formação de Docentes 2ed_art_m2d4

98
Cursos de Especialização para o quadro do Magistério da SEESP Ensino Fundamental II e Ensino Médio Rede São Paulo de Metodologias para ensino e aprendizagem de arte d04

Transcript of formação de Docentes 2ed_art_m2d4

  • Cursos de Especializao para o quadro do Magistrio da SEESPEnsino Fundamental II e Ensino Mdio

    Rede So Paulo de

    Metodologias para ensino

    e aprendizagem de arte d04

  • Rede So Paulo de

    Cursos de Especializao para o quadro do Magistrio da SEESP

    Ensino Fundamental II e Ensino Mdio

    So Paulo

    2012

  • 2012, by Unesp - Universidade estadUal paUlista

    PR-REITORIA DE PS-GRADUAOrua Quirino de andrade, 215Cep 01049-010 so paulo sptel.: (11) 5627-0561www.unesp.br

    SECRETARIA ESTADUAL DA EDUCAO DE SO PAULO (SEESP) praa da repblica, 53 - Centro - Cep 01045-903 - so paulo - sp - brasil - pabx: (11)3218-2000

    Projeto Grfico, Arte e Diagramaolili lungarezi

    Produo Audiovisualpamela bianca Gouveia tlio

    Rede So Paulo de

    Cursos de Especializao para o quadro do Magistrio da SEESP

    Ensino Fundamental II e Ensino Mdio

  • 4Un

    esp/R

    edefo

    r M

    du

    lo II D

    isciplin

    a 04

    TEMASficha sumrio bibliografia

    1

    3

    2

    4

    5

    sumario

    Sumrio1. Metforas, mtodos e metodologias, metforas .........................6

    2. Metodologias para ensino e aprendizagem de arte ...................23

    3. Isto tambm uma metodologia: duas verses contemporneas de mtodos, metodologias, educao e arte. ................................51

    4. Professor-pesquisador: os outros, os mesmos mapas ................67

    5. Metodologias para a prtica de uma pesquisa ativa .....................75

    6. Referncias Bibliogrficas da Disciplina ..................................87

  • 5Un

    esp/R

    edefo

    r M

    du

    lo II D

    isciplin

    a 04

    TEMASficha sumrio bibliografia

    1

    3

    2

    4

    5

    tema1

    Caros cursistas,

    com grande prazer que venho apresentar essa disciplina de nmero 7. Vocs chegaram

    ao ltimo mdulo. Parabns! Sabemos quanto empenho foi necessrio para que chegassem

    at aqui! Vocs so merecedores de todo o nosso respeito por isso, pois sabemos o quo di-

    fcil conciliar os muitos afazeres: ser professor, professora, pai, me, av, av, marido, esposa,

    amigo, amiga, companheiro, companheira e ainda cursista! No mesmo nada fcil. Mas, por

    isso to gratificante tambm!

    J nos conhecemos, pois alm de autora dessa disciplina, sou tambm especialista e por

    isso acompanho o trabalho que vocs realizam com suas tutoras nos bastidores desse curso.

    Com alguns de vocs j conversei por emails, portanto, somos conhecidos, companheiros

    nessa jornada pelo conhecimento.

    Essa disciplina trata de Metodologias, especialmente para ensino e aprendizagem de

    arte, assunto pelo qual tenho especial apreo, pois, pelas metodologias, por esses caminhos,

    construmos a prtica daquilo que concebemos como ensino da arte. Pelas metodologias,

    REALIZAMOS CONHECIMENTO. Belssimo e importantssimo trabalho! Por isso, te-

    nho conscincia da grande responsabilidade que assumi ao conceber e realizar tal disciplina

    e espero que ela contemple a sua fundamental funo que a de prover subsdios para uma

    profcua relao entre aquilo que pensamos sobre ensinar arte e aquilo que realizamos como

    ensinar arte.

    Sejam muito benvindos penltima disciplina desse curso de especializao em Artes.

    Espero que essas palavras que escolhi e organizei para apresentar ideias lhes sejam muito teis

    e se manifestem como frutescncias.

    Boas leituras, boas ideias, bons estudos e bons trabalhos!

    Rita Luciana Berti Bredariolli

  • 6Un

    esp/R

    edefo

    r M

    du

    lo II D

    isciplin

    a 04

    TEMASficha sumrio bibliografia

    1

    3

    2

    4

    5

    tema1

    Metforas, mtodos e metodologias, metforas

    1. Para apalpar as intimidades do mundo preciso saber: a) Que o esplendor da manh no se abre com faca b) O modo como as violetas preparam o dia para morrer c) Por que que as borboletas de tarjas vermelhas tm devoo por tmulos d) Se o homem que toca de tarde sua existncia num fagote, tem salvao e) Que um rio que flui entre 2 jacintos carrega mais ternura que um rio que flui entre 2 lagartos f ) Como pegar na voz de um peixe g) Qual o lado da noite que umedece primeiro. etc. etc. etc. Desaprender 8 horas por dia ensina os princpios.(BARROS, 2000).

  • 7Un

    esp/R

    edefo

    r M

    du

    lo II D

    isciplin

    a 04

    TEMASficha sumrio bibliografia

    1

    3

    2

    4

    5

    tema1

    J se sabe: para uma linha razovel ou uma correta informao, h lguas de insensatas cacofonias, de confuses verbais e de incoerncias. (Sei de uma regio montanhosa cujos bibliotecrios repudiam o supersticioso e vo costume de procurar sentido nos livros e o equiparam ao de procur-los nos sonhos ou nas linhas caticas das mos...os livros em si nada significam. Esse ditame, j veremos, no completamente falaz.)

    (BORGES, 1999, v. 1)

    Metforas, mtodos e metodologias, metforas 1.1. Metforas

    Comecemos nossa insero pelas Metodologias para ensino e aprendizagem da arte recorrendo a uma metfora muito comum, ouvida quando, por vezes, exauridos por um cotidiano adverso a todos os nossos ideais educacionais, atropelado pelo tempo escasso, pela falta de apoio institu-cional, pelos baixos salrios, pela quantidade de turmas e alunos por turmas, clamamos por uma conduo, por um caminho que nos leve a uma soluo imediata para problemas especficos a um contexto e a uma relao particular: a nossa, com nossos alunos, com e em nossa escola.

    Pela nsia de resolver todo o tipo de adversidade, clamamos por um como: como fao para en-sinar arte para tantos alunos, com um tanto de tempo e outro tanto de condies de trabalho? A resposta ouvida, talvez frustrante, vem em forma de uma metfora: no h receita.

  • 8Un

    esp/R

    edefo

    r M

    du

    lo II D

    isciplin

    a 04

    TEMASficha sumrio bibliografia

    1

    3

    2

    4

    5

    tema1

    O uso da receita como imagem para ilustrar o inapropriado a um processo educacional, em nosso caso especificamente, voltado ao ensino e aprendizagem da arte, tornou-se com o tempo, um jargo, um clich, por vezes pejorativo, repetido exaustivas vezes, ao mesmo tempo, como forma de apaziguar angstias e ansiedades pela resoluo imediata de problemas especficos, e de induo compreenso contempornea do processo educativo como algo especfico a um contexto, interagente e varivel, avesso a um estereotipado carter prescritivo de uma receita.

    Agora, paremos um pouco e pensemos sobre uma receita, de bolo, no caso. Muitos de ns j seguimos uma receita. Fizemos bolos. Por vezes, usamos a mesma receita diversas vezes, ou a mesma receita usada por algum de nossa famlia ou de algum amigo, mas nem sempre um bolo, da mesma receita, igual ao outro. Seja pela qualidade dos ingredientes, temperatura do forno, pelo clima, pela velocidade da batedeira que se desajustou, enfim, percebemos que as contingncias de uma situao incluindo, e principalmente, quem faz o bolo - interferem no sabor, textura, cor, consistncia desses bolos, cuja origem a mesma receita: esse bolo nunca sai como o da minha av!

    Os anos de experincia, junto ao arranjo dos ingredientes e ambiente, provocam os resultados e suas diferenas, ou semelhanas. A receita, por ela mesma, no garantia da qualidade de um bolo. Os resultados, nesse caso, dependero da experincia e envolvimento desse algum que, hbil e sabiamente, perceber as suas circunstncias e as articular com os procedimentos escol-hidos, a receita, arranjando-os, em alteraes se necessrias, para o seu fim: um delicioso bolo.

    Ao longo da histria do ensino da arte muitas receitas foram elaboradas, usadas, reinventa-das; por vezes - por vrios motivos, dentre os quais, os citados no incio desse texto reprodu-zidas, indiferentes aos seus contextos.

    Todas essas receitas de como ensinar arte continuam a circular, impressas em livros didticos e paradidticos, presentes e resistentes em nossas prticas, contendo seus ingredientes, sua ordem, seu modo de fazer. Mas, sozinhas no resolveram, resolvem ou resolvero nenhum problema edu-cacional. Sozinhas, pairam inertes e alheias, repousando sobre pginas. No realizam nada, sem serem escolhidas por algum e atualizadas, no sentido mesmo de coloc-las em ato, torn-las potencialidades. A partir da acontecem, tornam-se eventos integrantes da realizao de um pro-cesso educativo. Acontecem sob nossa conduo, suscetveis aos outros acontecimentos inerentes a esse mesmo processo. Acontecimentos esses, gerados e alterados pela reao de nossos alunos

  • 9Un

    esp/R

    edefo

    r M

    du

    lo II D

    isciplin

    a 04

    TEMASficha sumrio bibliografia

    1

    3

    2

    4

    5

    tema1

    e constituio de nosso ambiente escolar. Acontecimentos que configuram nosso cotidiano; e dele, de sua observao, compreenso, reviso, enfim de seu conhecimento e reconhecimento, que encontramos os muitos e diferentes como fazer, as receitas.

    As receitas, os mtodos, as metodologias, so importantes como formas abstratas de or-ganizao, de sistematizao, uma constituio de sentido que aplaca nossa sensao de in-segurana diante da condio movedia daquilo que chamamos realidade. No entanto, efe-tivamente, em nossa relao com cada uma dessas nossas realidades - aliando aquilo que sabemos s situaes concretas que vivemos, em meio ao erro, a instabilidade, a confuso, ao inesperado - que podemos encontrar os modos de agir, os como fazer, os caminhos possveis para o enfrentamento do difcil, mas da mesma forma valoroso, trabalho educativo. , pois, desse enfrentamento, incmodo por vezes, com as nossas reais condies de trabalho que so criados e recriados os caminhos, as receitas, os mtodos e as metodologias para realizar o mais prximo possvel daquilo que compreendemos ensinar arte.

    Trataremos nesse texto sobre essas receitas, mtodos e metodologias. Apresentaremos suas variaes conceituais ao longo do tempo, tomando-os no sentido mais aproximado a sua eti-mologia, entendendo-os, portanto, como caminho e investigao, procurando revolver uma rotinizada - pois tornada usual (CNDIDO, 2000, p. 182) - derivao de um de seus sig-nificados modernos, qual nos acostumamos: a de mtodo como preceito abstrato, univer-sal, imperativo, restritivo e impeditivo, alheio realidade, prtica; buscando dessa forma, devolver-lhe sua condio de parte estruturante de um conjunto formado, em nosso caso, por ns professores, nossos alunos, nossas condies de trabalho e nossas concepes e, portanto, nossos objetivos, justificativas, contedos - sobre o ensino, a aprendizagem, a arte e suas rela-es, restituindo aos mtodos, metodologia, sua indissociabilidade da epistemologia da arte.

    O como ensinar e aprender arte, o como desenvolver o conhecimento artstico indissocivel da nossa concepo sobre o que ensinar e aprender arte, o que o conhecimento artstico.

  • 10

    Un

    esp/R

    edefo

    r M

    du

    lo II D

    isciplin

    a 04

    TEMASficha sumrio bibliografia

    1

    3

    2

    4

    5

    tema1

    1.2. Mtodos e Metodologias

    1.2.1. As vrias acepes de mtodo

    Em Vocabulrio Tcnico e Crtico da Filosofia (LALANDE, 1999, p. 678-679) encontramos trs definies de mtodo. A primeira refere-se ao seu sentido etimolgico de demanda, assu-mindo como conseqncia o significado de esforo para atingir um fim. Seguindo essa ideia, agregam-se a essa noo de mtodo, a de investigao - essa, segundo Lalande, uma acepo antiga usada especialmente por Aristteles - e estudo. Portanto, originalmente, a palavra m-todo estaria associada s ideias de demanda, empenho por um objetivo, investigao e estudo.

    Dessa noo embrionria de mtodo, duas acepes modernas diferentes, embora muito prximas seriam derivadas: a de caminho e a de prescrio. A ideia de mtodo como caminho no supe uma fixidez determinada por uma premeditao. Antes, est associada a uma orde-nao da variedade de idias, juzos e raciocnios sobre um determinado tema, propiciando o meio mais ajustado para o seu conhecimento. Todo esse processo de organizao seria realiza-do de forma natural e por vezes mais acertadamente, por quem no tivesse qualquer domnio de regras lgicas. Nesse sentido, mtodo refere-se a procedimentos habituais de observao e compreenso, constantemente averiguados, simultaneamente sua realizao, para atestar sua eficincia, adequao e prtica segura, ou constatar sua nulidade.

    A outra acepo moderna de mtodo - a mais comum entre ns -, a de prescrio, o determina como um planejamento responsvel por regular previamente uma seqncia de procedimentos de forma a precaver erros que possam obstar o alcance de um fim determinado. Desse sentido, derivam ainda as noes de mtodo como processo tcnico de clculo ou experimentao e sistema de classificao, atribudo especialmente s cincias biolgicas. As palavras mtodo e metodicamente, de acordo com Lalande, chegaram at ns e so mais comumente usadas no sentido de uma preconcepo de um plano a seguir (LALANDE, 1999, p. 678-679).

    Em nota, Lalande justifica a proximidade entre a concepo de mtodo como caminho, como investigao e elaborao crtico-reflexiva sobre a prtica, sem premeditao e a de m-todo como um programa regulamentar, por sua caracterstica comum de enfrentamento com uma situao prvia e concreta (LALANDE, 1999, p. 679).

  • 11

    Un

    esp/R

    edefo

    r M

    du

    lo II D

    isciplin

    a 04

    TEMASficha sumrio bibliografia

    1

    3

    2

    4

    5

    tema1

    A parte de toda essa complexidade semntica, necessria para entendermos que mtodo nem sempre significou ou significa o que costumeiramente entendemos sobre ele, h algo inerente a esse conceito e comum a qualquer uma de suas variaes: a ideia de mtodo sempre se remeter a direes definidas e regularizadas pelo confronto com uma situao concreta, experimental e experimentvel.

    Pode se apresentar como regulao prvia e alheia s interferncias das circunstncias, ou em relao a um contexto. Ambas as noes so consideradas precisas. Porm, a primeira, subsiste no mundo das ideias, comportando-se como regulao e auto-regulao, indiferente ao objeto, sujeitos ou situao; a segunda, a relao e a variao de acordo com as reaes dos integrantes da situao de aplicabilidade. Ambas precisas, nenhuma desvalida.

    Em Dicionrio de Filosofia de Nicola Abbagnano, encontramos dois significados funda-mentais de mtodo, um como qualquer pesquisa ou orientao de pesquisa, sem qualquer distino entre investigao e doutrina; e como uma tcnica particular de pesquisa, um pro-cedimento de investigao organizado, repetvel e autocorrigvel, que garanta a obteno de resultados vlidos (ABBAGNANO, 2003, p. 668).

    Abbagnano afirma que na antiguidade clssica, o termo mtodo era empregado em seus dois sentidos, como investigao e doutrina. Ambos encontrados em textos como Sophista e Phaedo de Plato, e em Poltica e Ethica nicomachea de Aristteles. Nota, porm, que em seu uso mod-erno e contemporneo, mantm-se a prevalncia de seu significado como tcnica particular de pesquisa. Apesar dessa ressalva, Abbagnano nos faz atentar para a ordenao de procedimentos como inerncia a toda e qualquer teoria ou doutrina, portanto a todo e qualquer conhecimento sistematizado, seja ele cientfico, filosfico ou e tambm, diramos, artstico.

    1.2.2. A acepo moderna de mtodo

    A acepo moderna de mtodo, prevalecente em nossos dias, embora modificada por seu uso ao longo do tempo, tem como marco filosfico o pensamento de Ren Descartes e, por-tanto, como marco temporal de sua conformao o sculo XVII. Perodo conhecido como o do Grande Racionalismo. Segundo Marilena Chau, esse foi o momento de inaugurao da razo ocidental moderna, como o conhecimento que se realiza no interior da experincia para colo-car-se fora e acima dela, propondo-se a domin-la. O sculo XVII designado como a poca

  • 12

    Un

    esp/R

    edefo

    r M

    du

    lo II D

    isciplin

    a 04

    TEMASficha sumrio bibliografia

    1

    3

    2

    4

    5

    tema1

    da definio de dicotomias que ainda estruturam nosso pensamento e modelo educacional: as dicotomias entre sujeito-objeto, conscinciacoisa, ideia-fato, verdade-aparncia, essn-cia-existncia, natureza-homem, vontade-intelecto, causalidade-finalidade, razo-experincia, necessidade-liberdade (CHAU, 1999, p. 25).

    Com o passar do tempo Ren Descartes tornou-se adjetivo, por vezes pejorativo, usado em senso comum para qualificar algo como estritamente racional, imparcial a qualquer afeto, de uma retido coercitiva e tola. Do pensador cartesiano, diz Olgria Matos, guardamos algo daquele que procede por ordem em suas reflexes (MATOS, 1999, p. 195). De suas elaboraes metodolgicas nos chegou uma noo comum de mtodo como algo abstrato, apriorstico, alheio a uma relao concreta com as coisas do mundo sensvel (cf. M2_D4: Esttica), alheio da realidade.

    De fato, a inteno de ordenar o mundo guiou o pensamento de Descartes. Esse filsofo buscou a exatido, a estabilidade, a permanncia em contrapartida inconstncia dos sentidos, a mudana caracterstica das contingncias, os erros e as iluses do mbito da imaginao. Descartes no confiava nos sentidos. Assumia, pela prpria experincia, que tudo o que havia recebido, como o mais verdadeiro e seguro, tinha sido apreendido dos sentidos ou pelos sentidos, no entanto, concluiu tambm que algumas vezes esses sentidos eram enganosos, e, portanto, seria muito prudente nunca se fiar inteiramente em quem j nos enganou uma vez (DESCARTES, 2010, p. 136).

    Mas, a prudente busca pela regulao dos sentidos, pela ordenao da experincia, tem como ponto de partida o prprio interior da experincia. A conscincia cartesiana des-perta para o mundo na experincia da dvida, isto em meio ao labirinto. A experincia foi, portanto, seu ponto de partida, mesmo que para colocar-se fora e acima dela, propondo-se a domin-la (MATOS, 1999, p. 37).

    Ao invs de certezas, o que moveu Descartes em sua elaborao metodolgica foi o em-baraado entre [...] dvidas e erros. Michel Foucault (1999), em seu livro As Palavras e as Coisas, afirma que Descartes, ao assumir como ponto de partida da elaborao de seu mtodo para bem conduzir a razo, o erro ou a iluso, acabou por revelar a impossibilidade desses no serem tambm pensamentos. O pensamento do mal-pensado, do no-verdadeiro, do qui-mrico, do puramente imaginrio, seriam os lugares da primeira evidncia de caminhos para

  • 13

    Un

    esp/R

    edefo

    r M

    du

    lo II D

    isciplin

    a 04

    TEMASficha sumrio bibliografia

    1

    3

    2

    4

    5

    tema1

    o conhecimento, a verdade para Descartes. Pelas palavras de Foucault, Descartes empenhava-se em trazer luz o pensamento como forma mais geral de todos esses pensamentos que so o erro ou a iluso, mesmo sob o risco de reencontr-los no final de sua tentativa, voltando explic-los e de propor ento o mtodo para evit-los (FOUCAULT, 2000, p. 446-447).

    O mtodo para Descartes significava um caminho seguro para conduzir o sujeito outra noo recm-criada nesse mesmo sculo XVII a estabelecer a distino entre um raciocnio verdadeiro de um falso, e assim alcanar a verdade. Em seu Discurso do Mtodo, publicado em 1637, Descartes define o primeiro princpio de sua filosofia, por ele considerado uma verdade inabalvel: penso, logo existo. A assuno dessa verdade to firme e to segura, o levou a considerar que teria encontrado aquilo que era necessrio a uma proposio para ser verda-deira e certa. Para pensar, preciso ser, da a regra geral de que tudo aquilo que concebe-mos de maneira clara e distinta verdadeiro. Como resolver a dificuldade de observar bem o que concebemos distintamente? Como assegurar que aquilo que dito verdadeiro? So-mente pelo uso de um caminho preciso e objetivo, pelo uso de um mtodo seguro, poderamos discernir o falso do verdadeiro, poderamos ordenar a desordem do mundo sensvel (DES-CARTES, 2004, p. 70-71).

    1.2.3. Experimento, logo existoAo longo de anos de uso, a ideia de mtodo concebida por Descartes no sculo XVII, se

    perdeu de sua instncia de formao a experincia, a relao com o mundo sensvel, com a prtica - adquirindo um carter abstrato relegado ao campo estritamente terico.

    Hoje muitas vezes, ao pensarmos em mtodos ou metodologias, os relacionamos com algo do campo das ideias, cuja concepo depende apenas de uma elaborao terica. Ao longo do tempo, afastamos o mtodo, assim como a metodologia e as receitas, de sua derivao da rela-o entre o pensamento e o mundo. O pensamento sobre o mundo. Aprendemos a entender os mbitos da teoria e da prtica como separados e assim a noo de mtodo como sentido, direo, caminho para o conhecimento, sendo, ao mesmo tempo, instrumento de sua prpria investigao, tem para ns pouca identificao.

    Com o passar do tempo o processo de conhecimento foi se tornando cada vez mais abstrato, cada vez mais desvinculado da experincia do mundo sensvel. O Grande Racionalismo do sculo XVII, poca das elaboraes de Descartes, foi se transformando em mmese da linha

  • 14

    Un

    esp/R

    edefo

    r M

    du

    lo II D

    isciplin

    a 04

    TEMASficha sumrio bibliografia

    1

    3

    2

    4

    5

    tema1

    de produo industrial. A escola pblica e seu sistema nascem dessa transformao. Nascem no como instncias de produo do conhecimento, a fim de alcanar a verdade pela ordena-o do mundo, mas como reprodutores de conhecimento em escala industrial, considerando a coletividade como massa1.

    Essa nossa herana. Para entend-la, en-tendermos como fomos tornados suas partes e resultados, e principalmente para conseguir agir sobre essa herana, vale sondar os princpios de nosso ofcio e de sua matria essencial: o conhe-cimento. Por isso falamos aqui de um filsofo que com suas ideias alimentou o pensamento ocidental moderno, a ponto de ser considerado o pai da fi-losofia ocidental. E porque falarmos em filosofia em um curso de especializao em artes? A res-posta pode ser encontrada ao nos perguntarmos de onde vm nossas concepes de arte, educao e sobre ensino da arte? De onde vem nossa for-ma de se relacionar com o mundo? De onde vem nossa forma de compreender esse mundo? Ab-sorvemos e elaboramos ideias sem atentar para o fato de que elas existiam antes mesmo de assumi-las como nossas.

    H uma msica muito singela sobre isso. Ela se chama Transpirao, interpretada por Ney Matogrosso e Pedro Luiz e a Parede. Ao invs de ideias, eles perguntam sobre a inspirao. De onde vem nossa inspirao? No de algo alheio s nossas experincias cotidianas. Isso bonito: atentarmos para o fato de que nossa inspirao - nossas ideias - est pelo mundo, nas coisas que por vezes no valorizamos, tambm naquelas muito sutis, naquelas quase ou impercep-tveis, nas entrelinhas de um livro ou em um trabalho rduo....

    1. A escola, tal como a conhecemos em seus traos gerais, surgiu no contexto da Revoluo Industrial, iniciado o sculo XVIII, na Inglaterra. Seu progra-ma: produzir a criana para um mundo repetitivo, no mais regulado pelo relgio do sol [...] Mundo de portas fechadas, fbricas de disciplina coletiva, de rituais de seriao, de homogeneizao de comporta-mentos e gestos, posturas corporais e mentais. Todos deviam aprender as mesmas coisas, na mesma velo-cidade [...] toda a hierarquia administrativa da escola seguiu o modelo da burocracia industrial. Hoje, segue o modelo empresarial (BENEDETTI, 2007, p. 108-112). Para Robert Kurz (2004) o sistema de educa-o Ocidental, usado como meio para execuo do grande projeto moderno civilizatrio, no se configu-rou como presente civilizador generoso, mas parte de um processo designado como colonizao inter-na. Disciplina e adestramento em funo do ajuste da vida ao trabalho abstrato[...] e concorrncia universal, faziam parte deste sistema educacional es-colar dirigido pelo objetivo da interiorizao de um perfil capitalista de requisitos.

  • 15

    Un

    esp/R

    edefo

    r M

    du

    lo II D

    isciplin

    a 04

    TEMASficha sumrio bibliografia

    1

    3

    2

    4

    5

    tema1

    A inspirao vem de onde Pergunta pra mim algum Respondo talvez de longe De avio, barco ou bonde Vem com meu bem de Belm Vem com voc nesse trem Nas entrelinhas de um livro Da morte de um ser vivo Das veias de um corao Vem de um gesto preciso Vem de um amor, vem do riso Vem por alguma razo Vem pelo sim, pelo no Vem pelo mar gaivota Vem pelos bichos da mata Vem l do cu, vem do cho

    Vem da medida exata Vem dentro da tua carta Vem do Azerbaijo Vem pela transpirao A inspirao vem de onde, de onde A inspirao vem de onde, de onde Vem da tristeza, alegria Do canto da cotovia Vem do luar do serto Vem de uma noite fria Vem olha s quem diria Vem pelo raio e trovo No beijo dessa paixo A inspirao vem de onde, de onde

    De onde A inspirao vem de onde, de onde

    (ESPNDOLA; ASSUMPO, 2004).

    Vem tambm de um livro nunca lido, de ideias perdidas ao tempo transformadas em prtica e lugares comuns. Por isso trouxemos o texto de Descartes a essa disciplina, justificado por sua participao fundamental na constituio do pensamento moderno ocidental, ao firmar a importncia da razo pela definio de um ser que porque pensa: Penso, logo existo. Tal noo estabelecer a supremacia da razo em um processo de conhecimento, entendido como discernimento da verdade e cuja determinao caberia apenas ao sujeito. Para essa determina-o h que se ter um caminho preciso, mas no necessariamente novo, como aqueles grandes caminhos que do voltas entre montanhas e vo aos poucos se tornando planos e cmodos de tanto serem freqentados, muito melhor segui-los do que empreender um rumo mais direto, escalando rochedos e descendo at o fundo dos precipcios (DESCARTES, 2004, p. 50).

  • 16

    Un

    esp/R

    edefo

    r M

    du

    lo II D

    isciplin

    a 04

    TEMASficha sumrio bibliografia

    1

    3

    2

    4

    5

    tema1

    Os velhos e conhecidos caminhos, aqueles j experimentados, j revistos e reelaborados, mas no necessariamente criados por outrem. Descartes deixou claro em seu Discurso do Mtodo de 1637, que seu propsito no era ensinar o mtodo que cada um deve seguir para bem conduzir sua razo, mas compartilhar a maneira como conduziu a sua. Descartes no tenta persuadir o leitor, alertando-o que seu Discurso pode ser lido como uma histria, ou se quiserem, como uma fbula [...] na qual, entre alguns exemplos possveis de imitar, talvez se encontraro vrios outros que se ter razo de no seguir (DESCARTES, 2004, p. 39).

    Como j dissemos, o mtodo para Descartes significava o caminho mais seguro para garan-tir a distino da verdade, por isso o elaborou como um conjunto sinttico de apenas 4 regras. Optou por esse formato para evitar escusas aos vcios, fornecidas pela multido de leis. O efeito desses preceitos seria deflagrado pela firme e constante resoluo de no deixar uma nica vez de observ-los:

    O primeiro era no aceitar jamais alguma coisa como verdadeira que eu no conhecesse evidentemente como tal: isto evitar cuidadosamente a precipitao e a preveno, e nada incluir em meus julgamentos seno o que se apresentasse de maneira to clara e distinta a meu esprito que eu no tivesse nenhuma ocasio de coloc-lo e dvida.

    O segundo, dividir cada uma das dificuldades que eu examinasse em tantas parcelas possveis e que fossem necessrias para melhor resolv-las.

    O terceiro, conduzir por ordem meus pensamentos, comeando pelos ob-jetos mais simples e mais fceis de conhecer, para subir ao poucos, como por degraus, at o conhecimento dos mais compostos, e supondo mesmo uma ordem entre os que no se precedem naturalmente uns aos outros

    E o ltimo, fazer em toda parte enumeraes to completas, e revises to gerais, que eu tivesse a certeza de nada omitir

    (DESCARTES, 2004, p. 54-55).

  • 17

    Un

    esp/R

    edefo

    r M

    du

    lo II D

    isciplin

    a 04

    TEMASficha sumrio bibliografia

    1

    3

    2

    4

    5

    tema1

    Olgria Matos associou o mtodo de Descartes ao fio usado por Teseu para gui-lo pelo interior do labirinto. O labirinto, representao do acaso, da experincia, do mundo sensvel e seus movimentos imprevisveis; do lugar que aprisiona na falsa liberdade. Teseu, usando o fio dado por Ariadne, venceu a intrincada e ilusria organizao labirntica. Ao desenrolar o fio e enrol-lo em sentido inverso, esse heri da mitologia grega reencontrou seu rumo. Essa ao realizada em vai e vem constituiu o smbolo do movimento metdico. Esse ir e vir no mesmo caminho o movimento metdico - relaciona-se com a noo de ordem como cadeia, cuja existncia depende do entrelaamento dos elos que a compem. Se um deles se rompe, todo o conjunto desfeito. Assim tambm se constituiria o fio-mtodo, a menor distrao sobre a relao entre as partes que o compe, poderia, poderia provocar sua ruptura e o sujeito orientado por ele seria arrastado para a definitiva errncia (MATOS, 1999, p. 39).

    Descartes constituiu-se como referncia para o pensamento ocidental, articulado e rearticu-lado pelo desdobramento de suas ideias, seja por sua afirmao ou contraposio. A elaborao de seu fio-mtodo, como forma de dominar o labirinto, gerou tambm sua contrapartida como a ideia de mtodo de Walter Benjamin (BENJAMIN, 2004) no incio do sculo XX.

    Ao contrrio de Descartes, Benjamin propunha como mtodo a prpria experincia la-birntica. Abandonar o fio de Ariadne e se deixar levar pelo acaso, pelas contingncias, pelas surpresas. O mtodo era tambm para Benjamin um caminho, mas um caminho indireto, di-gressivo. Diferente de Descartes que buscava um caminho para ordenar o mundo, Benjamin se preocupava em assumir a desordem e sua ao sobre o sujeito em relao ao mundo. Benjamin, diferente de Descartes para quem o conhecimento se centrava apenas e to somente no sujeito, compreende seu mtodo sobre a relao entre o sujeito e o mundo sensvel, o sujeito e o objeto.

    Essa reunio entre sujeito e seu mundo tambm foi considerada por Paulo Freire, ao valori-zar a rigorosidade metdica e um pensamento considerado certo. Para Freire, pensar certo no significava excluir ou superar dvidas e erros, mas mant-los, a fim de preservar a infini-tude de um processo de conhecimento. O professor que pensa certo, segundo concepo de Freire, deixaria

    transparecer aos educandos que uma das bonitezas de nossa maneira de estar no mundo e com o mundo, como seres histricos, a capacidade de, intervindo no mundo, conhecer o mundo. Mas, histrico como ns, o nosso conhecimento do mundo tem historicidade. Ao ser produzido,

  • 18

    Un

    esp/R

    edefo

    r M

    du

    lo II D

    isciplin

    a 04

    TEMASficha sumrio bibliografia

    1

    3

    2

    4

    5

    tema1

    o conhecimento novo supera o outro que antes foi novo e se fez velho e se dispe a ser ultrapassado por outro amanh. Da que seja to fundamental conhecer o conhecimento existente quanto saber que estamos abertos e aptos produo do conhecimento ainda no existente. Ensinar e aprender e pesquisar lidam com esses dois momentos do ciclo gnosiolgico: o em que se ensina e se aprende o conhecimento j existente e o em que se trabalha a produo do conhecimento ainda no existente. A dodiscencia-docncia-discencia e a pesquisa, indicotomizveis, so assim prticas requeridas por estes momentos do ciclo gnosiolgico (FREIRE, 2010, p. 28).

    Para conquistarmos esse modo de pensar certo, necessrio que haja rigorosidade metdica, condio basilar para o ofcio pedaggico: Ensinar exige rigorosidade metdica. Assim d incio ao seu Pedagogia da Autonomia (FREIRE, 2010).

    Compreendemos um pouco melhor o significado dessa afirmao ao encontrarmos, em sequncia ao seu texto, a diferenciao entre a curiosidade ingnua e a curiosidade episte-molgica. A curiosidade ingnua reverte-se indiscutivelmente em um certo saber, mes-mo sem ser submetida a um rigor metodolgico. Acontece da pura experincia (no devemos confundir essa experincia citada por Freire com o conceito de experincia exposto por Dewey. cf. M1_D1: Repertrio dos professores em formao) e caracterizada pelo senso comum, o qual deve ser respeitado no processo de sua necessria superao.

    A curiosidade epistemolgica, por sua vez caracterizada pela rigorosidade metdica, diferenciando-se de um saber ingnuo, resultante de uma prtica espontnea ou quase es-pontnea, desarmada (FREIRE, 2010, p. 38). Para Freire, o movimento dinmico, dialtico, entre o fazer e o pensar sobre o fazer, em outras palavras, a reflexo crtica sobre a prtica, tanto sobre a prtica atual quanto a de outros tempos, o que torna possvel a transio da curiosidade ingnua curiosidade epistemolgica:

    pensando criticamente a prtica de hoje ou de ontem que se pode melhorar a prxima prtica. O prprio discurso terico, necessrio a reflexo crtica, tem de ser de tal modo concreto que quase se confunda com a prtica. O seu distanciamento epistemolgico da prtica enquanto

  • 19

    Un

    esp/R

    edefo

    r M

    du

    lo II D

    isciplin

    a 04

    TEMASficha sumrio bibliografia

    1

    3

    2

    4

    5

    tema1

    objeto de sua anlise, deve dela aproxim-lo ao mximo. Quanto melhor faa esta operao, tanto mais inteligncia ganha da prtica em anlise e maior comunicabilidade exerce em torno da superao da ingenuidade pela rigorosidade. Por outro lado, quanto mais me assumo como estou sendo e percebo a ou as razes de ser de porque estou sendo assim, mais me torno capaz de mudar, de promover-me, no caso, do estado de curiosidade ingnua para o de curiosidade epistemolgica (FREIRE, 2010, p. 39).

    Paulo Freire no desconsidera o saber que acumulamos, podemos dizer, informalmente, ao contrrio. Porm para aqueles que assumiram o conhecimento como ofcio, ns professo-res, torna-se necessria a superao desse saber informal. preciso trans-form-lo, por um processo submetido a uma rigorosa e constante ateno daquele que o responsvel pelo seu desenvolvimento. Voltando s acepes de mtodos, podemos identificar nessas afirmaes de Freire uma compreenso de mtodo como algo inerente a prtica. Mtodo para Freire estava prximo de seu significado mais antigo - assim como estava tambm para Descartes e Benja-min - entendido como investigao sobre aes e relaes implicadas na prtica, incluindo a do professor com seu ofcio, o conhecimento, - quanto mais me assumo como estou sendo e percebo a ou as razes de ser de porque estou sendo assim, mais me torno capaz de mudar, de promover-me, no caso, do estado de curiosidade ingnua para o de curiosidade epistemolgi-ca - resultando, pois, de uma operao afetiva (FREIRE, 2010).

    1.3. Metforas

    Abrimos esses nossos caminhos sobre as Metodologias para ensino e aprendizagem da arte, percorrendo vrias noes de mtodo, abordando um pensador, Ren Descartes, crucial para a formao de um pensamento ocidental moderno, ainda presente, apresentando um outro, Walter Benjamin, que traou uma noo de mtodo em contraposio preciso almejada pelo primeiro. Um buscava impor ordem ao mundo, por meio de um caminho preciso, con-siderando as incertezas, os erros, a instabilidade para super-las; o outro assumia a impreciso do caminho, traando o mtodo segundo os enfrentamentos entre o sujeito e as coisas do mundo, sem respeitar uma direo planejada. O plano se cria no ato da ao, est sujeito e complementado pelos desvios. Por ltimo apresentamos as ideias de Paulo Freire, o qual sem negar essa tradio da busca pelo conhecimento, criada por ditos, contraditos, rotinizaes de

  • 20

    Un

    esp/R

    edefo

    r M

    du

    lo II D

    isciplin

    a 04

    TEMASficha sumrio bibliografia

    1

    3

    2

    4

    5

    tema1

    conceitos pelo uso em nosso discurso e prtica, definiu e props como atributos de um profes-sor a rigorosidade metdica e o pensar certo.

    Todos esses trs pensadores, mesmo com suas divergncias e convergncias de ideias, bus-caram formas de promover o conhecimento das coisas do mundo. Nenhum deles excluiu de suas buscas a certeza de que o conhecimento se faz pela interao entre a teoria e a prtica, ou em outras palavras, a interao entre o mundo abstrato das ideias e o mundo concreto, incerto, impreciso, conturbado, desordenado da ao. Todos esses trs pensadores sabiam e nos ens-inaram que qualquer tipo de conhecimento se faz na relao complementar e dialtica entre teoria e prtica.

    Todo esse percurso inicial, assim como toda essa disciplina, teve como epgrafes dois ex-certos. O primeiro do poeta Manoel de Barros; o segundo de um conto de Jorge Luis Borges. Ambos tratam de um ponto fundamental para pensarmos Metodologias para ensino e apren-dizagem da arte, e que j comeamos a abordar: esse impasse entre a teoria e a prtica, o mundo ordenado da abstrao e o mundo catico da ao.

    Manoel de Barros nos diz que para apalpar as intimidades do mundo, para conhecer, portanto, intimamente esse mundo, devemos seguir alguns itens muito bem estruturados em a); b); c); d); e); f ); g) etc.etc.etc.; devemos pois, seguir uma ordem de procedimentos rigoro-samente estabelecida. No entanto, ao seguir tal receita, to precisamente traada, nos depara-mos com preceitos pouco convencionais, poderamos dizer at absurdos, nada afeitos ao que comumente esperaramos de uma prescrio. Para apalpar as intimidades do mundo para Manoel de Barros preciso saber, em seqncia alfabtica estrita que o esplendor da manh no se abre com faca; o modo como as violetas preparam o dia para morrer; o porqu que as borboletas de tarjas vermelhas tm devoo por tmulos; tambm precisamos saber se o homem que toca de tarde sua existncia num fagote, tem salvao; que um rio que flui entre 2 jacintos carrega mais ternura que um rio que flui entre 2 lagartos; como pegar na voz de um peixe; qual o lado da noite que umedece primeiro; e por fim, pela seqncia ordenadamente estabelecida precisamos ainda saber etc.etc.etc..

    A tenso entre a ordenao da estrutura dessa receita, nossa expectativa e seus dizeres nos demove daquilo que j sabemos a respeito de um mtodo, de uma metodologia para chegar ao conhecimento do mundo. Por isso somos obrigados a desaprender. Desaprender metodica-

  • 21

    Un

    esp/R

    edefo

    r M

    du

    lo II D

    isciplin

    a 04

    TEMASficha sumrio bibliografia

    1

    3

    2

    4

    5

    tema1

    mente durante 8 horas por dia. Nessa desaprendizagem, do j sabido, do conhecido, podemos, segundo o poeta, aprender os princpios, desse conhecimento ntimo com e sobre as coisas do mundo.

    Manoel de Barros apreende o caos do mundo em uma ordem que se mantm na iminncia da ecloso, pois o desenho catico de suas palavras fora o rompimento dessa mesma ordem que o retm. Manoel de Barros frustra nossa expectativa sobre a ordenao das coisas do mun-do, ao preservar a sua (des)ordem. preciso rearranjar o pensamento para compreender essa nova ordem criada por Manoel de Barros. Assim como na escola, cujas aulas ainda se mantm presas em grades de horrios que no as suportam mais. Vivemos um cotidiano tensionado entre dois mundos, o abstrato da tradicional conformao escolar e o nosso e de nossos alunos, cheio de desvios, completamente avesso a uma ordem ideal. A escola, com sua forma tradi-cional de organizao no mais suporta a estrutura catica e mutante de nosso mundo. Como agir, portanto, nessa zona de tenso e conflito? Enquanto insistirmos na adequao, na ordena-o ideal, ou em esperar solues externas e alheias ao nosso cotidiano, continuaremos, talvez, a sofrer as presses de uma realidade que no mais se (en)forma nos moldes tradicionais e por isso rompe, dilacera nossos planos, projetos, nossos apriores.

    Para conseguirmos uma linha razovel ou uma correta informao, h que se percorrer lguas e lguas de insensatas cacofonias, de confuses verbais e incoerncias, disse um dia Jorge Luiz Borges. O sentido das coisas no estaria nas linhas de um texto, nem nos planeja-mentos, nem na ordenao ou nas linhas caticas das mos. Os livros, assim como as recei-tas, mtodos e metodologias, em si nada significariam. S comeariam a ganhar significado, a concretizar sentidos, quando sonhados, lidos, atualizados postos em ao - por algum. O conhecimento somente acontece em sua concretude, ou seja, ao ser disposto e apreendido em relao ao mundo e aos seres que o habitam. As respostas so abstraes geradas pelos problemas reais que enfrentamos. Para elabor-las recorremos ao nosso repertrio de ideias, armazenado pelas nossas experincias, acontecimentos feitos de teoria e prtica (agora sim recorrendo a ideia de experincia de John Dewey , cf. M1_D1: Repertrio dos professores em formao).

    Buscar respostas fora do enfrentamento com nossos problemas ou sem o auxlio de outros que pensaram sobre problemas semelhantes, sem o auxlio, portanto, das ideias de outros co-legas, das ideias expostas em textos de outros autores, um caminho difcil, cansativo, talvez,

  • 22

    Un

    esp/R

    edefo

    r M

    du

    lo II D

    isciplin

    a 04

    TEMASficha sumrio bibliografia

    1

    3

    2

    4

    5

    tema1

    infecundo, inspito, improfcuo. Nem somente o mundo das ideias, sem somente a concretude da prtica, mas o dilogo entre nossos pensamentos, alimentados pelos pensamentos de outros, e a nossa prtica, as nossas aes. Somente por esse caminho feito de ideias e ao, teoria e prtica, conseguiremos elaborar e praticar boas receitas.

    Para saber mais:

    O PONTO de mutao = Mindwalk. Direo: Bernt Capra. Produo: Klaus Lintsch-inger e Adrianna Cohen. Intrpretes: Liv Ullman, Sam Waterston, John Heard. Ro-teiro: Bernt Capra. So Paulo: Versatil, 1990. 1 DVD (110 min), son., color.

    O Ponto de Mutao uma adaptao cinematogrfica do livro de Fritjof Capra e leva para o cinema as diferentes formas de pensar de uma cientista, um poltico e um poeta. Vale as-sistir para observar os diferentes pontos de vistas sobre assuntos vrios pertinentes ao nosso tempo, em uma conversa cujo desfecho dado pela poesia.

    ARHEIM, R. Intuio e intelecto na arte. So Paulo: Martins Fontes, 2004.

    Vale, especialmente a leitura do captulo A Duplicidade da Mente: a intuio e o intelecto no qual Arheim mostra a atuao da intuio e intelecto como complementares e simultneas, rompendo com a ideia comum de que so duas instncias separadas.

    EFLAND, A. Imaginao na cognio: propsito da arte. In: BARBOSA, A. M. (Org.). Arte/educao contempornea: consonncias internacionais. So Paulo: Cortez, 2005.

    Esse texto de Arthur Efland nos apresenta como foi criada historicamente a ciso entre imaginao e cognio, buscando mostrar como essa separao culturalmente estabe-lecida, e, portanto, pertinente a tempos e espaos especficos.

    Referncias Bibliogrficas para esse Tema: ABBAGNANO, N. Dicionrio de filosofia. Traduo Ivone Castilho Benedeti. So Paulo: Martins Fontes, 2003.

    BARROS, M. Poesia completa. So Paulo: Leya, 2010.

    _____. Uma didtica da inveno. In: _____. O livro das ignoras. Rio de Janeiro: Record, 2000.

  • 23

    Un

    esp/R

    edefo

    r M

    du

    lo II D

    isciplin

    a 04

    TEMASficha sumrio bibliografia

    1

    3

    2

    4

    5

    tema1

    BENJAMIM, W. Obras escolhidas: magia e tcnica, arte e poltica. Traduo Srgio Paulo Rouanet. So Paulo: Brasiliense, 1996.

    ___. Origem do Drama Trgico Alemo. Trad. Joo Barrento. Lisboa: Assrio & Alvim, 2004.

    BENEDETTI, S. C. G. Entre a educao e o plano de pensamento de Deleuze & Guattari: uma vida... 2007. 185f. Tese (Doutorado)-Faculdade de Educao, Universidade de So Paulo, So Paulo, 2007. Disponvel em: . Acesso em: 25 abr. 2011.

    _____. Origem do drama trgico alemo. Traduo Joo Barrento. Lisboa: Assrio & Alvim, 2004.

    BORGES, J. L. Obras completas de Jorge Luis Borges. So Paulo: Globo, 1999. 4 v.

    CNDIDO, A. A educao pela noite e outros ensaios. 3. ed. So Paulo: tica, 2000.

    DESCARTES, R. O discurso do mtodo. Traduo Paulo Neves. Porto Alegre: L&PM, 2005.

    ESPNDOLA, A.; ASSUMPO, I. Transpirao. Intrpretes: Ney Matogrosso; Pedro Lus e a Parede. In: Ney Matogrosso; Pedro Lus e a Parede. Vagabundo: ao vivo. So Paulo: Universal Music, 2004. 1 CD.

    FERRAZ, M. H. C.; FUSARI, M. F. R. Metodologia do ensino da arte. 2. ed. So Paulo: Cortez, 2001.

    FOUCAULT, M. A Arqueologia do saber. Traduo Luiz Felipe Baeta Neves. 6. ed. Rio de Janeiro: Forense Universitria, 2000.

    _____. As palavras e as coisas. Traduo Salma Tannus Muchail. 8. ed. So Paulo: Martins Fontes, 1999.

    FREIRE, P. Pedagogia da autonomia. 41. ed. So Paulo: Paz e Terra, 2010.

    KURZ, R. O efeito colateral da educao fantasma. Folha de So Paulo, So Paulo, 11 abr. 2004. Caderno Mais, p. 18.

    LALANDE, A. Vocabulrio tcnico e crtico da filosofia. Traduo Ftima S Correia; Maria E. V. Aguiar; Jos Eduardo Torres; Maria Gorete de Souza. So Paulo: Martins Fontes, 1999.

    MATOS, O. C. F. O iluminismo visionrio: Benjamin, leitor de Descartes e Kant. So Paulo: Bra-siliense, 1999.

    NOVAES, A. (Org.) A crise da razo. So Paulo: Companhia das Letras, 1999.

  • 24

    Un

    esp/R

    edefo

    r M

    du

    lo II D

    isciplin

    a 04

    TEMAStema2

    ficha sumrio bibliografia

    1

    3

    2

    4

    5

    Metodologias para ensino e aprendizagem de arte

    No tema anterior procuramos e apresentamos alguns dos sentidos de mtodo. Agora per-correremos as metodologias. Voltando ao Dicionrio de Filosofia de Nicola Abbagnano, quatro foram os significados encontrados para a palavra Metodologia. Desses, apresentamos apenas dois pertinentes s nossas discusses.

    Um deles a compreenso de metodologia como lgica ou parte da lgica que estuda os mtodos, sendo a lgica definida, entre outros, como a arte de bem conduzir a prpria razo no conhecimento das coisas, tanto para instruir-se como para instruir os outros, definio ps-cartesiana, di-vulgada pela Lgica de Port Royal1, publicada em meados do sculo XVII.

    1. A Lgica de Port-Royal, como era

    popularmente conhecida a Art de

    penser foi durante muito tempo o

    texto mais importante sobre lgica,

    servindo como modelo para demais

    tratados sobre esse assunto. Foi

    criada no convento de Port-Royal na

    Frana, da seu nome e publicada

    por volta de 1662.

  • 25

    Un

    esp/R

    edefo

    r M

    du

    lo II D

    isciplin

    a 04

    TEMAStema2

    ficha sumrio bibliografia

    1

    3

    2

    4

    5

    A outra acepo de metodologia, apropriada a essa disciplina, a de um conjunto de pro-cedimentos metdicos de uma ou mais cincias. Nesse sentido, a metodologia resultante da necessidade especfica de garantir sua disciplina tambm especfica o uso cada vez mais eficaz das tcnicas de procedimento de que dispem (ABBAGNANO, 2003, p. 669).

    Assim como mtodo, independente da forma como compreendida, assumida e usada, a metodologia pressupe sistematizao, conscincia e domnio sobre um processo de aquisio de conhecimento.

    Maria Heloisa Ferraz e Maria Fusari, apresentam uma concepo de metodologia em seu livro Metodologia do Ensino de Artes (FERRAZ; FUSARI, 2001). Segundo as autoras a metodologia do ensino e aprendizagem em arte integra

    os encaminhamentos educativos das prticas de aulas artsticas e estticas. Em outras palavras, esses encaminhamentos metodolgicos constituem-se em um conjunto de ideias e teorias educativas em arte transformadas em opes e atos que so concretizados em projetos ou no prprio desenvolvimento das aulas de Arte. So ideias e teorias (ou seja, posies a respeito de como devem ou como deveriam ser as prticas educativas em arte) baseadas ao mesmo tempo em propostas de estudiosos da rea e em nossas prticas escolares em arte e que se cristalizam nas propostas e aulas (FERRAZ; FUSARI, 2001, p. 98)

    Importante ressaltar a relao entre teoria e prtica como fundamento do conceito de metodologia exposto pelas duas autoras. A metodologia, do ensino da arte em nosso caso, funda-se na relao entre subsdios tericos e prticas escolares. Ela indissocivel da epis-temologia. No h possibilidade de separar o como fazemos e o como entendemos a arte e o seu ensino. Portanto, a metodologia inseparvel de nossa concepo sobre arte e de como ensinar essa arte por ns concebida:

    A metodologia educativa na rea artstica inclui escolhas profissionais do professor quanto aos assuntos em arte, contextualizados e a serem trabalhados com os alunos nos cursos. Referem-se tambm determinao de mtodos educativos, ou seja, de trajetrias pedaggicas (com procedimentos tcnicos e proposio de atividades) (FERRAZ; FUSARI, 2001, p. 98).

  • 26

    Un

    esp/R

    edefo

    r M

    du

    lo II D

    isciplin

    a 04

    TEMAStema2

    ficha sumrio bibliografia

    1

    3

    2

    4

    5

    Por citao a Jos Cerchi Fusari, as autoras incluem em seu texto uma outra definio de metodologia, complementar s ideias expostas no incio de seu texto, em afirmao ao.Conjunta entre teoria e prtica como elementar a uma elaborao metodolgica:

    A metodologia pode ser considerada como o mtodo em ao, onde os princpios do mtodo (atitude inicial, bsica de percepo da realidade e suas contradies) estaro sendo mencionados na realidade da prtica educacional. (...) Todavia, para que a metodologia cumpra esse objetivo de ampliao da conscincia fundamental que ela tenha uma origem nos contedos de ensino; considere as condies objetivas de vida e trabalho dos alunos e professores; utilize competentemente diferentes tcnicas para ensinar e aprender os contedos (...) e os diferentes meios de comunicao (FUSARI, 1988: 18-19 Apud FERRAZ; FUSARI, 2001, p. 101).

    Ressaltando sempre a relao teoria e prtica como fundadora da metodologia, Fusari e Ferraz apresentam, em seqncia ao seu texto, um quadro sinptico dos componentes cur-riculares bsicos que se inter-relacionam no planejamento e desenvolvimento desse processo educativo, quais sejam: os professores de arte, os objetivos educacionais em arte; os contedos escolares em arte; os mtodos de ensino e aprendizagem em arte; os meios de comunicao escolares em arte e os alunos de arte (FERRAZ; FUSARI, 2001, p. 102-103).

    Para articul-los, as autoras estabelecem 3 etapas constituindo uma seqncia de observa-o e avaliao, uma constatao, contnua, sobre os conhecimentos artstico e esttico dos alu-nos. A partir dessas constataes promove-se a anlise dos conceitos sobre os quais os alunos ainda no tem domnio, considerados essenciais para que ocorra gradualmente a diversificao, aprofundamento e aprendizagem pela realizao e compreenso de produes artsticas e suas histrias. Essa segunda etapa nomeada encaminhamento seria integrada, alm pela anlise de conceitos, por roteiros, por planos, flexveis de curso e pelas aulas de arte propriamente ditas, integradas por comeo, meio e fim. Finalizando a seqncia sugerida por Fusari e Fer-raz, para a articulao dos componentes curriculares bsicos para o processo metodolgico, encontramos o item discusses peridicas, fechando esse caminho em um ciclo, pois tais dis-cusses no so seno observaes e avaliaes contnuas sobre toda essa articulao, visando o rearranjo de algum de seus elementos, para promover a realizao dos objetivos que definem a direo de um processo de ensino e aprendizagem (FERRAZ; FUSARI, 2001, p. 102-103).

  • 27

    Un

    esp/R

    edefo

    r M

    du

    lo II D

    isciplin

    a 04

    TEMAStema2

    ficha sumrio bibliografia

    1

    3

    2

    4

    5

    Metodologia, portanto, um todo integrado por nossa concepo de arte, educao e de sua relao; pelo contedo escolhido pelo professor; pelas condies objetivas de trabalho; pelos objetivos. Metodologia o todo desse conjunto e tambm uma de suas partes, em ao contnua s outras que o integram. Podemos entend-la como um organismo, vivel se com-preendido na articulao e interdependncia entre as partes que o compe.

    Assim compreendida, podemos ressaltar como sua caracterstica a variabilidade. A metodo-logia transformada na medida da transformao de suas partes, alteradas, pois, suscetveis s interferncias de uma relao tempo-espao. Suscetveis, portanto, a outras ideias e prticas criadas e acumuladas ao longo do tempo em relao a diversos espaos. Voltaremos, pois, histria e tentaremos compreender as concepes metodolgicas em relao s concepes de ensino da arte de um certo tempo e lugar.

    Para tanto, apresentaremos aqui algumas das variaes metodolgicas-conceituais do en-sino da arte, compondo com esses fragmentos uma breve historiografia das Metodologias para ensino e aprendizagem da arte. Volte disciplina M1_D2: Ensino da arte: aspectos histricos e metodolgicos, da qual voc poder retomar a histria sobre arte e seu ensino, relembrando-a e a trazendo a esse texto para complement-lo.

    Queremos lembr-los e ressaltar que esse texto apenas um nfimo recorte, portanto houve uma edio e muitas aes e informaes ficaram de fora dessa disciplina. Para um conheci-mento mais aprofundado, portanto, vale a leitura dos textos, filmes, sites indicados e outros que encontrarem, caso esse texto tenha despertado o interesse pelo tema. Trouxemos a vocs al-gumas metodologias compreendidas como exemplares para mostrar as mudanas conceituais e metodolgicas e a resistncia de certas ideias que foram se configurando ao longo de alguns sculos e que mantm-se, guardadas as suas devidas variaes, em nossas prticas, livros didti-cos e paradidticos.

    Queremos ressaltar que algumas das citaes includas nesse tema 2 dessa disciplina so fontes primrias e por isso optamos por manter a sua grafia original, por entend-la tambm como um docu-mento2 - um indcio do contexto ao qual pertencem.

    2. Documento entendido aqui como dependente de causas hu-manas que no escapam de forma alguma anlise, e os pro-

    blemas postos por sua transmisso. (BLOCH apud LE GOFF,

    2006, p. 534). No o compreendemos como um feliz instrumen-

    to capaz de reconstituir o que os homens fizeram ou disse-

    ram, o que passado e o que deixa apenas rastros, como uma

    matria inerte, sobre a qual atribumos uma fala, mas como

    elemento de um tecido documental, do qual possvel inferir

    unidades, conjuntos, sries, relaes. Desta materialidade do-

    cumental, escrevemos uma histria (FOUCAULT, 2000, p. 7-8).

  • 28

    Un

    esp/R

    edefo

    r M

    du

    lo II D

    isciplin

    a 04

    TEMAStema2

    ficha sumrio bibliografia

    1

    3

    2

    4

    5

    2.1. Metodologias modernas: academicismos

    Muito ouvimos falar e falamos sobre o ensino acadmico, o ensino desenvolvido nas aca-demias de arte. A academia era um lugar especfico aonde os jovens iam para se formarem artistas. No entanto, seu mtodo de ensino de arte na escola ainda conduz a forma de pensar e praticar o ensino da arte na escola, por exemplo, ainda conduz nossos conceitos e prticas.

    Um livro elucidativo sobre a formao das academias e sobre o ensino praticado nessas in-stituies o de Nicolau Pevsner Academias de Arte: passado e presente.

    Segundo Pevsner, a sequencia de desenhos a partir de desenhos, desenhos a partir de mod-elos em gesso e desenhos a partir de modelo-vivo era considerada o fundamento do curr-culo acadmico (PEVSNER, 2005, p. 149). Tal procedimento era preconizado por diferentes tericos em textos sobre o assunto, mesmo que sem a devida referncia ao velho currculo de Squacione e Leonardo da Vinci. Essa ressalva foi feita por Pevsner com a inteno de mostrar que um programa em vigor durante os sculos XVIII e XIX tinha por fundamento um mtodo realizado no sculo XVI.

    H uma gravura do sculo XVIII, reproduzida e publicada no livro de Pevsner, apresentan-do as etapas da sequencia mencionada. Junto a imagem encontramos a seguinte legenda:

    Programa de ensino de arte na Frana no sculo XVIII. Esta gravura de C. N. Cochin, o Jovem, data de 1763 e encontra-se no comeo da srie de ilustraes do verbete desenho da Encyclopdie de Diderot dAlembert. Pode-se ver, esquerda, o desenho a partir de desenhos; ao centro, o desenho a partir de modelo em gesso, e direita, ao fundo, o desenho a partir do nu (PEVSNER, 2005, p. 148).

    Como vimos na M1_D2: Ensino da arte: aspectos histricos e metodolgicos, o ensino da arte no Brasil foi influenciado por essa conformao europia. O mtodo de ensino de dezenho usado na Escola Nacional de Bellas Artes durante os primeiros anos da Repblica brasileira (1890-1930) mantinha-se coerente com o modelo acadmico.

    Abaixo reproduzimos por exemplo, o Programa das disciplinas prticas do curso de Pin-tura da Escola nacional de Belas Artes durante a 1. Repblica3, trazendo a seguinte metodo-logia de ensino:

  • 29

    Un

    esp/R

    edefo

    r M

    du

    lo II D

    isciplin

    a 04

    TEMAStema2

    ficha sumrio bibliografia

    1

    3

    2

    4

    5

    Programa para a aula de Dezenho Figurado da Escola Nacional de Bellas Artes

    Todo discpulo que entrar para a aula de dezenho obrigado fazer um trabalho de prova, e conforme o trabalho que apresentar, entrar nas seguintes classes:

    1 anno

    1. desenho linear e figuras geomtricas

    2. desenho de folhas e ornamentos,copias de phototypias

    3. as mesmas folhas e ornamentos formadas do natural e reproduzidas em gesso

    4. modellos em gesso apresentando bocca, nariz, olhos, orelhas, etc.

    2 anno

    5. partes de extremidades mos, ps, etc., formados em gesso do natural

    6. mascaras troncos, braos, pernas, formado do natural

    7. bustos, cabeas, troncos de originaes antigos

    3 anno

    8. figuras antigas em tamanho natural (conforme o espao que houver na sala de dezenho)

    9. retratos em tamanho natural, modello vivo

    Para estes estudos absolutamente necessrio que as salas sejo illuminadas com uma luz de 45 grus.

    Capital federal, 8 de junho de 1891

    3. Essa e outras informaes sobre a Escola

    Nacional de Bellas Artes podem ser encon-

    tradas no site http://www.dezenovevinte.net

  • 30

    Un

    esp/R

    edefo

    r M

    du

    lo II D

    isciplin

    a 04

    TEMAStema2

    ficha sumrio bibliografia

    1

    3

    2

    4

    5

    Outro estudo elucidativo sobre mtodo de ensino durante o sculo XIX no Brasil a tese de doutorado de Renato Palumbo Dria (2005), Entre o Belo e o til: manuais e prticas de en-sino do desenho no Brasil do sculo XIX, defendida na Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de So Paulo FAU-USP.

    A pesquisa de Renato Palumbo Dria sobre manuais de ensino de desenho que circula-vam no Brasil durante o sculo XIX, alguns de origem portuguesa, sempre trazendo refern-cias acadmicas. De sua tese apresentamos a citao de um anncio para modelo vivo publi-cado em um jornal de 1834. Nessa podemos encontrar, explicitamente, a concepo acadmica europia de ensino da arte como um paradigma a ser seguido:

    A Academia das Bellas Artes, para equiparar os meios de estudo, que ela oferece aos Alunos, como os das mais Academias da Europa, necessita de um homem Branco, Nacional ou Estrangeiro, robusto e jovem, que sirva de modelo. Quem estiver nas mencionadas circunstancias pode-se dirigir mesma Academia na travessa Sacramento, das onze horas da manh at s duas da tarde, para tratar do ajuste, que ser favorvel ( DRIA, 2005, p. 104).

    Um outro livro, tambm sobre o ensino acadmico e sua interferncia na formao espe-cfica de artistas mulheres brasileiras o de Ana Paula Simioni Profisso Artista: pintoras e escultoras acadmicas brasileiras. Como exemplo do rigor do mtodo acadmico, destacamos do texto de Siminoni o seguinte trecho sobre um desenho reprovado da ento aluna de escultura Julieta Frana:

    Um desenho por ela elaborado em 1899, a partir do gesso, recebeu parecer contrrio da comisso [...]. De fato a produo continha defeitos evidentes. Especialmente no que concerne aos erros grosseiros de anatomia: como o exagerado cotovelo esquerdo que se confunde com uma suposta prega a pender do meio das costas, ao que se seguia o contorno excessivamente volumoso nas ndegas e ainda os tendes demasiadamente pronunciados na perna esquerda do modelo, uma estatueta em gesso. Mas havia tambm a demonstrao de certas qualidades, como o bom uso das sombras e um dom para a captao de volumes. Se o desconhecimento anatmico e a incapacidade de registrar o objeto eram aspectos profundamente comprometedores para qualquer estudante de belas-artes, em se tratando dos escultores eram negligencias imperdoveis (SIMIONI, 2008, p. 169).

  • 31

    Un

    esp/R

    edefo

    r M

    du

    lo II D

    isciplin

    a 04

    TEMAStema2

    ficha sumrio bibliografia

    1

    3

    2

    4

    5

    Julieta Frana ganhou uma bolsa para estudar na Acadmie Julien em Paris, uma referncia do ensino da arte no sculo XIX. Desse perodo, Ana Paula Simioni coletou um outro de-senho, do qual pode-se verificar os principais ensinamentos da escola: a observao segura e competente; a nfase em um desenho fidedigno com contornos distinguveis; e a ateno aos volumes obtidos com uso de sombreamentos (SIMIONI, 2008, p. 159).

    O estudo e aplicao das propores era outro elemento fundamental do rigor metodolgi-co do ensino e concepo acadmica da arte. Outra citao da tese de Renato Palumbo Dria demonstra como esse era um elemento norteador dos mtodos acadmicos, inclusive servindo de parmetro para os crticos da poca:

    [...] perguntaremos ao Sr. Moreau Velho, porque razo se no sujeita as regras mais triviais do desenho? Ns julgamos ter ouvido dizer que a estatura ordinria de um homem, ou de uma mulher, de sete cabeas para o talhe ordinrio, e de sete e meia para as figuras altas. Pensamos que nenhuma das figuras do Sr. Moreau tem mais de seis cabeas. Este defeito tira toda a graa, toda a elegncia a esta composio: estas cabeas colossais sobre corpos enguiados nos representam um povo de hydrocfalos [...] triste (DRIA, 2005, p. 118).

    A arte acadmica assim como o seu ensino, traziam o rigor e a preciso das relaes matemticas e de pesquisas realizadas no mbito da cincia da anatomia. Caso a apropria-o das pesquisas feitas por Pieter Camper, tambm conhecido por Petrus ou Pierre Camper, anatomista holands nascido em 1722. Os resultados de seus estudos sobre a anatomia, es-pecialmente a craneometria ou intellectometria, realizados ao final do sculo XVIII, foram in-corporados como diretrizes para a elaborao do desenho da figura humana, por exemplo, em auxilio descriminao de raas, nacionalidades, temperamentos.

    Tais pesquisas pautavam-se na medio craneana, estabelecendo uma relao entre a me-dida do ngulo facial e a inteligncia do animal pesquisado. Em sua tese, Dria comenta a interferncia dos estudos de Camper sobre a arte e seu ensino, apresentando-os como parte da cultura cientifica do sculo XVIII, e que alcanariam grande popularidade nos sculos XIX e XX sedimentando, indiretamente um aparato conceitual que serviria ao racismo, fortal-ecendo os pressupostos da criminologia e da eugenia (DRIA, 2005, p. 119).

  • 32

    Un

    esp/R

    edefo

    r M

    du

    lo II D

    isciplin

    a 04

    TEMAStema2

    ficha sumrio bibliografia

    1

    3

    2

    4

    5

    Entre as publicaes de Camper, Dria cita uma com um ttulo elucidativo: A conexo entre a cincia da anatomia e as artes do desenho, pintura e estatuaria de 1794. Camper, fazendo uso do Apolo de Belvedere como modelo de perfeio, justifica cientificamente, a noo de belo ideal (DRIA, 2005, p. 120).

    Como exemplo da interferncia das pesquisas de Pieter Camper sobre a concepo da arte, Dria cita um trecho de uma revista de 1845, no qual um crtico comenta os retratos do im-perador Pedro II:

    [...] Parece-nos que o respeito, o bom gosto, o amor da verdade deveriam proibir uma representao to falsa de SS.MM.II. D. Pedro II tem-se tornado um belssimo homem, sua cabea tem muito carter, sua tez de uma grande fineza de tom, sua fronte desenvolvida anuncia uma alta inteligncia, seus olhos so brandos ainda que observadores, seus cabelos so de um louro todo germnico, sua mo muito delicada. Dizei-me, na verdade, v-des ns alguma coisa que se assemelhe a tudo isso nos retratos que h alguns anos afluem nas exposies? Geralmente exageram tanto as qualidades da cabea imperial que dela fazem defeitos; sua tez delicada torna-se cadavrica, sua grande fronte torna-se de dimenses impossveis, sua oval, um pouco alongada, torna-se disforme (DRIA, 2005, p. 120).

    As pesquisas de Camper resistiram ao tempo. Um exemplo de sua sobrevivncia est con-tido em 3 pginas de uma publicao brasileira de 1932, intitulada Methodo de Desenho Pintvra e Arte Applicada.

    Durante 15 anos a religiosa irm Maria Raphaela trabalhou na elaborao desse seu methodo o qual compreende um perodo de 6 anos de estudos sobre arte, direcionado, particularmente, educao das senhoritas, e por isso laureado em sua apresentao feita pelo professor An-tonio Rocco:

    este sem dvida, um livro instrutivo e de grande utilidade. Alm da diversidade e seleo dos assuntos, cujo conhecimento necessrio, principalmente s senhoritas, so eles tratados de maneira simples, demonstrando, porem, um profundo conhecimento da matria; noes de geometria, arte aplicada, desenho, noes de perspectiva, biografia de artistas celebres, historia da arte, pintura, arte de pintar, etc.

  • 33

    Un

    esp/R

    edefo

    r M

    du

    lo II D

    isciplin

    a 04

    TEMAStema2

    ficha sumrio bibliografia

    1

    3

    2

    4

    5

    Tudo isso repito, exposto com uma clareza e simplicidade tais, que se torna acessvel a qualquer inteligncia (RAPHAELA, 1932).

    O trabalho de Camper aparece no volume II desse livro que compreende as aulas dos IV, V e VI annos. As alunas encontrariam esse contedo da aula de desenho, em seu IV ano de estudos.

    O texto introdutrio ao estudo sobre angulo facial traz a seguinte afirmao:

    Segundo as observaes dos anatomistas, a medida do angulo facial uma referencia certa para reconhecer e estabelecer scientificamente o nivel relativo das faculdades intellectuaes nos animaes. Quanto mais o facial for aberto, mais a raa qual pertence o animal occupa um logar elevado na escala dos seres...A inveno desse processo engenhoso, que se poderia chamar craneomtria ou mais exactamente a intellectometria [...] devida ao anatomista hollandez Pierre Camper e conserva o seu nome. Diz-se indifferentemente angulo facial ou angulo de Camper (RAPHAELA, 1932, p. 11).

    A autora continua o texto com uma advertncia sobre a transformao das concluses de Camper em lei por alguns sabios que vieram depois delle. Porm, nem mesmo o prprio Camper teria extrado todas as consequencias de sua descoberta. Por esse motivo eram ne-cessrias algumas reservas sobre os veredictos pronunciados pela jurisprudencia empririca do angulo de Camper. No entanto, as excees de preciso dos estudos de Camper eram de um nmero muito pequeno, segundo a autora. A exatido dos resultados dos estudos de Camper superavam o nmero de suas excepes. Valendo-se dessa concluso, a autora de Methodo de Desenho Pintvra e Arte Applicada, afirmava que no se poderia seno prestar ho-menagem justeza assim como originalidade desta especie de criterio achado por Camper. Segue o texto um exemplo das concluses de Camper endossado por irm Maria Raphela, o qual hoje reconhecido, identificado e rechaado, com indignao, como um contedo dis-criminatrio.

    Segundo a autora, como o grau de inteligncia estaria associado a abertura do ngulo fa-cial, os escultores da Grcia antiga, teriam uma tendncia a exaggerar a amplitude do angulo facial de suas figuras. As mais bellas estatuas ofereceriam um ngulo facial de 90. e meio.

  • 34

    Un

    esp/R

    edefo

    r M

    du

    lo II D

    isciplin

    a 04

    TEMAStema2

    ficha sumrio bibliografia

    1

    3

    2

    4

    5

    Os textos que integravam o contedo desse livro de irm Maria Raphaela vinham acom-panhados de perguntas como forma de fixao do contedo terico. Exerccios prticos tam-bm eram propostos, sempre a partir de um contedo terico precedente.

    Alm de referenciar Pieter Camper, esse Methodo de Desenho Pintvra e Arte Applicada de 1932, trazia como contedo das aulas sobre myologia expressiva observaes e desenhos de Charles Le Brun, nome fundamental da arte acadmica, no somente por ter sido o pintor ofi-cial do rei Luis XIV e diretor da Academia Real de Pintura e Escultura em 1663, mas tambm por ter elaborado um compndio que normatizou, inclusive o senso comum indiretamente - sobre o desenho das paixes humanas, das emoes: O mtodo para aprender a desenhar as paixes, ou Caracteres das Paixes.

    O pintor Charles Le Brun, segundo a irm Maria Raphaela, escreveu um tratado sobre as paixes debaixo do ponto de vista expressivo e pittoresco, no hesita em considerar as so-brancelhas como principal instrumento da linguagem dos olhos (RAPHAELA, 1932, p. 168).

    A autora finalizar os estudos sobre a myologia expressiva, cujo conjunto constitue o jogo da physionomia, com alguns croquis muito interessantes do pintor Le Brun [...] tirados de seu lbum muito pouco conhecido: Caracteres das paixes (RAPHAELA, 1932, p. 7).

    O Mthode pour apprendre dessiner les passions (Mtodo para aprender a desenhar as paixes), divulgado por volta de 1698, se tornou referncia para mtodos e manuais de ensino e apre-ndizagem da arte e do desenho, mantendo-se como uma referncia durante sculos como foi observado por sua citao em Methodo de Desenho Pintvra e Arte Applicada de 1932.

    Um dos manuais de desenho mencionado por Renato Palumbo Dria em sua tese, trazia o apndice Caracteres das paixes segundo M. le Brun por M. le Clerc para uso da Mocidade Portugueza offerecido A S. A. R. [ Sua alteza real], O Prncipe Regente Nosso Senhor, uma publicao sem data precisa, mas que provavelmente faz parte do sculo XVIII, segundo o au-tor que ressaltou ainda tratar-se de um contedo que prescrevia uma frmula que teria grande sucesso no sculo XIX (DRIA, 2005, p. 120).

    Ainda hoje, no sculo XXI, podemos nos encontrar com as prescries de Le Brun sobre as expresses fisionmicas. Alguns manuais oferecidos como livros paradidticos para o ensino fun-damental, trazem, guardadas as devidas variaes, os ensinamentos desse pintor do sculo XVII.

  • 35

    Un

    esp/R

    edefo

    r M

    du

    lo II D

    isciplin

    a 04

    TEMAStema2

    ficha sumrio bibliografia

    1

    3

    2

    4

    5

    O mtodo de ensino acadmico, ainda resistente em variaes, como dissemos, fundou e nos legou uma forma de compreender e realizar a arte e seu ensino, bem como o padro de um certo tipo de beleza, que nos move, mesmo depois de tanto tempo, a identificar o bonito e o feio, o bom e o mau desenho.

    No entanto, esse tipo de ensino resiste em convivncia com seus contrrios. Segundo Pe-vsner, desde meados do sculo XVIII vinha se configurando um movimento em oposio s academias, intensificado entre o final desse sculo e inicio do XIX. Artistas, escritores e fil-sofos do Sturm und Drung (Tempestade e mpeto) e do Romantismo manifestavam-se con-trariamente a arte e a educao artstica desenvolvidas nas academias. Schiller (cf. M2_D4: Esttica), por exemplo, em uma carta de 1783, escreveu: Pode haver entusiasmo onde reina o esprito das academias? . O conceito de gnio, da genialidade do artista, concebida e as-sumida pelos romnticos justificava o ensino como realizado ento, como algo suprfluo.

    O programa das academias da poca era organizado de tal forma que durante todo o primeiro ano, o estudante se limitava a desenhar disiecta membra [elementos isolados]: olhos, focinhos, narizes, orelhas e faces, mos e ps, de acordo com as normas [...] Os estudantes adiantados elaboravam suas figuras pelo mesmo mtodo, fazendo um inventrio de atitudes tiradas de obras clebres, e suas composies, como arrolamentos de figuras completas emprestadas das mesmas fontes (PEVSNER, 2005, p. 248).

    Em contrapartida a esse mtodo acadmico, os artistas e pensadores integrantes desse movi-mento romntico de oposio academia, propunham um ensino livre de regras, afeito a inven-o, liberdade de expresso: No gaste muito tempo fazendo cpias; experimente inventar, uma atividade beatfica. Na concepo desses opositores, arte no se aprenderia como se apre-nde a contar; a arte livre, no assunto para professores. Um mtodo de ensino nesse caso se mostrava como contradio. Como resolver, portanto o ensino da arte, se arte livre e no pode ser aprendida? A soluo no foi abolir o mtodo, tampouco o ensino. Esses artistas e pensadores do final do sculo XVIII e inicio do XIX enfrentaram esse paradoxo, disseminando a ideia - a qual nos acompanha at hoje, junto as reminiscncias acadmicas de que se deixasse cada um trabalhar sua maneira, segundo sua forma de expresso, e ajudem o estudante com seus conselhos, em vez de lhe impor a regra. Essa ideia pertinente aos sculos XVIII e XIX pode

  • 36

    Un

    esp/R

    edefo

    r M

    du

    lo II D

    isciplin

    a 04

    TEMAStema2

    ficha sumrio bibliografia

    1

    3

    2

    4

    5

    ser considerada como uma das origens do ideal da livre-expresso, fundamental para o ensino da arte realizado em ateliers e museus ao longo do sculo XX, especialmente em sua primeira metade. O pensamento romntico abriu espao para ideais firmados como modernistas.

    Para saber mais:

    BARBOSA, A. M. Arte-educao no Brasil. 3 ed. So Paulo: Perspectiva, 1999.

    Podemos dizer que esse livro de Ana Mae Barbosa um clssico sobre a histria das re-laes entre arte e educao no Brasil entre o final do sculo XIX e incio do XX. O livro traz, alm das implicaes polticas dessa relao, fontes primrias que apresentam trechos de pensamentos sobre arte e educao durante esse perodo.

    COMENIUS. Didtica magna. Traduo Ivone Castilho Benedetti. 3. ed. So Paulo: Martins Fontes, 2006.

    Outro clssico sobre educao, escrito no sc. XVII, e vale ser lido somente por isso. A Didtica Magna de Comenius atravessou os sculos e se tornou uma referncia para educa-dores da transio do XIX para o XX. Especialmente h uma parte dedicada ao Mtodo de Ensino das Artes, na qual podemos identificar ideias que nos so bastante familiares.

    ROUSSEAU, J. J. Emlio ou da educao. Traduo Roberto Leal Ferreira. 2. ed. So Paulo: Martins Fontes, 1999.

    Mais um clssico sobre educao. Nesse livro, Rousseau trata de ideias educacionais pela histria de formao do menino Emlio. H belos trechos sobre o ensino do desenho e sobre o conceito de liberdade nesse texto do sculo XVIII que tambm se tornou referente para o pensamento educacional da primeira metade do sculo XX, que no deixa de ser tambm nosso, por isso vale a leitura.

    2.2. Metodologias modernas: modernismos

    Artistas e intelectuais do primeiro modernismo brasileiro, imersos na tendncia das van-guardas europias, incentivavam a valorizao da produo grfica e plstica infantil.

  • 37

    Un

    esp/R

    edefo

    r M

    du

    lo II D

    isciplin

    a 04

    TEMAStema2

    ficha sumrio bibliografia

    1

    3

    2

    4

    5

    Flvio de Carvalho, por exemplo, realizou no ano de 1933 o mez dos alienados e das cri-anas no CAM, Clube dos Artistas Modernos, um evento dedicado ao debate sobre a arte produzida pelos loucos e pelas crianas. Palestras sobre a Interpretao dos desenhos de crianas e o seu valor pedagogico, sobre a Psychanalyse dos Desenhos dos Psychopathas, sobre A arte e a Psy-chiatria atravs os tempos e A musica nos Alienados, entre outras foram proferidas durante esse mez. Sobre esse evento publicado o artigo Crianas-artistas, doidos-artistas na revista ca-rioca Rumo4. Nesse, foram includos trechos atribudos a Flavio de Carvalho sobre a profunda importncia psychologica da produo infantil, quando no estupidamente controlada pelos professores, como evidncias de todo o drama animico dos homens das cavernas, do epith-ecanthropus erectus. Alm desse mrito, a produo infantil teria um valor artstico, pois para esse artista modernista os verdadeiramente grandes artistas possuam a mesma espontanei-dade inconsciente da criana, e preservavam-se distncia dos trucs dos prestidigitadores das escolas de belas artes, responsveis por abafar ou matar qualquer surto de originalidade que aparece na fantazia da criana.

    Anita Malfatti foi outra modernista que incentivou a valorizao sobre a expresso infantil. No apenas como artista formada sob a orientao expressionista, mas tambm como pro-fessora de desenho e pintura para crianas. Anita Malfatti inovou a concepo de ensino de desenho vigente, ao considerar os sentimentos infantis. Em um artigo sobre a exposio das produes de seus alunos, intitulado Mostrando as crianas os caminhos para a sua formao artstica, publicado no jornal Correio da Tarde em 1 de dezembro de 1930, a pintora e profes-sora Anita Malfatti, expe seu methodo de ensino, cujo ponto de partida era a ideia de que:

    todo individuo de intelligencia normal pde ser um artista. Da mesma forma por que manifesta suas ideias e as consubstancia na escripta, igualmente pde expressar no desenho o seu pensamento e minucial-o das mais complexas formas imaginveis. Na criana normal, notadamente, instinctiva essa intuio artstica. Para desenvolvel-a basta despertar no desenho essa atividade creadora que a imaginao provoca. E isso se consegue por um trabalho orientado scientificamente, tendente a sua ida, inspirada na prpria imaginao. Aproveitando-se dessa forma a technica, procura-se exprimil-a de acordo com as qualidades bsicas que cada criana possue. Nunca contrarial-a na sua inclinao, porm deixal-a manifestar o seu sentimento livremente. O que produz maior sensibilidade ndole infantil justamente o que serve de motivo (MALFATTI, 1930).

  • 38

    Un

    esp/R

    edefo

    r M

    du

    lo II D

    isciplin

    a 04

    TEMAStema2

    ficha sumrio bibliografia

    1

    3

    2

    4

    5

    Na sequencia desse artigo exemplificada uma situao de aula de Anita Malfatti. Foi pedido aos alunos que desenhassem um pic nic. O articulista pondera que se isso fosse pedido a um adulto, as imagens mais obvias de um pic nic seriam realizadas. No entanto, as crianas por terem se deixado levar pela sensao do passeio, desenharam despertadores de vrios taman-hos [...] trem [...] praias com banhistas. O aparente estranhamento causado por essa diversi-dade de imagens incomuns para um pic nic, era justificado pela considerao subjectividade. Dos desenhos apresentados, depreendia-se o elevado grau fantasista de seus alumnos.

    Sobre o methodo usado em suas aulas de pintura, Anita Malfatti teria afirmado que este era

    meramente mecanico e intuitivo, orientado por observaes psychologicas que me induzem a aproveitar o sentimento do alumno. Dessa maneira no uso determinado assumpto, porm, uma infinidade, promanados de uma suggesto do aprendizado, que se utilisa e estimula.

    [...]

    Baseio meu methodo [...] na inclinao de cada um, procurando realizar um trabalho collectivo

    [...]

    A technica instinctiva. Todo o individuo pode desenhar, desde que tenha intelligencia normal.

    (MALFATTI, 1930).

    Dessas suas convices, e da constatao de que 75% de seus alunos desenhavam com fa-cilidade, Anita Malfatti julgava, segundo o artigo, errada a opinio publica que restringe os artistas a uma insignificante minoria.

    Em continuidade a apresentao do mtodo da professora Anita Malfatti, nos exposto a preferncia pelos desenhos mais simples: todos objectivos. De preferncia assumptos esporti-vos, divertimentos. O necessrio realmente era fazer a criana interessar-se pelo prprio trabalho e tel-o como um coisa agradvel e jamais como uma obrigao aborrecida.

  • 39

    Un

    esp/R

    edefo

    r M

    du

    lo II D

    isciplin

    a 04

    TEMAStema2

    ficha sumrio bibliografia

    1

    3

    2

    4

    5

    Tarsila do Amaral e Mrio de Andrade comentaram tambm em artigos de jornal essa exposio de trabalhos dos alunos de Anita Malfatti. Tarsila pelo texto Instruco Artstica-Infantil, publicado em 28 de janeiro de 1931 no Correio da Tarde, ressaltou o cultivo imagi-nao de seus alumnos. Mrio de Andrade, por sua vez, exalta a qualidade espontnea dos tra-balhos criticando aqueles que demonstravam ainda uma certa propenso cpia, frios como Cambuci. Para ele, nesta mostra havia no s muito que aprender como teoria de pintura e como psicologia, mas tambm umas trs ou quatro obras-primas indiscutveis.

    Mrio de Andrade problematizava o reconhecimento da produo plstica e grfica infantil como obra de arte (COUTINHO, 2002). Estabeleceu critrios de julgamento para qualificar o valor artstico, responsabilizando o acaso pelo aparecimento de uma verdadeira obra de arte realizada por crianas, pois a criana no estaria ainda munida das verdades crticas que per-mittem ao adulto suprir com tecnica geral as falhas e incertezas da imaginao criadora. Por outro lado, como lhe foi observado pela prpria pintora Anita Malfatti, a criana possuiria por instinto todos os princpios basicos da tecnica da pintura. Chegando mesmo a, dentro das normas gerais da tcnica, inventar sua tecnica particular (ANDRADE, 1930).

    A exposio dos trabalhos infantis orientados por Anita Malfatti foi realizada em 1930, momento modernista de uma agudizao da conscincia poltica entre artistas e intelectuais, expressa em produes artsticos-literrias cuja nfase recai sobre o drama social brasileiro. A reunio de uma conscincia nacionalista e do interesse pelo social criam um modernismo que substitui o projeto esttico e a euforia dos anos de 1920 por um projeto ideolgico, expand-indo seu campo de atuao, antes limitado ao artstico (LAFET, 2000, p. 28).

    No mesmo ano dessa exposio, em 26 de fevereiro de 1930, Fernando de Azevedo, um dos principais nomes do escolanovismo brasileiro, pela palestra A Arte como instrumento de Educa-o Popular na Reforma, realizada na Sociedade de Educao de So Paulo (AZEVEDO, 1958, p. 117-131), sustentava sua defesa sobre a insero da arte nas escolas, por identificar nela um carter ldico e familiar. Para Azevedo a arte falaria direto ao corao do povo, pois seria sua nica forma de expresso, alm de ser seu recreio, seu drama, seu anelo e sua esperana. Para o projeto escolanovista, a arte representava um poderoso instrumento de aproximao, persuaso e socializao. A arte era uma possibilidade de educao e padronizao dos senti-dos. As manifestaes artsticas e culturais, sob o controle das autoridades responsveis, seriam

  • 40

    Un

    esp/R

    edefo

    r M

    du

    lo II D

    isciplin

    a 04

    TEMAStema2

    ficha sumrio bibliografia

    1

    3

    2

    4

    5

    instrumentos para a reeducao esttica e cultural do povo (LOPES, 2000, p. 409). A arte seria, neste sentido uma forma superior da prpria sociabilidade, da simpatia universal, um agente da comunho de sensaes e sentimentos, genitora de simpatia e [...] solidariedade social, proporcionando, inclusive a adequao a um regime de vida e trabalho em comum (AZEVEDO, 1958, p. 119).

    A arte na escola contribuiria, segundo Azevedo, para o desenvolvimento do bem-estar do indi-vduo e da comunidade, promovendo a sensibilizao das novas geraes ao encanto espiritual das coisas delicadas e ao despertar, como que por instinto todas as formas que pode revestir a beleza, para que o sujeito, alm de descansar o esprito da tenso constante das atividades mod-ernas, tivesse tambm a possibilidade de recrear, isto , criar de novo, pr em vibrao, renovar e elevar a mentalidade embotada pelas ocupaes cotidianas s altas esferas do pensamento, das inspiraes da arte e dos grandes ideais da vida humana (AZEVEDO, 1958, p. 119).

    Azevedo mencionar o valor de cada uma das linguagens artsticas para esse projeto educa-cional, no entanto, ao falar do desenho infantil o tratou como manifestao espontnea e cria-dora da criana, rechaando o exerccio da cpia e enaltecendo o incentivo produo livre de quaisquer influncias prejudiciais. Destacou a importncia da originalidade e ingenuidade desses desenhos, que no seriam na primeira idade, resultado de observao da natureza, mas representaes plsticas de seus estados de alma.

    O discurso da livre-expresso ganhar fora ao longo da primeira metade do sculo XX, tornando-se tambm um mtodo de ensino, embora mais prximo do sentido de educao atravs da arte, como exposto por Herbert Read. No final da dcada de 1940, a livre-expresso, nesse sentido, mover muitas aes educativas, configurando uma tradio modernista. O movimento Escolinhas de Arte do Brasil, EAB, criado por Augusto Rodrigues (cf. M1_D2: Ensino da arte: aspectos histricos e metodolgicos) foi o grande responsvel pela instituio desse tipo de ensino da arte.

    Outra ao realizada sob essa tendncia foi o Club Infantil de Arte do Museu de Arte de So Paulo, criado e orientado pela atriz de teatro de bonecos Suzana Rodrigues.

    As crianas que freqentavam esse Club criado em abril de 1948, eram incentivadas a trab-alhar em grupo, pintando e desenhando sobre grandes pedaos de papel dispostos sobre mesas, cho e paredes. O mnimo de orientao era dado. Por essa concepo moderna e modernista,

  • 41

    Un

    esp/R

    edefo

    r M

    du

    lo II D

    isciplin

    a 04

    TEMAStema2

    ficha sumrio bibliografia

    1

    3

    2

    4

    5

    que valorizava a expresso infantil, o professor deve falar o mnimo possvel, se ele puder ser mudo melhor!, como nos contou Suzana Rodrigues, em entrevista realizada para a pesquisa de mestrado intitulada Das lembranas de Suzana Rodrigues: tpicos modernos de arte e educao5. Mas essa livre-expresso dos anos de 1940 e 1950 no era a mesma livreexpresso da dcada de 1970. Nesse modernismo da metade do sculo XX, o aluno no era deixado a fazer. Sua inteno era considerada, no entanto, se esse aluno comeasse a se repetir ou se distanciasse de uma representao natural, seria o momento de interveno do professor:

    claro que se uma criana estiver desenhando uma figura humana com oito dedos, seis dedos, o papel do professor chegar muito habilmente e dizer: opa! Vamos olhar nossa mozinha, pe sua mozinha aqui e vamos contar 1,2,3,4,5 e l quanto que tem? Vamos contar quanto tem. Ento c est errado, no pode ser seis. E assim dessa maneira voc vai induzindo uma criana a observar melhor, a fazer melhor, copiar melhor, reproduzir melhor, ela est aprendendo a entender que no como ela quer s vezes precisa ser como : uma mo, cinco dedos (RODRIGUES apud BREDARIOLLI, 2004, p. 194).

    O professor deveria ficar atento a essas situaes, e conduzir o aluno quando considerasse necessrio, conforme constatamos pelo relato de Suzana Rodrigues, citado acima. No entanto, tambm deveramos ficar atentos, ainda segundo suas palavras para no

    exigir da criana mais do que ela pode nos dar, assim, o respeito e o acatamento a toda a manifestao da sua personalidade, deve ser o nosso principal cuidado. Devemos compreender que todo o desenho produzido livremente por uma criana antes de mais nada um retrato da sua alma, uma descarga das suas emoes. Antes de julg-lo pela perfeio de suas formas, devemos analis-lo pela sua expontaneidade (RODRIGUES apud BREDARIOLLI, 2004, p. 216).

    A expontaneidade da criana, para esses modernistas, era o que deveria ser incentivado e preservado, pois como vimos, os desenhos infantis produzidos livremente eram considerados retratos da alma. Os adultos, portanto, deveriam se limitar a observar e interferir, sempre habil-mente, em ltimo caso, para no obstruir a expresso da criana, como exemplificado por outra histria contada por Suzana Rodrigues sobre seu trabalho no Museu de Arte de So Paulo:

  • 42

    Un

    esp/R

    edefo

    r M

    du

    lo II D

    isciplin

    a 04

    TEMAStema2

    ficha sumrio bibliografia

    1

    3

    2

    4

    5

    Eu disse : minha senhora, no pode interferir no trabalho do seu filho. Na sua casa a senhora j est errando, se ele estiver fazendo alguma coisa que a senhora quer que seja. Agora, aqui no! Aqui, se ele diz que um cavalo e o que a senhora v um cachorro problema seu! Aqui se ele disse que cavalo cavalo mesmo! (RODRIGUES apud BREDARIOLLI, 2004, p. 216).

    Entre as atividades realizadas por Suzana Rodrigues para exerccio da livre-expresso estava a da Sala Suja, lugar onde a