Interculturalidade No Ensino de português língua estrangeira

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Neste trabalho buscamos traçar as linhas teóricas e definições metodológicas de urna abordagem para o ensino/aprendizagem de línguas estrangeiras ou segundas línguas, a qual denominamos Abordagem Comunicativa lntercultural (ACIN). A abordagem em questão, em suas diferentes etapas, funcionou corno a "força potencial" que orientou as experiências de ensinar e aprender a língua-cultura brasileira a partir do diálogo de culturas. Para a construção do nosso referencial teórico, assim corno para a realização do trabalho de investigação empírica, partimos de urna pergunta inicial de pesquisa, a qual pode, de maneira geral, ser assim resumida: "Corno professor e alunos se posicionam quanto à(s) sua(s) cultura(s) e à(s) cultura(s) do outro em sala de aula de LEIL2 através do trabalho com urna abordagem de ensino e com um material didático que se querem comunicativos e sensíveis às culturas dos participantes do processo de aprendizagem?". Para cumprir com os objetivos que traçamos para o desenvolvimento do estudo, começamos por discutir a idéia de cultura, em algumas de suas vertentes teóricas, para depois elaborarmos a idéia de cultura que nortearia o nosso estudo. A partir da compreensão da concepção de cultura que tornamos como referência, refletimos sobre a relação lingua/cultura e sua relevância para aárea da pedagogia de línguas, apresentando os trabalhos de alguns teóricos e pesquisadores que desenvolveram pesquisas e/ou propostas de abordagem, planejamentos ou materiaisdidáticos de acordo com essa perspectiva, dentro e fora do Brasil. Em seguida, definimos a Abordagem Comunicativa lntercultural (ACIN) e suas diferentes características, corno as concepções de língua/linguagem, de ensinar e aprender e dos papéis de professores e alunos que subjazem à sua construção, assim como as definições dos materiais didáticos e doprocesso de avaliação de aprendizagem elaborados de acordo com essa orientação. A partir deste construto teórico e metodológico, planejamos a realização de um curso de português para falantes de espanhol, no qual foi posta em funcionamento a abordagem de ensino proposta, assim como o material didático elaborado para este fim. Considerando os dadosgerados, pudemos perceber que, ao nos posicionarmos corno sujeitos culturais, levando cada um as suas experiências e vivências para a sala de aula, as suas diferentes identidades, encontramos a satisfação de poder aprender a partir do que sabemos e também a partir daexperiência do outro. As identidades ali em jogo, e seus diferentes modos de configuração, atuaram em variadas direções, ora confluindo, ora se distanciado, mas atuando para"somar", para trazer o novo e, sobretudo, para a construção de um terceiro espaço, um terceiro lugar formado pela interseção das experiências de todos, de identidades individuais que se abrem para transformarem-se em identidades em interação.

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  • Edleise Mendes Oliveira Santos

    ABORDAGEM COMUNICATIVA INTER CULTURAL (ACIN) Uma proposta para ensinar e aprender lngua no dilogo de culturas

    Tese apresentada ao Curso de Ps-Graduao em Lingstica Aplicada do Instituto de Estudos da Linguagem da Universidade Estadual de Campinas, como requisito parcial para a obteno do ttulo de Doutora em Lingstica Aplicada. Orientao: Prof Dr. Jos Carlos Paes de Almeida Filho.

    Universidade Estadual de Campinas Instituto de Estudos da Linguagem

    2004

  • B,

    Sa59a

    FICHA CATALOGRFICA ELABORADA PELA BIBLIOTECA IEL-UNICAMP

    Santos, Edleise Mendes Oliveira Abordagem Comunicativa Intercultural (ACIN): uma proposta para

    ensinar e aprender lingua no dilogo de culturas I Edleise Mendes Oliveira Santos.- Campinas, SP: [s.n.], 2004.

    Orientador: Pro f. Dr. Jos Carlos Paes de Almeida Filbo Tese (doutorado) - Universidade Estadual de Campinas, Instituto de

    Estudos da Linguagem.

    I. Ensino. 2. Aprendizagem. 3. Cultura. 4. Lingua. I. Almeida Filbo, Jos Carlos Paes de. li. Universidade Estadual de Campinas. Instituto de Estudos da Linguagem. Ill. Ttulo.

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  • BANCA EXAMINADORA:

    SUPLENTES:

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    Prof. Dr. Jos Carlos Paes de Almeida Filho (Orientador) UNICAMP

    Profa. Dra. Marilda do Couto Cavalcanti -UNICAMP

    Profa. Dra. Joanne Marie McCaffrey Busnardo Neto- UNICAMP

    Profa. Dra. Maria Luza Ortz Alvarez - UNB

    Profa. Dra. Mrcia Paraquett Fernandez- UFF

    Profa. Dra. Terezinha de Jesus Machado Maher- UNICAMP

    Profa Dra. Maria Rita Salzano Moraes -UNICAMP

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    Me sinto seguro porque no h razo para me envergonhar por desconhecer algo. Testemunhar a abertura aos outros, a disponibilidade curiosa vida, a seus desafios, so saberes necessrios prtica educativa Viver a abertura respeitosa aos outros e, de quando em vez, de acordo com o momento, tomar a prpria prtica da abertura ao outro como objeto da reflexo crtica deveria fazer parte da aventura docente. A razo tica da abertura, seu fundamento poltico, sua referncia pedaggica; a boniteza que h nela como viabilidade do dilogo. A experincia da abertura como experincia fundante do ser inacabado que terminou por se saber inacabado. Seria impossvel saber-se inacabado e no se abrir ao mundo e aos outros procura de explicao, de respostas a mltiplas perguntas. O fechamento ao mundo e aos outros se toma transgresso ao impulso natural de incompletude.

    O sujeito que se abre ao mundo e aos outros inaugura com seu gesto a relao dialgica em que se confirma como inquietao e curiosidade, como inconcluso em permanente movimento na Histria. (FREIRE, 2002, p.I53)

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  • Dedico este trabalho a:

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    Minha me, companheira eterna deste e de outros caminhos.

    Delanise, pelo carinho, companheirismo e, sobretudo, pelo auxlio para que eu conseguisse chegar at aqui.

    Luciana, Alice, Brando e Andr, que nos momentos em que mais precisava, me acolheram na casa e no corao.

    Meu pai, que de longe ou de perto, ser sempre uma luz a me acompanhar.

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    Agradecimentos:

    A Dens e aos que velam por mim, em todos os dias da minha vida;

    Universidade Estadual de Feira de Santana e aos colegas do Departamento de Letras e Artes pelo incentivo e licena para a realizao do doutorado;

    A CAPES, pelo financiamento da bolsa institucional PICDT durante o perodo de realizao do curso;

    A Jos Carlos Paes de Almeida Filho, meu orientador, pelo carinho e apoio, pelo corao imenso, e por ajudar-me a retirar as "pedras do caminho";

    Aos alunos do curso de portugus para flantes de espanhol, Alcira, Beth, Del Carmem, Carmem, Sergio, Suzana, Janete, Piedad, Nancy e Uha, sem os quais o trabalho no teria sido o mesmo;

    s professoras Marilda Cavakante e Maria Luisa Ortiz Alvarez pelas contribuies imprescindveis feitas na qualificao deste trabalho;

    A minha irm Elisa, pelo amor, incentivo e confiana que sempre depositou em mim;

    A Carlos, Morena e Cartinha, famlia querida, pelo amor, carinho, cuidado e apoio, sempre;

    A Luciana Brando, pela preciosa amizade, companheirismo e apoio, neste trabalho e nos outros "trabalhos da vida";

    A Angela, pelo carinho e incentivo que sempre me deu e pela admirao pelo meu trabalho;

    A Maria Eline Mendes e a todo o povo da roa pelo amor e cuidado, em todos os momentos;

    A Denise Dias, pelo amor, carinho e apoio constantes e por dividir comigo, na alegria e na dor, os "inesperados" da vida;

    A Ire, Silvinho, Cris e Cosme, que viveram comigo parte desta viagem e contriburam para que construssemos um pedao da Bahia em Campinas, com amor, carinho e companheirismo;

    A Ktia, Lilah, Jnior, David, Nanda, Jaqne e Pasque, que ajudaram a dar "cor'' minha estadia em Campinas, com carinho e amizade;

    A Rose, da Secretaria da Ps-Graduao do IEL, pela constante disposio em apoiar-nos e ajudar-nos na parte muito pouco interessante da burocracia institucional.

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    RESUMO

    Neste trabalho buscamos traar as linhas tericas e definies metodolgicas de urna abordagem para o ensino/aprendizagem de lnguas estrangeiras ou segundas lnguas, a qual denominamos Abordagem Comunicativa lntercultural (ACIN). A abordagem em questo, em suas diferentes etapas, funcionou corno a "fora potencial" que orientou as experincias de ensinar e aprender a lngua-cultura brasileira a partir do dilogo de culturas. Para a construo do nosso referencial terico, assim corno para a realizao do trabalho de investigao emprica, partimos de urna pergunta inicial de pesquisa, a qual pode, de maneira geral, ser assim resumida: "Corno professor e alunos se posicionam quanto (s) sua(s) cultura(s) e (s) cultura(s) do outro em sala de aula de LEIL2 atravs do trabalho com urna abordagem de ensino e com um material didtico que se querem comunicativos e sensveis s culturas dos participantes do processo de aprendizagem?". Para cumprir com os objetivos que traamos para o desenvolvimento do estudo, comeamos por discutir a idia de cultura, em algumas de suas vertentes tericas, para depois elaborarmos a idia de cultura que nortearia o nosso estudo. A partir da compreenso da concepo de cultura que tornamos como referncia, refletimos sobre a relao lingua/cultura e sua relevncia para a rea da pedagogia de lnguas, apresentando os trabalhos de alguns tericos e pesquisadores que desenvolveram pesquisas e/ou propostas de abordagem, planejamentos ou materiais didticos de acordo com essa perspectiva, dentro e fora do Brasil. Em seguida, definimos a Abordagem Comunicativa lntercultural (ACIN) e suas diferentes caractersticas, corno as concepes de lngua/linguagem, de ensinar e aprender e dos papis de professores e alunos que subjazem sua construo, assim como as definies dos materiais didticos e do processo de avaliao de aprendizagem elaborados de acordo com essa orientao. A partir deste construto terico e metodolgico, planejamos a realizao de um curso de portugus para falantes de espanhol, no qual foi posta em funcionamento a abordagem de ensino proposta, assim como o material didtico elaborado para este fim. Considerando os dados gerados, pudemos perceber que, ao nos posicionarmos corno sujeitos culturais, levando cada um as suas experincias e vivncias para a sala de aula, as suas diferentes identidades, encontramos a satis:fuo de poder aprender a partir do que sabemos e tambm a partir da experincia do outro. As identidades ali em jogo, e seus diferentes modos de configurao, atuaram em variadas direes, ora confluindo, ora se distanciado, mas atuando para "somar", para trazer o novo e, sobretudo, para a construo de um terceiro espao, um terceiro lugar formado pela interseo das experincias de todos, de identidades individuais que se abrem para transformarem-se em identidades em interao.

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    ABSTRACT

    The aim ofthis work isto establish theoretical and methodological guidelines of a foreign or second language learning and teaching approach, which we have named lntercultural Communicative Approach (ACIN). This approach, in its diffurent stages, worked as a 'potential force', which oriented our experiences o f learning and teaching the cultural-brazilian language from the dialogue between cultures. In order to build up our theoretical background as well as to accomplish the realization of our empirical investigation, we started by electing the initial question ofresearch which, in resume, could be synthesized as following: "How teachers and students face their own culture and somebody else culture within a foreign language or second language classroom with the support o f a teaching approach and didactic textbook whose purpose are to be sensitive to the participants cultures in the process o f teaching and learning?". In order to fulfill the objectives we have established for the development o f our work, we started by discussing the idea of culture from different theoretical point ofviews, in orderto develop the concept o f culture that would be the guide o f our study. From this comprehension o f the concept of culture that we have adopted as a reference, we reflected upon the relations between language and culture and its relevance for language teaching pedagogy. At this point it was important to present and discuss the results from the work o f some researchers who have developed different proposals for planning and producing didactic materiais according to a cultural perspective, within and outside Brazil. Afterwards, we defined the lntercultural Communicative Approach (ACIN) by presenting its singular characteristics such as its concept o f langue!language, o f learning and teaching, the role fur teachers and students which underline its conception, as well as the general instructions to produce didactic materiais and how to evaluate the learning process according to this orientation. From those theoretical and methodological foundations we implemented a language course, Portuguese for Spanish speakers. During the course we could assess not only the dynarnics ofleaming and teaching process, as well as, the didactic textbook developed underthe ACIN approach guidance. From the data we have collected we could realize that as cultural subjects who takes our life experiences as well as our difrerent identities to interact in the classroom, we do find pleased to leam from what we know as well as from somebody's else experiences. Identities are at play and its different features act in peculiar patters whether converging or splitting apart, but mainly, adding something new as a result of the intersection of evecybody's experiences, o f individual identities blooming as interactive identities which characterizes the creation o f a third place.

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  • LISTA DE QUADROS

    LISTA DE FIGURAS

    SUMRIO

    CAPTULO 1-PONTOSDEPARTIDA 11 1.1 INTRODUO 11 1.2WSTIFICATNA 14 1.3 PERGUNTAS DE PESQUISA 18 1.4 ORGANIZAO DA TESE 18 1.5METODOLOGIA 21 1.5.1 Enfoque terico 21 1.5.2 Sujeitos e cenrio da pesquisa 27 1.5.3 Procedimentos de pesquisa 29

    CAPTUL02-0LUGARDACULTURA 33 2.1 AIDIADECULTURA 33 2.1.1 O comeo do caminho 33 2.1.2 Diferentes vises, o mesmo problema 3 7 2.1.3 Ainda hoje, a cultura 43 2.1.4 Um olhar sobre a cultura 50 2.2AAODACULTURA 52 2.2.1 Os modos de ao da cultura 52 2.2.2 Da antropologia linguagem 57 2.3 MUNDlALIZAO E CULTURA: QUESTES DE LINGUAGEM E 65 IDENTIDADE 2.3.1 Uma cultura mundializada? 65 2.3.2 Cultura e identidade: duas faces do contemporneo 75

    CAPTULO 3- ENSINAR E APRENDER UMA LNGUA-CULTURA 89 3.1 A CULTURA COMO DIMENSO DO PROCESSO DE 89

    ENSINO/ APRENDIZAGEM DE LNGUAS 3 .1.1 Uma perspectiva critica 89 3.1.2 Por qu ensinar cultura? 92 3.1.3 A lngua como cultura I 02 3.2 PERSPECTNAS CULTURAlS I INTERCULTURAlS NO ENSINO DE 108 LNGUAS 3.2.1 Uma relao "entre-culturas" I 08

    XV

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    3.2.2 A experincia intercultural: iniciativas no plano do ensino/aprendizagem de 116 lnguas-culturas

    CAPTULO 4- A ABORDAGEM COMUNICATIVA INTERCULTURAL 139 (ACIN): COMO ENSINAR E APRENDER UMA LNGUA-CULTURA

    4.1 POR QUE COMUNICATIVO? 139 4.2 A ABORDAGEM ORIENTADORA DA OPERAO GLOBAL DE 153 ENSINO 4.2.1 Definindo a Abordagem Comunicativa Intercultural (ACIN) 153 4.2.2 A idia de lngua/linguagem 169 4.2.3 Ensinar e aprender uma lngua-cultura 171 4.2.4 A configurao dos papis de professores e alunos 181 4.3 PRODUO DE MATERlAIS PARA UM ENSINO INTERCULTURAL 184 4.3.1 Ambiente para aprender ou camisa de fora?- O material como fonte 184 4.3.2 A mesma fuce, duas moedas: materiais para o ensino de lnguas prximas 192 4.4 O ALUNO APRENDEU?- O QU E COMO AV ALIAR? 198

    CAPTULO 5 - ENSINAR E APRENDER PORTUGUS DE MODO 205 INTERCULTURAL: UMA EXPERINCIA EM SALA DE AULA

    5.1 FAZER O QU, PARA QUEM? 5.1.1 O planejamento como ponto de partida 205 5.1.2 O curso de portugus para flantes de espanhol 208 5.2 O MATERIAL DIDTICO AQUARELA BRASIL 221 5.3 A INTERAO EM SALA DE AULA 224 5.4 A AVALIAO DO PROCESSO DE APRENDER LNGUA, 286 APRENDENDO CULTURA

    CONSIDERAES FINAIS 302

    REFERNCIAS BffiLIOGRFICAS 315

    ANEXOS ANEXO A- INSTRUMENTOS DE PESQUISA E TRANSCRIO 331

    ANEXO B- ATIVIDADES E GLOSSRIO GRAMATICAL 367

    ANEXO C- MATERIAL DIDTICO 381

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    LISTA DE QUADROS

    QUADRO 1- Dados dos alunos do curso 28 QUADRO 2- Papis de professores e alunos 182 QUADRO 3- Comparao entre o modelo de avaliao tradicional e o sugerido 20 I pelaACIN QUADRO 4- Caractersticas do grupo de alunos 21 O QUADRO 5-O que os alunos acham da lngua que esto aprendendo 212 QUADRO 6- Como os alunos classificam o seu conhecimento do portugus 213 QUADRO 7- Opinio dos alunos sobre como a gramtica deve ser estudada 215 QUADRO 8- Opinio dos alunos sobre aprender portugus atravs do uso 216 comunicativo da lngua

    QUADRO 9- Opinio dos alunos sobre aprender portugus atravs da cultura 217 QUADRO 10- Opinio dos alunos sobre a importncia de se conhecera cultura 218 do pas onde a lngua-alvo falada

    QUADRO 11 -Justificativas dos alunos quanto qualidade do curso realizado 292 QUADRO 12- Pontos positivos do curso destacados pelos alunos 297 QUADRO 13- Justificativas dos alunos sobre o seu avano na aprendizagem do 300 portugus

    QUADRO 14- Resumo das avaliaes dos alunos sobre diferentes itens do 30 I curso

    LISTA DE FIGURAS

    FIGURA 1- Etapas de desenvolvimento das experincias de ensinar e aprender 174 a partir da ACIN FIGURA 2- A dnmica do processo de avaliao 203

  • 1- PONTOS DE PARTIDA

    1.1 INTRODUO

    11

    Deve-se acabar para sempre com qualquer imagem da ilustrao e da cultura, onde estas apaream como decorativas, com que alguns homens ociosos preenchem sua vida. No possvel tal contradio. A cultura imprescindvel na vida, urna dimenso constitutiva da existncia humana, como as mos so atributo do homem. Podemos afrrmar que a vida sem cultura urna vida manca, fracassada e falsa. O homem que no vive altura de seu tempo vive aqum do que seria uma vida autntica, ou seja, falsifica sua prpria vida. (ORTEGA Y GASSET, 2002, p.97)

    Ensinar portugus como segunda lngua ou lngua estrangeira, e, num sentido mais amplo, ensinar qualquer lngua estrangeira, tambm expor um "[ ... ] pas, cultura, local geogrfico, fronteira e territrio reconhecidos internacionalmente, e tambm a casa, pedao de cho calado com o calor de nossos corpos, lar, memria e conscincia de um lugar com o qual se tem uma ligao especial, nica, totalmente sagrada" (DaMA TT A, 1997, p.ll-12).

    Tomarmos emprestado de DaMatta este trecho em que fala do Brasil e, depois,

    fzermos este tipo de afirmao, talvez v de encontro a diferentes linhas de discusso que se desenvolvem na contemporaneidade, algumas das quas, por caminhos diversos, pregam uma certa dissoluo ou, menos drasticamente, uma desestabilizao das idias de cultura, identidade, territrio e nao, somente para citar algumas. O vocabulrio da moda inclui termos como desestruturao, desterritorializao, rompimento, ruptura, lnbridismo etc.; sem flar naqueles que, em diferentes momentos, tentam definir a complexidade da vida social, poltica, econmica e cultural que caracteriza o mundo contemporneo, como 'globalizao', 'mundializao' etc. Sem querermos entrar, por ora, nessa discusso, importa-nos aqui localizar a lngua, como fenmeno histrico que , num determinado tempo e espao, a qual utilizada por determinado grupo de falantes, nos contextos nos

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    quais vivem, trabalham e interagem uns com os outros. Nesse sentido, quando falamos do

    portugus brasileiro, no podemos dissoci-lo do nosso povo, do nosso territrio, da nossa

    cultura, do modo corno o construmos dia aps dia Tambm esse tipo de afirmao pode causar estranheza em muitos, sobretudo

    naqueles que acreditam e defendem a idia de lingua como superestrutura, entidade

    abstrata, auto-suficiente e autnoma, que prescinde de um lugar, um tempo, um contexto ou

    de pessoas, para que ela exista, se concretize. Dizemos isto porque assim que nos parece

    quando, ainda hoje, lemos coisas e presenciamos situaes nas quais esse tipo de viso de lngua predomina e insiste em freqentar nossas escolas e salas de aula, quer no

    ensino/aprendizagem de lngua materna (LM) quer no de lngua estrangeira (LE). No queremos dizer com isso que uma lngua no possa ser ensinada como estrutura, ou mesmo

    fora do seu contexto cultural, como o caso das situaes de ensino de LE fora dos seus

    pases de origem. Nem tampouco desconsideramos a possibilidade de, em algumas

    situaes, embora no comunguemos muito dessa idia, se ensinar lngua estrangeira com

    objetivos exclusivamente instrumentais, embora tenhamos dvidas se isso possvel. A questo aqui refletida o modo como se pensa a lngua, no importa se dentro

    ou fora do seu contexto cultural ou pais, se em situao de imerso na aprendizagem ou

    no, se com objetivos instrumentais ou no. O que importa, e isso que aqui defendemos, pensar a lngua como entidade viva, que se renova a cada momento, que se multiplica e auto-organiza atravs do seu uso pelos flantes e pelo contato com outras lnguas; lngua

    que , ao mesmo tempo, reflexo da cultura e tambm instrumento de construo e

    afirmao da cultura, marcando e sendo marcada por ela

    A linguagem/o uso da lngua, quando dissociado da cultura, desloca o sentido de

    lngua corno fenmeno fundamental da comunicao e vivncia humanas, para um sistema

    de elementos regido por regras, cuja estrutura pode ser analisada independente de tempo, espao ou contexto no qual est em funcionamento. No entanto, quando se ensina ou se

    aprende uma lngua estrangeira ou segunda lngua, no se pretende fonnar 'analistas da

    lngua', mas indivduos capazes de usar todos os recursos que a lngua oferece para

    compreender e se fazer compreendido, para inserir-se no mundo como sujeito, com sua cultura, seus modos de identificao, sua viso de mundo etc. Conforme afirma Possenti

    (2002, p.l7): "[ ... ]uma coisa correr, a outra completamente diferente saber quais so os

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    msculos envolvidos nessa atividade. Um atleta pode fuzer bem a primeira coisa sem

    conhecer a segunda e um professor de educao fisica pode saber tudo sobre a segunda,

    sem conseguir realizar a primeira [ .. .]". Essa viso de ensino/aprendizagem de lnguas, a qual considera o uso, a

    expresso, a sua funcionalidade nos diferentes contextos de utilizao, em detrimento do

    ensino de uma lngua 'abstrata', atemporal, que s existe nos livros e na cabea dos

    lingistas, tem feito, inclusive, alguns pesquisadores na rea de lngua materna afirmarem

    que se deveria ensinar gramtica na escola como se ensina lngua estrangeira, ou, pelo

    menos, como se deveria ensinar lngua estrangeira, com o enfoque na lngua como

    instrumento social e cultural de comunicao.

    A questo de transformar o ensino de lnguas num processo culturalmente

    sensvel a alunos e professores extrapola, dessa forma, a rea de ensino/aprendizagem de

    lnguas estrangeiras, que aqui o nosso foco de pesquisa, e estende-se por todo processo de

    ensino/aprendizagem, quer de lngua materna ou estrangeira, quer de contedos de

    diferentes reas do conhecimento. Este tem sido, ultimamente, um dos principas focos de

    ateno e discusso entre pesqusadores, lingistas e professores, sobretudo na rea da

    lingstica aplicada, na busca por enfoques, instrumentos, materiais didticos e modos de

    agir em sala de aula que possibilitem um ensino/aprendizagem de lnguas sensvel pessoa humana, ao seu momento hstrico de vivncia, s relaes que estabelece com os

    individuos do seu grupo e de outros grupos, pessoa atenta s coisas que acontecem sua volta; enfim, vida que se constri, vivendo, interagindo, 'sendo'.

    Ao pensarmos na teorizao de uma abordagem de ensino para o ensino de

    LEIL2, assim como nas diferentes etapas que a compem, como o planejamento de cursos, a elaborao de materias didticos e a avaliao de aprendizagem, buscamos construir

    estratgias e criar ambientes propcios para que o processo de ensino/aprendizagem de uma

    nova lngua-cultura seja um projeto voltado para a criao de um dilogo entre as culturas ali em interao. O nosso objetivo fundamental, portanto, fuzer da sala de aula de LEIL2 um ambiente no qual, professores e alunos possam ensinar e aprender a partir das suas

    experincias na/com a lngua-cultura-alvo, lugar no qual eles possam ser eles mesmos, com

    suas diferentes culturas e identidades.

  • 14

    1.2 JUSTIFICATIVA

    O fator motivador da pesqmsa que nos propomos fazer surgiu, como no poderia deixar de ser, da experincia do contato com alunos de PL2 (portugus segunda lngua) dentro e fora de sala de aula, em situao de imerso ou no; da busca por identificar e compreender que interesses e motivaes estavam por trs de um desejo, muitas vezes implcito, de viver a lngua e a cultura brasileira e, ainda, e talvez

    principalmente, da necessidade de incorporar a cultura e as relaes interculturais no ensino

    de PL2, sem, no entanto, recorrer a vises estereotipadas da cultura, estanques em si

    mesmas, como se a cultura se resumisse representao do extico, do diferente, daquilo

    que na viso antropolgica tradicional representa o 'estranho', o 'estrangeiro'.

    Na maioria das vezes, a nossa experincia nos mostrou que os estudantes que buscavam os nossos cursos de PL2, aqueles que vinham universidade por acordo cultural

    ou os que apenas aqui no Brasil chegavam como visitantes temporrios, demonstravam um

    grande interesse em dominar/compreender questes relativas nossa cultura de um modo

    geral, caractersticas da vida social, manifestaes artsticas, hstria, composio tnica da

    populao, enfim, o nosso modo de viver, de ser brasileiro. A motivao autntica dos

    estudantes era tomar parte do Brasil e da "cultura brasileira", e para sso dependiam da

    lngua. A lngua, ento, que buscam, [ ... ] s a princpio de fato estrangeira mas que se desestrangeiriza ao longo do tempo de que se dispe para aprend-la. Essa nova lingua pode ser tida em melhor perspectiva como uma lingua que tambm constri o seu aprendiz e em algum momento no futuro vai no s ser falada com propsitos autnticos pelo aprendiz mas tambm 'falar esse mesmo aprendiz', revelando indices da sua identidade e das significaes prprias do sistema dessa lingua-alvo. (ALMEIDA FILHO, 1993, p.l2) (grifos do autor)

    Tambm observamos esse tipo de motivao em situao de ensino de

    portugus fora do contexto de imerso, na Universidade de Aarhus, Dinamarca, onde

    tivemos a oportunidade de trabalhar, durante ses meses, com alunos de diferentes nveis de

    proficincia na lingua1 Esses estudantes, cuja lngua materna e realidade cultural eram bastante dstintas da nossa lingualcultura, no tinham como objetivo aprender o portugus

    1 Vide Oliveira Santos (1996).

  • 15

    brasileiro por interesses econmicos ou qualquer outro motivo profissional, embora muitos tivessem a inteno de formar-se em professores de portugus. O que os movia era a intensa vontade de conhecer o Brasil, tomar parte da nossa vida atravs da lngua, mesmo que jamais pudessem ter a oportunidade de pisar os ps por aqui. Assim como na Dinamarca, outras experincias de ensino do portugus do Brasil tm sido relatadas em outros paises, nos quatro cantos do planeta, reforando o crescente interesse pelo aprendizado da nossa lngua tambm fora do Brasil. No entanto, esse interesse pelo portugus do Brasil no tem sido reforado por uma poltica lingstica, que seja empreendida pelas autoridades competentes, que contribua para a sua difuso no mundo, como ressaltam muitos pesquisadores da rea, como Azpiroz (1997) e Crispim (1997).

    Em alguns contextos de ensino fora do Brasil, sobretudo nos pases da Amrica Latina, os interesses mostram-se distintos, vez que, junto com a aprendizagem de uma lngua estrangeira, vem a fcilidade de se conseguir ascenso no mercado econmico e

    financeiro entre os pases do cone su~ novas oportunidades de emprego etc. Se considerarmos a posio que o Brasil hoje ocupa dentro do cenrio

    econmico mundi~ a sua atuao no Mercos~ assim como o crescente investimento do capital estrangeiro, visivelmente presente com o advento das privatizaes e a constante

    entrada de empresas estrangeiras no Brasil, podemos apontar os interesses econmicos e polticos como um dos grandes ftores de evidncia do portugus brasileiro. O conhecimento da lngua, sob esse aspecto, significa um instrumento de poder e sobrevivncia dentro do atual cenrio capitalista, questo mais do que evidente quando tomamos como exemplo a aprendizagem do ingls. Nesse sentido, tambm o interesse pela cultura restringe-se idia de "cultura-valor", que seria o equivalente geral para as produes de poder, ao lado do capital, que regula as produes econmicas e sociais (GUATTARI; ROLNIK,l996).

    No dificil, portanto, ouvirmos termos como cultura capitalista, cultura-valor, mercado cultur~ indstria c~ cultura global e um sem nmero de expresses que tentam, de alguma forma, resumir ou definir o lugar da cultura dentro da onda geral da globalizao (termo em si j bastante desgastado). O mundo transformou-se, as relaes mudaram, as fronteiras tendem a fundir-se, orientando-nos para a cultura mundializada, para a internacionalizao das particularidades. No entanto, embora estejamos imersos

  • 16

    num cotidiano povoado por milagres tecnolgicos, sobrecarga de informaes, bombardeio

    de modalidades diferentes de consumo, sejam elas cuhurais ou econmicas, reservamo-nos o direito de permanecermos um "brasil Brasil"(DaMatta, 1997); diferente sem dvida, mundializado sim, mas que no se homogeneizou com o resto do mundo, assim como

    nenhuma outra cultura particular.

    O Brasil, ento, oscila entre ser diferente e ser o mesmo. Rene, em si,

    elementos distintos que mostram, atravs da heterogeneidade, urna multiplicidade de

    matizes cuhurais que se constituem de elementos que vo desde as mais recentes inovaes

    tecnolgicas s mais ancestrais crenas como, por exemplo, o candombl. Isso no quer

    dizer, no entanto, que a cultura seja algo esttico, imutvel, encarcerado na antiga acepo de tradio cultural Pelo contrrio, atravs do continuo movimento e mudana que a

    cultura de um pais pode dialogar com outras culturas, como afinna Garca Canclini (1996, p.27): "A cultura um processo de montagem multinacional, urna articulao flexvel de partes, urna colagem de traos que qualquer cidado de qualquer pais, religio e ideologa

    pode ler e utilizar".

    Ao lado da assuno de que ao se ensinar ou aprender o portugus do Brasil,

    estamos tambm ensinando e aprendendo algo mais amplo, que extrapola o aspecto

    meramente lingstico, est o fto de que nas salas de aula de lngua estrangeira e segunda

    lngua, mesmo que nesta esteja sendo privilegada a cultura da lngua que est sendo aprendida, a perspectiva que tem sido colocada sempre a da lngua-cuhura-alvo, a lngua-

    cultura "hospedeira" ou estabelecida como objetivo da aprendizagem. Os aprendizes, no importando qual seja a sua cultura ou viso de mundo, na

    maioria das vezes, so tratados como urna massa homognea, a qual est ali para aprender a

    lngua, e ponto final. Mas como esta lngua ensinada ou aprendida se no h dilogo entre os sujeitos em interao? Se professores e alunos tm os seus papis fixos a desempenhar em detrimento de poderem ser eles mesmos?

    Ensinar e aprender urna nova lngua-cultura deve ser, portanto, um processo em

    duas vias: da lngua-cultura-alvo em relao s lnguas-culturas que esto ali em interao e

    vice-versa. Professores e aprendizes, desse modo, devem poder compartilhar na sala de

    aula, alm do conhecimento relativo lngua que est sendo ensinada e aprendida, toda

    urna rede de conhecimentos e informaes que fzem parte dos seus mundos culturais

  • 17

    especficos, fazendo de cada sujeito em interao, uma fonte complexa e diversficada de conhecimento potenciaL

    Nesse sentido, ser vrio significa tambm estar aberto ao contato com outras

    culturas e lfuguas; aprender uma outra lfugua pensando sobre ela, fzendo uso de

    estratgias que esto presentes no seu prprio modo de usar a lfugua materna. A lingua,

    ento, antes 'estranha', 'estrangeira', passa a significar um novo modo de articulao do

    sujeito com o seu mundo e com o outro. Essa integrao atravs da interculturalidade, no entanto, no tem estado presente, de maneira significativa, nos procedimentos adotados por

    professores de linguas estrangeiras dentro da sala de aula, tanto nos planejamentos de cursos e na eleio de abordagens orientadoras, como na seleo e produo de materiais

    didticos.

    Segundo a perspectiva que adotamos neste trabalho, aprender uma lingua, aprendendo sua cultura, ou melhor, vivenciando a lingua como cultura, significa mais do

    que uma simples eleio de enfoques metodolgicos, , antes de tudo, pensar o processo de

    ensino/aprendizagem de LE/L2 como algo mais amplo, que no se resume simples

    apreenso de aspectos estruturais de uma lingua nova, 'estranha', mas o contato com outro

    sistema de valores, de 'leitura do mundo', dentro do qual se inclui a lingua. A cultura,

    ento, que normalmente assume o papel secundrio nesse processo, em detrimento da

    forma lingstica, passa a ser a porta de entrada, o elemento fundador a partir do qual a

    experincia de ensinar e aprender se edifica, em busca da construo de um dilogo

    intercultural.

    Desse modo, este estudo pode nos prover de elementos para a elaborao de

    novas estratgias e procedimentos para a atuao do professor em sala de aula, para o planejamento de cursos e para a construo de materiais que valorizem professores e alunos como sujeitos culturais que so, os quais, quando interagem em busca do objetivo de ensinar e aprender uma nova lingua-cultura, pem em situao de confronto, troca e

    negociao mundos culturais e simblicos diversificados.

    O aprendiz de portugus do Brasil, portanto, deve aprender, mais do que tudo,

    ou melhor, alm de tudo, a ser tambm um pouco brasileiro; s assim poder ter acesso aos

    "becos secretos" da nossa lingua brasileira. E ns que ensinamos, por outro lado, devemos

    "abrir as portas" para aquele que chega, no como algum que veio somente buscar ou

  • 18

    aprender, mas tambm que contribui, com o seu prprio mundo, para que aprendamos em

    conjunto.

    1.3 PERGUNTAS DE PESQUISA

    A partir das breves consideraes expostas na parte introdutria deste estudo,

    definimos um ponto de partida, ou melhor, uma questo geral orientadora da pesquisa, a

    qual, mais do que pergunta a ser respondida, expe as nossas dvidas, inquietaes e

    intuies sobre modos de ensinar e aprender lnguas, de planejar cursos e produzir materiais didticos, de agir e tomar decises na prtica pedaggica cotidiana, considerando como

    foco especfico, neste caso, o ensino/aprendizagem de portugus LE!L2 atravs do dilogo

    intercultural. Desse modo, partimos de uma pergunta mais geral, a qual tem o potencial de

    desdobrar-se em outras:

    Como professor e alunos se posicionam quanto (s) sua(s) cultura(s) e (s) cultura(s) do outro em sala de aula de LE!L2 atravs do trabalho com uma abordagem de ensino e com um material didtico que se querem comunicativos e sensveis s culturas dos

    participantes do processo de aprendizagem?

    E, a partir da, que questes emergem como significativas com relao a:

    a)

    b)

    a interao entre sujeitos-mundos culturais diferentes e suas configuraes identitrias?

    ao desenvolvimento da aprendizagem do portugus como segunda

    lngna atravs do enfoque principal no uso comunicativo da

    lngua?

    1.4 ORGANIZAO DA TESE

    Este estudo orgamza-se, considerando as suas partes principais, em cmco

    captulos, alm das consideraes finais, referncias da bibliografia consultada e os anexos.

  • 19

    O Captulo 1, intitulado Pontos de partida, busca traar, em linhas gerais, os percursos que trilhamos no desenvolvimento da nossa pesquisa, alm de buscar situar os

    contextos e motivos que nos direcionaram para a sua realizao. Mais do que um captulo

    de introduo, o qual inclui, entre outras coisas, uma breve justificativa das escolhas que iizemos, desejamos explicitar, do modo mais objetivo possvel, os procedimentos de pesqwsa e tambm as orientaes tericas que nos guiaram. Neste espao, portanto,

    explicitamos a nossa pergunta principal de pesquisa, os sujeitos e cenrio que foram objeto da investigao, bem como os procedimentos metodolgicos que orientaram a nossa anlise

    e interpretao dos dados gerados.

    O Captulo 2 tem como objetivo principal fazer um breve reviso na literatura a respeito do conceito de cultura, sua evoluo no pensamento das cincias sociais, assim

    como os reflexos da idia que se construiu sobre o terna nas discusses contemporneas.

    Embora no tenhamos ambicionado fazer uma reviso exaustiva sobre o assunto, tentamos

    traar um breve panorama da evoluo do conceito, dando nfase a autores e idias que

    contriburam, de modo mais fecundo, para a sua edificao, para que ao final pudssemos construir ou reelaborar, a partir das leituras e diferentes contribuies, a idia de cultura que

    iria orientar o desenvolvimento do nosso estudo e as discusses subseqentes.

    A partir do Captulo 3, a nossa ateno volta-se para as reflexes sobre a cultura

    e a sua relao com a lingua, mais especificamente, no desenvolvimento do processo de

    ensino/aprendizagem de linguas estrangeiras ou segundas linguas. Neste captulo buscamos

    mostrar a importncia da relao lingua/cultura para a pedagogia de linguas, discutindo os

    motivos pelos quais tal compreenso deve estar presente em sala de aula para que se possa

    almejar ao desenvolvimento de processos de ensinar e aprender que privilegiem a relao entre culturas. Alm disso, destacamos algumas iniciativas e contribuies de

    pesquisadores, estudiosos e professores de linguas, as quais tm contribudo com o

    movimento geral que presenciamos hoje de valorizao da cultura e das relaes interculturais na esfera da educao, de maneira geral, e na pedagogia de linguas, de

    maneira especfica

    No Captulo 4 buscamos apresentar, a partir das leituras e reflexes

    desenvolvidas nos captulos anteriores, a nossa proposta de abordagem para o

    ensino/aprendizagem de linguas de acordo com a perspectiva de valorizao da cultura e

  • 20

    das relaes interculturais. Desse modo, definimos o nosso modelo de abordagem, a qual

    denominamos Abordagem Comunicativa lntercultural (ACIN), cujas orientaes terico-pedaggicas marcam as diferentes etapas de organizao da operao global de ensino: a

    concepo de lnguallinguagem, os conceitos de ensinar e aprender uma lngua-cultura, a

    configurao dos papis de professores e alunos, a elaborao de materiais didticos e, por

    :fim, a avaliao do processo de aprendizagem. O Captulo 5 tem como objetivo descrever as aes que foram desenvolvidas na

    realizao do curso de portugus para flantes de espanhol, o qual serviu de cenrio para a

    consecuo da nossa pesquisa emprica. Neste captulo, alm da anlise e discusso dos

    diferentes instrumentos de pesquisa que foram utilizados no decorrer do processo de

    investigao, tambm analisamos e discutimos as experincias de ensinar e aprender

    rt>.alizadas em sala de aula, luz da pergunta inicial que orientou o nosso estudo, assim corno a avaliao do processo aprendizagem como um todo.

    A partir das reflexes advindas dessa anlise e interpretao, objetivamos apresentar algumas consideraes que, embora no pretendam ser conclusivas, podem

    contribuir para sedimentar essa linha de investigao, alm de fornecer caminhos alternativos de reflexo e atuao para aqueles que vm o processo de ensinar e aprender

    uma LE/L2 como algo mais alm do que uma simples troca de contedos, isto , um espao

    de construo conjunta de conhecimentos entre lnguas-culturas diferentes. Nas partes finais do estudo, alm das referncias da bibliografia consultada para

    o desenvolvimento do trabalho, apresentamos, em trs anexos, alguns documentos que so

    importantes como fonte de consulta. No Anexo A, apresentamos os instrumentos e

    procedimentos de pesquisa utilizados, alm de uma pequena amostra da transcrio das aulas; no Anexo B, as diferentes atividades realizadas em sala de aula, assim como os

    aspectos formais sistematizados a partir das escolhas dos alunos; e, no Anexo C, as duas

    primeiras unidades do material didtico Aquarela Brasil- Lngua e Cultura para Falantes

    de Espanhol.

  • 21

    1.5 METODOLOGIA

    1.5.1 Enfoque terico

    O pesquisador, ao predispor-se a estudar um determinado recorte da realidade,

    como o estudo de uma classe de alunos de portugus como segunda lngua, deve ter em

    mente a complexidade de aspectos que esto em jogo e tambm as dificuldades que ir enfrentar para dar conta desta realidade. Ele tambm deve estar apto para eleger o arcabouo terico mais adequado consecuo desta tarefu, o qual fornea os procedimentos e instrumentos adequados de observao e anlise que permitam, alm da

    gerao e apreenso de dados, a realizao de uma adequada interpretao do fenmeno

    estudado.

    Nesse sentido, a nossa pesquisa desenvolveu-se de acordo com a perspectiva da

    pesqwsa etnogrfica em sala de aula, utilizando-se de tcnicas e instrumentos de observao que privilegiam a anlise qualitativa dos registros obtidos. Consideramos o

    arcabouo terico e as experincias de pesquisas j desenvolvidas em outros estudos de base etnogrfica2, partindo do pressuposto de que a sala de aula um ambiente interacional diversificado, no qual esto em evidncia aspectos fisicos, cognitivos, sociais, pessoais e

    afetivos.

    De acordo com Cavalcanti e Lopes (1991), durante muito tempo, no contexto educacional brasileiro, a sala de aula foi caracterizada como ambiente de ensino e

    no de pesquisa Essa realidade, no entanto, sofreu uma mudana significativa com o

    surgimento, nos ltimos anos, de grande nmero de pesquisas, sobretudo na rea de

    ensino/aprendizagem de lnguas, as quais privilegiam o contexto de interao em sala de

    aula. As pesquisas em sala de aula, dessa forma, considerando diferentes mtodos e instrumentos de pesquisa3, passaram a se interessar pelo que ocorre durante o processo de

    ensino/aprendizagem, explorando a sala de aula como ambiente privilegiado de construo

    2 Vide Watson-Gegeo (1988); Canado (1990 e 1994); Almeida Filho et al. (1991); Cavalcanti e Lopes (1991); Consolo (1992); Andr (1995); Hammersley e Atkinson (1995); Erickson (1996); Duranti (1997), Denzin e Lincoln (1998); dentre outros. 3 Anlise interativista; pesquisa de base antropolgica: pesquisa iluminativa, pesquisa participante, pesquisa-ao, pesquisa etnogrfica (Cavalcanti e Lopes, 1991; Andr, 1995).

  • 22

    do conhecimento, no qual o professor passa a atuar como pesquisador e observador crtico

    da sua prpria prtica.

    Dentro da tradio da abordagem de pesquisa qualitativa, que teve as suas razes

    no final do sculo XIX, no mbito das cincias sociais, variados so os mtodos e instrumentos que podem ser adotados. A princpio, os mtodos qualitativos ou

    interpretativistas de pesquisa caracterizam-se pela oposio aos chamados mtodos

    quantitativos, que seguem a tradio positivista de cincia, a qual privilegia o tratamento

    experimental dos dados atravs da manipulao de variveis e seciona a realidade em

    unidades a serem medidas e estudadas isoladamente. De acordo com uma perspectiva

    idealista-subjetivista, a abordagem qualitativa privilegia o estudo do fenmeno no seu contexto social, considerando todos os componentes envolvidos na situao e suas inter-

    relaes. Dessa forma, "[ ... ] busca a interpretao em lugar da mensurao, a descoberta em lugar da constatao, valoriza a induo e assume que fatos e valores esto intimamente

    relacionados, tornando-se inaceitvel uma postura neutra do pesquisador".(ANDR, 1995, p.17)

    Para Denzin e Lincolu (1998), a pesquisa qualitativa, como um conjunto de prticas interpretativas, no privilegia um nico mtodo ou procedimento em detrimento de

    outros; por isso mesmo, o seu campo de atuao amplo e sua definio, na maioria das

    vezes, no muito clara. Na opinio dos autores, qualquer descrio sobre o que constitui a

    pesquisa qualitativa deve considerar um complexo referencial histrico, pois, em diferentes

    momentos, a pesquisa qualitativa significou diferentes coisas. possvel identificar, por exemplo, cinco grandes momentos da histria da pesquisa qualitativa: o perodo tradicional

    (1900-1950), influenciado pelo positivismo; o perodo modernista (1950-1970) e o dos gneros (1970-1986), influenciados pelo surgimento das consideraes ps-positivistas; o perodo da crise da representao (1986-1990), que retrata a busca dos pesquisadores em situar a si mesmos e aos objetos nos textos reflexivos; e o atual, que se caracteriza por uma nova sensibilidade e por uma critica aos paradigmas anteriores.

    Segundo os autores, a pesquisa qualitativa atual um 'multimtodo' que utiliza a abordagem interpretativa sem privilegiar uma metodologia em detrimento de outra, que

    busca estudar o fenmeno no seu prprio ambiente, interpretando-o a partir dos

    significados que lhe so atribudos pelas pessoas. Para tanto, o pesquisador utiliza diversos

  • 23

    mtodos e abordagens, entre eles os mtodos e as tcnicas da etnometodologia, da

    fenomenologia, da hermenutica, da etnografia e dos estudos culturais. Seu material emprico , tambm, obtido atravs de tcnicas distintas que vo desde estudos de caso a

    relatos de experincia pessoal, histrias de vida, entrevistas, observaes participantes e no-participantes, com o objetivo de descrever os momentos, as rotinas e os significados para o indivduo. De modo geral, podemos afirmar que a pesquisa qualitativa apresenta duas caractersticas fundamentais: o compromisso com urna abordagem hermenutica e,

    segundo, urna crtica poltica e aos mtodos positivistas. O adjetivo 'qualitatvo' denota a nfase no processo e nos significados que so rigorosamente avaliados em termos de

    qualidade, quantidade, intensidade e freqncia. Implica, tambm, a percepo da realidade como fruto de um processo de construo e de atribuio social de significado e de valor.

    Nos ltimos anos, diferentes mtodos e tcnicas tm sido utilizados, em

    variados campos do saber, sobretudo nas cincias sociais, reunidos sob o paradigma da pesquisa qualitativa ou interpretativista. No entanto, devido variedade de possibilidades tericas e metodolgicas que este paradigma oferece, necessrio que o pesquisador

    delimite o seu campo terico e defina os mtodos e instrumentos mais adequados sua

    pesquisa.

    Trazendo essa discusso para o campo da educao, a pesquisa de cunho

    qualitativo tem encontrado terreno frtil, a qual rene diferentes enfoques: etnogrfico, observacional participativo, estudos de caso, interacionista, fenomenolgico, construtivista

    etc. Segundo Erickson (1986), estes enfoques renem fortes semelhanas entre si, por um lado, e, por outro, possuem caractersticas que os tomam levemente diferentes. Por isso,

    adota o termo interpretativo para designar todo conjunto de enfoques que renem a investigao observacional participativa, atribuindo trs principais razes para a escolha do termo: a) mais inclusivo que muitos dos outros, como, por exemplo, a etnografia ou estudo de caso; b) evita a conotao de se atribuir a estes enfoques caractersticas essencialmente no quantitativas em oposio ao termo qualitativo, urna vez que se pode :fuzer uso de certo tipo de quantificao no desenvolvimento de pesquisas; c) reala o aspecto principal que rene os diferentes enfoques de investigao: o interesse do

    pesquisador na elucidao e exposio do significado humano e da vida social. Para

  • 24

    Erickson ( 1986, p.97), o que caracteriza uma pesquisa como interpretativa ou qualitativa o enfoque e a inteno que os substanciam e no o tipo de tcnica ou procedimento de

    registro de dados. Ou seja, no se deve confundir tcnica de investigao com mtodo de investigao:

    Do meu ponto de vista, o significado primordial dos enfoques interpretativos de investigao sobre o ensino se refere a questes de contedo, mais que de procedimentos. O interesse no contedo interpretativo leva o investigador a buscar mtodos que resultem apropriados para o estudo desse contedo. Se a investigao interpretativa sobre o ensino na aula h de cumprir um papel significativo na investigao educacional, isto se dever ao que pode aportar esta investigao a cerca de seus objetos essenciais: a) a ndole das aulas como meio social e culturalmente organizado para a aprendizagem; b) a ndole do ensino como um, e somente um, dos aspectos do modo de aprendizagem reflexivo; e c) a ndole (e o contedo) das perspectivas de significao do professor e do aluno como elementos intrnsecos ao processo educativo.

    De acordo com esse paradigma de pesquisa, de cunho interpretativo, o mtodo

    etnogr:fico, ou etnografia, teve o seu surgimento e principal desenvolvimento na antropologia, onde surge, a princpio, como tentativa de descrio da cultura e da

    sociedade. Segundo Duranti (1997), nessa perspectiva, o interesse dos etngrafos volta-se para o que as pessoas fuzem em suas vidas dirias; o que constroem e usam; como

    controlam os acessos aos bens e tecnologia; o que sabem, pensam e sentem; como tomam decises, classificam e organizam o mundo sua volta e como se comunicam uns com os outros. A princpio, pelo menos no seu sentido fundamental, a etnografia representa, como destaca Hammersley e Atkinson (1995, p. 2), "[ ... ] a forma mais bsica de pesquisa social. No apenas porque tem uma longa histria, mas tambm porque apresenta uma semelhana

    com a forma rotineira atravs da qual as pessoas do sentido ao mundo na sua vida

    cotidiana".

    Watson-Gegeo (1988) define a etnografia como o estudo do comportamento dos indivduos em seu meio natural de ocorrncia, sempre com o foco na interpretao cultural

    do comportamento humano. Desse modo, seria objetivo do pesquisador realizar uma descrio e explanao interpretativa que d conta do que as pessoas fuzem em

    determinado contexto, como a sala de aula, o bairro ou a comunidade, considerando o

    modo como interagem entre si e como compreendem as suas aes.

  • 25

    A qualificao 'etnogrfico' tem sido utilizada, muitas vezes, em diferentes

    reas de pesquisa, sobretudo na educao, como sinnimo de 'qualitativo' ou 'naturalstico'. De acordo com Watson-Gegeo (1988, p.576), em seu sentido primrio, o termo 'qualitativo' define-se pelo modo como aborda o objeto de pesquisa, em oposio ao termo 'quantitativo', que diz respeito mensurao, como j salientamos anteriormente. A autora ressalta que "[ ... ] a pesquisa qualitativa um termo guarda-chuva", o qual inclui muitos tipos de abordagens de pesquisas e tcnicas, entre elas a etnografia, o estudo de

    caso, a induo analtica, a anlise de contedos, a semitica, a hermenutica, histrias de vida e tambm certos tipos de abordagens estatsticas e computacionas. J a denominao

    'pesquisa naturalstica' implica que o pesquisador conduz a sua observao em ambientes

    naturais, em desenvolvimento, nos quais as pessoas vivem, trabalham, interagem etc. Considerando estas perspectivas, segundo Watson-Gegeo (1988, p.577), a etnografia pesquisa qualitativa e tambm naturalstica, como muitos outros tipos de pesquisa

    qualitativa. Nesse sentido, "[ ... ] a pesquisa etnogrfica difere de outras formas de pesquisa qnalitativa no que diz respeito ao holismo e ao modo como trata a cultura como instncia integral de anlise (e no apenas como um dos muitos fatores a serem considerados)".

    O grande nmero de estudos que tm sido desenvolvidos no mbito da

    educao, nos ltimos anos, vem buscando, dessa forma, eleger princpios e estabelecer procedimentos de pesquisa dentro da perspectiva dos estudos de tipo etnogrfico. Entre os princpios que caracterizam a pesquisa etnogrfica, Watson-Gegeo (1988) destaca trs aspectos fundamentais. O primeiro deles refere-se ao fato de que a etnografia trata do

    comportamento das pessoas em seus grupos e dos padres culturais que determinam esse

    comportamento. No desenvolvimento de um estudo etnogrfico de uma sala de aula de segunda lngua, por exemplo, alm da observao e interpretao dos modos de

    organizao do grupo como um todo, tambm despertam o interesse do pesquisador as diferenas individuais, os modos como os alunos interagem com a lngua e desenvolvem o

    seu processo de aprendizagem, os quais so importantes para estabelecer variaes de comportamento representativos do grupo em questo.

    O segundo princpio destaca o carter holistico da etnografia, ou seja, qualquer aspecto da cultura ou do comportamento do grupo estudado deve ser descrito e explicado,

    levando-se em conta o amplo sistema do qual faz parte. Considerando-se, por exemplo, a

  • 26

    anlise da interao entre professor-aluno em uma aula de lngua estrangeira, no s seria do interesse do pesquisador o contexto imediato no qual se d a interao, mas tambm a sua relao com outros contextos mais amplos, os quais incluem outros tipos de interao em sala de aula: a classe como um todo, com suas caractersticas e bloqueios, o contexto da escola ou ambiente no qual se insere o grupo, a comunidade etc.

    Watson-Gegeo (1988) destaca, ainda, um terceiro princpio fundamental, o qual ressalta que o levantamento dos dados etnogrficos deve partir de um direcionamento terico ou estrutura terica que servir de orientao para o pesquisador na considerao dos diferentes aspectos que envolvem a situao e no levantamento de certos tipos de

    perguntas de pesquisa. O papel da teoria, nesse sentido, orientar a observao e interpretao dos ftos pelo pesquisador, ajudando-o a decidir e definir que tipos de evidncias so importantes ou significantes para responder s perguntas formuladas no princpio do estudo, e no fornecer guias ou padres preconcebidos de observao.

    Os princpios apontados, os quais caracterizam o desenvolvimento de pesquisas de tipo etnogrfico, no somente salientam a importncia da construo de um arcabouo terico que oriente as aes do pesquisador, mas tambm refora o fto de que a observao do grupo ou comunidade a ser estudado e a posterior interpretao dos fatos observados devem considerar os diferentes contextos culturais e de atuao dos indivduos, como instncias significativas que se interpenetram e exercem influncia urnas nas outras.

    Ao estudar uma sala de aula de lngua estrangeira ou segunda lngua, por exemplo, o interesse do pesquisador volta-se para o que os alunos fazem quando aprendem

    uma lngua, ou seja, como se comportam durante o processo de ensino/aprendizagem e como se relacionam com os outros, o que eles sabem, pensam e sentem, como eles tomam decises, quais os padres culturais que esto ali representados, como se processa a organizao social da classe e que outros contextos interferem nessa organizao etc. Nesse sentido, como bem ressalta Watson-Gegeo (1988, p.579), "( ... ] cada situao investigada pelo etngrafo deve ser compreendida em seus prprios termos", sempre partindo da perspectiva dos indivduos envolvidos na situao.

    De acordo com os princpios expostos neste breve panorama, os quais fundamentam a pesquisa de tipo etnogrfico, desenvolvemos o nosso trabalho de pesquisa, estabelecendo os sujeitos, ambientes, contextos e situaes envolvidos no estudo, assim

  • 27

    como as tcnicas, procedimentos e instrumentos de observao e gerao de dados. A

    seguir, descrevemos, de modo objetivo, os principais elementos e procedimentos envolvidos neste processo.

    1.5 .2 Sujeitos e cenrio da pesquisa

    A pesquisa emprica que furneceu os dados para a anlise desenvolvida neste

    trabalho teve como cenrio uma sala de aula de segunda lngua, no caso especfico, uma sala de aula de portugus para falantes de espanhol. O curso em questo foi promovido pela

    Secretaria de Extenso de uma universidade paulista, no perodo de 8 a 19 de julho de 2002. As aulas eram de segunda sexta-feiTa, das 8:30 s 12:00h, perfazendo uma carga

    horria total de trinta horas de curso, ao longo de duas semanas.

    O curso exigiu, como pr-requisito para a efetuao da matricula, o aluno ser

    estrangeiro e ter como lngua materna o espanhol. No houve qualquer exigncia quanto ao

    nivel de proficincia do aluno, o qual j poderia ter freqentado cursos de portugus anteriormente ou nunca ter tido contato com o ensino formal da lngua

    No total, matricularam-se dez alunos no curso, todos provenientes de paises

    latino-americanos, com idades que variavam entre 22 e 46 anos. O Quadro!, a seguir, mostra os pases de origem dos alunos, assim como o grau de formao e idade de cada um

    deles, tempo de moradia no Brasil e informaes sobre experincias anteriores na

    aprendizagem formal do portugus:

  • 28

    QUADRO 1- Dados dos alunos do curso

    Aluno Pas Formao Idade Tempo em que Experincia mora no Brasil anterior em

    portn2t1s Alcira Peru Superior 32 anos 4 meses 3 meses

    Carmem Chile Superior 43 anos 20anos --Beth Peru Superior 37 anos 3 meses 3 meses

    Del Carmem Bolvia Superior incompleto 43 anos 7 meses 4 meses Nancy Equador Superior incompleto 22 anos 5 meses --Piedad Colmbia Superior 27 anos 4 meses --Srgio Chile Ps-graduao 46 anos 3 meses --

    incompleta Suzana Chile Superior incompleto 39 anos 3 meses --

    Uba Colmbia Nvel Mdio 41 anos 14 anos --Yaneth Colmbia Superior 24anos 3 meses --

    Corno demonstra o Quadro 1, os alunos eram provenientes de cinco pases da Amrica Latina: Peru, Chile, Bolvia, Equador e Colmbia. Dos dez alunos, seis possuam

    grau de formao superior, trs, superior incompleto, e, somente um, nvel mdio de

    formao.

    Outro dado importante sobre o pblico-alvo do curso o fato de que 70% dos

    alunos nunca haviam freqentado cursos de portugus anteriormente, ou seja, no mantiveram contato com a lingua em situao formal de ensino. Dos dez alunos, somente

    Alcira, Beth e Del Carmem freqentaram um curso de portugus, com durao de trs

    meses, na mesma universidade onde o curso de extenso se realizou. exceo de Carmem e Uba, que j moravam no Brasil h 20 anos e 14 anos, respectivamente, a mdia de tempo de permanncia dos alunos no Brasil era de quatro meses.

    O grupo de alunos participantes do curso caracterizou-se, por um lado, por urna

    certa homogeneidade, visto que eram todos falantes de espanhol, advindos de paises latino-

    americanos, e a maioria morando h pouco tempo no Brasil. Embora suas estadias no Brasil fossem por diferentes motivos (trabalho, estudo, acompanhando a fiunlia, buscando

    4 O uso dos primeiros nomes dos alunos foi wna opo metodolgica que fizemos no sentido de respeitar as suas identidades, maotendo os nomes atravs dos quais desejavam ser chamados, como, por exemplo, pelo apelido, como "Uba". Este tipo de opo, no entaoto, deve estar de acordo com os desejos dos alunos, assim como carece de uma autorizao prvia para tal, como nos foi dada aoteriormente. Nos comentrios sobre os procedimentos de traoscrio e aolise dos dados voltaremos a tratar deste assunto.

  • 29

    melhores condies de trabalho etc.) era desejo comum, e mais forte, melhorar o seu desempenho em portugus, sobretudo a competncia comunicativa oral, para melhor poderem integrar-se sociedade. Por outro lado, o grupo tambm era marcado pela

    heterogeneidade, vez que apresentavam modos variados de contato com a lngua-alvo na comunicao cotidiana, assim como graus diferentes de proficincia e conhecimento da

    lngua. Essas questes, no entanto, sero abordadas de maneira mais detalhada no captulo

    de anlise dos dados.

    1.5.3 Procedimentos de pesquisa

    O registro dos dados realizou-se mediante a observao participante da sala de aula de portugus para falantes de espanhol, no contexto anteriormente apresentado. O trabalho de observao obedeceu a um roteiro no-estruturado, ou seja, no partiu da considerao de variveis ou cdigos preestabelecidos. Dessa forma, orientou-se por um roteiro flexvel, o qual foi avaliado e reestruturado durante todo o procedimento de registro.

    O pesquisador atuou como professor, ficando, dessa forma, diretamente envolvido com o processo de ensino/aprendizagem, ou seja, no exerceu somente o papel de observador. No desejamos dizer com isto que o pesquisador-observador no seja tambm participante. No entanto, o seu grau de interao com o fenmeno estudado menor do que o daquele que tambm atua como professor, situao que caracterizou a

    nossa pesquisa. Nesse sentido, ramos, ao mesmo tempo, pesquisador e objeto de pesquisa. analistas e crticos das aes e situaes das quais tambm fziamos parte.

    Durante o processo de observao, realizamos, como parte dos procedimentos para o registro dos dados, a gravao em udio das aulas correspondentes ao

    desenvolvimento de trs unidades do material didtico produzido para o curso. As unidades em questo foram distribudas ao longo de dez aulas, cinco por semana, com a durao de

    trs horas cada urna, perfzendo um total de 25 horas, aproximadamente, de gravao, visto que alguns momentos das aulas, como informes do professor e realizao de atividades, no

    eram relevantes registrar. Alm da gravao, em udio, o professor-pesquisador acompanhou o desenvolvimento do processo atravs de anotaes em forma de dirio de

    campo ou dirio de registro.

  • 30

    Aos alunos sujeitos da pesquisa, os dez participantes da turma em questo, foram aplicados dois tipos de questionrios. O primeiro objetivou registrar os dados pessoais dos alunos, bem como identificar suas experincias anteriores com a lingua-alvo e

    com outras linguas estrangeiras; os motivos pelos quais escolheu aprender portugus; os

    seus interesses e expectativas com relao aprendizagem da lingua e tambm com relao

    ao curso; e, finalmente, as suas crenas sobre alguns aspectos que envolvem o

    ensino/aprendizagem de linguas estrangeiras, como o papel da gramtica, a abordagem da

    cultura da lingua-alvo, a nfase no uso da lingua etc. Este questionrio, o qual permitiu ao

    pesquisador ter uma viso geral do grupo em questo, foi aplicado no primeiro dia de aula e

    foi respondido em classe.

    O segundo questionrio foi aplicado aps a realizao do curso, no ltimo dia de

    aula, e tambm foi respondido em classe. Esse conjunto de perguntas objetivou obter informaes sobre o desenvolvimento do curso e a avaliao dos alunos quanto a diferentes

    aspectos envolvidos nesse processo: os pontos positivos e negativos, os aspectos que

    despertaram maior ou menor interesse e a avaliao dos alunos quanto ao seu processo de

    aprendizagem.

    A fim de aprofundar as questes respondidas nos dois questionrios e tambm esclarecer os problemas observados durante o desenvolvimento do curso, realizamos, com

    os alunos, entrevistas semi-estruturadas, as quais aconteceram em perodo subseqente

    realizao do curso e foram tambm gravadas em udio5

    De posse dos dados registrados, ou seja, as gravaes de aulas, os questionrios, as entrevistas e as anotaes e registros do pesquisador, o primeiro passo do trabalho foi a

    transcrio das fitas gravadas em udio, correspondentes s dez aulas ministradas na turma. Adotamos como procedimento, a princpio, realizar esta tarefu logo aps a realizao das

    aulas, ou, pelo menos, dentro de um espao de tempo no muito prolongado, o que nem

    sempre foi possvel. A adoo desse procedimento importante, e sempre desejvel em todo processo de investigao, como cuidado para evitar que dados importantes,

    provenentes das observaes e percepes do professor-pesquisador, sejam desperdiados pelo esquecimento.

    5 Vide, no Anexo A, os questionrios I e 2 e o roteiro da entrevista realizada com os alunos.

  • 31

    Tambm o processo de transcrio contou com o importante auxlio das

    anotaes feitas no dirio de campo do professor-pesquisador, o qual serviu como guia e

    auxiliar na elucidao de dvidas e no fornecimento de pistas para a subseqente anlise e

    interpretao dos dados, como nos sugere Canado (1994). As transcries das aulas e das entrevistas obedeceram a alguns critrios de

    transcrio adaptados de Marcuschi (1986) e das normas de transcrio de inquritos do Projeto NURC6 No entanto, na identificao dos flantes, tanto nas interaes em sala de aula quanto nas entrevistas, optamos por utilizar o nome prprio de cada participante,

    exceo do professor-pesquisador, identificado por (P). Embora essa prtica no seja comum ou muito freqente nas pesquisas desenvolvidas nas reas da Lingstica e

    Lingstica Aplicada no Brasil, como ressalta Garcez (2002), decidimos escapar de um sistema de identificao que representa os participantes de um processo de fla-em-

    interao atravs de papis fixos, como (P) professor/(A) aluno, ou (Ent.) Entrevistador/(Inf.) Informante7 Apenas mantivemos a identificao do professor como (P) para facilitar a compreenso do leitor com relao ao sujeito que estava guiando e orientando as experincias de ensinar e aprender.

    Depois de feitas as transcries das aulas e das entrevistas, e juntamente com os questionrios e anotaes do professor-pesquisador, procedemos anlise dos dados.

    A anlise teve incio com a manipulao exaustiva dos registros, ou seja, com o trabalho minucioso de leitura e anotao dos aspectos percebidos, comparaes e

    cruzamentos de informaes, assim como o levantamento de elementos coincidentes e

    contrastantes. A partir desta primeira etapa, os registros obtidos foram comparados e

    relacionados aos objetivos e focos centrais da nossa pesquisa. Aps todo este processo de anlise, anotaes e comparaes, chegamos aos dados finais, os quais foram interpretados

    com o objetivo de nos orientar a construir possveis contribuies tericas para a rea de ensino/aprendizagem de lnguas. (COHEN, 1989 CAVALCANTI; LOPES, 1991; CANADO, 1994).

    6 Vide Anexo A. 7 A atividade de identificao de flantes nas transcries de fuJa-em-interao social tem sido wn dos principais focos de discusso na rea da pesquisa em estudos da linguagem. A polmica a respeito desse tema envolve, sobretudo, a responsabilidade do analista da transcrio ao atribuir determinadas categorias identitrias aos participantes da interao, em detrimento de outras que poderiam ser relevantes para eles. Para maior aprofundamento do assunto, vide os artigos de Schegloff (1997), Billig (1999), Garcez (2002), entre outros.

  • 32

  • 33

    2- O LUGAR DA CULTURA

    2.1 A IDIA DE CULTURA

    2.1.1 O comeo do caminho

    Discutir enfoques culturais, conseqentemente, falar de cultura, no constitui

    empreendimento fcil. Por um lado, devido ao prprio emaranhado de definies e

    conceitos que cercam o termo ao longo de sua evoluo no desenvolvimento das cincias

    sociais. Por outro, pela dificil tarefa de se definir e escolher que temas e reas de interesse

    culturais devem ser abordados, sem correr o risco de tropear nos esteretipos, to

    freqentes no cotidiano da sociedade, assim como nos planejamentos de cursos e elaborao de materiais didticos voltados para o ensino de lnguas estrangeiras.

    Nas ltimas dcadas, temos assistido a uma retomada do termo cultura, o qual

    tem freqentado os mais diferentes campos semnticos, dentro e fora do ambiente

    acadmico. Essa proliferao e massificao da noo de cultura tem por vezes contnbudo

    para uma certa banalizao do termo e, no raro, para uma confuso conceitual, a qual tem

    ensejado um novo movimento de discusso sobre o que a cultura e o que ela representa, por parte de tericos e pesquisadores da contemporaneidade.

    No entanto, o que buscamos poder chegar a uma idia de cultura que, mais do que um conceito abrangente e totalizador, nos fornea ferramentas para compreender o

    'estar no mundo' do homem e todos os aspectos que envolvem essa vivncia, dentro de seu

    grupo especifico ou fora dele. Como parte dessa empreitada, precisamos voltar um pouco

    no tempo, refletir, mesmo que de maneira breve, sobre alguns pontos de parada nessa longa

    estrada na qual se desenvolveu, e ainda se desenvolve, um conjunto de idias e pressupostos sobre uma das mais importantes dimenses da vida humana, ou seja, a dimenso cultural.

    Em seu livro A noo de cultura nas cincias sociais, Cuche (1999) desenvolve uma genealogia do conceito de cultura, partindo da considerao do prprio significado da

    palavra. A evoluo semntica decisiva do vocbulo deu-se na Frana, a partir do sculo

    XVII, sendo depois transferida por emprstimo a outras lnguas, como o ingls e o alemo.

  • 34

    No entanto a palavra j figurava no vocabulrio francs desde o sculo XIII, significando "[ ... ] o cuidado dispensado ao campo ou ao gado ou parcela de terra cultivada". No comeo do sculo XVI, no entanto, o vocbulo j no significa o estado da coisa cultivada, mas surge com a acepo de "ao de cultivar a terra", (CUCHE, 1999, p.l9).

    A concepo de cultura num sentido figurado, significando a cultura do esprito,

    do desenvolvimento de uma faculdade, somente surgir a partir da segunda metade do

    sculo XVI. Esse conceito, no entanto, no ser bem aceito no meio intelectual e acadmico

    at o sculo XVIII. A partir deste momento, o termo comea a exercer uma certa

    imposio, passando a ser utilizado, inicialmente, seguido de complementos, como:

    "cultura das artes", "cultura das letras", "cultura das cincias". Depois, num movimento

    crescente, 'cultura' se libera dos seus complementos e passa a ser empregada sozinha, para

    designar a formao, a educao do esprito. Em seguida, inversamente ao que foi

    observado anteriormente, a cultura deixa de ser vista como ao de iustruir e volta a

    representar estado, mas "[ ... ] estado do esprito cultivado pela instruo, estado do indivduo 'que tem cultura"'. Este ser o uso consagrado no fim do sculo XVIII, o qual estigmatiza "um esprito natural e sem cultura", estabelecendo a oposio entre 'natureza' e

    'cultura'.Com a influncia dos pensadores do Iluminismo, para os quais a oposio

    'natureza' e 'cultura' era fundamental, a palavra assume uma acepo mais ampla, passa a

    representar um carter distintivo da espcie humana: "[ ... ] a sorna dos saberes acumulados e transmitidos pela humanidade, considerada como totalidade, ao longo da sua

    histria"(CUCHE, 1999, p. 20-21). No decorrer do sculo XIX, a preocupao com a reflexo sobre o homem, a

    sociedade e a questo maior da diversidade humana contribuiu para a criao da sociologia

    e da etnologia como cincias autnomas. O ponto principal de reflexo, sobretudo para a

    etnologia, centrava-se na compreenso da diversidade humana, partindo do postulado,

    herdado do Iluminismo, da especificidade humana, da unidade do homem. Como um

    caminho para se pensar a diversidade na unidade, sem lanar mo de uma resposta biolgica, como a simples diferena de 'raas', os etnlogos vo eleger o conceito de

    'cultura' como instrumento privlegiado para a sua reflexo. No entanto, embora nesse

    momento o vocbulo estivesse em evdncia, ele era utilizado num sentido estritamente

    normativo. Os fundadores da etnologia e, de uma maneira geral, os pensadores da poca

  • 35

    vo atribtrir ao termo um contedo puramente descritivo. O interesse era descrever o que

    a cultura, tal como aparece nas sociedades humanas, e no o que ela deve ser. Por ser uma

    cincia ainda em constituio, cuja influncia no meio intelectual da poca no era decisiva, a etnologia permitiu-se ficar parte da discusso sobre a oposio entre 'cultura'

    e 'civilizao', a qual ainda dominava o cenrio intelectual. Essa relativa autonomia

    epistemolgica contribuiu para a introduo do conceito de cultura, com aceitaes

    desiguais, nos diferentes pases onde a etnologia dava incio ao seu desenvolvimento. No

    entanto, no havia um entendimento entre as diferentes 'escolas' sobre o uso do conceito,

    sobretudo com relao dvida sobre a necessidade de empreg-lo com uma acepo

    universalista ou particularista: a Cultura ou as culturas (CUCHE,l999, p.35). O que fundamentou, de forma mas direta, a busca por um conceito de cultura

    foi o dilema, que j possua razes na Antiguidade com os filsofos gregos e se estendeu at os nossos dias, da conciliao da unidade biolgica e a grande diversidade cultural humana.

    Buscando resolver esse impasse que as diferentes cincias buscaram elucidar/constrtrir

    um conceito de cultura que fosse vlido cientificamente. Nessa taref, um dos ambientes

    mas frteis de discusso se deu no interior da antropologia. A fala de Geertz (1978, p.33) bem clara quanto a essa misso:

    A grande variao natural de formas culturais , sem dvida, no apenas o grande (e desperdiado} recurso da antropologia, mas o terreno do seu mais profundo dilema terico: de que maneira tal variao pode enquadrar-se com a unidade biolgica da espcie humana?

    As primeiras tentativas mas sistemticas de se constrtrir um conceito de cultura que conseguisse resolver o 'velho' dilema referido anteriormente, e que ao mesmo tempo

    tivesse fora corno instrumento cientfico, tiveram como fonte de inspirao as teorias do

    determinismo biolgico e do determinismo geogrfico, muito populares no final do sculo

    XIX e incio do sculo XX. Essas teorias defendiam a idia de que a diversidade cultural

    humana condicionada por duas principas variveis: o carter biolgico e o espao

    geogrfico. A primeira delas atribua s diferenas genticas dos povos a diversidade

    cultural observada Desse modo, eram comuns, na poca, as afirmaes de que

    determinadas 'raas' possuam capacidades especficas inatas, enquanto outras eram

    privadas dessas capacidades. A segunda teoria, por sua vez, considerava que as

  • 36

    especificidades culturais dos povos eram condicionadas por diferenas do ambiente fisico,

    da geografia circundante. No entanto, nem o determinismo biolgico nem o determinismo geogrfico foram capazes de resolver o impasse de se compreender a unidade e a

    diversidade da espcie humana, uma vez que as diferenas entre os homens no podiam ser explicadas"[ ... ] pelo seu aparato biolgico ou pelo seu meio ambiente"1

    A primeira concepo de cultura como conceito cientfico, o qual reconhecido,

    ainda hoje, como o primeiro conceito antropolgico de cultura, foi formulado por Edward Burnett Tylor (1832-1917). Sintetizando o termo germnico Kultur e a palavra francesa civilisation, Tylor utilizou o vocbulo em ingls Culture, e assim o definiu: "[ ... ] tomado em seu amplo sentido etnogrfico este o todo complexo que inclui conhecimentos, crenas, arte, moral, leis, costumes ou qualquer outra capacidade ou hbitos adquiridos pelo

    homem como membro de uma sociedade" (LARAIA, 1999, p.25). O grande mrito de Tylor, considerado o fundador da antropologia britnica, foi a sua preocupao

    metodolgica, a busca por elaborar um conceito de cultura que pudesse auxiliar a abordagem efetiva dos ftos culturais de um modo geral e sistemtico. Segundo Cuche

    (1999), ele foi o primeiro a se dedicar ao estudo da cultura sob diferentes aspectos: materiais, simblicos, corporais, entre outros, e em todos os tipos de grupos humanos.

    No entanto, o conceito desenvolvido por Tylor sofreu, e ainda sofre, um grande

    nmero de criticas, no s formuladas por seus contemporneos, como Franz Boas, mas tambm por grande parte dos estudiosos sobre cultura que o sucederam. A critica principal

    tinha como ponto central uma certa reao s idias defendidas pelas teorias evolucionistas

    da cultura, as quais estabeleciam, atravs da comparao entre as diferentes culturas, o lugar pertencente a cada uma delas na escala evolutiva, ficando, de um lado, as culturas

    primitivas e, de outro, as culturas mais avanadas. Era possvel, ento, como acreditavam

    os evolucionistas, cujo maior representante era Tylor, descobrir as leis universais de funcionamento das sociedades e culturas, alm das leis e estgios gerais de evoluo pelos

    quais as culturas primitivas passariam at chegar ao topo da escala, tornando-se uma cultura

    1 A partir do comeo do sculo XX, muitos antroplogos, entre eles, Franz Boas, Wissler, Alfred Kroeber, Margareth Mead, Felix Keesng, Marshal Sahlins, refutaram essas teorias, demonstrando, atravs de exemplos colhidos na observao de diferentes grupos humanos, que possvel e comum existirem diferenas culturais muito grandes entre povos que habitam o mesmo ambiente fisico, e que no existe correlao significativa entre as caractersticas genticas dos diferentes grupos e o seu comportamento cultural (LARAIA, Roque de Barros. Cultura: um conceito antropolgico. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1999. 116 p.).

  • 37

    'civilizada'. Embora esse "todo mais complexo" de Tylor, para citar a expresso usada por Geertz (1978, p.l4), tenha contribudo para a imensa confuso conceitual que se estabeleceu em seguida, no se pode negar que ele deu o pontap inicial para que, com diferentes interesses e olhares, mutos buscassem o desenvolvimento de um conceito de cultura "mais limitado", "mais especializado" e "teoricamente mais poderoso", como

    tambm observa Geertz. Ainda que seus sucessores encontrassem um grande nmero de motivos para critic-lo, no podiam ignorar a sua importncia como ponto de partida para o desenvolvimento de suas idias.

    2.1.2 Diferentes vises, o mesmo problema

    Entre Edward Tylor e os nossos dias, a idia de cultura evoluiu significativamente, seguindo diferentes tendncias e correntes epistemolgicas, as quais buscavam compreender o que a cultura e como ela age nas difi:rentes dimenses da existncia humana. Muitos conceitos surgiram, alguns muito criticados, outros consagrados

    e tornados como referncia para as reformulaes subseqentes2 A partir da, as discusses e debates surgidos, principalmente, no mbito da antropologia, produziram um dos conceitos mais poderosos, traduzido por diferentes variantes do que se denomina "o conceito antropolgico de cultura", em oposio a definies produzidas no interior de outras reas do conhecimento, como a psicanlise, a sociologia, a semitica etc.

    2 No citaremos, nesta breve reflexo, todos os diferentes momentos de discusso sobre o conceito de cultura, taref que foge ao escopo do nosso estudo. A partir do sculo XVIII, principalmente, muitas contribuies, de diferentes correntes do pensamento e de diferentes estudiosos, colaboraram para a construo do complexo arcabouo de idias e princpios que cercam o termo hoje. Para aqueles que desejam aprofimdar-se mais sobre o assunto, citaremos alguns nomes que, a nosso ver, contriburam de forma decisiva para a evoluo e compreenso do fenmeno da cultura: Burnett Taylor, Alfred Kroeber, Franz Boas, Emile Durkheiro, Lucien Lvy-Bruhl, Bronislaw Malinowski, Margareth Mead, Ruth Benedict, Claude Lvy-Strauss, Leslie White, Roger Bastide, Max Weber, Pierre Bourdieu, Roger Keesing, Clifford Geertz, entre outros. Assim como personalidades diferentes marcaram a evoluo das idias sobre o conceito, algumas reas do conhecimento dedicaram-se com mais afinco a esta discusso, a exemplo da Etnologia, Antropologia e Sociologia, assiro como diferentes escolas do pensamento: Histria Cultural, Evolucionismo, Difusionismo, Funcionalismo, Escola Cultura e Personalidade, Antropologia Cultnral, Interacionismo, Acultnrao (CUCHE, 1999; LARAIA, 1999).

  • 38

    De acordo com a tradio antropolgica, a cultura definida como a totalidade

    de caractersticas de um grupo social. Assim, a cultura de um grupo ou classe representa

    um estilo de vida especial e distinto deste grupo ou classe, o qual inclui os significados, os

    valores e idias, e como eles so refletidos nas instituies, nas relaes sociais, nos

    sistemas de crenas, nos costumes e tradies, no uso dos objetos e na vida rnaterial3 Esta concepo, considerada por muitos pensadores universalizante e totalizadora, que define o

    que prprio de um determinado grupo em oposio a outros, foi, por vezes, duramente

    criticada, e ainda nos dias de hoje de acordo com diferentes correntes do pensamento na contemporaneidade. No entanto, utilizamos anteriormente a qualificao de "conceito

    poderoso" porque, embora seja motivo constante de crticas, a concepo amplamente disseminada no pensamento cientfico e acadmico, assim como no pensamento da

    coletividade de uma maneira geral.

    De acordo com Neiva (1997, p.l33), por exemplo, a concepo antropolgica tradicional de cultura se baseia num conceito amplo e vago, abrangente e defensor da

    humanidade legtima dos povos. A cultura, ento, evidenciaria as caractersticas que

    definem grupos sociais contrastantes, permitindo a atitude de reconhecimento do outro:

    [ ... ] seria uma abstrao idealizada, um trao essencialmente distintivo que separaria os seres humanos em suas identidades sociais e que discriminaria a humanidade do mundo natural. A cultura , ento, vista como uma regra imanente de integrao social, cujo propsito primordial distinguir o que nosso em oposio ao que alheio.

    O autor critica, contundentemente, a idia de cultura como "uma barreira

    invisvel que confere a cada ator social uma identidade coletiva e preciosa, a ser mantida e

    defendida a todo custo" (NEIVA,l997, p.l33). Ele caracteriza este futo como um 'equvoco irreparvel' pois a idia de estabilidade cultural, de imunidade s mudanas, no funciona

    como instrumento terico numa era globalizante, fustigada pela ansiedade e pela mudana.

    Atravs de substantivos e expresses como 'iluso', 'miragem', 'sonho da totalidade'

    'dilogo de surdos' o autor caracteriza a idia de cultura disseminada pela tradio

    antropolgica e tece a sua crtica, argumentando que a construo dessa idia surgiu como

    3 Vide Hell {1989); Santos (1994); Fennes; Hapgood {1997); Neiva (1997); Cuche (1999); Laraia (1999}, entre outros.

  • 39

    alternativa metodolgica para a descrio de grupos sociais contrastantes e para responder

    s questes raciais, biolgicas e ambientais do comportamento humano. O dogma

    disciplinar que rege a noo de cultura repousa na distino entre natureza e cultura, e na

    adoo de princpios e convenes que alteram o que inato aos seres humanos. Neiva

    (1997, p.l37) defende a idia de que, para se chegar a uma noo efetiva de cultura, seria preciso mais do que uma simples descrio de costumes, crenas e instituies que caracterizam os diferentes grupos humanos: "O objetivo da investigao cultural seria entender o raciocinio que preside e que inspira atos primeira vista sem sentido. Achar uma resposta que d conta do raciocinio social no grupo estudado um modo de conferir

    sentido ao que acontece".

    Mas no foi este um dos objetivos que fizeram as diferentes correntes e tendncias antropolgicas buscarem edificar uma idia de cultura? A evoluo histrica do

    pensamento antropolgico, desde a idia inicial influenciada pelo iluminismo na busca do

    ideal da humanidade, do que o homem deve ser, em detrimento do que ele , mostra-nos que nem mesmo os antroplogos estavam satisfeitos com o carter totalizador, abrangente e

    idealizador da idia de cultura, como o prprio Eduardo Neiva admite. As sucessivas

    tentativas, a partir de Burnett Tylor, de se elaborar um conceito de cultura foram marcadas

    pela necessidade de eleio de um instrumento que, mais do que poSSibilitasse a observao e descrio de traos culturais de grupos humanos especficos, fosse "[ ... ] mais limitado, mais especializado e, imagino, teoricamente mais poderoso para substituir o famoso 'o todo

    mais complexo'[ ... ]", referindo-nos uma vez mais a Geertz (1978, p.l4). Alm disso, a observao feita por Neiva (1997) de que, apesar das criticas, o termo 'cultura' como conceito amplo e vago, continua a ser usado de forma macia no meio acadmico, nos

    meios de comunicao etc., s refora o fato de que, embora tenha sofrido criticas ao longo

    de seu desenvolvimento, a idia de cultura desenvolvida no seio da antropologia que

    ensejou e enseja todo o pensamento a respeito da diversidade humana, principalmente na cena contempornea. As criticas e queixas freqentes com relao eficcia da noo de

    cultura, como aponta o prprio autor, devem-se menos s contribuies do pensamento

    antropolgico, do que prpria dimenso do sign:ficado da palavra cultura, posto que no ficil resumir num conceito a idia do que seja a complexidade humana

  • 40

    Dentro da prpria antropologia podemos identificar diferentes movimentos e

    esforos, muitas vezes contrastantes, no sentido de se erigir um conceito satisftrio de

    cultura. Este fto nos mostra que, embora o sentido universalizante e totalizador da idia de

    cultura seja tomado como central no desenvolvimento do pensamento antropolgico, alguns esforos buscaram contribuir para um deslocamento do foco original e uma conseqente

    tentativa de renovao do conceito.

    Uma das vertentes de discusso, por exemplo, que contribuiu para uma certa

    renovao da idia de cultura surgiu a partir dos estudos sobre "aculturao'"'.

    Principalmente no decorrer da dcada de 60, sobretudo com as contnbuies do socilogo e

    antroplogo Roger Bastide, os fenmenos culturais passaram a ser estudados considerando-

    se as diferentes configuraes das relaes sociais, que podem fornecer quadros de

    integrao, de competio, de conflito etc. Ou seja, nas situaes de aculturao, no se pode falar em culturas "puras", ou unicamente "doadoras" ou "receptoras", pois nenhuma

    cultura existe em 'estado puro', sem ter sofrido influncias ou interferncias ao longo de

    sua evoluo. Os processos de aculturao, dessa forma, so um fenmeno universal, o qual

    apresenta graus e furmas diversificados. Considerar, portanto, as relaes interculturais e as

    situaes de conflito em que elas se do contribuiu para renovar a concepo de cultura como algo dinmico; toda cultura, dessa forma, "[ ... ] um processo permanente de construo, desconstruo e reconstruo" (CUCHE, 1999, p. 137).

    A cultura, a partir dos estudos sobre os processos de aculturao, passou a ser

    compreendida como um conjunto dinmico e complexo, cujos elementos integradores provm de fontes diversas no espao e no tempo. Segundo Cuche (1999, p.l40) "[ ... ]no existem, conseqentemente, de um lado as culturas 'puras' e de outro, as culturas

    'mestias'. Todas, devido ao fto universal dos contatos culturais, so, em diferentes graus,

    culturas 'mistas', fuitas de continuidades e descontinuidades".

    Um outro modo de olhar para a cultura, que no poderamos deixar de

    mencionar por ser um dos estudos mais significativos dentre a vasta literatura sobre o

    4 Tenno que significa"[ ... ] o conjunto de fenmenos que resultam de um contato contnuo e direto entre grupos de ndivduos de culturas diferentes e que provocam mudanas nos modelos culturais niciais de um ou dos dois grupos" (CUCHE, 1999, p.ll5). Os estudos sobre aculturao, at o seu ponto alto de desenvolvmento, na dcada de 60, com Roger Bastide, tiveram a contribuio de importmtes expoentes da pesquisa antropolgica, entre eles: Melvlle J. Herskovts, Georges Balandier, Robert Redfield, Ralph Lnton, H.G. Barnett.

  • 41

    assunto, o trabalho desenvolvido por Clifford Geertz (1978), em A Interpretao das Culturas. Neste estudo, Geertz assume buscar um conceito de cultura mais limitado, mais especializado, que possa atender com mais especificidade s exigncias cientficas, isto ,

    seja "teoricamente mais poderoso", em oposio ao que ele denomina o "todo mais complexo" que caracteriza as definies antropolgicas tradicionais de cultura, como j havamos feito referncia em duas ocasies anteriores. Em suas prprias palavras (1978, p.IS):

    O conceito de cultura que eu defendo [ ... ] essencialmente semitico. Acreditando, como Max Weber, que o homem um animal amarrado a teias de significados que ele mesmo teceu, assumo a cultura como sendo essas teias; portanto, no como uma cincia experimental em busca de leis, mas como uma cincia interpretativa, procura do significado.

    Geertz (1978), no desenvolvimento do seu trabalho, comenta alguns conceitos de cultura e critica, principalmente, a confuso terica que se criou em torno das discusses sobre o tema, sobretudo na antropologia. Discorre, igualmente, sobre o papel do

    antroplogo, que deve tentar situar-se no ambiente de observao, na comunidade 'estranha'- e assim poder estabelecer um dilogo com o outro. Quando se compreende a cultura do outro, o que antes era opacidade transforma-se em entendimento; o que era

    'estranho' passa a ser compreensvel dentro do quadro de referncia que tomamos em considerao. Este o ponto que o autor considera central, isto , uma abordagem

    semitica da cultura pode auxiliar o trabalho do pesquisador no sentido de fornecer o

    acesso necessrio ao mundo conceitual no qual vivem os indivduos de uma determinada

    realidade social. No entanto, como observa Geertz, 'estar situado', obter o acesso teia de significados de uma determinada realidade social no significa 'tornar-se nativo' ou tentar

    copi-los. O que caracteriza o empreendimento cientfico do antroplogo a busca por estabelecer um dilogo com o outro, conversar com ele, mas no como se flasse com

    estranhos. Nesse sentido, para Geertz (1978, p.24), "( ... ] o objetivo da antropologia o

    alargamento do universo do discurso humano". Ele argumenta tambm que, especialmente

    sob este ponto de vista, o conceito sernitico de cultura se adapta muito bem:

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    Como sistemas entrelaados de signos interpretveis [ ... ], a cultura no um poder, algo ao qual podem ser atribudos casualmente os acontecimentos sociais, os comportamentos, as instituies ou os processos; ela um contexto, algo dentro do qual eles podem ser descritos de forma inteligvel- isto , descritos com densidade.

    A interpretao desse sistema complexo e entrelaado de signos seria a principal

    funo do pesquisador, daquele que deseja "ler" a cultura do outro. Esta taref, no entanto, deve ser feita atentando-se sempre, com exatido, para o fluxo do comportamento ou ao

    social, atravs do qual as formas culturais articulam-se. Elas tambm encontram articulao

    nos artefutos e nos vrios estados de conscincia, os quais marcam os seus significados

    atravs do papel que desempenham no contexto social. Os textos dos antroplogos seriam,

    eles mesmos, segundo Geertz, interpretaes de segunda e terceira mo, pois somente um

    nativo pode fuzer uma interpretao em primeira mo da sua prpria cultura Desse modo, o

    ponto central da abordagem semitica da cultura, nas palavras de Geertz (1978, p.34-35), seria "[ ... ] auxiliar-nos a ganhar acesso ao mundo conce