Gabriel PPGD

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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DO PARANÁ CENTRO DE CIÊNCIAS JURÍDICAS E SOCIAIS PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM DIREITO GABRIEL GINO ALMEIDA A VOCAÇÃO SOCIOAMBIENTAL DA RESERVA FLORESTAL LEGAL CURITIBA 2011

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  • PONTIFCIA UNIVERSIDADE CATLICA DO PARAN CENTRO DE CINCIAS JURDICAS E SOCIAIS

    PROGRAMA DE PS-GRADUAO EM DIREITO

    GABRIEL GINO ALMEIDA

    A VOCAO SOCIOAMBIENTAL DA RESERVA FLORESTAL LEGAL

    CURITIBA 2011

  • GABRIEL GINO ALMEIDA

    A VOCAO SOCIOAMBIENTAL DA RESERVA FLORESTAL LEGAL

    Dissertao apresentada ao Programa de Ps-Graduao em Direito da Pontifcia Universidade Catlica do Paran, como requisito parcial para a obteno do ttulo de Mestre em Direito.

    Orientador: Prof. Dr. Carlos Frederico Mars de Souza Filho

    CURITIBA 2011

  • GABRIEL GINO ALMEIDA

    A VOCAO SOCIOAMBIENTAL DA RESERVA FLORESTAL LEGAL

    Dissertao apresentada ao Programa de Ps-Graduao em Direito da Pontifcia Universidade Catlica do Paran, como requisito parcial para a obteno do ttulo de Mestre em Direito.

    COMISSO EXAMINADORA

    Prof. Dr. Carlos Frederico Mars de Souza Filho Pontifcia Universidade Catlica do Paran

    Prof. Dr. Heline Sivini Ferreira Pontifcia Universidade Catlica do Paran

    Prof. Dr. Solange Teles da Silva Universidade Presbiteriana Mackenzie

    Curitiba, 24 de maro de 2011.

  • minha esposa Tatiana, por me ensinar que muito mais importante do que contar com algum forte ao

    seu lado contar com algum que te fortalea, e minha querida amiga Ivanete Justina Suzin Pereira,

    por ter estimulado e acompanhado de perto, desde o processo seletivo, este Mestrado e por certamente

    estar observando, agora mais do alto e imagino que sentada numa nuvem, a sua concluso.

  • AGRADECIMENTOS

    Ao meu orientador Carlos Mars, amigo que dedicou a mim tanta ateno, cuidado e pacincia quanto aquele cacique que generosamente aceita um forasteiro como se membro de sua tribo fosse.

    minha famlia, sempre abundante em carinho, apoio, estmulo e amor.

    Ao meu grande amigo Leonardo Zagonel Serafini, irmo mais velho, ainda que sem qualquer lao de sangue.

    Ao Escritrio de Advocacia Passos de Freitas & Oliveira Franco, que abriu para mim as portas de uma das maiores e melhores bibliotecas de Direito Ambiental do Brasil, sendo o acervo do Professor Vladimir Passos de Freitas responsvel pelo enriquecimento exponencial do segundo captulo desta dissertao.

    Eva Curelo, j que a amizade construda nestes dois anos certamente uma das maiores conquistas deste Mestrado.

    Coordenao de Apoio ao Pessoal de Nvel Superior (CAPES) do Ministrio da Educao, rgo que acreditou e investiu nesta pesquisa.

  • Verifica-se, porm, que no se pode fazer a fraternidade, porque ela se faz por si, concede-se por si, encontrada na natureza. Todavia, na natureza do francs e, em geral, na do homem do Ocidente, ela no encontrada, mas sim o princpio pessoal, individual, o princpio da acentuada autodefesa, da auto-realizao, da autodeterminao em seu prprio Eu, da oposio deste Eu a toda a natureza e a todas as demais pessoas, na qualidade de princpio independente e isolado, absolutamente igual e do mesmo valor que tudo o que existe alm dele. (Fidor Dostoivski, trecho extrado de Ensaio sobre o Burgus, crnica publicada em 1863 aps viagem realizada pelo escritor russo Paris no vero anterior).

  • RESUMO

    A Reserva Florestal Legal uma poro de rea, varivel de acordo com a localizao do bem imvel no Brasil, que deve existir no interior de toda terra rural ocupada em regime de propriedade ou posse e ser composta por florestas e demais formas de vegetao nativa, a serem mantidas ou utilizadas exclusivamente sob o regime de manejo florestal sustentvel. Avaliar se este instituto jurdico possui vocao socioambiental, desde quando e quais so as possibilidades que esta vocao oferece concretamente para o desempenho de novas funes que beneficiem no apenas a biodiversidade, mas tambm a sociodiversidade so as finalidades da presente pesquisa. O estudo revela que o Direito Socioambiental um efeito colateral (imprevisto e indesejado) do processo histrico de ocupao territorial do Brasil. Impregnadas pela lgica do melhoramento (aumento da produtividade da terra visando exclusivamente o lucro), as Sesmarias, o Cdigo Imperial de Terras e a concepo capitalista de direito de propriedade privada respaldaram a expulso da biodiversidade e da sociodiversidade das terras brasileiras. A crise socioambiental causada por tal processo de expulso foi percebida pela sociedade no sculo XX, que, uma vez mobilizada, provocou o florescimento de institutos jurdicos contrrios lgica do melhoramento, o nascimento do socioambientalismo e a prpria positivao do Direito Socioambiental, ocorrida no final do sculo passado. Aps apresentar a Reserva Florestal Legal, explicando sua natureza jurdica, sua evoluo histrica normativa (reveladora de que o instituto no nasce socioambiental, mas adaptado, na verdade exaptado), suas caractersticas principais, seus mecanismos de regularizao e as consequncias jurdicas decorrentes da sua violao, o estudo prope alternativas para a ampliao do alcance do instituto jurdico ao ponto de ser efetivado em benefcio de Povos e Comunidades Tradicionais, tutelando assim no mais s a biodiversidade, mas tambm os modos de criar, fazer e viver daqueles grupos sociais.

    Palavras-chave: Vocao. Direito Socioambiental. Reserva Florestal Legal. Biodiversidade. Sociodiversidade. Povos e Comunidades Tradicionais.

  • RESUMEN

    La Reserva Florestal Legal es una porcin de rea, variable de acuerdo con la ubicacin del bien inmueble en Brasil, que debe existir en el interior de toda tierra rural ocupada en rgimen de propiedad o posesin y ser compuesta por florestas y dems formas de vegetacin nativa, a seden mantenidas o utilizadas exclusivamente bajo el rgimen de manejo florestal sostenible. Evaluar se este instituto jurdico tiene vocacin socioambiental, desde cundo y cuales son las posibilidades que esta vocacin ofrece concretamente para el desempeo de nuevas funciones que beneficien no apenas la biodiversidad, mas tambin la sociodiversidad son las finalidades de la presente pesquisa. El estudio revela que el Derecho Socioambiental es un efecto colateral (imprevisto y indeseado) del proceso histrico de ocupacin territorial del Brasil. Impregnadas por la lgica del mejoramiento (aumento de la productividad de la tierra visando exclusivamente el lucro), las Sesmarias, el Cdigo Imperial de Tierras y la concepcin capitalista de derecho de propiedad privada respaldaron la expulsin de la biodiversidad y de la sociodiversidad de las tierras brasileas. La crisis socioambiental causada por tal proceso de expulsin fue percibida por la sociedad en el siglo XX, que, una vez mobilizada, provoc el florecimiento de institutos jurdicos contrarios a la lgica del mejoramiento, el nacimiento del socioambientalismo y la propia positivacin del Derecho Socioambiental, ocurrida en el final del siglo pasado. Despus de presentar la Reserva Florestal Legal, explicando su naturaleza jurdica, su evolucin histrica normativa (reveladora de que el instituto no nace socioambiental, pero es adaptado, en verdad exaptado), sus caractersticas principales, sus mecanismos de regularizacin y las consecuencias jurdicas decurrentes de la su violacin, el estudio propone alternativas para la ampliacin del alcance del instituto jurdico al punto de ser efectivado en beneficio de Pueblos y Comunidades Tradicionales, tutelando as no ms solo la biodiversidad, mas tambin los modos de crear, hacer y vivir de aquellos grupos sociales.

    Palabras-clave: Vocacin. Derecho Socioambiental. Reserva Florestal Legal. Biodiversidade. Sociodiversidade. Pueblos y Comunidades Tradicionales.

  • SUMRIO

    RESUMO.......................................................................................................................vii RESUMEN....................................................................................................................viii 1. INTRODUO.........................................................................................................10 2. DIREITO SOCIOAMBIENTAL: EFEITO COLATERAL DO PROCESSO DE OCUPAO TERRITORIAL DO BRASIL..............................................................19 2.1. O DIREITO A SERVIO DO MELHORAMENTO DA TERRA......................21 2.2. O MELHORAMENTO DAS TERRAS PORTUGUESAS PELAS SESMARIAS...................................................................................................................36 2.3. O MELHORAMENTO DAS TERRAS BRASILEIRAS PELAS SESMARIAS...................................................................................................................42 2.4. O MELHORAMENTO DAS TERRAS BRASILEIRAS ATRAVS DA LEI IMPERIAL DE TERRAS................................................................................................56 2.5. A PROLIFERAO DE FOCOS DE ENFRETAMENTO AO MELHORAMENTO DA TERRA NO DIREITO BRASILEIRO DO SCULO XX...................................................................................................................................67 2.6. DO SOCIOAMBIENTALISMO AO DIREITO SOCIOAMBIENTAL..................84 2.7. A FORA QUE NASCE DA FRAQUEZA.............................................................88 3. RESERVA FLORESTAL LEGAL..........................................................................92 3.1. ESPAOS TERRITORIAIS ESPECIALMENTE PROTEGIDOS.........................94 3.2. DIREITO FLORESTAL BRASILEIRO: UMA RELEITURA DO DIREITO DE PROPRIEDADE DA TERRA.........................................................................................97 3.3. UMA EXAPTAO JURDICA: A EVOLUO HISTRICA NORMATIVA DA RESERVA FLORESTAL LEGAL........................................................................108 3.4. PRESSUPOSTO OU REQUISITO?......................................................................121 3.5. PORES TERRITORIAIS DE MANEJO..........................................................124 3.6. INTERPRETAO DOS EFEITOS DA OBRIGAO DE AVERBAO NA MATRCULA IMOBILIRIA.....................................................................................131 3.7. CAMINHOS PARA A REGULARIZAO........................................................134 3.8. CONSEQUNCIAS JURDICAS POR DESCUMPRIMENTO...........................140 4. A EFETIVAO DA RESERVA FLORESTAL LEGAL EM BENEFCIO DE POVOS E COMUNIDADES TRADICIONAIS.......................................................147 4.1. QUEM SO OS POVOS E COMUNIDADES TRADICIONAIS DO BRASIL?.......................................................................................................................155 4.2. O ACOLHIMENTO DOS POVOS E COMUNIDADES TRADICIONAIS PELO DIREITO.......................................................................................................................161 4.3. VOCAO SOCIOAMBIENTAL: AMPLIANDO O ALCANCE DA RESERVA FLORESTAL LEGAL..................................................................................................167 5. CONCLUSO..........................................................................................................174 6. REFERNCIAS.......................................................................................................175

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    1. INTRODUO Ningum se surpreende com a ideia de que algo que j exista possa

    desempenhar uma funo nova e completamente diversa em virtude de alteraes conjunturais ocorridas no ambiente.

    Os bilogos chamam de exaptao, termo criado em 1982 pelo paleontlogo Stephen Jay Gould e pela paleoantroploga Elizabeth Vrba, as adaptaes biolgicas que no evoluem em virtude de presses seletivas exercidas sobre uma funo atual, mas sim em razo de presses seletivas que exigem adaptaes para o desempenho de funes novas e diferentes.

    Isso explica como estruturas pr-existentes de organismos vivos executaram originariamente funes completamente diferentes daquelas que executam hoje. Exemplo disso so os ossos dos vertebrados, originariamente responsveis por uma funo de armadura protetora ou mtodo de armazenamento de fosfato e clcio, desempenham hoje funes de suporte esqueltico e de alavancas para msculos.

    Seguramente este tipo de adaptao biolgica s se revela possvel quando as pr-condies necessrias para o desempenho da nova funo j esto presentes, ainda que se encontrem sem uso ou envolvidas no desempenho de outras funes.

    Portanto, a vocao, entendida como a reunio das pr-condies que permitem o desempenho de determinadas funes, o principal pressuposto para que ocorra uma adaptao ou mesmo uma criao.

    Afinal, qualquer coisa s o que porque sempre possuiu vocao para ser,

    bem como s se adapta quilo que sempre possuiu vocao para se converter. O martelo uma ferramenta manual que s capaz de desempenhar funo

    consistente na fixao de pregos porque possui um cabo e uma cabea romba (no afiada) na sua parte superior, que pode ser de ao, borracha ou madeira.

    Funcionando a cabea romba como dispositivo de liberao no alvo da energia acumulada e o cabo, local em que se deve segurar a ferramenta, como um mecanismo de eliminao das vibraes e de aumento da velocidade do golpe, o martelo um instrumento de amplificao de fora, j que converte trabalho mecnico em energia cintica (armazenada na cabea a cada movimento) e presso, ambas ampliadas pela fora da gravidade.

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    Jamais um martelo poder desempenhar a funo de machado, pois no possui vocao para tanto. Afinal, o desempenho da funo de corte de madeira exige, alm do cabo (tambm presente no martelo), a presena da pr-condio lmina perpendicular com borda estreita e afiada num dos lados da cabea.

    Muito embora o martelo no rena pr-condies para ser convertido em machado, j que sua cabea sem fio no permite o desempenho da funo de corte, o machado, por sua vez, pode se adaptar para desempenhar a funo de martelo.

    Afinal, o machado comumente possui lmina em apenas um dos lados de sua cabea, sendo o outro lado formado por uma ponta achatada, que, aliada ao cabo, pode perfeitamente funcionar como um amplificador de fora para a fixao de pregos, mediante a converso de trabalho mecnico em energia cintica e presso.

    Reunindo as pr-condies necessrias para o desempenho da funo de martelo, o machado possui vocao de martelo, ainda que no seja muito frequente a sua adaptao devido ausncia de alteraes conjunturais no ambiente que exijam isso.

    Se so chamadas de exaptaes biolgicas as adaptaes de estruturas pr-existententes de organismos vivos para o desempenho de funes novas e diferentes, nada impede que ao machado seja atribudo o ttulo de exaptao fsica.

    Havendo casos de exaptao na cincias da Biologia e da Fsica, revela-se oportuno investigar se a exaptao um fenmeno que tambm pode ocorrer no Direito. Em outras palavras, possvel que um instituto jurdico pr-existente passe a exercer funo nova e completamente diversa daquela que originalmente desempenhava em virtude de alteraes conjunturais ocorridas nos ambientes social e normativo?

    Antes de responder indagao, cumpre recordar que o Direito uma cincia que no concentra seu foco de estudo no mundo concreto, ao contrrio do que acontece na Biologia e na Fsica.

    Os biolgos dedicam seus estudos compreenso e descrio do funcionamento dos organismos vivos e suas interaes, enquanto os fsicos dedicam seus estudos compreenso e descrio de fenmenos naturais, sempre envolvendo matria e energia.

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    O funcionamento dos organismos vivos, suas interaes com o ambiente e os fenmenos da natureza no dependem da existncia de seres humanos neste planeta e tampouco da compreenso dos mesmos em relao a eles para existirem.

    Tratam-se de leis da natureza, como so as leis da gravidade e da ao e reao, ambas descritas por Isaac Newton, e a lei da segregao independente dos genes, descrita por Gregor Mendel. Portanto, resta aos biolgos e fsicos o desafio de inventar formas abstratas de descrever sistemas e fenmenos (por meio da proposio de frmulas e teorias) com a finalidade de permitir a compreenso humana daquilo que acontece no mundo real, oferecendo a possibilidade de criao de mecanismos para seu aproveitamento til.

    J o Direito no se dedica ao estudo da realidade. As leis da natureza, aquilo que acontece independente de participao humana no mundo concreto, no integram seu objeto principal de estudo.

    Muito pelo contrrio, debruando-se sobre sistemas de normas que regulam as relaes sociais, o Direito investiga uma criao cultural, sistemas de normas no apenas descritos, mas tambm inventados por seres humanos para regular suas relaes.

    Sendo assim, seu objeto de estudo so leis humanas, que s existem em virtude da inventividade de homens e mulheres.

    Residindo exclusivamente no mundo abstrato das ideias, as leis humanas expressas nas normas jurdicas no precisam estar necessariamente amarradas ao mundo real, de tal maneira que podem at mesmo vir a negar a vigncia de leis da natureza.

    Embora seja uma aberrao, nada impede a edio de uma lei que, cumprindo rigorosamente todas as etapas do processo legislativo, revogue a lei da gravidade ou altere a redao da clebre terceira lei de Newton, segundo a qual a toda ao corresponde uma reao em sentido oposto de igual intensidade e direo.

    Nenhum jurista tem a menor dvida de que a nova lei formalmente perfeita e vlida, pois, mesmo no tratando de relao social, acolhida por fora de presuno de legitimidade pelo sistema normativo, integrando assim o objeto de estudo do Direito, ainda que seja para que esta cincia impiedosamente aponte todos os motivos pelos quais ela merece ser expulsa do ordenamento jurdico.

    O oferecimento de argumentos jurdicos para a expulso de uma lei do sistema normativo no deixa de ser um reconhecimento de que a nova lei compe tal

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    sistema. S se pode expulsar aquilo que est inserido, aquilo que est fora j estaria expulso.

    Portanto, no se pode negar que o Direito, na qualidade de cincia que se dedica a invenes humanas abstratas, aceita e consequentemente pode estudar normas desprovidas de qualquer possibilidade de surtir efeitos no mundo real. At porque o estudo da efetividade da norma ainda ocupa um campo muito recente e infelizmente bastante reduzido da cincia jurdica.

    Relembrado que o Direito, diferentemente da Biologia e da Fsica, estuda invenes humanas que s existem no mundo abstrato das ideias, deve-se retornar indagao: a exaptao um fenmeno que tambm pode ocorrer no Direito?

    A resposta sim. Na verdade, nem sequer raro que um instituto jurdico pr-existente passe a exercer funo nova e completamente diversa daquela que originalmente desempenhava em virtude de alteraes conjunturais ocorridas nos ambientes social e normativo.

    Diante da resposta, natural que se pergunte: onde est ento a diferena entre as exaptaes jurdicas e as exaptaes biolgicas e fsicas?

    Na vocao. Segundo as leis da natureza, inevitavelmente presas realidade e objeto de estudo da Biologia e da Fsica, qualquer coisa s o que porque sempre possuiu vocao para ser, bem como s se adapta quilo que sempre possuiu vocao para se converter.

    Por esta razo, a dedicao de uma pesquisa biolgica ou fsica avaliao da vocao de algo que j no tem muito relevncia, pois no pairam dvidas sobre o fato de que aquilo rene as pr-condies que permitem o desempenho das funes que exerce.

    No entanto, o exame da vocao de institutos jurdicos no Direito goza de relevncia mpar.

    Isso porque, segundo as leis humanas, tradicionalmente comprometidas muito mais com o mundo abstrato das ideias do que com a realidade, um instituto jurdico pode ser ou ser transformado em algo sem que tenha vocao para tanto, na medida em que para ser ou ser convertido basta que a norma assim o diga, aps ter sido submetida ao correspondente processo normativo de aprovao, aperfeioamento e validao.

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    A vocao, principal pressuposto para a ocorrncia de exaptaes biolgicas e fsicas, no constitui pressuposto e nem sequer requisito para a ocorrncia da exaptao jurdica no ambiente normativo.

    Entretanto, pressuposto para sua efetividade (mecanismo de conexo do mundo abstrato das ideias com o mundo concreto), sendo indispensvel para que o instituto jurdico adaptado exera no mundo real a nova funo imposta pela alterao normativa.

    Por este motivo, revela-se bastante relevante para os juristas preocupados com a efetividade da norma dedicar uma pesquisa jurdica avaliao da vocao de um instituto jurdico que j .

    A finalidade de tal investigao deve ser avaliar se tal instituto rene as pr-condies que permitem o desempenho das funes que se deseja que exera a partir da alterao normativa, assim como se concretamente o instituto jurdico j as exercia e se poder vir a ser adaptado novamente para exercer novas funes condizentes com sua vocao no futuro.

    Acolhendo integralmente este raciocnio, mesmo porque construdo em seu seio, a presente pesquisa objetiva avaliar se a Reserva Florestal Legal, exaptao jurdica do Cdigo Florestal brasileiro reconhecida hoje pela Lei Federal n 4.771/1965 como um instituto jurdico de Direito Socioambiental, possui tambm vocao socioambiental, desde quando e quais so as possibilidades que esta vocao oferece concretamente para o desempenho de novas funes que beneficiem no apenas a biodiversidade, mas tambm a sociodiversidade.

    A Reserva Florestal Legal uma poro de rea, varivel de acordo com a localizao do bem imvel no Brasil, que deve existir no interior de toda terra rural ocupada em regime de propriedade ou posse e ser composta por florestas e demais formas de vegetao nativa, a serem mantidas ou utilizadas exclusivamente sob o regime de manejo florestal sustentvel.

    Isto porque a presena de cobertura de vegetao nativa nestas reas permite a satisfao de funes ecolgicas e a prestao de servios ambientais, o que j representa significativa contribuio para a promoo do constitucionalmente almejado meio ambiente ecologicamente equilibrado.

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    Todavia, acredita-se que a vocao da Reserva Florestal Legal provoca uma reviso to profunda no conceito de propriedade da terra e dos recursos naturais ao ponto de permitir que se pense a possibilidade de alargamento do instituto jurdico, tornando-o capaz de resguardar tambm do aspecto cultural do meio ambiente, oferecendo alternativas para a ampliao do seu campo de atuao protetiva.

    No difcil perceber que a Reserva Florestal Legal gera benefcios ecolgicos e sociais, porm ainda no se vislumbra a possibilidade de sua efetivao para a proteo dos modos de criar, fazer e viver de Povos e Comunidades Tradicionais.

    Tendo em vista a contribuio que se prope a oferecer para a consolidao do pluralismo jurdico anunciado pela Constituio Federal e para a garantia do direito de existncia e de reproduo cultural de minorias que, excludas historicamente do processo de desenvolvimento adotado pela sociedade capitalista hegemnica envolvente, mantm uma relao fortssima de dependncia com o meio ambiente natural e se encontram em situaes de vulnerabilidade, o estudo apresenta considervel relevncia social.

    Adotando o mtodo de abordagem indutivo e o mtodo de procedimento monogrfico, bem como as tcnicas de pesquisa bibliogrfica e documental, a dissertao est estruturada da seguinte forma:

    O primeiro captulo se dedica a demonstrar que o Direito Socioambiental um efeito colateral do processo de ocupao territorial do Brasil. Identificando nos institutos jurdicos histricos de acesso terra brasileira a forte presena da lgica do melhoramento, que, guiada pelos imperativos da maximizao, competio e acumulao, consiste no aumento da produtividade da terra visando o lucro, evidencia-se que o Direito respaldou a excluso da biodiversidade e da sociodiversidade do processo histrico de ocupao territorial do pas.

    Contudo, separar tanto a terra da natureza e dos povos que a ocupam exatamente o que acarretou uma crise socioambiental de grandes propores, que, uma vez percebida, fez com que a sociedade provocasse no sculo XX o florescimento de institutos jurdicos contrrios perversa lgica do melhoramento da terra, abrindo espao para o nascimento do socioambientalismo e para a positivao do Direito Socioambiental.

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    No segundo captulo, concentram-se esforos para apresentar o instituto jurdico Reserva Florestal Legal, revelando sua natureza jurdica, sua evoluo histrica normativa, suas caractersticas principais, seus mecanismos de regularizao e as consequncias jurdicas decorrentes da sua violao.

    Por derradeiro, o terceiro e ltimo captulo se presta a apontar quais so as alternativas, harmnicas com sua vocao, para a ampliao do alcance da Reserva Florestal Legal ao ponto de ser efetivada em benefcio de Povos e Comunidades Tradicionais, observando-se os termos em que estes grupos sociais foram acolhidos pelo Direito ptrio.

    O consagrado escritor russo Fidor Dostoivski, sagaz observador do mundo e da sociedade em que viveu, escreve a crnica Ensaio sobre o Burgus em 1863, portanto, pouco mais de setenta anos aps a revoluo francesa e o consequente nascimento do Direito constitucionalista moderno e pouco menos de oito anos antes da Comuna de Paris.

    Nesta crnica, que integra a coletnea Notas de Inverno sobre Impresses de Vero, publicada originalmente na revista Epokha (A poca), Dostoivski relata as impresses da sua primeira viagem realizada Paris no vero de 1862.

    O trecho da crnica citado na abertura desta dissertao1 escancara que numa visita de poucos dias Paris de meados do sculo XIX j se podia perceber que a adoo do individualismo pela sociedade francesa, posteriormente estendida sociedade europia ocidental e s suas colnias, aniquilou qualquer princpio da fraternidade, principal pedra de toque no Ocidente europeu para o russo.

    Acumular fortuna e ter o maior nmero possvel de objetos transformou-se no principal cdigo de moralidade no catecismo do parisiense. Isto j existia antes tambm, mas agora, agora isso tem certo ar por assim dizer sagrado2 chega a registrar Dostoivski em suas Notas.

    1 Verifica-se, porm, que no se pode fazer a fraternidade, porque ela se faz por si, concede-se por si,

    encontrada na natureza. Todavia, na natureza do francs e, em geral, na do homem do Ocidente, ela no encontrada, mas sim o princpio pessoal, individual, o princpio da acentuada autodefesa, da auto-realizao, da autodeterminao em seu prprio Eu, da oposio deste Eu a toda a natureza e a todas as demais pessoas, na qualidade de princpio independente e isolado, absolutamente igual e do mesmo valor que tudo o que existe alm dele. (DOSTOIVSKI, Fidor. O Crocodilo e Notas de Inverno sobre Impresses de Vero. Traduo de Boris Schnaiderman. So Paulo: Editora 34, 2000. p. 131.) 2 DOSTOIVSKI, Fidor. Op. cit., p. 126.

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    Este olhar negativista sobre a Frana e a Europa capitalista se baseia na vivncia de um observador externo, que foi capaz de perceber que o individualismo acentuado pode esvaziar tanto a fraternidade ao ponto de anul-la.

    Interessa a esta pesquisa o relato de Dostoivski porque o sempre to comemorado Direito constitucionalista moderno se consolida na Frana precisamente neste perodo histrico, edificando-se assim sobre fundamentos individualistas e contratualistas de propriedade, dotados de carter marcadamente excludente e acumulativo.

    Sempre importado para o Brasil, o Direito constitucionalista moderno europeu naturalmente oferece uma estrutura jurdica muito pouco preparada para abrigar e garantir efetividade a direitos e institutos jurdicos prprios da fraternidade.

    Afinal, tais direitos transcendem o indivduo para se tornarem coletivos num sentido que supera a simples soma de direitos individuais e no admitem sequer abstratamente a divisibilidade da sua titularidade, consistindo nisso a sua difusidade, cujo desdobramento mais marcante a impossibilidade concreta e fictcia de sua individualizao e consequentemente de sua transferncia.

    O individualismo no aceita a fraternidade, mas s a caridade. Isso porque na caridade o indivduo doa voluntariamente aquilo que de sua propriedade, enquanto na fraternidade, em que nem sequer h propriamente propriedade3, todos os indivduos precisam reconhecer que aquilo nosso e por isso deve ser igualmente distribudo. O mais complicado na sociedade atual no a distribuio, mas sim o reconhecimento daquilo que nosso.

    A Reserva Florestal Legal e os demais institutos jurdicos do Direito Socioambiental decorrem da fraternidade, por esta razo a identificao da vocao socioambiental significa tambm a negao e o enfrentamento direto do individualismo e do contratualismo que permeiam e impregnam toda a estrutura do Direito brasileiro.

    Portanto, quanto mais pr-condies que permitam o desempenho de funes relacionadas fraternidade forem percebidas num instituto jurdico de Direito Socioambiental, mais obstculos a tradicional estrutura jurdica oferecer a sua efetivao. Em outras palavras, o baixo grau de efetividade de institutos jurdicos de

    3 Se o bem jurdico de todos ao mesmo tempo, porque no de ningum individualmente.

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    Direito Socioambiental pode ser resultado no da ausncia de vocao socioambiental, mas sim da forte presena da vocao socioambiental.

    Fundamentando-se na solidariedade ao invs da competio, na distribuio ao invs da acumulao e no uso racional ao invs da maximizao do uso, a Reserva Florestal Legal combate a lgica de melhoramento da terra e pode colaborar significativamente para a construo no de um Brasil melhorado, mas de um Brasil melhor, sendo a demonstrao deste argumento um dos maiores mritos aspirados nesta dissertao.

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    2. DIREITO SOCIOAMBIENTAL: EFEITO COLATERAL DO PROCESSO DE OCUPAO TERRITORIAL DO BRASIL

    A toda ao corresponde uma reao em sentido oposto de igual intensidade e direo. A terceira lei de Newton no pode ser aplicada ao Direito, pois descreve um fenmeno natural, uma lei da natureza, no guardando, portanto, qualquer relao com normas integrantes de sistemas criados culturalmente por homens e mulheres, leis humanas.

    No entanto, at mesmo no Direito as consequncias concretas de leis e atos normativos podem gerar, ainda que no necessariamente em sentido oposto e de igual intensidade e direo, reaes sociais, judiciais e normativas.

    O Direito Socioambiental uma reao normativa ao processo histrico de ocupao territorial do Brasil. Amparando-se nos institutos jurdicos das sesmarias e da venda de terras devolutas, assim como no direito absoluto de propriedade da terra e dos recursos naturais que ela abriga, a ocupao do territrio brasileiro seguiu por mais de quatrocentos anos fielmente uma nica diretriz: promover o melhoramento da terra.

    O melhoramento da terra brasileira, ao qual o Direito serviu docilmente, significou o desmatamento e substituio da diversidade de florestas, plantas e demais formas de vegetao nativas pelo plantio em larga escala de pouquissma variedade de espcies de plantas estranhas ao solo me gentil, especialmente cana-de-acar e caf.

    Significou tambm a migrao ou extermnio dos animais silvestres que viviam nestas terras antes da chegada dos europeus (j que as florestas, plantas e demais formas de vegetao nativas lhes serviam de abrigo e alimentao) e a substituio dos mesmos por animais domesticados de origem asitica e europia, teis s plantaes.

    Como se no bastasse, para o melhoramento da terra brasileira a nica forma de aproveitamento admitida pressupunha um uso individual e exclusivo da terra, excludente do compartilhamento com todos os demais, voltado para a mxima produo daquela pouquissma variedade de gneros alimentcios, que no se prestavam a abastecer e tampouco a satisfazer as necessidades bsicas dos habitantes do Brasil, mas sim o mercado internacional para que poucos acumulassem bens durveis, basicamente prata, ouro e dinheiro.

    Sendo esta a nica forma de aproveitamento da terra admitida, o melhoramento determinou a escravido, migrao, marginalizao, assimilao e/ou

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    extermnio de grupos indgenas e de todos os demais Povos e Comunidades Tradicionais, vez que o uso comum da terra em estreita relao de dependncia com o meio ambiente natural para a satisfao das necessidades bsicas dos habitantes do Brasil no lhe interessava.

    Desta forma, a adoo da lgica do melhoramento da terra brasileira causou prejuzos significativos e irreparveis biodiversidade e sociodiversidade, continuando incansavelmente a pression-las at os dias de hoje.

    Quando as consequncias nocivas sade e qualidade de vida humanas passaram a ser relacionadas com os danos causados diversidade biolgica e cultural, a sociedade se mobilizou no sculo XX e imps ao Estado a necessidade de reconhecimento de direitos e criao de institutos jurdicos capazes de proteger determinados bens, ainda que se opusssem lgica do melhoramento da terra.

    Gerado no ventre dos movimentos ambientalistas e sociais, surge neste contexto o socioambientalismo, base filosfica responsvel pela nutrio do Direito Socioambiental4.

    Se o Direito Socioambiental um desdobramento do socioambientalismo, que se organiza provocado pelos danos causados bio e sociodiversidade pela lgica do melhoramento da terra adotada durante o processo histrico de ocupao territorial do Brasil, no se pode negar que o Direito Socioambiental um dos efeitos do prprio processo de ocupao territorial.

    Por mais que seja uma reao normativa e em sentido contrrio, o Direito Socioambiental uma consequncia do passivo acumulado. Ora, a resistncia e a contraposio de fora a uma ao tambm um dos efeitos desta ao.

    O Direito Socioambiental, sistema normativo que nasce e se fortalece em razo de um sentimento de vulnerabilidade, impotncia e fraqueza da sociedade frente s consequncias negativas da destruio do meio ambiente natural e cultural, um efeito colateral, j que seguramente imprevisto e indesejado, do processo histrico de ocupao territorial do Brasil.

    A finalidade deste captulo delinear a construo do Direito Socioambiental, de maneira a permitir que se defina com maior preciso quais so as

    4 O socioambientalismo e sua relao com o Direito Socioambiental sero abordados com maior

    profundidade no tpico 2.6. deste primeiro captulo.

  • 21

    pr-condies que devem ser reunidas por um instituto jurdico para que desempenhe funo socioambiental.

    A compreenso do contedo e da lgica da vocao socioambiental essencial para que se avalie nos prximos captulos se a Reserva Florestal Legal possui

    tal vocao, desde quando e se a presena desta vocao permite a ampliao do seu campo de atuao protetiva em benefcio da sociodiversidade.

    2.1. O DIREITO A SERVIO DO MELHORAMENTO DA TERRA Contrariando a vertente que considera o capitalismo uma evoluo natural e

    inevitvel da natureza humana, que teria surgido e se desenvolvido quando deixaram de ser impostos constrangimentos artificiais (ideolgicos, polticos ou culturais) s prticas comerciais urbanas, vez que sua presena embrionria sempre teria existido, a historiadora marxista norte-americana Ellen Meiksins Wood5 revela que o sistema capitalista no pode simplesmente ser confundido com um impulso humano natural s atividades de comrcio, estas por sua vez milenares.

    Portanto, ao longo da histria no existiram vrios capitalismos, mas um nico, j que se trata de uma nova e distinta forma de produo, genuna, original e especfica, que

    requer no uma simples extenso ou expanso do escambo e da troca, mas uma transformao completa nas prticas e relaes humanas mais fundamentais, uma ruptura nos antigos padres de interao com a natureza na produo das necessidades vitais bsicas6.

    Antes de qualquer coisa, a desmistificao da tese do capitalismo eterno, que tende a naturalizar o capitalismo, a disfarar sua caracterstica distintiva de ser uma forma social especfica com um comeo e (sem dvida) com um fim7, exige que sejam rompidos os equivocados laos histricos que ligariam as origens do capitalismo s cidades e ao comrcio urbano.

    5 WOOD, Ellen Meiksins. As Origens Agrrias do Capitalismo. Traduo de Lgia Osrio Silva.

    Revista Crtica Marxista, So Paulo, n. 10, jun. 2000, p. 12-29. 6 WOOD, Ellen Meiksins. Op. cit., p. 13.

    7 WOOD, Ellen Meiksins. Op. cit., p. 13.

  • 22

    Wood esclarece que o capitalismo, com todo o seu impulso especfico de acumular e de buscar o lucro mximo, nasceu no na cidade mas no campo, num lugar muito especfico, e tardiamente na histria humana 8.

    A terra, principal meio de produo, sempre foi a provedora das necessidades materiais dos seres humanos, permanecendo por milnios na posse dos camponeses, produtores diretos que dispunham de acesso aos meios de sua prpria reproduo.

    Desta forma, a apropriao do trabalho excedente era feita por meios extra-econmicos (como coero e uso da fora e de privilgios), sendo para Ellen Wood esta a principal diferena entre as sociedades pr-capitalistas e as sociedades capitalistas.

    Isto porque no a caracterizao da produo como urbana ou rural o que define a sociedade capitalista, mas sim as relaes de propriedade entre produtores diretos e apropriadores, sendo que s se observa em sociedades capitalistas a dominante apropriao do trabalho excedente dos produtores diretos por meios puramente econmicos, que dispensam a coero direta.

    O mercado o responsvel pela mediao da relao que se estabelece entre produtores e apropriadores, j que virtualmente tudo numa sociedade capitalista uma mercadoria produzida para o mercado9, incluindo fora de trabalho, meios de produo, bens e servios e at mesmo o capital.

    Essa dependncia do mercado d a este ltimo um papel sem precedentes nas sociedades capitalistas, no apenas como um simples mecanismo de intercmbio ou distribuio mas como o principal determinante e regulador da reproduo social 10.

    Uma vez eleito ao papel central de determinante e regulador da reproduo social, depende do mercado a prpria existncia do sistema capitalista, que por esta razo precisa observar os imperativos da competio, acumulao e maximizao do lucro, sempre se expandido, permanentemente acumulando e impondo seus imperativos em novos territrios e em novas esferas da vida, em seres humanos e sobre o meio ambiente 11.

    8 WOOD, Ellen Meiksins. Op. cit., p. 13.

    9 WOOD, Ellen Meiksins. Op. cit., p. 14.

    10 WOOD, Ellen Meiksins. Op. cit., p. 14.

    11 WOOD, Ellen Meiksins. Op. cit., p. 14.

  • 23

    Diante do exposto, denota-se que o capitalismo surge no momento histrico em que as relaes entre produtores diretos e apropriadores passam a depender do mercado.

    Ellen Wood identifica na Inglaterra do sculo XVI a primeira vez que tais relaes passaram a depender da mediao do mercado (e consequentemente a observar os imperativos da competio, acumulao e maximizao do lucro), localizando e datando assim o nascimento do sistema capitalista.

    Iniciando a sua unificao no incio do sculo XI, a Inglaterra do sculo XVI j havia eliminado a maior parte da fragmentao da soberania causada pelo feudalismo, de maneira que, diferentemente dos outros Estados europeus, os poderes estavam concentrados num Estado central.

    A agricultura, neste perodo, era a base da economia nacional e restava caracterizada por uma alta concentrao de terras sob o controle de grandes senhores, motivo pelo qual boa parte das terras eram tornadas produtivas no por camponeses-proprietrios, mas sim por arrendatrios.

    Carentes de poderes extra-econmicos num Estado centralizado, porm dotados de crescente poder econmico para a extrao dos excedentes de trabalho dos produtores diretos, os senhores de terras ingleses, assim como os prprios imperativos do mercado, passaram a cada vez mais obrigar os arrendatrios a descobrir tcnicas de aumento de produtividade.

    Afinal, as formas de arrendamento de terras inglesas sujeitavam-se a gerao de rendas fixadas por condies de mercado, o que naturalmente tornou os agricultores dependentes do mercado, no apenas para a venda de seus produtos, mas no sentido mais fundamental de que seu acesso terra, isto , aos meios de produo, era mediado pelo mercado 12.

    Comentando o texto de Ellen Meiksins Wood, Lgia Osrio Silva anota que todas as relaes passam a ser disciplinadas pelo mercado e no h como escapar, nem apropriadores, nem expropriados, dos seus imperativos que impulsionam as sociedades no sentido inverso do bem-estar das suas populaes13.

    12 WOOD, Ellen Meiksins. Op. cit., p. 18.

    13 SILVA, Lgia Osrio. Introduo ao Texto de Ellen Meiksins Wood, As Origens Agrrias do

    Capitalismo. Revista Crtica Marxista, So Paulo, n. 10, jun. 2000, p. 11.

  • 24

    Arrendatrios em potencial passaram a competir uns com os outros e a criar mecanismos para produes menos custosas. Neste ambiente competitivo, agricultores produtivos prosperavam e suas parcelas de terras cultivadas tendiam a crescer, enquanto agricultores menos competitivos fracassavam e iam se juntar aos sem-terra14.

    Tanto os apropriadores quanto os produtores diretos passaram ento a se preocupar com o melhoramento, entendido como o aumento da produtividade15 da terra visando o lucro.

    Detalhando este conceito de melhoramento, Wood explica:

    A palavra improve (melhorar) no seu sentido original no significava somente tornar melhor num sentido amplo, mas literalmente fazer algo visando lucro monetrio, e especialmente cultivar terra visando lucro. No sculo XVII, o sentido da palavra improver (o agente da melhoria) fixou-se definitivamente na linguagem para designar o indivduo que tornava a terra produtiva e lucrativa, especialmente por meio do cercamento ou da supresso do desperdcio. Os melhoramentos agrcolas eram naquele momento uma prtica j bem estabelecida, e no sculo XVIII, na poca de ouro do capitalismo agrrio, improvement (melhoramento), no idioma e na realidade, designava um e mesmo fenmeno. 16

    A vinculao da palavra melhorar ao lucro monetrio revela bem a ideologia da classe agrria capitalista que controlava as terras rurais inglesas.

    Alm do desenvolvimento de novas tcnicas e mtodos agrcolas e de inovaes tecnolgicas, o melhoramento impunha a necessidade de novas formas e concepo de propriedade.

    A concepo tradicional de propriedade precisava ser substituda por um conceito novo, o conceito capitalista de propriedade propriedade no apenas privada, mas excludente, literalmente excluindo outros indivduos e a comunidade, pela eliminao das regulaes das aldeias e das restries ao uso da terra, pela extino dos usos e direitos costumeiros, e assim por diante17.

    14 WOOD, Ellen Meiksins. Op. cit., p. 19.

    15 Produo por unidade de trabalho.

    16 WOOD, Ellen Meiksins. Op. cit., p. 19.

    17 WOOD, Ellen Meiksins. Op. cit., p. 21.

  • 25

    Tudo aquilo que obstrusse o uso mais produtivo da terra deveria ser eliminado nesta nova concepo de propriedade, especialmente os antigos costumes e prticas camponesas comunitrias18.

    Portanto, assim como o capitalismo, a ideia de apropriao individual, exclusiva e absoluta, de uma gleba de terra no universal, nem histrica nem geograficamente. Ao contrrio, uma construo humana localizada e recente19.

    Entre os sculos XVI a XVIII, os desejos de apropriao individual de terras de propriedade comunal, afastamento da incidncia de direitos comunais sobre terras privadas e negao de acesso terra a pequenos camponeses desprovidos de ttulo de domnio inequvoco geraram forte presso para a extino dos direitos costumeiros.

    Tribunais fundamentaram-se nos princpios do melhoramento para favorecer senhores de terras em detrimento de prticas costumeiras e da prpria posse concreta20.

    Constituindo a principal forma de redefinio das relaes sociais de produo que regulavam os direitos de propriedade, o enclosure (cercamento) foi a

    forma inglesa de operar a mudana no carter da propriedade do solo pela abolio da propriedade comum de campos e pastagens e pela arcaica diviso em folhas e sua substituio pelo cultivo contnuo dos campos cercados e possudos por apenas um proprietrio21.

    Privatizando as terras comunais, os cercamentos extinguiram os direitos de uso baseados nos costumes. Iniciados no sculo XVI, visando a rentvel criao de carneiros, os cercamentos impediram formas de uso da terra das quais muitas pessoas

    18 Comunidades camponesas tinham, desde tempos imemoriais, empregado vrios meios de

    regulamentar o uso da terra conforme os interesses da comunidade alde: elas restringiam algumas prticas e concediam determinados direitos, tendo em vista no o aumento da riqueza do senhor ou da propriedade, mas a preservao da prpria comunidade camponesa; s vezes, visando a conservao da terra ou a distribuio mais equitativa dos seus frutos, e, frequentemente, para socorrer os membros menos afortunados da comunidade. At a propriedade privada da terra foi condicionada por essas prticas, que davam a no-proprietrios certos direitos de uso da terra apropriada por outra pessoa. Na Inglaterra, existiram muitas dessas prticas e costumes. Era o caso das terras comunais, que podiam eventualmente ser usadas pelos membros da comunidade como pasto ou para apanhar lenha, e havia tambm diversos tipos de direitos concernentes s terras privadas tais como o direito ao recolhimento dos restos da colheita em determinados perodos do ano. (WOOD, Ellen Meiksins. Op. cit., p. 20-21). 19

    MARS, Carlos Frederico. A Funo Social da Terra. Porto Alegre: Srgio Antnio Fabris, 2003. p. 17. 20

    WOOD, Ellen Meiksins. Op. cit., p. 12-29. 21

    SILVA, Lgia Osrio. Op. cit., p. 10.

  • 26

    dependiam para sobreviver, o que resultou numa legio de homens e mulheres vagando pelos campos (vagabundos), capazes de ameaar a ordem social.

    Revoltas contra os cercamentos ocorreram nos sculos XVI e XVII, porm

    os chamados cercamentos do Parlamento, amparados em lei, resolveram definitivamente a situao no sculo XVIII22.

    Uma vez demonstrado que a transformao das relaes sociais de propriedade ocorreu no campo, que instalou a dinmica especfica do capitalismo na sua agricultura antes mesmo da proletarizao da fora de trabalho, desvela-se que a transformao do comrcio e da indstria ingleses foi mais resultado do que causa da transio capitalista na Inglaterra 23.

    Afinal, conclui Wood24 que sem um setor agrcola produtivo, no haveria como sustentar uma importante fora de trabalho no-agrcola, o que impediria o surgimento do primeiro capitalismo industrial do mundo, que sem transformar sua expanso colonial numa mquina de capitalismo industrial, no emanaria presses competitivas que compeliram outros pases do mundo a tambm adotar o modelo de desenvolvimento econmico capitalista.

    Sem o capitalismo agrrio ingls, no haveria uma massa de expropriados obrigados a vender sua fora de trabalho por um salrio. Sem esta fora de trabalho no-agrcola expropriada, no haveria mercado de consumo de massa para bens de uso dirio (alimentos e txteis), lderes do processo de industrializao na Inglaterra.

    Coube a John Locke teorizar a concepo capitalista de propriedade. Colocando sua capacidade intelectual a servio do melhoramento da terra e das aspiraes da elite agrria inglesa, o filsofo emprega um discurso de propriedade marcado por um tom bastante includente para impedir o acesso terra daqueles que no so capazes de melhor-la.

    At Locke a civilizao crist entendia a propriedade como uma utilidade, um utendi, a partir dele e na construo capitalista, passa ser um direito subjetivo independente 25.

    22 WOOD, Ellen Meiksins. Op. cit., p. 12-29.

    23 WOOD, Ellen Meiksins. Op. cit., p. 23.

    24 WOOD, Ellen Meiksins. Op. cit., p. 26-27.

    25 MARS, Carlos Frederico, 2003. Op. cit., p. 23.

  • 27

    Locke dedica propriedade o quinto captulo da sua obra Segundo Tratado sobre o Governo Civil: um ensaio sobre a verdadeira origem, alcance e fim do governo civil26, publicada pela primeira vez em 1690.

    Num tom includente, afirma que todos os homens possuem propriedade sobre o trabalho de seu corpo e aquilo que for produzido a partir deste trabalho, pertencendo, no entanto, a todos em comum a terra e seus recursos naturais.

    Porm, o emprego de trabalho capaz de modificar e retirar do estado da natureza um recurso natural torna tal produto propriedade privada e exclusiva daquele que empreendeu o labor, negando a partir de ento a todos os demais seres humanos qualquer direito sobre ele.

    Entretanto, limita a possibilidade de apropriao pelo trabalho quilo que o proprietrio possa usar antes de deteriorar-se, sendo dos outros o que exceder sua capacidade de uso.

    Somente bens perecveis esto sujeitos aos limites de acumulao, bens durveis (como ouro, prata, diamante e dinheiro) podem ser livremente acumulados, j que no violam os direitos dos demais.

    Deste modo, Locke em sua construo terica justifica a acumulao capitalista, reconhecendo que a propriedade pode ser legtima e ilimitada se se transforma em capital, em ouro, em prata, em dinheiro 27.

    Tratando a terra e todos os recursos naturais que ela abriga como mero meio de provimento e comodidade da existncia dos seres humanos28, defende que os homens podem ter propriedade de parcelas destes bens comuns, sem que haja sequer a necessidade de um acordo expresso entre os membros da comunidade29.

    Reconhecendo que a principal questo a respeito da propriedade na Inglaterra do final do sculo XVII no se refere aos frutos da terra, mas sim a terra em si, j que ela abriga os recursos naturais e capaz de produzir frutos, John Locke afirma que a propriedade da terra tambm se adquire atravs do emprego de trabalho.

    26 LOCKE, John. Segundo Tratado sobre El Gobierno Civil: un ensayo acerca del verdadero origen,

    alcance y fin del gobierno civil. Traduo de Carlos Mellizo. Barcelona: Altaya, 1994, p. 55-75. 27

    MARS, Carlos Frederico, 2003. Op. cit., p. 24. 28

    La tierra y todo lo que hay en ella le fue dada al hombre para soporte y comodidad de su existencia (LOCKE, John. Op. cit., p. 56). 29

    (...) mostrar cmo los hombres pueden llegar a tener en propiedad varias parcelas de lo que Dios entreg en comn al gnero humano; y ello, sin necesidad de que haya un acuerdo expreso entre los miembros de la comunidad (LOCKE, John. Op. cit., p. 56).

  • 28

    Toda porcin de tierra que un hombre labre, plante, mejore, cultive y haga que produzca frutos para su uso, ser propiedad suya. Es como si, como resultado de su trabajo, este hombre pusiera cercas a esa tierra, apartndola de los terrenos comunales 30.

    Portanto, adquire-se a propriedade da terra mediante o trabalho, plantio e cultivo da mesma. Em uma palavra o seu melhoramento, que por sua vez torna no apenas legtimo, mas at mesmo necessrio o cercamento das terras e sua separao do bem comum.

    Sustenta que a apropriao privada da terra pelo cercamento e a consequente negao de acesso quela terra aos demais no viola o direito de todos ao bem comum. Pois, Dios, y su propia razn, ordenaron al hombre que ste sometiera la tierra, esto es, que la mejorara para beneficio de su vida, agregndole algo que fuese suyo, es decir, su trabajo 3132.

    Atente-se que quando Locke escreve isso melhoramento j era sinnimo de aumento da produtividade da terra visando o lucro, razo pela qual Ellen Wood comenta: a propriedade como um direito natural est baseada naquilo que Locke considera como o meio divino de tornar a terra produtiva e lucrativa, melhor-la (improve it) 33.

    Tendo em vista que a publicao da obra ora examinada data do final do sculo XVII, marcado, assim como o sculo anterior, por notrias e seguramente conhecidas pelo filsofo revoltas contra os cercamentos (maior reclamao durante a guerra civil inglesa), John Locke nega fatos histricos ao afirmar:

    Y esta apropiacin de alguna parcela de tierra, lograda mediante el trabajo empleado en mejorarla, no implic perjuicio alguno contra los dems hombres. Pues todava quedaban muchas y buenas tierras, en cantidad mayor de la que los que an no posean terrenos podan usar. De manera que, efectivamente, el que se apropiaba una parcela de tierra no les estaba dejando menos a los otros; pues quien deja al otro tnto como a ste le es posible usar, es lo mismo que si no le estuviera quitando nada en absoluto34.

    30 LOCKE, John. Op. cit., p. 60.

    31 LOCKE, John. Op. cit., p. 60.

    32 Carlos Frederico Mars ensina que o pensamento cristo informou os tericos que construiriam o

    Direito e o Estado contemporneos, o que explica a adoo por Locke de textos bblicos e a referncia constante a Deus para provar a veracidade de seus pensamentos filosficos. (MARS, Carlos Frederico , 2003. Op. cit., p. 20). 33

    WOOD, Ellen Meiksins. Op. cit., p. 21. 34

    LOCKE, John. Op. cit., p. 61.

  • 29

    No havia abundncia de terras na Inglaterra, pelo contrrio as terras estavam concentradas nas mos de poucos senhores, de modo que volumosas vagas de sem-terra eram obrigados a migrar continuamente para Londres, constituindo fora de trabalho no-agrcola no crescente processo industrial.

    Ainda que Locke negue, inegvel que a apropriao individual e privada da terra pelo cercamento violou o direito de todos ao bem comum, retirando acesso ao meio de produo que permitia a sobrevivncia e a reproduo social de uma massa de seres humanos.

    O combate terra comunal declarado, chegando a registrar que no podemos suponer que fuese la intencin de Dios dejar que el mundo permaneciese siendo terreno comunal y sin cultivar 35. Isso evidencia que somente o cultivo e o melhoramento da terra eram capazes de legitimar a sua apropriao.

    Interessante observar que o trabalho empregado para coleta de frutos e lenha s era capaz de assegurar a propriedade sobre os frutos e lenha colhidos, mas no sobre a terra que suportava estas rvores. Por outro lado, o trabalho empregado para o cultivo de gros, por exemplo, no era capaz de assegurar a propriedade somente sobre os gros produzidos pela planta cultivada, mas se estendia tambm e inexplicavelmente sobre a terra.

    Adotando a lgica de Locke, mais inexplicvel ainda a apropriao da terra por meio da criao de carneiros, muito comum naquele perodo ingls, seria o trabalho do carneiro de comer o pasto o que garantiria ao seu proprietrio tambm a propriedade da terra?

    O fato que as presses do capitalismo agrrio ingls impunham o fim da propriedade comunal e a supervalorizao do melhoramento, o que levava o filsofo a exaltar a produtividade:

    (...) los frutos en beneficio de la vida humana que son producidos por un acre de tierra cultivada, resultan ser sin exageracin diez veces ms que los producidos por un acre de tierra igualmente frtil que no es aprovechado y contina siendo terreno comunal. Por lo tanto, aqul que parcela una porcin de tierra y mejora su vida, mediante el cultivo de diez acres, mucho ms de lo que mejorara dejando cien acres en su estado natural, puede decirse que est dando noventa acres al gnero humano; y ello es as porque

    35 LOCKE, John. Op. cit., p. 61.

  • 30

    su trabajo est proporcionndole frutos sacados de una parcela de diez acres, en cantidad equivalente a la que producira una tierra comunal de cien. Mas si digo que la productividad de la tierra cultivada es diez veces mayor que la de la tierra no cultivada, la verdad es que estoy calculando muy por bajo, ms acertado sera decir que la proporcin se aproxima al ciento por uno. Pues habra que preguntarse si de verdad en las tierras salvajes de Amrica que no han sido cultivadas y permanecen en su estado natural, sin ninguna mejora, labranza o cultivo, mil acres producen los mismos bienes utilizables para la vida, que los que producen diez acres de tierra igualmente frtil en el condado de Devonshire donde han sido cultivados.36

    Atribuindo ao trabalho, num clculo modesto para o autor, nove vezes mais importncia na produo de produtos da terra que so teis aos homens do que as prprias caractersticas naturais da terra, aponta que

    si estimamos justamente las cosas tal y como nos llegan para nuestro uso, y sumamos los diversos gastos que se han invertido en ellas, esto es, lo que estrictamente deben a la naturaleza y lo que deben a nuestro trabajo, nos daremos cuenta de que en la mayor parte de ellas el noventa y nueve por ciento debe atribuirse a nuestro esfuerzo 37.

    E arremata: la tierra que proporciona las materias primas es de escaso valor, si es que tiene alguno 38, sendo que el beneficio que de ella se deriva es prcticamente nulo 39.

    Novamente de forma precisa, Wood capta a essncia do argumento do filsofo ingls:

    terras sem melhoramentos, terra que no se torna produtiva e lucrativa (como, por exemplo, as terras dos indgenas nas Amricas) constituem desperdcio e, como tal, estabelecem o direito e at mesmo o dever de aqueles decididos a melhor-las se apropriarem delas40.

    No passa de discurso a ideia de que a propriedade da terra estaria limitada apropriao de pores moderadas, numa medida que no fosse capaz de causar dano a ningum41.

    Isto porque

    36 LOCKE, John. Op. cit., p. 64-65.

    37 LOCKE, John. Op. cit., p. 67.

    38 LOCKE, John. Op. cit., p. 68.

    39 LOCKE, John. Op. cit., p. 68.

    40 WOOD, Ellen Meiksins. Op. cit., p. 22.

    41 (...) si los frutos de su huerta perecan sin haber sido cosechados, esa parcela de terreno, aunque

    estuviese cercada, poda considerarse como terreno silvestre y cualquier otra persona poda tormarlo en posesin (LOCKE, John. Op. cit., p. 64-65).

  • 31

    los hombres han acordado que la posesin de la tierra sea desproporcionada y desigual. Pues, mediante tacito e voluntario consentimiento, han descubierto el modo en que un hombre puede poseer ms tierra de la que es capaz de usar, recibiendo oro y plata a cambio de la tierra sobrante 42.

    Desdizendo tudo o que foi dito, John Locke conclui que as propriedades privadas e individuais de terra so desiguais.

    Na medida em que os seres humanos concordaram em atribuir ao ouro e prata qualidade de dinheiro, aceitaram, na viso do filsofo, a possibilidade de venda da terra excedente43, que por sua vez deve ser determinada por constituies positivas.

    Examinando-se com ateno a teoria do direito de propriedade capitalista da terra, naturalmente surge uma dvida no respondida por Locke: se somente o uso e o melhoramento garantem a propriedade legtima da terra, como algum pode ser proprietrio de mais terra do que capaz de usar?44

    Perceba-se que o problema no est no raciocnio de vender terra excedente por ouro e prata, mas sim na ideia de como seria possvel a existncia de proprietrios de terras excedentes, possuidores de mais rea do que so capazes de ter empreendido trabalho para melhor-las e consequentemente adquiri-las.

    Antes de qualquer coisa, esclarece-se que John Locke constri sua teoria quando as terras rurais inglesas j esto sendo cercadas pelos grandes senhores h quase duzentos anos.

    Fica assim evidente que a finalidade da sua construo filosfica muito mais oferecer subsdio terico para os cercamentos de terras j realizados no passado, desprovidos de qualquer argumento legitimador na poca, do que propriamente oferecer

    42 LOCKE, John. Op. cit., p. 64-65.

    43 Quando, porm, o obstculo da propriedade suprema da gens e da tribo foi suprimido pelo novo

    proprietrio, em carter definitivo, se rompeu tambm o vnculo que unia indissoluvelmente o proprietrio ao solo. O que isto significava ensinou-lhe o dinheiro, que se inventou justamente ao tempo do advento da propriedade privada da terra. A terra, agora, podia tornar-se mercadoria, podia ser vendida e penhorada. (ENGELS, Friedrich. A Origem da Famlia, da Propriedade Privada e do Estado. Traduo de Leandro Konder. 5 ed. Rio de Janeiro: Civilizao Brasileira: 1979. p. 188.). 44

    O contrato de compra de fora de trabalho, propriedade original de todo ser humano, mediante o pagamento de salrio fixo no poderia ser usado por Locke para justificar a propriedade de terras de algum que possui rea superior sua capacidade de uso. Isso porque esta hiptese, em que o agente responsvel pelo melhoramento da terra no adquire sua propriedade por disposio contratual, s veio a ser construda dentro da prpria lgica do sistema posteriormente e para aplicao originalmente na indstria.

  • 32

    um regime jurdico capaz de regular e legitimar aquisies de propriedades de terras futuras.

    Desta forma, sua teoria no se presta a responder como foi formada a estrutura latifundiria inglesa que dominava a economia nacional no final do sculo XVII, mas sim contribuir para a consolidao do direito de propriedade s terras cercadas pelos capitalistas agrrios.

    Isto porque

    se lermos cuidadosamente o captulo de Locke sobre a propriedade, veremos com clareza que o que est em questo no o trabalho enquanto tal, mas a utilizao da propriedade de modo produtivo e lucrativo, seu melhoramento45.

    Muito embora John Locke se esquive da dvida suscitada, Karl Marx46 elucida que somente um processo de acumulao primitiva por espoliao permite que proprietrios de terras sejam proprietrios de mais rea do que so capazes de usar.

    Para Marx, a acumulao primitiva a acumulao que precede acumulao capitalista, pois no resultado do modo de produo capitalista, mas sim seu ponto de partida, sendo primitiva porque constitui a pr-histria do capital e do modo de produo que lhe corresponde.

    Trata-se para ele do processo histrico de separao de produtor direto do meio de produo, sendo exatamente a expropriao da base fundiria do produtor rural (o campons, antigo servo no feudalismo) o alicerce de todo o processo.

    A mercadificao e a privatizao da terra e a expulso violenta das populaes camponesas; a converso de vrias formas de direitos de propriedade (comum, coletiva, do Estado etc.) em direitos exclusivos de propriedade privada (...)47 so alguns dos principais processos percebidos por David Harvey na descrio da acumulao primitiva da terra realizada por Marx, sendo o Estado, dotado do monoplio da fora e das definies de legalidade, responsvel por papel crucial nestes processos.

    Por esta razo, a acumulao primitiva, tal como descreve Marx, envolveu uma sria de lutas episdicas e violentas. O nascimento do capital nada teve de

    45 WOOD, Ellen Meiksins. Op. cit., p. 21-22.

    46 MARX, Karl. O Capital: crtica da economia poltica. Traduo de Regis Barbosa e Flvio R. Kothe.

    vol. 01. livro 01. tomo 02. 2 ed. So Paulo: Nova Cultural, 1985. p. 261-284. 47

    HARVEY, David. O Novo Imperialismo. Traduo de Adail Sobral e Maria Stela Gonalves. 4 ed. So Paulo: Edies Loyola, 2010. p. 121.

  • 33

    tranquilo. Foi inscrito na histria do mundo, como disse Marx, em letras de sangue e de fogo 48.

    No faltaram crticas teoria de propriedade edificada por John Locke, Pierre-Joseph Proudhon, claramente se referindo tambm a ela, comenta:

    un autor ensea que la propiedad es un derecho civil, originado por la ocupacin y sancionado por la ley; otro sostiene que es un derecho natural, cuya fuente es el trabajo, y estas doctrinas tan antitticas son aceptadas y aplaudidas con entusiasmo. Yo creo que ni el trabajo, ni la ocupacin, ni la ley, pueden engendrar la propiedad, que sta es un efecto sin causa49.

    Entendendo a propriedade como um efeito sem causa concreta, Proudhon responde a pergunta Qu es la propiedad?, diciendo concretamente es el robo 50.

    Isso porque o filsofo francs51 defende que a propriedade um fenmeno singular que s pode se manifestar como acidente, mas jamais como instituio e princpios, sendo fsica e materialmente impossvel52. Alm disso, argumenta que a soberania do homem (despotismo), a desigualdade de condies e a propriedade so na verdade um nico conceito.

    No entanto, o refino tcnico dos argumentos contrrios propriedade individual e excludente no foram suficientemente fortes para evitar o acolhimento desta concepo pelo Direito. O sistema econmico de produo forjou o Direito da poca conforme seus interesses, aos quais serviu a teoria de John Locke, excetuando-se apenas a imposio de limites acumulao de propriedade privada, que foram sendo ignorados ou excludos pelo Direito ao longo do tempo.

    48 HARVEY, David. Op. cit., p. 133.

    49 PROUDHON, Pierre-Joseph. Qu es La Propiedad?. Traduo de Rafael Garca Ormaechea.

    Madrid: Ediciones Orbis, 1984. p. 29. 50

    PROUDHON, Pierre-Joseph. Op. cit., p. 29. 51

    PROUDHON, Pierre-Joseph. Op. cit., p. 49. 52

    Proudhon dedica o quarto captulo da sua obra para oferecer dez motivos pelos quais a propriedade impossvel, a saber: no pode existir algo a partir do nada (produtos s se adquirem por produtos e a propriedade incapaz de produzir qualquer utilidade); a produo custa mais do que vale (pois o trabalho deve ser compensado com o produto, e no com salrio); a produo proporcional ao trabalho, e no a propriedade sobre capitais determinados; a propriedade homicida (j que assassina lentamente o trabalhador por extenuao); a propriedade extingue a sociedade (vez que vende ao trabalhador o produto mais caro do que ele pode pagar); a propriedade a me da tirania (na medida em que causa de todo privilgio e despotismo); a propriedade consome aquilo que recebe e ao capitaliz-lo o emprega contra a produo (sendo produtora de inutilidade); seu poder de acumulao infinito ainda que incida sobre quantidades limitadas; a propriedade impotente contra a prpria propriedade (inadequada ao seu objeto, a propriedade contraria a natureza e a razo); e a propriedade a negao da igualdade (no existindo por si mesma, depende da fora ou da fraude para atuar, sendo assim uma negao e uma mentira). (PROUDHON, Pierre-Joseph. Op. cit., p. 135-184).

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    A principal caracterstica do capitalismo a sua dependncia do mercado, que assume o papel central de determinar e regular a reproduo social. Por esta razo, os bens e servios deixam de ser produzidos para satisfazer as necessidades da sociedade, passando a ser produzidos para satisfazer o mercado.

    Somente no capitalismo a dependncia do mercado uma condio fundamental para a vida53. A sobrevivncia neste sistema exige a observncia dos imperativos de competio, acumulao e maximizao do lucro, impostos permanentemente pelo mercado.

    Trata-se de um sistema em que aspectos fundamentais da existncia e da vida humana esto sujeitos s exigncias de lucro, a ser auferido por meio da competio, concentrao da acumulao e maximizao da explorao de matrias-primas e pessoas.

    Neste sistema, a terra e os recursos naturais que ela abriga e os povos e comunidades agricultores de subsistncia e coletores que mantm prticas comunitrias e formas de interao diferenciadas com a natureza (no raras vezes sagrada) so obstculos, inimigos que merecem ser eliminados.

    O melhoramento significa aumentar a produtividade da terra para maximizao do lucro. Locke deixa claro que a terra abrigando natureza e animais silvestres (em seu estado natural) vale quase nada para o mercado capitalista do sculo XVII, assim como prticas de uso comunitrias devem ser extintas para que no atrapalhem a mxima explorao da terra, atingida por meio da substituio de toda a flora e fauna nativas por plantaes e pastagens, visando a gerao de produtos apreciados pelo mercado.

    Ainda que o melhoramento seja um marcante fenmeno da infncia do capitalismo na Inglaterra do sculo XVI, no se deve esquecer que o conceito capitalista de propriedade da terra, individualista, excludente e originalmente concebido por John Locke, uma consequncia sua, ou melhor, sua verso jurdica mais bem elaborada.

    To importante esta concepo de propriedade para o capitalismo que Carlos Frederico Mars, comentando a construo do Estado moderno para garantia de igualdade, liberdade e fraternidade, assevera que a funo do Estado, no momento de

    53 WOOD, Ellen Meiksins. O que (anti) capitalismo?. Traduo de Lgia Osrio Silva. Revista

    Crtica Marxista, So Paulo, n. 17, 2006, p. 38.

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    sua constituio, era garantir a propriedade que necessita da liberdade e igualdade para existir54.

    Muita razo lhe assiste na sua afirmao, uma vez que John Locke anuncia:

    el grande y principal fin que lleva a los hombres a unirse en Estados y a ponerse bajo un gobierno, es la preservacin de su propiedad, cosa que no podan hacer en el estado de naturaleza55. Interpretando tal afirmao, nota-se que o Estado no criou a propriedade, sendo antes criado para proteg-la56.

    Explicando a associao da acumulao de capital com os poderes do Estado, David Harvey esclarece:

    A acumulao do capital por meio da troca de mercado fixadora de preos floresce melhor no mbito de certas estruturas institucionais da lei, da propriedade privada, do contrato e da segurana da forma-dinheiro. Um Estado forte dotado de poderes de polcia e do monoplio dos meios de violncia pode garantir tal arcabouo institucional e sustent-lo com arranjos constitucionais definidos. A formao do Estado em associao com o surgimento da constitucionalidade burguesa tm sido por conseguinte caractersticas cruciais da longa geografia histrica do capitalismo57.

    Friedrich Engels58 dedica merecida importncia ao surgimento da propriedade privada da terra para o comeo do Estado moderno (por ele chamado de civilizao), colocando-o ao lado da introduo da moeda metlica (assim como dos consequentes juros e da usura), da ascenso dos comerciantes classe intermediria entre produtores e do trabalho como forma predominante na produo para marcar este novo estgio de produo de mercadorias.

    Espalhando-se pelo mundo junto com a competio entre naes gerada pelo imperialismo ingls, que acabou por transformar diversos sistemas de produo em capitalistas, o conceito capitalista de propriedade da terra, sofrendo adaptaes, chegou tambm ao Brasil colnia e aqui permaneceu at o sculo XX, quando se tornou visvel a crise deste modelo, o Estado e a propriedade, assim concebidos e realizados, chegaram a seu esgotamento terico e prtico 59.

    54 MARS, Carlos Frederico, 2003. Op. cit., p. 18.

    55 LOCKE, John. Op. cit., p. 134.

    56 LIBERATO, Ana Paula Gularte. Reforma Agrria: direito humano fundamental. Curitiba: Juru,

    2004. p. 23. 57

    HARVEY, David. Op. cit., p. 79. 58

    ENGELS, Friedrich. Op. cit., p. 198. 59

    MARS, Carlos Frederico, 2003. Op. cit., p. 18.

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    Dependendo do mercado, o sistema econmico de produo capitalista imps historicamente ao Direito brasileiro que se pusesse servio do melhoramento da terra, tratando a natureza e os povos e comunidades tradicionais como entraves, a serem necessariamente excludos do processo histrico de ocupao territorial.

    A tica do melhoramento, da produtividade visando o lucro, tambm, naturalmente, a tica do uso irresponsvel da terra, da doena da vaca louca e da destruio ambiental 60.

    As sesmarias, especialmente em sua verso brasileira, o regime de venda de terras devolutas e a propriedade individual e absoluta da terra, institutos jurdicos que regularam a concesso/aquisio originria de terras no Brasil durante mais de quatro sculos, esto impregnados da lgica do melhoramento, um dos principais responsveis pela formao das problemticas estruturas fundiria, agrria, econmica e socioambiental brasileiras.

    Demonstrar a presena desta perversa lgica nos institutos jurdicos que nortearam o processo de ocupao territorial brasileiro o principal objetivo dos trs prximos tpicos, que permitiro, nos trs tpicos que lhes seguem, a realizao de uma comparao capaz de evidenciar o florescimento de instituto jurdicos, filosofia e uma nova lgica jurdica que, resgatando antigos valores, enfrentam a nsia capitalista.

    2.2. O MELHORAMENTO DAS TERRAS PORTUGUESAS PELAS SESMARIAS Lutas internas, invaso estrangeira, gastos com guerras, perda de homens e

    paralisao da vida nacional, ensina Jos Antnio da Costa Porto61 que estes problemas enfrentados por Portugal durante o turbulento reinado de Dom Fernando, o Formoso, acarretaram uma crise de abastecimento de alimentos de grandes propores na segunda metade do sculo XIV.

    Com maior profundidade, a historiadora portuguesa Virgnia Rau sinteticamente contextualiza com refino o sombrio perodo portugus:

    (...) so as cortes de Lisboa, de 1371 e as de 1372, que indicam o paroxismo da crise que havia mais de um sculo se avolumava. As tintas do quadro no podem ser mais sombrias. falta de trabalhadores rurais jungia-se o excessivo salrio dos poucos que ainda laboravam, as guerras ruinosas e a

    60 WOOD, Ellen Meiksins. Op. cit., p. 27.

    61 PORTO, Jos Antnio da Costa. O Sistema Sesmarial no Brasil. Braslia: Editora Universidade de

    Brasil, s/d. p. 26-33.

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    depreciao da moeda; s exigncias do exrcito e da frota adicionavam-se os abusos dos funcionrios rgios e dos senhores compelindo os lavradores a cederem os seus produtos por um preo diminuto e numa moeda desvalorizada sob o pretexto de atenderem s necessidades do reino, revendendo-lhes depois astutamente a taxas elevadas. Estiagens prolongadas e sucessivas agravavam a falta de vveres, e o restolho das ms colheitas era insuficiente para manter os gados de lavoura fugidos dos pastos calcinados. E a populao desertava os campos ingratos em direco s vilas e cidades, numa derradeira esperana de subsistncia e de desafogo, os proprietrios abandonavam as suas lavras improdutivas e o mato e a runa espraiavam-se sobre as terras de Portugal. 62

    A fome e a misria foram atribudas pelos conselheiros rgios incultura do solo, por sua vez decorrente da improdutividade dos senhores de terras. Realizado um censo das terras de semeadura, concluiu-se que se todas estas terras fossem cultivadas, no faltaria alimento a ningum.

    Diante disso, Dom Fernando adota severa poltica de promover, compulsoriamente, o aproveitamento do solo, alvo colimado pela primeira lei de sesmarias, baixada em 1375 63.

    A leitura da parte inicial do texto original da lei das sesmarias no deixa dvidas da insatisfao do monarca em relao ao aproveitamento das terras, conforme se pode perceber:

    (...) E esguardando como amtre todalas razoes per que este desfalecimento e carestija uem a mais certa e spicial he per mjngua das lauouras que os homeens leixam e sse partem dellas entendendo em outras obras e em outros mesteres que nom som tam profeitosos pera o bem comuum. E as terras e herdades que soyam a seer lauradas e asementadas e que ssom conujnhauijs pera dar pam e os outros fruitos per que sse os homens e os poboos ham de manteer som desemparadas e deitadas em rossijos sem prolle com gram dapno dos poboos.64

    Por esta razo, determina que todos os senhores de terras sejam obrigados a lavr-las65, seja por explorao direta ou arrendamento66, sob pena de perda das mesmas

    62 RAU, Virgnia. As Sesmarias Medievais Portuguesas. Lisboa: Presena, 1982. p. 86.

    63 PORTO, Jos Antnio da Costa. Op. cit., p. 27.

    64 PORTUGAL. Lei das Sesmarias, 1375. In: RAU, Virgnia. As Sesmarias Medievais Portuguesas.

    Lisboa: Presena, 1982. p. 267. 65

    (...) Stabeleemos, hordinhamos e mandamos que todolos que ham herdades suas proprias ou teuerem emprazadas ou aforadas ou per outra qualquer guisa ou titulo perque aiam direito em essas herdades seiam costranjudos pera as laurar e semear. (PORTUGAL. Lei das Sesmarias, 1375. In: RAU, Virgnia. Op. cit., p. 268). 66

    (...) E sse o senhor das herdades nom poder per ssi laurar todaslas ditas herdades que ouuer, por seerem muitas ou em mujtas desuairadas comarcas ou elle for enbargado per algua lidima rrazom per que as nom possa per ssy laurar todas, laure parte dellas per ssi e per hu ell quiser e lhe mais aprouuer e

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    mediante confisco, expropriao e distribuio para quem as aproveitar atravs do cultivo67.

    As penalidades estabelecidas para os infractores, alm da expropriao da terra ao proprietrio que a deixasse inculta durante um prazo determinado, consistiam em multas mais ou menos elevadas, em aoites e at desterro do reino68.

    Sabendo da existncia de terras incultas no por negligncia, preguia ou indolncia dos senhores, mas tambm por falta de braos, a segunda parte da lei das sesmarias se dedica a corrigir o xodo rural, impondo, sob pena de aplicao de sanes fsicas (aoitamento), aos vadios, pedintes, desocupados, falsos religiosos e mendigos o retorno aos campos para funcionarem como fora de trabalho agrcola, fixando inclusive valores mximos a serem pagos para esta mo-de-obra69.

    Durante o reinado de Dom Joo I, O de Boa Memria, ocorrido entre 1385 e 1433, Portugal inicia sua fase de grandes navegaes pelos oceanos do globo terrestre e conquistas de terras na sia, frica e Amrica, o que implicou no surgimento de situaes novas e no previstas na lei original das sesmarias.

    quanta laurar poder sem grande seu dapno e com meor seu encarrego a bem vista e ordinhao detremjnhaom daqueles a que pera esto for dado poder. E as mais faa laurar per outrem ou as de a laurador que as laure e semee por ssa parte ou a pensom certa ou a foro asi como se melhor poder fazer de guisa que as herdades que som pera dar pam seiam todas lauradas e aprofeitadas e asementadas compridamente como for mester de trigo ou de euada ou de mjlho per qual for e que mais fruito e melhor possa darem seus tempos e sazoes aguisados. (PORTUGAL. Lei das Sesmarias, 1375. In: RAU, Virgnia. Op. cit., p. 268.). 67

    (...) E sse os senhores das herdades per ssa negrigenia nom quiserem laurar nem aperfeitar essas herdades per ssy ou per outrem como dicto he. A justia dos lugares ou aquelles a que pera esto for dado poder dem essas herdades a quem na laure e semee por certo tempo e por penssom ou per certa parte. (PORTUGAL. Lei das Sesmarias, 1375. In: RAU, Virgnia. Op. cit., p. 268.). 68

    RAU, Virgnia. Op. cit., p. 91. 69

    (...) Porem teemos por bem e mandamos que todoslos que forom ou soyam a seer lauradores. E outrossy os filhos e netos dos lauradores e todosllos os outros moradores asi nas cidades e villas como fora dellas que ouuerem de sseu meor contia de quinhentas libras. quanto quer que seiam menos dessa contia de quinhentas libras e que nom aia nem huse de tal e tam profeitoso mester pera o comuu per que de rrazom e de direito deue a seer escusado de laurar ou serujr na lauoira ou nom viuer continuadamente com tal pessoa que o meresca e o aia mester pera obra de seruio profeitoso que todos e cada huu destes ssusodictos seiam costrangidos pera laurar e husar do dicto mester e oficio da lauoria. E sse nom teuerem herdades suas que per ssy queiram e possam laurar seiam costrangidos e apremados pera vieurem com aquelles que os mester ouuerem pera as lauoiras e os seruam e ajudem a fazer essa obra da lauoira por ssa soldada e preo aguisado segundo he taussado pellas hordinhaoes que sobresto som feitas ou segundo taussarem e aluidrarem aqueles que pera esto forem postos em cada huu lugar. (...) Outrossy dos mendigantes e dos outros sussodictos que andam em aujto de rrelegion e esto meesmo seia mandado aos vintaneiros que sam postos por guardadores das freguesyas e das ruas e das praas que dem recado a estes sobredictos dous homeens boons de todaslas pessoas que acharem ou souberem cada uma em sua freguesya ou rua ou praa da comdiom ssusodicta per nomjna que faam delles pera seerem costranjudos pera laurar e semear pam na terra que lhe for dada per essa justia. (PORTUGAL. Lei das Sesmarias, 1375. In: RAU, Virgnia. Op. cit., p. 269, 270 e 272).

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    Frente a isso, Dom Joo determina, em alguns casos concretos, que a aplicao da lei de sesmarias seja estendida tambm a casas, pardieiros e bens incultos que em outros tempos j foram vilas, povoados e olivais, permitindo assim a sua redistribuio.

    A codificao da extensa legislao lusitana, efetuada atravs das Ordenaes Afonsinas em 1446, incorporou a instruo de Dom Joo I lei sesmarial original, conferindo-lhe carter geral.

    Entretanto, esta ainda no era a verso final do instituto jurdico sesmarial. Carlos Frederico Mars anota:

    Em 1514 as sesmarias foram reestruturadas pelas Ordenaes Manuelinas. O instituto foi repetido pelas Ordenaes Filipinas, em 1603, com o texto que nos chegou e que tem servido como seu conceito mais acabado: Sesmarias so propriamente dadas de terras, casas ou pardieiros, que foram ou so de algum senhorio, e que j em outro tempo foram lavradas e aproveitadas, e agora o no so. As quais terras e os bens assim danificados e destrudos podem e devem ser dados em sesmaria pelos Sesmeiros, que para isso forem ordenados.70

    Examinando-se o instituto jurdico das sesmarias, extrai-se que seu principal objetivo promover o aproveitamento mximo do solo, aumentando sua produtividade, por meio da redistribuio de terras, casas e pardieiros que no esto mais sendo lavrados e aproveitados.

    Autoridades institudas para cumprir a legislao sesmarial, desestimulando o no aproveitamento do solo, competiam aos Sesmeiros, particularmente em relao a terras: apurar quais senhores de terras no as exploravam, concedendo-lhe prazo de um ano para que as cultivassem ou arrendassem; tomar as terras daqueles senhores que no as cultivassem e nem as arrendassem no prazo concedido, distribuindo-as em sesmarias para lavradores que nelas quisessem trabalhar; e confirmar as sesmarias, mediante a verificao da satisfao dos requisitos de ocupao, demarcao e produo num prazo mximo de cinco anos, sob pena de retomada e redistribuio das terras e aplicao de multa pecuniria contra o beneficirio de sesmarias faltoso.

    Costa Porto explica que

    70 MARS, Carlos Frederico, 2003. Op. cit., p. 31.

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    no determinava a lei a rea das datas, fixando, apenas, este princpio bsico, tnica fundamental do sistema: seram avisados os sesmeiros que nam deem mayores terras a huma pessoa que as que rezoadamente parece que no dyto tempo as podero aproveytar71.

    O que significa dizer que as dadas de terras em sesmarias estavam limitadas capacidade de aproveitamento do beneficirio, constituindo isto uma determinao legal dirigida expressamente ao sesmeiro no exerccio de suas funes72.

    Rau destaca a obrigatoriedade de cultivo como condio de posse da terra e a expropriao da gleba ao proprietrio que a deixasse inculta 73 como os nicos pontos de ligao entre as antigas sesmarias (os sesmos eram locais em que se distribuam aos povoadores fraes de propriedade territorial dos conselhos, repartidos inicialmente em seis lotes, nos quais durante seis dias da semana excludo o domingo, os seis sesmeiros superintendiam) e o novo diploma legal das sesmarias e comemora:

    (...) a argcia dos legistas elabora e estrutura um diploma complexo em que todas as facetas da crise so previstas e a todas se procura dar remdio. Aproveitando e fazendo reviver certos preceitos antigos, leis esparsas e costumeiras isoladas, erige-se uma das primeiras leis agrrias da Europa que merea tal nome. Para a servir e executar, recorre-se aos homens que nos concelhos demarcavam e repartiam as terras e coutadas e, do seu velho nome de sesmeiros e das glebas por eles dadas, o diploma legislativo passou posterioridade com o nome de Lei das Sesmarias(...).74

    As sesmarias confirmam uma tradio jurdica histrica portuguesa, o que se podia chamar de propriedade era o uso da terra75, vinculando-se assim umbilicalmente o valor da terra ao valor do trabalho operado sobre ela, o que significa dizer produo agrria.

    Interessante perceber que a lei de sesmarias obriga o senhor de terras a atuar (aumentar a produtividade) no sentido de satisfazer o interesse coletivo, j que o cultivo condio para posse da terra. Talvez por este motivo, Liberato76 trate tal instituto jurdico como modelo de reforma agrria em Portugal.

    71 PORTO, Jos Antnio da Costa. Op. cit., p. 30.

    72 Interessante pensar que o limite de tamanho de rea embutido nas sesmarias apresenta semelhanas

    com o limite ao direito de propriedade da terra defendido por John Locke sculos mais tarde, segundo o qual s se admitia a apropriao de pores moderadas, j que a rea no utilizada, ainda que cercada, poderia ser tomada por qualquer pessoa (assunto j foi abordado no tpico 2.1. desta dissertao). 73

    RAU, Virgnia. Op. cit., p. 87. 74

    RAU, Virgnia. Op. cit., p. 87. 75

    MARS, Carlos Frederico, 2003. Op. cit., p. 29. 76

    LIBERATO, Ana Paula Gularte. Op. cit., p. 33.

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    Criadas no sculo XIV, as sesmarias foram caindo em desuso no seu pas de origem, especialmente aps o sculo XVI77. Mars elucida:

    O processo de avano da propriedade mercantilista, impulsionada pela descoberta da Amrica e do novo caminho para as ndias, a profunda reviravolta no pensamento filosfico e no jurdico, cada vez mais se aproximando o direito de propriedade como uma garantia ao seu pleno e absoluto exerccio, foi enfraquecendo o instituto at a sua inviabilidade total no comeo do sculo XIX, com a constitucionalizao da sociedade portuguesa e a fundao do Estado Nacional. 78

    Seguramente as sesmarias portuguesas no constituem um instituto jurdico capitalista, j que o aumento da produtividade da terra almejado procurava satisfazer as necessidades da sociedade, e no do mercado. A posse da terra permanecia vinculada ao cultivo, de modo que no havia propriamente uma propriedade da terra, mas sim uma mera concesso de uso dada pelo Rei, que em caso de falta de cultivo deveria cancel-la e entreg-la para outros lavradores.

    Ainda que o incremento da produtividade da terra fosse finalidade manifesta da lei, a ausncia de relao de submisso e escravido ao mercado no exigia a observncia dos imperativos de competio, acumulao e maximizao do lucro.

    As sesmarias no promoveram assim o melhoramento das terras portuguesas, pois o aumento da produtividade da terra no estava voltado para a maximizao do lucro.

    O que muito natural. Afinal, a lei das sesmarias data de 1375 enquanto o sistema econmico capitalista e suas concepes de melhoramento e de propriedade privada da terra s apareceram na Inglaterra dos sculos XVI e XVII, conforme demonstrado no tpico 2.1.

    Ainda assim, no se pode deixar de registrar que as sesmarias portuguesas guardam algumas semelhanas com o futuro melhoramento, especialmente porque tambm tratam como inimigos, obstculos a serem eliminados, a natureza e os povos e comunidades que mantm prticas comunitrias e formas de interao diferenciadas com ela.

    77 Para Portugal, o regime de sesmarias foi excepcional, visando impedir o esvaziamento do campo e o

    desabastecimento das cidades. Entretanto, a legislao ordinria que tolhia a agricultura, asfixiando-a com foros, obrigaes etc., acabou prevalecendo. No sculo XVI o sistema no surtia mais os efeitos esperados. (SILVA, Ligia Osorio. Terras Devolutas e Latifndio: efeitos da Lei de 1850. 2 ed. Campinas: Editora da Unicamp, 2008. p. 42-43.) 78

    MARS, Carlos Frederico, 2003. Op. cit., p. 31-32.

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    Quanto aos povos e comunidades, no se pode esquecer que a lei das sesmarias persegue os vadios, desocupados, mendigos e falsos religiosos, categorias em que povos e comunidades tradicionais so frequentemente enquadrados pela sociedade envolvente.

    A mxima explorao de matrias-primas e pessoas caracterstica comum s sesmarias e ao melhoramento.

    Mesmo que a concesso de terras do Rei no se confunda com o conceito capitalista de propriedade da terra, ambos exigem a aplicao de uma concepo individualista e excludente de uso da terra. Nas sesmarias a demarcao da terra to requisito para a confirmao quanto a produo e a ocupao.

    Inexistem dvidas de que as sesmarias no melhoraram as terras portuguesas num sentido capitalista, porm tambm certo que tal instituto jurdico rene condies para vir a melhorar terras, desde que sofra algumas alteraes em sua aplicao.

    Caso contrrio, o instituto jurdico no teria servido to bem ao melhoramento das terras brasileiras entre os sculos XVI e XIX, como se pretende revelar no prximo tpico.

    2.3. O MELHORAMENTO DAS TERRAS BRASILEIRAS PELAS SESMARIAS

    Carlos Frederico Mars de Souza Filho79 conta que, desde o sculo XV, provavelmente j se sabia na Europa no apenas da existncia de terras novas na Amrica, mas tambm da presena de homens e mulheres nelas vivendo.

    Ensina que a realidade do confronto travado com os povos americanos foi determinante para que os espanhis, muito mais brutais e crticos, chamassem a sua chegada s terras novas de conquista, enquanto os portugueses, mais sutis e dissimulados, chamassem-na de achamento e descobrimento.

    No entanto, independentemente da denominao empregada, a ttica de enfrentamento foi a mesma (aliar-se a um povo para enfre