França, Andrea e Lopes, Denilson - Cinema, globalização e interculturalidade

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  • Cinema, globalizao e interculturalidade

  • Cinema, globalizao e interculturalidade

    Andra Frana Denilson Lopes

    (Orgs.)

    A^GoJ-Edi t or a da Uno ch ape c

    Chapec, 2010

  • UNOCHAPECUNIVERSIDADE COMUNITARIA DA REGlAO DE CHAPEC

    Reitor: Odilon Luiz Poli Vice-Reitora de Ensino, Pesquisa e Extenso: Maria Luiza de Souza Lajs Vice-Reitor de Planejamento e Desenvolvimento: Claudio Alcides Jacoski

    Vice-Reitor de Administrao: Sady Mazzioni

    Diretor de Pesquisa e Ps-Graduao Stricto Sensu: Ricardo Rezer

    2010 Argos Editora da UnochapecEste livro ou parte dele no podem ser reproduzidos por qualquer meio sem autorizao escrita do Editor.

    791.4309 Cinema, globalizao e interculturalidade / Andra Frana,C574 Denilson Lopes (Orgs.); - Chapec, SC: Argos, 2010.

    401 p. (Grandes Temas ; 6)

    Contm artigos traduzidos do ingls para o portugus.Inclui bibliografia.

    1. Cinema - Histria e crtica. I. Frana, Andra.II. Lopes, Denilson. III. Ttulo.

    CDD 791.4309

    ISBN: 978-85-7897-004-8 Catalogao Daniele Lopes CRB 14/989Biblioteca Central Unochapec

    A^Goj-Ed i t o r a da U no ch a p e c

    Conselho Editorial:Carla Rosane Paz Arruda Teo, Csar da Silva Camargo,

    rico Gonalves de Assis, Maria Assunta Busato,Maria dos Anjos Lopes Viella, Maria Luiza de Souza Lajs,

    Murilo Cesar Costelli, Ricardo Rezer,Rosana Maria Badalotti, Tania Mara Zancanaro Pieczkowski

    Coordenadora: Maria Assunta Busato

  • Sumrio

    Apresentao 9

    MDULO ICinema mundial, cinema intercultural

    Baraka: o cinema mundial e a indstria cultural global 17Martin Roberts

    O cinema intercultural na era da globalizao 43Hudson Moura

    Identificando o conceito de cinema transnacional 67Vicente Rodrguez Ortega

    Paisagens transculturais 91 Denilson Lopes

  • MDULO II Cinema, periferia e hibridismo

    Para alm do Terceiro Cinema: estticas do hibridismo 111Robert Stam

    Situando o cinema com sotaque 137Hamid Nafcy

    Outras margens, outros centros: algumas notas 163 sobre o cinema perifrico contemporneo

    Angela Prysthon

    MDULO III Enunciados de nacionalidade e

    imaginrios transnacionais

    Cinema chins no novo sculo: perspectivas e problemas 179Yingjin Zhang

    Canibais viajantes 193 Anelise Reich CorseuiJ e Renata R. Mautner Wasserinan

    Imagens de itinerncia no cinema brasileiro 219Andra Frana

  • MDULO IV Recepo e audincia

    Dialeto e modernidade no cinema 245 sinfono do sculo XXI

    Sheldon Lu

    O cinema na frica: dos contos ancestrais 267 s mistificaes cinematogrficas

    Mahomed Bamba

    Histria, tragdia e farsa: The Presidents last 281 bang nos circuitos dos festivais de cinema

    Leo Goldsmith

    MDULO V Nas fronteiras da memoria,

    do desejo e do afeto

    A memoria das coisas 309 Laura U Marks

    A dialtica da identidade transnacional e o desejo 345 feminino em quatro filmes de Claire Denis

    Rosanna Maule

  • o que vi quando te vi? Os dirios de 371 viagem sul-americanos na Frana

    Andrea Molfetta

    Sobre os autores 397

  • Apresentao

    Esta coletnea no apenas um somatrio de artigos dedicados ao tema que a intitula. Ela pretende ser um registro de pensamentos e questes sobre as imagens contemporneas, sobretudo o cinema, permeadas pelas experincias de estrangeiridade, ambivalncia, estranhamento, nomadismo, desenraizamento. A diversidade de abordagens sobre o tema esclarecedora: h uma compreenso do desafio poltico e esttico que colocar em cena hoje aquilo que desaparece cotidianamente diante de todos ns, isto , a memria coletiva, a possibilidade de um mundo comum que possa incluir aqueles que dele estavam excludos por

    diferentes razes.Se o cenrio contemporneo - globalizado, miditico, digi

    tal - tem tematizado de forma ampla e contundente questes de identidade individual, cultural, nacional, este livro quer pensar esse quadro de dentro do cinema feito na dcada de 1990 em diante. Em outros pases, j existem diversas publicaes dedicadas ao tema da interculturalidade, da dinmica da globalizao e do cinema. No Brasil, ainda h uma insuficincia de bibliografias nesse campo,

  • com poucas excees, como o livro Crtica da imagem eurocntrica, de Ella Shohat e Robert Stam (2002). Nesse sentido, uma das preocupaes que nortearam a coletnea foi justamente a de suprir essa lacuna. Trazer essa discusso para o mbito do cinema significou colocar em relevo as seguintes interrogaes: de que modo os processos de globalizao das economias, o progresso e a expanso das tecnologias da comunicao, a intensificao do fenmeno da hibridao cultural, o questionamento dos centros hegemnicos (Europa, EUA), o enfraquecimento das fronteiras nacionais tm afetado os produtos e as obras audiovisuais? A transnacionalizao do capital, da produo audiovisual e dos espectadores auxilia na elaborao de novas propostas estticas ou tende a consolidar produtos homogeneizados e desvitalizados? Como as novas cinematografias (sia, Europa do Leste etc.) tm afetado e redefinido o pensamento e a prtica do cinema e do audiovisual contemporneo?

    Tais perguntas auxiliam na compreenso e no que est em jogo na proposta deste livro, composto pela reflexo de professores e pesquisadores de diferentes campos tericos e nacionalidades, que buscam pensar as representaes, os valores e os sentidos que as imagens - de nomadismo, fronteira, hibridismo, dispora - trazem consigo e, ainda, a noo ampla, polmica e instigante de cultura - tomada aqui no como essncia fundadora e definitiva de um povo, mas como um composto hbrido e mltiplo de vozes, histrias e narrativas. Mais do que nunca, o cinema contemporneo tem uma contribuio a dar a essa discusso quando cria narrativas dissonantes da TV globalizada e imagens que instauram tenses e imprevisibilidade, pois no centro dessas representaes existem as relaes intersubjetivas - ator/personagem/espectador

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  • relaes que s podem ser experimentadas e analisadas a partir de outros cnones no industriais-mercantis.

    Os artigos presentes neste livro, alguns j publicados fora do Brasil, mas inditos por aqui, foram agrupados em cinco mdulos distintos:

    Mdulo I: Cinema mundial, cinema interculturalAo abordar a emergncia do imaginrio global atravs do ci

    nema e sua relao com as dimenses culturais da globalizao econmica, este mdulo traz contribuies conceituais e metodolgicas aos temas correlatos inter e transculturalidade no cinema. Alm disso, reavalia conceitualmente as inmeras e diferentes abordagens sobre o papel dessas imagens na produo de identidades e imaginrios culturais transnacionais. Interessa, nessa primeira parte, focar e discutir os momentos em que as diferenas culturais - exploradas nos filmes mais diversos, como Felizes Juntos (Wong Kar Wai), Encontros e desencontros (Sofia Coppola), Paradise Now (Hany Abu-Assad) - esto a servio de uma poltica transnacional mais ampla e no simplesmente no espao engajado e militante do ter- ceiro-mundismo. Contamos com a colaborao de Martin Roberts {New School for Social Research), com Baraka: o cinema mundial e a indstria cultural global; de Hudson Moura (PUC-SP), com uO cinema intercultural na era da globalizao; de Vicente Rodriguez Ortega (NYU), com Identificando o conceito de cinema transnacional; e de Denilson Lopes (UFRJ), com Paisagens transculturais.

  • Mdulo II: Cinema, periferia e hibridismoA partir de abordagens tericas e conceituais distintas, dis

    cute-se a emergncia de cinemas menores ao longo da dcada de 1990, evidenciando, porm, que, sob essa e outras nomenclaturas, no h nenhuma unidade esttica, temtica ou poltica. H o pressuposto de que, para usufruir de fato das imagens do cinema contemporneo, faz-se necessrio relacionar os aspectos histricos e sociais que consolidaram a ideia de Terceiro Mundo e os fenmenos culturais que fizeram parte desse contexto. Discutem-se filmes como Central do Brasil (Walter Salles), Amores Brutos (Alejandro Gonzlez Iarrit), Cronicamente invivel (Sergio Bianchi), entre outros. Contamos com os artigos de Robert Stam (New York University)> Para alm do Terceiro Cinema: estticas do hibridismo; de Hamid Naficy (Northwestern University), Situando o cinema com sotaque; e de Angela Prysthon (UFPE), Outras margens, outros centros: algumas notas sobre o cinema perifrico contem

    porneo.

    Mdulo III: Enunciados de nacionalidade e imaginrios transnacionais

    Discute-se, neste mdulo, a inveno dos enunciados de nacionalidade no cinema, suas continuidades, seus deslocamentos e suas rupturas histricas e culturais. Trata-se de analisar, atravs de diferentes abordagens tericas, que formas de imaginrio identitrio e nacional esto em jogo na produo das imagens contemporneas, tanto na China quanto no Brasil. Em comum, na leitura crtica e na experincia dos filmes, h o pensamento da nao como uma dimenso no totalizvel, o propsito de

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  • desleitura do passado na inveno do novo, a afirmao de um essencial inacabamento presente em tais enunciados que nos interpela. Contamos com Yingjin Zhang (University o f California - San Diego), Cinema chins no novo sculo: perspectivas e problemas; Anelise Reich Corseuil (UFSC) e Renata R. Mautner Wasserman (Wayne State University), Canibais viajantes; e Andra Frana (PUC-Rio), Imagens de itinerncia no cinema brasileiro.

    Mdulo IV: Recepo e audinciaNeste mdulo, os autores exploram as relaes profcuas,

    ainda pouco estudadas dentro das universidades brasileiras, entre a projeo do filme e suas formas de recepo, isto , a projeo cinematogrfica de imaginrio nacional e os modos de circulao social dessas imagens, seja em funo dos festivais de cinema internacionais, das formas de coproduo transnacionais ou dos diversos dialetos que porventura integram e fazem parte do mesmo pas. Trata-se de pensar de que modo a projeo do filme se duplica, circulando entre a tela da sala e a tela mental do espectador. Duplo sentido da palavra tela, em que o movimento do filme em direo ao outro, audincia, colabora de forma errtica, porm decisiva, na construo de imaginrios de pertencimento. Contamos com os artigos de Sheldon Lu {University o f California - Davis), Dialeto e modernidade no cinema sinfono do sculo XXI; Mahomed Bamba (UFBA), O cinema na frica: dos contos ancestrais s mistificaes cinematogrficas; e Leo Goldsmith {New York University), Historia, tragdia e farsa: The Presidents last bang nos circuitos dos festivais de cinema.

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  • Mdulo V: Nas fronteiras da memria, do desejo e do afeto A proposta dos trs artigos deste mdulo explorar e com

    preender o lugar da memria e dos afetos nas imagens do cinema transcultural. Entende-se que a questo da memria definida num jogo constante de posicionamentos no espao e no tempo, de deslocamentos e de contato/ao entre sujeitos, sendo esse universo de reposicionamentos contnuos o prprio terreno da experincia. Algumas imagens do cinema transcultural trazem consigo, tornam visvel e constroem efetivamente memrias perdidas, afetivas, subterrneas, histricas. Essas imagens dizem respeito subjetividade daqueles que nelas esto envolvidos e, nesse sentido, abrem uma janela sobre o interior complexo dos seres (personagens e espectadores). Contamos com Laura U. Marks (Simon Fraser University), A memria das coisas; Rosanna Maule (Concordia University), A dialtica da identidade transnacional e o desejo feminino em quatro filmes de Claire Denis; Andrea Molfetta (UBA), O que vi quando te vi? Os dirios de viagem sul-americanos na Frana.

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  • MODULO I Cinema mundial,

    cinema intercultural

  • Baraka: o cinema mundial e a indstria cultural global*1

    Martin Roberts

    Encolhendo o planeta

    Aps trs mil anos da crescente valorizao da especializao e alienao nas extenses

    tecnolgicas dos nossos corpos, nosso mundo comprimiu-se de forma dramtica. Eletricamente

    reduzido, o globo no mais que uma aldeia.Marshall McLuhan2

    Desde o momento em que Marshall McLuhan proclamou

    que as comunicaes tecnolgicas tinham reduzido o mundo

    eletricamente dim enso de uma aldeia global, parece que o

    planeta Terra tem encolhido: a TV via satlite, os programas de

    milhagem das companhias areas e, claro, a internet esto trans

    * Traduo de Raquel Maysa Keller, f N.T.: quando havia edio brasileira das obras citadas, optou-se pela traduo j feita e utilizada na publicao).

    1. Este texto uma verso traduzida e reduzida do artigo Baraka: World Cinema and the Global Culture Industry. Cinema Journal, v. 37, n. 3, p. 62-82, primavera 1998.

    2. McLuhan, Marshall. Understanding Media. New York: McGraw Hill, 1964.

  • formando o mundo num lugar menor. Trinta anos depois do livro Meios de comunicao como extenses do homem , a aldeia global se tornou um lugar-comum, e McLuhan foi canonizado, pela revista Wired\ como um profeta visionrio de um mundo no qual a distncia j no importa mais. Os comerciais de TV mostram famlias conversando ao celular com parentes do outro lado do planeta, ou membros de uma tribo africana, felizes, usando notebooks.

    Este texto considera os impactos dessas evolues no mbito cinematogrfico. Por um lado, a histria do cinema se confunde, desde o incio, com processos globais do colonialismo at suas consequncias ps-coloniais. Atualmente, o cinema se tornou uma forma de cultura global, porm diferente em suas manifestaes locais. Ao mesmo tempo, o discurso de McLuhan da aldeia global tanto reflete quanto empresta um mpeto adicional ao aparecimento de uma ideia imaginria do mundo, e este imaginrio global, como veremos adiante, tem assumido grande importncia no cinema contemporneo. O cinema atual tem um papel significativo na articulao e na perpetuao do que poderia ser chamado de mitologias globais: discursos ideolgicos sobre o mundo e a sua relao com a humanidade.

    Ultimamente a crescente ateno em relao ao que ora chamado de cinema mundial ora de cinema global parece curiosa, j que a produo cinematogrfica, a distribuio e o consumo tm sido um assunto global. H inmeros estudos sobre a indstria do cinema no ocidental, e o Cinema Mundial abordado atualmente como a Literatura Mundial foi estudada, na lngua inglesa, em departamentos, antes do advento dos estudos

  • ps-coloniais/ Ainda que as indstrias cinematogrficas, em muitas partes do mundo, permaneam com intenso carter nacional, a atividade comercial de produo e de consumo cinematogrficos , tambm, de natureza transnacional, como bem sabe todo o africano que cresceu vendo filmes de faroeste, musicais indianos, filmes de arte marcial. Os estudos feitos at agora, como artigos sobre a colonizao mundial das telas de cinema por Sylvester

    Stallone e Arnold Schwarzenegger, deixam claro que o comrcio transnacional de norte a sul, do oriente ao ocidente uma questo

    extremamente unilateral, mas tal ponto de vista (se que algum

    dia foi verdadeiro) est se tornando ultrapassado, j que se mostra

    cada vez mais evidente que o comrcio cultural agora bilateral.

    Em muitos casos, na verdade, decidir realmente de onde um fil

    me e para quem ele direcionado est ficando cada vez mais

    complicado: um filme de um diretor do Senegal pode ser

    coproduzido com dinheiro alemo e suo, editado em Zurique

    e, mais provavelmente, ser exibido para grandes pblicos em Nova Iorque e no em Dakar.4 O cinema transnacional, os filmes de comunidades diaspricas que vivem em cidades cosmopolitas do Primeiro Mundo, se tornou um gnero em proliferao, que compete com cinemas nacionais mais antigos.5

    3. Ver, por exemplo: Armes, Roy. Third World Film A hiking und the West. Berkeley: University of California Press, 1987.

    4. Aqui estou pensando no filme Hynes(1992) de Djibril-Diop Mambety.5. Ver, por exemplo: Naficy, Hamid. Phobic Spaces and Liminal Panics: Independent

    Transnational Film Genre. In: Wilson, Rob; Dissanayake, Wimal (Eds.). Global/ Local: cultural production and the transnational imaginary. Durham, NC: Duke University Press, 1996. p. 119-144.

    IQ

  • Enquanto muita ateno foi dedicada ultimamente ao surgimento de cinemas transnacionais e de diaspora, deu-se menos ateno ao impacto da globalizao sobre o filme europeu e estadunidense. Tenho em mente aqui o nmero crescente de filmes desde 1960 que so, de formas diferentes, sobre algo chamado o prprio mundo. Entre eles se destacam Mondo Cane, de Gualtiero Jacopetti e Franco Prosperi (1963); Sans Soleii\ de Chris Marker (1982); Powaqaatsiy de Godfrey Reggio (1988); A t o Fim do Mundo , de Wim Wenders (1991); Uma N oite sobre a Terra, de Jim Jarmusch (1991); Planeta A zul, da IMAX (1991). Ao mesmo tempo em que os filmes em questo pertencem a cinemas nacio

    nais diferentes, a gneros de filmes diferentes e dirigem-se a p

    blicos diferentes, eles compartilham uma preocupao temtica

    com a globalizao, com as novas formaes culturais da ordem

    mundial ps-colonial, e se esforam para enquadr-las em uma

    viso totalizante do mundo. Concentro-me aqui em filmes des

    se tipo.O filme especfico que discutirei detalhadamente Baraka

    (EUA, 1992), filme de longa durao, documentrio sem palavras

    dirigido e film ado por Ron Fricke e p roduzido por Mark

    Magidson.6 Explicitamente inspirado pelos trabalhos do mitlogo

    Joseph Campbell e filmado em 24 pases, o filme apresenta um

    retrato global do mundo e seus povos. Baraka o ltimo filme de

    6. Uma palavra sufista antiga com formas em muitas lnguas, o anncio promocional do filme explica, o termo baraka pode ser simplesmente traduzido como uma bno, ou como a respirao, ou essncia da vida a partir da qual o processo de evoluo revelado.

  • uma srie de projetos relacionados com os quais Fricke esteve envolvido desde o incio da dcada de 1980, incluindo os filmes Koyaanisqatsi (1983) e Powaqaafc/ (1988) de Godfrey Reggio, dos quais ele foi o produtor e, mais recentemente, Chronos (1985), filmado em oito pases, que ele dirigiu e que foi, de alguma forma, um prottipo para Baraka.

    Embora tenha sido distribudo em mais de 20 pases e tenha recebido muitas resenhas na mdia popular, Baraka foi virtualmente ignorado pelos estudiosos acadmicos de cinema.7 Poderamos atribuir isso novidade de seu lanamento, ao nmero absoluto de filmes competindo pela ateno do estudioso hoje ou a sua relativa marginalidade comparada a filmes mais rentveis (um critrio em si mesmo questionvel). Uma das razes pelas quais o filme parece ter escorregado pelas fendas dos estudos de cinema pode ser a dificuldade para localiz-lo dentro das categorias usuais de gnero existentes na anlise flmica. Os problemas comeam simplesmente ao tentar definir exatamente que tipo de filme Baraka . Ainda que orgulhosamente pertena a uma categoria geral de documentrio ou filme no narrativo, diferentemente da maioria dos documentrios, ele foi distribudo comercialmente, e seu tempo de filmagem (96 min.) mal corresponde durao padro do drama. Uma vez aceito como documentrio, pergunta-se: que tipo de documentrio? Bill Nichols distingue entre dois tipos de documentrio: o historiogrfico e o

    7. O nico artigo acadmico que encontrei sobre Baraka at hoje foi a resenha de: Staples, Amy. Mondo Meditations. American Anthropologist, n. 96, p. 662-668,1994.

  • etnogrfico.8 O primeiro exemplificado pelo documentrio poltico (incluindo filmes de propaganda), desde o trabalho de Dziga Vertov at o Terceiro Cinema, e concebe o filme como um catalisador para a mudana social/poltica. O documentrio etnogrfico tem historicamente se preocupado com a documentao das chamadas sociedades ern risco de desaparecimento ameaadas pela modernidade global. Enquanto Baraka apresenta semelhanas com essas categorias, sugiro aqui que no per

    tence a nenhuma e , de muitas maneiras, oposto a cada uma

    delas. A fascinao de Baraka com as caractersticas geogrficas espetaculares da paisagem natural (quedas d gua, vulces, des

    filadeiros profundos, arcos naturais etc.) se alinha a um gnero

    de documentrio que Nichols no considera, o documentrio

    sobre a natureza, que tem sido bsico na televiso estadunidense

    desde os filmes do Maravilhoso Mundo de Disney, da dcada de

    1950, at o D iscovery Channel. Alm das telas de televiso, os documentrios sobre a natureza tm sido muito distribudos

    atravs dos cinemas IMAX e Omnimax. Ainda, embora o tema

    faa com que Baraka tenha algo em comum com tais filmes - ele foi distribudo em cpias de 70 mm. - , no foi distribudo para

    os cinemas IMAX. Pode-se at sugerir que Baraka ultrapasse as fronteiras do prprio cinema, tendo, de alguma forma, mais em comum com outras mdias, como msica, pintura de paisagens ou fotografia.

    8. Ver: Nichols, Bill. At the Limits of Reality (TV). In: Blurred Boundaries, questions of Meaning in Contemporary Culture. Indiana: Indiana University Press, 1994. p. 43-63.

  • Sugiro aqui que, para compreender a significncia cultural de um filme como Baraka> precisamos ir alm dos gneros cinematogrficos, e, at mesmo, alm do prprio cinema. Isso envolve trat-lo menos como um documentrio, e mais como uma modalidade - cinematogrfica, neste caso - de um discurso que se estende alm de um espectro mais amplo de mdia e reflete processos histricos e globais culturais maiores. Embora Baraka seja um caso especial, ele sintomtico de processos que acontecem na produo cultural hoje e, por essa razo, pode servir como

    um modelo til para repensar velhos paradigmas e para elaborar direes futuras para os estudos de mdia.

    Notas de campo da aldeia global

    Embora nos apresente, conforme seus materiais promocionais, Um mundo sem palavras, i t e r a i certamente um mundo com msica: o filme inteiro acompanhado por uma trilha sonora contnua e no inclui som sincronizado.9 A prpria trilha sonora (disponvel em CD) abrange gravaes de campo feitas durante a filmagem; gravaes de World Music e com sonoridades semelhantes, pela dupla anglo-australiana Dead Can Dance (Brendan Perry e Lisa Gerrard); e msica eletrnica do compositor

    9. Mesmo nas sequncias de dana em que a msica que acompanha a dana poderia ter sido gravada ao mesmo tempo, a trilha sonora no natural; foi dublada depois. Agradeo a David Tams por ter me mostrado isso.

  • f

    New Age Michael Stearns.10 Logo aps o lanamento de Baraka> seu produtor, Mark Magidson, lanou o documentrio de um concerto da dupla Dead Can Dance chamado Toward The W ithin (1993) - Em direo ao interior - , que inclui um videoclipe com trechos de Baraka. Poderamos, ento, perguntar se Baraka mais bem visto como um filme com uma trilha sonora de World Music ou uma extenso de um vdeo de World Music. Se certas sequncias de Baraka poderiam tranquilamente passar como vdeos de msica na MTV, o contrrio seria igualmente verdadeiro: um videoclipe de Deep Forest> um projeto de dois produtores franceses que combina amostras de canes de pigmeus da frica Central com

    batidas de dana urbana, parece admiravelmente uma verso de

    cinco minutos de Baraka.Essa interseco entre World M usic t cinema no exclusiva

    de Baraka. Nos ltimos anos, um nmero crescente de filmes com trilhas sonoras de World M usic comearam a aparecer.11 A metamorfose da World M usic nos filmes mundiais de certa forma surpreende. Um aspecto da integrao horizontal das indstrias

    10. Sobre World Music, ver meu artigo World Music and the Global Cultural Economy. In: Diaspora: A Journal o f Transnational Studies, 2.2> p. 229-242,1992. Tratando a World Music no como uma categoria etnomusicolgica, mas comercial, como a msica vendida na seo World Music7 das principais lojas de discos do Primeiro Mundo. O artigo busca identificar algumas das condies subjacentes emergncia da World Music como um novo tipo de mercadoria no mercado global.

    11 .0 filme sobre msica cigana de Tony Gatlif, Latcho Drom (1993), poderia ser descrito como um filme de World Music, que tem afinidades com Baraka. At o Fim do Mundo (1993), de Wim Wenders, exibe uma trilha sonora mundial genrica, incluindo canes de pigmeus do tipo Deep Forest.

  • miditicas da dcada de 1990 tem sido a relao cada vez mais simbitica entre o cinema e a msica popular, e o lugar central da World Music em Baraka pode ser visto como tpico nesse sentido. A inter-relao entre a World M usic e o cinema no caso de Baraka> entretanto, levanta algumas questes interessantes. Se a emergncia

    da World M usic como uma categoria de marketing maior dentro da msica popular pode ser atribuda aos processos globais, tais

    como, a descolonizao, a imigrao ou a globalizao do capitalis

    mo, como esses processos tm afetado o cinema? O cinema mun

    dial hoje emerge como uma nova categoria de cinema comercial

    comparvel emergncia da World M usic7.Na ordem mundial imperial, os encontros ocidentais com seus

    outros colonizados foram mediados por, e grandemente confinados

    a, administradores (sobretudo homens) coloniais, missionrios,

    comerciantes, cientistas naturais, antroplogos e exploradores diversos. O que Mary Louise Pratt chama de zona de contato - o espao transcultural da troca simblica criada pelo encontro entre os poderes coloniais do Ocidente e as pessoas originrias de suas colnias - permaneceu muito restrito aos postos do prprio colonialismo.12 Tudo isso - no deveria ser enfatizado - agora mudou. No mundo ps-independncia de corporaes transnacionais, mercados globais de trabalho, viagens areas de longa distncia e televiso global, nas sociedades antes separadas pelas vastas distncias espaciais, encontram-se e convivem, de forma rotineira,

    12. Pratt, Mary Louise. Os olhos Jo Imprio: relatos de viagem e transculturao. Bauru: EDUSC, 1999.

  • migrantes econmicos, refugiados, exilados, diplomatas, executivos, turistas. A zona de contato, antes o privilgio de relativamente poucos, passou por um processo de democratizao e hoje uma condio cultural global.

    Uma consequncia dessas mudanas dentro do ex-colonial, mas ainda capitalista, Primeiro Mundo tem sido a etnografizao do con

    sumo de massa. Enquanto, por algum tempo, a etnografia esteve

    engajada num reexame crtico de seus objetivos e metodologias e

    na sua razo de ser>13 seus objetos tradicionais de estudo tm sido cada vez mais absorvidos pelas indstrias culturais contempor

    neas: a escrita etnogrfica se torna escrita de viagem; a

    etnomusicologia, World Music; os artefatos etnogrficos, bijuterias ou moblias tnicas; os museus etnogrficos, lojas tnicas; um

    documentrio etnogrfico se torna Baraka. Mesmo a viagem de campo etnogrfica vem sendo cooptada pela indstria cultural

    global na forma de etnoturismo> no qual os turistas de Primeiro Mundo, armados com notebooks e filmadoras, encenam fantasias do Primeiro Contato com quem Dean MacCannell chama de

    ex-primitivos, em aldeias tribais cuidadosamente preservadas

    da Amaznia at a Indonsia.14No sculo XVIII, de acordo com Mary Louise Pratt, a con

    juno histrica entre a expanso colonial europeia e os sistemas

    13. Ver: Marcus, George E.; Fischer, Michael (Eds.). Anthropology'as Cultural Critique: an Experimental Moment in the Human Sciences. Chicago: University of Chicago Press, 1986.

    14. Sobre os ex-primitivos, ver: MacCannell, Dean. Cannibalism Today. In: Empty Meeting Grounds: The Tourist Papers. New York: Routledge, 1992. p. 17-73. Para urn relato prazeroso do etnoturismo, ver: ORourke, P. J. Up the Amazon. Rolling Stone, p. 60-72,25 nov. 1993.

    MayaraRealceMayaraRealce
  • de classificao iluministas, com a possibilidade dos sistemas de impor um modelo unificador e padro de significado sobre o mundo, levou emergncia do que ela chama de uma conscincia planetria europeia15. No mundo da zona de contato global do final do sculo XX, essa mitologia eurocntrica do mundo, fielmente passada adiante pela National Geographie, pela The Family o f Man e pelos documentrios de David Attenborough, tornou-se onipresente na cultura de massa contempornea, desde os slogans de We Are The World at as United Colors o f Benetton. Como o mundo tornou-se a aldeia global, parece que a cultura de massa euro-americana procurou no somente capturar, mas tambm comercializar a aldeia global. Os publicitrios foram rpidos em reconhecer que no somente os mercados globais, mas o prprio conceito do global pode ser uma ferramenta de marketing poderosa.

    No campo do cinema, os processos que descrevi talvez sejam mais evidentes na dissoluo da dominao dos filmes do Primeiro Mundo por Hollywood e pelos cinemas europeus. Mais do que em qualquer outro perodo na histria do cinema, os filmes disponveis nas cidades cosmopolitas como Nova Iorque, Toronto, Londres, Paris ou Sidney possuem uma variedade global, em vez de somente euro-americana. Os festivais de cinema da Amrica do Sul, da frica e da sia complementam o nmero crescente de filmes transnacionais e da dispora. O documentrio etnogrfico, antes um subcampo especializado de antropologia acadmica, atualmente atrai grande pblico para eventos como o Festival Anual

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  • Margaret Mead em Nova Iorque. Para consumidores em cidades como essas, ir ao cinema e comer fora se tornaram mais ou menos aes intercambiveis, escolhe-se um filme como se escolhe um restaurante. uma questo de escolha a partir de um cardpio de opes tnicas.16 Embora o pblico desses cinemas seja, sem dvida, branco e de classe mdia em sua maioria, seria errneo presumir que ele se abastea (por assim dizer) exclusivamente de exotismo euro-americano. De fato, em cidades como aquelas que mencionei, seus pblicos podem ser transnacionais como os prprios filmes, e assisti-los pode ser uma maneira tanto de se reconectar com a prpria cultura, quanto de satisfazer uma curiosidade turstica sobre algum.

    Outra consequncia dos processos globais que descrevo tem sido a emergncia do que pode ser chamado de imaginrio global dentro do filme euro-americano. Baraka , de fato, somente um filme de uma srie de filmes que coletivamente atestam a emergncia desse imaginrio global no cinema euro-americano desde a dcada de 1950. Trs principais categorias podem ser distinguidas: o filme de explorao global, mais bem exemplificado pelo notrio Mondo Ckr?e( 1963); a vanguarda internacional (Wenders, Herzog,

    16. Vale a pena observar nessa conexo quo frequentemente a comida o foco central dos filmes no ocidentais ou, at mesmo, dos filmes anglo-americanos (A Festa de Ba bette, Tam pop o, Dim Sum, Como gua para Chocolate; entre inmeros outros): possvel assistir a O Banquete de Casamento, de Ang Lee, ou a Comer Beber Viver e comer fora em um restaurante chins depois. Em tais casos, a diferena entre comer e assistir, consumir comida extica e consumir filme extico se torna virtualmente imperceptvel; o consumo do extico est presente no prprio filme.

    MayaraLinhaMayaraCaixa de textocinema e comida
  • Ottinger, Jarmusch, os irmos Kaurismaki); e o globalismo de mesa de caf de Powaqaatsion Baraka. Cada uma dessas categorias pode ser vista como definida por um modo particular de comprometimento com o mundo que retratam: o carnavalesco (filmes M ondo ), o cosmopolita (a vanguarda internacional) e o libe- ral-humanista (Baraka e filmes semelhantes).

    Embora suas origens possam ser rastreadas at os filmes de

    aventura colonial da dcada de 1930, M ondo Caneo, a srie cada vez mais abominvel de filmes que inspirou esto entre os primei

    ros exemplos do surgimento de um imaginrio global no cinema

    comercial euro-americano.17 O mundo que retratam reconheci

    damente o voyeurismo de P. T. Barnum, anomalias, espetculos de

    carnaval, um mundo extico e grotesco de rituais bizarros e pr

    ticas culturais, sejam prticas de sociedades civilizadas, sejam de

    sociedades primitivas. De forma significativa, entretanto, dado

    que os filmes M ondo originais datam da dcada imediatamente aps a independncia das antigas colnias europeias, a mundo que retratam tambm um mundo em caos, no qual a frgil

    infraestrutura da civilizao erguida pelos poderes europeus

    varrida pela selvageria primitiva (Africa Addio); sua viso do mundo, portanto, permanece reconhecidamente neocolonial.

    O cinema cosmopolita da vanguarda internacional consti

    tui um segundo modo do imaginrio global cinematogrfico. Nos filmes de Marker, Wenders, Herzog ou Jarmusch, toma a forma de

    17. Sobre os filmes Mondo, ver: Staples, Amy. An interview with Dr. Mondo. American Anthropologist, 97.1, 1995.

  • uma observao mundana, um tanto cansada, uma ordem mun

    dial cada vez mais transnacional e da mudana cultural associada

    com essa ordem. Paris, Berlim, Nova Iorque, Roma, Helsinki, So

    Paulo, Ulan Bator: autoconscientemente nmades, essas cidades e

    seus protagonistas despreocupados so os descendentes ps-mo-

    dernos de fneur de Baudelaire, cosmopolitas sem raiz procurando seus caminhos ao redor do globo em busca do sempre novo e

    diferente.18 O turismo, os pontos tursticos e os prprios turis

    tas so tipicamente motivos de desdm e stira, embora diretores

    e protagonistas no sejam menos turistas que outras pessoas. O

    que talvez se ja in teressante sobre os film es desse tipo seu

    cosmopolitismo evidente, com seu inerente desdm em relao

    ao paroquialismo do nacional. O apelo a tal ideologia torna-se

    mais compreensvel quando lembramos que uma das formas mais

    prestigiadas de consumo burgus evidente, neste sculo, tem sido

    18. Sobre flneur, ver: Baudelaire, Charles. O Pintor da Vida Moderna. In: Curiosidades Estticas: a arte romntica e outras obras crticas. Paris: Classiques Garnier, 1962; e Benjamin, Walter. Charles Baudelaire: Um Lrico no Auge do Capitalismo, trad. Harry Zohn. Londres: Verso, 1983. A literatura sobre o fnerie extensa; para uma introduo, ver: Tester, Keith (Ed.). The Flneur. Nova Iorque: Routledge,1994. O flneur nunca foi (e no ) exclusivamente masculino, claro; e nerie como uma atividade especificamente feminina no sculo XIX tambm foi bem documentada, ver: Wolff, Janet. The Invisible Flneuse: Women and the Literature of Modernity. Theory, Culture and Society, edio especial sobre The Fate of Modernity, 2.3,1985; Bowlby, Rachel. Ju st Looking: Consumer Culture in Dreiser, Gissing, and Zola. London: Methuen, 1985; Wilson, Elizabeth. The Sphinx in the City. Urban Life, the Control o f Disorder, and Women. Berkeley: University of California Press, 1991. A ltima encarnao do flneur o flneur eletrnico, vagueando pela rede global de computadores da World Wide Web como sua contraparte baudeleriana vagueou na cidade do sculo XIX; ver: Mitchell, William J. City o f Bits: Space, Place, and the Infobahn. Cambridge, Mass.: MIT Press, 1995. p. 7.

    MayaraRealceMayaraRealce
  • a viagem. No cinema de Wenders ou Jarmusch, Herzog ou Kaurismaki, o publico euro-americano de classe mdia pode experimentar o glam our do cosmopolitismo sem sair de casa, mesmo que o oramento o impea de viajar pelo mundo to facilmente quanto os diretores e protagonistas parecem fazer.

    O que chamei de globalismo de mesa de caf de Baraka tem uma histria mais longa tanto em relao aos filmes Mondo quanto ao cinema cosmopolita da vanguarda, estendendo-se desde a fun

    dao da National Geographie Society em 1888, passando pela mostra fotogrfica e pelo livro da dcada de 1950, The Fam ily o f Man, de Edward Steichen, e chegando nas mitologias globais contem

    porneas do Discovery Channel}9 Ideologicamente, o globalismo assume a forma de um humanismo liberal, cuja metfora quase

    obsessiva aquela da famlia. Apesar de diferenas culturais, ele afirma, a raa humana , no fim das contas, parte da mesma fam

    lia global, compartilhando um conjunto comum de experincias

    de vida: nascimento, morte, sexualidade, filhos, comida, amor, cren

    a no sobrenatural, guerra. Essa ideologia, cultuada por muito tem

    po, neste sculo, nas mesas de caf (e, desde a dcada de 1950, nas

    telas de TV) das famlias estadunidenses de classe mdia, de mo

    derada intelectualidade, permanece onipresente hoje, desde livros

    de fotos recentes mitologia New Age de Joseph Campbell.

    19. Para uma viso histrica geral do National Geographic, ver: Bryan, C. D. B. The National Geographic Society. 100 Years of Adventure and Discovery. New York: H. N. Abrams, 1987. Para uma histria crtica, ver: Lutz, Catherine; Collins, Jane. Reading National Geographie. Chicago: Chicago University Press, 1993. Ver tambm: Steichen, Edward. The Family o f Man. New York: Simon and Schuster, 1955.

    MayaraRealceMayaraRealce
  • A viso panormica de Baraka sobre o natural global e a diversidade cultural, sua mensagem de Mundo-nico, sua esteticizao de paisagens e sociedades exticas o situam exatamente dentro da tradio liberal-humanista da National Geographie e da The Family o f Man. Enquanto documenta a diversidade cultural global, o filme est, ao mesmo tempo, preocupado com o molde da diversidade dentro de um humanismo demasiadamente amplo, afirmando um sentimento de comunidade que transcende a diferena cultural. Como a National Geographic, o filme de Fricke no tem medo de encarar as realidades cruis da ordem mundial do sculo XX, como mostra sua passagem por Dachau, pelos campos de matana do Camboja, pelos poos com queima de petrleo no Kuwait, pela Praa Tiananmen, pelas operrias nas fbricas de cigarro na Indonsia ou pelas prostitutas de Patpong e, ao mesmo tempo, evita assumir posies polticas e crticas que poderiam causar impacto sobre seu sucesso comercial, adotando o ponto de vista da testemunha universal. Como a National Geographic, o filme parece mais preocupado com o impacto esttico ou emocional de seus sujeitos do que com as histrias geopolticas ou desigualdades econmicas relacionadas a eles. O sentimento dominante em suas sequncias de desabrigo, pobreza, prostituio ou trabalho alienado de lamento: Se pelo menos pudssemos perceber que somos todos parte da mesma famlia!, parece dizer o filme.

    Em seus artigos sobre Baraka e filmes Mondo, Amy Staples descreveu ambos como sendo a anttese do filme etnogrfico, levantando a questo da relao entre Baraka e filmes como Mondo Cane. Quanto ao tema e estrutura formal, os filmes aparentemente tm muito em comum: como Mondo Cane, Baraka constri seu

    MayaraRealce
  • retrato do mundo atravs de uma estrutura no linear de colagem com cortes desconcertantes, que passam abruptamente de uma cultura a outra e com uma descontextualizao radical de seus

    sujeitos. Mesmo assim, essas estratgias so empregadas nos dois

    filmes com propsitos ideologicamente opostos (se igualmente unlversalizantes): se o ponto de vista de Mondo Cane era essencialmente niilista, preocupado com a desconstruo da oposio civili

    zado/selvagem de hoje e em afirmar a barbaridade fundamental da

    humanidade, a viso humanista de Baraka da espiritualidade global o torna, de muitas formas, a anttese de Mondo Cane. Se Baraka um descendente tardio da exibio colonial e da National Geographic, o filme Mondo (o filho feio e bastardo do documentrio e do cinemi- nha ) seu gmeo demonaco.20

    As trs categorias de cinema global que identifiquei deveriam

    ser vistas no como desenvolvimentos sequenciais, mas como ten

    dncias paralelas dentro'da cultura de mdia euro-americana con

    tempornea. Longe de ser um regresso ao neocolonialismo da

    dcada de 1960, por exemplo, os filmes M ondo tm passado por uma renovao nos ltimos anos como parte da loucura atual pelo

    kitsch extico, de Filmes Incrivelmente Estranhos at compilaes da msica lounge Extica das trilhas sonoras de filmes ambientados na dcada de 1950. Como o exotismo autoconsciente do recente livro de cabeceira alternativo Strange Ritual, de David

    20. Charles Kilgore (tambm conhecido como D r. Mondo), citado em: Staples, Amy. An Interview with Dr. Mondo. American Anthropologist, p. 111.

  • Byrne, deixa claro, os rtulos bizarro, sobrenatural e estranho de Mondo hoje esto bem vivos, ainda que de forma deslocada e irnica.210 voyeurismo extico das dcadas de 1950 e 1960 reaparece na dcada ps-moderna de 1990 como camp global.

    Nostalgia imperialista

    Em um artigo inspirado pelos recentes filmes euro-ameri

    canos que lidam com o perodo colonial ( O ut o f Africa, A Passage to India), Renato Rosaldo sugere que tais filmes exemplificam o que ele chama de nostalgia imperialista. O objeto da nostalgia no

    a antiga ordem imperial ou colonial como tal, mas uma ordem

    anteriora ela, em que o colonialismo era responsvel por erradicar a cultura tradicional e os modos de vida das sociedades nativas. A

    nostalgia imperialista, de acordo com Rosaldo, consiste em com-

    padecer-se pela passagem do que foi destruido.22 Tal nostalgia, ele

    sugere, no final das contas, serve para atenuar a culpa que brota do

    21. Byrne, David. Strange Ritual'. Pictures and Words. San Francisco: Chronicle Books,1995.

    22. A nostalgia imperialista gira em torno de um paradoxo: uma pessoa mata algum e ento fica de luto pela vitima. De uma maneira mais atenuada, algum deliberadamente altera uma forma de vida e ento se arrepende porque as coisas no permaneceram como eram antes da interveno. Em mais uma eliminao, as pessoas destroem seu meio ambiente e ento adoram a natureza. Em qualquer de suas verses, a nostalgia imperialista usa uma pose de anseio inocente no s para captar a imaginao das pessoas como tambm para esconder sua cumplicidade com a dominao brutal. Rosaldo, Renato. Nostalgia Imperialista. In: Culture and Truth: The Remaking of Social Analysis. Boston: Beacon Press, 1989. p. 69-70.

  • comprometimento do sujeito colonial - at mesmo por responsabilidade - com o estado das coisas pelas quais ele est lamentando. De Tristes Trpicos de Lvi-Strauss at o contemporneo turismo tnico, a cultura euro-americana permeada por essa nostalgia, e,

    como os recentes documentrios sobre a criao de Fitzcarraldo de Herzog ou Apocalypse N ow de Coppola (e os prprios filmes) mostram, igualmente difundida no cinema contemporneo.23

    A melancolia de Baraka em sua viagem mundial por lojas que exploram empregados, favelas, desabrigados, pobreza, casas

    de prostituio e cenrios de guerra civil e internacional oferece

    um exemplo impressionante do que Rosaldo chama de nostalgia

    imperialista. Um filme como Baraka, Rosaldo poderia argumentar, brota precisamente da culpa do Primeiro Mundo capitalista em relao desordem social, econmica e cultural que ele gerou no mundo como um todo, acompanhada de uma nostalgia por um mundo puro e imaginrio anterior modernidade capitalista. Esse mundo imaginrio, o objeto da nostalgia, aparente na reverncia do filme ao meio ambiente, s sociedades aborgines e aos sistemas religiosos pr-modernos do budismo, hindusmo, islamismo e cristianismo. Assistir a filmes como Baraka, poderia se dizer, capacita o pblico do Primeiro Mundo a se comover com

    23. Estou me referindo ao documentrio Burden o f Dreams (1982), de Les Blank, e tambm ao livro que o acompanha: Blank, Les; Bogan, James. Burden o f Dreams'. Screenplay, Journals, Reviews, Photographs. Berkeley, California: North Atlantic Books, 1984; e O Apocalipse de um Cineasta (1991), de Fax Bahr e George Hickenlooper, Esses documentrios de making o fpodem ser vistos como um subgnero emergente do cinema global contemporneo.

  • o que o capitalismo destruiu, ao mesmo tempo que o absolve de qualquer responsabilidade sobre isso. O fato de ser precisamente a censura pblica da ordem econmica mundial o que faz de Baraka um filme possvel em primeira instncia no o menor de seus tantos paradoxos.

    Confrontados com as realidades desconfortveis da ordem mundial ps-colonial, os filmes da National Geographic, do Discovery Channele Baraka servem, em ltima instncia, como uma fonte de reafirmao: mais do que o abismo econmico que separa ns de eles, tais filmes mostram o que supostamente temos em comum. Enquanto documentam realidades desconfortveis, eles tambm sugerem que essas realidades no nos dizem respeito diretamente, eles amenizam quaisquer ansiedades que ns possamos ter e qualquer responsabilidade sobre isso. Em um mundo feito supostamente menor a cada dia pela mdia, negligenciamos o quo efetivas so essas mdias para manter o mundo em seu lugar, assegurando - como os limites que separavam espectadores dos povos nativos exibidos nas feiras mundiais - que estes no se aproximem tanto para no causar desconforto.

    O livro do filme: repensando o C inem a M und ia l

    Em 1994, o Instituto Britnico de Cinema publicou um livro intitulado World Cinema: Diary o f a Day, um dos vrios projetos semelhantes produzidos naquela poca para comemorar o cente-

  • nrio do nascimento do cinema.24 O livro foi o resultado de um

    projeto por meio do qual se solicitou a cerca de mil trabalhadores

    de todos os setores da indstria cinematogrfica mundial que man

    tivessem um dirio de suas atividades em um dia escolhido aleato

    riamente (10 de junho) durante o vero de 1993. Os apontamentos

    do dirio produzido foram ento editados e reorganizados em uma

    srie de captulos correspondentes aos estgios da produo de um

    filme, da concepo inicial at a exibio ao pblico, oferecendo

    por meio disso um olhar instantneo global de um dia na vida da

    indstria cinematogrfica25.

    O livro talvez mais interessante pelo que revela sobre a di

    menso transnacional da produo de filmes mundiais da atualida

    de e sobre a economia cultural global dentro da qual essa produo

    acontece.26 No geral, ele oferece um retrato fascinante de um dia

    24. Cowie, Peter (Ed.). World Cinema: D iary o f a Day. Woodstock, NY: Overlook Press, 1994. Ver tambm: Nowell-Smith, Geoffrey (Ed.). The Oxford D ictionary o f World Cinema. Oxford: Oxford University Press, 1996; e Stone, Judy. Eye on the World: Conversations With International Filmmakers. Los Angeles: Silman-James Press, 1997. No prprio cinema, o filme francs Lumire et Compagnie{ 1995), uma compilao de quarenta curtas feitos com a cmera original dos irmos Lumire por diretores de filme de todo o mundo, tem, de torma semelhante, pretenses globais.

    25. Nos ltimos anos, estes livros um dia na vida apareceram como uma variante interessante do que eu chamei anteriormente deglobalismo de cabeceira. Tendo comeado suas vidas como uma srie de relatos de culturas nacionais {Um D ia na Vida da Amrica, Um Dia na Vida do Japo etc.), eles recentemente foram alm do nacional, como o recente Um Dia na Vida do CyberEspao, de Rick Smolan, atesta. As ambies panormicas e globais de tais livros fazem com que eles tenham uma forte afinidade com filmes como Baraka-, ficamos imaginando quanto tempo vai levar para a publicao de Um Dia na Vida do Mundo.

    26. Sobre a economia cultural global, ver: Appadurai, Arjun. Disjuntura e Diferena na Economia Cultural Global. In: Dimenses Culturais da Globalizao. Lisboa: Teorema, 2004.

  • tpico da produo de filmes e a frustrao normalmente associada a essa atividade. Ao mesmo tempo, o livro tem vrios problemas. Um dos mais obvios que, enquanto nos diz muito sobre o fazerum filme, no nos diz nada sobre o no menos importante ato de assistirm filme. E dessa forma, concentrando-se na produo em vez da recepo, o livro, de forma questionvel, nos apresenta so- mente metade do quadro do cinema mundial contemporneo, ignorando completamente sua outra metade: o pblico de cinema.27

    Um segundo problema reside nas suposies totalizantes subjacentes categoria do prprio cinema mundial. Quaisquer que sejam as condies geopolticas e econmicas para sua emergncia histrica, e quo variadas sejam suas inmeras manifestaes locais, presume-se que a criao de um filme hoje uma forma cultural global. Poderamos dizer que essa suposio parece incontestvel, uma simples observao de fato; mas no pretendo contest-la aqui. Ao mesmo tempo, interessante que a categoria de cinema mundial, como exemplificada por livros como este em questo aqui, foi usada exclusivamente pelos estudiosos e cr

    ticos de cinema do Primeiro Mundo, e no por aqueles das maiores naes ps-coloniais produtoras de filmes. Alm disso, a observao ostensivamente neutra de cinema mundial como um fato do mundo contemporneo precisa ser situada dentro do contexto histrico mais amplo do imperialismo europeu e de tentati-

    27. Em algum outro lugar, nos estudos contemporneos sobre cinema, uma ateno considervel foi dedicada ao estudo dos pblicos globais, por exemplo: Ang, Ien. Desperately Seeking the Audience. New York; London: Routledge, 1991; e Living Room Wars-. Rethinking Media Audiences for a Postmodern World. New York; London: Routledge, 1996.

  • vas semelhantes dos poderes coloniais para supostamente impor categorias universais ao mundo como um todo. Por fim, vale a pena lembrar que, precisamente devido dificuldade histrica do cinema com o colonialismo, muitos diretores ps-coloniais - refiro-me a diretores do Terceiro Cinema em particular - se preocuparam exclusivamente com a definio de suas prticas cinematogrficas em oposio aos cinemas estadunidense e europeu. Embora tais diretores hoje tenham de operar dentro da economia cultural global como qualquer outro, provavelmente estaro mais apreensivos com a assimilao dos seus trabalhos dentro da categoria cinema mundial do que, digamos, um diretor francs ou ingls. Resumindo, a categoria de cinema mundial prova, em uma anlise mais detalhada, ser menos natural e menos problemtica como pareceria em princpio e pode, at mesmo, ser vista como

    um construto totalizante que, de alguma forma, torna a categoria de cinema mundial a contrapartida dos estudos cinematogrficos para Baraka.

    Outro problema do Cinema Mundial\ e mais relevante para a presente discusso, como sugeri, o fato de que, enquanto o livro revela muito sobre os processos globais que afetam a forma como a produo cinematogrfica acontece hoje, pouco nos diz sobre a emergncia de um discurso a respeito da globalizao dentro do prprio cinema global contemporneo. Est claro, pelo menos, que a globalizao teve, e continua tendo, um impacto significativo sobre o contedo flmico no mundo todo, seja a obra feita por um diretor etnogrfico estadunidense, um diretor europeu de vanguarda, um diretor africano morando em Paris ou um iraniano em Los Angeles.

  • A comparao entre o Cinema M undial e Baraka leva, ento, concluso de que a categoria de cinema mundial precisa ser repensada. Enquanto o cinema mundial e o cinema global tm sido, nos ltimos anos, matria de ateno crtica crescente, um corpo substancial de filmes que se engajam em um discurso sobre a globalizao - do qual Baraka somente um exemplo - foi, at o momento, deixado de fora da discusso. Se for correto, vale a pena refletir por que isso acontece. Talvez se deva a uma confuso conceituai sobre os usos do prprio termo cinema mundial que, embora cada vez mais presente na atualidade, usado em um sentido muito diferente de msica mundial. Como vimos h pouco, o termo mais frequentemente utilizado para significar a indstria de cinema global, em vez do sentido mais restrito, que uso neste texto, de filmes que explicitamente se inserem em um discurso sobre algo chamado mundo. parte das implicaes ideolgicas de um termo to globalizante, poderamos querer nos informar sobre a utilidade analtica de uma categoria conceituai que - na esfera da produo cinematogrfica, pelo menos - inclui potencialmente tudo.

    Outra razo pela qual as discusses sobre o cinema mundial e o cinema global envolveram os tipos de filmes que venho discutindo aqui pode ser simplesmente uma suspeita sobre o global em si. Acostumamo-nos a valorizar a particularidade do local e a rejeitar discursos globalizantes, com suas pretenses de falar por todos, como monolticos e hegemnicos. Isso pode ser algo bom; mas, enquanto tivermos uma boa razo para suspeitar do global, no significa que, se o ignorarmos, ele simplesmente desaparecer. De fato, o oposto parece mais verdadeiro: quanto mais o igno-

  • ramos mais difundido ele se torna. Estudos do cinema global ou mundial, entretanto, tm a tendncia de se concentrar primeiramente nas prticas cinematogrficas transnacionais ou locais, definidas por resistncia ao global (frequentemente tratado hoje em dia como sinnimo de capitalismo), em vez de se concentrar no global como tal.28 Sem negar a importncia de prticas de resistncia, precisamos tambm perguntar o que est em jogo no contnuo desejo euro-americano de enquadrar a diversidade cultural global dentro de seu olhar que inclui tudo, e se filmes como Baraka no so, de muitas formas, uma resposta contra-hegemnica aos cinemas atuais transnacionais de resistncia. Em uma ordem mun

    dial ps-colonial na qual as sociedades do Primeiro Mundo se encontram cada vez mais fragmentadas pela imigrao do Tercei

    ro Mundo, com sua homogeneidade cultural desestabilizada e con

    testada pelas culturas de suas antigas colnias, a viso global de Baraka pode ser vista como uma reao ameaa que tal mundo apresenta autoridade cultural euro-americana, que, ao reinscrever o mundo dentro do campo reafirmativo de um olhar euro-america

    no, procura uma estrutura discursiva neocolonial sobre um mundo escorregadio cada vez mais alm de seu controle.

    Repensar o cinema mundial hoje, em primeira instncia, envolve diferenci-lo das indstrias de filmes globais, uma catego

    28. Ver: Jameson, Fredric. The Geaf>oliticiAesthetic". Cinema and Space in the World System. Bloomington, Indiana: Indiana University Press; London: British Film Institute, 1992; Ver: MacDonald, Scott. Premonitions of a Global Cinema. In: Avant-Garde Film: Motion Studies. Cambridge: Cambridge University Press, 1993. p. 123-125.

  • ria que potencialmente inclui tudo, e dos cinemas transnacionais, definidos por sua poltica de diferena multicultural. Envolve tambm realocar o prprio cinema como um meio dentro do contexto maior das indstrias culturais globais. Isso significa tratar o cinema, como historicamente tem sido o caso, no isolado de outras mdias, mas como parte de um continuum maior, desde dirio de viagem, de moda at msica popular, que articulam respostas euro-americanas para as novas realidades multiculturais da ordem mundial ps-colonial. O cinema euro-americano tem tido, e continuar a ter, um papel significativo na articulao dessas respostas, mas esse papel, at o momento, praticamente no foi analisado. Concentrar-se nele mais diretamente pode levar a um entendimento certamente menos globalizante, mas, no final das contas, mais claro, do lugar do cinema mundial dentro da economia cultural global contempornea.

  • O cinema intercultural na era da globalizao

    Hudson Moura

    Nunca se viram tantos deslocamentos humanos quanto no sculo XX. A Segunda Guerra Mundial provocou uma nova experincia no movimento de populaes, experincia que se tornou uma das mais significativas e traumticas dos ltimos tempos. O mapa mundial foi retraado, e muitas culturas foram dispersas ou transferidas de uma regio a outra. Nosso tempo, segundo Said (2000), , sem dvida, a era dos refugiados, das pessoas em movimento, da imigrao em massa.

    Tem-se a impresso de que cada vez mais as pessoas cruzam fronteiras e transformam suas experincias em uma poderosa herana de resistncia. E as mdias so testemunhas desse fenmeno. Muitos artistas transformam os traumas do deslocamento numa importante renovao do pensamento e em reflexo sobre a sociedade contempornea.

    Novos pontos de vista e novas impresses so criados com o descer e subir de barreiras, muros e alfndegas. Novas geografias e linguagens so impostas a um conjunto inteiro de culturas e antigas naes. Como aproximar o cinema s novas realidades e subjetividades dessas novas fronteiras?

  • H um nmero sem igual de artistas e intelectuais que exploram o tema do deslocamento e da interculturalidade em suas manifestaes criativas por meio de filmes, exposies de arte e obras literrias, tanto quanto cientistas e estudiosos consagram seus estudos. Uma srie de publicaes em ingls que abordam o tema o nomeiam de transnacionalismo, dispora e ps-colonialismo. Nos estudos cinematogrficos, quando esses pesquisadores analisam casos como o cinema intercultural, eles sempre mapeiam a questo dentro de uma perspectiva sociopoltico-econmica de um Estado-nao. Assim sendo, preciso sempre estar atento a termos e conceitos como nacionalismo, identidade, multiculturalismo e a temas como etnia, raa, numa aproximao sociolgica e antropolgica em detrimento de outras reas, como a esttica e a filosofia, pontos de vista mais abordados pelas publicaes em francs. A teoria de lngua francesa, mais baseada nos estudos filosficos, semiolgicos, literrios e estticos, concentra-se na questo da alteridade do indivduo e suas subjetividades, tomando uma outra perspectiva na anlise da experincia do deslocamento no cinema, por exemplo, quando o nomeiam cinema de exlio, minoritrio, marginal. Essa diferena de caminhos, muitas vezes, interfere no resultado final de anlise dos filmes.

    Em todo caso, em ambas as teorias, o cinema intercultural questiona o pertencimento a uma cultura, a uma comunidade, ao cinema contemporneo, e, atravs da intermidialidade, o pertencimento a uma s mdia e ao sujeito da modernidade.

  • Cinemas emergentes: hibridismo, interculturalismo e multiculturalismo

    Nos Estudos Culturais, o termo intercultural distinto de outros termos e teorias como o multiculturalismo, o transnacionalismo, o ps-colonialismo, entre outros, apesar de esses compartilharem a mesma experincia de envolver dois ou mais regimes culturais. O conceito de intercultural foi sempre associado a uma marca da imigrao e da descolonizao, o que no mais o caso. O intercultural se desenvolveu em outras reas, como o comrcio, o direito, a educao, entre outras. Essa indissociabilidade do termo em relao imigrao contribui para enrijecer e limitar o conceito (Coly, 2005).

    Todas as boas e, principalmente, as ms caractersticas que podiam ser associadas imigrao acabam se transferindo diretamente para

    o intercultural.

    A interculturalidade no cinema tenta traduzir em imagens a

    experincia de viver entre duas ou mais culturas e sociedades di

    ferentes, que concebem novas formas de pensar e de conhecimen

    to (Marks, 2000). um cinema compartilhado por pessoas que

    sofreram o deslocamento e que viveram modos hbridos e para

    quem a representao do cinema convencional - o cinema clssi

    co - no suficiente.Cinema multicultural, mestizo , ps-colonial, transnacional,

    hbrido, minoritrio... muitas denominaes para um gnero que se torna cada vez mais importante. Sua principal caracterstica a de explorar, de uma maneira original, as tcnicas cinematogrficas sobre temas e narrativas (roteiros) j bem conhecidos. Qual a particularidade do cinema intercultural perante essas outras denominaes?

  • Principalmente, porque o ponto de vista mudou, ns devemos rever a prtica: no mais um olhar forasteiro que observa uma realidade extica, mas sim um olhar estrangeiro, vindo do interior mesmo dos cinemas nacionais. Parafraseando Deleuze e Guattari (1975) sobre a literatura menor, no somente a possibilidade de instaurar do interior um exerccio m enor de uma linguagem maior que permite definir o cinema emergente.

    Assim, esses cinemas emergentes se originam do olhar de novos cineastas provindos de uma nova realidade, criada principalmente nos pases que acolheram os imigrantes de ex-colnias, como a Frana e a Inglaterra, ou de novos imigrantes, como o Canad, os Estados Unidos e o Brasil. A necessidade desses cineastas de sustentarem uma imagem, rara em outros tempos, assume uma importncia mais profunda e uma amplitude maior nos roteiros habituados aos clichs e s imagens convencionais eurocntricas do Outro, do estrangeiro, da cultura e das novas prticas sociais dos imigrantes.

    Esses cineastas esto longe de repetir as imagens de marginalidade ou a violncia habitualmente ligadas aos imigrantes da classe popular ou de mostrar o estrangeiro como extico. Eles se voltam para o assunto da lngua, da classe social, do trabalho e sua insero na sociedade. O cinema se torna, assim, uma mdia portadora de significao para essa comunidade e um meio privilegiado de comunicao e experimentao artstica. sobretudo atravs de um olhar integrador, de transferncia, de adaptao e de aceitao do Outro (sua cultura, sua lngua) que eles mostram que fazem parte da sociedade e que devem reivindicar seus lugares. A sociedade no mais a mesma, assim como as imagens que ela produz.

  • Os cinemas emergentes geram prticas cinematogrficas singulares tal como o fato de conceber o quadro flmico como um espao de escritura - ttulos, subttulos, textos em lnguas estrangeiras ou de tradues - e a utilizao de vrias lnguas, vozes, msicas e sotaques diferentes, e o cotejamento de culturas distintas e a preferncia pelos temas do deslocamento, do exilio, da dispora, da viagem (Naficy, 2001, p. 25).

    Cineastas exilados, emigrados e refugiados fazem textos de autor (Naficy, 2001), intertextuais, transculturais, tradues de sentidos e de identidades. Os cineastas podem pertencer a mais de urna cultura (Marks, 2000, p. 7). Nesse momento, no mais urna simples transcrio ou traduo de urna cultura para outra, mas sim o fato de habitar um espao mltiplo, composto por diversas

    culturas, e, muitas vezes, esse espao no muito claro, ou seja,

    bem definido.Se bem que esse multiculturalismo formado por vrios

    grupos tnicos e culturais, e isso implica sempre a presena de

    uma cultura dominante - branca, ocidental, europeia. Uma cultu

    ra hbrida varivel e impossvel de categorizar. A hibridao,

    segundo Homi Bhabha (apud Marks, 2000, p. 7), revela o proces

    so de excluso pelo qual as naes e certas identidades culturais so formadas, forando a cultura dominante a se explicar. O cinema hbrido se coloca numa relao de poder no qual ele se reflete (Bhabha apud Marks, 2000, p. 8). Isso quer dizer que, na sua caracterstica hbrida, o cinema intercultural sempre colocado numa relao de fora na sua forma contestatria em relao a uma est

    tica dominante.

  • A tenso do prefixo inter de intercultural

    Nos filmes A esquiva (VEsquive, 2004), de Abdellatif Kechiche, Em direo ao su l( 2005), de Laurent Cantet, e Portas do paraso (2006), de Swel e Imael Noury, as diferenas e as tenses sociais geram um mosaico multicultural e excludente. Essas tenses entre classes, subalternos e colonizadores, e os vrios conjuntos de uma mesma sociedade vivendo lado a lado, se fazem sentir na prpria

    materialidade cinematogrfica. Kechiche, em A esquivaJ, oferece linguagem, tanto cinematogrfica quanto falada, uma nova

    performance, distante dos clichs, e acentua as particularidades de

    duas lnguas (o erudito e o popular) entre dois mundos. Esta pon

    te entre essas duas realidades distintas (o imigrante e a terra de

    insero) constri um novo imaginrio na tela. Mas at que pon

    to esses cineastas querem documentar, mistificar ou vangloriar a

    realidade-situao dos imigrantes? At onde podemos afirmar que

    esta nova periferia cinematogrfica deslancha um novo concei

    to de adaptao no discurso miditico?O cinema intercultural no pode ser entendido simplesmente

    como multicultural ou como pluralista (cultura, religio, polti

    ca), pois ele atribui uma tenso que se deixa perceber pela imposio do prefixo inter. Isso significa que o intercultural determina sempre uma fronteira e uma tenso do entre duas ou mais

    1. Eu fao uma anlise sobre a questo da comunicao num artigo precedente: Le cinma mergent et ses pratiques interculturelles, publicado pela revista Les Enjeux de Tin formation et de a communication (Mou ra, 2007).

  • culturas (ou, em termos cinematogrficos, entre planos). Essas culturas no so amalgamadas ou juntadas num discurso uniforme e homogneo, como poderamos caracterizar o hibridismo e o multiculturalismo. Num discurso heterogneo e nico no seu gnero, interculturalidade colocar em relao duas ou vrias culturas e identidades. Ela pode ser tambm aquela que no compartilha. Isto , um processo que marca uma tenso dos diferentes, o que pode ser mesmo da ordem do intransponvel e gerar a incompreenso.

    A interculturalidade no cinema pressupe uma emergncia de formas e de discursos, o que o torna difcil de ser classificado. Sua prtica desvenda sua caracterstica nica, tanto do ponto de vista tcnico quanto do tema tratado. O intercultural no um dado fixo que pede uma anlise, mas um processo, uma comunicao, uma

    correlao: a anlise ela mesma. Assim, se o multicultural pra no

    nvel da constatao, o intercultural opera uma dmarche, ele no corresponde a uma realidade objetiva. (Abdallah-Pretceille, 2002).

    Aproximando o carter marginal e o alternativo do cinema

    intercultural concepo deleuziana de literatura menor, sua caracterstica de agente coletivo da enunciao inegvel. O privado se torna de uma certa maneira um assunto pblico e sociopoltico que vai buscar uma reao do espectador. O intercultural pertence

    questo cultural, entre indivduos, identidades e grupos, entre o singular e o universal. Apesar de estes dois termos - cultural e intercultural - no se fundirem em si mesmos, eles podem ser primordiais para compreendermos as diferenas, como to bem caracterizou Abdallah-Pretceille, pois um indivduo vindo de uma

  • cultura no pode ser considerado seu representante. Entretanto, o cinema intercultural com certeza um agente coletivo, pois o intercultural sempre e fundamentalmente concebido a partir do relacional, colocando a cultura do Outro prova e como passvel de troca.

    como se o cinema intercultural contribusse atravs de sua representao/correlao inveno do povo2 (Deleuze, 1985, p. 283). O povo assim como a histria no so dados pelo filme ou eles ainda no esto l, eles sero esboados ou nascero no filme pelo intermdio de uma anlise/leitura do espectador. Dessa maneira, o cinema intercultural se caracteriza como uma possibilidade de utornar-se filme, na qual o espectador convidado a fazer

    a sntese.Filmes como Calendrio, de Atom Egoyan, ou Viagem na

    Armnia, de Robert Gudiguian, no ensinam e no informam nada alm sobre a histria do genocdio ou da dispora armnia, mas servem como pontos de reflexo e de questionamento. Enfim, dentro desse formato alternativo e no classificatrio que o cinema intercultural quer ser inserido pela simples razo de no querer cair nas armadilhas do clich e do convencional. A experimentao na forma e no contedo e o inesperado de sua proposta fazem parte de sua caracterstica emergente de pensar fora dos padres dominantes e estabelecidos - outside the box.

    2. No cinema Americano [... ] o povo j est l, real antes de ser atual, ideal sem ser abstrato. (Deleuze, 1985, p. 282).

  • A intermidialidade e a crise do sujeito

    Cada vez mais, a interculturalidade no cinema pressupe uma certa inovao do discurso cinematogrfico. Na busca de novos caminhos para urna nova identificao e interao do espectador com a imagem que v na tela, muitos diretores optam pela interao do cinema com outras mdias e discursos. Eles inovam no tratamento narrativo e conceituai da imagem e acabam renovando a prtica cinematogrfica.

    No filme Notebook on cities and clothes, de Wim Wenders, a intermidialidade se situa precisamente nos movimentos entre duas cidades e duas mdias. O espectador perde a noo se a imagem na tela uma imagem cinematogrfica ou videogrfica, se ela se refere a Tquio ou Paris, ou ainda, se ela uma imagem do passado ou do futuro, segundo a cronologia do filme. neste discurso fragmentado que se descobre o filme e seus personagens. O estilista Yamamoto, por exemplo, personagem central do documentrio, se sente como um cidado do mundo, estando em casa em qualquer grande cidade, seja Paris, Nova Iorque ou Tquio. As imagens adquirem um sentido todo especial na montagem, na superposio de planos e nos movimentos de cmera, justamente na passagem entre uma imagem e outra. no caminho do entre uma coisa e outra que se conhece a identidade3 procurada, tanto a dos personagens quanto

    a do discurso flmico.

    3. No filme, um documentrio sobre a moda e o estilista japons Yoshi Yamamoto, o diretor Wim Wenders questiona a identidade tanto do estilista, dele prprio e de suas profisses, quanto da natureza das imagens (cinematogrficas, videogrficas e fotogrficas).

  • A imagem de Notebook se constri no meio, no intervalo de imagens; ela no existe nem de um lado e nem do outro. Ser essa a intermidialidade por excelncia, onde no h nem refern

    cia e nem referente absoluto, nico?Seguindo a ideia deleuziana da crise da representao no cine

    ma clssico na dcada de 1940 e, ao meu ver, do cinema moderno na dcada de 1970, com o aparecimento do cinema intercultural4, a

    intermidialidade comprova uma outra crise: a do sujeito da

    enunciao. Uma crise do sujeito provindo da modernidade de que

    uma mdia no mais considerada apta a conservar ou a mostrar.

    A intermidialidade fragmenta e apaga este sujeito clssico da

    modernidade, o sujeito que representava o mundo. Ela produz de

    uma certa forma um novo sujeito da enunciao. Nesse quadro, o

    que importa, como mostra Mariniello (2000, p. 8), no mais o co

    nhecimento do mundo, o qual um sujeito veria atravs de um meio

    (mdia), mas um outro tipo de conhecimento que no pode mais ser

    o mesmo. O desafio a possibilidade de abrir caminhos em direo

    a esse outro conhecimento. A criao desse outro conhecimento seria, assim, o privilgio desses sujeitos contemporneos produzidos pela interao de mdias, como o cinema e o vdeo.

    4. A gerao de cineastas-produtores, como Steven Spielberg e George Lucas, foi responsvel pelo renascimento do cinema de gnero (ou de entretenimento), colocando-o novamente em alta no mercado mundial. Este contra-ataque do cinema americano com os megaoramentos nas dcadas de 1970 e 1980 no foi por acaso. Isso foi uma reao direta e pesada da indstria cinematogrfica de Hollywood contra os cinemas nacionais e locais provindos do mundo inteiro, desde os grandes movimentos cinematogrficos ps-guerra, como o neorrealismo, a Nouvelle Vague, o jovem cinema alemo, o Cinema Novo, o cinema independente estadunidense, entre tantos outros.

  • A interao das mdias, a intermidialidade, desloca o ncleo de ateno e de pertinncia: a narrao e a discursividade no so mais centrais. O sujeito, como um ponto de vista nico e especial, torna-se mais complexo. Inserido neste espao do entremdias, esse novo sujeito um questionamento sobre o sujeito moderno, encaminhando-o em direo a uma nova configurao do saber ou, ao menos, revelando a sua necessidade.

    A causa desse questionamento a mudana no nvel do conhecimento e da subjetividade que passa pela crise da relao entre linguagem e mundo:

    [...] o fluxo de sons e imagens adquiriu uma rapidez tal que esta no se deixa mais ser submetida/entendida pela linguagem e reduzida a uma srie de agenciamentos lgicos. Qual conhecimento ento? E qual sujeito do conhecimento? E o cinema, qual papel ele atua no aparecimento deste novo conhecimento? (Mariniello, 2000, p. 10).

    A intermidialidade permite aos cineastas uma gama enorme de novos procedimentos de experimentao e de participao

    de dispositivos no filme, possibilitando ao pblico testemunhar

    os impulsos e as decises tomadas tanto pelo personagem quanto por aqueles engajados em um processo em que o diretor tambm

    est envolvido.Em Notebook no mais a diferena entre espao e tempo,

    entre duas cidades ou dois personagens, mas o encontro e a distncia de um ponto qualquer a outro, do gro de prata da pelcula ao pixel eletrnico da fita magntica, por exemplo. Essas mdias e prticas significantes se contaminam e acabam gerando novos discursos. Discursos esses que vo alm da capacidade expressiva de um s meio, o que chamamos assim, esse processo e conjuno, de intermidialidade.

  • A intermidialidade a conjuno entre duas ou mais mdias, ou, ainda, pode se situar entre duas ou vrias prticas significantes: msica, literatura e pintura, suponhamos, no interior de uma mdia, como o cinema. Mas se ns, afirma Mariniello (2000), analisarmos o movimento de uma prtica a outra, ns o paramos, ns o decompomos, e assim ns perdemos sua natureza dinmica. A intermidialidade est mais para o movimento e o devir, lugar de um pensamento no mais entendido como continuidade e unidade, mas como intervalo e diferena. A interculturalidade cinematogrfica guarda esse mesmo desafio na compreenso da confluncia de culturas e mesmo de gneros e histrias que a compem. No conseguimos de fato apreend-la em toda sua fora e dinmica narrativa se tentamos considerar seus elementos em separado ou se tentamos encarcer-la dentro de um gnero ou cultura, principalmente considerando a quebra de padres, a heterogeneidade e as inovaes tcnicas que lhe so caractersticas.

    No cinema intercultural, alguns diretores tentam transformar o discurso para ir alm da representao, da experincia e do conhecimento do mundo. Entretanto, um dos pressupostos da arte moderna justamente o de opor-se representao e fazer do meio (mdia) o sujeito. O que a arte moderna visa, parecido com a ambio fenomenolgica, o retorno essncia mesma das coisas, a esta essncia sem representao, onde a mediao no seria ocultao, mas revelao. (Nouss, 1995, p. 118). Assim, alguns cineastas tentam permitir ao espectador uma experincia e um contato com a coisa em si, sem recurso de dilogos ou de roteiro.

    O termo conhecimento ou experincia permite tambm compreender que a arte moderna tenta mostrar a vida na sua crueza ou na sua dureza, fora de uma esttica que seria normativa (Nouss,

  • 1995, p. 121). Entretanto, nas passagens miditicas, e sempre em relao questo da no representao, que Lyotard classifica como nova linguagem esttica, o belo se apaga diante do verdadeiro, e esta relao de verdade no real pede no mais para imit-lo ou para express-lo no que h de representvel, mas tambm no que h de irrepresentavel" (Nouss, 1995, p. 121). O exlio e a interculturalidade so algumas dessas experincias, difceis tanto de representar quanto de espacializar.

    Nas passagens cinema/vdeo em Notebook de Wim Wenders, ou em Calendrio, de Atom Egoyan, ou, ainda, em Cach (2005), de Michael Haneke, a conjuno e a justaposio de duas mdias no objetivam somente colocar o espectador em contato com as

    mdias elas mesmas, mas, sobretudo, objetivam romper o contra

    to espectador-filme para levar o sujeito a incorporar e a personifi

    car o meio (mdia). O sujeito seria assim o ponto de vista do no

    olhar, uma tentativa de mostrar o que no se consegue distinguir,

    ou de mediatizar com apenas uma mdia. essa nova imagem

    que se forma entre duas mdias. Em Cach\ a imagem-vdeo surge como uma conscincia do passado do personagem, como espe

    lho e como impreciso da imagem. Ao tentar colocar o persona

    gem em contato com o sofrimento e com a condio alheia, o

    vdeo cria uma transparncia opaca da realidade e fora o perso

    nagem de Daniel Auteil, aquele que fonte do preconceito e do

    racismo contra os exilados, a tomar contato com o verdadeiro

    reflexo de sua imagem. Mas isso somente torna-se possvel quan

    do a imagem-vdeo est inserida dentro do filme, ou seja, o movi

    mento entre uma imagem e outra que nos permite compreender e

    nos inserir na dinmica entre realidades, virtualidades, tempos e culturas na qual o personagem de Auteil imerge.

  • Traduo, commodities e gneros

    A cultura exlica situa-se na interseo e nos interstcios de outras culturas (Naficy, 1993, p. 2). O discurso exlico tem de lidar com a problemtica de lugares mltiplos. A desterritorializao que o exlio produz tem criado outros mundos e conhecimentos de pessoas desafetadas, que voluntria ou involuntariamente no esto ou no querem fixar-se a uma s identidade. Os exilados, segundo Naficy, tm a possibilidade de criar identidades hbridas e culturas sincrticas que simblica e materialmente tomam empres

    tadas de ambas as culturas, a do passado e a do presente, o que para

    Salman Rushdie faz parte do processo de traduo pessoal.Em seu artigo autobiogrfico Ptrias imaginrias (Imaginary

    homelands ), Rushdie enfatiza que escritores como ele, exilados, emigrados ou expatriados, podem ser perseguidos por um sentimento

    de perda, uma necessidade de recuperao do passado, de reencontro consigo mesmos, correndo o risco de se tornarem esttuas de sal (Rushdie, 1992, p. 10). Mas como eles no so mais capazes de reconquistar o que se perdeu, tendero a criar fices, no cidades ou vilas reais, mas aquelas invisveis, ptrias imaginrias, criaes imaginativamente verdadeiras. No entanto, como o escritor adverte, verdade imaginria , simultaneamente, louvvel e duvidosa.

    A natureza parcial dessas memrias, sua fragmentao, sua impreciso, seu carter hesitante e desproporcionado, o que as fazem, para Rushdie, ser to evocativas quanto valiosas: Os cacos de memria adquirem um status maior, uma ressonncia maior, porque so restos; a fragmentao faz coisas triviais parecerem smbolos, e mundanidades adquirirem qualidades msticas. (Rushdie, 1992, p. 12). O exlio exige uma auto traduo por parte

  • do autor. Traduo, para Rushdie, quer dizer na sua maneira exlica de se expressar uma dualidade de lnguas e de espaos memoriais. Isso, a princpio, um ganho adquirido pela proficincia de vrias lnguas e culturas literrias daquele que escapa de uma s identidade esttica e fixa. O exlio torna-se assim uma experincia positiva do conhecimento e da alteridade que ultrapassa a negatividade estril e improdutiva, dando vazo a uma riqueza de narraes e histrias. Segundo Rushdie, o exlio gerador de uma errncia positiva, enraizada, de cruzamentos literrios, um encontro com o Outro, e uma rejeio ao espao recluso.

    A palavra traduo vem, etimolgicamente, do latim: carregar atravs. Depois de termos sido carregados pelo mundo afora, ns somos homens traduzidos. Supe-se normalmente que algo sempre se perde na traduo; eu me atenho, obstinadamente, noo de que algo tambm pode ser ganho. (Rushdie, 1992, p. 17, grifo nosso).

    A perda ou o ganho dessa traduo de sensibilidades e sentidos se verifica na impossibilidade ou incapacidade de no poder se comunicar atravs de uma imbricao e multiplicidade de lnguas, culturas ou mdias. O cinema intercultural e o de exlio permitem a explorao de fronteiras imaginrias, principalmente atravs da intermidialidade e de uma percepo consciente dos clichs e da mdia. No filme filipino Todo Todo Teros (2006), de John Torres, o digital usado como recurso narrativo e como materialidade miditica. A manipulao e a presena da imagem so constantes e tratadas como uma ameaa terrorista. A imagem se torna compl e ameaa de um mundo cada vez mais inserido dentro de uma problemtica globalizada. O terrorismo se torna assim

  • no uma ameaa real para a pobreza, misria e subservincia filipina, mas uma figura de estilo e tratamento esttico sobre a

    banalizao da globalizao.J no filme palestino Paradise now (2005), de Hany Abu-Assad,

    o terrorismo no uma alegoria da globalizao, e sim uma

    legitimao da resistncia identitria e de luta contra a opresso.

    O terrorismo algo imanente na cultura palestina e mundial de

    hoje, por razes distintas. No filme, a realidade toma propores

    maiores que a prpria fico, e o questionamento de o que real

    ou fictcio se torna sem sentido, pois a real devastao do espao

    torna impossvel qualquer tipo de fico. A presena material da atualidade dos escombros torna-se materialidade flmica. como

    se o ilogismo da situao palestina num mundo globalizado e mo

    derno fosse inumano, incompreensvel, inaceitvel e no narrati

    vo. O discurso pessoal e poltico confunde-se com as noes de

    Estado-nao, povo e cultura, como no longo monlogo do per

    sonagem central, Said (Kais Nashif), antes de embarcar para Israel

    com uma bomba atada a seu corpo:

    Uma vida sem dignidade no vale nada. Sobretudo, quando ela nos lembra, dia aps dia, nossa humilhao e nossa fraqueza. E o mundo observa tudo isto, covardemente, indiferente. Se a gente se encontra sozinho em face dessa opresso, a gente deve encontrar um meio de pr fim a essa injustia. Eles devem entender que se no h segurana para ns, no haver tampouco para eles. Eles convenceram o mundo todo, e a eles mesmos, de que eles so vtimas. Como pode o ocupante ser vtima? Se eles endossam o papel de opressor e de vtima, eu no tenho outra escolha que a de ser, ao mesmo tempo, vtima e assassino.

  • A ameaa iminente de sua integridade fsica e da cultura de seu povo incorporada literalmente pelo personagem atravs de um ato incompreensvel de resistncia e alteridade. Ele se afirma integralmente, corpo e mente. A cultura do Outro, ou seja, a israelense, est presente-ausente na tela de uma maneira sutil, subjacente e onisciente. Essa tenso e opresso entre culturas legitima o discurso pessoal do personagem e o torna imediatamente poltico e identitrio, como um rompimento de barreiras e auto afirmao. O ato extremo de se imolar junto com o Outro revela tambm, no filme, a impossibilidade de continuar a sustentar uma imagem ou histria que no o corresponde.

    Os filmes emergentes tentam quebrar as amarras do cinema

    de gnero, que por dcadas vem aprisionando e impedindo temas como a migrao e a colonizao, e estabelecer uma real e complexa

    noo do tema da interculturalidade nas telas. A estereotipagem do

    migrante pelo cinema clssico influencia na maneira, por exemplo,

    de como pensamos os conceitos de interculturalidade ou de exlio.

    Se fizermos uma analogia entre gnero cinematogrfico, com

    suas estruturas, tipos e normas, e uma caixa, essa imagem nos d

    uma tima possibilidade de pensarmos as estratgias dos cinemas emergentes e interculturais nas suas tentativas de romper com es

    tas embalagens e se conceberem fora da caixa (outside the box).Os filmes In this world (2002), de Michael Winterbottom,

    e Zulu 9 (2001), de Alan Gilsenan, mesclam os gneros cinematogrficos, documentrio e drama, e colocam a caixa no como uma simples metfora, mas como uma prtica concreta do contrabando de imigrantes. Os filmes mostram alternativas desesperadas dos migrantes para cruzar as fronteiras, submetendo-se explorao

  • dos atravessadores que os contrabandeiam de forma ilegal atravs de contineres pela Europa.

    No filme de Winterbottom, dois jovens escapam da misria e da guerra do Afeganisto pagando atravessadores, a fim de poderem cruzar as fronteiras de vrios pases ocupados e em guerra e conseguirem chegar a Londres. Eles tomam os caminhos mais difceis e inusitados, como cruzar desertos, atravessar montanhas durante a noite ou viajar dentro de um continer sem luz e com pouco ar. Zulu 9 (2001), de Alan Gilsenan, mostra o contrabando de imigrantes africanos para a Irlanda em caminhes-bas de carga txica.

    O neoliberalismo econmico abriu as portas para a globalizao de produtos e servios, inclusive a importao e a exportao ilegal de mo de obra barata. Os migrantes tornam-se commodities econmicas, objetos transnacionais (Marks, 2000; Herr, 2007). Esse movimento do mundo conhecido (lugar de origem) ao mundo ainda no conhecido (exlio) representa movimentos atravs de um apparatus do estado em que uma pessoa transportada e radicalmente deslocada de seu espao. A caixa a transio, o transporte, uma jornada impossvel de ser representada. Enquanto o cinema de gnero age como fornecedor de fantasia e desencadeador da diferena, a representao de pessoas imigrantes repousa numa tenso entre fantasia e experincia da realidade (Herr, 2007). Com essa realidade difcil de apreender que os filmes emergentes tentam estabelecer uma ponte. Assim, a busca por uma estrutura narrativa aberta, como uma ferramenta para opor ou deslocar um olhar profundamente alienado.

  • A globalizao da imagem

    A misria humana e o movimento migratrio so dois temas recorrentes no cinema intercultural. Um derivado do outro e vice-versa. Esses temas se tornaram uma preocupao essencial no final do sculo XX. A degradao da condio humana, em pases devastados pela fome e pela guerra, parece caminhar lado a lado com a gradativa especulao de um termo contemporneo que caiu facilmente na alienao, na banalizao, e que perde cada vez mais seu sentido: globalizao ou, como preferem os franceses, mundializao. Entre discusses interminveis e muitas vezes infecundas de tericos e suas opinies, prs e contras, sobre a

    globalizao, s vezes, essas concepes tomam propores enor

    mes e incompreensveis, que o cinema intercultural (assim como o cinema poltico da dcada de 1970) busca denunciar, e tm trgicas

    consequncias, que ele busca combater. Por outro lado, preciso

    entender a questo da globalizao cultural e seus produtos comunicacionais. Devemos conceb-la como traduo de uma compreenso da obra artstica ou como acesso a essas obras? A globalizao cultural uma transformao ou criao de sentidos?

    Tornou-se senso comum dizer que globalizao cria a massificao e a homogeneizao cultural e social. Entretanto, segundo Pieterse, globalizao um processo multidimensional, que encampa uma larga e variada gama de prticas sociais, polticas e culturais humanas. O autor coloca a globalizao como um problema descentralizado (Pieterse, 2006), mas que vem sendo visto como uma ocidentalizao do mundo. Em verdade, a globalizao ocorre por meio de hibridaes culturais e estruturais que geram novas formas de organizao social e cultural.

  • Appadurai v a globalizao como um fenmeno fluido e dinmico atrelado ao movimento migratrio mundial (ambos voluntrios e involuntrios) e a disseminao de imagens e textos via mdia eletrnica. Num ambiente ps-colonial e de saturao miditica, novas formas de desejo e subjetividades so desencadeadas. Desenhado sob concepes ps-estruturalistas, Appadurai prev o globo como entrecruzado por fluxos que ele denomina dutos (Appadurai, 2006), os quais enquadram os mundos constantemente modificados da nova paisagem global. Como seria esta paisagem no cinema? Como fica o cinema intercultural numa era globalizada?

    Em sua diversidade de pontos de vista, o cinema oferece uma variada gama de conceitualizaes sobre o mundo globalizado. Os filmes vm mostrando nessa evoluo mundial que a complexidade do tema merece uma complexidade de comportamentos e narrativas. Alguns predizem numa imposio de uma cultura mundial virtual, sobrepondo as culturas e as identidades, resultado da desmaterializao da cultura e sua globalizao.

    Em Encontros e desencontros (Lostin translation, 2003), de Sofia Coppola, os personagens no parecem perdidos na traduo, como sugere o ttulo em ingls, ou traduzidos infielmente, como sugere o ttulo em francs. O ato ou a necessidade de se autotraduzir dos personagens estadunidenses na paisagem japonesa simplesmente no se impe, afinal esta a vantagem de um mundo globalizado: a ausncia do estranhamento e da distncia.

    Os dois personagens, estadunidenses, esto completamente ancorados no mundo moderno. Charlotte uma recm-graduada em filosofia em uma das mais prestigiadas universidades nova-iorquinas,

  • e Bob um ex-astro de Hollywood, em plena crise de meia-idade. Eles se encontram por acaso, hospedados num grande hotel internacional em Tquio por alguns dias. E est l por um anncio publicitrio, e ela, acompanhando seu marido, que fotgrafo.

    Ambos esto deslocados e sofrem de uma profunda depresso, o que os impede de dormir, esto literalmente fora de uma ordem habitual das coisas, em pleno esgotamento da defasagem/diferena de fuso horrio. Se Tquio no os inspira com sua modernidade sem igual e seus mosteiros milenares, em suas casas, nos Estados Unidos, a situao se repete. Enquanto ela no consegue se fazer entender por sua melhor amiga, que evita escutar o seu choro,

    ele se sente constantemente importunado por sua mulher sobre a

    escolha do carpete ou sobre a ateno que no d aos filhos.

    As centenas de japoneses que vemos circularem na tela ser

    vem apenas como elementos de decorao de um grande cenrio

    ps-moderno de uma sociedade cosmopolita, representada por

    seu grande hotel internacional - habitado por outros hspedes

    estadunidenses: o fotgrafo de celebridades, a atriz de filmes de ao

    e a cantora do bar do hotel - e suas ruas impregnadas de non. Os

    personagens no tecem nenhum comentrio sobre a cidade