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    Copyright© 2011 by Luis Carlos de Morais Junior Direitos em Língua Portuguesa reservados ao autor através da

    QUÁRTICA EDITORA.®

    Arte Final de CapaTeresa Akil

    Imagem de Capa

    Editoração

    RevisãoO Autor

    Quártica Editora

    "O Beijo" ("Der Kuss", 1907/8) de Gustav Klimt

    CIP - Brasil. Catalogação-na-fonteSindicato Nacional dos Editores de Livros, RJ.

    M825g

    11-0805. CDD - 869.93CDU - 821.134.3(81)-3

    Morais Junior, Luis Carlos de Gigante / Luis Carlos de Morais Junior. - Rio de Janeiro : Litteris Ed.: Quártica, 2011 128p. :

    1. Romance brasileiro. I. Título.

    QUÁRTICA EDITORA®

    ISBN 978-85-7801-189-5

    CNPJ 32.067.910/0001-88 - Insc. Estadual 83.581.948Av. Presidente Vargas, 962 sala 1411- Centro

    20071-002 - Rio de Janeiro - RJCaixa Postal 150 - 20001-970 - Rio de Janeiro - RJ

    Telefax: 2223-0030/ 2263-3141site: www.litteris.com.br

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    Este livro é dedicado a Mário da Silveira Reis, Noel de Medeiros Rosa e ao mestre dos mestres, José Barbosa da Silva, o Sinhô

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    ÍNDICE

    PIZZA GIGANTE............................................................................ 9

    ELA NEM LIGA, ELA LIGA...................................................... 13LUTA DE PSICÓLOGAS NA LAMA........................................ 17

    BONS TEMPOS POR VIR........................................................... 21

    A CASA INDESTRUTÍVEL.......................................................... 25

    CURTINDO O PRÓPRIO COURO............................................. 29

    DUAS FLÁVIAS.................................................................................. 33

    UM CAPÍTULO PEQUENOGRANDE..................................... 37

    CAPÍTULO DUPLO......................................................................... 41O BEIJO DE KLIMT....................................................................... 43

    MEDO E FASCINAÇÃO.................................................................. 45

    ALHOS E BAGULHOS.................................................................... 49

    CECILIA E PERILIO....................................................................... 53

    NÃO SOU ANJO............................................................................... 55

    DIA DE VER O MARQUINHO................................................... 59

    GRITO FALANTE........................................................................... 63

    O MISTÉRIO DO OUTRO EU.................................................. 67

    PAI E FILHO..................................................................................... 71

    PRECIPITAÇÕES ENZIMÁTICAS............................................ 75

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    A BRIGA............................................................................................. 79

    A LOURA, SORRY, A LOUCA................................................... 81

    BÔNUS................................................................................................ 85

    A HISTÓRIA COMEÇA................................................................ 87

    UM ÉDIPO RIDICULAMENTE GRANDE............................ 89

    A FUGA.............................................................................................. 91

    PRATO FUNDO.............................................................................. 93

    A FOME E O COME.................................................................... 95

    A ROUPA CIRCENSE..................................................................... 97

    A MENINA E A TV....................................................................... 99

    AS COISAS QUE ESTAVAM DANDO NA TV................... 103

    MARIANA GESTAL VERSUS O DR. SCARAMOUCH.... 107

    NOVISITA........................................................................................ 109

    A ENTRELELÊVISTA................................................................. 111

    COLÓQUIO AMOROSO............................................................ 113

    A ÚLTIMA VISITA........................................................................ 117

    A CHEGADA DOS BRAVOS MILITARES........................... 119

    O COLOSSO DE RODES............................................................ 121

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    PIZZA GIGANTE

    (Ao som de Mário Reis.)

    É SEMPRE ASSIM, nesta nossa sociedade pós-moderna,massificada, tecnicizada, ultra-capitalista.

    — Boa tarde. Eu gostaria de um brotinho.No telefone a moça é incisiva, parece que traz um império

    transgalático atrás de si: — Por que o senhor não pede o nosso combo com

    duas pizzas gigantes e uma brotinho de sobremesa?

    E quem pode dizer não ao consumismo desvairado danossa civilização?Sou um homem sensível, e cada vez que a vida me deu

    uma porrada, tive que me recolher pra lamber as feridas.Bom, imagino que alguém poderia dizer a cada linha

    deste relato absolutamente verídico, e as semelhanças nãosão mesmo meras coincidências, que todo mundo passapor tudo isso, e ninguém fica assim, se fazendo de frágil.

    Falar é fácil.Geralmente as pessoas acham complicada a ação.

    Mas, o difícil pra mim é responder. Mesmo no caso destecontendor imaginário, que eu suponho rude, como hojeem dia, geralmente, as pessoas são, não sei o que lhe dizer,mas, sinto tanto, tantas coisas, que ele está errado, que oque eu sinto é único, que a vida é sensível, que o afeto é

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    natural, que bons sentimentos são mais que uma ilusão, sãoa forma da vida se expressar enquanto ser humano, são asnossas garras, nossos voos, nossas teias.

    Por que estou sozinho agora?Bem, eu poderia estar com a Flávia, eu suponho, se eu

    aceitasse tudo que a gente é e que a gente não é, e tudo queela não quer ser e é, sem saber, sendo sempre o que ela

    espera e não espera de ninguém.Quer dizer, se eu aceitasse o seu afeto maluco, a meabrigasse na sua campanha, sua cabana, onde faz frio, chove,neva, correm rios de lágrimas e animais rastejam. Mas éuma barraca. Isso a consola, eu acho, ela vive de esmola, emesmo assim faz caridade, porque é "boa".

    Ou poderia estar com Laura. Seria tudo mais fácil, e não vou dizer que me separei dela por causa da Flávia, seriacomo um cachaceiro enlouquecido dizer que trocou tudopela bebida, é verdade, mas é mentira. Eu sempre soube

    que a Flávia não era de nada.O maior problema não é nem esse.Estou com medo, não é só o sentimento de

    incompreensão, um olhar, uma desatenção, é coisa muitomais complicada.

    No ano passado a minha casa desabou. Eu estava nopátio, e me salvei.

    A casa ficava no alto de uma escadaria de pedra enorme,num subúrbio do Rio, perto de uma comunidade, o quesignifica geralmente favela em morro carioca, ou região

    plana, com pouca ou nenhuma infra-estrutura e controleparalelo de marginais. Alguns desses eram meus vizinhos do lado.Eles tinham também uma escada de cimento sobre o

    barranco, e quando minha casa desabou, devido a um

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    deslizamento do terreno, a deles também ruiu, eles vieramtodos para o meu lado do muro, cobrando que eu tinha"derrubado a casa deles".

    Não vou entrar em detalhes. Consegui fugir, e passeimuitas e muitas noites em motéis e hotéis, indo daqui praali.

    Nessa época eu estava separado da Laura.

    Nessa época eu não via a Flávia há muito tempo.Meus pais haviam falecido, e eu estava mesmo com medodos meus vizinhos, antes do ocorrido, pois eles pareciamde olho em minha residência enorme.

    Que agora eu não tinha mais, mas eu continuava commedo deles, por causa da sua injusta concepção de que eufora culpado do desabamento da minha casa e de ambas asescadarias, visto que eu não fizera obras pra consertar tudoantes ou depois, verba que excedia qualquer orçamento,meu e deles.

    Então tentei ao máximo deixar meu novo endereço emsegredo, quando consegui alugar uma pequena casinha emoutro bairro da zona norte cidade, em uma área de classemédia baixa.

    Meu nome é Carlos. Tenho 42 anos de idade, e sou pai de um filho com

    Laura, que mora num outro bairro da zona norte, com nossofilho.

    Sou funcionário de uma empresa de pesquisa demercado.

    Gosto de ler os clássicos e os novos, aprecio boa música,cinema, teatro e ópera. Amo também artes plásticas, desenho, pintura, escultura,

    gravura etc. Gosto de fazer coisas criativas, visuais.E amo amar as mulheres.

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    Tudo custa dinheiro.Sou magro e baixo.E tímido.Eu diria que sou feio, por causa da desatenção de gente

    como a Flávia, mas, considerando que ela tem a metade daminha idade, que é uma cabeça de vento que não entendenada, e que ela e outras fazem assim com tantos outros

    carlos, eu diria bem mais que sou mais um, e olhe lá.

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    Nem sei como posso amar duas mulheres; nem sei comoposso ainda ir quando ela me chama, e sentir esse fogo,terno e delicado, cheio de alimentação pura e boa pra suaaura loura.

    Eu não sei.Eu gosto de pintar, acho que já falei isso antes.Não gosto de escrever, mas escrevo, como se pode ver,

    sempre cultivei um diário secreto, que é este que você estálendo agora, quer dizer, uma provinha dele, uma canchinha,se você estiver lendo, então ele não é mais tão secreto assim,talvez devido aos acontecimentos das próximas semanas,mas vamos com calma, ainda estamos no início de 2011, eunasci em 1969, e este ano faço, em julho, 42 anos.

    Ela tem 22.Meu trabalho tem a ver com marketing, eu já propus a

    tradução desta palavra por mercadologia, mas ninguém seinteressou, como se sabe, não sou muito bom com palavras.

    Gosto das imagens.Mas meu mercado é de palavras, falo, vendo, empurro,"convenço".

    Às vezes, quero pintar ou desenhar ou gravar e não hámuito dinheiro disponível, as prioridades super alfa são oMarquinho e a Laura e a sua casa, e a alfa é a Flávia, quandoela cisma na mesma hora que quer me ver, e eu topo iraonde ela quiser, mesmo que ela não queira nada, e levehoras pra isso ficar bem claro, e lá se vão nossos dolorososreais com shows bebidas comidas diversões conduções (um

    dia até mesmo motel, pra não querer nada, lá dentro!).Quando quero pintar e não tenho nossos realistas dólareseu pinto o sete e desenho sobre qualquer superfície que eupossa utilizar tipo descartável ou suportável de ficar pintada/desenhada/gravada depois, caixas de papelão de produtos,

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    verso das folhas usadas, pedaços de madeiras, uma cadeira,o teto da sala.

    Uma vez um amigo meu do trabalho chamado Benolárioao ver a pintura sobre a sala chamou a minha nova casa(tenho mania de casa não ap, a que caiu era uma, esta éoutra; ah, e eu sabia, essa a bronca dos traficantes, eles meavisaram que tudo ia cair, estava tudo rachado, de um jeito

    que passava um fio de cabelo, um fio d'água, um fio de altatensão, um aparelho de barba, um mamão, todo dia asrachaduras cresciam pra cima pra baixo e pros lados) detetodacapelasistina.

    Outra acusação de plágio, essa mais séria, da Flávia 1(cinéfila e cult pro forma): por acaso eu não sabia que otítulo do meu romance desabafo pra me livrar dela Gigante(tratam-se das notas parciais de diário a que aludianteriormente, e que lhe mostrei falando que alterariapatronímicos e daria a público com o título citado) já tinha

    sido usado em inglês como Giant no filme que foi exibidono Brasil com o nome de Assim caminha a humanidade,realizado em 1956 por George Stevens, nos EUA, com James Dean, Elizabeth Taylor, Rock Hudson e outrosgrandes atores. A história trata de...

    Aí eu interrompi, impaciente: — Todo mundo já viu essa porcaria dessa fita!E ela me indagou se eu não gostava da obra. — Adoro. Tanto que plagiei o título, lembra?"Uma lourinha incomoda muita gente, mas a moreninha

    incomoda muito mais" ("Muito mais", marchinha de Antônio Nássara e Francisco Alves, gravada por Mário Reis,em 1935).

    — Ah, mas você não sabe da missa a metade. Temtambém Gigante, como o Inter conquistou o mundo

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    direção de Gustavo Spolidoro, roteiro de Luís AugustoFischer (2007), e Gigante, filme de Adrián Biniez (Uruguai- Argentina-Alemanha-Espanha, 2009),

    — Desses eu não sabia,,, — Ignorância de você.Ela riu mazinha: — E há, é claro, o infantil — ela frisou a palavra — As

    viagens de Gulliver (2011), dirigido por Rob Letterman,com Black Jack, no qual o gigante é um nerd covarde — elade novo, de novo —, que enfrenta até um homenzinhodentro de um robozão. Vão dizer que o seu é plágio.

    — Ah, cansei de você. Tchau.Bom, este capítulo está muito bom/ruim, e eu não

    quero/quero deixar, como está, bem, então, vou ver tv.

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    LUTA DE PSICÓLOGAS NA LAMA

    HÁ UNS MESES ATRÁS, bem no meio do maremoto Flávia,eu fui numa psicóloga, chamada Aliumete, que era freudiana,e não deu certo mesmo, ela ficou tentando me fixar naminha infância, que era justamente o que eu estava tentandosuperar.

    Resolvi semana passada voltar a procurar uma psicóloga,liguei para várias, que encontrei numa busca no Google, e

    ia perguntando qual a linha delas, engraçado, as psicólogaseram sempre mulheres. Linha? Que apito você toca? Hein! Arrumei uma chamada Flávia também! Assim é a vida,

    toda maluca. Era gestaltiana, pra quem for muito ignoranteé guestaltiana que fala, então, fui logo chegando eperguntando onde eu deitava, só tinha duas poltronas, elariu, me ofereceu água, falou da madeira dos móveis.

    — Uma pessoa pode se apaixonar por duas ou mais aomesmo tempo? Na verdade, estou amando três mulheres,com força igual, de forma diferente, minha mulher Laura, a

    mãe do meu filho, de quem estou separado, minha ex-namorada Flávia que fica me infernizando e adora mechamar pra me chatear, e uma novata lá do meu trabalho, Ana.

    — Claro que pode. Isso é normal.

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    Tudo pra ela era normal, nada tinha problema, eu nãotinha problema.

    Contei meu sonho da semana anterior: — Eu acordava e estava no meio da rua, dormindo, o

    sol batendo em mim, e eu era enorme, um gigante, maiorque todas as casas, maior que os ônibus, as árvores e ospostes. E eu estava deitado! Tentei me levantar. Percebi

    que estava todo amarrado. Compreendi que eu tinha unscinquenta metros de altura. Os homens em volta eram muitopequenininhos, e eles estavam com medo de mim, e tinhamme amarrado enquanto eu estava dormindo.

    — E depois? — Eles fizeram amizade comigo, viram que sou um cara

    legal, e me deram dois empregos. Na parte da tarde eufazia serviços impossíveis ou quase pra eles, e que para mimeram fáceis, por causa da minha desmesurada altura. Naparte da manhã, nas segundas, terças e quintas, eu era

    estudado por uma junta de médicos ou de bois, não lembrobem.Ela ficou calada, me olhando. — E depois? — Eu me apaixonei por uma daquelas mulherezinhas.

    Vivemos uma linda e longa história de amor. — Como? — Não sei, meu sonho não entrou em detalhes, fazia

    uma edição ágil, decupagem experimental. — Você trabalha no quê mesmo?

    — Faço imagens nas embalagens vazias. — Publicidade? — Você conhece a história de um rei que falou para um

    menino que queria lhe dar um presente? O menino pediutoda a terra que ele cobrisse com um passo. O rei riu e

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    concordou. O menino deu um passo que foi maior que ouniverso inteiro. O rei caiu de joelhos chorando e adorandoo menino. E também tem o gigante que transportava aspessoas, para atravessar um rio. Um menino pediu pra eleo transportar. O gigante o fez. No meio do rio o meninofoi ficando pesado, e o gigante não aguentava, cada vez omenino pesava mais, o gigante pediu por sua vida. O menino

    é Jesus. O gigante ganhou então o nome de São Cristóvão. — Qual a sua altura? — Quando? Tô brincando, um metro e setenta... — Qual a altura da Flávia? — Você, faço uma estimativa de uns um e sessenta. A

    outra Flávia, bem, acho que tem cerca de um metro e setentae sete.

    — E você acha que você tem algum tipo de problemaou complexo com relação à sua altura?

    Eu achava que ela também parecia uma igreja.

    Eu achava que ela também precisava de terapia, oualotropia.Eu achava que eu precisava de terapia.Mas as terapeutas eram uma merda.E eu achava que estava mais confuso ainda porque.Estava me apaixonando ela.Mais esta.

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    BONS TEMPOS POR VIR

    NO TEMPO DE PLATÃO, os filósofos eram reis, na IdadeMédia, eram papas, na época de Noel, sambistas, durante aditadura militar, censores federais.

    Na minha época maluca os filósofos são professores deadolescentes que não sabem ler nem querem saber. Tenteicumprir meu fado.

    Se já sou tímido e me sinto agredido quando vou comprar

    um pão na padaria, o que dirá de ter cinquenta a quarentaadolescentes revoltados e sem educação na sua frente,gritando, xingando e fazendo assédio moral.

    A coisa foi num crescendo, eu tentando dialogar comeles, às vezes bronqueando, tirando de sala.

    A mãe do garoto veio brigar comigo, reclamar com adiretora, do arbítrio.

    Até que um deles me agrediu fisicamente no meio daaula. Me deu um soco.

    Vieram pai e mãe reclamar do meu despreparo, da minha

    falta de educação!Foi por isso que parei de ir à escola.E tive a sorte de encontrar o trabalho que tenho agora. Toda semana passa rápida, e volta a sessão com a Flávia,

    a que se propõe terapiar-me, com seus conselhos prenhes

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    de obviedade, ah, todavia, eis a época em que o óbvio é oópio do polvo!

    Pois não existe mais povo, claro, você deve ter visto nacopa do mundo, uma besteira assim, uma emissorazinhaimbecil e imbecilizante e gigantesca como um octópodegigante colocou no ar a grande moda, um animal dessesnum aquário, ele tinha que escolher entre duas rações, cada

    uma com uma bandeira nacional, a que ele escolhesse era opalpite do animal sobre quem ganharia o jogo do dia, e obicho sempre acertava no país! O povo basbaquizadocomeçou a "pensar" que alguém tinha todas as soluções, osmaias, os ETs, o molusco, o telecoteco, algum ser de algures.

    Sessão: — Você se acha imaturo? — "Quem acha vive se perdendo", Noel Rosa. — Por que você cita tanto o bardo desqueixado? — "Sofrer é uma arte".

    — E não será uma vaidade de sofrer que faz você ficarpensando na Flávia, que não quer nada de sério com você? — Odeio essa palavra, amizade. É em nome dela que as

    pessoas mais maltratam. — Ou talvez seja a vaidade. — Outro sonho: eu e você estávamos tomando chá num

    casarão, quando um cientista meu amigo bateu na porta,com uma pedra cheia de inscrições e falou que tinhadescoberto o caminho pro centro da terra. Ele não podiair, e nos deu o mapa; e eu e você fomos, enfrentando feras,

    frio, calor, seres pré-históricos, até chegarmos no núcleodo planeta. — Eu e você? — Sim. — E fizemos amor?

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    — Antes, durante, depois, e depois de depois. — Você já notou que seus sonhos são todos pastiches

    de clássicos da literatura universal? Por quê? — Se o real o é, por que não o meu "mundo arcaico de

    vastas emoções e pensamentos imperfeitos", como diriaFonseca citando seu não tão amigo Freud, o qual, por sua vez, citou Havelock Ellis? E por que não?

    — E por que fantasiar tanto? Você ia se sentir melhor,se encarasse a vida e as relações de um modo mais prático. — Sabe? Desde que eu era novo que as pessoas me

    hostilizavam, me chamavam de louco, de bêbado, de viado,de comunista e muitas outras coisas, que eu não era. Eu eraeu, eu sou eu, eu sempre serei eu, e apenas isso, isso é maisprático do mundo, todavia parece irritar tanto asconvencionalidades das cabeças de vocês. Eu me sinto comose eu fosse um gigante, que assustasse as pessoas, por causados defeitos delas, por causa das fraquezas delas, e não por

    minha causa mesmo, não obstante, já que têm tanto medoassim de si, atribuírem-no a mim. — Sei. Tá na hora. Até semana que vem.

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    A CASA INDESTRUTÍVEL

    EU NÃO QUIS me separar, apesar do terremoto Flávia (esei que estou parodiando Oswald de Andrade no SerafimPonte Grande e seu "furacão doroteu"; aliás, é bom lembrarque Mário faz do gigante o inimigo de Macunaíma, enquantoOswald faz de seus personagens os gigantes), eu não sabiao que fazer, e também era tudo novo, então eu estava assimmeio extático, isto é, em êxtase (e não estático, sem ação,

    os adolescentes analfabetos me deixaram traumatizado).Porém, um dia cheguei em casa, e ela estava com um rolode macarrão na mão, querendo me bater, gritando comigo:

    — Quem é uma piranha chamada Flávia?E começou a gritar, que a tal moça ligara sem parar o dia

    inteiro, dizendo que queria falar comigo, deixando recado,pedindo pra eu ligar.

    Laura contou que lhe falou assim: aqui é a mulher dele. A cínica lhe respondeu: ah, muito prazer, eu sou a

    namorada nova.

    E carregara o tom melódico de "nova", pra implicar comnossa idade. — Vai me mandar embora? — Claro que não! Seu maluco! Seu maníaco! Seu

    irresponsável!

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    E começou a falar sem parar, uma oitava acima, que eusumia, que voltava tarde, que fingia reunião, bem, às vezesera verdade, que eu não queria mais nada, não procuravapor ela tarde da noite de madrugada de manhã toda hora otempo todo como sempre fazia antigamente, que agora asminhas amantes ligavam assim cheias de descaramento, queeu não ligava pro Marquinho (que nessa hora é claro que

    estava ouvindo tudo atentamente do seu quarto fingindocomputar), que nossa casa estava toda rachada, que ia cair aqualquer momento, que aqueles bandidos moravam do lado(os quais também escutavam, não havia como não ouvir),que eu não ligava pra nada, só pensava em minhas escapadase minhas pinturinhas (considero o diminutivo aqui comocarinho, sim, são isso, pinturinhas, e são minhas escapadas,também), que ia embora.

    Eu falei que sim. — Sim, o quê? Seu babaca!

    Queria que eles dois saíssem dali. — Eu nunca vou sair daqui, esta casa é a herança domeu pai!

    Meu pobre pai, cultivar sua vivenda era tudo que eu podiafazer por ele, depois de tudo que aconteceu.

    — Pois fique e seja soterrado pelos tijolos! Eu vouembora! Vou levar o Marquinho comigo!

    — Concordo. — Seu pulha! — Vai prà casa da sua mãe?

    — Hoje. Amanhã começo a procurar apartamento, e você vai alugar, depois entro na justiça, quero casa, alimentose pensão.

    — Muito justo.Eu estava cansado, tinha sido um dia duro, de sol de

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    ouro puro e metal pelas almas desgraçadas que sedigladiavam no mercado.

    Faltou um tapa na cara. Nós não nos demos, nem isso.

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    CURTINDO O PRÓPRIO COURO

    DEPOIS DE QUASEum ano curtindo o tudonada (eu sei,"metáfora" Gil) da Flavinha, eu me apaixonei pela Ana.

    Acho que fui bastante quietinho (fora algumas escapadasnão computadas porque monetarizadas).

    A Laura não queria mais nada comigo. Estava quasenamorando um cara lá, quase voltando a estudar,trabalhando, separados na justiça, pagava um terço do bruto

    de pensão, e o aluguel, e ainda dava por fora, por causa debem cuidar do Marquinho, e, pra ser franco, dela. A Flávia fazia-me de tonto, se fazia de tantã, sumia,

    voltava, me beijava, depois me empurrava, dizia que queriaser minha amiga, só, só isso, por que diabos eu insistia? Eunão queria ser amigo dela, e ela sabia disso.

    — Eu não sou seu amigo! Eu não tenho amigo! — E o Belonário?Chegou aquela fase desgraçada em que não havia

    mistério, ela sabia tudo de mim, eu tudo dela, os nomes de

    todos ficantes, amantes, namorados, do passado, do futuro,todas as besteiras que ela fez e ainda vai fazer.Ela não sabia da Ana. A Ana era quietinha, bonitinha, pequenininha, calminha,

    eu gostava muito da Ana.

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    O problema é que estava na década de vinte também.Mais uma "ninfeta" como dizia minha mulher, aliás,

    Mário Donato em A presença de Anita (1948) e depois Vladimir Nabokov em Lolita (1955), e, ainda depois, Stanley Kubrick no filme (1962) baseado no romance de Nabokov.O brasileiro Mário Donato, além de não receber os créditosdo pioneirismo, mereceu uma série (2001) imbecil de uma

    emissora de televisão oligofrênica.E a Ana quis alguma coisa com ele?Bem, vamos começar do(s) começo(s): desde que

    percebera a loucura de Flávia, e já separado da Laura, ecom o problema dos bandidos, ele não quis tentar voltar, eacha que ela não ia querer mesmo, e precisavadesesperadamente esquecer ou pelo menos contrabalançara Flávia, então ficava tentando se apaixonar pra ver seconseguia.

    Foi quando a tal da Ana veio trabalhar no seu escritório.

    Foi quando Ana a tal apareceu e entrou no meuescritório.Eu lhe falei imediatamente: vamos tomar um chá/fé/

    refri/chop?Ela achou que era parte da política da boa vizinhança

    dizer sim depois do trabalho.Mas, ao estar lá, e eu ir me abusando, ela ficou muito

    estupefata, de eu ser chefe, de eu ser casado, de eu ser coroa,e estar assim desabusadamente "me passando" pra ela, umagíria velha, do tempo dos meus pais, pra compor as

    personagens.E tinha outra coisa.Ela ouvira todo mundo dizer no escritório que eu sou

    um tremendo filósofo, um pensador, um doido, então elaquis me encontrar na esperança de entabular comigo uma

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    verdadeira conversação sábia e amiga, tipo filé sofiai, a amigada sabedoria.

    Eu lhe falei meu amor esse negócio de que filósofo éum troço assim anódino e assexual é a maior aleivosia quejá ouvi. Filósofo é um ser selvagem.

    Filósofo não é amigo de ninguém.Muito menos de bicho grilo yuppizada que gosta disso

    e daquilo e é politicamente correta.Platão, Górgias, Espinosa, eram feras terríveis, homensgigantescos, verdadeiros super-homens do sentido epraticantes de novos modos de vida, que eles inventaramsem parar.

    Depois ainda citei o filme O Selvagem (The Wild One,1953), dirigido por László Benedek, com Marlon Brando,como Johnny Strabler, com sua moto Triumph Thunderbird 6T.1

    Nele, o "selvagem", "the wild one", na verdade é pacífico

    e generoso, e, apenas por não apresentar o mesmocomportamento e modo de ser dos homens "comuns", éantagonizado.

    — Você é muito doido cara. Você é um chato. Sai pralá!

    — E você parece uma lagartixa listrada! — Que nojo!Eu falei, deixa ser chata, quer dizer, deixa estar gata, quero

    dizer, pensei.

    ________________________ 1Curiosidades pescadas na Wikipedia (Enciclopédia on line) (e lembremos queCiclope também era gigante):“O filme foi baseado num conto chamado The Cyclists' Raid de Frank Rooney,que foi publicado em janeiro de 1951 na revista Harper. Depois apareceu emlivro que reunia várias histórias com o título de The Best American Short Stories

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    1952. A história falava de confusões de motociclistas nas comemorações do "4de Julho" de 1947 na cidade de Hollister, Califórnia que fora noticiada na re- vista Life, de 21 de julho daquele mesmo ano sob o título de "'Tumulto emHollister" e com fotos de selvagens motociclistas rebeldes e foras-da-lei. Ofato agora é motivo de celebração anual em Hollister. No filme, a cidade élocalizada em algum lugar não identificado do Oeste.Para a maioria, os motociclistas do filme não são malévolos, não representan-do a ameaça dos filmes posteriores, baseados nos sinistros Hells Angels (Anjosdo Inferno). Na verdade, um grupo de vigilantes liderados por um comercian-te que usa de sua influência para manipular a polícia local, aparece de forma

    bem mais antipática que os motociclistas.O antagonista de Brando no filme é o chefe de polícia interpretado por RobertKeith. Os dois apareceram novamente na comédia musical Guys and Dolls.O filme foi proibido no Reino Unido durante quarenta anos.Elvis Presley inspirou-se em Brando e imitou sua aparência no filme. Outroastro que admirava o estilo mostrado foi James Dean.Conta-se que o conjunto The Beatles inspirou seu nome no da gangue lideradapor Lee Marvin, The Beetles (Os besouros). (Referido em the Beatles Anthology). A alteração da grafia deve-se a John Lennon, que incluiu um "a" de“Beat”. /.../ (http://pt.wikipedia.org/wiki/O_Selvagem_%281953%29)Considero que Rumble Fish (1983) de Francis Ford Coppola também se inspi-rou, pelo menos em parte, em The Wild One, pois, neste também, a sociedadeé que violenta o dito selvagem:“O segundo filme que Coppola adaptou da escritora S. E. Hinton, logo após

    Vidas sem Rumo (The Outsiders), Matt Dillon faz o garoto que vive à sombrado irmão mais velho, que cultiva a mística dos rebeldes de moto, nos anos 50 e60. Um filme que talvez não seja tão bom quanto sua reputação faz crer. Éestilizado, esplendidamente filmado em preto e branco (com um detalhe emcor que a TV em geral não mostra), com bela partitura de Stewart Copeland euma participação especial de Mickey Rourke. Sua grande cena com DennisHopper mostra o confronto de gerações e o embate pai/filho, essencial nadramaturgia do filme (e na obra toda do autor)”. (O Estado de São Paulo, 07/07/2009, caderno 2, p. 9)

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    DUAS FLÁVIAS

    — EU FALEI PRA ELA: há duas Flávias, vejo duas vocês nofuturo, como naquele filme What the bleep do we (k)now?

    — Como assim? — Ela se afasta, às vezes fica meses sem me ver, e quando

    volta está feia, mais feia, quase feia, muito feia. — Ahn? — Você fica feia longe de mim... Ela deu ouvidos, mas

    me deslocou da história, pensou só que ela pode ser lindaou feia no futuro, dependendo de como faça seu presente,como todos nós. Eu fui o mais sincero possível, falei nocaminho com coração de Carlos Castaneda (o qual ficagigante também, num episódio de O poder do silêncio),falei nas paixões tristes e paixões alegres e ações do Espinosa,ativo e reativo de Nietzsche e mandei links pro seu e-mail.

    — E ela? — Acho que sacou que eu estava fazendo propaganda

    de mim mesmo. Tipo: ela será feia se não ficar comigo, e

    linda se ficar. O pior é que é verdade. Mas ela não quer serlinda. — Você não se acha muito protetor e prepotente? — Não. — Fixado no próprio umbigo?

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    — Realista. — Desistiu dela? E a Ana? — Estou amando as duas, aliás, as quatro, inclua Laura,

    e você.Ela se riu, dedicada, delicada, deliciada, ou cínica, ou

    química, ou melhorpior ainda, um pouco de cada. — Não sonha mais?

    — Sonhei que um coelho vestido corria, olhando orelógio, preocupado, e ficava repetindo obsessivamente"Estou atrasado".

    — E você entrou pelo buraco? — Não. Olhei e achei natural, e continuei fazendo as

    minhas coisas. Como quando eu vi, de verdade, na realidade,acordado, no meio da rua, um coelhogato, um ser que era amistura dos dois, parado, me olhando, na rua, perto domeio-fio.

    — Você já pensou que pode ser delirante?

    — Pensei; não sou. Sou realista. — Você notou que o sonho de você gigante pode ser Jonathan Swift, pode ser Lewis Carroll e pode também seros dois.

    — Pensei não; sou realista. — Como assim apaixonado por mim? Não sinto a menor

    atração de mim pra você ou de você pra mim. — Você falou a mesma coisa que a Flávia há uns dias

    atrás, com outras palavras. Por três semanas sentia, depois,magicamente, parou de sentir.

    — E por que você insiste, se não há nada? Se ela temessa necessidade infantil de encontrar com você pra se sentirmais adulta e maltrata você, e sempre fala que não quernada com você, e isso te machuca, por que você ainda aquer?

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    — Não sei. — Você não é tão realista assim. — Por isto estou aqui. — E por que então quer transformar a nossa relação

    nessa coisa já tão conhecida e pseudomasoquista de vocêse fingir apaixonado e ser chutado de tudo quanto é jeito?

    — Não sei. Sonhei com você. Penso muito em você.

    — A Laura te tratava bem, e você estragou tudo. — Você parece uma mãe. — Eu sou, também. Aqui, sou sua terapeuta. — Você já traiu? — Vamos falar de você. — O que você acha da traição? Contaria pra seu marido?

    Aceitaria dele? Acha que alguém pode ser sempre fiel?Nunca sentiu desejo por outros homens (ou mulheres)?Não sente atração por mim, tem certeza?

    — Tenho. São muitas perguntas, todas insanas.

    — O que seria santidade pra você? — De onde você tirou isso? Não falei que não eramsantas.

    — Quem é? — Você, suponho. — Sou, sim. Eu sou um santo homem (apud Joyce e

    Lacan).

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    UM CAPÍTULO PEQUENOGRANDE

    NÃO SOU PROPRIAMENTE amigo do Belonário!Ele é mais o único que não me hostiliza abertamente. A mesma coisa acontecia na escola, no colege (rái escul),

    e quando eu dava aulas; tipo, além da hostilidade dos alunos,que era superagressiva e totalgeral com todos e com elesmesmos, entre eles mesmos, uns com os outros, eu tinhaque lidar com o praticamente ódio gelado dos meus pares

    professores.Não sei por quê. Agora, são os escriturários; é a esposa, as namoradas, o

    filho, os vizinhos, os vizinhos bands. Que fiz eu?No ofice o prioríssimo é o Androgenio. Antigamente, tínhamos judô antes da hora do trabalho,

    tínhamos que chegar meia hora mais cedo pra praticar,obrigatoriamente. Ele sempre tentava transformar osexercícios numa disputa de força real, entre nós, disfarçado.

    Depois virou tai chi, depois yoga. Depois será lesmayoga,

    tenho certeza. Quando mais gelatinosos melhor pra eles.Ele já me sabotou, vive me encarando, dando respostasríspidas e/ou debochadas, e uma vez me convidou pràporrada na calçada depois da hora do expediente, e espalhoua aleivosia de que eu não seria de nada, no dia seguinte,

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    porque fugi dele, como das amantes vampirescas e dosbands que queriam confrontação no desabamento.

    Enfim, vamos mudar de assunto.

    "Francisco: Na introdução deste samba Quero avisar por um modo qualquer Que esta briga é por causa de uma mulher

    Mário: E eu aviso também Que neste samba agora me metoPara cantar com Francisco Alves em dueto Mário: É preciso discutir Francisco: Mas não quero discussão Mário: Da discussão sai a razãoFrancisco: Mas às vezes sai pancada Mário: A questão é complicada Francisco: Quero ver a decisão Mário: A mulher tem que ser minha

    Francisco: A mulher não traz letreiro Mário: Foi comigo que ela vinha Francisco: Mas fui eu quem viu primeiro Mário: Ela é minha porque vi Francisco: Mas quem segurou fui eu Mário: A conversa já meti Francisco: A mulher não escolheu Mário: (E podes crer que é...) Mário: É preciso discutir Francisco: Mas não quero discussão

    Mário: Da discussão sai a razãoFrancisco: Mas às vezes sai pancada Mário: A questão é complicada Francisco: Quero ver a decisão Mário: Já perdi a paciência...

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    Francisco: Eu por ela me arrisco Mário: Sou capaz de violência Francisco: Mas não vai quebrar o disco Mário: Quanto tempo foi perdidoFrancisco: Perdi tempo pra ganhar Mário: Ganhar fama de atrevidoFrancisco: Quem se atreve quer brigar

    Francisco: (E podes crer que...)" ("É preciso discutir", samba de Noel Rosa gravado por Francisco Alves e Mário Reis, em 1931)

    Tipo, quando eu virar um artista plástico famoso, quandoa Flávia acordar entendendo que me quer, quando eu ganharsozinho na loteria na qual não jogo, quando um anjo baixarcom sua nave e um transmutador anímico na mão convertera raça humana a alguma outra bobagem.

    — Você já se sent iu como uma aveumana no

    aveumaninheiro sendo observado e avaliado pelo seu valorenergético e/ou mercadológico? Todo mundo sente.Ela mudou de assunto, embaraçada. — E você jura que os sonhos são mesmo verdade?Que jeito estranho de a sua analista falar com você, esse

    mundo tá mesmo de pernas pro ar. Que que eu falo praela? Quer romantismo ou erotismo?

    — O que é a verdade? — Sonhou de novo? Yeah, she really do wants to hear, indeed.

    — Fui convocado pra uma guerra sem fim, sem heróis,sem sentido, mas com todo o sentido do mundo. Ali, nafrente, um homem que amava sua amada mais que tudo,ainda esperando, depois de tantos anos, para estar de novocom o seu verdadeiro amor.

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    Na nossa frente, um império medonho, que acobertavacom seu ouro e sua soberania o desamor e um filho bastardomimado infeliz imbecil bad boy covarde mesquinho cheiode maldade em toda parte que tinha raptado aquela mulherque só sentia nojo e medo do infeliz captor.

    Lutamos bravamente, vencemos, destroiamos aqueleimpério de maldade, e eu quis voltar para o meu lar, a minha

    ilha, Carolingia, onde a minha verdadeira amada me esperavacom tenacidade. — E quem era essa?Claro que ela queria ouvir, nem sei por que, e eu falei: — Você. — E... — Foram mais dez anos de lutas desiguais contra todo

    tipo de gigante malvado e feiticeira descarada. E você sempreme esperando: foi um sonho longuíssimo!

    — E... você voltou?

    Sorri clinicamente, o que era uma forma inédita defelicidade, ou toda felicidade já foi editada, e nósconsultamos pela eternidade a biblioteca do Jorge?

    — Eu sempre volto.

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    CAPÍTULO DUPLO

    FUI FAZER A BARBA que estava crescida e preciso meapresentar decente no trabalho. Decente quer dizer: etnia,idade, roupa, barba feita, pele limpa, perfume e desodorante.

    Dormido e bem alimentado, calmo, pressão e pulsaçãosob controle, nenhum desvario ou devaneio além daspsicoses eletrênicas (eu escrevi eletrênicas de propósito,decifre-se ou se devore) do rádio do cinema do celular da

    internet e da tv.No outro lado do espelho um olho me olhava. Umciclope miniatura, ali no lusco-fusco do banheiro.

    Na verdade dois olhos, os da imagem que o espelho medevolvia, refletida de mim... De mim? Sou eu assim?

    Mas é que um olho, especificamente, o olho esquerdo,me olhava como se fosse outra pessoa, como se nem meconhecesse, ou estivesse me provocando, estranha mente.

    Ciclope! Bem que eu sonhei que estava na ilha eenfrentava essa fera humana bestial.

    Fiquei parado, o pincel na mão, a espuma num copo naoutra, e fui baixando as duas, colocando os utensílios napia, enquanto a torneira pingava, e eu não ouvia, e via noespelho toda a minha pessoa se tornar uma outra, que eramuito, mas muito parecida comigo, mas não era eu.

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    O BEIJO DE KLIMT

    AH TÁ NÃO TEM atração né, mas ela não se aguenta maisem pé, aliás sentada, não fala nada, fada, mas seu corpofala, e me chama pro seu divã, diva do meu sonhoflorescer.

    Então eu me levanto lentamente, e me sento do seulado, e pego sua mão sinistra com a minha destra, e meaproximo muito devagar, pra dar todo tempo do mundopra ela: reclamar, me esbofetear, gritar, se levantar, rir da

    minha cara, quer dizer, assinalar seu óbvio não.Que não veio.E veio aquele beijo. — Você é um sonhador... — Agora não tem mais terapia? — Agora a terapia é outra.Beijei a Flávia 2 de novo, e este seria um lindo Happy

    End, se não fosse apenas o prefácio deste elivro (escrevode propósito por mil motivos elivro), e a verdadeira históriaainda está pra começar.

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    MEDO E FASCINAÇÃO

    AG ORA TODA NOITE acendo a luz da sala e fico napenumbra do banheiro por algum tempo olhando proespelho, e logo ele vem, quer dizer, eu, não sei quem, essealguém misterioso que aparece com as minhas feições, masse ri quando eu choro, fala quando me calo, se afasta e vaiprà sala, volta e faz gestos que eu não fiz.

    Tenho medo de que um dia ele saia do espelho e comece

    a andar por aí, e depois venham me dizer que sou dessejeito que eu não sou, ou que fiz isso e aquilo que não fiz, enão sei mais quê. Ou ainda, de me ver assim, tão diferentede mim, ou, como já dizia Sá de Miranda, será meu outroeu meu inimigo, tamanho inimigo de mim?

    Você sabe, não sei fazer amigos. E quando gosto deuma mulher me apaixono.

    Foi por isso que eu procurei a psicóloga.Sou um grande pintor, um cara culto, não consegui ser

    professor nem trabalhar com artes plásticas, e faço toda

    força do mundo pra me segurar no escritório.Onde quase todos não gostam de mim, ou me ignoram.Me apaixonei pela Laura, tivemos um filho, e hoje ela

    me despreza.Me entreguei inteiro assim de cara prà Flávia, e agora

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    — Como você me diagnostica? — A gestalt não acredita em rótulos fixos, assim como

    os produzidos por um diagnóstico clínico. Você é o quesente que é, o que pensa que é, e seus pensamentos esentimentos vão mudando com o tempo.

    — Você sabe que houve outra antes de você. — O que você está falando!?

    — Meses atrás, eu comecei a me analisar com umapsicanalista freudiana. — Hm. — Ela disse que eu não estava apaixonado de verdade.

    Que isso sempre acontece em terapia. Chama-se transfer.É claro que eu sei disso, não sou ignorante.

    — Já leu Freud?, hein. — Transferência. Na verdade, eu achava tudo muito

    cretino que ela me falava, isso quando se dignava a me falar.Logo meu sentimento esfriou. E parei de ir às consultas. E

    parei de procurá-la. — Você a procurava fora do consultório? — A palavra consultório não parece um lugar onde se

    alimentam animais pra usar? Tipo curral e galinheiro. Sem ofensa. — Não parece não. — E ela disse que eu era perverso. — Talvez perversa fosse ela. Não dá pra eu saber, mas

    eu sei que ela não te fez bem. — Sei. — Talvez aí esteja o que ela quis dizer com perversão.

    Você não precisa proteger as mulheres, nem a sua, quandouma é sua. Você não precisa proteger as pessoas, nem asua, que é mais pessoa pros outros do que pra você, e sabeperfeitamente reagir quando precisa, se você se deixar agir,não ficar se protegendo assim.

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    Eu admirei ela, naquela hora, a minha linda Flavinha decabelos negros e olhos castanhos.

    — Seus cabelos são pintados? — Pense nisso. Você promete?O outro Carlos, no espelho, ria da minha cara.

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    ALHOS E BAGULHOS

    ÀS VEZES PENSOse eu não meio sonhoinvento a Flávia 2e seus discursos e seu beijo solto no tempo e no espaço.Não acho que eu seja louco, não acho que ela seja louca,acho que a Flávia 1 é louca, mas isso é outra história, que vou meio que contar daqui a dois parágrafos, então,paciência.

    Eu sei que o real é real e realmente eu faço terapia toda

    quarta-feira de tarde com Flávia 2, acontece que talvez tudode genial e intrigante que eu vejo no seu discurso venha demim mesmo, já cansado subliminarmente de não terinterlocução para as questões candentes que me tantalizam,procurei a terapeuta um, depois a terapeuta 2, e, naimpossibilidade de extrair algo delas além da remastigaçãodo senso comum, de dois sensos comuns, na verdade, nogeral e o científico, eu mesmo preencho nosso tempo comas sacadas que quero que eu me esbarre nelas, eu mesmome analiso. Aliás, eu tenho certeza disso.

    O problema com a Flávia 1 é que ela parece uma criançapequena que sofre sem parar, como se ela gritasse numanoite que não tem fim. Eu não tinha contado tudo isso pràFlávia 2, porque a barra vai ficando muito pesada com aF1, e eu queria poupá-la, protegê-la, de tudo de horrível

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    que ela faz com os outros ou com ela, e não há onde entrarno labirinto dessa história sem ser heavy metal o gostoamargo que fica em tudo, tudo, pra ela. Cristicamente eucomprei o seu drama, e fiquei sentindo mal assim, mesmopensamentos suicidas, que é coisa que eu nunca tive antes,ficavam me obcecando, depois de cada encontro com F1.Eu pensei: essa merda é o pântano é o lodaçal é o esgoto

    que ela sente o tempo todo, pobre menina, mulher, o que vou fazer por ela?Eu fiquei muito tempo, ao longo dos meses, vendo suas

    loucuras, e me sentindo mal com a emoção que vinha dela,e todas as suas desatenções, abusos e traições. Internamenteeu sempre pensava nela, no que ela tinha, por que sendobonita, inteligente, com todas as necessidades atendidas(mora com os pais), e podendo escolher amigos enamorado, se agredia assim, se fazia de tola, se embebedavae se violentava pra se sentir uma porcaria depois.

    Um dia eu compreendi melhor e expliquei pra ela, naesperança de conseguir lhe ajudar. — Flávia, você parece uma menina pequena, que faz

    coisas erradas e perigosas pra ela mesma, sabendo que sãoassim, pra chamar a atenção do papai, como quem diz: olhao que eu estou fazendo comigo mesma, vem cuidar de mim.Suas sabotagens fazem de você uma pessoa difícil,impaciente, ríspida por dentro, tanto quanto é doce porfora. No seu elemento, quando alguém se aproxima umpouco, você se apavora, tem medo que ele chegue perto

    demais, e sabota tudo, e agride etc. E precisa sabotar aimagem da pessoa, todos pra você têm que ser muito ruins,pra poderem ser descartados assim. Seu jogo de sexo casualfaz você desprezar os homens e você mesma. Quando vocêtenta amar você faz tudo pra rebaixar a figura do cara, até

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    balacobaco alternativo que simplesmente era igual comerconfete de anilina e nada.

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    CECILIA E PERILIO

    EU NÃO SEI POR QUE escrevo este texto, não sei o que eleé, e não acredito que alguém o lerá. Talvez me faça bempor ser um desabafo, ou um desafio, ou porque aqui euestou conseguindo me analisar, eu estou fazendo a terapiacomigo mesmo, e isso me faz melhor.

    É incrivelmente difícil escrever agora, veja bem, você,se é que você está me lendo agora, não sabe ainda o querealmente aconteceu. Isto é, a história ainda nem começou.Mas não se incomode não, não se preocupe, você vai saberna hora quando a verdadeira história começar, tudo istoaté aqui é só um prólogo.

    E pra ajudar, não sei por que eu tenho essa mania deajudar, porém, vá lá, pra auxiliar o leitor possível a saberquando a história começou, eu vou dar a dica: isso vai serno momento em que eu estiver sozinho dentro da minhanova casa, e esta desabar em cima de mim, e eu acordar e ver tudo.

    Noite, apago as luzes, só deixo uma lâmpada entre oscômodos, e abro, com receio, a porta do banheiro.O duplo no espelho... Ele passou a falar, e de uma formaterrível.

    Parecia um oráculo. Ou então outra analista. Ou umaespécie de F3:

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    — Você se sente culpado pela morte do seu pai. E nãotem coragem de contar isso pràs Flávias.

    Fiquei em choque e ele continuou, faceiro: — Você se sente culpado de muita coisa. E com razão.

    E se sente melhor que os outros, veja bem, caia na real:qual a diferença entre você e a menina prà qual falou aquilotudo, tão cruelmente?

    Eu não sabia.Meu outro eu é que era cruel, tanto quanto eu sou

    "bonzinho". — Vou contar prà Flávia sobre meu pai. — E isso não vai ajudar nada, nada vai mudar.Uma vez fui na cartomante pra perguntar sobre F1.Ela jogou as cartas, falou que somos almas gêmeas, e

    que existe um "trabalho" de família pra ela e pra mim, uma"amarração", que nos impede de ser felizes, e de ficar comalguém.

    Que os dois vivíamos o mesmo problema, por sermos

    gêmeos astrais.E que ela cartomante poderia resolver tudo aquilo, comum negócio progressivo pra seres cujo nome em iorubá elafalou mas esqueci, duraria vários dias, eu não precisava fazernada, ela faria tudo, e eu teria que lhe pagar dois mil e tantosreais pra isso.

    Não fui mais lá, não paguei, não encomendei o"trabalho".

    Não porque achasse mentira, eu achei que ela estavacientificamente correta.

    Nem foi por usura, pena de gastar tanta grana.É que eu me acharia ridículo e canalha fazendo um feitiçopra ela poder ficar comigo.

    Queria que ela ficasse.Mas queria que ela quisesse.

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    NÃO SOU ANJO

    — SONHEI QUE OS ANJOS voltavam à Terra, desde osanos 50, eles estavam e estão entre nós, e chegam em grandescarruagens de fogo, que os homens e os meios decomunicação de massa chamam de discos voadores. Háuma conspiração pra manter tudo em segredo, e o governo,preocupado com o pânico das massas, agenciou algunsjovens criativos para trabalhar no cinema, na televisão, na

    música pop, na literatura etc, e trazer a informação aospoucos, como se fosse ficção, para a população se acostumarpaulatinamente com a ideia, e um dia poder ser tudorevelado. O grande problema é que os Anjos de Deusgostaram muito das mulheres humanas, e muitos deles secasaram com elas, quero dizer, se uniram, e dessas uniõesproibidas nasceram filhos, que não são humanos totalmente,nem totalmente anjos. Essa é a raça dos gigantes. No meusonho tudo isso acontecia, e um desses Anjos se unia aminha mãe nos anos 60, e eu nascia, e eu era um gigante.

    Seus olhos piscavam sem parar. — Por que você nunca me fala do seu pai? — Então? O beijo não aconteceu? Eu o chamo de O

    Beijo de Klimt. Porque foi tão colorido e interdimensional. — Você sabe que sim. Eu não queria, mas, ao mesmo

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    tempo, não quis também criar um clima hostil, deixei que você me beijasse e depois saísse. O meu silêncio sobre oassunto, e a forma como eu o tenho tratado desde então,deveriam lhe demonstrar claramente o meu desinteressepor essa sua abordagem. Eu estou muito engajada no seucaso, do ponto de vista profissional, e não vou ferir você,nem vou amar você. E parece que as duas coisas andam

    sempre juntas pra você. Você amava seu pai? — Você ama seu marido? Você tem filhos? Sempre foifiel?

    — Amo, tenho dois, um menino e uma menina,pequenos. Não vou entrar em detalhes sobre minha vidaparticular com você. Sou sua terapeuta. Quero lhe ajudar.

    — Quer? Tem certeza? Não durmo de noite, tenhotaquicardia, fico obcecado, uma ideia fixa que faz apertar edoer minha cabeça, sinto também no peito, no corpo todo,o nome dela nos lábios, sussurrando, o dia inteiro, pra mim

    mesmo, sem saber o que fazer. — Quem? — Flávia.Ela fingiu que não viu que eu falei o nome de duas formas

    possíveis ao mesmo tempo. Resolvi ser redundante eesclarecer:

    — Busquei ajuda porque me sinto desconfortável. Euamo uma moça da metade da minha idade que se comportade uma maneira totalmente maluca, e me maltrata, e quantomais ela faz isso mais eu a amo. Não consigo dormir, fico

    estressado, angustiado, obcecado. Sempre me apaixono pormoças mais novas, na mesma faixa de idade. Sinto que amomais de uma ao mesmo tempo, com igual furor. Nada dissoé normal.

    — E o que é normal?

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    — Haja paciência! Você não vê problema em eu sempregostar de garotas de vinte anos, tendo quarenta e tantos?

    — Não. É sua preferência. — E eu me apaixonar por mais de uma ao mesmo tempo,

    com idêntica força? — Também acontece, tem gente que decifra o mundo

    através do amor, como um código. Principalmente você,

    que é tão arredio a amigos e eventos sociais. Sobra muitoespaço pro "amor". — E a obsessão? — É um jeito de ficar apaixonado, muito comum

    também, mais frequente do que você imagina. — Então está tudo bem? — Se você sente que não, não. Mas talvez o problema

    não seja nenhum desses. Me fala do seu pai. — Ai, bem que meu duplo me desafiou a tratar desse

    assunto totemtabu com a Senhora!

    — Seu duplo? Como assim?? Ai ai, pensei, eu e minha grande boca. Agora ia ter quecontar tudo pra ela, sobre o duplo no espelho, e a mortedo meu pai.

    Acho que eu queria contar.Por isso que falei, "sem querer".Eu sou Gigante, filho dos Anjos: não dou ponto sem

    nó.

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    DIA DE VER O MARQUINHO

    SALTO DO ÔNIBUS COM meu pacote vermelho debaixo dobraço, bato na porta como um pretendente ignorado, aempregada vem abrir, ela agora tem empregada.

    Marquinho grita lá do quarto mas não vem. A Janair ricom seus dentes perfeitos e branquíssimos (elegante e bem vestida, conta que trabalhou pra uma dondoca maluca, antes):

    — Ele está no computador, Carlos. Sabe como é

    adolescente.Hoje em dia, pra completar o lugar comum, faltou dizer,ou tá implícito. Puxa! Adolescente. Quantos anos oMarquinho tem, dez, onze?

    Entro pela casa a dentro, sem medo de encontrar ofuturo namorado da Laura, pitombas, o garoto é meu filho,não me vê há quinze dias, podia ter vindo na sala, não vouficar esperando a audiência.

    — Oi, velho? Beleza?Que porcaria, que droga, eu deveria sentir mais prazer

    em lhe dar esse pacote que ele rasga como um vendaval etira o boneco personagem mais famoso dos desenhosanimados de porrada da atualidade e seu carro verde roupa verde brilhante cara verde tudo verde acessórios, tudo, numamonocromia tediosa de espalhafato.

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    Não temos assunto. Pergunto como ele está na escola,o que anda fazendo, se pratica algum esporte, se namora.

    Eu geralmente não tenho assunto com a maioria daspessoas.

    Com as Flávias sempre tenho assunto.Uma é quase tão tola quanto o Marquinho, apesar de ter

    o dobro da idade dele, ou mais, mas mesmo assim me delicio

    ouvindo suas confusões e tentando com toda a força domundo lhe ajudar. A outra é quase tão tola quanto a primeira, apesar de ter

    quase a minha idade, e ter brevê pra pilotar as almas dascriaturas confusas e angustiadas rumo ao porto seguro e àalvorada.

    Também não fala nada que preste. É por isso que eu me visto assim, todo largado, mas coloco minhas roupas degala, quando vou ler, de noite, depois de todos os deverescumpridos, a minha satisfação, encontrar com os meus

    verdadeiros amigos, tipo Nicolau Maquiavel."Depois da jardineira, que chorando sumiu Nos dias do outro carnaval Depois da tirolesa, que cantando fugiu Deixando todo o mundo mal Chegou a vez de dominar De imperar Como rainha de encantos sem par Iaiá Boneca

    A brasileirinha emoçãoDona do meu coração Ai, ai, como é bonita Ai, ai, como é formosa Ai, ai, Iaiá Boneca

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    É um botão cor de rosa Iaiá me dá uma esmolinha Dos beijos teus Pelo amor de Deus" ("Iaiá Boneca", marchinha de Ari Barroso, gravada por Mário

    Reis em 1939)

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    GRITO FALANTE

    — EA TAL DA Ana? — Desisti, muito boba. — Desistiu, numa boa. Assim? — Três é demais. Muita confusão na minha cabeça. — Você ainda ama sua mulher? — Sim. — Quantos anos ela tinha quando vocês começaram?

    — Vinte e um. — Então, você sempre segue o padrão?Fiquei calado olhando pra um inseto incrível que parecia

    um et em miniatura, na parede do lado, depois se arrastoupelo teto, e eu olhando, calado.

    Aí não resisti: — Quanto anos você tem, Flávia?Ela riu de boca fechada, com os cantos dos lábios, e

    respondeu: — 34.

    — Então você é a exceção, que desestruturou apadronagem.Ela mudou de assunto, tática: — Você não falou ainda do seu pai. Não vai falar hoje,

    já sei. E seu filho?

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    — O Marquinho? Que tem ele? — Como é a relação de vocês? — Nos vemos uma vez a cada quinzena. Ligo pra ele,

    acompanho-o nas redes sociais. Não temos nada a falar, eupergunto sobre seus estudos e diversões, ele soltamonossílabos.

    — Ele incomoda você? Acho que você se separou muito

    fácil, pra quem ama a Laura. Como você se sente, sendo você o pai? — Eu sabia que estava tudo errado. Ela tinha medo da

    casa e da vizinhança, e eu tinha o compromisso com meupai, de guardar a casa. Ela ficou sabendo da Flávia 1. Eunão sou um bom pai. Aliás, eu não sou um pai.

    — Por que não? — Porque sim.

    Cheguei em casa cansado com as confrontações que eu

    não conto na rua, no trabalho, na família, e as questõespsicológicas que a análise me fazia ter que encarar, fazia virem a tona.

    Eu esperava tudo, quer dizer, crise de angústia oudepressão, por causa das Flávias, agora eram duas, Laura eMarquinho, papai e mamãe, qualquer coisa assim, tudomenos me autoforçar a entrar naquele banheiro com luzespenumbrosas e olhar pràquele espelho e vê-lo ali, sempre,indefectível, quer dizer, rente que nem pão quente.

    — Então você é o machão. Não briga com ninguém,

    quer ser o bonzinho, com todo mundo, mas brigava comele, o velho Afonso, todo santo dia. — Não me venha com isso agora! — Com ele você não era bonzinho ou covarde. Ou era?

    Agredir seu velho pai, que fazia tudo por você.

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    O MISTÉRIO DO OUTRO EU

    NÃO CONSEGUI FAZER NEM falar nada, fiquei em casa,escondido, em choque, nem atendi quando me ligaraminsistentemente do trabalho.

    O que o outro ia fazer?Qualquer hipótese me apavorava. Alguma violência que eu desaprovaria? Alguma besteira que me complicaria?

    Iria falar com alguma mulher? Falar o quê?Fechei portas e janelas de minha pequena casa, não ligueirádio, pc ou tv, nem conseguia ler, comer nem fazer nada,fiquei debaixo do lençol, sem saber o que fazer ou não fazer.

    Na mesma hora twilight, o lusco-fusco da tarde, apenumbra do crepúsculo em que eu sempre o procurava eo encontrava rindo debochado pra mim de dentro doespelho do banheiro mal iluminado, eu ali, de pé, quasedesmaiando, as minhas pernas tremendo e o corpo todoagitado, na hora certa eu voltei, e olhei pro espelho e vi:

    ainda não tinha reflexo, na sua superfície eu só distinguia aparede atrás de mim.Gritei horrorizado. Alguns instantes se passaram, e eu ouvi seu riso

    silencioso.

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    Aos poucos distingui a sua imagem se formar diantedos meus olhos, na minha frente, no reflexo especular.

    — O que você fez? Onde você esteve? — No seu mundo. Visitei três pessoas: Laura, Flávia 2 e

    um padre numa igreja católica. — Por quê? O que você fui fazer? — A mesma coisa, nos três casos. Contei para cada um

    deles a história da morte do seu pai, o que você fez, o quedeixou de fazer, e como se sente culpado. Elas pensaramque eu era você. O padre nem sabe quem falou, masacreditou em tudo. Vou te revelar o conselho do padre:com Laura e Flávia você mesmo vai falar, e ouvir o que elastêm pra dizer. Não pode perder esta oportunidade. Sãosuas aliadas. Suas mestras.

    — O que você contou? — Tudo. Então, o padre falou que não era pecado, que

    você não pode se punir pelo que aconteceu, se é que

    aconteceu. Que o pecado é ficar se culpando, e procurarassim nas dobras do passado por rancores e atos que nuncaexistiram, ou, se existiram, eram coisas menores, sem essagrandeza e a dimensão infernal que você mesmo lhes atribui.Ele disse que o céu se constrói na vida, que a vida pode serum céu ou um inferno, só depende de você, só de você, eque por todos os tempos ultratemporais você continua asua construção, contando com seu intento de fazer de seuspensamentos e ações algo celestial. "Hieme et aestate, etprope et procul, usque dum vivam et ultra", dixit.

    Acrescentou que você deveria rezar duzentos Pais Nossos,duzentas Ave Marias e duzentos Creio em Deus Pai. Ah,ele também me deu esse terço, pra você utilizar nas suasorações. Não esqueça.

    E meu outro eu me estendeu um pequeno terço azul

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    PAI E FILHO

    — COMO ESTÃO AS COISAS com a F1?Engraçado ela falar assim, a F2. Mas eu não estava pra

    brincadeiras; — Vou lhe contar sobre meu pai... — Você já me contou tudo ontem, lembra? E eu lhe

    respondi o que eu penso. — Deixa eu te contar tudo outra vez, e você me fala de

    novo o que você acha. Tudo bem? — Estranho. Tudo bem. Conta. — É doloroso pra mim falar... todavia, vamos lá.Ela parecia confusa. — Você me falou tudo ontem! — Não era eu, você não pode compreender isso? — Não! — Você me beijou, deixou eu te beijar, e não era você,

    ou não beijou, ou você não queria. Ontem, não era eu. — Tá bom; fala.

    — Meu pai era um homem muito forte, na suapersonalidade, na sua energia. Com um metro e sessenta epouco de altura, musculoso (pois quando criança e jovemtrabalhava muito no sítio do seu avô, serviços braçais, degraça, por puro prazer e adoração pelo meu bisavô), se

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    esquentava fácil, e brigava com todo mundo, todo dia. Todos fugiam de brigar com ele, ele colocava medo emtodo mundo, e fazia coisas loucas, eu o vi enfrentar commãos vazias bandidos armados, e falar desaforos parapoliciais. Quando saía para passear comigo e minha mãeeles sempre brigavam, ele sempre brigava, e fazia loucuras,tipo jogar o carro em cima da calçada, e, desviar das pessoas,

    apavorando todo mundo. Ele ficava vermelho e pareciacrescer e inchar nessas horas. Eu tinha medo dele, ele pareciauma versão vermelha do incrível Hulk. Quando ele saía pratrabalhar minha mãe ficava chorando e desabafandocomigo, que tinha muito pouca idade, e não entendia quasenada, não sabia o que fazer, mas ficava sentindo ódio porele. Eu tinha uma coisa muito angustiante em relação a ele,essa duplicidade: admirava e amava o pai calmo e bondoso,ele era muito generoso e expansivo, brincava e davapresentes pra todo mundo, e odiava com todas as forças o

    outro pai, que era como um monstro terrível, e os doiseram o mesmo, e eu o amava e o odiava e não sabia o quefazer. Ao longo da minha vida, ele sempre tentava seaproximar de mim, e eu me esquivava, por exemplo, elequeria me mostrar as músicas antigas de que gostava, queriafalar de História do Brasil e do mundo, e conversar eminglês. E eu era desdenhoso com tudo isso. Eu moravacom a Laura e meu filho num outro bairro. De noite, quandoestou chegando em casa, minha mãe liga apavorada, queele estava passando mal. Ele não tinha plano de saúde, fui

    prà casa dele e fiquei tentando trazer a ambulância municipalpra levá-lo a um hospital público, ele não falava nem semexia. Quando finalmente a ambulância chegou, levou-o eeu fui junto, ele ficava me olhando de uma maneiraimpressionante, não conseguia falar nada, eu queria falar,

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    PRECIPITAÇÕES ENZIMÁTICAS

    NO DIA SEGUINTE ACORDEI melhor, e por isso as coisasestavam se modificando um pouco dentro de mim.Basicamente, eu chegara a duas resoluções:

    1 — Largar de mão a Flávia number one, porque elanão era number one e na verdade não era número nenhum,pra mim, e talvez não fosse pra ela nem pra ninguém, mas,eu não podia mais me sacrificar pra tentar reverter isso,

    que ela nem queria.2 — Visitar a Laura, olhar cara a cara, conversar comela, não pra trocar acusações ou falar do garoto, ou dedinheiro, e sim pra me aconselhar também sobre o meupai. Calou fundo em mim o silêncio de F2 a respeito. E afala do padre foi no mínimo inspiradora. Brecht!?

    Meu projeto era fazer as duas coisas ainda hoje mesmo,largar de mão da F1 era uma work in progress, e, como nocaso de qualquer vício, exigia uma atenção e uma vigilânciaconstante, lembrar sempre de não ligar nem procurar, ficar

    sempre firme em não atender e/ou não ir quando ela mechamasse.

    "Não se deve amar sem ser amado É melhor morrer crucificado

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    Deus nos livre das mulheres que hoje em dia Desprezam o homem só por causa da orgia Gosto que me enrosco de ouvir dizer Que a parte mais fraca é a mulher Mas o homem, com toda a fortaleza Desce da nobreza e faz o que ela quer Dizem que a mulher é a parte fraca

    Nisto é que eu não posso acreditar Entre beijos e abraços e carinhos O homem não tendo é bem capaz de roubar pra dar" ("Gosto que me enrosco", samba de Sinhô, gravação original de

    Mário Reis, de 1928)

    De alguma forma eu via que a terapia estava dandoresultado, pois eu já percebia o quanto a F1 era uma furada,sem partida e sem chegada, e já não me comprazia emmanter essa porcaria contínua pra mim.

    Nem que fosse a terapia do espelho, pois, pra sertotalmente sincero, eu via de uma maneira muito poucoabonadora a competência da minha linda amiga F2.

    Iria visitar Laura, mas, antes que eu ligasse, quase nahora da saída, fui cercado pelos olhares inquietos de Androgenio e Benolário, que eram na verdade dois pólosantagônicos, se o leitor, se é que há leitor, estará lembrado.

    Quem se aprochegou foi mesmo o Benolário: — Se cuida, maluco, hoje o Androgenio está atacado,

    falou que vai ficar esperando lá fora, e vai te chamar às

    falas, que não adianta você tentar fugir. — Ahn? Hein? Quê? — Ele falou que não suporta mais o seu desdém e as

    suas provocações, e hoje vai ter uma conversa com vocêde homem pra homem.

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    — Mas eu nem reparo naquele imbecil! Como possoprovocá-lo?!

    — Pois se você está agora mesmo xingando o cara! Nãoconsegue se referir a ele com termos menos baixos?

    — É. Acho que não. Brigar é chato, eu sempre achei.Então tá, deixa a briga pro capítulo que vem.

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    A BRIGA

    O CAPÍTULO CHEGA RÁPIDO, e, quando eu vejo, já estou naesquina, cercado pelos basbaques da repartição e transeuntescuriosos, cara a cara com o arquiinimigo de si mesmo e dosoutros, que se projetou, de novo, como num espelho, emmim.

    Situação embaraçosa, ridícula, infeliz, que eu sempreodiava quando acontecia na minha infância, que tentava

    evitar ao máximo, e que me perseguia, as pessoas por algummotivo ignorado adoravam brigar comigo.Pensei: vou tentar conciliar.Saco!Entendi o que eu queria falar com a F1, naquela hora,

    num átimo, e precisava falar com ela urgente, pelo menospra não esquecer a minha decisão. Ou era um truque daminha paixão pra vê-la ainda mais uma vez?

    O cara falava irado, vermelho, lançando perdigotos,com as veias do pescoço inchadas, e eu não ouvia o que

    ele falava, pensava apenas que aquele idiota ali na minhafrente estava atrapalhando e atrasando as minhasimportantíssimas e evolucionárias conversas com a Laurae a Flávia 1.

    O ogro cada vez inchava de raiva, mais rubro, cuspindo

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    enquanto gritava e suas veias saltavam, vinha vindo maispra cima de mim, quase encostando, e eu pensando nelas.

    Dei um passo pra trás, juntei as duas mãos entrelaçadas,com os braços esticados, levei-os pra trás do meu ombrodireito, e dei um golpe com toda força que amealhei noinstante na cara do alienado agressor, acertando-o com umcoice da minha impaciência apaixonada, produzido por

    minhas duas mãos enlaçadas, cúmplices, eu tamanho amigode mim.Ele caiu no chão desacordado. A assistência fez um "oh!" assoberbado.E eu saí caminhando calmamente dali, fui pegar o táxi

    na outra rua, pra não virem falar comigo sobre aquelapalhaçada.

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    A LOURA, SORRY, A LOUCA

    PUXEI O CELULAR DO BOLSO e apertei o nome dela queestava sempre ali selecionado.

    Enquanto isso fazia sinal pra um táxi, que parou namesma hora, em plena Rio Branco, às seis da tarde, a paródiados filmes roliudianos estava cheirando a palhaçada!

    Ela atendeu. — Flávia 1.

    — Que babaquice é essa de Flávia 1? — Nada não. Vamos conversar. Agora.Ela começou uma fala miada e enlonguecida, que sempre

    fazia, que cheirava a atração feminina, mas que era na verdade preguiça existencial misturada com metidice (sebice,mania de grandeza, se achava melhor, ninguém no mundosabe por quê, muito menos ela).

    — Sério, Flávia. Agora. É urgente. — Tá beeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeee...Não esperei ela terminar o monossílabo.

    Entrei no táxi que me aguardava num pastiche ridículodas novelas simiescas que uma emissora qualquer impingeao povo brasileiro e falei:

    — Toca prà casa dela!Numa paráfrase sem graça de romances pósmodernosos

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    vitaminados com euros e outras substâncias nutrientes, noparágrafo seguinte eu já saltava na frente do prédio,adentrava a porcaria, subia pelo elevador, e tocava acampainha.

    — Fala rápido, tenho um compromisso daqui a pouco. — Bom. Não quero mais te ver. Eu te amo, te desejo,

    no entanto, você é muito nojenta. Se diz minha amiga, mas

    não é, porque se fosse gostava de mim, me tratava bem,não seria escrota comigo. Diz que sou seu amigo, pois nãosou, porque desejo você, e não quero de jeito nenhum ver você com outro cara. Sei que você não será feliz assim doseu jeito, e, digamos, esta conversa é o último presente queeu te dou. Não quero que você encontre alguém, e ficofeliz que a sua maldade lhe tenha dado esse carma de sersempre tratada no final por eles como você trata os homens,do mesmo jeito que você tratou a mim. No fundo, já nãome importa se você fica com alguém ou não. Seja feliz.

    Porém, se lembre que um dia, muito breve, você não serámais uma moça jovem, e não vai encontrar pseudo-adoradores pra manipular. O que você vai fazer? "Meimplorando, já desiludida, o meu perdão. Pra eu dizer quenão", como dizia o gênio Noel. Tchau.

    Eu ia saindo todo feliz.Ela me segurou, falei: "me larga" e puxei a manga, ela se

    colocou na frente da porta. Sorria má, ela sempre sorriamá, mas agora estava mais ainda.

    — Eu também vou te dar um último presente, Dom

    Carlos. O senhor se considera melhor que os outros, masnão é. Tem complexo porque é feio e baixo, fala que tem1,70, tem menos. Eu vou ficar velha e talvez não seja tãoobsessivamente cortejada, como agora, mas vou continuargostosa, e gostando, e, principalmente, sendo simpática, e

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    sempre terei admiradores. Você não se admira, não admiraninguém. Não suporta conversar. Quem que te quer? Vocêera feio e baixinho quando era jovem, e agora, maduro,está mais ainda. Você exige demais, e não dá nada em troca.Então, estou achando muito bom a gente se separar poraqui.

    Eu saí sem falar mais nada, pois ela sempre picava,

    pequena cobra coral venenosa, porque é má, e eu sócompreendia isso agora, como uma venda que caiu dosmeus olhos.

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    BÔNUS

    NÃO FUI DIRETO VERa Laura, estava muito agitado, fuidormir, sem ver tv nem comer gordura, porque não estavamais afim de porcaria.

    No dia seguinte fui pro escritório feliz como umpassarinho, cantando pelo ônibus.

    Quando cheguei todos me olhavam como quem olhaum louco.

    Fui chamado na coordenação que me falou que estavafired por justa causa, porque batera num colega. — Ele que quis brigar! — Você o provoca e humilha todo dia. Agora o

    espancou. Todos testemunharam a favor dele!Peguei o cheque, just cause com fundos, e saí flanando

    pelas ruas.Estava livre de Benolário, Androgenio e quarenta outros

    cretinos, e ainda, por bônus, e abono, tinha deletado osnúmeros da póscretina F1 das memórias minha, da agenda

    e do celular. Tanta alegria num só dia não precisa de: papo cabeçacom a ex, tv ou gordura.

    Comi uma salada de frutas e entrei na farra de um livro genial. A conversa com ela fica pro próximo episódio!

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    A HISTÓRIA COMEÇA

    FUI DORMIR FELIZ.No meio do sono, sou despertado por um ruído

    insuportável, e vejo o teto e as paredes da nova casadesabando sobre mim.

    Ia acordando naquele fragmento de segundo, e vendoas paredes se aproximando, lembro de ter conseguidopensar: Meu Deus, a casa está caindo, de novo! Como issopode ter acontecido?

    Pois naquele átimo eu até me lembrei do quanto asparedes pareciam seguras e firmes, diferentemente damansarda anterior.

    Mas não senti a dor nem os tijolos batendo, ao contrário,parecia que eu me projetava para além deles, e agora sentiaa claridade da rua, o céu azul, e a luz brilhante e quente dosol iluminando com toda força a minha pele branca e nua.Nua! Como assim?

    E onde estavam os destroços?Percebi que eu estava nu por completo, havia fragmentos

    de terra sob mim, nada de móveis ou paredes ou escombrosem volta, e muito menos casas! Uma rua deserta deconstruções?

    Olhei melhor, e vi casas sim, mas pareciam de brinquedo,à minha volta.

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    E o que eu sentira como gravetos sob meu corpo, eramos destroços da minha antiga morada. E a minha roupa hámuito se rasgara, e jazia esquecida no chão. E eu nada sentira,porque fora meu corpo que destruíra a casa e as roupas,inundado agora de inusitadas forças e formas, e novasdimensões!

    Eu tinha virado um gigante! (Seria sonho?)

    Estava tão perturbado e confuso e cheio de medo, queresolvi deixar o resto deste incidente para o próximocapítulo.

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    UM ÉDIPO RIDICULAMENTE GRANDE

    EU AGORA ERA UMgigante. Definitivamente, tinha certeza.Do tamanho de um prédio de uns oito andares, quando

    de pé, eu deveria ter uns quinze metros ou mais de altura,ou altitude.

    Estava atônico, estupefato.Como aquilo fora acontecer?E no meio de tantas ideias tresloucadas, a mais forte e

    mais absurda de todas me dominava: diante do meu atualtamanho despropositado, não fazia mais sentido nenhumme preocupar com a leviandade de Flávia Um, as opiniõesde Flávia Dois, as cobranças de Laura, os traumas deMarquinho, a culpa em relação a minha mãe e a meu pai.

    Forcei-me a concentrar.Eu estava ali sobre os restos da casa alugada, a rua deserta

    porque as pessoas deveriam ter fugido do barulho, porém,com certeza, daqui a pouco, todos viriam ver o queacontecera. E o que fariam diante do meu gigantismo?

    E como eu iria arranjar comida?E onde arrumaria roupas do meu tamanho (estava nu!)?E onde iria me abrigar?Fiquei realmente preocupado.Por mais absurdo que fosse, com tanta coisa pra me

    preocupar, o medo e a fome que já estava se insinuando

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    com força total, e o que eu poderia comer tão grande assim?,com tudo isso eu ficava pensando numa frase que lera numaestorinha de Lispector, uma bela escritora ucro-brasileira,que dizia algo assim: aquela "era a maior repulsão de que jáfora vítima: eu não cabia".

    Sublinhei essas duas palavras na minha memória, umaporque era engraçada, física, o moral sempre foi físico, e, nomeu caso, agora é, mesmo. A outra por absurda, eu não era vítima de nada, nem ninguém nunca iria pensar assim não,de forma nenhuma, eles com seu metro e meio pouco mais,eu com mais de quinze ou dezessete — mas o certo é que, seeu sempre me senti assim, isso era moral?, agora phisica est,física es, física ist, physics is, phýsika estín, física é, pois é.

    Num livro para aprender a comer menos e não ficarobeso o autor manda o leitor imaginar que o doce vaiinchando inchando até ficar enorme e explodir. Opensamento é que o doce além das medidas normais eexplodindo fica ridículo e deixa de ser atrativo para o gordo.

    Ele imaginou Flávia nua, enorme, crescendo cada vezmais.

    Lembrou também de outro livro, onde o personagemprincipal era apaixonado por Marilyn Monroe, que, numcapítulo, fica do tamanho de uma montanha, tornando-semonstruosa e nada atraente (Panamérica, de José Agrippinode Paula).

    Conclusão: ele estava horrível, se nunca foi amado, se éque não foi, agora mesmo que não seria, sério.

    Não devia perder tempo com isso!

    Estava com fome!Muita fome!Uma fome de Gargântua e Pantagruel, de Rabelais!E ouvia brados ao longe, logo atrás da esquina, na virada

    da página e do capítulo.

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    A FUGA

    REALMENTE UMA ENO RME multidão se aproximava,ameaçadora.

    Gritavam e berravam, enlouquecidos, xingamentos eameaças.

    Traziam nas mãos os mais enlouquecidos tipos de armas,ancinhos, garfos, abridores de lata, de garrafa, revólveres,tudo.

    De longe ativaram, uma bala tocou nele, mas não entrou.Ele se sentiu só um pouco aliviado. A população nem considerava a possibilidade de ouvi-

    lo ou tentar entender o que estava acontecendo.E logo viria a polícia e a política, o exército e seus

    veículos, o governo brasileiro e a sua bomba atômica"secreta".

    Ele se levantou e saiu correndo, deixando rapidamentea multidão furibunda pra trás, e tentando hardly não pisarnas palavras e nas coisas, nas máquinas ou nas pessoas.

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    PRATO FUNDO

    CONSEGUIU ENCONTRAR UM campo cheio de vegetação,onde havia muitas árvores que meio que o escondiam, eum rio, onde ele podia beber a vontade.

    O problema da fome é que ele nem conseguia imaginarcomo resolver.

    E a nudez. Estava calor, mas se chovesse, se fizesse frio?E como seria o horror dos outros, ao vê-lo assim, tãogigantesco e nu? Ah, se pelo menos conseguisse imaginar

    onde e como encontrar um pano tão grande que o pudessecobrir, um prato tão fundo que o pudesse alimentar.Sentou-se cansado à beira do riacho.Sorveu do precioso líquido o que parecia um

    carregamento de carro pipa. A saciedade da sede amainou, pelo menos por hora, a

    tirana fome. Agora precisava pensar.Mesmo que houvesse uma roupa que lhe coubesse, um

    alimento que lhe bastasse, sabia que ele ainda assim iria se

    sentir esfaimado e exposto.Por quê?Sempre fora desse jeito, mesmo quando tinha um metro

    e sessenta e nove, e o armário cheio de calças e camisas, e ageladeira repleta de massinhas.

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    Tinha um sentido ambíguo em relação às refeições, quelhe apeteciam e semelhavam sempre ser deliciosas, e, aomesmo tempo, davam-lhe toda vez uma imprecisão, umaimpressão monótona de uma bomba de carboidratos, deuma massa indiferenciada, uma gosma, sobre a qual boiavamos quatro sabores (doce, salgado, amargo, azedo) que alíngua podia distinguir, e os múltiplos aromas (geralmente

    artificiais, nos produtos vendidos em nossos mercados,inclusive quando se dizem "naturais" e "light", bom, luztudo e = mc2, como já mostrou o velho Albert).

    Meu Deus!Pensou ele. Como estava fugindo do ponto. Precisava

    bolar uma estratégia, imaginar, ou melhor, conceber umplano de ação, pois acordara agigantado, não sabia por quê,sentia que em sua volta a população se agitava, e conhecia aobtusidade dos seres humanos, e, por cima de tudo, pensavacomo poderia agora satisfazer às suas necessidades básicas,

    que se tornaram colossais.

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    A FOME E O COME

    SÓ CONSEGUIA PENSARbesteiras, como eu pareceria paraas pessoas conhecidas quando me vissem, se estava nosnoticiários, como poderia me vestir... Pensamentosdesencontrados, que vinham num turbilhão, e não conseguiame fixar em nenhum deles, e me sentia como um bonecode pano no meio de um vendaval, ou um furacão.

    Mas. A fome apertava muito, não dava mais para ignorar.Olhava em volta e só via selva, ao meu pé o riacho

    salvador. No entanto, eu sabia que havia uma auto-estradaa noroeste, de onde eu viera de manhã cedo, na fugadesabalada.

    Voltei andando devagar na direção da rodovia. Via meucorpo nu, enorme, e tinha medo e vergonha, quando meavistassem, o que iriam pensar? Bem, me consolei, iampensar quase a mesma coisa, estivesse vestido ou não.

    Ao chegar na estrada vi alguns carros passando, e elestambém me viram, e perderam o controle, queriam fugirem todas as direções, provocando um número incrível deacidentes em alguns minutos, e um engarrafamento tambémgigantesco.

    Por que será que simplesmente ao me avistar todossupunham que os iria atacar?

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    Me lembrava dos sem número de vezes que vira ao vivoe na mídia as pessoas debo