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Como vejo a psiquiatria hoje Entre as aves e as feras Francisco Paes Barreto Palavras-chave: Psiquiatria Hoje, História da Psiquiatria, Psiquiatria e Psicanálise, Psiquiatria e Política. Introdução Ontem, hoje, amanhã: ao invés de três tempos diferentes, trata-se de três vertentes do tempo. Cada uma exclui as duas outras; no entanto, cada uma não existe sem as outras. Falar da psiquiatria de hoje implica ressignificar a de ontem e entrever a de amanhã. Eis o que me espera. Para efeito de exposição, dividirei a história da psiquiatria em três períodos: 1) a psiquiatria clássica; 2) a psiquiatria das grandes escolas; 3) a psiquiatria da classificação internacional. Didaticamente, pode-se dizer que o primeiro período corresponde ao século XIX, o segundo ao século XX e o terceiro já é amplamente hegemônico no início do século XXI. Farei relato sumário dos dois primeiros períodos, detendo-me um pouco mais, dentro dos limites da presente abordagem, no último período. 1. A PSIQUIATRIA CLÁSSICA A psiquiatria teve um grande fundador: Philippe Pinel (1745-1826). Pinel foi um dos maiores teóricos da história da medicina, o principal artífice das bases epistemológicas da Clínica, ao estruturá-la como método (a análise, apropriada do filósofo enciclopedista Condillac), experiência (que privilegia o olhar) e linguagem (que privilegia o signo), numa formalização que ficou conhecida como método clínico. Até o fim da vida, porém, permaneceu surdo às lições essenciais da anatomia patológica, não aceitando o método anátomo-clínico que prevaleceu na medicina de bases científicas, motivo pelo qual seus méritos foram, em grande parte, relegados. i Por isso, Pinel só é lembrado, geralmente, como fundador da psiquiatria e protagonista de duplo advento: do humanismo e do saber científico no trato com a loucura. Com efeito, ao assumir a Bicêtre (1793) e a Salpêtrière (1795), ele liberou os loucos de suas amarras e aplicou o método clínico ao estudo das alienações mentais. O seu Tratado Médico- Filosófico da Alienação Mental (1801) tornou-se a obra inaugural da psiquiatria. Mas há quem avalie o que aconteceu de forma diferente. Ao definir o estatuto da loucura simultaneamente como doença e erro (no sentido moral), Pinel teria fechado o cerco em torno do louco com um rígido discurso médico e moralista. ii Prova disso são as suas

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  • Como vejo a psiquiatria hoje

    Entre as aves e as feras

    Francisco Paes Barreto

    Palavras-chave: Psiquiatria Hoje, Histria da Psiquiatria, Psiquiatria e Psicanlise, Psiquiatria e Poltica.

    Introduo

    Ontem, hoje, amanh: ao invs de trs tempos diferentes, trata-se de trs vertentes do tempo. Cada uma exclui as duas outras; no entanto, cada uma no existe sem as outras. Falar da psiquiatria de hoje implica ressignificar a de ontem e entrever a de amanh. Eis o que me espera.

    Para efeito de exposio, dividirei a histria da psiquiatria em trs perodos:1) a psiquiatria clssica;2) a psiquiatria das grandes escolas;3) a psiquiatria da classificao internacional.

    Didaticamente, pode-se dizer que o primeiro perodo corresponde ao sculo XIX, o segundo ao sculo XX e o terceiro j amplamente hegemnico no incio do sculo XXI. Farei relato sumrio dos dois primeiros perodos, detendo-me um pouco mais, dentro dos limites da presente abordagem, no ltimo perodo.

    1. A PSIQUIATRIA CLSSICA

    A psiquiatria teve um grande fundador: Philippe Pinel (1745-1826).

    Pinel foi um dos maiores tericos da histria da medicina, o principal artfice das bases epistemolgicas da Clnica, ao estrutur-la como mtodo (a anlise, apropriada do filsofo enciclopedista Condillac), experincia (que privilegia o olhar) e linguagem (que privilegia o signo), numa formalizao que ficou conhecida como mtodo clnico. At o fim da vida, porm, permaneceu surdo s lies essenciais da anatomia patolgica, no aceitando o mtodo antomo-clnico que prevaleceu na medicina de bases cientficas, motivo pelo qual seus mritos foram, em grande parte, relegados.i

    Por isso, Pinel s lembrado, geralmente, como fundador da psiquiatria e protagonista de duplo advento: do humanismo e do saber cientfico no trato com a loucura. Com efeito, ao assumir a Bictre (1793) e a Salptrire (1795), ele liberou os loucos de suas amarras e aplicou o mtodo clnico ao estudo das alienaes mentais. O seu Tratado Mdico-Filosfico da Alienao Mental (1801) tornou-se a obra inaugural da psiquiatria.

    Mas h quem avalie o que aconteceu de forma diferente. Ao definir o estatuto da loucura simultaneamente como doena e erro (no sentido moral), Pinel teria fechado o cerco em torno do louco com um rgido discurso mdico e moralista.ii Prova disso so as suas

  • hipteses clebres: a loucura como distrbio funcional do SNC, as causas morais e o tratamento moral.

    A psiquiatria clssica abrange o trajeto que vai de Pinel a Clrambault (1872-1934), na escola francesa, e de Griesinger (1817-1868) a Kraepelin (1856-1925), na escola alem. O termo escola, nesse caso, designava apenas a lngua, pois, quanto aos fundamentos e postulados tericos, as duas eram idnticas.

    Nos primrdios, vigorava o mtodo clnico, a hiptese funcionalista, a nosologia pinel-esquiroliana (eminentemente sindrmica) e o tratamento moral. Os trabalhos de Bayle (1799-1858), que demonstraram a correlao entre o quadro clnico e os achados antomo-patolgicos da paralisia cerebral,iii contriburam para mudar o panorama em pelo menos trs aspectos. Os psiquiatras clssicos, maciamente, trocaram a disfuno pela leso, adotando a postulao anatomista de Griesinger (As doenas mentais so, antes de tudo, afeces cerebrais). Alm disso, caminharam para a construo de nova nosologia, priorizando o critrio evolutivo (a histria natural das doenas), que teve seu apogeu com Kraepelin (o seu Compndio de Psiquiatria, de 1913, aps oito edies, transformou-se num tratado de quatro volumes e 2500 pginas). E, sobretudo, passaram a sonhar com o dia em que a psiquiatria, tal como a medicina, estaria amplamente assentada no mtodo antomo-clnico.

    Quanto importncia atribuda aos aspectos morais, houve acentuao desmesurada, processo que teve seu pice na obra de Morel (1809-1873), autor de princpio que se tornaria famoso: A natureza da causa indica a natureza do tratamento. Mas seu nome entrou para a histria da psiquiatria devido a uma outra contribuio, a teoria da degenerescncia. Apresento-a de forma sucinta: a doena mental seria o resultado de uma degradao moral que se transmitiria, por hereditariedade gentica e de forma progressiva, de gerao a gerao. Ressalte-se que Morel foi contemporneo de Darwin (1809-1882). E curioso verificar como uma teoria to frgil e sem sustentao pde dominar a psiquiatria, que j se considerava cientfica, por quase um sculo. Situar as causas morais em primeiro plano implicava por corolrio, tambm em primeiro plano, o tratamento moral.

    2. A PSIQUIATRIA DAS GRANDES ESCOLAS

    O projeto da psiquiatria clssica, que durou mais de um sculo, foi o de uma medicina mental. Todavia, por mais que esse objetivo fosse ardorosamente perseguido, os psiquiatras sempre souberam que o estatuto da psiquiatria no era o mesmo da medicina.

    Para esclarecer tal ponto, tenha-se em mente uma sesso antomo-clnica, em que determinado paciente morria sem diagnstico estabelecido. Os clnicos se reuniam em torno do caso, construam hipteses e realizavam debates, freqentemente acalorados. O final era dado pelo laudo da necropsia, que trazia o veredicto: a clnica mdica encontrava sua verdade na anatomia patolgica. O mesmo no acontecia, porm, com a clnica psiquitrica: quando o paciente cerrava os olhos - e os lbios - nenhuma psiquiatria mais era possvel. Desse modo, enquanto a clnica mdica enraizou cada vez mais seus fundamentos no substrato biolgico, a clnica psiquitrica, incapaz desse movimento, empreendeu viagem sem volta ao reino da palavra. Nesse aspecto, a clnica psicanaltica sua herdeira.

  • Ou seja, a psiquiatria diferente da medicina pelo simples fato de que seu objeto diferente do objeto da medicina.

    Curiosamente, quem melhor percebeu isso, na psiquiatria clssica, foi Griesinger, o pai do anatomismo. No obstante seu organicismo, ele buscou em Herbart (1776-1841) concepes acerca da conscincia, do eu e do recalque (Verdrngung), construindo, assim, uma psicologia finssima,iv que influenciou Freud. Griesinger acreditava, com base no paralelismo psicofsico, estar captando, dessa maneira, a face psquica do evento cerebral.

    De forma esquemtica, pode-se dizer que, para a psiquiatria clssica, o sintoma mental era um epifenmeno do crebro. A ruptura veio com Freud (1856-1939): o sintoma como formao do inconsciente. o que Bachelard (1884-1962) chamou de corte epistemolgico. Desde ento, o sintoma pde ser lido no como secreo do crebro, mas como algo que remonta estrutura da linguagem.

    Jaspers (1883-1969) foi aluno de Kraepelin. Sua Psicopatologia Geral (1913) um marco insupervel. Seu rigor crtico e metodolgico redefiniu o campo de trabalho da psiquiatria, estabelecendo que, por mais que a cincia avance, ela nunca se reduzir medicina, dada a natureza de seu objeto. Posio que, no seu desdobramento, conduziu a uma psiquiatria constituda por duas vertentes: a cientfico-natural e a histrico-cultural.

    De modo sumrio, expus aqui, portanto, o delineamento das grandes escolas do sculo XX: as dinmicas, influenciadas, de alguma forma, pelas contribuies de Freud, e as fenomenolgicas, que se inspiraram no legado de Jaspers. Existem, claro, subdivises. Entre as dinmicas: psicodinmica alem (Moebius, Bleuler, Kretschmer), psicodinmica francesa (Claude, Baruk), organodinmica (Ey), psiquiatria dinmica inglesa (Maxwell Jones), psiquiatria dinmica americana (Alexander). Entre as fenomenolgicas: fenomenolgico-clnica alem (Grhle, Mayer Gross, Karl Schneider, Kurt Schneider), fenomenolgico-clnica francesa (Blondel, Dide, Guiraud, Minkowski), antropolgico-fenomenolgica (Gebsatel), fenomenolgico-existencialista (Binswanger, Kuhn, Strauss).

    De imperfeita - como toda classificao ela tem, contudo, o mrito de mostrar a diversidade o que era considerado um pecado pelo discurso universalizante da cincia.

    Alis, o sculo XX conheceu ainda um movimento sui generis: a anti-psiquiatria.

    Duas guerras mundiais, em especial a segunda, que terminou com a exploso de duas bombas atmicas, marcaram profundamente a humanidade. O espectro de uma guerra nuclear generalizada tomou conta do mundo. nesse contexto que tem incio a crtica a respeito da pretensa iseno poltica da cincia, da suposta separao entre atividade cientfica e atividade poltica, crtica que teve em Oppenheimer, o pai da bomba atmica, um de seus inspiradores. Tornou-se evidente que a dimenso poltica est no cerne de toda atividade humana, fato, entretanto, comumente negado para encobrir os verdadeiros interesses em jogo.

    De incio, de se esclarecer que o que foi reunido pelo nome antipsiquiatria abrange, na verdade, nmero variado de autores e enfoques, tendo em comum o desmascaramento da face poltica da psiquiatria. Ironicamente, porm, esses autores so vistos como polticos atacando uma cincia.

  • A publicao do livro Histria da Loucura na Idade Clssica (1961), pelo filsofo Foucault (1926-1984), considerada a pedra fundamental do movimento que teve na psiquiatria democrtica de Basaglia (1924-1980) sua expresso mais consistente. A Lei da Reforma Psiquitrica Italiana, inspirada em seu trabalho, foi aprovada em 1978 e vigora at hoje.

    3. A PSIQUIATRIA DA CLASSIFICAO INTERNACIONAL

    O universal e o singular

    Hoje, a psiquiatria, mais do que nunca, est determinada pela perspectiva universalizadora do discurso cientfico. Pela primeira vez na histria, temos uma classificao internacional de transtornos mentais e de comportamento. Nas pesquisas, tornou-se exigncia metodolgica a quantificao mediante validao estatstica. Nos ensaios clnicos, generalizou-se, para a referida quantificao, o emprego das escalas de avaliao, da randomizao, do duplo cego, dos grupos de controle. Para complementar a avaliao dos resultados, surgiram as escalas de adaptao social. E, no dia a dia da clnica, comeam a se impor os protocolos teraputicos.

    Trata-se de evoluo que contempla amplamente a viso biologista da psiquiatria, ou, que a define plenamente como especialidade mdica. As doenas mentais tornaram-se doenas como quaisquer outras. O progresso das neurocincias e das tcnicas de neuroimagem saudado como umbral de uma nova era. A concluso do projeto do genoma humano vista como um marco para o esclarecimento final de etiologias obscuras. A cada dia surgem novos psicofrmacos, com aes mais especficas, ou novas indicaes para medicamentos j conhecidos. A eletroconvulsoterapia reabilitada e reapresentada com tcnicas requintadas. A psicocirurgia sai da proscrio, tornando-se precisa na sua indicao e na sua interveno. E j se desenha o hospital psiquitrico do futuro.

    Se, no sculo passado, existia a figura caricata do psiquiatra que, vestido de terno impecvel, dizia que seu trabalho nada mais tinha a ver com a medicina, hoje, a figura caricata outra: o psiquiatra vestido de branco dos ps cabea.

    Em poca anterior, como foi visto, a escola fenomenolgico-clnica enfrentou o problema de maneira diferente. Tomando a psiquiatria como disciplina hbrida, distinguiu nela duas vertentes: a cientfico-natural, que procura produzir conceitos empricos universais, mtodo equiparvel ao procedimento nomottico de Windelband, e a histrico-cultural, que se refere, de modo amplo, ao conceito de acontecer singular e peculiar, sendo o mtodo histrico coincidente com o procedimento idiogrfico de Windelband.v

    A ttulo de comparao, farei caracterizao sumria do que foi chamado de mtodo histrico, tomando como exemplo o tratamento psicanaltico. O diagnstico interpreta a posio do sujeito, marcada por radical singularidade: cada histria diferente da outra. No h validao estatstica possvel: prevalece a construo do caso clnico, em que a validao realizada pela estrutura lgica do caso. A remisso do sintoma no objetivo prioritrio; mesmo porque, a rigor, o sintoma nunca suprimido, mas, substitudo. O que se busca, em primeiro lugar, a mutao subjetiva, ou a modificao da relao do sujeito com seu desejo e seu gozo. Conduz-se no adaptao social, mas

  • autenticidade do sujeito. No h protocolo teraputico: no existem dois tratamentos iguais.

    Como exemplos paradigmticos do mtodo histrico podem-se citar O caso de Ellen West, de Binswanger,vi e O homem dos ratos, de Freud.vii

    PSIQUIATRIAVERTENTE CIENTFICO-NATURAL VERTENTE HISTRICO-CULTURAL

    Procedimento nomottico Procedimento idiogrficoUniversal Singular

    Validao estatstica Estrutura lgica do caso clnicoAdaptao social Autenticidade do sujeito

    Protocolo teraputico Cada tratamento nico

    O normal e o patolgico

    Diferentemente da escola fenomenolgico-clnica, no entanto, a viso biologista da psiquiatria enfatiza seu estatuto de cincia mdica. Ora, dizer que o discurso psiquitrico atual determinado pelo discurso da cincia no a mesma coisa que dizer que a psiquiatria atual uma cincia (no sentido da tradio racionalista iniciada por Descartes e Newton e que tem por paradigma a fsica).

    Colocarei, ento, o problema: a psiquiatria de hoje uma cincia mdica?

    Essa questo exige digresso: desde quando, e como, possvel falar de medicina com base cientfica? Pois, embora seja uma prtica social multimilenar, foi somente a partir da segunda metade do sculo XVIII que a medicina se introduziu no mtodo cientfico. At ento, valia-se, dentre outros, do pensamento mgico, do moralismo, da sugesto, de conhecimentos empricos. O estabelecimento da base cientfica consolidou-se no incio do sculo XX, aps rdua e complexa evoluo, cujos pilares foram a colocao da doena no nvel do signo (Pinel), no nvel do rgo (Morgagni, 1682-1771), no nvel do tecido (Bichat, 1771-1802), no nvel da clula (Virchow, 1821-1902) e no nvel da alterao das constantes do meio interno por Claude Bernard (1813-1878) e Cannon (1871-1945). A medicina com base cientfica tornou-se possvel depois que o normal e o patolgico foram formulados em termos biolgicos, ou seja, em termos anatmicos e, principalmente, fisiolgicos. Desde ento, pde-se falar de normatividade biolgica.viii

    E no caso da psiquiatria? A comparao categrica: diferente da medicina, o normal e o patolgico, na psiquiatria, no se fundamentam em termos biolgicos. O que existe em relao a isso, h mais de dois sculos, ou seja, desde a sua fundao, apenas petio de princpio. Na psiquiatria clssica, a paralisia geral de Bayle, em vez de regra, revelou-se exceo. E, ainda hoje, mesmo com o propalado progresso das neurocincias, se tomarmos a mais grave das doenas mentais a esquizofrenia verificaremos que no possvel diagnosticar um nico caso com base em achados neurobiolgicos.ix Ao fazer tais consideraes, estou trazendo a primeira objeo idia da psiquiatria como cincia mdica.

    Ao mesmo tempo, pretendo algo mais abrangente: denunciar que a psiquiatria, o tempo todo - ontem e ainda hoje -, afirma erguer seu edifcio numa base, quando, na verdade, a sua base outra. No na biologia que ela constri o seu alicerce. No na biologia que

  • ela encontra seus parmetros para definir o normal e o patolgico. No na biologia que ela se apia para erigir a sua classificao.

    Trazendo a questo para os dias atuais: se no na biologia, em que que a psiquiatria se fundamenta para a classificao internacional de transtornos mentais e de comportamento? No h outra resposta: a norma de que se trata a norma social.

    O estatuto de transtorno

    Para situar o problema em termos mnimos, recorrerei a uma definio que crucial na CID-10: a de transtorno. Esse termo empregado para indicar a existncia de um conjunto de sintomas ou comportamentos clinicamente reconhecvel associado, na maioria dos casos, a sofrimento e interferncia com funes pessoais. Desvio ou conflito social sozinho, sem disfuno pessoal, no deve ser includo em transtorno mental, como aqui definido.x

    A definio reala alguns aspectos: sofrimento e disfuno pessoal, desvio e conflito social. esse o campo de trabalho em que nos encontramos. aqui, em primeiro lugar, que se demarca o nosso objeto de estudo. Ora, dizer que um transtorno, definido em tais bases, tem suporte neurofisiolgico, afirmar uma obviedade (mas o que que no pode ter?), ainda que no se conhea tal suporte. Ningum est a para negar o evidente assento cerebral da mente. Seja como for, a delimitao de tal suporte neurofisiolgico algo secundrio ao que primariamente foi definido como transtorno.

    Est a a petio de princpio: a psiquiatria define o que transtorno com base na norma social; em seguida, postula para esse transtorno outra base neurobiolgica - e o trata como se assim o fosse. Nessa operao, ignora-se inteiramente a diferena entre causa e correlao. Exemplificando, no seria correto dizer que uma descarga de adrenalina na corrente sangunea a causa de uma crise de ansiedade. O que estaria por trs desse erro? Por que razo ele se mantm, apesar de tudo, e h tanto tempo? Para trazer alguma luz sobre a questo - de forma esquemtica, dentro dos limites deste trabalho - tomarei, como ponto de partida, um aspecto essencial: o tratamento psiquitrico visa eliminao do sintoma. Ora, sintoma aquilo que torna impossvel a cada um caminhar pelas vias comuns. O sintoma precisamente o que faz com que cada um no consiga fazer absolutamente o que est prescrito pelo discurso de seu tempo.xi Por exemplo, uma fobia pode impedir de viajar de avio ou de entrar no elevador de um edifcio; uma gagueira pode inviabilizar uma pretenso de ser orador; uma impotncia sexual pode frustrar um encontro amoroso; uma depresso pode prejudicar uma jornada de trabalho. Uma conduta antissocial, por definio, insere-se nessa srie. E assim por diante.

    A abolio do sintoma, portanto, alm de alvio e reabilitao funcional da pessoa, est a servio da restituio da normalidade, da conformidade e da adaptao sociais. A idia de norma social correlata da idia de norma moral. Constatao que faz ressoar a assertiva segundo a qual o tratamento moral tornou-se o ncleo fundamental da teraputica psiquitrica.xii A psiquiatria atual, ento, diz-se cincia mdica para negar um aspecto que prefere no considerar.

    A trplice determinao da psiquiatria

    No minha inteno dizer que a psiquiatria no mdica nem cientfica. O que estou tentando mostrar que se tem em foco questo bem mais complexa. Para ser mais claro,

  • o estatuto mdico da psiquiatria problemtico e parcial: o modelo mdico precrio e insuficiente quando se trata de desvendar os aspectos cruciais das doenas mentais ou dos transtornos mentais e de comportamento.

    Para demonstr-lo, citarei trs diferenas intransponveis entre a psiquiatria e a medicina:1. A causalidade orgnica na psiquiatria, mesmo quando comprovada, no

    apresenta a linearidade da causalidade orgnica na medicina. Isso muito bem conhecido h mais de um sculo. No h correspondncia biunvoca entre o quadro clnico e o achado cerebral. Jaspers comenta o clebre exemplo da paralisia cerebral: com base no diagnstico clnico, Kraepelin descobriu 30% de paralticos em seu estabelecimento; com a puno lombar e o serodiagnstico, introduzido nesse perodo, no encontrou mais do que 8 a 9%.xiii Levando-se em conta a causalidade orgnica, a diferena pode ser representada de forma esquemtica.

    MEDICINA: A x

    B

    x

    PSIQUIATRIA: A

    y

    C

    2. Por mais que se consiga avanar no conhecimento da relao entre o fsico e o psquico, isso jamais esgotar a questo, pelo simples fato de que o psquico tem princpios prprios. A causalidade orgnica no exclui aquilo que Freud denominou causalidade psquica. determinao biolgica se ope a determinao pulsional. E herana gentica se ope a herana simblica, ou seja, aquela que se inscreve no campo da linguagem.

    3. Historicamente, ou seja, desde a sua fundao at os dias de hoje, a psiquiatria tem sido convocada e tem se proposto a fazer interveno mdica em problemas que no so definidos por critrios mdicos, mas, sim, por critrios sociais ou psicossociais. Poder-se-ia dizer que tambm a medicina cede a tal apelo. A diferena, como foi visto, que isso est no cerne da prpria definio de transtorno mental e de comportamento. Por conseguinte, a psiquiatria , por definio, uma interveno desse tipo. Da a importncia do reconhecimento da dimenso poltica dos nossos afazeres. A poltica no um efeito colateral da psiquiatria: est no mago de sua ao, participa da prpria caracterizao do que seja um transtorno. Darei um bom exemplo. No tempo de Oscar Wilde, o homossexualismo era imoral, ilegal e patolgico. H no muito, chegou a ser catalogado no DSM. Hoje, aceito pela moral social, est legalizado em muitos pases (a Espanha permite, inclusive, a adoo) e deixou de ser doena. Alguns engraadinhos acrescentam que, em breve, ser obrigatrio.

  • Complexo objeto de estudo, que se situa no entrecruzamento de trplice determinao: biolgica, pulsional e poltica! No se trata de uma proposta, mas do reconhecimento de uma estrutura; querendo ou no, a psiquiatria se insere nela. De um modo ou de outro, (1) a psiquiatria mdica, (2) leva em considerao (ou procura desconhecer) a determinao pulsional (perspectivas fenomenolgica, psicanaltica, cognitivista, comportamental) e (3) exerce funo poltica (segregadora, adaptativa, questionadora, democrtica).

    A medicalizao da psiquiatria

    O que foi dito, porm, contrasta bruscamente com o que existe hoje. A medicalizao da psiquiatria camufla por completo a trplice determinao. Traz uma padronizao massiva e uma abordagem simplificadora. A formao faz do psiquiatra um tcnico. A clnica se reduz a uma clnica da medicao. Os tratamentos evoluem para o molde. No seria exagero ousar que diagnstico e conduta teraputica melhores sero feitos por computador. Como observou uma paciente, antes, a consulta era cara e o remdio barato; hoje, o contrrio. A suposio de saber passa para a indstria farmacutica. Os diagnsticos so iguais no mundo inteiro, os psiquiatras tambm.

    Aps a dcada do crebro e a morte de Freud, seria o caso de se pensar que a psiquiatria evoluiu, pelo menos quanto aos recursos mdico-teraputicos, tal como aconteceu com a medicina. No entanto, quais so as grandes novidades que tm sido apresentadas? Pouco mais do que a reabilitao e a nova embalagem de velhos recursos. No apenas quanto aos tratamentos invasivos: da imipramina fluoxetina, o avano que se registrou foi principalmente mercadolgico.

    A medicalizao da psiquiatria engrossa, em termos pragmticos, o empenho visando adaptao social, algo to premente no mundo de hoje. Que haja quem concorde e quem se proponha a isso, uma coisa. Outra coisa dizer que se trata de cincia ainda que se lance mo de meios cientficos para tal fim.

    O que eu ponho em dvida a atual medicalizao da psiquiatria, pelo simples fato de que o estatuto da medicina diferente do estatuto da psiquiatria se que a psiquiatria tem um estatuto. importante, no entanto, distinguir a medicina enquanto disciplina e enquanto prtica social. Como disciplina, ela tem estatuto bem definido; como prtica social, est padecendo de problemas muito semelhantes aos da psiquiatria de hoje. Aqui, sim, h uma identificao. A prtica mdica de hoje tornou-se prtica tcnica.

    Os impasses da reforma psiquitrica

    Em Minas Gerais, a reforma psiquitrica foi responsvel por grande transformao na sade mental, desconstruindo grande parte da estrutura carcerria excludente e criando uma rede de servios substitutivos. Essas aes s foram possveis a partir de duas condies: uma mudana na forma de conceber a loucura e o louco e a adoo de uma poltica para sustentar tal mudana.

    No obstante, a reforma psiquitrica em nosso meio, a meu ver, est hoje sob sria ameaa. E os maiores perigos no tm origem externa, mas interna, sendo que o principal deles est no investimento precrio na formao dos trabalhadores da sade mental. A rede recebe profissionais que no foram preparados para a proposta que se

  • apresenta. Alm disso, a falta de um ncleo formador priva a reforma de um foro onde seus problemas possam ser encaminhados, debatidos, teorizados. No h um lugar onde as questes sejam pensadas; s h tarefas a serem feitas. A batalha das palavras est sendo perdida.

    A viso biologista j domina amplamente as residncias de psiquiatria de Belo Horizonte. O que pode acontecer quando um psiquiatra assim formado chegar rede?

    Dois aspectos que distinguiam e conferiam vitalidade reforma mineira eram a forte presena da clnica de orientao psicanaltica e o expressivo nmero de psiquiatras implicados na causa e nos servios. Presenas que esto se enfraquecendo. O argumento de que a sobrecarga de demanda, habitual no servio pblico, pode minar qualquer projeto. Mas claro que existem mais coisas.

    Tenho insistido num ponto: os atuais CERSAMs no esto estruturalmente capacitados para tratar todas as urgncias. Eles s sobrevivem porque ainda existem os manicmios. Entretanto, para certos casos, preciso criar um outro dispositivo, pois s assim poderemos, ento, prescindir do manicmio.

    No tem havido espao para discutir questes cruciais como essa. Prevalece a palavra de ordem. Enquanto isso, os trabalhadores se extenuam, a construo do caso clnico rarefaz, o trabalho psiquitrico se desfaz. O risco maior acaba sendo a reforma psiquitrica, que teve o mrito de desvendar a dimenso poltica da psiquiatria, reduzir-se a um movimento poltico.

    Estaria por trs de tudo isso a idia de reabilitao? A reabilitao, no sentido jurdico, tal como foi definida por Rotelli, compatvel com a clnica.xiv Mas existe a reabilitao que no trabalha sobre o sintoma, que se ope clnica e medicao, no valorizando, portanto, as respectivas formaes. preciso levar em conta que tal perspectiva, tributria da adaptao social, reproduz, em outro nvel, a lgica da segregao. Por outro lado, quando penso em tal proposta, vem-me mente uma anedota muito apreciada por Freud. Os habitantes de um vilarejo possuam um cavalo de uma fora de trabalho com a qual estavam satisfeitssimos. Uma s coisa lamentavam: o animal consumia aveia demais e esta era cara. Resolveram tir-lo pouco a pouco do mau costume, diminuindo a rao de alguns gros diariamente. Durante certo tempo, tudo correu magnificamente, at que, um dia, o cavalo amanheceu morto.

    As aves e as feras

    Uma metodologia unitria, que inclusse num s exame os domnios psicolgico e fisiolgico, seria na atualidade da ordem do mito, ainda que o psquico e o fsico sejam partes de um mesmo ser vivo. Acrescente-se a isso o fator poltico. o que torna a psiquiatria, do ponto de vista epistmico, extremamente complexa. A mais impossvel das profisses.

    Consider-la disciplina hbrida, constituda pelas vertentes cientfico-natural e histrico-cultural, o que de certa maneira foi feito pelas escolas fenomenolgicas, e tambm pelas dinmicas: ecletismo duvidoso, tentativa de fuso de saberes distintos,

  • busca de sntese discursiva, que descaracteriza as disciplinas originais sem chegar a produzir uma disciplina nova.

    No, a psiquiatria no cincia, no disciplina, um campo transdisciplinar por excelncia. interface, interseo, lugar de articulao tensa, difcil e mutvel. Psiquiatria o campo em que se estuda a conscincia alterada, tendo em vista uma pr-condio que o crebro, e um mais alm que o inconsciente. Haveria, para cada psiquiatra, uma maneira diferente de articular a sua matria, que mudaria, para um mesmo psiquiatra, com o tempo.

    A palavra de ordem que se poderia trazer ao psiquiatra de hoje, proposta pelo colega Antonio Beneti, o retorno clnica. O resgate da tradio clnica e da dimenso subjetiva na psiquiatria. No apenas continuidade: refazer a clnica. Um exemplo: introduzir o psicofrmaco numa lgica que no seja a da eliminao do sintoma, mas, sim, a da moderao do gozo; e numa tica que no seja a da adaptao social, mas, sim, a da autenticidade do sujeito. Outro exemplo: a clnica renovada por recentes contribuiesxv que permitam enfrentar melhor os desafios da subjetividade contempornea.

    Se o apelo o retorno clnica, com o resgate da dimenso subjetiva, seria oportuno tambm propor, isto sim, a psiquiatrizao da prtica mdica. No tenho dvida de que muitos colegas mdicos julgariam a idia excelente.

    Para terminar, uma fbula de Esopo. As aves declararam guerra s feras. As aves estavam vencendo a batalha. O morcego aliou-se a elas. A partir de certo momento, as feras passaram a vencer. E o morcego mudou de lado na guerra. Percebendo o jogo, aves e feras castigaram o oportunista.

    A psiquiatria, estritamente falando, no uma disciplina mdica, no uma disciplina humana. Todavia, faz-se passar por ambas. Melhor seria se abandonasse o oportunismo e assumisse a sua condio de morcego.

    Referncias bibliogrficas

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