fragmento 34, anteriormente citado, diz: Ignorantes:
ouvindo, parecem surdos; o dito lhes atesta: presentes, esto ausentes. A
incompreenso caracterstica dos ignorantes explicada em termos de uma
audio que no lhes garante um conhecimento mais preciso do que o dos surdos,
aqueles que nada ouvem. O dito de Herclito testemunha (martyre) a ignorncia,
a falha epistemolgica desses homens. Olhos e ouvidos so ms testemunhas
quando os homens se satisfazem simplesmente com as informaes por eles
obtidas sem integr-las ao discernimento inteligente, quando formam opinies nas
quais simplesmente expressam essas informaes e do testemunho dessas
informaes como se elas fossem o prprio conhecimento, acabado e total, da
realidade.
Os olhos e os ouvidos s fornecem testemunho impreciso para aqueles
que no entendem que devem articular, interpretar e compreender esse
testemunho; ou seja, fornecem informaes precisas, as quais, se forem tomadas
como equivalentes efetivao do conhecimento, constituiro ento testemunhos
muito imprecisos, muito insuficientes. Portanto, o que est em jogo neste
fragmento no uma crtica aos sentidos, e sim uma crtica aos homens que
pretendem que o conhecimento lhes seja dado exclusivamente pelos sentidos e
pelo entendimento que os sentidos isoladamente podem produzir.
Somente essa hiptese, a saber, de que olhos e ouvidos devem fornecer
informaes acuradas que so, no entanto, mal interpretadas pela psych permite a
dependncia do testemunhar mal a ter uma alma brbara, que evidente no
fragmento. Ento, a funo da psych funo esta que a psych brbara falha em
39 Fragmento 107: kakoi\ ma/rturej a)nqrw/poisin o)fqalmoi\ kai\ w=)ta barba/rouj yuxa\ e)xo/ntwn.
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levar adiante interpretar propriamente a informao confivel, porm
insuficiente, oferecida pelos sentidos. Sexto Emprico, que conservou este
fragmento, diz, antes de cit-lo em Contra os Matemticos (VII, 126):
Herclito, tendo considerado que o homem [ dotado] de dois
elementos para o conhecimento da verdade, asthesis e lgos, diz, a
exemplo dos fsicos anteriormente mencionados, que a asthesis no
confivel, e adota [portanto] o lgos como critrio. A asthesis,
contudo, censura expressamente, dizendo: [segue o fragmento 107].40
Sexto Emprico afirma que Herclito teria dito que a sensao (asthesis)
no confivel e a teria censurado. Esta interpretao parece ir em direo diversa
da que Herclito aponta, a saber, de que a sensao e o entendimento que ela
imediatamente produz no so enganosos ou pouco confiveis, mas devem ser
dimensionados, articulados e interpretados de forma inteligente para que
produzam conhecimento. Alm disso, a censura de Herclito no se dirige
sensao, e sim aos homens cujas almas so brbaras.
Em Herclito, de fato, no h a considerao de que a sensao algo
naturalmente ignbil. Ao contrrio, Herclito a valoriza explicitamente no
fragmento 55: Do que h viso, audio, aprendizado, eis o que eu prefiro.41 A
viso e a audio, funes e sensaes daqueles mesmos olhos e ouvidos do
fragmento 107, no so rejeitados ou censurados por Herclito, e sim o oposto
disso. Portanto, vemos que Herclito atribui um papel importante e primrio aos
sentidos no processo de obteno do conhecimento. Mas, se os sentidos
constituem um elemento ou ingrediente importante nesse processo, no podem
oferecer mais do que um de seus elementos necessrios.
40 o( de\ (Hra/kleitoj, e)pei\ pa/lin e)do/kei dusi\n w)rganw=sqai o( a)/nqrwpoj pro\j th\n th=j a)lhqei/aj gnw=sin, ai)sqh/sei te kai\ lo/g%, tou/twn th\n me\n ai)/sqhsin paraplhsi/wj toi=j proeirhme/noij fusikoi=j a)/piston ei=)nai neno/miken, to\n de\ lo/gon u(poti/qetai krith/rion. a)lla\ th\n me\n ai)/sqhsin e)le/gxei le/gwn kata\ le/cin [...]. (Contra os Matemticos, VII, 126). 41 Fragmento 55: o(/swn o)/yi a)koh\ ma/qhsij, tau=ta e)gw\ protime/w.
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Muitos comentadores tomaram a expresso psychai brbaras como
uma referncia habilidade lingstica,42 de modo que o fragmento interpretado
como olhos e ouvidos so ms testemunhas para os homens, se eles tm almas
que no compreendem a linguagem. Mas fica ainda por decidir que linguagem
est sendo mencionada. Segundo uma concepo, a linguagem, aqui, deve ser
entendida como uma metfora: aqueles com almas brbaras so aqueles que
falham em compreender a linguagem da natureza43 ou a linguagem dos
sentidos.44 Segundo outra concepo, a linguagem deve ser tomada literalmente,
de modo que os homens com almas brbaras so aqueles que no compreendem a
lngua grega, mesmo sendo gregos.45 H tambm algumas concepes mistas.46
Penso que tanto a interpretao metafrica quanto a literal so teis para
a compreenso da noo de alma brbara. A interpretao metafrica supe que
o lgos comum uma espcie de discurso um discurso entendido
metaforicamente como a manifestao da gramtica, da lgica, ou da lei
reguladora de todos os acontecimentos que pode ser ouvido no
comportamento de todas as coisas que vm a ser. Nesse sentido, a alma, para no
ser brbara, deve buscar compreender a gramtica das coisas, que envolve mais
do que as mltiplas experincias apreendidas pelos sentidos; envolve seu
contexto, sua trama ou articulao, a unidade do seu discurso. A interpretao
literal, por sua vez, se atm mais fortemente compreenso dos discursos verbais,
que, mais do que a ateno s meras palavras, deve envolver aquilo que
caracteriza o poder de compreender e aprender uma lngua: reconhecer que ela
um todo complexo e articulado, composto de uma pluralidade de elementos, a
saber, palavras. A lngua , como o cosmo, um fenmeno unitrio que engloba e
organiza uma vasta pluralidade de fenmenos subordinados. Ento, a
42 Essa interpretao se baseia no uso antigo de brbaroi, para designar as pessoas que no falam ou no compreendem a lngua grega, e nas associaes lingsticas do lgos. 43 Cf. C. H. Kahn, The Art and Thought of Heraclitus (op. cit.), p. 107; e Jonathan Barnes, The Presocratic Philosophers (London, Routledge and Kegan Paul, 1982), p. 148. 44 Cf. E. Hussey, Epistemology and Meaning in Heraclitus, in M. Schofield e M. C. Nussbaum (eds.), Language and Logos (Cambridge, Cambridge University Press, 1982), p. 34. 45 Cf. M. C. Nussbaum, Psych in Heraclitus, I (op. cit.), p. 209-210. 46 Cf. W. K. C. Guthrie, A History of Greek Philosophy (op. cit.), vol. 1, p. 415 e 429; e Hermann Frnkel, A Thought Pattern in Heraclitus, in A. P. D. Mourelatos (ed.), The Pre-Socratics (New York, Garden City, 1974), p. 217, n. 6.
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incompreenso da natureza da prpria lngua, em maior escala, equivale
incompreenso da natureza do cosmo.
De todo modo, parece que a linguagem que os homens de almas brbaras
falham em compreender se refere, em ambas as interpretaes, ao lgos comum,
que no precisa ser considerado de forma puramente literal ou puramente
metafrica. A compreenso do lgos revela, como mostra o fragmento 50, que
saber concordar que tudo um, que a unidade se encontra no seio da
multiplicidade. Certamente a psych brbara aquela que no compreende que os
opostos so unificados ou que tudo um. A psych brbara aquela que falha em
apreender a conexo entre as informaes dos sentidos, em atentar para a natureza
simultaneamente una e mltipla das coisas transitrias, portadoras de aspectos
diversos e opostos. Para fazer isso, uma psych deve compreender o lgos. E
compreender o lgos significa conhecer a lei que regula o vir a ser de todas as
coisas, lei que no pode se manifestar em outro mundo, mas que imanente ao
cosmo, podendo portanto ser apreendida por meio da observao acurada do
comportamento das coisas, contanto que cada aspecto desse comportamento no
seja considerado instantnea e isoladamente, e sim de modo detido e conectado.
Uma das indicaes mais fortes de que Herclito acredita que, ao menos
em parte, o conhecimento deve ser construdo sobre a experincia sensvel est no
fato de que ele apresenta, em diversos fragmentos, exemplos primeiramente
perceptveis da unidade dos opostos. Portanto, Herclito apresenta, em exemplos
recorrentes, o modo como se deve considerar as informaes dadas pelos sentidos:
nunca em sua dimenso meramente diversa e desconectada, mas sim atentando
para sua unidade, complementaridade, interconexo ou interdependncia.
Podemos ver, em tudo o que foi dito, que a psych heracltica ,
primeiramente e pela primeira vez, uma entidade capaz de atingir o conhecimento,
a saber, do lgos, que confere sabedoria. A possibilidade de analogia da psych
com o fogo, o paralelo entre microcosmo e macrocosmo, bem como o fato de a
psych possuir lgos mostram que o conhecimento do que comum, isto , o
conhecimento do lgos, humanamente possvel. Antes de Herclito, entendia-se
que os deuses possuam conhecimento universal, e que os mortais no o
possuam. Herclito parece concordar que um certo tipo de conhecimento
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essencialmente divino; entretanto, ele sustenta que esse tipo de conhecimento
tambm disponvel aos mortais, imputando s psychai um princpio divino de
inteligncia, a saber, o lgos.
Na concepo homrica, o conhecimento humano era caracterizado como
extremamente limitado em contraste com o conhecimento dos deuses.47 Entre as
bases dessa concepo de conhecimento estava a idia de que uma das relaes
capazes de produzir conhecimento a relao de contato direto entre aquele que
conhece e o objeto do conhecimento. Essa relao era concebida primariamente
em termos de viso, de modo que os objetos do conhecimento seriam
paradigmaticamente aquilo que algum v. O paradigma da viso se devia
distino entre o conhecimento mais seguro e preciso da testemunha ocular e o
ouvir dizer, isto , o conhecimento indireto ou de segunda mo transmitido
por algum que foi uma testemunha ocular. Conhecer, portanto, significava,
antes de mais nada, ter visto.
Uma conseqncia do paradigma da viso que pessoa mais sbia
aquela que viveu mais, viu mais, experimentou mais. Entretanto, mesmo o
conhecimento do homem mais sbio limitado. O homem mais sbio ainda
mortal, e pode apenas experimentar uma pequena frao da totalidade dos
fenmenos e acontecimentos. Portanto, somente os deuses, que so imortais e
vem todas as coisas, so verdadeiramente conhecedores e verdadeiramente
sbios. Em Homero, Zeus e Hlio, onividentes, so chamados para testemunhar a
fidelidade dos juramentos. As Musas, para Homero, presenciam e sabem tudo;
elas so superiores ao homem pelo fato de serem imortais e de presenciarem tudo
o que acontece.
Outra caracterstica desse modelo de contato direto que o
conhecimento, o entendimento, a opinio ou a compreenso que um homem
atinge eram concebidos simplesmente como apresentaes imediatas e
espontneas da viso. No havia nenhuma necessidade de distinguir a percepo
47 Nesta abordagem da concepo homrica do conhecimento, devo muito aos textos de Joel Wilcox, The Origins of Epistemology in Early Greek Thought: A Study of Psyche and Logos in Heraclitus (New York, The Edwin Mellen Press, 1994, p. 131-135), B. Snell (A Descoberta do Esprito, op. cit., p. 179-194) e J. H. Lesher (Early Interest in Knowledge, in A. A. Long (ed.), The Cambridge Companion to Early Greek Philosophy, op. cit., p. 225-49).
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sensvel de uma outra faculdade cognitiva, como por exemplo o julgamento, o
pensamento ou a razo, e a experincia sensvel era tomada como a espcie nica
e suficiente de cognio.48 Snell nota que, em Homero, o vocabulrio
epistemolgico diverso que contm tanto palavras aparentemente referidas ao
pensamento, como por exemplo noen, quanto palavras referidas claramente
viso, como horn e iden no vai contra essa generalizao.49 Palavras como
nos, em Homero, podem ser usadas para designar a experincia sensvel, que,
como j foi dito, leva imediatamente, e sem nenhum esforo ou atividade
espiritual, a um entendimento, uma compreenso, uma idia clara de algo.
Alm desse tipo de conhecimento, baseado na experincia pessoal
limitada, no contato direto e no modelo da viso, h tambm em Homero, e
marcadamente em Hesodo, o conhecimento transmitido aos homens pelos deuses,
que tudo sabem. A interveno e a inspirao divinas constituem a concesso,
feita pelos deuses e pelas Musas, de informaes ou poderes que fazem com que
os homens poetas, sacerdotes ou adivinhos passem a conhecer o que est para
alm de sua experincia ordinria. Os poetas no possuem, em si mesmos, a fonte
do conhecimento daquilo que dizem, no falam a partir de sua experincia pessoal
e direta, e sim cantam o que ouviram das Musas, o que estas acharam por bem
lhes revelar.
Na concepo homrica, ento, o conhecimento humano possvel, mas
limitado ao que se experimenta sensivelmente e ao que os deuses decidem
revelar. Alm disso, no h nenhuma distino entre a sensao e qualquer outra
faculdade ou processo cognitivo. A Odissia v as aparncias como algo que, s
vezes, pode encobrir a realidade. Entretanto, essas aparncias enganosas so, ou
disfarces, que no trazem tona a questo geral da veracidade da percepo ela
mesma, ou o resultado de uma neblina ou bruma divina que obscurece a realidade,
48 Wilcox argumenta que, se de um lado a Odissia apresenta o tema do engano e do reconhecimento, e cria uma distino entre percepo em geral e conhecimento, de outro, tanto o engano quanto o conhecimento so concebidos como tipos de percepo, e a aquisio do conhecimento (ou a falta dele) sempre condicionada externamente, por aquilo que algum encontra e v. Por exemplo, o disfarce de uma pessoa produz engano, enquanto a verdadeira aparncia de uma pessoa produz reconhecimento. Cf. J. Wilcox, The Origins of Epistemology (op. cit.), p. 133. 49 Cf. Snell , A Descoberta do Esprito, op. cit., p. 19-46.
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o que mostra que a interveno de um deus pode garantir ou impedir a percepo
de uma coisa ou situao.
Se, ento, o conhecimento e a percepo de aparncias so em parte
distinguidos, mas no atribudos a faculdades distintas em Homero, ocorre que a
possibilidade do conhecimento posta em dvida assim que a distino entre a
aparncia de uma coisa e sua verdadeira natureza aplicada, no apenas s coisas
que se apresentam disfaradas, e sim a todas as coisas. E isso o que acontece
em Xenfanes, que afirma redondamente, no fragmento 34:
Ningum sabe (den), ou jamais saber (eids), a verdade sobre
os deuses e sobre tudo aquilo de que falo: pois, ainda que, por acaso,
algum dissesse toda a verdade, mesmo assim no se daria conta
(ode) disso; mas a aparncia (dkos) est forjada sobre todas as
coisas.50
Este fragmento de Xenfanes provavelmente o mais controverso de
todos, o mais ardorosamente disputado desde a Antiguidade e o mais
freqentemente estudado. Alguns autores afirmam que possvel excluir o prprio
Xenfanes do ningum a que ele atribui a possibilidade de conhecer, tentando
romper sua ligao com o ceticismo.51 Entretanto, a maioria dos intrpretes
modernos sustenta que Xenfanes est dizendo, neste fragmento, que todos os
homens, incluindo-se a ele mesmo, ignoram a verdade sobre os deuses e sobre
tudo aquilo de que ele fala.
50 Fragmento 34, segundo a numerao de H. Diels e W. Kranz, Die Fragmente der Vorsokratiker: kai to men oun safej outij anvr iden oude tij estai eidwj amfi qewn te kai assa legw peri pantwn ei gar kai ta malista tuxoi tetelesmenon eitwn, autoj omwj ouk oide: dokoj d' epi pasi tetuktai. A traduo dos fragmentos de Xenfanes citados nesta tese foi retirada de G. S. Kirk e J. E. Raven, Os Filsofos Pr-Socrticos (Lisboa, Fundao Calouste Gulbenkian, 1979), p. 180. Vale notar que alguns autores traduzem dkos, neste fragmento, por crena, e outros, por opinio. possvel que Xenfanes acreditasse que a crena atribuda a todas as coisas ou que a opinio inevitvel precisamente por causa do vu ou da parcialidade das aparncias. A diferena entre a interpretao de dkos como aparncia e essas duas outras tradues parece estar na nfase dada, pela primeira, causa da ignorncia humana, em vez do destaque ao efeito dessa ignorncia. 51 Cf. S. Yonezawa, Xenophanes: His Self-Conciousness as a Wiseman and Fr. 34, in K. J. Boudouris (ed.), Ionian Philosophy (op. cit.), p. 432.
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Para muitos comentadores, a tese de Xenfanes sobre a impossibilidade
ou, segundo alguns, as limitaes irremediveis do conhecimento humano surge
a partir do seu empirismo.52 Segundo essa leitura, duas so as razes da crtica
de Xenfanes s opinies, crenas e teorias humanas. De um lado, essa crtica se
deve ao fato de que tais opinies e teorias vo alm da evidncia usada para as
formar e verificar, podendo fazer projees sobre fenmenos no vistos e podendo
falar sobre acontecimentos cuja natureza est alm da observao.53 De outro
lado, o problema est em que, para um homem, cada nova observao pode mudar
sua compreenso de uma situao ou de uma coisa. Para conhecer uma coisa ou
situao, ele teria de ver tudo o que nela relevante. Mas no h nada na
experincia sensvel que indique quando todas as informaes relevantes foram
adquiridas. Portanto, mesmo que um homem saiba e diga a verdade, no ter
como saber que o fez.
J o deus, segundo Xenfanes, conhece todas as coisas, o que pode ser
notado se observarmos os fragmentos 23 e 24.54 O deus de Xenfanes
experimenta todas as coisas. No h nada fora de sua experincia e, portanto, nada
pode surgir de novo que refute o que ele antes pensava. O termo noen e seus
derivados s so usados em Xenfanes para descrever o conhecimento divino, e
nunca para descrever o conhecimento humano. Como vimos, em Homero, o verbo
noen era usado para designar a visualizao ou compreenso instantnea e
completa de uma situao, e no o uso do raciocnio que, gradualmente, nos
52 Este exame do problema do conhecimento em Xenfanes se baseia principalmente nos trabalhos de M. McCoy, Xenophanes Epistemology: Empiricism Leading to Skepticism, in K. J. Boudouris (ed.), Ionian Philosophy (Athens, International Association for Greek Philosophy, 1989), 235-240; J. H. Lesher, Xenophanes Scepticism, in J. P. Anton (ed.), Essays in Ancient Greek Philosophy (Albany, State University of New York Press, 1983), vol. 2, p. 20-40, e C. J. Classen, Xenophanes and the Tradition of Epic Poetry, in Ionian Philosophy, op. cit., p. 91-10. 53 Testemunhos antigos, como o de Hiplito, mostram que Xenfanes tentou evitar qualquer postulado concernente a entidades que esto alm de nossa experincia. Para ele, no seria vlido atribuir qualquer natureza a uma coisa que est alm de nossa possibilidade de observao. No fragmento 34, as aes representadas pelo grupo de palavras den (viu/sabe), eids (saber/ter visto), ode (sabe/se d conta/viu) revelariam que nenhum homem tem um conhecimento completo das coisas. 54 Fr. 23: Existe um s deus, o maior dentre os deuses e os homens, em nada semelhante aos mortais quer no corpo quer no pensamento. (eij qeoj, en te qeoij kai anqrwpoisi megistoj, outi demaj qnvtoisin omoiioj oude novma). Fr. 24: Todo ele v, todo ele pensa (noe), e todo ele ouve. ouloj ora, ouloj de noei, ouloj de t' akouei.
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levaria a uma tal visualizao. Mas Homero no usou noin como representativo
de um tipo imparcial de conhecimento; um homem v o que est diante dele
como uma oportunidade ou como uma ameaa. Por isso, o nous sempre plural
para cada situao, e no est ligado a uma verdade nica, visto que o prejuzo
para um homem consiste em lucro para outro.
Xenfanes abandona o noen homrico, que est ligado a interesses e
perspectivas, em favor de um noen que baseado em uma perspectiva total,
imparcial, universal. Para atribuir a deus esse noen universal, Xenfanes no
lhe imputou apenas a totalidade das experincias, mas tambm a imparcialidade, o
que explica, ao menos em parte, o abandono dos deuses homricos, que disputam
entre si e tomam diferentes partidos nas disputas humanas. O deus de Xenfanes
no tem vrios noi, intenes e perspectivas; ele tem uma nica perspectiva,
que total, universal e imparcial.
Em Homero a limitao do conhecimento humano se deve ao fato de que
o homem mortal, e por isso no pode conhecer todas as coisas e acontecimentos.
J em Xenfanes, alm dessa limitao, o homem no tem a garantia de conhecer
sequer uma coisa ou situao em sua totalidade, pois s tem, em suas
experincias, perspectivas ou apreenses parciais e momentneas, sem ter o
critrio que garanta que suas perspectivas so suficientes, isto , so tais que lhe
apresentam a totalidade dos dados relevantes para uma apreenso completa. A
idia de Xenfanes de que a percepo no apreende a realidade como ela
verdadeiramente isto , de que a aparncia/opinio est em toda parte e de
que os homens no so dotados de nos o leva a afirmar que nenhum homem
atingiu o conhecimento ou a verdade. O conhecimento escapa aos homens, pois o
critrio ltimo de verdade est fora de seu alcance, de modo que eles no podem
aplic-lo em sua compreenso da realidade.
As snteses supracitadas das concepes de conhecimento de Homero e
Xenfanes permitem que o pensamento de Herclito seja compreendido em
relao a uma parte, ao menos, de seu contexto histrico. Herclito certamente
conheceu e criticou as idias de Homero e Xenfanes, o que fica claro em suas
menes explcitas a esses dois autores. No fragmento 56, lemos: Ludibriados
so os homens no conhecimento das coisas aparentes, como Homero, que foi o
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mais sbio de todos os helenos. Pois ludibriaram-no meninos, a matar piolhos,
falando-lhe: quantas coisas vimos e catamos, largamo-las; quantas no vimos
nem pegamos, levamo-las. E o fragmento 40 diz: Muito aprendizado no
ensina saber, pois teria ensinado a Hesodo e a Pitgoras, tambm a Xenfanes e a
Hecateu. Para Herclito, a polimathia no ensina sabedoria (fragmento 40), e no
se pode alcanar o conhecimento apenas por meio de uma ampla experincia.
Herclito concorda com Homero e Xenfanes num ponto: o homem no
pode ser uma testemunha ocular universal (posto que no onipresente nem
imortal). Mas isso no impe limitaes irrevogveis, nem impossibidade ao seu
conhecimento. Em lugar do ideal da experincia irrestrita, que garante o
conhecimento divino e impede o conhecimento humano em Homero e Xenfanes,
Herclito assevera o conhecimento do lgos, universalmente presente, que torna
possvel a compreenso crucial de que cada coisa uma unidade de opostos e de
que a multiplicidade e o movimento, com lei e medida, conferem, ao cosmo,
unidade e permanncia. Portanto, podemos dizer que Herclito faz entrar em
colapso a distino entre a extrema limitao humana e a oniscincia divina,
distino esta em que um certo pessimismo e ceticismo tradicionais se haviam
baseado.
Herclito, em contraste com Xenfanes e Homero, atribui um nos
comum ao homem, afirmando, no fragmento 114, que o homem pode falar com
saber (xn no). Ele tambm rejeita a idia de que o conhecimento
necessariamente limitado e se reduz ao que se experimenta com os sentidos ou s
opinies que simples e isoladamente expressam ou afirmam o que se
experimentou com os sentidos. No fragmento 1, Herclito mostra que, para que
um homem possa fornecer uma explicao acurada de cada coisa, ele deve tanto
conhecer o lgos segundo o qual todas as coisas vm a ser, quanto distinguir cada
coisa segundo a phsis (natureza). Alm das afirmaes de Herclito a respeito do
lgos comum, seus enunciados sobre a escuta da phsis e a distino das coisas
segundo a phsis podem nos ajudar a entender o porqu de Herclito considerar
que os homens so capazes de obter conhecimento, e no apenas um entendimento
privado e limitado sobre o mundo.
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2.4
Herclito e a escuta da phsis
O fragmento 112 de Herclito diz que bem-pensar a maior virtude, e
sabedoria dizer coisas verdadeiras e agir de acordo com a natureza (phsis),
escutando-a.55 Assim como, no fragmento 50, o lgos aquilo a que se deve dar
ouvidos, aqui a phsis que deve ser escutada. ouvindo a phsis que o homem
age e fala com sabedoria. Um bom ponto de partida para examinarmos a
concepo de Herclito de que possvel ouvir, compreender e distinguir a
natureza (phsis) das coisas o fragmento 1. Ali ele afirma que, ao contrrio dos
outros homens, que parecem inexperientes em suas palavras e aes embora as
experimentem, distinguir cada coisa segundo a natureza, enunciando como se
comporta. Embora a noo de phsis em Herclito e nos demais pr-socrticos
seja de suma importncia56 e de difcil resumo, vale oferecer uma interpretao
breve e razovel desse termo, para que entendamos ao menos algumas
conseqncias da afirmao de Herclito de que ele distinguir as coisas segundo
a phsis.
A palavra phsis traduzida em geral por natureza, e derivada do
verbo phyomai/phy, que na voz mdia significa crescer, brotar, nascer,
vir a ser e na voz ativa fazer brotar, fazer nascer, produzir. Seu sufixo -
sis significa a realizao do ato verbal de nascer, brotar, constituir-se, e no
o simples resultado desse ato. Por isso a palavra phsis, de acordo com sua
etimologia, contm a idia de devir e implica a noo dinmica de uma fora
produtiva, geradora. Sua traduo latina natura, que designa a ao de fazer
nascer, a nascena, o nascimento.
55 Fragmento 112: swfronein a)reth\ megisth, kai sofih a)lhqe/a le/gein kai poiein kata\ fu/sin e)pai+ontaj 56 O termo phsis, que s aparece uma vez em Homero e nenhuma em Hesodo, ser encontrado em mais de duzentas passagens dos fragmentos dos pr-socrticos. Cf. Henrique G. Murachco, O Conceito de Physis em Homero, Herdoto e nos Pr-Socrticos, Hypnos (So Paulo, Educ/ Palas Athena, ano 1, n. 2, 1996), p. 11-22.
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Como muitos notaram, esse sentido bsico de phsis se conecta com o
anseio dos pr-socrticos de encontrar a explicao sobre a origem e a
constituio do cosmo e de seus fenmenos mltiplos, no mais em foras ou leis
externas ao cosmo, transcendentes aos fenmenos naturais, e determinadas pelo
capricho dos deuses, e sim em leis imanentes, intrnsecas ao prprio cosmo.
Mas vale tambm observar que, se de um lado todos os pr-socrticos definem a
phsis guardando um certo parentesco com o sentido original do termo e
apresentando afinidades entre si, de outro lado cada pr-socrtico especializa e
concebe de forma distinta o seu significado.
Conche oferece um sumrio das tradues e interpretaes de phsis nos
fragmentos de Herclito, mostrando que, segundo diferentes intrpretes, o termo
deve ser entendido como a natureza essencial, a essncia, aquilo que uma
coisa foi, e ser sempre, a constituio de cada coisa, o conjunto de
elementos ou aspectos que compe o todo que uma coisa. Mas esse autor
tambm lembra, com toda razo, que, embora a idia de devir possa no estar em
primeiro plano em todos os fragmentos de Herclito onde o termo phsis
mencionado, h fragmentos como, por exemplo, o 123, Natureza ama ocultar-
se57 , em que phsis claramente acentua a noo de um dinamismo constituinte,
e no a idia de uma essncia ou constituio fixa ou fixada. Quando o fragmento
123 diz que a phsis ama, busca ou tende a ocultar-se, isso envia a uma atividade
da phsis. A phsis se oculta, ocultando o seu gesto, a sua operao produtiva,
constituinte, e mostra, na imediatidade de nossa lida com as coisas, apenas o
resultado desse gesto.58
Segundo essas consideraes, a phsis para Herclito seria a constituio
de cada coisa sua estrutura ou natureza , no apenas entendida como os seus
elementos constituintes, mas tambm como a sua dinmica prpria, as
possibilidades do seu devir e do seu comportamento, enfim, aquilo que determina
o que uma coisa de fato, e no apenas circunstancialmente. Quando Herclito
afirma conhecer e poder distinguir cada coisa segundo a phsis, parece evidente
que ele est afirmando que pode conhecer a realidade e que seu conhecimento
57 Fragmento 123: fu/sij kru/ptesqai filei. 58 Cf. M. Conche, Hraclite: Fragments (op. cit.), p. 253-254.
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no pode ser limitado pelo perspectivismo ou por qualquer outro impedimento
comunidade ou universalidade. Entretanto, temos de examinar o modo como
Herclito justifica a possibilidade de conhecer a phsis das coisas.
Como vimos, o fragmento 123 enfatiza que a phsis tende a se esconder,
encobrir, ocultar. J o fragmento 54, Harmonia inaparente mais forte que a do
aparente,59 sugere, como a maioria dos intrpretes nota, que a harmonia
inaparente ou invisvel se refere phsis, e a harmonia aparente se refere ao
cosmo, que visvel, tangvel e ordenado. O fato de uma harmonia ser mais forte
do que a outra nos remete idia de que a ordem visvel do cosmo determinada
e causada por sua phsis, sua natureza, sua constituio. Portanto, a harmonia
aparente um efeito da harmonia inaparente.
Harmonia um conceito muito caro a Herclito, e se refere a um dos
temas mais recorrentes nos fragmentos: a unidade dos opostos. O fragmento 8, um
dos que versam sobre a harmonia, diz: Ignoram como o divergente consigo
mesmo concorda: harmonia de movimentos contrrios, como do arco e da lira.60
O arco tensiona as cordas da lira e, como resultado dessa tenso de foras, salta a
msica, a mais bela harmonia. Herclito afirma, em diversos fragmentos usando
e considerando correlatas as noes de harmonia e guerra , a existncia de
uma tenso ou luta que une os opostos, torna-os interdependentes,
complementares, mas ainda assim mltiplos e distintos. Se a phsis a harmonia
inaparente do cosmo o que parece ser uma interpretao razovel dos
fragmentos 123 e 54 tomados conjuntamente , podemos dizer que a phsis a
tenso entre foras opostas, tenso que determina o comportamento de cada coisa.
Se a phsis ou harmonia inaparente tende a se esconder, deve haver algo
com que se cubra, algo por trs do que se encubra. Portanto, Herclito parece
aceitar a idia de que as aparncias tendem a encobrir a realidade, a real
constituio das coisas, a sua phsis. Entretanto, como foi visto no captulo
anterior, Herclito no parece afirmar que o que percebemos com os sentidos, a
59 Fragmento 54: a(rmoni/h a)fanh\j fanerh=j krei/ttwn. 60 Fragmento 8: ou) cunia=sin o(/kw diafero/menon e(wut%= o(mologe/ei pali/ntropoj a(rmoni/h o(/kwsper to/cou kai\ lu/rhj.
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saber, as aparncias, seja por si s necessariamente enganoso. O fragmento 55,
como havamos visto, mostra que Herclito tem os sentidos em alta conta. Poder-
se-ia esperar que a aceitao de que as aparncias tendem a esconder a realidade
implicaria a negao de que as aparncias no so enganosas e so a base do
conhecimento. Se a verdadeira natureza das coisas est escondida, camuflada,
ento h uma diferena entre o que simplesmente percebido e o que realmente
o caso. Mas Herclito no condenar, por isso, a sensao. Portanto, como
conciliar a aparncia fruto da sensao e a phsis?
Uma das maneiras de se compreender essa conciliao seguindo os
indcios, j vistos, de que o lgos e a phsis so imanentes ao cosmo. Portanto,
no h outro mundo em que possam se manifestar. Se o fragmento 123 afirma
que a phsis ama ocultar-se, no assevera, entretanto, que ela completamente
oculta, inacessvel, incognoscvel. Muito pelo contrrio, como mostra o fragmento
1, Herclito usar seu conhecimento da phsis para descrever o comportamento de
cada coisa. Portanto, se a phsis deve, de algum modo, se manifestar, ela s
poder faz-lo no, e por meio do, cosmo, o nico mundo, o mundo comum.
Se Herclito afirma que a phsis de cada coisa equivale harmonia
marcada pela unidade dos opostos, podemos notar o porqu de a sensao (que
inclui as opinies imedia e isoladamente produzidas, que nada mais fazem alm
de afirmar as informaes apreendidas pelos sentidos) ser insuficiente para a
aquisio do seu conhecimento. As sensaes, se tomadas isoladamente, do
apenas informaes parciais, instantneas, sobre as coisas; e a compreenso que
no consistir em nada mais que a afirmao das sensaes constituir, tambm,
uma compreenso parcial, privada, e alheia tenso entre os diferentes aspectos
das coisas.
Herclito no considera que a totalidade das experincias seja adquirvel
pelo homem, e afirma que a quantidade de experincias no gera saber. Vale
lembrar o que o fragmento 40 afirma sobre a polimathia. Entretanto, se grande
quantidade de experincias e perspectivas sobre uma coisa no garante o seu
conhecimento, alguma parcela de experincias garante ao menos algumas
informaes acuradas sobre instantes diversos de seu comportamento. E, para
entender que as diferentes perspectivas informam, na verdade, a complexidade
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natural das coisas e o jogo de opostos p