Henry Rousso - O Arquivo ou Ind+¡cio de uma Falta

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    Revista Estudos Histricos, Rio de Janeiro, n. 17, 1996

    O ARQUIVO OU O INDCIO DE UMA FALTA

    Henry Rousso

    Desde o surgimento, no sculo XIX, do mtodo crtico e do historiador profissional, a questodo "arquivo" no mais deixou de ocupar um lugar central nos debates historiogrficos. A evoluo dahistria, que se tornou uma disciplina que recorre aos mtodos das cincias sociais, especialmente aentrevista, e o surgimento recente de uma "histria do tempo presente", que implica a confrontaodireta e o dilogo permanente com os vestgios vivos do passado - a memria dos atores -, modificaramde alguma maneira o debate clssico sobre a noo de "arquivo". A isso veio se somar uma mudanaradical no plano epistemolgico, com o aparecimento, nos ltimos trinta anos, de paradigmas que negam histria sua pretenso de captar o real, definindo-a como - e s vezes reduzindo-a a - uma narrativasubjetiva, na qual o estabelecimento da prova, portanto o uso do arquivo, no constitui mais a base naqual ela pode legitimamente se apoiar.

    Mas, ao mesmo tempo, o desejo cada vez mais explcito na opinio pblica de uma histria"positiva", baseada em provas irrefutveis, especialmente para perodos ou acontecimentos trgicos do

    sculo XX, tem incessantemente acuado os historiadores, obrigando-os a uma abordagem cada vezmais prudente dos arquivos, remetendo-os mais uma vez a uma pergunta ancestral e contudoincontornvel: como chegar verdade do passado, se que isso possvel? Basta ver o vigor dosdebates recentes, seu carter irracional, carregado de ideologia, ou at mesmo de fantasias, sobre osarquivos contemporneos, sua inacessibilidade real ou presumida, a expectativa em relao a eles, paracompreender que o problema ultrapassa o meio dos arquivistas, dos conservadores ou doshistoriadores e tem a ver hoje em dia com o espao pblico mais amplo. Isso fica especialmente claroem relao histria da Segunda Guerra Mundial ou do sistema sovitico, cuja queda acarretou umsbito acesso (ainda assim limitado) a jazidas documentais que durante dcadas se acreditou estarementerradas para todo o sempre nas gavetas secretas das burocracias totalitrias. Em outras palavras,exatamente no momento em__________________

    Nota : Esta traduo de Dora Rocha.

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    que toda uma corrente intelectual, inscrita na "ps-modernidade", denunciava a possibilidade de uma

    restituio objetiva do passado, baseada em vestgios tangveis, a demanda social por uma histria quediga a verdade, que exija uma maior "transparncia" em relao aos arquivos mais recentes, tornou-secada vez mais premente.

    Essa tenso contempornea nem por isso relega feira de antiguidades as questes tradicionaissuscitadas pelo uso de arquivos. Ao contrrio, essas questes podem permitir, num certo sentido,reenquadrar os termos do debate.

    A utilizao de um "arquivo" pelos historiadores s pode ser compreendida sob a luz da noode "fonte". Chamaremos de "fontes" todos os vestgios do passado que os homens e o tempoconservaram, voluntariamente ou no - sejam eles originais ou reconstitudos, minerais, escritos,sonoros, fotogrficos, audiovisuais, ou at mesmo, daqui para a frente, "virtuais" (contanto, nesse caso,que tenham sido gravados em uma memria) -, e que o historiador, de maneira consciente, deliberada e justificvel, decide erigir em elementos comprobatrios da informao a fim de reconstituir umaseqncia particular do passado, de analis-la ou de restitu-la a seus contemporneos sob a forma deuma narrativa, em suma, de uma escrita dotada de uma coerncia interna e refutvel, portanto de umainteligibilidade cientfica.

    Se admitirmos essa definio inicial, o "arquivo" no sentido comum do termo, isto , odocumento conservado e depois exumado para fins de comprovao, para estabelecer a materialidade

    de um "fato histrico" ou de uma ao, no passa de um elemento de informao entre outros. Adificuldade consiste ento em distinguir as fontes - os vestgios - umas das outras, a fim de determinaraquelas que permitem uma abordagem racional do passado. Isso implica uma escolha das fontes maispertinentes, no por elas mesmas, mas em funo das perguntas que o observador se faz previamente.Se tomarmos duas das fontes mais comuns da histria do tempo presente - o testemunho oral e odocumento escrito obtido nos fundos de arquivos pblicos ou privados -, poderemos ilustrar a naturezados problemas encontrados pelos historiadores diante de seu material usual.

    O testemunho colhidoa posteriori , por sua prpria natureza, uma das caractersticas dahistria do tempo presente. Ele leva criao de uma fonte singular na medida em que destinada desde

    o incio seja a formar um arquivo, no sentido de conservar - eis aqui a memria de tal indivduo ou de talgrupo -, seja a alimentar uma pesquisa especfica. Nos dois casos, essa fonte est intrinsecamente ligadaao questionamento preciso do arquivista ou do historiador, voltada para um acontecimento, umindivduo, um determinado processo histrico, e entra em sinergia ou em oposio com o discurso doator assim erigido em "testemunha".

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    O documento escrito (carta, circular, auto etc.) proveniente de um fundo de arquivo foi por sua

    vez produzido por instituies ou indivduos singulares, tendo em vista no uma utilizao ulterior, e sim,na maioria das vezes, um objetivo imediato, espontneo ou no, sem a conscincia da historicidade, docarter de "fonte" que poderia vir a assumir mais tarde. quase um trusmo lembrar que um vestgio dopassado raramente o resultado de uma operao consciente, capaz de se pensar enquanto vestgio, eno enquanto ao inscrita no seu tempo, e portanto capaz de antecipar o olhar que lanaro sobre eleas geraes futuras, ainda que s vezes exista em alguns atores a vontade de deixar rastros de suapassagem. Mas mesmo que alguns homens, pequenos ou grandes, tentem escrever em vida uma partede sua histria e influir sobre as narrativas futuras, raras so as iniciativas desse gnero que resistem alteridade do tempo ou do olhar dos descendentes, tanto assim que as narrativas do passado, mesmode natureza mtica ou legendria, no podem hoje se livrar completamente da crtica, ela prpriaconseqncia da afirmao de uma histria com pretenso cientfica que modificou singularmente, aomenos nas sociedades ocidentais, leigas e seculares, a abordagem que uma coletividade faz de seupassado.

    A diferena de estatuto entre essas duas fontes salta imediatamente aos olhos. Elas no soproduzidas na mesma hora: uma contempornea dos fatos, a outra posterior; elas no tm as mesmascondies de abundncia, j que nenhuma pesquisa oral, mesmo sistemtica, pode rivalizar com amassa de documentos de todo tipo produzidos pelo mais insignificante organismo, sobretudo pblico;

    elas no tm as mesmas finalidades: uma de carter memorial, pretende ser um vestgio induzido,consciente e voluntrio do passado; a outra funcional antes de ser vestgio, tanto verdade queningum pode prever com certeza se este ou aquele documento ser conservado ou no, e por quantotempo.

    A esta altura, poder-se-ia crer que o que pretendemos , por caminhos tortuosos, opor maisuma vez o testemunho oral e o arquivo escrito, e levantar a questo, banal e recorrente, de suarespectiva confiabilidade, a fim de determinar qual dos dois teria mais valor para o conhecimentoobjetivo do passado. Ora, ainda que se trate a de um debate real, no esse o nosso objetivo. Aocontrrio, queremos menos sublinhar as diferenas que evidenciar as caractersticas comuns a toda fonte

    histrica e, dessa forma, convidar reflexo no sobre o mtodo histrico e as tcnicas do historiador,mas antes sobre os prprios fundamentos da atividade historiadora.

    Um testemunho colhido ou um documento conservado s deixam de ser vestgios do passadopara se tornarem "fontes histricas" no momento em que um observador decide erigi-los como tais.Toda fonte uma fonte "inventada", assim como todo "indivduo histrico", no sentido em que falavaMax Weber, uma construo, um tipo ideal. A "narrativa histrica" comea com o estabelecimento de

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    umcorpus coerente, inteligvel sob o ponto de vista de uma investigao precisa, e no sob o ponto de

    vista de um passado que se pretenderia simplesmente restituir em sua verdade recndita. Em outraspalavras, a constituio da narrativa no a etapa final - o livro de histria - a que se chega depois deacumulada a documentao; intrnseca ao prprio procedimento daquele que interroga o passado. Anarrativa comea com as hipteses, a formulao das perguntas e o estabelecimento de umcorpus , umaoperao fundamental de seleo que no pode ser desvinculada do objetivo final, mesmo que oresultado possa estar muito distante das intuies do incio. Isso no significa que o vestgio no encerreuma verdade intrnseca, ou que o real seria inacessvel, mas induz a no pensarmos a "fonte" fora dapergunta e do olhar do historiador que, como um cineasta que desloca seus refletores e suas objetivasao longo dos planos, vai esclarecer de maneira parcial uma seqncia do passado, vai, ele tambm,criar um vestgio, deixar uma marca, uma mediao. Simplificando, raro que dois historiadores que sefazem a mesma pergunta sobre um mesmo acontecimento ou um mesmo perodo estabeleamcorpus idnticos e construam seu(s) fato(s) da mesma maneira - o que no diminui em nada, se seuprocedimento for rigoroso, a confiabilidade de seu trabalho.

    Escrito, oral ou filmado, o arquivo sempre o produto de uma linguagem prpria, que emana deindivduos singulares ainda que possa exprimir o ponto de vista de um coletivo (administrao, empresa,partido poltico etc.). Ora, claro que essa lngua e essa escrita devem ser decodificadas e analisadas.Mas, mais que de uma simples "crtica interna", para retomar o vocabulrio ortodoxo, trata-se a de uma

    forma particular de sensibilidade alteridade, de "um errar atravs das palavras alheias", para retomar afeliz expresso de Arlette Farge.1 esse encontro entre duas subjetividades o que importa, mais que oterreno sobre o qual ele se d ou o tipo de rastro que o torna possvel atravs do tempo.

    Nesse sentido, muitas vezes esquecemos que muitos arquivos escritos no passam eles prpriosde testemunhos contemporneos ou posteriores aos fatos, dotados de um componente irredutvel desubjetividade e de interpretao que sua condio de "arquivo" absolutamente no reduz: o caso dosautos policiais - para tomar apenas um exemplo entre os arquivos ditos "sensveis" -, que muitas vezesso apenas o resultado de transcries escritas e conservadas de depoimentos orais que foram objetode uma mediao, de uma narrativa, a qual no pode seno alterar a declarao original feita pelo ator

    ou a testemunha interrogada. A escrita, a impresso, portanto a possibilidade de um documento resistirao tempo e acabar um dia sobre a mesa do historiador no conferem a esse vestgio particular umaverdade suplementar diante de todas as outras marcas do passado: existem mentiras gravadas nomrmore e verdades perdidas para sempre.

    1 Arlette Farge, Le got de l'archive , Seuil, 1989, p. 147.

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    Da mesma forma, todo depoimento ou todo documento exige, para ser significativo, uma

    recontextualizao - especialmente no caso do arquivo escrito - que implica que sejam examinadassries mais ou menos completas para se compreender a lgica, no tempo e no espao, do ator ou dainstituio que produziu este ou aquele documento. um tanto incmodo lembrar algo to bvio, masesse um problema capital na mediatizao (no sentido jornalstico do termo) cada vez mais freqentehoje em dia de certos documentos histricos, obtidos ao acaso de uma pesquisa ou de uma "revelao"espontnea: no apenas esses procedimentos levam a sentidos equivocados, e at mesmo a errosgraves de interpretao, como fazem crer que a verdade de um acontecimento decorreria da leituraprimria e imediata de um documento que se supe ser decisivo, comprobatrio e definitivo. Essesprocedimentos bastante conhecidos (lembremos novamente dos arquivos de Vichy ou da KGB) tm oefeito de arrastar os historiadores para um terreno que se acreditava estar abandonado h muito tempo,o de um positivismo rasteiro, estranho a qualquer construo ou questionamento, quando a evoluo dadisciplina voltou definitivamente as costas para essas concepes ultrapassadas. essa tenso entreuma histria que procura se situar em nveis de elaborao cada vez mais sofisticados (s vezes atdemais) e uma expectativa da opinio pblica (e de alguns membros da academia) por provas definitivasque torna hoje o trabalho do historiador e o debate sobre os arquivos to complexos: tivemos inmerosexemplos com a histria do Genocdio, uma escrita em si mesma rdua, que foi acompanhada de umademanda, at mesmo de uma presso, para que se enfrentasse as iniciativas negacionistas situando-se

    no terreno exclusivo da prova material, como o demonstram por exemplo os debates em torno do livrode Jean-Claude Pressac sobre os fornos crematrios de Auschwitz.2 Poderamos retomar o mesmoargumento a propsito dos arquivos soviticos, que, segundo nos dizem alguns historiadores, devem serobjeto de um exame sistemtico e exaustivo, independente de qualquer grade de leitura, sob o pretextoum tanto estranho da "urgncia", partindoa priori do princpio de que esses arquivos vo provocar umarevoluo no conhecimento do mundo comunista, e quem sabe at de toda a histria do sculo XX.3

    Finalmente, o testemunho assim como o arquivo dito escrito revelam por sua prpria existnciauma falta, idia esta tomada emprestada a Michel de Certeau. O vestgio , por definio, o indciodaquilo que foi irremediavelmente perdido: de um lado, por sua prpria definio, o vestgio a marca

    de alguma coisa que foi, que passou, e deixou apenas o sinal de sua passagem; de outro, esse vestgioque chega at ns , de maneira implcita, um indcio de tudo aquilo que no deixou lembrana e pura esimplesmente desapareceu... sem deixar vestgio - todos os arquivistas sabem que perto de nove

    2 Jean-Claude Pressac, Les crmatoires d'Auschwitz. La machinerie du meurtre de masse , CNRS ditions, 1993.

    3 Ver principalmente Simone Courtois e a abordagem mais reconfortante em termos intelectuais de Nicolas Werth.

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    dcimos dos documentos so destrudos para um dcimo conservado. Que historiador um dia no foi

    tomado de desespero diante da tarefa que o espera e dos milhes de documentos a serem lidos, para,no dia seguinte, ser tomado de vertigem diante de tudo o que jamais poder saber, de tudo o que nuncaser nem "memria", nem "histria"?

    Partindo destas obsevaes um tanto sumrias, podemos nos prevenir contra o fetichismo dodocumento, to difundido em nossos dias, e que caminha lado a lado com a obsesso, igualmentesuspeita, de uma transparncia absoluta - uma palavra que alis problemtica, pois tornar algumacoisa transparente tambm torn-la invisvel... Nenhum documento jamais falou por si s: este semdvida o clich mais difcil de combater e o mais difundido, sobretudo no que se refere aos arquivosditos "sensveis". Existe um abismo entre aquilo que o autor de um documento pde ou quis dizer, arealidade que esse documento exprime e a interpretao que os historiadores que se sucedero em sualeitura faro mais tarde: um abismo irremedivel, que deve estar sempre presente na conscincia poisassinala a distncia irredutvel que nos separa do passado, essa "terra estrangeira".4 O trabalho dohistoriador por definio uma operao seletiva, que depende do que foi efetivamente conservado,depende da sua capacidade pessoal e se inscreve num contexto particular. Enfim, e isto a meu veressencial, nenhuma pesquisa oral conduzida por um historiador, nenhum trabalho de seleo de arquivospode ser feito sem um mnimo de questionamentos e de hipteses prvias, mas tampouco - e e este um dilema real - deve se fechar surpresa da descoberta. preciso, portanto, deixar os caminhos

    conhecidos, olhar para aquilo que no se pretendia vera priori , como um "errante", para retomar aexpressiva imagem de Arlette Farge.5 Evidentemente isso significa que o historiador ou o arquivistadevem poder ter acesso ao maior nmero possvel de fontes - e aqui se encaixa o debate sobre ofechamento consulta de certos arquivos, sobre as "derrogaes", em suma, sobre as condies nasquais se exerce a prtica profissional da histria -, mas significa tambm que nenhum debate sobre aescrita da histria ou sobre a relao com o arquivo pode se furtar a esta pergunta temvel: qual apergunta para a qual o historiador procura uma resposta e quais so as fontes mais pertinentes pararesponder a ela? O acesso aos arquivos, por mais liberal e amplo que seja, nos dipso facto a chavedo passado? Inversamente, a ausncia de documentos ou a impossibilidade de acesso a eles nos privam

    realmente de toda forma de conhecimento sobre este ou aquele aspecto da Histria? Acessveis oufechados, os arquivos so o sintoma de uma falta, e a tarefa do historiador consiste tanto em tentar

    4 David Lowenthal,The past is a foreign country , Cambridge University Press, 1985.

    5 Arlette Farge, op. cit., p. 88.

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    supri-la, em se inscrever num processo de conhecimento, quanto em tentar exprimi-la de maneira

    inteligvel, a fim de reduzir o mximo possvel a estranheza do passado.(Recebido para publicao em maio de 1996)