Habermas Para a Terapia Ocupacional Social

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Autor para correspondência: Regina Célia Fiorati, Curso de Terapia Ocupacional, Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto, Universidade de São Paulo, Av. Bandeirantes,3900, CEP 14049-900, Ribeirão Preto, SP, Brasil, e-mail: [email protected] Recebido em 25/1/13; 1ª Revisão em 14/5/2013; 2ª Revisão em 4/7/2013; Aceito em 15/7/2013. ISSN 0104-4931 Cad. Ter. Ocup. UFSCar, São Carlos, v. 22, n. 2, p. 443-453, 2014 http://dx.doi.org/10.4322/cto.2014.066 Resumo: Introdução: Trata-se de uma reflexão crítica sobre a contribuição do referencial filosófico de Jürgen Habermas para a prática social em Terapia Ocupacional. A Terapia Ocupacional em Contextos Sociais tem se consolidado promovendo atenção a pessoas, grupos e população em vulnerabilidade social que, a partir de uma dada orientação político-econômica, integra uma zona de pobreza, desemprego e ruptura com as redes de suporte social. Objetivo: Discutir sobre as contribuições da Teoria da Ação Comunicativa de Habermas para a Terapia Ocupacional em Contextos Sociais, através da noção de consensos fundados como instâncias de entendimento mútuo entre homens e mulheres sobre algo no mundo da vida. Metodologia e discussão: Busca-se apresentar a reflexão proposta mostrando-se como a filosofia habermasiana revela-se útil na construção de estratégias de enfrentamento das problemáticas sociais através da formação de consensos democráticos para a produção de projetos de ação, com base na proposta de formação intersetorial entre âmbitos da administração pública e da sociedade civil. Ainda, enfoca-se a experiência da Terapia Ocupacional no Campo Social que o Curso de Terapia Ocupacional da USP de Ribeirão Preto vem realizando junto a pessoas em situação de rua e que vem propondo a estratégia da intersetorialidade para a elaboração de políticas publicas e estratégias de ação no combate à pobreza e vulnerabilidade social. Palavras-chave: Vulnerabilidade Social, Terapia Ocupacional, Assistência Social, Políticas Públicas, Democracia. e contribution of the critical hermeneutic of Jürgen Habermas to social occupational therapy Abstract: Introduction: This critical reflection addresses the contribution of the philosophical framework of Jürgen Habermas to the social practice of occupational therapy. Occupational therapy has been consolidated in social contexts providing care to people, groups and populations in situations of social vulnerability, which according to a political-economic orientation, includes poverty, unemployment, and ruptured social support networks. Objective: To discuss the contributions of Habermas’s Theory of Communicative Action to occupational therapy in social contexts through the notion of consensus, founded as a forum of mutual understanding between males and females about something in the world of life. Method and discussion: We also seek to propose a reflection showing how Habermas’s theory is useful in the construction of coping strategies to deal with social issues, through democratic consensus toward the production of action projects based on inter-sector cooperation between public administration and civil society. We also focus on the experience of occupational therapy in the social field that the Occupational Therapy program administered by the University of Sao Paulo - USP at Ribeirao Preto has carried out with homeless individuals and proposed a strategy of inter-sector cooperation to develop public policies and action strategies to fight poverty and social vulnerability. Keywords: Social Vulnerability, Occupational Therapy, Social Assistance, Public Policies, Democracy. A contribuição da hermenêutica crítica de Jürgen Habermas para a Terapia Ocupacional Social Regina Célia Fiorati Curso de Terapia Ocupacional, Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto – FMRP, Universidade de São Paulo – USP, Ribeirão Preto, SP, Brasil Artigo de Reflexão

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  • Autor para correspondncia: Regina Clia Fiorati, Curso de Terapia Ocupacional, Faculdade de Medicina de Ribeiro Preto, Universidade de So Paulo, Av. Bandeirantes,3900, CEP 14049-900, Ribeiro Preto, SP, Brasil, e-mail: [email protected] em 25/1/13; 1 Reviso em 14/5/2013; 2 Reviso em 4/7/2013; Aceito em 15/7/2013.

    ISSN 0104-4931Cad. Ter. Ocup. UFSCar, So Carlos, v. 22, n. 2, p. 443-453, 2014http://dx.doi.org/10.4322/cto.2014.066

    Resumo: Introduo: Trata-se de uma reflexo crtica sobre a contribuio do referencial filosfico de Jrgen Habermas para a prtica social em Terapia Ocupacional. A Terapia Ocupacional em Contextos Sociais tem se

    consolidado promovendo ateno a pessoas, grupos e populao em vulnerabilidade social que, a partir de uma

    dada orientao poltico-econmica, integra uma zona de pobreza, desemprego e ruptura com as redes de suporte

    social. Objetivo: Discutir sobre as contribuies da Teoria da Ao Comunicativa de Habermas para a Terapia Ocupacional em Contextos Sociais, atravs da noo de consensos fundados como instncias de entendimento mtuo

    entre homens e mulheres sobre algo no mundo da vida. Metodologia e discusso: Busca-se apresentar a reflexo proposta mostrando-se como a filosofia habermasiana revela-se til na construo de estratgias de enfrentamento das

    problemticas sociais atravs da formao de consensos democrticos para a produo de projetos de ao, com base

    na proposta de formao intersetorial entre mbitos da administrao pblica e da sociedade civil. Ainda, enfoca-se

    a experincia da Terapia Ocupacional no Campo Social que o Curso de Terapia Ocupacional da USP de Ribeiro

    Preto vem realizando junto a pessoas em situao de rua e que vem propondo a estratgia da intersetorialidade para

    a elaborao de polticas publicas e estratgias de ao no combate pobreza e vulnerabilidade social.

    Palavras-chave: Vulnerabilidade Social, Terapia Ocupacional, Assistncia Social, Polticas Pblicas, Democracia.

    The contribution of the critical hermeneutic of Jrgen Habermas to social occupational therapy

    Abstract: Introduction: This critical reflection addresses the contribution of the philosophical framework of Jrgen Habermas to the social practice of occupational therapy. Occupational therapy has been consolidated in social

    contexts providing care to people, groups and populations in situations of social vulnerability, which according to a

    political-economic orientation, includes poverty, unemployment, and ruptured social support networks. Objective: To discuss the contributions of Habermass Theory of Communicative Action to occupational therapy in social

    contexts through the notion of consensus, founded as a forum of mutual understanding between males and females

    about something in the world of life. Method and discussion: We also seek to propose a reflection showing how Habermass theory is useful in the construction of coping strategies to deal with social issues, through democratic

    consensus toward the production of action projects based on inter-sector cooperation between public administration

    and civil society. We also focus on the experience of occupational therapy in the social field that the Occupational

    Therapy program administered by the University of Sao Paulo - USP at Ribeirao Preto has carried out with homeless

    individuals and proposed a strategy of inter-sector cooperation to develop public policies and action strategies to

    fight poverty and social vulnerability.

    Keywords: Social Vulnerability, Occupational Therapy, Social Assistance, Public Policies, Democracy.

    A contribuio da hermenutica crtica de Jrgen Habermas para a Terapia Ocupacional Social

    Regina Clia Fiorati

    Curso de Terapia Ocupacional, Faculdade de Medicina de Ribeiro Preto FMRP, Universidade de So Paulo USP, Ribeiro Preto, SP, Brasil

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    1 IntroduoA Terapia Ocupacional em Contextos Sociais

    um campo de conhecimento e prtica da Terapia Ocupacional consolidado e reconhecido recentemente (dcada de 1990), mas que se encontra ainda em processo de construo no que diz respeito ao escopo terico-metodolgico, na perspectiva de formar ou constituir um campo epistemolgico teraputico ocupacional para subsidiar a produo de conhecimento para a prtica social.

    Para evitarmos repeties desnecessrias e para adentrarmos a histria, concepes e metodologias da Terapia Ocupacional Social, estaremos nos reportando ao captulo Terapia Ocupacional na Prtica Social, escrito por Denise Dias Barros, Roseli Esquerdo Lopes e Sandra Galheigo no livro Terapia Ocupacional: Fundamentao e prtica (2007), no qual as autoras descrevem o percurso histrico de uma prtica social na Terapia Ocupacional, desde o incio de seu desenvolvimento at o momento atual, a partir do qual uma nova Terapia Ocupacional em Contextos Sociais consolida-se e passa a ser reconhecida enquanto campo especfico de conhecimento e atuao. E salientam que na atualidade a Terapia Ocupacional Social tambm inaugura referenciais tericos especficos, bem como um corpo metodolgico prprio para prtica profissional especfica no campo social.

    De acordo com as tendncias contemporneas, pode-se observar que a corrente da Terapia Ocupacional Social que prevalece aquela que atua junto a populaes e segmentos sociais em situao de vulnerabilidade social, a partir das rupturas que tais segmentos vo sofrendo na estrutura de sua rede de suporte social, bem como a partir da reproduo de relaes precarizadas de trabalho e de vida. Tais condies de vida, em que se encontram parcelas crescentes da populao mundial e brasileira, so decorrentes de uma orientao econmico-poltica globalizada na qual h uma imposio da economia e da racionalidade do capital sobre a dimenso social e humana, produzindo imensas desigualdades sociais. Da mesma forma, a tessitura social entendida como uma rede formada por interesses e poderes em constante conflito, os quais fundamentam a dinmica das transformaes sociais (BARROS; LOPES; GALHEIGO, 2007).

    Nessa perspectiva, propem-se a concepo do campo social como rea interdisciplinar e intersetorial qual a integrao do terapeuta ocupacional ocorreria com base em uma metodologia prpria, voltada para a criao e fortalecimento de redes sociais de suporte de pessoas, grupos e comunidades, construo

    de projetos sociais que visem emancipao e consolidao da cidadania de grupos, pessoas e projetos de vida que possibilitem a criao de autonomia e autodeterminao. Assim como as atividades, recursos tradicionais teraputico- ocupacionais, que so eminentemente entendidas como meio de vinculao, intermediao entre o micro e o macrossocial, para a ao voltada para o coletivo e para a cultura (MALFITANO, 2005).

    Para tanto, dentre vrios referenciais tericos, destaca-se o referencial terico-filosfico que vem sustentando a construo terico-metodolgica e prtica desse campo da Terapia Ocupacional como aquele constitudo pelas anlises de Robert Castel (1997, 2001), o qual propicia marcos para avaliao da etapa de vulnerabilidade em que se encontram determinados sujeitos ou grupos, a partir dos conceitos de vulnerabilidade e desfiliao, utilizados como critrios de identificao de incluso/excluso das esferas do trabalho e redes sociais de suporte. Alm desse, outros referenciais somaram-se para constituir o escopo terico que ampara toda a crtica social e poltica subjacente prtica no campo social: Karl Marx, Gramsci, Franco Basglia, Michel Foucault, Erving Goffman, Paulo Freire, entre outros. De maneira geral, tais referenciais propiciaram a crtica macrossocial aos processos de institucionalizao das prticas sociais e das formas de ateno a determinados segmentos sociais, bem como as prticas assistenciais alienadas histrica e politicamente e centradas nos aspectos funcionais individuais (BARROS; LOPES; GALHEIGO, 2007).

    Sem abandonar tais referncias e enfatizando sua importncia para a Terapia Ocupacional Social, percebe-se que outro referencial filosfico vem contribuir para a construo metodolgica da Terapia Ocupacional Social, bem como na criao de tecnologias de atuao no campo social, sendo esse referencial representado pela hermenutica crtica de Jrgen Habermas. A contribuio desse referencial ser analisada, neste trabalho, pontualmente, no que diz respeito ao poltica da Terapia Ocupacional em sua insero em rgos formuladores e gestores das polticas pblicas, a qual ocorre complementarmente ateno territorial e comunitria aos grupos e populaes.

    Partindo-se de uma experincia prtica que vem sendo desenvolvida no campo social pelo Curso de Terapia Ocupacional da Faculdade de Medicina de Ribeiro Preto da Universidade de So Paulo (TO-FMRPUSP) junto a pessoas em situao de rua do mesmo municpio, percebe-se a importncia desse referencial filosfico como subsdio terico para a construo de aes intersetoriais propostas como

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    estratgia de interveno a setores da administrao pblica e da sociedade civil do municpio, no sentido da criao de polticas pblicas voltadas para o enfrentamento da vulnerabilidade social, erradicao da pobreza e democratizao da sociedade.

    A experincia do curso de TO-FMRPUSP no campo social, referida acima, desenvolve-se atravs de trs iniciativas: estgio profissionalizante com pessoas em situao de rua no Centro de Referncia e Assistncia Social Especializado em Pessoas em Situao de Rua (CREAS-POP) de Ribeiro Preto; evento cientfico realizado com a participao de diversos setores da administrao pblica e sociedade civil do municpio e CREAS-POP; e pesquisa cientfica com pessoas em situao de rua, que se encontra em desenvolvimento e tem como objetivos estudar as situaes e momentos nos quais ocorreram as rupturas com os sistemas de redes de suporte social e com o trabalho formal e realizar um vdeo documentrio que servir como dispositivo de discusso na sociedade.

    A partir do evento citado, elaborou-se documento com propostas de polticas pblicas, assistenciais e de estratgias de interveno, bem como da constituio de redes de ateno e aes intersetoriais junto a pessoas em vulnerabilidade social. Tal documento foi entregue s secretarias municipais de Sade, Assistncia Social, Cultura e Educao, Cmara de Vereadores, Prefeitura e aos candidatos a cargo de prefeito que, na poca (agosto de 2012), se encontravam em campanha eleitoral. A nfase do documento e das discusses que ocorreram no evento deu-se na constituio de aes intersetoriais e formao de redes de ateno, por isso nossa discusso se apoiar no foco da intersetorialidade.

    A teoria crtica de Habermas, mais especificamente a Teoria da Ao Comunicativa, mostra-se til, principalmente no que diz respeito noo apresentada por Habermas (1988) sobre os consensos fundados como instncias de construes dialgicas entre dois ou mais sujeitos que, na perspectiva de um entendimento mutuo a respeito de algo no mundo da vida e por meio de debate radical, entrariam em acordo sobre temas e aes para a construo de projetos de ao social democraticamente orientados.

    A intersetorialidade, entendida como processos organizados e coletivos de aes deliberadas que pressupem a interao entre diferentes segmentos e setores administrativos e da sociedade civil com vistas a criar estratgias consensuais de ao social, interfere na produo social e subjetiva ao produzir efeitos sobre os modos de ser e de atuar dos atores sociais, usurios e gestores de servios e organizaes (NAVARRO, 2011). Constitui, portanto, instncias

    de interao e discusso entre pessoas para tomada de decises sobre algum projeto de ao social, ou seja, constitui um processo comunicativo que pretende um consenso sobre algo no mundo social dos sujeitos imbricados no processo.

    Portanto a necessidade de formao de consensos orientadores da ao social j aparece explicita nessa primeira definio de no que consiste uma constituio intersetorial.

    Nesse sentido, este trabalho prope uma reflexo crtica sobre a importncia da Teoria do Agir Comunicativo de Jrgen Habermas na fundamentao terico-metodolgica para a prtica social em Terapia Ocupacional com base nas propostas de formaes intersetoriais para elaborao de polticas pblicas sociais norteadoras de estratgias de interveno junto populao em vulnerabilidade, a partir da relevante concepo introduzida por Habermas de consensos fundados, expresso da condio antropolgica da competncia comunicativa dos homens e mulheres em interao, na busca de exerccios de plena democracia.

    Para isso, inicialmente, discorre-se sobre algumas formulaes tericas desse filsofo, a fim de melhor compreender seu pensamento.

    Em seguida, em um segundo subitem, passa-se ref lexo de como as formulaes da teoria habermasiana podem contribuir para a Terapia Ocupacional Social, atravs da discusso sobre a importncia da intersetorialidade para a construo de projetos sociais e polticas pblicas de enfrentamento das problemticas sociais emergentes.

    Por ltimo apresenta-se um relato sumrio de algumas aes desenvolvidas pelo Curso de Terapia Ocupacional FMRPUSP em contextos sociais, as quais vm dando nfase criao de redes intersetoriais para a elaborao de polticas, propostas e estratgias de enfrentamento da vulnerabilidade social.

    2 Habermas, dialogicidade e intersubjetividade: Bases de uma teoria da comunicao voltada para a emancipao

    Habermas um dos filsofos contemporneos que iniciou sua produo intelectual ligado aos autores da Escola de Frankfurt e, a partir da dcada de 70 do sculo XX, passou a criticar o conceito de razo decorrente do paradigma da conscincia para orientar-se segundo proposies da guinada lingustica da filosofia, a qual retira a

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    autoconscincia do sujeito do seu lugar de condio da racionalidade para delegar linguagem o instrumento de racionalidade, pelo qual se pode ter acesso aos contedos do pensamento e dimenso intersubjetiva da produo dos conhecimentos e das aes humanas (ARAGO, 2002).

    Como herana da Escola de Frankfurt e da teoria crtica, Habermas elaborou a crtica da ideologia e da cultura com base em sua crtica da sociedade tecnocrtica. A teoria crtica, viso terico-filosfica proposta por Theodor Adorno e Max Horkheimer, principais representantes da Escola de Frankfurt, defende que, sob o signo de uma racionalidade instrumental autonomizada, a racionalidade da dominao da natureza se liga irracionalidade da dominao de uma classe de homens sobre outras e que as foras produtivas imobilizadas operam a estabilizao de relaes de produo alienadas. Essa concepo inverte as esperanas de Marx, que pensava que a cincia e a tcnica representariam um potencial emancipatrio, mas que se transformam, na teoria crtica, em foras de represso social e total alienao, de tal forma que a prpria razo, confundindo-se com a racionalidade instrumental, passa a ser entendida como instrumento de explorao do homem, opresso e violncia (FIORATI, 2010, 2012).

    Habermas distancia-se dos preceitos da teoria crtica, por considerar que ela se atrela ainda ao paradigma da conscincia, e refere outro paradigma da razo, o qual substitui a conscincia pela linguagem como critrio de racionalidade. Dessa forma, para Habermas (1987), ao analisar-se a comunicao cotidiana, infere-se uma competncia universal a todo falante e agente adulto, ou seja, a capacidade comunicativa de dizer algo que se espera que o outro compreenda e sobre o que se busca concordncia, mesmo que se parta de um processo de conflito, discordncia e discusso. Essa capacidade, por sua natureza essencialmente dialgica e intersubjetiva, por sua vez permitiria supor uma predisposio para o entendimento mtuo entre os homens, que se contraporia ao desejo de domnio da razo instrumental.

    Nesse sentido, para este trabalho h trs enfoques do pensamento habermasiano que nos interessam. O primeiro diz respeito relao entre a dialtica do trabalho e a da interao, o segundo baseia-se nas reflexes sobre as funes que assumem a tcnica e a cincia enquanto foras de coeso ideolgica na sociedade contempornea e que, ao tecnificarem todas as dimenses da vida social e poltica, passam a colonizar a esfera da interao humana. O terceiro enfoque relaciona-se possibilidade apresentada

    por Habermas (1989) da constituio de consensos normativos dialogicamente construdos e fundados sobre bases democrticas, na condio da iseno de coeres e violncias no encontro interdiscursivo intersubjetivamente mediado pela linguagem. Esse ltimo aborda a Teoria da Ao Comunicativa, a partir da qual o autor prope uma racionalidade fundada na intersubjetividade e na interao humana impondo-se racionalidade instrumental na conduo de projetos de ao social (HABERMAS, 1988).

    Habermas (1987) distingue entre duas esferas da condio humana que embora na prtica permaneam interdependentes analiticamente tornam-se irredutveis uma outra: o trabalho como ao teleolgica abarcando racionalidade instrumental orientada pelo princpio tcnico e a interao social-humana fundada na ao comunicativa. Segundo o autor, h uma relao recproca entre trabalho e interao, sendo que no h uma relao de derivao automtica uma da outra, mas uma relao dialtica. O trabalho como ao dirigida a fins determinados constitudo por duas dimenses: a ao racional apoiada sobre regras tcnicas e saber determinado e a ao estratgica, que visa um sucesso efetivo segundo critrios de utilidade com relao s finalidades propostas. Em outra perspectiva, a interao refere-se ao comunicativa fundada por normas consensuais, apoiada na intersubjetividade que visa ao entendimento mtuo, a partir do qual as pessoas se colocam de acordo em relao a projetos e planos de ao.

    Na sociedade contempornea h um processo denominado por Habermas (1987) colonizao do mundo da vida pela tcnica e pela cincia. Tal processo seria causado pela fuso da tcnica e da cincia com os sistemas de dominao, remetendo teoria sobre a ideologia tecnocrtica como organizao social-ideolgica decorrente de um estgio de aes intervencionistas do Estado como resposta a reivindicaes de movimentos sociais e para manuteno dos modos de produo capitalista, processo que sugere uma melhoria das condies de vida das massas com base no desenvolvimento tcnico-cientfico e na substituio da discusso poltica pelas orientaes tcnicas. Cincia e tecnologia passam a funcionar como as principais foras produtivas e de coeso ideolgica, como a forma privilegiada de legitimao da dominao, manuteno de um processo de despolitizao das massas e de ocultao da violncia social subjacente s relaes de produo e ao modo de existncia imposto.

    Assim, a sociedade se unidimensionaliza e passa a ser a esfera da administrao total. Da mesma

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    forma, os aparelhos de poder instrumentalizam-se como rgos executivos da razo cientfica e tcnica. Portanto, a dominao, segundo essa perspectiva, se exerce enquanto cincia e tecnologia. O progresso autnomo da cincia e da tcnica vai determinar o desenvolvimento da vida social. O Estado absorve a lgica especfica da razo tcnica e cientfica e passa a orientar suas decises no pela prtica, mas sim tecnicamente. Essa ideologia prope uma perspectiva segundo a qual o desenvolvimento do sistema social determinado pela lgica do progresso tcnico-cientfico e o efeito imediato a despolitizao das massas, a ocultao dos verdadeiros interesses que subjazem a esse funcionamento social e geram o impedimento de a opinio pblica manifestar-se em questionamentos crticos, pois na medida em que os fundamentos do funcionamento tecnocrata respondem somente a imperativos de uma racionalidade tcnica, tornam-se imunes a qualquer contestao (HABERMAS, 1987).

    Alm disso, como a ideologia tecnocrtica vai apresentar questes prticas sob a forma de questes tcnicas, exclui do debate pblico os temas significativos para a prxis e produz um resultado ainda mais grave: a invalidao na conscincia dos homens da distino entre ao instrumental e ao comunicativa. O Homem passa a auto-objetivar-se exclusivamente na perspectiva da ao instrumental e do comportamento adaptativo e a ao comunicativa , ento, absorvida pela ao instrumental (WIGGERSHAUS, 2006).

    Habermas (1988), contudo, traz a proposio de racionalidade apoiada em ao comunicativa que se contrape racionalidade instrumental. A racionalidade comunicativa, portanto, permeia a dimenso na qual ocorrem os processos da interao humana realizados pela intercomunicabilidade apoiada nas trocas intersubjetivas e simbolicamente mediada pela linguagem. De acordo com o autor, essa racionalidade que possibilita a construo de projetos sociais dialogicamente instaurados, isto , a construo coletiva apoiada no dilogo, a partir do qual os discursos tenham o mesmo estatuto de validao. Dessa forma, o filsofo prope uma ao comunicativa livre e isenta de coaes, que se colocaria na base da formao de consensos normativos para viabilizao de projetos sociais multiculturais e processo civilizatrio apoiado em valores de solidariedade social.

    Para que o enfoque terico que trabalha as aes comunicativas sob determinadas condies de validao possa tornar-se til, no basta que os homens se comuniquem entre si, eles precisam faz-lo sob determinadas condies. Como ressalta

    Arago (2002), Habermas prope uma situao ideal de fala na qual h uma exigncia de simetria de posies e discursos, uma igualdade de chances entre todos os sujeitos que necessitam estar imbricados na circunstncia dialgica, ou seja, a ao comunicativa constituda tem de se dar livre de coaes e restries aos interesses de qualquer participante. Para isso, o filsofo prope uma teoria do agir comunicativo, a qual se daria sob determinadas condies de validade. Assim como prope que, integrando o processo argumentativo de discusso que envolve toda interao comunicativa, h uma fora que faz com que prevalea o melhor argumento, apoiado pelo critrio de uma racionalidade que sustentaria as decises para um bem comum e, portanto, que diferenciaria, assim, os consensos fundados verdadeiros dos falsos.

    Essa proposio habermasiana gerou imensa polmica no mundo da filosofia, principalmente a promovida pelo neopragmatismo, representado por Richard Rorty, o qual questionou a pretenso de uma universalidade e de verdade absoluta embutida na proposta do melhor argumento presente nas proposies de Habermas, levando-o, irremediavelmente, a um universalismo kantiano, contra as orientaes pragmticas voltadas para o contextualismo (SOUZA, 2005).

    A essa crtica ressaltamos outra importante, que cerca a questo do conflito. Para alguns crticos, Habermas oculta a questo do conflito presente nas relaes sociais humanas sob o manto da busca de entendimento mtuo como uma condio antropolgica do ser humano, presente e atualizado pela capacidade de comunicabilidade lingustica da espcie.

    Segundo Arago (2002), Habermas, no que diz respeito primeira crtica sobre a contraposio de universalidade e contextualismo, no prope que os consensos fundados tenham uma fora de verdade universal, mas que so contextuais na medida em que eles se transformam e mudam o objeto que fundam os acordos promovidos historicamente, porque os prprios melhores argumentos que fundam os consensos, mudam histrica e culturalmente.

    Em relao segunda crtica, Arago (2002) argumenta que para Habermas no h supresso do conflito, mas que ele est implcito em sua teoria do discurso, momento ou situao de fala ou de interao comunicativa, no qual ela interrompida por um questionamento. A partir da ocorre um processo de discusso, de debate radical, contudo, ainda que haja proposies contrapostas, o debate est voltado, em toda interao social, para a busca de um entendimento dos participantes sobre algo

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    no mundo objetivo, social e subjetivo, ou mais exatamente, quilo que o filsofo denomina de mundo da vida.

    Entretanto, h, ainda, outra dificuldade: a prtica comunicativa cotidiana muito distorcida e est submetida exatamente s mesmas coercitividades, as quais Habermas salienta no poderem ocorrer em uma situao ideal de fala. Ou seja, a prtica comunicativa dos homens repleta de preconceitos e atravessamentos de poderes e interesses particulares que so impostos aos pblicos de forma contnua. Nessa dificuldade, Habermas (2007) responde que os processos comunicativos humanos que fundam os consensos ticos para a ao social so movidos por interesses que tambm guiam as aes de produo de conhecimento, a saber: pela atitude de resolver problemas diante dos riscos impostos por um ambiente complexo; a justificao das alegaes de validade diante de argumentos opostos orientados por interesses opostos e que esto na raiz dos jogos de poder; e um aprendizado histrico cumulativo que depende, permanentemente, de reexames crticos dos prprios erros. Por isso, a sada habermasiana para esse problema a proposio de um criticismo permanente e a denncia crtica das interaes comunicativas contaminadas por poderes particulares, os chamados, pelo filsofo, de falsos consensos.

    Dessa maneira, Arago (2002) conclui que em Habermas o conceito de racionalidade indissocivel da prtica social fundada na intersubjetividade do entendimento, contudo o filsofo busca, igualmente, superar o conceito de racionalidade instrumental, ampliando a noo de razo para o de uma razo que contm em si as possibilidades de reconciliao consigo mesma, segundo uma razo comunicativa. Portanto, Habermas no se posiciona contra a racionalidade instrumental, da cincia e da tcnica, na medida em que essas so indissociveis do processo de autoconservao do homem. Para ele, a cincia e a tcnica ampliam as possibilidades humanas, libertando o homem do jugo das necessidades materiais; o desenvolvimento da espcie humana, resultado do processo histrico do desenvolvimento tecnolgico, institucional e cultural, , portanto, processo interdependente.

    Entretanto, a razo deve submeter a racionalidade instrumental comunicativa, para que, na prtica social, prevalea a ao comunicativa. Em certo sentido, Arago (2002) enfatiza que, assim caracterizada, a ao comunicativa uma ao social que busca a intersubjetividade do entendimento tanto no plano do conhecimento, quanto no da ao. Assim, assume funo dupla: tanto social quanto

    epistemolgica, fundamentais para a coeso social e para a construo de uma crtica, buscando a emancipao humana e social.

    Contemporaneamente, Habermas (2012), ao manifestar preocupao com a incapacidade de a poltica controlar a economia, a perda de sentido e de legitimao da prpria poltica diante dos cidados e com a necessidade de resgatar a dimenso da participao democrtica das pessoas, quer nos processos decisrios supranacionais, quer na gesto das polticas econmicas e financeiras, prope uma reconfigurao da relao entre Estado e sociedade a partir da qual os processos decisrios gerais, tanto no que diz respeito economia e finanas quanto esfera poltica, devem, necessariamente, transcender os espaos tradicionais dos poderes pblicos, dos parlamentos e das esferas administrativas de governo para incluir a sociedade civil. Embora nessa obra ele no tenha citado sua Teoria da Ao Comunicativa, os princpios bsicos dessa teoria esto presentes quando deixa explcitas as intenes mediante a crtica de que no pode haver uma real solidificao democrtica sem a incluso dos representantes civis da sociedade e dos movimentos sociais organizados nas esferas decisrias centrais do Estado e da sociedade. Isso pressupe uma reorganizao das instncias de exerccio do poder que poderia se concretizar a partir de formaes interdisciplinares e intersetoriais responsveis pela formulao, implantao e gesto de polticas pblicas.

    3 Intersetorialidade, Terapia Ocupacional Social e consensos fundadosA intersetorialidade entendida como uma forma

    de gesto das polticas pblicas encontra-se em construo enquanto conceito por ter-se apresentado na contemporaneidade como uma necessidade histrica frente s questes socioculturais de grande complexidade, polissmicas e multifacetadas que surgem nessa etapa histrica humana (CASTELLS, 2011).

    A lgica de uma interao de mtuo entendimento intersetorial a respeito de um ou mais projetos ou questes sociais apresenta-se como alternativa a uma anacrnica lgica setorial, fragmentada, vertical e autnoma em relao a outros setores, que vo reproduzindo, cada setor em sua esfera de atuao, suas aes mais ou menos independentes umas das outras (NASCIMENTO, 2010).

    A intersetorialidade vem sendo entendida como uma dinmica importante na construo

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    de mecanismos de coeso social numa sociedade globalizada, diante de um capitalismo transnacional, a partir do qual as transformaes das relaes internacionais levam a uma constelao ps-nacional em que as dimenses econmicas se impem s necessidades sociais e os Estados-nao no conseguem manter suas polticas sociais de bem-estar e nem intervir mais como uma instncia reitora entre os interesses do capital e as sociais (SORJ; MARTUCCELLI, 2008).

    Embora exista um debate sobre a importncia das polticas setoriais na garantia do repasse dos devidos recursos para sua implementao e na descentralizao por setores, a defesa da intersetorialidade apoia-se na relevncia de ser considerada categoria chave na compreenso dos rumos, do alcance e da potencializao das intervenes, mostrando-se como um mecanismo de inovao e fortalecimento da gesto pblica em face de problemticas complexas como: combate pobreza, reduo das desigualdades sociais e programas de transferncia condicionada de renda nos estados e municpios, exigindo a articulao de vrias reas da poltica social como educao, assistncia social, trabalho etc. (MINAYO-GOMES, 2011; MAGALHESetal., 2011).

    Segundo Azevedo, Pelicioni e Westphal (2012), a intersetorialidade tem o potencial de revitalizar as polticas, entretanto evidenciam-se alguns problemas quanto sua implementao, relacionados ao despreparo poltico e tcnico dos gestores e dos profissionais para assumirem a perspectiva intersetorial, ao no conseguirem se desvencilhar de questes administrativas que se impem como entraves articulao das aes. Entretanto, a partir da superao desses problemas, a intersetorialidade mostra-se dispositivo potente para se trabalhar, governar e construir polticas pblicas em uma perspectiva de superao das fragmentaes de conhecimento e estruturas sociais e que produz efeitos significativos na integrao de aes para responder a determinadas problemticas.

    Nesse sentido, Mendes (2011) destaca o valor da dialogicidade na intersetorialidade. Ou seja, no basta uma superposio de olhares interdisciplinares, mas o dilogo resultante de uma interface recproca permanente. Nesse aspecto, a proposio de consensos fundados de Habermas coincidente, j que para haver uma verdadeira construo coletiva e coordenada para uma ao social necessria uma autntica simetria dialgica e intersubjetiva. Da a necessidade da incluso da sociedade civil, alm dos rgos pblicos ou privados, na intersetorialidade.

    A Terapia Ocupacional em Contextos Sociais tem sido construda e aponta-se como metodologia

    principal, aquela que responda s necessidades impostas por grupos, pessoas e comunidades em vulnerabilidade social, marcados pela condio de excluso dos espaos e servios disponibilizados sociedade em geral, das condies de reproduo material e simblica da vida e com rupturas em suas redes de suporte social. Assim preconiza-se uma metodologia que leve construo de instrumentos que possam interpretar a realidade em suas interfaces sociais, culturais, histricas, polticas e econmicas. Da mesma forma, as aes prticas inserem-se em campo interdisciplinar e intersetorial (BARROS; LOPES; GALHEIGO, 2007).

    Nessa perspectiva, a Terapia Ocupacional insere-se na esfera poltica do campo social em um contexto em que a assistncia social adquire a condio de poltica pblica, a partir da formulao e implantao das diretrizes organizativas e operacionais da Poltica Nacional de Assistncia Social e do Sistema nico de Assistncia Social (SUAS): em junho de 2011, atravs da resoluo n. 17 do Conselho Nacional de Assistncia Social (CNAS), a Terapia Ocupacional reconhecida enquanto uma das categorias profissionais de nvel superior que atendem as especificidades da ateno socioassistencial e passa a integrar o rol das funes essenciais do SUAS (ALMEIDAetal., 2012).

    Dessa forma, para contemplar a articulao entre o micro e o macrossocial atravs de aes que busquem a compreenso e a transformao da realidade partindo das vivncias subjetivas das pessoas atendidas, para contextualiz-las em vivncias coletivas e grupais, assim como a compreenso das condies historicamente produzidas pela tradicional formao cultural exclusora brasileira e pelas desigualdades sociais, e para a busca de enfrentamento dessa realidade e o resgate de cidadania plena, coloca-se para a Terapia Ocupacional o desafio de construir tecnologias de interveno dentro do contexto da assistncia social. Considerando-se que essas questes sociais remetem a complexidade e multidimensionalidade, aponta-se a necessidade de que as estratgias devem passar pela ao intersetorial, e, para tanto, necessria a criao de fruns intersetoriais que possam discutir, elaborar e implementar polticas pblicas, atravs do que vimos chamando, baseados no referencial terico em questo, de consensos fundados.

    No se trata de contextualizar os consensos fundados como referencial metodolgico para as aes intersetoriais de um ponto de vista administrativo e tcnico, apenas como sobreposio de setores e pequenos poderes interessados, mas como uma prtica emancipadora a partir de pequenas iniciativas locais de interao humana, para entendimento

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    mtuo a respeito de questes e problemas sociais que merecem estudos e propostas de interveno complexa, decorrentes de consensos eticamente fundados com base na ao de coletivos humanos de trabalho social. Trata-se, portanto, de focalizar a ateno na importncia da contribuio da produo de consensos locais, provisrios, atuais e que, ao mesmo tempo, apontem na direo de permitir o esboo de uma forma de vida societria democrtica, pluralista e igualitria.

    Na histria brasileira de redemocratizao social e poltica da sociedade, a partir dos anos 1980, h muitos exemplos desses coletivos formadores de consensos para a ao social, nem sempre harmoniosos e quase sempre com muitos conflitos internos mas que, mesmo assim, e talvez por isso mesmo, apontaram e ainda apontam, mesmo com algumas deficincias, para uma prtica democrtica voltada para a resoluo de problemas, elaborao e implementao de polticas pblicas e at de governabilidade social, entre outras coisas. O exemplo maior desses coletivos so os chamados Conselhos. A Reforma Sanitria Brasileira apostou muito, em sua implementao e na implantao do SUS, na constituio dos Conselhos de Sade, como materializao de um de seus princpios bsicos, representado pela necessria participao e controle da sociedade sobre o SUS e sobre as polticas de sade.

    Pode ser que a fora da proposta dos consensos fundados como orientadores para a ao social esteja na crena de Habermas de que a linguagem, como instrumento bsico da capacidade comunicativa humana, esteja orientada para o entendimento mtuo (e implicitamente para o exerccio da democracia radical) e no para a dominao, como uma racionalidade comunicativa imperando sobre toda dimenso da instrumentalidade humana, contendo, por si s, uma promessa de emancipao social da espcie humana. Para Habermas (1989), a simples denncia de uma prtica comunicativa marcada por coeres e violncias j promissora de uma dimenso e possibilidade emancipadora.

    Certamente, para a ao emancipadora da humanidade no bastaro consensos fundados, tampouco somente aes de enfrentamento revolucionrio. Provavelmente sero necessrias essas duas dimenses de ao e muitas outras aes ainda impensadas. Para nosso intuito, neste trabalho, basta a utilidade, com base em uma dimenso pragmtica, que a teoria da Ao Comunicativa de Habermas e dos consensos fundados apresenta para a prtica social em Terapia Ocupacional. E, nesse sentido, tal referencial vem se mostrando til para a prtica teraputica ocupacional que, no campo da assistncia

    social, pode propor, com base na constituio de fruns intersetoriais, o estabelecimento de consensos ticos e fundados como orientadores para a ao social no enfrentamento da vulnerabilidade social, da pobreza e das desigualdades sociais.

    4 A experincia do Curso de Terapia Ocupacional de Ribeiro Preto

    A proposta de formao de fruns intersetoriais para discutir e elaborar polticas pblicas tambm de implementao intersetorial tem guiado a elaborao da prtica da Terapia Ocupacional em contextos sociais do curso de TO-FMRPUSP, centralizada pelo recm-institudo Laboratrio de Estudo e Extenso em Terapia Ocupacional Social e ComunidadeCommunitas, do referido curso, bem como tem orientado uma metodologia de ao no sentido de busca constante da constituio de articulaes intersetoriais, na comunidade e no territrio, da criao de estratgias de ao voltadas para a ateno populao atendida nos estgios profissionalizantes, nesses contextos sociais. A partir das atividades do estgio profissional, os estagirios so orientados a buscar articulaes junto a iniciativas e servios para alm da assistncia social, campo no qual esto atuando, tais como articulaes com setores da educao, sade, esporte e cultura, para acionar servios e aes de incluso em iniciativas organizadas nesses setores.

    Assim como busca-se nas prticas de estgio estimular o contato peridico dos estagirios com outras organizaes de capacitao e formao profissional, administrativas e jurdicas, na perspectiva de fomentar no aluno iniciativas articuladoras que busquem recursos territoriais, comunitrios para melhoria de qualidade de vida da populao atendida, representao pblica e auto-organizao, na busca de solues de problemas, para a incluso e emancipao dessa populao.

    A partir do evento cientfico promovido pelo curso de TO-FMRPUSP em agosto de 2012 e atravs da nossa participao junto ao CREAS-POP e junto Secretaria Municipal de Assistncia Social de Ribeiro Preto, nossa prtica tem procurado estabelecer meios de comunicao atravs de fruns de discusso intersetoriais, principalmente entre as secretarias municipais de Assistncia Social, de Sade, Educao, Cultura, Meio Ambiente e Urbanizao, Esporte e entre a sociedade civil, como ONGs e outras. Tem-se proposto aes articuladas entre essas secretarias no sentido de aumentar o acesso de pessoas

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    e grupos em vulnerabilidade social aos servios e equipamentos coletivos, da criao de polticas sociais de enfrentamento pobreza e de mecanismos de incluso social. Alm do documento entregue s vrias secretarias, Prefeitura, Cmara de Vereadores, tm-se intensificado discusses sobre polticas pblicas, articuladas junto ao Frum Social de Ribeiro Preto. Essa organizao rene vrias outras, cujos principais expoentes so os representantes do Centro Brasileiro de Estudos de Sade (CEBES-subsede Ribeiro Preto) e representantes de movimentos sociais do municpio de Ribeiro Preto que, inclusive, participaram do evento cientfico e da comisso que elaborou o documento citado.

    Outra iniciativa, em desenvolvimento, uma pesquisa cientfica patrocinada pela Pr-Reitoria de Cultura e Extenso da Universidade de So Paulo e pela FAEPAFundao de Apoio ao Ensino e Pesquisa e Assistncia do HC da FRMPUSP, coordenada pela autora deste trabalho e demais docentes do curso de TO-FMRPUSP, que busca estudar e compreender as situaes de ruptura com as redes de suporte social e das relaes de trabalho de pessoas em situao de rua no municpio de Ribeiro Preto. A partir dos dados coletados por meio de entrevistas e depoimentos filmados de pessoas que estavam morando na rua, est sendo desenvolvido um videodocumentrio que ser usado como dispositivo de discusso e disseminao potente da questo social e poltica ligada condio de rua e extrema pobreza e s medidas de enfrentamento vulnerabilidade e excluso social. Assim, pretende-se que o documentrio, ainda em fase de edio, seja exibido em evento especial, no qual se buscar reunir representantes de setores da administrao pblica e da sociedade civil para disparar processo de articulao para a construo de estratgias intersetoriais de enfrentamento da problemtica, mobilizando diferentes atores sociais na construo de projetos, aes e implementao de polticas pblicas de incluso social e emancipao poltico-social.

    5 Consideraes finaisA Terapia Ocupacional Social enquanto campo

    de conhecimento e prtica vem apresentando uma proposta metodolgica ainda em construo, apesar de j haver um delineamento claro no que diz respeito a determinados aspectos, tais como o descentramento do campo clnico e a insero na assistncia social, a fundao de uma prtica social, a superao de uma atuao com base no indivduo e nos mbitos institucionais para ampliar formas

    de atuao nos territrios, juntamente com as comunidades, grupos sociais, entre outros, e, dessa forma, as intervenes se ampliam para o mbito da cultura, das relaes sociais locais e mais amplas e dos contextos histricos, econmicos e polticos que geram as condies de vida em transformao. Assim como aspectos terico-metodolgicos apontam para a necessidade de uma prtica voltada para comunidades, pessoas e grupos que se encontram em determinadas condies nas quais as formas de cidadania, representao pblica, incluso social e acesso aos meios de reproduo da vida social esto comprometidas. E, para isso, uma prtica voltada para atuao em nvel das polticas pblicas e em fruns institucionais administrativos, nas vrias esferas de governo, necessria e esse mbito de conhecimento e prtica precisa ser inserido nos cursos de graduao em Terapia Ocupacional.

    Nessa perspectiva, ns do Curso de TOFMRPUSP procuramos construir uma prtica social dentro do campo da Terapia Ocupacional Social em Ribeiro Preto focalizando a ateno, nesse momento, na populao em vulnerabilidade social, especialmente neste artigo estamos dando enfoque s pessoas em situao de rua, polticas de enfrentamento das condies de pobreza e busca de cidadania plena para tais segmentos e grupos sociais. E, nesse sentido, iniciamos um processo voltado para a construo de fruns municipais e intersetoriais para discusso do problema, elaborao de polticas pblicas e estratgias assistenciais e discusso mais geral voltada para medidas governamentais para erradicao da pobreza e desigualdades sociais. A intersetorialidade englobando setores da administrao pblica e da sociedade civil, portanto, passa a ser, nesse momento, uma estratgia prioritria de interveno.

    Essa nfase na formao intersetorial para criar mecanismos de enfrentamento situao de pobreza e para construir programas para populaes em vulnerabilidade social no municpio de Ribeiro Preto mostra-se como um caminho promissor, pois alm de se perceber que a complexidade da problemtica em torno das pessoas em situao de rua transcende as barreiras da capacidade de resoluo dos setores isoladamente, tambm se observa que h um isolamento na gesto das polticas pblicas e a presena de uma impermeabilidade entre os atores dos diferentes setores. Assim, as principais propostas giram em torno da integrao, interao, sinergia e comunicao entre os setores envolvidos, para elaborao e implementao de polticas pblicas integradas e resolutivas.

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    Para tanto, apresentamos um referencial terico-filosfico que tem contribudo para balizar um campo de conhecimento e prtica no contexto social da atuao teraputica ocupacional que o referencial habermasiano da Teoria da Ao Comunicativa.

    Tal referencial prope, como um de seus aspectos principais, a concepo da comunicao humana como instrumento que contm um potencial intrnseco de propiciar o entendimento mtuo entre homens e mulheres sobre algo no mundo da vida, exatamente por esse se constituir um campo de realizao da intersubjetividade humana e dar acesso a construes apoiadas em racionalidade no instrumental e sim comunicativa, possibilitando o exerccio tico do debate poltico entre os seres humanos no sentido de construrem consensos que se fundem na criao de caminhos para o Bem Comum. A racionalidade instrumental, nessas condies, no autonomizada, se submeteria racionalidade comunicativa fundadora dos consensos ticos para a ao social.

    Como definimos anteriormente, a intersetorialidade como terreno de interao por excelncia traz embutidos uma srie de conceitos e elementos que esto na base de sua definio, ou de suas definies, j que no se pode determinar positivamente uma nica. Tais elementos seriam: autonomia, inexistncia de hierarquia, compartilhamento de objetivos comuns, cooperao, confiana, interdependncia e intercmbio constante e duradouro de recursos e, tambm, instncia ou frum formador de consensos, j que entre os objetivos fundamentais que justificam a formao intersetorial est a criao de determinados acordos ou consensos entre pessoas que representam determinados setores ou organizaes sobre algo no ambiente social em que convivem.

    Se pensarmos que a teoria habermasiana concebe a situao ideal de fala como aquela que se d em circunstncias especiais nas quais todos os participantes tm iguais oportunidades de expresso e ao, pensamos j nas hierarquias questionadas, na afirmao de seres humanos autnomos, empoderados e democraticamente organizados. Assim, acredita-se que tal referencial representa uma importante contribuio para a prtica social que vem se desenvolvendo a partir das estratgias e aes acadmicas de ensino, pesquisa e extenso disponibilizadas e compartilhadas no Laboratrio de Estudo e Extenso em Terapia Ocupacional Social e Comunidade do Curso de Terapia Ocupacional da FMRPUSP.

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