Direito e Populações, Povos e Comunidades Tradicionais, Dissertação Ppgd, Ravena-cañete, 2012

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Dissertação do Programa de Pós-Graduação em Direito da UFPA. Problematiza a relação entre o direito ocidental positivista e sua relação com populações, povos e comunidades tradicionais, lançando mão de leituras sociológicas e antropológicas, assim como a análise de uma comunidade períurbana pobre do município de Belém e algumas localidades ribeirinhas do rio Purus.

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  • Universidade Federal do Par UFPAInstituto de Cincias Jurdicas ICJ

    Programa de Ps-graduao em Direito PPGD

    Direito e populaes/povos e comunidades tradicionais

    no Brasil: da reviso crtica de aplicabilidades e definies

    acadmicas\jurdicas\legais

    Thales Maximiliano Ravena Caete

    Belm PAMaro de 2012

  • Universidade Federal do Par UFPAInstituto de Cincias Jurdicas ICJ

    Programa de Ps-graduao em Direito PPGD

    Direito e populaes tradicionais no Brasil: da reviso

    crtica de aplicabilidades e definies

    acadmicas\jurdicas\legais

    Thales Maximiliano Ravena Caete

    Dissertao apresentada ao Programa de Ps- Graduao em Direito, do Instituto de Cincias Jurdicas da UFPA, como parte das exigncias para a obteno do ttulo de Mestre em Direito, rea de concentrao em Direitos Humanos, Linha de pesquisa Direitos Humanos e Meio Ambiente.Orientadora: Profa. Dra. Diana Antonaz.

    Belm PAMaro de 2012

  • Dados Internacionais de Catalogao-na-Publicao (CIP) Biblioteca do Instituto de Cincias Jurdicas da UFPA

    Ravena-Caete, Thales Maximiliano

    Direitos e populaes/povos e comunidades tradicionais no Brasil: da reviso crtica de aplicabilidades e definies acadmicas/jurdicas/legais/ Thales Maximiliano Ravena Caete; orientadora, Diana Antonaz. Belm, 2012.

    Dissertao (Mestrado) Universidade Federal do Par, Instituto de Cincias Jurdicas, Programa de Ps-Graduao em Direito. Belm, 2012.

    1. Direitos humanos - Brasil.- 2. Comunidades tradicionais - Brasil.- 3. Direitos fundamentais.- BrasiI.- 4. Direito ambiental Brasil.- I. Antonaz, Diana.- II. Universidade Federal do Par. Instituto de Cincias Jurdicas. Programa de Ps-Graduao em Direito. III. Ttulo. CDDir: 341.270981

  • Aluno: Thales Maximiliano Ravena Caete

    Direito e populaes tradicionais no Brasil: da reviso

    crtica de aplicabilidades e definies

    acadmicas\jurdicas\legais

    Dissertao apresentada ao Programa de Ps- Graduao em Direito, do Instituto de Cincias Jurdicas da UFPA, como parte das exigncias para a obteno do ttulo de Mestre em Direito, rea de concentrao em Direitos Humanos, Linha de pesquisa Direitos Humanos e Meio Ambiente.Orientadora: Profa. Dra. Diana Antonaz.

    Comisso Examinadora

    _____________________________________________Profa.Dra. Diana Antonaz (Orientadora). Professora do Programa de Ps-graduao em

    Direito PPGD e do Programa de Ps-graduao em Cincias Sociais PPGCS, da UFPA.

    _____________________________________________Prof.Dr. Girolamo Domenico Trecani (Examinador Interno). Professora do Programa de

    Ps-graduao em Direito, da UFPA.

    _____________________________________________Profa.Dra. Edna Castro (Examinador Externo). Professora do Programa de Ps-graduao

    em Planejamento do Desenvolvimento PLADES/NAEA, da UFPA.

    _____________________________________________Profa.Dra. Eliane Moreira (Suplente). Professora do Programa de Ps-graduao em

    Direito PPGD, da UFPA.

    Belm, PA, maro de 2012

  • Agradecimentos

    Apesar deste item no ser obrigatrio segundo as normas da ABNT, creio que para

    mim obrigatrio por que este trabalho no fruto de meu empenho individual, mas sim de

    um trabalho em grupo, pois tive o incondicional e constante apoio de minha famlia e

    amigos em geral. Assim agradeo minha famlia, que me deu foras para continuar e

    terminar este trabalho, assim como todo o apoio emocional e material, proporcionando-me

    momentos de relaxamento assim como de cobrana, na medida certa para que eu fosse

    exitoso na construo desta pesquisa.

    minha esposa, que suportou minhas ausncias, me incentivou quando preciso e

    sempre figurando como minha fonte de inspirao, ponto de equilbrio e eterna

    companheira para a jornada da vida. Por sua disposio e pacincia com meus problemas,

    assim como por seu eterno amor e vontade de ajudar, eu agradeo.

    minha me que me apoiou no somente como me, mas como educadora,

    formadora e orientadora para a vida. meu irmo que me ajudou na confeco de vrias

    figuras e mapas, assim como meu deu todo o apoio necessrio nos momentos difceis no

    somente na confeco deste trabalho, mas no mundo da vida. meu pai por seu apoio,

    carinho e interesse em minhas atividades. minha Tia pelas oportunidades. meu tio pela

    constante disposio. minha prima e primo pelo apoio. meu av pelo apoio e carinho.

    Tambm gostaria de agradecer aos professores do Programa de Ps-graduao em

    Direito e do Programa de Ps-graduao em Cincias Sociais, que todo momento estavam

    dispostos a ensinar e contribuir com minha formao.

    Um agradecimento especial para minha orientadora, Profa Dra. Diana Antonaz, que

    pacientemente me ajudou na construo dessa dissertao, assim como aos professores

    Girolamo Treccani e Edna Castro, formadores de minha banca examinadora, que muito

    gentilmente aceitaram constitu-la, mesmo com poucos dias para a data da defesa.

    Gostaria de agradecer, ainda, professora Oriana Almeida pela pacincia e

    compreenso, assim como pelas diversas experincias de campo que me foram

    proporcionadas durante o tempo que trabalhei em seus projetos, possibilitando um fazer

    cientfico atrelado realidade social.

  • Agradeo tambm as meninas da Secretaria do Programa de Ps-graduao em

    Direito (Liliane, Carol, Paula e Aline) que me tiraram de muitas armadilhas burocrticas e

    sempre estiveram dispostas a ajudar e prestar esclarecimentos. Agradeo tambm aos

    diversos bibliotecrios (a) das bibliotecas da UNAMA e UFPA.

    Aos colegas de classe e estgio tambm agradeo, alguns pelos estmulos, outros

    pela compreenso e outros pelos dois. Especificamente cito os nomes de Breno, Sheila,

    Nazar, Aleph e Socorro, que, por meio de corredores e aulas, trocamos idias,

    enriquecendo meus olhares sobre as populaes tradicionais.

    Agradeo tambm aos meus sujeitos de pesquisa, as populaes tradicionais

    que, mesmo invisibilizados e marginalizados da estrutura social nacional, sempre que

    visitei uma casa, uma comunidade, um povoado dessas pessoas, pude contar com a total

    presteza, educao e constante vontade de ajudar, abrindo as portas de suas vidas sem

    pestanejar, oferecendo cafezinhos, lanches, almoos, enfim, tirando de seu prprio prato, de

    sua prpria carne, para dar a um visitante desconhecido. eles um muitssimo obrigado.

    Finalmente gostaria de agradecer Deus, que me oportunizou este trabalho,

    escancarando diversas portas e janelas para meu proveito.

    todos que de forma direta ou indireta contriburam para a confeco deste

    trabalho, muito obrigado.

  • Dedicatria

    Dedico este trabalho toda minha famlia, especialmente a meus pais e meu irmo, meu porto seguro em momentos difceis da vida, minha esposa, eterna amiga e companheira, ponto de equilbrio para a jornada da vida, ao meu av Jos Ravena e minha av, Benedita Bernadete Ravena, pilares de minha famlia e eternos em minha vida (in memoriam). Dedico, ainda s populaes, povos e comunidades tradicionais do Brasil e do mundo, que muito tm a ensinar a ns, que pouco queremos aprender.

  • Epgrafe

    Ns no consideramos selvagens (wild) as vastas plancies abertas, os maravilhosos montes ondulados, as torrentes sinuosas. Somente para o homem branco a natureza era selvagem, e somente para ns ela era domesticada. A terra no tinha cercas e era rodeada de bnos do Grande Mistrio (fala de Standing Bear, um chefe Sioux, citado por Mcluthan apud Diegues, 1993. p. 227).

  • Resumo

    Este ensaio tem por objetivo apresentar as necessidades jurdicas diferenciadas que

    florescem da realidade socioambiental brasileira, enfocando especialmente o cenrio

    relativo s populaes tradicionais amaznicas. Utiliza como base argumentativa as

    reflexes de Bourdieu, usando especialmente o conceito de campo e capital simblico

    desenvolvidos pelo autor. Atravs de uma literatura originria da regio Amaznica

    descreve, de forma crtica, o contexto socioambiental dessa regio, detalhado pelo olhar

    proveniente da experincia em coleta de dados para pesquisa. Evidencia, em particular, o

    descompasso entre a construo da norma no campo jurdico e a realidade vivenciada pelas

    populaes tradicionais. Aponta o fetichismo jurdico como responsvel pelo

    invisibilizao das prticas jurdicas nativas que regulamentam, de uma maneira informal, o

    tecido socioambiental do cenrio amaznico.

    Palavras chave: Populaes tradicionais; Direito; fetichismo jurdico.

  • Abstract

    This essay aims to present the legal needs of different socio-environmental

    reality that bloom from Amazon, focusing especially on the stage of traditional

    populations. Use as an argumentative basis Bourdieu's reflections, especially using the

    concept of symbolic capital and field developed by the

    author. Through a literature originating in the Amazon region, describes in a critical way

    the socio-environmental context of the region, detailed for the look from the experience

    in collecting data for research. It highlights in particular the gap between the development

    of the rule in the legal field and the reality experienced by traditional peoples. Points the

    juridical fetishism as responsible for the legal invisibility of native juridical

    practices that regulate, in a informal way, the socio-environmental scenario of the

    Amazonian.

    Keys words: Traditional Population (populaes tradicionais); Law; legal fetishism (fetichismo jurdico).

  • Lista de Figuras

    Figura 1: Mapa do Rio Purus. 94Figura 2: Foto area do Rio Purus. 95Figura 3: Croqui do mdio rio Purus, demonstrando sua ocupao. 96Figura 4: Foto do Seu Antnio Nery da Silva, seringueiro, marido da dona Teresa

    Jamamadi, comunidade Monte Sio, Municpio de Canutma.

    97

    Figura 5: Foto de famlia ribeirinha no percurso Lbera Tapau. 98Figura 6: Limites aproximados da Bacia Hidrogrfica do Igarap Mata Fome. 103Figura 7: Foto que ilustra a ocupao desordenada das margens do Igarap Mata

    Fome.

    104

    Figura 8: Grfico do perfil dos moradores quanto plantao de hortalias. 105Figura 9: Grfico do perfil dos moradores quanto criao de animais. 105

  • Lista de Quadros

    Quadro 1: Utilizao cronolgica do conceito populaes tradicionais 55/56Quadro 2: Utilizao cronolgica do conceito povos e comunidades tradicionais 56Quadro 3: Calendrio anual e dinmica do rio Purus 98Quadro 4: Dinmica do rio, calendrio anual e atividades do ribeirinho do Purus. 99

  • Sumrio

    Introduo 12Captulo I Populaes tradicionais: uma definio acadmica e jurdico-legal para o outro

    18

    1.1 Definies encontradas nas Cincias Scio-jurdicas 181.1.1. A origem da definio 191.1.2. Populaes tradicionais: desenhando uma identidade pblica

    a ser preenchida22

    1.1.3. Populaes tradicionais (ecolgicas?): saberes tradicionais e prticas sociais de relao com o meio ambiente

    29

    1.1.4. Tradio, Conflito e Processos de territorializao: o direito diferena e a territorialidade

    35

    1.2 Conceitos Jurdico-Legais para Populaes/ Povos e Comunidades Tradicionais

    46

    1.3 Populaes/Povos e Comunidades Tradicionais: existe de fato um conceito?

    52

    Captulo II: Por uma scio-antropologia do Direito: delimitando noes e definies tericas

    58

    2.1. O direito como tcnica e como cincia: seu estatuto epistemolgico, sua prtica e algumas ferramentas conceituais de anlise

    58

    2.2. A construo da realidade social e o campo jurdico: o direito socialmente construdo

    62

    2.2.1. Reflexes sobre a construo da realidade social 632.2.2 Reflexes sobre o campo jurdico 65

    2.3. Sensibilidades jurdicas diferenciadas 70

    Captulo III Inaplicabilidades do Direito s prticas sociais de relao com a natureza das populaes tradicionais: o exemplo das populaes tradicionais amaznicas

    78

    3.1. Prticas scio-ambientais das populaes amaznicas: a diversidade em pauta

    79

    3.2. Reflexes sobre a realidade socioambiental amaznica e o campo jurdico 833.3 Prticas sociais das populaes amaznicas vs ordenamento jurdico:

    consequncias de um campo jurdico na Amaznia e no da Amaznia86

    3.3.1 A lei 9433/1997, as guas da Amaznia e seus ribeirinhos 873.3.2 A lei das cooperativas (5764/1971) e as famlias rurais

    amaznicas87

    3.3.3 Bens de uso comum vs propriedade privada 883.3.4 Tutela dos saberes tradicionais vs Sistema de Propriedade

    Intelectual89

    3.3.5 O Sistema Nacional de Unidades de Conservao SNUC: inovaes e contradies

    90

    3.3.6 O conceito de populao tradicional elaborado pelo decreto 6040/2007

    91

    3.4 Populaes tradicionais amaznicas: perspectivas e aplicabilidades de um 93

  • conceito jurdico-legal3.4.1 Os ribeirinhos do Purus 93

    3.4.1.1 A influncia da dinmica do rio no cotidiano dos ribeirinhos

    98

    3.4.2 A Comunidade Bom Jesus 1023.4.2.1 O Perfil das famlias residentes 104

    3.4.3 Consideraes crticas ao conceito jurdico-legal de populaes tradicionais

    106

    Concluso 110Referncias Bibliogrficas 114

  • 12

    Introduo No final do sculo XX, diante da escassez dos recursos naturais globais, a

    Amaznia foi amplamente estudada ganhando anlises com novos contornos e uma renovada importncia em decorrncia da sua diversidade ambiental. Esta encontra-se intrinsecamente ligada diversidade scio-cultural de suas populaes nativas, que tambm foram objeto de estudo, transformando-se em protagonistas na proteo do meio ambiente, sendo genericamente denominadas de populaes tradicionais (Lima e Pozzobon, 2000; Almeida, 2006; Castro, 1992) e mais recentemente de povos e comunidades tradicionais (Almeida, 2006; Brasil, 2007). Tais populaes desenvolveram ao longo dos sculos prticas sociais especficas e variadas na relao com os recursos naturais, mas com a particularidade de haver uma relao relativamente harmnica com o meio-ambiente, diferenciando-se das populaes capitalistas, liberais, ocidentais, urbanas1, que desenvolveram um modo de vida no qual o meio-ambiente subjugado vontade humana, no considerando nenhum tipo de limite ou capacidade para que a natureza consiga se recuperar.

    Considerando o cenrio exposto, este trabalho tem por objetivo entender as tenses na aplicabilidade da legislao socioambiental brasileira, levando em considerao as

    prticas sociais especficas de relao com a natureza das populaes tradicionais e dos povos e comunidades tradicionais 2. Nesse sentido, focaliza os problemas originados nas

    percepes do Direito acerca desses agentes sociais, discutindo de maneira crtica esses dois conceitos. Ressalta-se, que este trabalho problematizar a terminologia populaes tradicionais, com o objetivo de evidenciar a necessidade de um carter amplo para tal termo, no reduzindo o debate ao cenrio poltico ou mesmo aos movimentos sociais3.

    1 Tais definies encontram-se aspeadas devido a sua conceituao genrica e como tal usada dessa forma neste

    texto. 2 Esta dissertao e as reflexes aqui tecidas so resultado de um extenso exerccio de pesquisa que foi

    apresentado e publicado de maneira parcial em diversos veculos de comunicao cientfica como anais de eventos e revistas cientficas. Dessa forma, cito estas publicaes para uma melhor visualizao das transformaes deste trabalho, at chegar a esta verso mais amadurecida: Populaes Tradicionais Amaznicas: revisando conceitos, apresentado no GT 10 do V ENANPPAS, Florianpolis-SC, em 2010; Populaes tradicionais da Amaznia: repensando conceitos, apresentado no GT 34 da 27. Reunio Brasileira de Antropologia, realizada entre os dias 01 e 04 de agosto de 2010, Belm, Par, Brasil; De populaes a povos e comunidades tradicionais amaznicas: o debate se esgotou?, apresentado no GT 10 do VI ENANPPAS, Belm, Par, em 2012. As publicaes so, entre outras: Por uma sociologia do campo jurdico na/da Amaznia: as populaes tradicionais amaznicas em foco, publicado na Revista de Sociologia Jurdica, nmero 13, 2011. 3 Almeida (2008b) utiliza o conceito de comunidades tradicionais por entender este como um termo politizado e

    ligado aos movimentos sociais do espao rural e do campesinato brasileiro. Este trabalho chama a ateno para a

  • 13

    Nesse sentido, a definio apresentada pelo Decreto 6040, de 07 de fevereiro de 20074, para povos e comunidades tradicionais ser temporariamente utilizada como sinnimo do termo populao tradicional, sendo que ambos sero detalhados, problematizados e diferenciados no decorrer deste empreendimento, bastando, por ora, expor o conceito do decreto acima citado:

    grupos culturalmente diferenciados e que se reconhecem como tais, que possuem formas prprias de organizao social, que ocupam e usam territrios e recursos naturais como condio para sua reproduo cultural, social, religiosa, ancestral e econmica, utilizando conhecimentos, inovaes e prticas gerados e transmitidos pela tradio; (artigo 3, inciso I).

    No mbito desta formulao esto includos indgenas, quilombolas, ribeirinhos, extrativistas, pescadores artesanais e, at mesmo, populaes urbanas, revelando uma extensa diversidade de agentes sociais que se identificam como culturalmente diferenciados. Para efeito de uma delimitao mais acurada, este trabalho no incluir populaes indgenas e quilombolas na formulao anteriormente referida versando sobre populaes tradicionais, dado que estas detm direitos especficos alcanados com a

    promulgao da Constituio Federal de 1988 (doravante CF). A CF garante, de maneira expressa e discriminada, direitos territoriais aos indgenas e quilombolas atravs dos artigos

    231 e 232 e o art. 68 da ADCT5, respectivamente. No tocante legislao infra-constitucional, as comunidades indgenas e quilombolas podem lanar mo de diversos dispositivos legais, como o estatuto do ndio (lei 6001/1973) e o decreto 4887/20036, respectivamente7.

    Portanto, este trabalho trata especificamente das populaes tradicionais stricto sensu: entenda-se as populaes que se identificam como ribeirinhas, agro-extrativistas, pescadores artesanais, etc, no levando em considerao as comunidades quilombolas e indgenas, como exposto e justificado acima. Nesse sentido, quando este trabalho referir-se s populaes tradicionais em sua dimenso lato sensu, ou seja, aquela que entende as

    necessidade de um maior alcance desse conceito, dado que muitas populaes no esto inseridas em uma agenda e arena de disputa polticas capaz de garantir uma maior insero social e garantia de direitos. 4 Institui a Poltica Nacional de Desenvolvimento Sustentvel dos Povos e Comunidades Tradicionais

    5 Ato das Disposies Constitucionais Transitrias ADCT.

    6 Regulamenta o procedimento para identificao, reconhecimento, delimitao, demarcao e titulao das

    terras ocupadas por remanescentes das comunidades dos quilombos de que trata o art. 68 do Ato das Disposies Constitucionais Transitrias. 7 Para detalhe sobre a diferenciao mencionada, consultar Santilli (2004, 2005).

  • 14

    comunidades indgenas e quilombolas como populaes tradicionais, esta ser realizada de maneira expressa no texto8.

    A pesquisa utiliza as noes de racionalidades jurdicas e subjetivismo jurdico (Kauffman, 2002, 2004); sensibilidade jurdica (Geertz, 1997); Pluralismo e Fetichismo Jurdico (Santos, 2001) conjugadas alternativas do Direito e o Direito como sistema fechado em si mesmo (Di Giorgi, 1998). Este trabalho usa, ainda, como base para o seu instrumental terico, a noo de campo jurdico (Bourdieu, 2004) demonstrando como este se configura em uma arena de disputa pelo direito de dizer o direito (Bourdieu, 2004, p. 212) na qual ... se produz e se exerce a autoridade jurdica, forma por excelncia de violncia simblica legtima, cujo monoplio pertence ao Estado e que se pode combinar com o exerccio da fora fsica (Bourdieu, 2004, p. 211).

    importante notar que as prticas desse campo so diferenciadas daquelas utilizadas pelas populaes tradicionais, resultando em um campo jurdico/Direito que exclui e ao mesmo tempo no se aplica a essas populaes. Em outras palavras, o Direito

    produzido por legisladores, juzes, advogados, juristas e outros operadores do direito no se aplica realidade socioambiental vivenciada pelas populaes tradicionais, pois estes agentes, produtores do capital jurdico, legitimam o fazer jurdico positivo baseado no indivduo e no direito propriedade, completamente distinto da lgica subjacente aos modos de vida e de conceber o mundo dessas populaes. Tal inaplicabilidade se expressa, especialmente, quando regula a relao entre sociedade e meio-ambiente. Com efeito, formula-se o seguinte problema diante de tal contexto:

    Qual a aplicabilidade do Direito, leia-se normas e leis que regulam a relao entre ambiente e sociedade, realidade social das populaes/povos e comunidades tradicionais, levando em considerao as suas prticas sociais especficas de relao com a natureza?

    Ainda que este trabalho se insira em um cenrio de discusso terica voltada s questes jurdico-legais, importante salientar sua interface com o referencial terico da sociologia e da antropologia, evidenciando a constante tenso e complementaridade dessas reas do conhecimento. Nesse sentido, descrever um pouco de minha trajetria acadmica permite situar o leitor para elucidar de onde vem a fala que se expressa neste trabalho.

    8 A identidade jurdica de indgenas, quilombolas e populaes tradicionais ser diferenciada de maneira mais

    detalhada no captulo I deste trabalho.

  • 15

    Minha formao foi marcada por um ir e vir hermenutico (Geertz, 1997) entre o Direito e as Cincias Sociais, especialmente a Antropologia e Sociologia, sempre

    abordando uma temtica que por si s j carece de abordagens interdisciplinares: as populaes tradicionais amaznicas, sua relao com a natureza, a sociedade nacional e o Estado.

    Tal ir e vir hermenutico teve incio em 2005, quando ingressei no curso de Cincias Sociais da Universidade Federal do Par e no curso de Direito da Universidade da

    Amaznia. Durante dois anos consecutivos freqentei os dois cursos mencionados, sendo que em janeiro de 2007 optei por prosseguir apenas no curso de Cincias Sociais, pois priorizei a formao acadmica como caminho profissional.

    Desde o incio de minha trajetria acadmica atuei em projetos de pesquisa e extenso que abordavam a realidade amaznica a partir de uma perspectiva interdisciplinar e socioambiental. Alguns desses projetos marcaram meu olhar de pesquisador, permitindo perceber as especificidades da realidade amaznica, suas populaes tradicionais, a peculiar relao que desenvolviam com o meio ambiente e a fragilidade e invisibilidade com a qual

    estavam marcadas perante a sociedade nacional e o poder pblico. Como aluno iniciante da vida acadmica, atuei como voluntrio de um projeto de

    extenso que teve como foco de interveno uma rea perifrica de Belm. A rea lcus do projeto configurava-se em uma comunidade margem de um corpo d gua, denominado de Igarap Mata Fome (doravante IMF). Esta comunidade era habitada por uma populao advinda de diferentes reas de estado do Par, mais especificamente do baixo Tocantins e do Maraj, sendo caracterizada por prticas sociais especficas de relao com os recursos naturais. Participei de outros projetos desenvolvidos nessa rea, com o mesmo grupo de pesquisa, dessa forma, durante este trabalho esses projetos sero referidos apenas como Projeto IMF.

    Outro projeto a ser mencionado refere-se ao projeto Gesto das guas na Amaznia: peculiaridades e desafios no contexto poltico-regional da bacia do rio Purus

    (CNPQ/PPG7), no qual atuei na condio de voluntrio, bolsista e colaborador, ampliando minha compreenso e proximidade com a temtica socioambiental. Meu vnculo como bolsista terminou em dezembro de 2007, no entanto, permaneci como voluntrio no projeto em questo, visto que meu Trabalho de Concluso de Curso (TCC) na graduao em

  • 16

    Cincias Sociais (com nfase em Antropologia) voltou-se s populaes tradicionais do rio Purus, em especial os ribeirinhos, do percurso Lbrea/Canutma/Tapau.

    O projeto acima mencionado desdobrou-se em outros projetos que tambm abordavam a relao entre sociedade e ambiente no contexto do rio Purus, oportunizando a somatria de mais de seis anos de pesquisa sobre este rio e seus habitantes. Estes projetos sero referidos no decorrer desta pesquisa apenas como Projeto Purus.

    Vale observar que no decorrer desses seis anos, de forma paralela, atuei em outros

    projetos de pesquisa. Assim, outra experincia marcante em minha trajetria acadmica foi o perodo de dois anos e meio que trabalhei como estagirio e, posteriormente, como assistente de pesquisa em projetos coordenados pela Profa. Dra. Oriana Trindade de Almeida do Ncleo de Altos Estudos Amaznicos (NAEA/UFPA). Estes projetos abordavam a temtica da pesca na Amaznia paraense, possibilitando o contato com outros tipos de populaes tradicionais amaznicas, a saber, os pescadores artesanais e ribeirinhos polivalentes (no sentido colocado por Furtado, 1993), expandindo meu olhar sobre a realidade socioambiental da regio. Durante esse perodo pude conhecer colnias,

    associaes e comunidades de pescadores, assim como associaes e comunidades agroextrativistas dos municpios de Igarap Miri, Camet, Oeiras do Par, Abaetetuba,

    Curu, So Caetano de Odivelas, Colares, Vigia, Viseu e diversos outros municpios do litoral paraense e do Baixo Tocantins.

    Buscando ampliar meu olhar de Cientista Social, de maneira paralela minha trajetria acadmica, retornei graduao em Direito e ingressei no Escritrio Tcnico de Assistncia Jurdica e Judiciria da UNAMA (ETAJJ), possibilitando uma maior intimidade com a prtica jurdico-processual, especialmente na rea cvel. A experincia de pesquisa, aliada ao contexto da atuao na rea do Direito, me permitiu perceber padres e especificidades nas prticas sociais de relao com a natureza das populaes tradicionais

    amaznicas, fruto de condies socioambientais e histricas, treinando e ampliando meu olhar de pesquisador social. Essa experincia tambm me permitiu conjugar a empiria da realidade socioambiental amaznica com as produes acadmicas e os instrumentos jurdico-legais da regio, gerando um olhar crtico sobre tais produes e instrumentos.

    Dessa forma, essa trajetria dupla em reas do conhecimento permitiu no apenas a construo do problema de pesquisa deste trabalho, mas tambm perfilar um fazer

  • 17

    metodolgico especfico caracterizado por um ir e vir hermenutico (Geertz, 1997) entre as Cincias Sociais e o Direito. Este ir e vir se expressa tanto no uso das tcnicas de pesquisa como na consolidao de um texto que evidencia as tenses e confluncias terico-metodolgicas entre Direito e Cincias Sociais.

    Essa trajetria se consolida, portanto, na construo desta dissertao, estruturada em trs captulos, ademais desta introduo e da concluso.

    O primeiro captulo responsvel pela construo do que se entende por

    populaes tradicionais e povos e comunidades tradicionais. O segundo captulo apresenta o que se entende por Direito e Campo Jurdico, ademais da construo do instrumental terico utilizado neste trabalho, lanando mo de noes como sensibilidade jurdica (Geertz, 1997), pluralismo e fetichismo jurdico (Santos, 2001), e alternativas ao Direito (Di Giorgi, 1997).

    O terceiro captulo apresenta de forma articulada os elementos que respondem o problema de pesquisa deste empreendimento, evidenciando as contradies entre a norma oficial e as prticas das populaes tradicionais. Para tanto, analisa a relao entre o

    ordenamento jurdico nacional e as prticas sociais de relao com a natureza desenvolvida pelas populaes tradicionais, utilizando como pano de fundo o contexto socioambiental

    amaznico. Assim, atravs da exposio de obras que abordassem o contexto regional amaznico e de dados resultantes de pesquisas desenvolvidas no decorrer de minha trajetria acadmica, acrescidos da exposio das normas estatais que regulam esse contexto, foi possvel colocar em evidncia a contradio entre norma estatal e as prticas das populaes tradicionais.

    A concluso fecha a argumentao construda por este trabalho, evidenciando a inaplicabilidade das normas e leis que regulam a relao entre sociedade e meio ambiente. Essa inaplicabilidade elucidada pelo conceito de populao tradicional que, mesmo com

    um carter abrangente, no inclui em seu bojo algumas populaes culturalmente diferenciadas e a diversidade de prticas sociais desenvolvidas por essas populaes.

  • 18

    Captulo I Populaes/povos e comunidades tradicionais: uma definio acadmica e jurdico-legal para o outro

    Este captulo tem como objetivo delimitar o sujeito de pesquisa a partir da tica das Cincias Sociais e de documentos jurdico/legais. Para tanto, procura apresentar a produo intelectual relevante a respeito de populaes tradicionais e discute instrumentos

    jurdico/legais que tratam da definio de populaes tradicionais/povos e comunidades tradicionais.

    1. 1 Definies encontradas nas Cincias Scio-jurdicas A discusso sobre populaes tradicionais perpassa diferenciadas reas do

    conhecimento. Das noes jurdicas, especialmente discutidas na elaborao da Constituio Federal de 1988, passando pela perspectiva das cincias da vida, a discusso sobre populaes tradicionais ganha um perfil mais plural no escopo das cincias sociais. A construo de definies passou por debates e embates que sero aqui analisados. De toda forma, a noo construda pelas cincias sociais resulta de uma interlocuo com um

    cenrio poltico que regula direitos coletivos para grupos particulares. Assim, pensar em populaes tradicionais significa remeter-se aos debates entre intelectuais e sociedade civil

    organizada que caracterizaram a formulao da Carta Magna. Nesse processo, grupos sociais historicamente excludos do debate nacional, mas nesse momento histrico politicamente organizados ou representados, conseguiram garantir direitos coletivos vinculados aos processos de reproduo social de seus grupos. ndios e quilombolas9 configuram-se como exemplo emblemtico desse cenrio decisrio. No entanto, no decorrer das duas dcadas que sucederam a promulgao da Carta Magna, as populaes tradicionais, antes invisibilizadas10 nos instrumentos jurdicos, passam a ocupar espao no debate poltico, pois, ao integrarem territrios objeto das polticas ambientais e de

    9 Populaes remanescentes de quilombos, para saber mais consultar Almeida (2002); ODwyer (2002); Santilli

    (2005); Andrade e Treccani (1999). 10

    Deve-se salientar que o termo invisibilizada usado de forma proposital, visto que essas populaes no estavam visveis, pois configuravam-se como empecilho para a poltica ambiental brasileira, desta forma foram invisibilisadas.

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    riquezas nacionais11 passam a ocupar um lugar central em funo de desenvolverem uma relao particular de integrao com a natureza, que produz experincia acumulada, fonte de articulao de conhecimentos e produo de saberes tradicionais12 culturalmente e historicamente construdos. Nesse sentido, a apresentao da definio de populaes tradicionais e sua alterao ao longo do tempo necessitam ser perfiladas e articuladas ao

    cenrio poltico maior no qual e do qual esta emerge.

    1.1.1 A origem da definio

    A discusso sobre a definio de populao tradicional se intensifica no mbito dos debates sobre a presena humana em reas protegidas13. Diegues (1994, 2001), de acordo com as informaes coletadas para este trabalho, foi o autor que inseriu o debate sobre a presena humana em reas protegidas, procurando estabelecer uma definio para populao tradicional no meio acadmico nacional, em seu livro O mito moderno da

    natureza intocada. O referido autor publicou diversos outros trabalhos acadmicos sobre populaes tradicionais, bens de uso comum, presena humana em reas protegidas,

    pescadores artesanais, caiaras, Mata Atlntica e Amaznia. Para este trabalho interessa focar a temtica a respeito das populaes tradicionais.

    Nesse sentido, Diegues (1993, 1997) observa que o conceito de reas protegidas surge n os Estados Unidos atravs da criao do Parque de Yellowstone e importado para o Brasil em meados do sculo passado.

    Na viso de Diegues, o referido parque foi criado sob a noo de wilderness14, pensando as reas naturais como selvagens, intocadas pelo ser humano. Essa viso no levava em conta a ocupao dos povos indgenas, gerando um incontvel nmero de

    11 Menciono os debates sobre biodiversidade e patrimnio gentico e aquele ainda em curso a respeito do Cdigo

    Florestal. 12

    Uma das manifestaes desses saberes implica prticas de manejo sustentvel do meio ambiente, caracterstica esta to valorizada no cenrio de degradao que se vive atualmente. 13

    Segundo Souza Filho (apud Benatti ,2001) espao protegido "todo local, definido ou no por seus limites, em que a lei assegura especial proteo. Ele criado por atos normativos ou administrativos que possibilitem a administrao pblica a proteo especial de certos bens, restringindo ou limitando sua possibilidade de uso ou transferncia, pelas suas qualidades inerentes. Este trabalho considera da mesma maneira o conceito de reas protegidas, assim como unidades de conservao. Vale observar que o tema sobre ares protegidas configura-se como transversal a este trabalho, nesse sentido, ser momentaneamente abordado com o intuito de demonstrar a origem do termo populaes tradicionais, sendo eventualmente reabordado no decorrer do texto, visto a sua importncia para a discusso da noo de populao tradicional. 14

    Corresponde noo de selvagem em ingls. (traduo livre do autor).

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    conflitos entre o paradigma das reas protegidas e as populaes nativas. Segundo Diegues (2001, p. 27), o prprio Yellowstone foi criado em uma regio habitada por populaes indgenas que no deixaram a rea do parque de maneira espontnea. O autor refora a presena humana em reas protegidas ao citar dados que demonstram a existncia de sepulturas com mais de mil anos em Yellowstone, assim como em outros parques

    americanos.

    Sobre a intolerncia de presena humana na criao do Parque Nacional de

    Yellowstone, faz-se relevante citar as consideraes de Lucila Vianna (2008) que chama a ateno para o momento histrico por que os EUA passavam, quando da criao das primeiras reas protegidas. O pas estava em um processo de reordenao territorial e de expanso para a ocupao do Oeste. Desde ento, as reas naturais protegidas foram objeto de poltica que apresentou, por objetivo principal, separar do desenvolvimento moderno as reas selvagens que deveriam ser protegidas. Nesse sentido, a criao do Parque de Yellowstone

    ... levou ao extremo o nvel de restrio ao uso humano e proibiu a existncia permanente no parque at mesmo das populaes com formas de vida claramente diferentes das do modelo urbano, associado depredao e usurpao da natureza. S se permitia a presena para fins de desfrute, visitao turstica, pesquisas temporrias, etc. (Vianna, 2008, p. 147).

    Assim, foi esse modelo de conservao ambiental o exportado para os chamados pases em desenvolvimento, causando efeitos devastadores sobre as populaes tradicionais (Diegues, 2008, p. 37-40).

    Essa exportao se d j no sculo XX e, desde seu incio deixa sinais de sua inadequao realidade do terceiro mundo. Com o passar do tempo, movimentos sociais se organizam em uma nova modalidade de conservao que d lugar luta pelo direito ... de acesso terra e aos recursos naturais por camponeses, pescadores, ribeirinhos, povos da

    floresta e de setores do ambientalismo do Terceiro mundo (Diegues, 2008, p. 40). Surgem, dessa maneira, os movimentos socioambientais em meados da dcada de 1980, contemporneos ao processo de redemocratizao e da constituinte, desempenhando um importante papel nesse cenrio poltico.

    Nesse sentido, Diegues (2008) foi um dos primeiros a chamar a ateno para a possibilidade das populaes tradicionais atuarem como protagonistas na conservao da

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    biodiversidade, visto o seu vasto conhecimento da biodiversidade local e modo de vida relativamente sustentvel.

    De maneira similar, Vianna (2008) tambm observa a possibilidade de se incorporar as populaes tradicionais ao processo de conservao da natureza. Contudo, a referida autora chama a ateno para a necessidade de se entender sob duas perspectivas essa

    discusso dentro do contexto ambientalista brasileiro. Uma refere-se quela at aqui apresentada, em que se coloca em perspectiva a possibilidade de populaes ocuparem o

    territrio de unidades de conservao de uso indireto, minimizando os impactos socioeconmicos e aproveitando as caractersticas ecolgicas desses grupos sociais para a conservao (Vianna, 2008, p. 215).

    A outra refere-se perspectiva dos movimentos sociais rurais, lutando pela sobrevivncia garantida atravs do acesso aos recursos naturais e terra (seu meio de produo). Nesse sentido, Vianna apresenta a reflexo de que:

    A primeira perspectiva incorpora as populaes ao discurso conservacionista e a segunda, pelo contrrio, incorpora o discurso conservacionista ao movimento social, fortalecendo as lutas para a garantia de seu territrio e de acesso a recursos naturais (Vianna, 2008, p. 215).

    Em outras palavras, a primeira perspectiva, a saber, o discurso ambientalista de

    reas protegidas, incorpora o papel que as populaes tradicionais desempenham nos ecossistemas que habitam. Por outro lado, a segunda perspectiva marcada pela

    apropriao, por parte das populaes tradicionais, do discurso de conservao das reas protegidas com o comprometimento de manterem prticas sustentveis conservando as reas que ocupam15. assim que Vianna observa que o termo populaes tradicionais surge associado ao contexto ambientalista, indicando a gnese das duas perspectivas acima citadas:

    Pode-se afirmar que essa discusso aparece pela primeira vez no poder pblico na dcada de 1980, por dois caminhos paralelos e concomitantes. Um deles foi entre tcnicos da Secretaria do Meio Ambiente do Estado de So Paulo, pois os ambientalistas foram incitados pelos questionamentos dos modelos de conservao, a partir da defesa das populaes tradicionais feita por Diegues, da prpria dificuldade de gesto das reas

    15 Mauro Almeida exemplifica este fato atravs do texto Direitos floresta e ambientalismo: seringueiros e suas

    lutas, onde narra o processo de apropriao dos seringueiros do termo ecologia, valendo-se do mesmo na busca da garantia do direito ao seu modo de vida.

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    e de um olhar mais humanista sobre as prticas de conservao. O outro foi o movimento dos seringueiros, que se aliou ao setor ambiental na busca da garantia de acesso a suas terras. No era um conflito com unidades de conservao, mas essa foi a estratgia que usaram para conquistar seus objetivos (acesso terra e aos recursos naturais), resultando na proposta da Resex (Vianna, 2008, p. 216).

    Nesse sentido, por no ser objeto deste estudo o histrico do surgimento das unidades de conservao no Brasil, importa somente citar que, de maneira paralela discusso sobre a presena humana em reas protegidas, surge o movimento socioambiental

    no Brasil, que inaugura as Reservas Extrativistas como a segunda categoria de rea protegida que permite a presena humana e o manejo da biodiversidade em unidades de conservao16.

    De maneira paralela ao surgimento do movimento socioambientalista, e at mesmo anterior a ele, os fruns ambientalistas internacionais comeam a discutir a noo de desenvolvimento sustentvel incorporando a contribuio de diversos documentos e encontros de mbito internacional. Dentre eles cita-se a Conferncia de Estocolmo, Relatrio Brudtland, Eco-92 e a Conveno da Diversidade Biolgica (doravante CDB). Nesse sentido, vale observar que o movimento socioambiental desempenhou um importante papel nas foras polticas presentes no cenrio internacional de discusso acerca da CDB17.

    1.1.2 Populaes tradicionais: desenhando uma identidade pblica a ser preenchida

    No cenrio poltico supracitado as populaes tradicionais comeam a ser

    visibilizadas e as Cincias Sociais passam a contribuir com esse processo por meio da elaborao de uma definio mais detalhada para populaes tradicionais18. Nesse sentido,

    Cunha (1999) caracteriza populao tradicional como uma expresso vaga e abrangente (Cunha, 1999, p.149) revelando a necessidade de refinamento.

    16 Para uma anlise mais detida sobre o surgimento das Resex, consultar Almeida (1993), Santilli (2005),

    Allegretti (2002) e Antonaz (2009). 17

    A incorporao da CDB no ordenamento jurdico brasileiro pode ser consultada de forma detalhada no endereo eletrnico criado pelo governo federal http://www.cdb.gov.br/ . 18

    relevante deixar claro que as noes de populao tradicional e conhecimento tradicional vm sendo utilizadas dentro da literatura das Cincias Sociais desde antes de 1990. Contudo, a convergncia entre o mbito jurdico com a seara das Cincias Sociais intensificou-se aps a lei n 9985/00, que institui o Sistema Nacional de Unidade de Conservao-SNUC.

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    Buscando contribuir para a definio do conceito em foco, Arruda (1999) infere que populaes tradicionais so aquelas que

    apresentam um modelo de ocupao do espao e uso dos recursos naturais voltados principalmente para a subsistncia, com fraca articulao com o mercado, baseado em uso intensivo de mo de obra familiar, tecnologias de baixo impacto derivadas de conhecimentos patrimoniais e, normalmente, de base sustentvel... Em geral ocupam a regio h muito tempo e no tm registro legal da propriedade privada individual da terra, definindo apenas o local de moradia como parcela individual, sendo o restante do territrio encarado como rea de utilizao comunitria, com seu uso regulamentado pelo costume e por normas compartilhadas internamente. (p.79-80).

    O conceito de Arruda (1999) bastante amplo, tendo como especificidade a exposio da situao de fragilidade em que as populaes tradicionais se encontram, pois, em geral, as mesmas no apresentam documentos que comprovem seus direitos sobre as terras historicamente por elas ocupadas. O autor chama a ateno mais adiante para o processo de ocupao social do Brasil, utilizando para tanto a literatura de Darcy Ribeiro. Demonstra em sua argumentao que a histria econmica do Brasil foi permeada por ciclos19, os quais quando chegavam ao fim deslocavam o eixo de povoamento do local de um ciclo para o outro, deixando de lado a populao que l dependia do ciclo no qual se vinculou, sendo esta obrigada a desenvolver um sistema de reproduo socioeconmica baseado na produo para consumo prprio. Desta forma, cada populao tradicional desenvolveu uma relao especfica com a natureza, visto as especificidades locais,

    histricas, sociais, culturais, etc (Arruda, 1999). So essas as populaes chamadas populaes tradicionais, sendo que o processo acima descrito se configura como um dos

    motivos da dificuldade de consenso na construo de uma definio de populaes tradicionais.

    Outra contribuio a de Viana (2008), que destaca a pluralidade de significados da definio de populaes tradicionais, observando que na Antropologia, estas populaes podem ser classificadas como sociedades rsticas, enquanto que no meio ambientalista adquirem um matiz utilitarista, ao figurarem como culturalmente ecolgicas, logo, necessariamente estticas. Diante de tal contexto utilitarista e de pluralidade de

    19 Coloca-se a expresso ciclos entre aspas para que esta possa sofrer um processo de relativizao no sentido

    de entender que se constitui em viso generalizante, construda a partir da tica das elites econmicas regionais e sua referida histria. Em outras palavras, tanto o formato como o contedo desses ciclos foi socialmente construdo e classificado, consequentemente, obedece prioridades e critrios de agentes sociais dominantes.

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    significados, a autora ressalta que o conceito em voga acaba por revelar-se como vago e genrico, mas no totalmente desprovido de interesses, incorporando uma conotao poltica e ideolgica na medida em que se torna uma categoria a ser preenchida (Viana, 2008, p. 207).

    A argumentao de Viana (2008) tambm se faz importante no debate sobre populaes tradicionais ao observar que, somente com a criao de tal categoria foi possvel pensar na permanncia humana em unidades de conservao e

    ... como sua definio vaga, ela usada como instrumento de defesa de territrio de diversos grupos sociais no s das prprias populaes tradicionais, mas de todos os que querem permanecer em uma unidade de conservao. As populaes consideradas no tradicionais leia-se destruidoras da natureza tambm se apropriaram, no comeo, da nica possibilidade de permanncia de seus locais de uso e moradia, unindo-se s populaes tradicionais nos movimentos organizados. (p. 226).

    Assim, Viana (2008, p. 228) elucida o preenchimento da categoria populao tradicional atravs da narrativa de um caso de uma unidade de conservao da Mata Atlntica, na qual as populaes residentes passaram a se organizar na luta por direitos,

    entre eles o de uso e acesso a terra e recursos naturais, ao mesmo tempo em que defendiam a conservao da natureza, criando a possibilidade de tolerncia de populaes humanas em unidades de conservao. A autora segue com uma extensa e densa sociognese da produo da definio, trazendo tona diversas outras contribuies ao debate, que sero expostas em momentos posteriores deste trabalho.

    Nesse sentido, outra importante contribuio a de Cunha e Almeida (2001), que iniciam o artigo intitulado Populaes Tradicionais e Conservao Ambiental apresentando a definio desses grupos como um termo ainda em construo e bastante genrico, classificando-o como um conceito extensivo e perfilando tal definio atravs da enumerao dos elementos que o compem. Dentre os sujeitos enumerados e que compem essa categoria possvel citar extrativistas, seringueiros, castanheiros, quebradoras de coco babau, ribeirinhos, pescadores artesanais, varjeiros, faxinalenses, comunidades de fundo de pasto, pomeranos, ciganos, geraizeiros, vazanteiros, piaabeiros, pantaneiros, dentre

    tantos outros que j se identificam como populaes tradicionais, ademais daquelas que ainda surgiro.

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    Em sequncia reflexo proposta, Cunha e Almeida (2001) sinalizam para o fato de que esta definio aponta para a formao de sujeitos polticos por meio de novas prticas. Ou seja, os autores demonstram que, com o encontro da metrpole com o outro, termos so criados para que este outro tome alguma forma e, em alguns casos, este termo garante ao outro uma posio poltica interessante, conferindo-lhe direitos sui generis. Os autores

    citam exemplos como ndio, indgena, tribal, negro e outros. Desta forma, termos novos so criados para classificar este outro, sendo que com o passar do tempo, e dependendo da

    convenincia, estes termos so ou no preenchidos. No caso das populaes tradicionais possvel identificar como o termo vem sendo

    amplamente habitado por novos agentes sociais, assim como vem transformando-se em uma bandeira poltica para os seus componentes, visto que, como ser comentado em momento posterior deste captulo, seus direitos, inclusive territoriais, so garantidos no mbito do Sistema Nacional de Unidades de Conservao (doravante SNUC). Desta forma, a definio construda pelas Cincias Sociais para populaes tradicionais no mais se apresenta como unicamente extensiva, mas, ainda que apresentado um avano terico para

    a definio desse objeto, permanece a necessidade de uma anlise crtica sobre o mesmo. Nesse sentido, Cunha e Almeida (2001) finalizam seu artigo pensando populaes

    tradicionais como: grupos que conquistam ou esto lutando para conquistar (por meios prticos e simblicos) identidade pblica que inclui algumas e no necessariamente todas as seguintes caractersticas: uso de tcnicas ambientais de baixo impacto; formas eqitativas de organizao social; presena de instituies com legitimidade para fazer cumprir suas leis; e, por fim, traos culturais que so seletivamente reafirmados e reelaborados. (p.192).

    Na definio em tela possvel perceber que os autores agregam um vis poltico definio de Arruda (1999), pois demonstram como a identidade pblica de populaes tradicionais foi construda, sendo juridicamente e politicamente reconhecida, garantindo, assim, direitos especficos s pessoas que preencherem esta identidade.

    Outra contribuio refere-se aos diversos conceitos formulados nas obras de

    Diegues para populaes tradicionais. Para o autor em destaque, populaes tradicionais so aquelas que praticam um extrativismo que foi historicamente construdo,

    caracterizando-se por um manejo florestal de baixo impacto ambiental. Diegues

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    caracteriza-se, ainda, por empreender uma extensa e descritiva lista de populaes tradicionais (Diegues et al, 2000, 2001, 2002), assim como o mapeamento georreferenciado da bibliografia que trata da temtica populao tradicional (Diegues et al, 2001). Em parceria com outros autores, Diegues assim define sociedades tradicionais em relatrio produzido para o Ministrio do Meio Ambiente-MMA:

    grupos humanos culturalmente diferenciados que historicamente reproduzem seu modo de vida, de forma mais ou menos isolada, com base em modos de cooperao social e formas especficas de relaes com a natureza, caracterizados tradicionalmente pelo manejo sustentado do meio ambiente. Essa noo se refere tanto a povos indgenas quanto a segmentos da populao nacional que desenvolveram modos particulares de existncia, adaptados a nichos ecolgicos especficos. (Diegues et al, 2000, p. 25).

    importante perceber que, na formulao acima, o autor inclui populaes indgenas como populaes tradicionais, pensando que, apesar de existirem diferenas

    culturais entre indgenas e as outras populaes tradicionais, o que importa o seu modo de vida especfico de integrao com a natureza, desenvolvendo uma cultura tradicional que pratica um manejo sustentado do meio ambiente.

    Contudo, importa demonstrar que juridicamente estas duas identidades so distintas, pois so regulamentadas por dois instrumentos jurdicos distintos: a noo de identidade indgena e a garantia de seus direitos advm da Carta Magna de 1988, assim como do estatuto do ndio20; por outro lado, a identidade de populao tradicional toma a proporo que apresenta atualmente atravs da Lei 9985 de 18 de julho de 2000, que institui o Sistema Nacional de Unidades de Conservao (SNUC). Os quilombolas tambm constam como populaes tradicionais, porm com uma identidade jurdica diferenciada21.

    Juliana Santilli (2004, 2005), com foco nos aspectos jurdicos, trata da questo da diferenciao entre populaes tradicionais. A autora reconhece que os povos indgenas, os quilombolas e as populaes tradicionais assemelham-se na medida em que possuem

    modos de vidas que so ecologicamente sustentveis, assim como no uso comum dos recursos naturais e conhecimentos acerca destes. A autora afirma, tambm, que estas trs

    identidades diferenciam-se no mbito jurdico, principalmente em relao ao

    20 Lei 6001, de 19 de dezembro de 1973.

    21 Para mais detalhes sobre a diferenciao jurdica entre Populaes Tradicionais, Quilombolas e Indgenas,

    consultar o livro Sociambientalismo e novos Direitos de Juliana Santilli (Santilli, 2005), assim como artigo da mesma autora no livro O desafio das Sobreposies (Santilli, 2004).

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    reconhecimento constitucional de direitos territoriais especiais. Desta forma, Santilli (2005) reconhece os indgenas e quilombolas como populaes tradicionais, contudo faz a ressalva de suas diferenas perante as leis que regem o ordenamento jurdico brasileiro. A autora deixa claro que o mais importante a se ter em foco que indgenas, quilombolas e populaes tradicionais, apesar de apresentarem direitos diversos e diferentes, constituem-

    se todos como populaes locais22 e tradicionais que apresentam um carter sustentvel, decorrente do vasto conhecimento acerca dos recursos e ciclos da natureza.

    Santilli tambm define populaes tradicionais, a partir de sua ligao de relativa simbiose com a natureza, pelo conhecimento aprofundado da natureza e de seus ciclos e pela noo de territrio ou espao onde se reproduzem econmica e socialmente (Santilli, 2005, p. 130). Mais frente a autora complementa a associao que existe entre a atual definio de populaes tradicionais com os paradigmas de conservao socioambiental, lembrando do vasto nmero de culturas e suas respectivas formas de apropriao e utilizao dos recursos naturais.

    A autora em tela acrescenta que as populaes tradicionais podem ser vistas como

    parceiros na conservao ambiental, legitimamente interessados em participar da concepo e gesto de polticas publicas scio-ambientais, considerando-as como populaes que

    tradicionalmente vivem em um determinado territrio e desenvolvem tcnicas e prticas sustentveis de manejo de seus recursos naturais sendo estas mais capacitadas e interessadas em promover a conservao de seus territrios, e no podendo ser excludas do manejo dos mesmos (Santilli, 2005, p. 130).

    O importante a ser destacado das reflexes apresentadas por esta autora, at o presente momento deste empreendimento, refere-se reflexo jurdica feita acerca da definio de populaes tradicionais, demonstrando os direitos que estas populaes adquiriram em funo da Constituio de 1988 e dos paradigmas socioambientais que a nortearam, concedendo-lhes diversos direitos e, desta forma, visibilidade maior, assim

    22 No sentido colocado pela lei Lei n 11.284, de 02 de maro de 2006 (Dispe sobre a gesto de florestas pblicas

    para a produo sustentvel; institui, na estrutura do Ministrio do Meio Ambiente, o Servio Florestal Brasileiro - SFB; cria o Fundo Nacional de Desenvolvimento Florestal - FNDF; altera as Leis nos 10.683, de 28 de maio de 2003, 5.868, de 12 de dezembro de 1972, 9.605, de 12 de fevereiro de 1998, 4.771, de 15 de setembro de 1965, 6.938, de 31 de agosto de 1981, e 6.015, de 31 de dezembro de 1973; e d outras providncias.). A referida legislao define comunidades locais atravs de seu artigo 3, inciso X. Comunidades locais: populaes tradicionais e outros grupos humanos, organizados por geraes sucessivas, com estilo de vida relevante conservao e utilizao sustentvel da diversidade biolgica. Cabe destacar que este conceito legal define comunidade local como um gnero, do qual as populaes tradicionais so uma espcie.

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    como maior autonomia em relao s escolhas relativas gesto de seus prprios territrios.

    Mauro Almeida (2007) contribui com outra reflexo relevante em conferncia intitulada Quem so os povos da floresta?, proferida na 59 Reunio Anual da Sociedade Brasileira para o Progresso da Cincia-SBPC23. O autor lembra a formulao de Alfredo

    Wagner, que pensa populaes tradicionais como grupos sociais que se constituem sob o rtulo de povos tradicionais na luta para conquistar territrios e que incorporaram novas

    identidades em uma situao de mobilizao acionadas em contexto de conflito (Almeida, 2007, p. 48-49). Nesta construo a auto-identificao emerge como fator essencial, pois, conforme comentado acima, a categoria populao tradicional foi criada pela sociedade nacional para classificar grupos que em outros momentos no se viam e no eram vistos

    enquanto protagonistas. Tambm deve-se ressaltar o contexto de conflito em que muitas vezes estas populaes esto inseridas, com respeito aos processos de territorializao e identificao.

    O autor desenha, ainda, as populaes tradicionais como: comunidades que, j sendo habitantes h algum tempo da regio, esto entrando num processo de desenvolvimento com baixo impacto ambiental, visando melhorar sua qualidade de vida. assim que o grupo se auto-identifica atualmente como tradicional. (Almeida, 2007, p. 49).

    Atravs desta formulao, o autor faz um link entre a necessidade de uma auto-identificao destas populaes tradicionais como pertencentes a tal categoria, assim como

    da necessidade de se auto-identificarem como de baixo impacto ambiental. Seguindo de maneira similar aos autores at agora apresentados, Esterci (2007)

    observa que populaes tradicionais ... como tm sido chamados aqueles povos ou grupos que, vivendo em reas perifricas nossa sociedade, em situao de relativo isolamento face ao mundo ocidental, capitalista, construram formas de se relacionar entre si e com seres e coisas da natureza muito diferentes das formas vigentes na nossa sociedade. (p. 223)

    O conceito acima exposto contribui com a discusso na medida em que fortalece o argumento de Cunha e Almeida (2001) e Almeida (2007) ao pensar as populaes

    23 Disponvel em www.sbpcnet.org.br.

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    tradicionais como uma formulao criada por ns (mundo ocidental capitalista) para classificar grupos e povos distintos da nossa sociedade e que estabelecem relaes distintas com a natureza.

    A autora refora um dos argumentos de Diegues (1993) e Diegues et al (2002), ao observar que esses povos e grupos j eram conhecidos, antes mesmo da construo da denominao populaes tradicionais, atravs de uma multiplicidade de outros termos que, ora indicavam sua atividade econmica mais visvel, ora indicavam sua origem tnica, ora

    se referiam a espaos que habitavam ou a aspectos de sua cultura e modo de vida (p. 223). Como exemplo cita pescadores e extrativistas para a atividade econmica mais visvel, quilombolas e caboclos para a origem tnica, ribeirinhos e caipiras para espaos que habitavam ou a aspectos de sua cultura e modo de vida, entre tantas outras populaes tradicionais.

    Esterci tambm refora o argumento de Arruda (1999) e Diegues (1993), ademais de ampli-lo ao pensar as populaes tradicionais como

    ... pequenos produtores familiares que cultivam a terra e/ou praticam atividades extrativistas como a pesca, coleta, caa, utilizando-se de tcnicas de explorao que causam poucos danos natureza. Sua produo voltada para o consumo e tm uma fraca relao com os mercados. Sendo sua atividade produtiva muito dependente dos ciclos da natureza, eles no criam grandes concentraes, e as reas que habitam, tendo uma baixa densidade populacional, so as mais preservadas entre as reas do planeta (p. 224).

    A ampliao da definio de populao tradicional por Esterci (2007) consta no final do trecho acima citado, no qual a autora observa a baixa densidade populacional e consequente maior preservao das reas habitadas pelas populaes tradicionais. imperioso lembrar que esta caracterstica no est diretamente ligada preservao de suas reas, contudo auxilia na baixa presso e impacto que causam ao meio ambiente. Ressalta-se que Diegues (1993, p. 91) tambm faz ressalva acerca dessa caracterstica das populaes tradicionais.

    Assim como Diegues (1993), Esterci (2007) tambm contribui com a discusso em voga em razo de alertar que, com o passar do tempo, os idealizadores das reas protegidas foram percebendo quanto os conhecimentos acumulados pelas populaes que as

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    habitavam poderiam ser teis na implementao de manejo de recursos, visando a proteo de ecossistemas e da biodiversidade (Esterci, 2007, p. 224-225, grifo meu).

    1.1.3 Populaes tradicionais (ecolgicas?): saberes tradicionais e prticas sociais de relao com o meio ambiente

    Manuela Carneiro da Cunha (1999), ao discorrer sobre o cenrio poltico de constituio da CDB, apresenta a condio de invisibilidade que foi vivida pelas populaes tradicionais. A autora analisa a discusso entre duas pontas de um processo de interesse para toda a humanidade: o pblico e o privado. Nessa reflexo Cunha (1999) mostra como, em uma sociedade institucionalizada, os direitos individuais so garantidos em detrimento de direitos coletivos, pois os recursos genticos e conhecimentos tradicionais deveriam ser de acesso livre enquanto que no mundo da biotecnologia, ao

    contrrio, tudo era patenteado e os remdios e sementes propriedade estritamente privada (Cunha, 1999, p.148). Ou seja, os conhecimentos produzidos pelas populaes tradicionais, assim como os recursos genticos presentes em sua rea, antes da CDB, eram patrimnio da humanidade, e no estavam sob o domnio das populaes que os descobriram, desenvolveram e conservaram. A argumentao de Cunha evidencia, portanto, a situao de invisibilidade na qual se encontravam as populaes tradicionais dentro do aparato jurdico anterior ao debate em torno da Constituio Federal.

    Por outro lado, destacando a importncia das prticas sociais de relao com o meio ambiente para a preservao dos espaos naturais, Lima e Pozzobon (2000) enumeram diversas evidncias que permitem apresentar as prticas dessas populaes tradicionais

    como de baixo impacto ambiental. Esses autores fazem uma interessante exposio acerca dos pequenos produtores tradicionais da Amaznia, demonstrando o processo elaborado

    pelo governo colonial para povoar a Amaznia, baseado em dispositivos legais que o respaldavam. Estes estimulavam a formao de um campesinato histrico produtivo e submisso, atravs da miscigenao entre ndios, negros e brancos, resultando da um campons neo-amaznida, constitudo por tapuios, mamelucos e caboclos que, sincretizaram elementos de culturas negras, ndias e brancas, produzindo uma

    caracterizao singular (Lima e Pozzobon, 2000, p. 13).

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    No transcorrer dos sculos, no processo de ocupao dessa regio, novos ciclos econmicos foram surgindo, culminando na formao de diferenciados quadros sociais e culturais. Como exemplo mais notrio possvel citar o ciclo da borracha que importou os chamados brabos (nordestinos) novos agentes sociais que se integraram ao cenrio amaznico configurando-se como agentes exgenos caboclizados. Com o passar do

    tempo, foram gradualmente sendo integrados ao cenrio socioambiental amaznico, caracterizado por uma cultura ecolgica e de hbitos regionais (Lima e Pozzobon apud Parker, 2000, p.14), denotando mais uma vez a miscigenao de culturas que permeia a realidade amaznica.

    Em funo desta mistura cultural, e atravs da herana indgena, essas populaes adquirem seu carter de sustentabilidade, produzindo saberes advindos de culturas indgenas de tradio ecolgica milenar. Estas resultam de prticas sociais caracterizadas pela interao com o meio ambiente, desenvolvendo e reproduzindo um vasto conhecimento sobre os recursos naturais. A ferramenta de controle sobre esse campesinato amaznico constituiu-se na imposio de um padro cultural de consumo de artigos

    manufaturados24, adquirindo a necessidade de poder aquisitivo, transformando-se, desta forma, em produtores tradicionais com economia familiar (Lima e Pozzobon, 2000, p.13-14).

    No entanto, Lima e Pozzobon (2000, p.14) enfatizam o baixo grau de relao com o mercado que o produtor tradicional estabelece. Isso se d em funo de sua orientao como produtor de subsistncia, vendendo o excedente para ter acesso a produtos e gneros alimentcios industrializados, caracterizando-se como uma relao consuntiva, ou seja, A produo domstica tem por objetivo garantir o consumo dos membros da famlia e desta orientao consuntiva decorre a lgica da aplicao dos rendimentos do trabalho. Logo, a satisfao das necessidades de consumo que orienta a produo e, portanto,

    influencia a presso de uso sobre o ambiente (Lima e Pozzobon, 2000, p. 15). Outro fator agravante para esta orientao consuntiva seria o grande esforo fsico que o processo de

    24 Esse processo de relao com o mercado no exclusivo do campesinato Amaznico. A literatura sobre esse

    segmento da sociedade j evidencia essa condio, colocando-a como fundamental na formao do campesinato (Chayanov, 1974; Hebette 2004; Costa, 1992).

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    confeco destes produtos exige25, denotando a penria e o esforo em relao ao benefcio do consumo extra ao explorar a prpria fora de trabalho. Lima e Pozzobon (2000) tambm evidenciam as limitaes tecnolgicas s quais estas populaes esto sujeitas, restringindo a sua capacidade de produo e acesso ao mercado.

    A linha de raciocnio acima exposta configura-se como um link para a seguinte

    reflexo: j que estas populaes produzem para consumo prprio, utilizando-se de mtodos tradicionais, terminam por apresentar um sistema de reproduo social sustentvel,

    visto que necessitam dos recursos naturais para garantir a sua reproduo social e seu modo de vida, logo, a necessidade de preservao desses recursos tambm concebida, dando origem a uma cultura ecolgica sustentvel. Ento, estas populaes tradicionais, apesar de alterarem o meio ambiente na medida em que exploram os recursos naturais, no promovem efeitos nocivos extensivos sobre o meio ambiente.

    Nesse sentido, as obras de Diegues (1993, 1994, 1997, 2001) e Diegues et al (2001) se aproximam da anlise de Lima e Pozzobon (2000). As obras mencionadas demonstram como essas populaes tradicionais desenvolvem um modo de vida de integrao com a

    natureza, desenvolvendo prticas de reproduo socioambiental marcadas por um certo grau de sustentabilidade ecolgica, diferentemente da relao que a sociedade ocidental

    ps-industrial demonstra para com a biodiversidade. Evidenciam como, nessa relao de interesse, a sociedade ocidental se posiciona em uma perspectiva instrumental, onde a natureza pensada enquanto fonte de recurso a ser dominada, privatizada e explorada pelos seres humanos. Na sociedade ocidental a natureza vista como o lcus do primitivo, brbaro, incivilizado que deve ter na civilizao a luz para a sua evoluo, a sada para o seu estado de atraso. As obras em tela evidenciam como as populaes tradicionais vivem em harmonia com a natureza, articulando o seu modo de vida com os recursos naturais, desenvolvendo uma cultura de vasto conhecimento dos mesmos.

    Para Diegues, especificamente, as populaes tradicionais desenvolveram um outro tipo de relao homem natureza, atravs de:

    modos de vida particulares que envolvem uma grande dependncia dos ciclos naturais, um conhecimento profundo dos ciclos biolgicos e dos

    25 Como exemplo possvel citar o quo trabalhoso produzir farinha, ou ento o processo de confeco da

    borracha, assim como a pesca trabalhosa na medida em que se deseja pescar em uma escala aceitvel para o mercado, utilizando-se de instrumentos e tcnicas artesanais.

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    recursos naturais, tecnologias patrimoniais, simbologias, mitos e at uma linguagem especfica (Diegues, 2001, p. 10).

    Fica clara a posio do autor sobre a necessidade de uma nova concepo de mundo para a sociedade ocidental, diante de uma postura de explorao e conquista dos recursos naturais ao invs de sua integrao com estes. Esta viso da natureza como um espao oposto ao ser humano, como algo intocado e selvagem26, desenvolvida atravs da noo de wilderness. Conforme observado anteriormente, esta noo que origina as Unidades de Conservao de uso indireto dos recursos naturais, nos Estados Unidos, padro este posteriormente exportando para outros pases, sendo que desde seu incio foi criticado, principalmente por naes indgenas, que viam nas florestas ditas naturais (wilderness) a sua prpria sociedade e seu prprio lar (Diegues, 1993). Standing Bear, chefe Sioux, assim afirmava a esse respeito:

    Ns no consideramos selvagens (wild) as vastas plancies abertas, os maravilhosos montes ondulados, as torrentes sinuosas. Somente para o homem branco a natureza era selvagem, e somente para ns ela era domesticada. A terra no tinha cercas e era rodeada de bnos do Grande Mistrio (Mcluthan apud Diegues, 1993. p. 227)

    Desta forma, o autor (Diegues 1993, 1994, 1997, 2001; Diegues et al, 2000) sugere que algumas sociedades e populaes contribuem para o aumento da diversidade de espcies, de ecossistemas e gentica, visto que desenvolveram uma relao de integrao com a natureza, logo, uma relao de manipulao dos recursos naturais sem causar impactos negativos ao ecossistema. possvel, portanto, notar que a biodiversidade no um fenmeno apenas natural, mas h nele uma interferncia humana, caracterizando-se como processo bio-cultural, j que, o que outrora era visto pelos cientistas como biodiversidade, descontextualizada de um domnio cultural foi desconstrudo em virtude das culturas das populaes tradicionais que desenvolveram uma relao ecologicamente sustentvel com o ecossistema que habitavam.

    Um exemplo a ser citado, refere-se floresta amaznica, na qual a maioria das populaes que tradicionalmente ocupam a terra firme desenvolvem prticas agrcolas

    26 Selvagem, nas palavras do autor, corresponde a: reas virgens, no habitadas permanentemente sendo que os

    parques wilderness (unidades de conservao estadosunidenses orientadas por esta noo) serviriam como parque pblico ou rea de recreao para benefcio e desfrute do povo... em que o homem visitante e no morador (Diegues, 1993, p.226).

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    que utilizam pequenas reas de terra para o plantio, sendo que para remover a vegetao existente, utilizam-se do fogo, provocando queimadas minuciosamente controladas, ocorrendo o abandono dessas reas aps o decrscimo da produo agrcola27. Este processo assemelha-se destruio das florestas produzida por causas naturais, dificultando a identificao e diferenciao de reas naturais para reas que sofreram a ao humana

    (Diegues, 1993. p. 240). Nesta mesma linha de raciocnio Diegues (1993) cita autores que descobriram

    como, no Mxico e na Amrica Central, ocorre de forma abundante a presena de diversas espcies na selva primria como resultado da ao de populaes indgenas.

    O autor demonstra que Por causa da longa histria de pousio da agricultura itinerante, junto com os povos nmades/pastores na frica Central, todas as florestas atuais so realmente patamares de vrios estgios sucessivos de crescimento criados pelo povo e no existem reas que muitos relatrios e propostas chamam de prstinas, intocadas, primrias ou florestas maduras. Em resumo, essas florestas so artefatos culturais humanos. (p. 242).

    Outro exemplo a ser citado seria Adams (1994) que descreve de maneira extensiva diversas evidncias arqueolgicas e etnogrficas que reforam o argumento de que essas populaes seriam ecologicamente sustentveis em funo do seu modo de vida,

    relativizando a dicotomia entre natureza e cultura. A seguir, uma dessas evidncias referente aos Huastec, do nordeste do Mxico:

    Alcorn (1981) considera que o comportamento do homem pr-histrico foi importante para formar a atual composio da floresta desta regio do Mxico. Para elucidar este comportamento o autor recorreu pesquisa etnobotnica entre os Huastec modernos (lngua Maia), representantes de 30 sculos de ocupao. Para os Huastec, a vegetao natural vista como fonte de recursos, para os mais variados usos, e no como nociva agricultura... H evidncias de que distrbios feitos pelo homem em reas tropicais influenciaram a evoluo das espcies da flora, ao criar uma variedade de condies para a sucesso secundria (Gmez-Pompa, 1971). Essa manipulao em massa da vegetao pelos Huastec cria diversas zonas de vegetao antropognica, que vo trocando de lugar ao longo do tempo, possibilitando uma anlise histrica de determinados trechos da mata, atravs da anlise de sua composio florstica. (p. 9)

    27 Para mais detalhes sobre esta tcnica, ver Ravena-Caete (2005).

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    A autora lana mo de diversos outros exemplos para demonstrar a insero das sociedades indgenas no ecossistema local, demonstrando as influncias que a biodiversidade recebe do ser humano. Com isso, Adams (1994) sugere a existncia de florestas culturais, na medida em que as sociedades pr-colombianas desenvolveram tcnicas de manejo, cultivo e domesticao da fauna e flora local, alterando a sua composio natural. Nesse sentido, grande parte da floresta amaznica, outrora considerada intocada, virgem, wilderness, na realidade j foi manejada pelas populaes amerndias e continua sendo-o, pela ao das populaes tradicionais, incluindo a os povos indgenas.

    Adams (1994) d continuidade ao seu texto analisando o caso das florestas culturais do Brasil, observando que pesquisas realizadas por antroplogos e arquelogos ... tm demonstrado a existncia de um alto grau de manejo da floresta entre as populaes habitantes da Amaznia, num grau de interferncia inimaginado h alguns anos. (p. 12). A autora segue citando exemplos de florestas culturais, como as florestas de palmeiras (p. 12), as capoeiras e os campos da floresta dos Kayap (p. 13), cocais, matas de Caiau, campinas abertas de areia branca do Rio Negro, matas de bambu, ilhas de mata no cerrado central, castanhais, matas de cip (p. 14) e as matas de babau no Maranho (p. 15). Com isso, a autora afirma:

    As reas comprovadamente reconhecidas como matas culturais somam hoje 11,8% da terra firme da Amaznia, mas certamente este nmero bem maior, se levarmos em conta as matas ainda no levantadas e aquelas j destrudas pelo desmatamento acelerado que ocorre na regio. (p. 14).

    Concluindo, mais adiante: parece cada vez mais claro que a classificao, sob o nome de florestas primrias, da maior parte das florestas tropicais midas que ainda restam na Terra, est em jogo. As evidncias j levantadas so inquestionveis, e certo que um levantamento etnobotnico minucioso aumentaria significativamente a lista de florestas culturais . (ADAMS, 1994, p. 16)

    Uma vez mais, portanto, evidencia-se o fato de que a noo de natureza selvagem e intocada na verdade um mito, visto que para muitos povos a natureza est em relao direta com o seu modo de vida, alterando-o, manipulando-o, manejando-o e assim por diante, construindo um vasto conhecimento de seu ambiente e dos ciclos e recursos naturais nele presentes, resultando novamente em uma biodiversidade que foi culturalmente

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    construda28. Logo, desmistifica-se a viso de que a ao humana para com a natureza sempre uma ameaa biodiversidade (DIEGUES et al, 2000). Em outras palavras, natureza e cultura no so opostas e mutuamente excludentes. Assim como tambm fica evidente o mito de que existem reas wilderness, virgens e intocadas pela humanidade, ou, nas palavras de Diegues (1993, 1994, 2001; 2008), fica evidente o mito moderno da natureza intocada.

    1.1.4 Tradio, Conflito e Processos de territorializao: o direito diferena e territorialidade

    Em Arqueologia da tradio, o antroplogo Alfredo Wagner B. de Almeida (2006), apresenta discusso relevante a respeito da categoria tradicional, frequentemente associada definio de populao tradicional. Para Almeida (2006), mais do que uma idia de continuidade, de velho, antigo ou arcaico, o termo tradio expressa fora poltica

    do presente. Esta expresso no pode mais ser lida ... segundo uma linearidade histrica ou sob a tica do passado ou ainda como uma remanescncia das chamadas comunidades primitivas e comunidade domsticas (Sahlins, 1972 e Meillassoux, 1976) ou como resduo de um suposto estgio de evoluo da sociedade. O chamado tradicional, antes de aparecer como referncia histrica remota, aparece como reivindicao contempornea e como direito envolucrado em forma de autodefinio coletiva (ALMEIDA, 2006. p. 9).

    Em outras palavras, a noo de tradicional est sendo reconstruda e/ou reinventada, uma vez que as populaes ditas tradicionais vem assumindo novo significado, ligado a

    reivindicaes atuais e que remetem uma autodefinio coletiva com direitos especficos. o direito diferena, heterogeneidade, a uma sociedade plural e multicultural.

    Ainda segundo Almeida (2006), populaes tradicionais seriam aquelas que ... aparecem hoje envolvidas num processo de construo do prprio tradicional, a partir de mobilizaes e conflitos, que tem transformado de maneira profunda as formas de solidariedade apoiadas em relaes primrias. Deste ponto de vista, alm de ser do tempo presente, o tradicional , portanto, social e politicamente construdo. (p. 10, grifo meu).

    28 Para mais detalhes sobre a influncia das populaes tradicionais na formao do ecossistema local, consultar

    Scoles (2011), Bale (2008) e Ribeiro (1986).

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    possvel evitar, assim, a confuso entre tradio e costume, no pensando tradio como repetio e regularidade no modo de vida das populaes tradicionais, tampouco aplicar esta noo de tradio as prticas jurdicas que seriam correspondentes a estas populaes. Nesse sentido, tradio

    ... se atm a processos reais e sujeitos sociais que transformam dialeticamente suas prticas, mesmo quando as convertem em normas para fins de interlocuo, redefinindo suas relaes sociais e com a natureza. Tais processos reais nos levam a pensar em comunidades dinmicas... Sob este prisma que estamos propondo relativizar o peso da normatizao consuetudinria no significado das prticas jurdicas dos povos tradicionais (ALMEIDA, 2006. p. 11).

    Com efeito, outra contribuio de Almeida (2008a) refere-se sua crtica sobre alguns esquemas interpretativos da Amaznia que terminam por reduzir conceitos e definies. Almeida observa que conceito no exatamente dicionarizado e mais consiste num instrumento de anlise em tudo dinmico e referido a autores que disputam a

    legitimidade de acion-lo, no podendo ser enquadrado numa definio frigorificada (ALMEIDA, 2008a, p. 167). Assim, leva a cabo a reflexo sobre os conceitos de degradao e natureza, observando que esta no pode mais ser entendida como quadro natural ou meio fsico, tratando-se de um significado ligado mais a uma

    representao disposta num campo de disputas que, ao negar esta noo histrica corrente, chama a ateno para uma construo social e um ato deliberado dos que se empenharam de maneira direta em extrativismos e cultivos agrcolas com unidades familiares, afirmando uma identidade coletiva (p. 20)

    Assim, Almeida (2008a) relativiza o conceito de natureza, emprestando-lhe um significado que pode ser socialmente construdo, assim como o termo degradao. Segundo o autor em tela, este termo ... se torna um atributo de grupos sociais e de comunidades tnicas e no mais se refere necessariamente a perdas relativas aos recursos naturais, evidenciando a transitividade do atributo (...) que tanto pode ser utilizado para os recursos naturais, quanto para aqueles que os exploram, os quais so interpretados, por sua vez, como indivduos biolgicos (ALMEIDA, 2008a, p. 34). Em outras palavras, as populaes tradicionais acabam sendo transformadas em agentes de degradao ambiental.

    Mais adiante Almeida (2008a, p. 38-39) relativiza o conceito de degradao diante do contexto socioambiental amaznico, observando que, em verdade, o referido termo pode

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    ser trocado por outro, a saber, prticas socioambientais, materializadas na categoria nativa roa. Esta refere-se menos uma mera referncia aos tratos do cultivo e mais a uma maneira de viver e de ser, um estilo de vida que sintetiza os recursos naturais na idia de terra e, com ajuda das mobilizaes sociais, serve de reforo reivindicao da identidade coletiva. Com efeito, Almeida (2008a) observa que

    As novas formas de interpretar a natureza e de defend-la fazem parte de seu novo significado, que no pode mais ser dissociado das mobilizaes e de processos diferenciados de territorializao, que levam os sujeitos sociais a construrem suas prprias territorialidades especficas, segundo seus critrios culturais intrnsecos e seus conhecimentos profundos das realidades localizadas (ALMEIDA, 2008a, p. 39).

    Em outras palavras, a afirmao acima citada corrobora o argumento de Diegues (1994) e Adams (1994) no sentido de pensar a biodiversidade como culturalmente construda, sendo que Almeida (2008a) amplia esta perspectiva ao pensar a noo de biodiversidade como culturalmente reapropriada e ressignificada pelas populaes tradicionais. Estas no degradam o meio ambiente ou a natureza, mas sim fazem a roa, usam os recursos naturais segundo suas crenas, prticas, costumes, enfim, segundo a

    sua maneira de viver e de ser, seu estilo de vida (ALMEIDA, 2008a, p. 39). O autor denomina este processo de reapropriao e ressignificao de politizao da natureza

    (ALMEIDA, 2008a, p. 14, 40, 82) assim que as populaes tradicionais, atravs de suas lutas e disputas, conseguem

    no somente reivindicar e garantir alguns de seus direitos mais fundamentais, como o uso de recursos naturais e o direito terra, mas tambm conseguem quebrar paradigmas, mudar conceitos, desnaturalizar noes pr-concebidas e assim por diante. Elas conseguem interromper o que Almeida (2008a, p. 36), ao citar o filsofo francs Michel Foucault, convencionou chamar de postulado da continuidade29.

    29 Em nota de rodap das pginas 36 37, Almeida observa que Para Foucault, caso se pretenda adicionar o

    conceito de descontinuidade s histrias do pensamento intelectual: preciso se libertar de todo um jogo de noes que esto ligadas ao postulado da continuidade. (...) Como a noo de tradio, que permite ao mesmo tempo delimitar qualquer novidade a partir de um sistema de coordenadas permanentes e de dar um estatuto a um conjunto de fenmenos constantes. Como a noo de influencia, que d um suporte antes mgico que substancial aos fatos de transmisso e de comunicao. Como a noo de desenvolvimento, que permite descrever uma sucesso de acontecimentos como sendo a manifestao de um nico e mesmo princpio organizador. (...) preciso abandonar estas snteses j feitas, esses agrupamentos que se admitem antes de qualquer exame, esses laos cuja validade admitida ao incio do jogo; destruir as formas e as foras obscuras pelas quais temos o hbito de ligar entre si os pensamentos dos homens e seus discursos; aceitar que s se trata, em primeira instancia, de um conjunto de acontecimentos dispersos. (Foucault, 1973:17) (g.n.) (Foucault apud Almeida, 2008a, p. 36-37)

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    Contudo, Almeida (2008a) conclui alertando que o entendimento da natureza no prescinde mais de sujeitos sociais e nem tampouco de prticas rotineiras de conservao e de costumes ditados pela conscincia ambiental de povos e comunidades tnicas. Em verdade a ao ambiental torna-se uma poltica de Estado que, em certa medida, incorpora reivindicaes dos movimentos sociais. Verifica-se, entretanto, que no h consenso quanto s medidas concretas que expressam tais decises polticas. Os antagonismos so de vrias ordens dividindo grupos e interesses, quanto s formas de manuteno dos recursos florestais, hdricos e do solo, prenunciando que tampouco h consenso em torno dos significados de conservao, degradao e uso continuado (p. 41).

    O referido antroplogo tambm contribui com diversas outras obras na temtica das populaes tradicionais (Almeida 1994, 2006, 2008b, 2010), sendo que, como fica claro a partir dos trechos at o momento evidenciados, um aspecto marcante em suas obras se

    destaca. Este se refere ao vis poltico de luta por direitos das populaes tradicionais, atrelado a idia de conflito e disputa social como construto da realidade. Nesse sentido,

    Almeida (1994) observa como as populaes tradicionais vm transformando velhos padres e esquemas de pensamento na interpretao da realidade socioambiental, atravs da luta coletiva pelo reconhecimento de direitos diversos (ALMEIDA, 1994). Com efeito, vale observar que uma especial ateno concedida nas obras do autor aos direitos territoriais, de acesso e uso de recursos naturais de uso comum e de autoidentificao das populaes em questo.

    Nesse sentido, outra inovao de Almeida (2008b) refere-se ao olhar lanado sobre a definio de populao tradicional a partir do prisma da luta por direitos territoriais,

    focando a caracterstica da territorialidade desses povos e seus respectivos direitos sobre suas terras. Ainda que tratando das terras das populaes tradicionais em diversas de suas

    publicaes, evidenciando questes como a temtica da roa, citada mais acima, na obra Terras Tradicionalmente Ocupadas (ALMEIDA, 2008b) que o autor se prope a refletir especificamente sobre a relao entre as populaes tradicionais, suas terras e lutas na garantia de acesso e uso das mesmas, condensando nessa publicao seus argumentos sobre esse tema.

    O livro de Almeida (2008b) est dividido em dois captulos, que representam dois artigos outrora publicados por esse antroplogo. Um deles veio a pblico em meados da dcada de 1980, e aborda estritamente a questo das formas de acesso e uso de bens

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    comuns desenvolvidos pelas populaes tradicionais, condensadas na noo de terra comuns. Este artigo adquiriu uma ampla importncia no cenrio acadmico, sendo constantemente citado quando se trata da temtica de uso comum. O outro artigo foi elaborado quase vinte anos depois, em meados da dcada de 2000, e refere-se no somente s terra comuns, mas tambm as autodenominaes dos agentes sociais que ocupam estas

    terras, assim como focaliza os fenmenos de luta e conflito protagonizados por estes agentes, atrelando o termo tradicional a fatos do presente e s reivindicaes dos

    movimentos sociais. Estes dois artigos so respectivamente citados e explanados a seguir, a ttulo de melhor entendimento a respeito das populaes tradicionais, visto a extrema importncia dos territrios sociais para a perpetuao das prticas e usos dessas populaes.

    Almeida (2008b), em seu primeiro texto, leva a cabo a reflexo da existncia de peculiaridades de uso e acesso terra por parte das populaes tradicionais, evidenciando a importncia das reas de uso comum para estas populaes. Dessa forma, Almeida (2008b) elenca as seguintes formas de posse comum por parte das populaes na relao com seus territrios tradicionalmente ocupados: terras de preto, terras de santo, terras de ndio, as

    terras de herana e as terras soltas ou abertas. Todas estas se caracterizam pelo fato de serem de uso comum da comunidade local. Nesse sentido, o uso e acesso a essas terras se

    d por meio de ... um certo grau de coeso e solidariedade obtido face a antagonistas e em situaes de extrema adversidade, que reforam politicamente as redes de relaes sociais (p. 134). O autor ainda assevera que o acesso aos recursos bsicos presentes nessas terras30 so interditados quando no existirem relaes de consanginidade, estreitos laos de vizinhana e afinidade ou rituais de admisso, que assegurem a subordinao de novos membros s regras que disciplinam as formas de posse e uso da terra (Almeida, 2008b, p. 134).

    Essas terra comuns, acabam no recebendo a sua devida ateno, pois, segundo

    Almeida (2008b), so erroneamente consideradas formas atrasadas, inexoravelmente condenadas ao desaparecimento, ou meros vestgios do passado, puramente medievais, que

    continuam a recair sobre os camponeses, subjugando-os (Almeida, 2008b, p. 136), terminando por representarem resduos ou formas ... residuais ou sobrevivncias de um modo de produo desaparecido, configuradas em instituies anacrnicas que imobilizam

    30 Leia-se recursos naturais como corpos dgua, florestas e campos de pastoreio, entre tantos outros.

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    aquelas terras, impedindo que sejam colocadas no mercado... (Almeida, 2008b, p. 136). Nesse sentido, Almeida (2008b, p. 137) assevera que estas anlises por ele citadas so caractersticas das anlises econmicas deterministas, sendo estas indiferentes a ... quaisquer das particularidades que caracterizam as formas de posse e uso comum da terra, visto que jamais constituem um obstculo insupervel ao desenvolvimento capitalista. ALMEIDA, 2008b, p. 137).

    Esse quadro de tendncia a subjugao das terra comuns ao mercado de terras capitalista termina por sofrer uma frentica mudana com os processos de luta, conflito e resistncia do movimento campons, em suas mltiplas faces, obrigando o poder pblico a conceder mais ateno, mesmo que ainda insuficiente, as especificidades dos usos e acessos reproduzidos nas terra comuns (ALMEIDA, 2008b, p. 137-140). Nesse sentido, Almeida (2008b) assevera que essas terra comuns configuram-se em

    resultados de uma multiplicidade de solues engendradas historicamente por diferentes segmentos camponeses para assegurar o acesso terra, no