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Mártires da China 1900

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INDEX

1 - O documento reencontrado ...................................... p. 5

2 - As testemunhas.............................................................. p. 6

3 - Os mártires ..................................................................... p. 8

4 - Contexto histórico e social......................................... p. 12

4.1 - A China ................................................................ p. 12

4.2 - Os Boxers ............................................................ p. 13

4.3 - Os cristãos chineses ......................................... p. 15

4.4 - A Igreja de Pequim ........................................... p. 17

5 - Os mártires das paróquias de Pequim .................... p. 19

5.1 - A paróquia de Si-t’ang ..................................... p. 19

5.2 - A paróquia de Nan-t’ang ................................ p. 21

5.3 - A paróquia de Tong-t’ang................................ p. 25

6 - Os Mártires de aldeias ao redor de Pequim .......... p. 29

6.1 - Aldeias de Koan-t’eu, Ts’ai-Hu-Yng e Wa-Ts’iuen-Sze .................... p. 29

6.2 - Aldeia de Yen-Tze-K’eou................................. p. 30

6.3 - Aldeias de Tcheng-Fou-Sze, Heou-t’ouen,Si-Siao-K’eo e Eul-pouo-Tze .......................... p. 35

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7 - A irmã Filomena Tchang .......................................... p. 39

8 - A Família Yun ...............................................................p. 45

9 - A hecatombe dos pequenos.....................................p. 49

10 - Os Missionários Lazaristas........................................p. 53

10.1- R.P. Julio Garrigues...........................................p. 53

10.2- R.P. Maurice Charles Pascual Doré..............p. 58

10.3- R.P. Pascal Raphaël D’Addosio .....................p. 61

11 - Os Irmãos Maristas .....................................................p. 64

11.1- Irmão Julio André..............................................p. 65

11.2- Irmão José Felicidade.......................................p. 68

11.3- Irmão José Maria Adon....................................p. 72

11.4- O requerente Pablo Jen ...................................p. 77

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1.O documento reencontrado

Havia muitos anos que perdêramos todo e qualquer traço daCópia Pública do processo diocesano acerca dos nossos már-tires da China de 1900, isto é, os cristãos mortos pelos Boxers.Pesquisando nos Arquivos do Vaticano, o postulador geral dosLazaristas Pe. Giuseppe Guerra encontrou o Transunto, isto é,a cópia integral dos atos do tribunal diocesano de Pequim en-viado à Congregação dos Ritos que, naqueles anos, se ocupavatambém da causa dos santos. O Transunto e a Cópia Pública são dois documentos idênticos.O primeiro é enviado ao Vaticano, o segundo ao ator, isto é, àcongregação religiosa que se encarrega da causa, no nossocaso os Lazaristas.Os Arquivos do Vaticano fizeram fotos do Transunto: 1500 pá-ginas e as consignaram ao Pe. Giuseppe Guerra. Ele teve agentileza de entregar-nos um DVD, de sorte que tivéssemos aposse dos atos do Processo Diocesano de Pequim.O pedido a Roma para abrir o processo foi feito em 1905 pelobispo de Pequim. A abertura oficial do processo se realizouem Pequim, em primeiro de janeiro de 1914; em 28 de maiode 1936 o Transunto e a Cópia Pública estavam prontos eforam enviados a Roma. O tribunal diocesano, pois, ficouaberto por 23 anos. O documento se apresenta como um conjunto de 1500 pági-nas manuscritas em latim. Trata-se essencialmente da transcri-

ção dos depoimentos das teste-munhas chamadas ao tribunal.

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2.As testemunhas

A grande maioria das testemunhas são pessoas que presen-ciaram os fatos.

1 - São parentes próximos dos mártires que escaparam damorte: pais, mães, maridos, mulheres, filhos, filhas, pri-mos, vizinhos. Por exemplo, na paróquia de Tong-Tang emPequim, Tomás Yen-Sung-Chan, comerciante de 62 anos,vem depor sobre 35 pessoas, que foram clientes seus.Antes de tudo, porém, ele testemunha sobre os membrosda sua família: a mulher, os filhos, a irmã e os filhos dela,o sogro e cunhada deste. Tomás também deveria ter mor-rido na casa em chamas; mas, envolto em cobertura, lo-grou fugir.

2 - Algumas testemunhas são particulares, no sentido de quefazem parte da família exterminada; mas foram poupadas,porque eram pagãs. Essas pessoas tentaram muitas vezesconvencer os próximos a oferecerem incenso aos ídolos,habitualmente sem resultado. Depois da perseguição, elasse tornaram testemunhas preciosas do martírio dos mem-bros das suas famílias.

3 - Um grupo de cristãos, em face da ameaça de extermina-ção de toda a família, apostataram; mas assistiram ao mar-tírio dos cristãos fiéis. É o caso de Teresa Yu. Elareconheceu ter renegado a fé; aceitou a penitência im-posta pela Igreja para o seu retorno à fé. Ela viu morreravô, pai, mãe, irmã; o último dos irmãos foi consideradodesaparecido. Depois da tormenta, esses cristãos, que re-nunciaram à fé, retornaram à Igreja e se tornaram as me-lhores testemunhas.

4 - Outras testemunhas são pagãs, vizinhos que, eventual-mente, esconderam os cristãos nas suas casas, ou são pa-gãos, convertidos posteriormente à fé cristã. Há tambémmuçulmanos, budistas e pessoas que se dizem sem reli-gião. Há, enfim, aqueles que eram empregados dos Bo-xers.

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5 - Os quatro grupos citados acima são testemunhas de visu,oculares. Em número menor, há aqueles que ouviram con-tar os fatos em família ou entre amigos e até mesmo, porvezes, por antigos Boxers. São testemunhas ob auditu, deoitiva.

Em geral não são testemunhas de uma pessoa, mas de umconjunto de mártires; este grupo, por vezes, é tão numeroso,que o testemunho tem de ser resumido. Quando, em 25 defevereiro de 1914, Nicolau Tchu presta o testemunho, elepode enumerar até 51 mártires de diversas vilas próximas dePequim. Maurício Tchu, que o precede no tribunal, é capazde citar uns quarenta mártires. Outra constante: muitas vezes, membros de família extermi-nada são testemunhas que não se deixam dominar pela emo-ção. Não há nenhum impulso romântico: os testemunhos secaracterizam, em geral, por grande autocontrole, nunca ex-primem desejo de vingança. Todas essas testemunhas expressam quanto almejam a bea-tificação dos mártires, como, aliás, espera toda a cristandadede Pequim. As testemunhas são 130, muitas delas analfabetas. Deram oseu testemunho sobre 896 mártires, vítimas da perseguiçãodesencadeada na China entre junho e agosto de 1900, eventoconhecido pelo nome de perseguição dos Boxers.Do ponto de vista histórico, o valor do documento é incon-testável.

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3.Os mártires

O documento oferece uma lista de 896 mártires, númeroconsiderável, porém limitado; ocorre que o número de cris-tãos chacinados pelos Boxers é estimado em trinta mil, entrejunho e agosto de 1900. A grande maioria dos mártires é de fiéis simples: agricultoresou operários, mas cuja vida cristã era de muita intensidade.Os testemunhos declarados no tribunal diocesano permi-tem-nos entrar no universo da sua vida cristã. Podemos ficarsurpresos em verificar como o seu apego a Cristo era apai-xonado. Muitas vezes, famílias inteiras são exterminadas:pais, filhos e até crianças. São os membros dessas famílias,miraculosamente escapados da morte, que se tornam teste-munhas diretas desses mártires. Os quadros levantados dessescristãos simples mostram frescor único, uma integridade defé que edifica e isto junto de grande reserva e autocontroledos sentimentos. As idades dos mártires são extremas, descendo dos oitentaanos para os poucos dias de alguns bebês. O grupo é formadotanto de homens quanto de mulheres e com grande númerode crianças.

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Cumpre não considerar esses mártires como estóicos insen-síveis ao perigo. Pelo contrário, são tomados de medo ante aviolência que se abate sobre eles. Na medida do possível,fogem da morte. Eles medem o horror: os seus bens são pi-lhados, casas e igrejas são entregues às chamas, a sua famíliaé ameaçada de extermínio. Diante da morte, contudo, esse medo cede o lugar à coragem,à fidelidade. Por vezes, assiste-se a verdadeiros gestos de he-roísmo. O aldeão Wang Yong Shing, para dar tempo a que afamília fuja, apresenta-se diante dos Boxers que, ao invés deo matarem, lhe exigem que indique o esconderijo do dinheiroe das armas; ele contemporiza; afirma que fuzil ele não pos-sui, mas pode conduzi-los aonde há um pouco de dinheiro.A mulher, que logrou salvar-se, foi testemunhar no tribunal. Os mártires são agrupados por paróquias. Formam dezesseisblocos. A paróquia de mais mártires conta 145; outras têm115, 103, 100, 78, 67...Aquelas de menor número contam 12, 11, 8. Mais que demártires individuais, muitas vezes há grupos de mártires, fa-mílias inteiras que são chacinadas. A Congregação Marista teve quatro Irmãos mártires. O IrmãoAdon e o postulante Paulo Jen, ambos chineses, fazem partedos mártires de Chala, localidade perto de Pequim. Os IrmãosJúlio André e José Felicidade constam na lista dos mártiresde Jen-Tse-Tang e Pe-Tang. A lista oficial dos mártires deChala apresenta uma centena de nomes; mas, quando seabriu a fossa comum, (em geral lançavam os corpos em po-ços), retiraram-se 350 corpos. O número de cristãos mortosé sempre superior aos nomes que figuram na lista oficial dotribunal diocesano.A lista do tribunal dá as notas essenciais de cada mártir:nome de batismo, nome chinês, lugar do nascimento, idade,condição de vida, parentela, lugar do martírio e, por vezes,algum informe como o seguinte: Na família Shun há cercade oitenta cristãos, provindos de diversos pontos da cidadee, refugiados nesta casa, nela foram mortos. Muitos provêmde estratos sociais modestos: agricultores, operários, artesãos,alguns médicos, farmacêuticos, alguns raros professores oupequenos comerciantes. São pessoas modestas e desarmadas,que suportaram a violência dos Boxers, que estão armadosde fuzis, espadas, lanças e facões.

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Vamos a outra característica. Os simples fiéis formam o maiornúmero, enquanto os sacerdotes e os religiosos e religiosasnão passam de vinte: quatro sacerdotes Lazaristas, quatro Ir-mãos Maristas, uma dúzia de religiosas chinesas. São os cristãos chineses que os Boxers tentaram fazer desa-parecer, seja pela morte violenta, seja pela apostasia, cujacondição primeira era renunciar a Cristo.Tal grupo de mártires nos dá uma ideia desse extraordináriopovo de Deus. As nossas famílias religiosas devem sentir-se,a um só tempo, ufanas e humildes: ufanas, por ter geradoum modo chinês de ser igreja tão fortemente apegada aCristo e de uma generosidade tão inteira e fiel; cumpre queos religiosos se considerem humildes, porque os nossos már-tires lazaristas, maristas e religiosas comportam pequeno nú-mero. É o povo de Deus que foi golpeado e ficou fiel. Houve apóstatas? Em certas paróquias, nenhum; em outras,sim. Para o pai e para a mãe, era intolerável que a famíliatoda fosse ameaçada de extermínio. Quase todos esses cris-tãos, passada a tormenta, retornaram à Igreja, aceitaram apenitência imposta e se transformaram em testemunhas dosmártires. Todos os grupos de Boxers não se comportam do mesmojeito. Alguns não matam os cristãos que oferecem incenso;outros, depois de ter humilhado os cristãos por uma apostasiaarrancada, chacinam-nos sem piedade, convictos de que tais

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cristãos, uma vez restaurada a paz, retornariam à Igreja. Ostestemunhos recolhidos permitem ver que não houve com-portamento monolítico nem da parte dos Boxers, alguns dosquais não matavam as crianças, nem da parte dos pagãos,dos quais alguns viam com bons olhos a eliminação doscristãos, porque, pelo menos, tencionavam pilhar-lhes as ca-sas, ao passo que outros os salvavam, escondendo-os ou as-segurando-lhes enterro digno. As testemunhas aportam tam-bém julgamentos diferentes. Bom número deles dizem queas relações entre cristãos e pagãos eram boas antes da perse-guição, ao passo que outros reconhecem certa animosidadeno coração, sendo as relações condizentes apenas no exteriorda pessoa. Os cristãos, por outro lado, não se comportaramtodos do mesmo modo. A grande maioria não opôs resistên-cia, como agricultores ou operários desarmados, mantendo-se apenas na defensiva da fuga. Nas Legações ou no Pe-Tang, onde muitos cristãos buscaram refúgio, tal resistênciadurou meses. Era uma resistência de defesa, não de ataque,isto é, de assediados e não de sitiantes. Passada a perseguição, a Igreja de Pequim preocupou-se emdar sepultura cristã a todos os corpos que foram encontrados.Muitas vezes, porém, os mortos eram queimados. Este sinalde respeito, primeiro sinal da fama de martírio, atesta que aIgreja considerava esses cristãos como verdadeiros mártires,imolados por se manterem fiéis ao Senhor.

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4.Contexto histórico e social

Procuremos compreender o contexto histórico e social destaperseguição, na qual os cristãos foram mergulhados comopor surpresa e acuados ao martírio.

4.1 - A China

O Império da China, no século XIX, ia perdendo a sua forçade coesão e se via, de modo crescente, penetrado pelas gran-des potências coloniais, que conseguiam concessões e lega-ções no território chinês. A dinastia mandchu dos Qing experimentava certo declínio.Duas forças sociais opostas se enfrentavam no Império: oscontrarreformistas, em especial os Boxers, que pleiteavammanter a China nas suas tradições seculares, livre do aporte

L’Impero della Cina durante la dinastia Qing (1644-1911)

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estrangeiro e da presença no seu solo de armas e de religiõesde fora. Queriam uma China que não fosse presa das naçõesque sonhavam com o desmembramento do Império chinês.Essas nações coloniais eram a Grã-Bretanha, a Alemanha, aFrança, a Rússia, o Império Austro-Húngaro, a Itália, os Esta-dos Unidos e o Japão, este apenas no fim do século XIX. Oscontrarreformistas são profundamente nacionalistas, xenó-fobos, não sem razão, mas igualmente retardatários.Em contrapartida, um grupo de intelectuais quer modernizara China, dar-lhe uma Constituição, reformar a economia, osestudos e as forças armadas. A China, tendo perdido a guerraprimeiro contra a Rússia, depois contra o Japão em 1894-1895, dá-se conta do seu atraso. Esses dois grupos vivem em estado de tensão. Cixi, rainhaviúva, escolheu o movimento contrarreformista, vivendo elaprópria a humilhação a que a China foi submetida. Assim,ela vai apoiar tacitamente o movimento dos Boxers. Aqueles,porém, que visavam a modernizar a China tomaram o poderem 1911, suprimiram o Império e transformaram a Chinaem República.

4.2 - Os Boxers

O Império da China, na sua his-tória milenar, sempre conheceumovimentos de seitas secretas.Aquela dos Boxers, no começo,por volta de 1800, fazia partedesta tradição e era propria-mente contra a rainha Thu Hi. Omovimento era formado por gru-pos assaz diversos; no início,contava com agricultores que ha-viam perdido as suas terras. OsBoxers praticavam as artes marciais, como o Kung Fu, peloque os britânicos os chamaram boxers ou pugilistas. Sem tardar, o movimento adquiriu alma nacionalista, hostil atoda a presença ocidental, querendo a China forte e indepen-dente. A sua luta, por vezes desordenada, é luta nacionalistae atingiu o seu apogeu no período de junho a agosto de 1900.

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Nos primeiros dias do levante, os Boxers não estavam pre-sentes em toda a parte e matavam pouca gente. Assim,quando a Igreja de Tong-Tang foi incendiada, as Filhas deSão José tiveram de deixar o seu convento. Elas perambularampelas ruas por três ou quatro meses, mas não foram mortas. Os Boxers se opõem com a mesma violência, muitas vezesbrutal, à presença de estrangeiros tanto quanto aos chinesesconvertidos ao cristianismo, que eles chamavam de meioeu-ropeus ou Eul-Mao-Tze, modo injurioso de apelidar os cris-tãos. Para os Boxers os chineses cristãos haviam perdido aintegridade da alma chinesa. Ademais, os Boxers iam entregaràs chamas as igrejas e as casas dos cristãos, matando homens,mulheres, crianças, estripando mulheres grávidas, atirandoos corpos nos poços. Por vezes, as casas incendiadas estavamcheias de cristãos. Os pagãos os ouviam rezar no meio daschamas. Cerca de 30.000 chineses cristãos vão ser chacinados entrejunho e agosto de 1900. Cumpre reconhecer, porém, quesão raros os cristãos submetidos a torturas. Eles eram, em ge-ral, agarrados e mortos. Certa leitura da história poderia como heróis nacionais osBoxers, talvez desconhecendo que eram manipulados pelarainha; eles eram sobremodo insensíveis à liberdade de cons-ciência das pessoas. Não estavam isentos de fanatismo e sa-dismo na chacina.

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Outra realidade é que a perseguição dos Boxers se inscrevenuma série de perseguições que começaram no século XVIIIe se repetiram nos séculos seguintes. Essa perseguição não éa primeira nem a última. A perseguição dos Boxers não sedeve considerar como fenômeno isolado.A desforra das nações ocidentais, a partir de agosto de 1900,foi de extrema violência, ceifando vítimas na população hu-milde e saqueando a cidade de Pequim. Os vencedores im-puseram à China a lei do mais forte e um tratado de paz deverdadeira humilhação. A repressão foi desproporcionada.Pretendia-se abater a China para que ela não mais se levan-tasse, pelo que as grandes potências estão carregadas deresponsabilidade.

4.3 - Os cristãos chineses

As relações com os pagãos, antes do acontecimento dos Bo-xers, em geral eram pacíficas. Muitas testemunhas o subli-nham, quando são chamadas ao tribunal diocesano. Outrasreconhecem ter havido uma tensão larvada. Em verdade os cristãos eram acusados de coisas extravagan-tes, como arrancar olhos e coração dos moribundos, cozercrianças em marmitas e comê-las, preparar remédios de po-deres maléficos ou mesmo envenenar a água dos poços.Acima de tudo, porém, eram acusados de se terem tornadosemieuropeus, ou Eul-Mao-Tze. Em contrapartida, eram tam-bém objeto de admiração, uma vez que muitos pagãos seconvertiam à fé cristã, o que continuou depois da perseguiçãodos Boxers.Da sua parte, os cristãos chi-neses sempre negaram que sehaviam tornado semichinesesou semieuropeus: amavam asua pátria como todos os de-mais e continuavam na vidasimples de estilo chinês. Elesnão se juntaram ao exércitodas potências ocidentais paradesforrar-se dos perseguido-res. Cerca de trinta mil foram

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as vítimas cristãs dos Boxers. Ostestemunhos falam de famíliasexterminadas, de cristãos quei-mados nas próprias casas muitomais do que de mártires indivi-duais. Um catequista de Si-Tangafirma que na sua paróquia forammortos entre 200 e 250 cristãos.Na tormenta dos Boxers, os cris-tãos chineses nunca opuseramviolência contra violência. Eramcampesinos de mãos nuas, emface dos Boxers armados de fuzis,de espadas e de lanças. Tentaram

fugir, esconder-se na cidade de Pequim. Presos pelos Boxers,a grande maioria preferiu a morte à apostasia. Aceitaram servítimas de preferência a serem matadores. Tiveram muitossinais para compreender que grande tormenta se desenca-dearia contra eles. Em tese, mártires não se improvisam; erao caso deles. . Entre os cristãos, não poucas famílias eram cristãs havia di-versas gerações. Diante dos seus carrascos, afirmavam comclareza: “Somos cristãos há muito tempo e os senhores que-rem que renunciemos a Cristo”?Eis a palavra ou pensamento chave. Os cristãos eram convi-dados, com insistência inverossímil, a renunciar à sua fé,muito mais que renunciar ao seu estilo de vida europeu, queefetivamente não tinham. Esses cristãos, de condição mo-desta, e longe de toda a política, haviam chegado ao amorde Cristo, e tamanho apego ao Senhor nos surpreende. Elestinham encontrado Aquele que dava sentido à sua vida. Epor Ele aceitaram morrer. Ficamos surpresos da fidelidadeno martírio de certos cristãosque não eram fervorosos, queraramente frequentavam aigreja, ou que tinham o hábitode se embebedar. Em face daescolha definitiva, optaram peloCristo. Todos esses que forammortos foi porque quiseram per-manecer fiéis a Jesus. Aqui nos

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deparamos com a razão central do seu martírio. A sua vidafica exclusivamente dedicada ao Senhor. Aos pagãos quelhes suplicam de oferecer incenso aos ídolos para salvarema vida, eles respondiam: “É impossível. Preferimos morrer aapostatar”. A razão política empalidece ante a fidelidade aoSenhor. Por certo eles foram vítimas políticas; mas muitomais são mártires, porque não quiseram renunciar a Cristo.

4.4 - A Igreja de Pequim

A perseguição vai abater-se especial-mente sobre a Igreja de Pequim e dosseus arredores. Durante os três mesestrágicos do levante dos Boxers, de ju-nho a agosto de 1900, as vilas das cer-canias de Pequim, povoadas de cam-pesinos sem nenhuma defesa, vãopagar pesado tributo.

Já havia quatro grandes paróquias na cidade de Pequim, de-signadas segundo a sua situação quanto aos pontos cardeais:Si-Tang, no oeste; Nan-Tang, no sul; Tong-Tang, no leste; ePe-Tang, no norte.A Igreja de Pe-Tang era a catedral. Havia também a residênciado bispo, Sua Excelência Favier, com o seu coadjutor epis-copal Jarlin. Os Padres Lazaristas tinham aí a sua missãoprincipal. Esta paróquia contava várias congregações reli-giosas na direção de escolas. No seminário maior e menorformavam-se 111 jovens candidatos ao sacerdócio. Em Jen-Tse-Tang, bairro contíguo a Pe-Tang, havia 1.800 mu-lheres cristãs e jovens e crianças, 450 moças das escolas edos orfanatos, 30 bebês nas creches. No total, havia 3.420cristãos chineses nos dois bairros.Esses dois bairros vão suportar o sítio dos Boxers por doismeses. Nesses dois bairros muitos cristãos tinham procuradorefúgio. Aí se encontravam os Irmãos Júlio André e José Feli-cidade, com outros Irmãos, ao passo que seis deles se haviamrefugiado nas Legações, isto é, residências dos representantesdas diversas nações presentes na China. Por ocasião do sítio de Pe-Tang e de Jen-Tse-Tang, os Irmãos

Monseñor Favier

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Maristas vão dedi-car-se por inteiro adefender essespostos: eles eramsucessivamentesoldados, constru-tores de barrica-das, vigias e enfer-meiros, prestandoaqui e acolá todaa sorte de serviços,sempre sob o fogodos sitiantes. Osdias e as noitesnão eram mais quecanhoneios, tirosde fuzil, combates,incêndios, explo-sões, mortes, feri-dos, doentes, mo-ribundos; em

suma, todos os horrores da guerra, seguidos do horror dafome. No espaço desses 64 dias, os Irmãos viram enterrarmais de 400 corpos dos pobres refugiados. Aí encontraram amorte os Irmãos José Felicidade, em 18 de julho de 1900, eo Irmão Júlio-André, visitador, em 12 de agosto de 1900… Cha-la-Eul, ou Cha-la, encontrava-se num subúrbio de Pe-quim. Desde o mês de maio de 1893, os Irmãos dirigiam umorfanato de 125 crianças. Os Boxers puseram fogo à igreja,à escola das Irmãs e ao orfanato. Os órfãos se dispersaram edo total apenas sobreviveram 25. Dois Maristas chineses en-contraram a morte: o Irmão José Maria Adon e o postulantePaulo Jen, em 17 de junho de 1900.Os Irmãos Maristas haviam chegado à China em 26 de abrilde 1891. No momento dos acontecimentos eles eram 48;dirigiam a escola de Nan-Tang, o orfanato de Cha-la, a escolade Tien-Tsin e uma escola em Shanghai. Em Pequim, emNan-Tang e em Cha-la havia 15 Irmãos.

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5.Os mártires de las paróquias de Pequim

5.1 - A paróquia de Si-t’ang

Numa famíliaA minha mãe foi batizada poucos dias antes da sua morte.Ela tinha ido buscar o padre Maurice Doré para ser batizada.Dizia ela: ‘Se os Boxers me matam antes que seja batizada,não poderei entrar no céu’. O padre contestou: ‘Eu a batizareiquando você souber as quatro partes do catecismo. Mesmoque os Boxers a matem antes do batismo, é por Deus quevocê morre e, assim, irá ao céu’. Mas ela tanto insistiu, queo padre a batizou, junto com a minha irmã. Esta se casou al-gum tempo depois. Contudo o pai e a avó paterna insistiram na apostasia dela.A mãe aceitou, porque ela temia muito o pai. A minha irmã,em contrapartida, recusou-se a oferecer o incenso.

Em 28 de junho, os Boxers chegaram e puseram fogo à casados nossos vizinhos que eram cristãos: a casa estava cheiade gente e os pagãos os ouviam rezar no meio das chamas. Depois os Boxers irromperam na casa. Um dos meus irmãose uma das minhas irmãs, ambos crianças, puderam escapar.A minha mãe, a minha irmã , a minha cunhada e a sua filhaMaria como um dos meus irmãos, ainda criança, foram amar-rados e conduzidos para fora. Ao longo do caminho, a minhamãe e os outros da família recitavam sem cessar o Pai Nossoe a Ave Maria. O pessoal dizia com admiração: “Mesmo ca-minhando, eles rezam” . Os Boxers tomaram o meu pequeno irmão e, jogando-o aoalto, eles o aguardavam de lanças apontadas. Vendo isto, aminha mãe se pôs a chorar. Mas os Boxers os mataram todos,sem exceção.

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Um cristão pouco fervorosoJosé Tchao Yung, pescador, não era muito fervoroso. Os Bo-xers o agarraram e o conduziram ao lugar onde se achava otribunal. Pelo caminho, um pagão lhe diz: ‘No tribunal, bastaque diga que não é cristão’. Ele, porém, respondeu: ‘Issonunca. Sou cristão desde várias gerações’. Chegado ao tri-bunal, os Boxers lhe apresentaram o incenso para os ídolos.Ele teve termos de menosprezo a respeito e lhes disse: ‘Somoscristãos há várias gerações. Podem matar-me’. Conduzido àporta da cidade onde havia nascido, ele disse aosBoxers;’Aqui é a minha pátria, aqui é o paraíso’. Ele invocavaa Mãe de Deus, pedindo-lhe que viesse na sua ajuda. Foilogo executado.

Um catequistaAgostinho Pao Chan, eu o co-nheci como catequista. Antesdo seu batismo, fazia partedos cavaleiros do Imperador.Ele abandonou esta função,porque não lhe permitia querespeitasse as leis de Deus.Era cristão muito fervoroso;exortava os outros à virtude.Levou à Igreja muitos pagãos.Depois do incêndio da igrejade Pequim, buscou refúgioem Pe-Tang, que era legaçãodos europeus e que contava com soldados. Refletindo, porém,ele dizia consigo: ‘Eis uma ocasião única de morrer porDeus. ‘Vou retornar ao lugar de onde vim. Sou velho; quepode acontecer-me’? Dizia àqueles que tinham medo, re-cordando o martírio: ‘Onde podem vocês encontrar melhoroportunidade’? Ele foi preso na sua família; seis membros desta foram mortos.Ele perguntou aos Boxers: ‘Aonde vocês me levam’? Respon-deram-lhe: ‘Não é da sua conta; siga-nos’.Como passassemdiante de uma igreja de Si-Tang, pediu que o autorizassem aparar um pouco. Ajoelhou-se, fez profunda inclinação dianteda igreja queimada, cobriu o corpo com grande sinal dacruz e disse: ‘Aqui é a minha pátria’. Continuou a rezar. Os

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Boxers estavam surpresos que ele continuasse a rezar; masacordaram em matá-lo aí mesmo, já que dizia que o lugarera a sua pátria. Mesmo moribundo, prosseguia orando. Foino dia 15 ou 18 de junho de 1900. O seu corpo não foi en-contrado.

5.2 - A paróquia de Nan-Tang

Estas linhas oferecem o testemunho completo de Ana Ly, de24 anos. O testemunho nos leva a mergulhar nesses dias deterror para as famílias cristãs. O testemunho é completadopor aquele do irmão dela José Tchu, de sete anos na horados acontecimentos, e vinte e um na hora em que testemu-nha. Na formulação do seu testemunho no tribunal, ele es-tudava filosofia no seminário maior. O testemunho centra-sena sua mãe, Agnes Wang, de 41 anos, e no pai Martim Tcheo,de 38 anos. Quando os Boxers iam entrar na casa, a cunhada do cate-quista Wang (vizinho nosso, mas a mãe deles, Agnes erauma Wang), que era ainda pagã; veio à nossa casa com in-censo, para que o queimássemos perante os Boxers em sinalde veneração dos ídolos. Ela nos disse: ‘Os Boxers vão entrarna casa’. Papai e mamãe estavam escondidos no quarto dedormir. Então entraram no salão 30 Boxers e se dispuseramao redor do salão. O pai nos reconfortava, dizendo: ‘Não te-nham medo’. Depois perceberam que não poderiam mais fi-car escondidos e pensaram em fugir. O pai e o meu irmão José, segurando a mão da irmã Maria,escaparam pela porta do norte. Alguns Boxers correram atráse miraram nas suas cabeças, mas os tiros caíram no vazio epuderam salvar-se. O pai, corpulento, bateu numa pedra darua e caiu. Sobrevindo dois Boxers, mataram-no. A minhairmã ficou perto do pai e disse aos Boxers: ‘Eu também soucatólica; podem matar-me’. Eles, porém, fitando-a de revés,foram embora. A mãe e eu ficamos sós no quarto. Ela não cessava de me di-zer: ‘Fujamos, fujamos’. Ela tentou fugir e eu com ela, grudadano seu vestido. Mas no umbral da casa, os Boxers nos pega-ram. A mãe, vendo que não poderia escapar-lhes, disse-me:‘Ajoelhemos e que eles nos matem’. Ela caiu de joelhos e eu

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com ela. Tínhamos a cabeça inclinada e os olhos fechados,no aguardo da morte. Os Boxers nos feriram com as espadase lanças e ficamos prostradas no solo, semimortas. Crendo-nos liquidadas, eles se foram. Pouco depois, a mãe me per-guntou: ‘Está viva’? Eu respondi: ‘Sim, mãe’. Já que não amataram, reze uma Ave Maria, mas em voz baixa. InvoqueMaria. Entremos na casa. Perguntei: ‘Mas eles não queimarama casa’? . Então apoiando a mãe, já que eu fora ferida de leve, ajudei-a a entrar e ambas nos pusemos de joelhos. Depois, sen-tando-se, ela me disse:’Tire as suas jóias; se você morre comelas, vai ao purgatório’. Ela fez a mesma coisa e as depositousobre a mesa. Aí eu disse à mãe: ‘Vamos ao quarto de dormir. Se os Boxerspassam e nos vêem, vão acabar de nos matar’. Sim, contestouela. Ambas entramos e nos atiramos no leito. A mãe me pediu água e eu lha servi, mas a água saía do ladoesquerdo, pela grande ferida que ela tinha. Ela perguntou-me: ‘Sabe você o que aconteceu ao seu pai’. Respondi quenão sabia. Em seguida, acrescentou: ‘A minha cabeça encheude sangue a cama. Que fazer’? Respondi-lhe: ‘Tome umlenço e tampone a ferida’.Um homem de uns trinta anos entrou na casa. Era um pagãode bom coração. Do corredor perguntou-nos: ‘Vocês são ca-tólicas’? Tomando-o por um Boxer, a mãe respondeu-lhe:“Sim, somos católicas’. Continuou ele: ‘Se sois católicas,saiam depressa, porque soldados europeus estão vindo parasalvá-las’.A mãe me disse: ‘Se vieram soldados europeuspara nos salvar, você deve aproveitar’. Contestei-lhe que nãotinha sapatos para fugir. Ela, então, me disse que calçasse osda minha irmã.Mas, no exato momento, entrou na casa uma velha mulherpagã, brandindo um facão e dizendo: ‘Onde estão os bensde vocês? Se não entregam, mato vocês’. Respondeu-lhe amãe: ‘Tome aí o que quiser. Tome o que achar. Leve consigoo que bem entender’. A mulher do facão vasculhou a casa elevou o que quis.A mãe tinha ferida tamanha no pescoço, que a cabeça secosia ao peito. Então eu parti. Disseram-me que ela sobreviveu por três dias.

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Presso le tombe di coloro che caddero a Pechino, il plotone spara cariche a salve perl’estremo saluto ai martiri

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Os Boxers retornaram e a levaram à casa de um cristão Ly-Tsin Tachang, embaixador da China na França. Puseram fogona casa. Mamãe morreu queimada.Eu, uma vez na rua, vi muitos cristãos reunidos e soldadoseuropeus. Aí encontrei o meu irmão José e, pouco depois, aminha irmã Maria. Ela me disse que os Boxers tinham matadoo pai com violento golpe de espada na cabeça, tiraram-lheas roupas e as guardaram para si. Por que mamãe não logrou salvar-se? Estava grávida, eradifícil caminhar; a ferida do pescoço era por demais profunda;assim, ela não poderia chegar à Legação estrangeira.Alguns dias antes da sua morte, melhor dizendo, quando aigreja de Na-Tang foi incendiada, mamãe nos disse: ‘Se osBoxers chegam e lhes dizem: ‘Caso vocês apostatem, estãosalvos; caso contrário, nós os matamos’. Deve-se responder:‘Somos cristãos, podem matar-nos. Mas nunca digam quenão são cristãos’. Erguendo o filho José, ela o apresentava àimagem da Virgem: ‘Veja como é bela a santa Mãe de Deus.Ela virá socorrê-lo’. José testemunhou no tribunal que a sua mãe se confessavamuitas vezes, que nos sábados e domingos ia à missa, muitocedo de manhã, cuidando de não acordá-lo; de manhã e detarde dizia as suas orações e o rosário todos os dias. Foi mu-lher muito piedosa. Ela nos ensinou a rezar.

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Chinês refugiados cristãos

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5.3 A paróquia de Tong-Tang

Este testemunho é de José Ning Cheu-Tchen. É um aldeãode 67 anos. O testemunho dele é sobre os mártires da suafamília e da sua parentela. Conheci a família Tchang: Francisco Xavier Tyii, o filho deleJoão Batista, Teresa Tchang, minha irmã e mulher de JoãoBatista, e João, Pedro, Rosa, Maria e Ana, filhos de Teresa eJoão Batista; Maria Tchang, viúva, Teresa Uang, nascidaTchang, Josefina Tchang, Gabriela Tchang, Maria Tchang,Paulina e Lúcia, mulher de Paulo, Pedro, seu filho maior e assuas irmãs Filomena e Agnes. Com eles foi morta MadalenaNing, nascida Liu, minha mãe; e Lúcia Jen, Pedro Jen, PauloJen, Filipe Jen, Maria Jen, Maria Liu, e Melquior, meu avô. Toda a família era muito correta, sobretudo Francisco Xavier:ele assistia à missa todos os dias e penso que merece a ca-nonização.

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A família Tchang nada fez para defender-se. Ela estava longede imaginar as intenções dos Boxers e de pensar que elesiriam matá-los. Se houvessem cogitado disso, poderiam terfugido. Quando os Boxers cercaram a casa, os cristãos nadapuderam fazer senão rezar, depois fugir por uma porta secreta.

Francisco Xavier TchangFrancisco Xavier Tchang, venerável ancião de 73 anos, ver-dadeiro patriarca de outrora, era muito justo no comércio,caridoso com os pobres e com os pequenos; humilde, to-mava-se como o último de todos. A sua fé e piedade se ma-nifestavam pelo respeito com que se comportava na igreja,para edificação de todos. Apesar da idade avançada, ia todosos dias à santa missa e de tarde fazia uma hora de adoração,em qualquer tempo ou estação. O pai Tchang tinha grande atrativo para as coisas de Deus;nos seus momentos livres, fazia leituras piedosas à famíliareunida, depois nos falava das boas coisas e nos exortava aobom comportamento, a não nos prevalecermos sobre os ou-tros, a nunca enganar o próximo. “O bom Deus vai aben-çoar-nos”, acrescentava sempre. Como chefe de família,todos os dias, distribuía aos pobres uma tigela de arroz ou assobras do restaurante. Na comemoração do ano novo, eledava aos pobres alguns trocados e algum presente.Por vezesesvaziava a casa, por assim dizer, para vesti-los. Entregavacobertas ou dinheiro a pessoas que ele sabia estarem na ne-cessidade ou no hospital. Certo dia, indo à igreja, o paiTchang encontra uma mulher quase nua. Sem tardar, mandouque a nora lhe desse alguma roupa. Em outro dia, encontrouuma mulher no fim da gravidez e estava sem abrigo. Mandouprocurá-la, cedeu-lhe um quarto e encarregou as suas duasnoras de cuidar dela. Só a desligou da habitação um mês de-pois, mas provida de roupa e também para o filho e comrica esmola para prover aos seus cuidados imediatos. Não logro terminar o relato dos seus atos de caridade, quesó Deus pode contar. A sua felicidade era prover os bens dasua querida paróquia, a igreja de Tong-Tang. O digno e santosacerdote Garrigues levou para o céu muito segredo dele.

Maria TchangA sua nora, viúva Maria Tchang, era a filha de um tártaro

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chamado Yang, antigo cristão. Perdeu o pai, quando ela eramuito jovem. A mãe dela era pobre; Maria Tchang foi con-fiada às Filhas da Caridade de Pequim. Aí ela ficou por trêsanos. Ela guarda eterna gratidão para com as Irmãs. Maria Tchang teve dois filhos, mortos em tenra idade e umafilha, agora Irmã de Caridade. A minha cara tia, que ficouviúva aos 22 anos, não quis contratar um segundo casamento.Eis uma verdadeira viúva, que pode ser apresentada aos cris-tãos como admirável modelo de edificação pouco comum. Muito jovem, quando ficou viúva, ela dirigiu o seu coraçãopara Deus. A Providência lhe forneceu os meios de proveràs necessidades da sua alma ávida de justiça. Encontrou novenerando sacerdote Kho um diretor sábio e prudente, que adirigiu, apoiou, consolou, traçando-lhe até mesmo uma linhade procedimento. Pelos seus conselhos, esta alma tão dóciltornou-se mulher modelar: forte na virtude, corajosa nas pro-vas, paciente nas dificuldades, generosa nos sacrifícios, so-bremodo e essencialmente piedosa. Maria Tchang levantava-se todos os dias às quatro horas; co-meçava o seu dia na oração e na meditação, quando nosimaginava dormindo. Eu a espiava, olhando discretamentede sob as cobertas, e a via muitas vezes vertendo abundanteslágrimas, tamanha era a doçura do seu entretenimento comDeus. Acabadas as suas devoções, ela se lançava prontamente aotrabalho, para deixar tudo em ordem, antes de ir à missa.Nos domingos e nas festas, ela ia à primeira missa, paradeixar aos outros o tempo e a consolação de assistir aos ofí-cios mais belos e solenes. Para tanto auxiliava e substituía asempregadas. Ela estava encarregada de prover a todas as ne-cessidades desta casa, tão grande e de tanto trabalho, agindocom bondade e exercendo vigilância escrupulosa. Em suma,esta piedosa viúva comia o seu pão no suor do seu rosto;nunca estava ociosa, sempre em busca do melhor para osoutros e do pior para ela.Maria Tchang era simples e modesta no seu vestir, mortificadano alimento, afável com todo o mundo e conservava emtodo o seu exterior a modéstia e ao mesmo tempo a dignidadeque impunham respeito.Na época da perturbação e dos rumores em Pequim, ela foipresa num agrupamento em que se entretinham velhas calú-

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nias contra os cristãos e contraas Irmãs que, dizia-se, arran-cavam os olhos e o coraçãodas crianças. Maria Tchang,sem parecer perturbada, faloucom calma: “Olhem para mim;tenho os olhos e o coração eeu fui educada pelas Irmãs”.Os pagãos ficaram sem argu-mento, em face de tal ato decoragem.Por mediação desta vida santae dos seus sacrifícios diários,Maria Tchang preparou-se parao sacrifício supremo.

Martírio de Maria TchangA viúva Maria Tchang, enquanto os Boxers pilhavam e in-cendiavam o restaurante e a casa, logrou sair pela porta donorte, levando consigo a nora Petronila, casada havia doismeses. Maria queria achar um abrigo seguro para ela. Ambaspuderam chegar a uma casa muito pobre, onde havia diversosmembros da família Tchang. Ela passou aí quatro dias de ansiedade e de angústia, deagonia mais penosa que a morte, sem saber o que se haviamtornado os seus familiares. Um empregado da família, denome Tu Chan, ainda pagão, encontrou o retiro deles. Elalhe perguntou onde estava o avô, o pai, a família dele, omeu irmão José, objeto da sua terna solicitude. Este foi oúnico que conseguiu escapar e sobreviver. Ela teve a respostade que tudo estava terminado, não havia mais nada, nemninguém. Quem pode compreender o que se passou na almadela? Ela ficou em silêncio grave; depois verteu amargas lá-grimas. Nos dias de ansiedade e angústia que precederam a suamorte, a fervorosa viúva Maria preparou para a morte toda asua família, exortando os seus a serem firmes na fé, repe-tindo-lhes: ‘Logo mais estaremos no céu’. Depois de quatro dias de indizível angústia, foi descobertopelos Boxers o refúgio da fervorosa viúva e dos membros dafamília Tchang. Os mandarins Boxers queriam levar a jovem

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Petronila, bonita e encantadora. Mas ela foi invencível, pre-ferindo a morte às suas propostas. A corajosa sogra, duranteesse tempo, a apertava nos seus braços. Ela disse aos Boxers,em tom de autoridade severa: ‘Matem-na diante de mim; eumorrerei depois, mas nunca a terão. A jovem Petronila foimorta nos braços de Maria. Perante esta heroica cristã, todosos membros da família Tchang foram também executados.Nesse último momento ela repetia: ‘No céu, logo estaremosno céu’. Por fim, Maria recebeu o golpe que lhe abriu o céu.

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6.Mártires das aldeiasem torno de Pequim

6.1 - As aldeias de Koan-Teu, Tsai-Hu-Yng e Wa-Tsiuen-Sze

Destas três aldeias o tribunal diocesano guardou um grupode 67 camponeses, todos mortos pela sua fé em Cristo. No começo os pagãos convidavam os cristãos a renunciar àsua fé; por vezes queriam defendê-los, dizendo em públicoque eles eram pagãos. Mas a grande maioria dos cristãosnão aceitou tal maneira indireta de apostatar. ‘Mas como?Somos cristãos há várias gerações. Nunca renunciaremos ànossa fé’.Às vezes, um testemunho se prende por mais tempo em talou qual mártir. É assim que Marcos Ly testemunha a mortedo pai, de nome Paulo, e da mãe, Ana Ly. Mas na sua famíliaele também perdeu um irmão, vários sobrinhos e outrosmembros. Quando a vila é invadida pelos Boxers, Paulo e Anne Ly ten-tam a fuga em duas direções diferentes. Os Boxers prendemprimeiro a mãe e a ferem com três golpes de lança. Ela caipor terra. Vendo que ela ainda respira, eles a liquidam comnovo golpe. O pai também é alcançado, reconduzido à suacasa e morto no interior dela. Em seguida, a casa é pilhada equeimada. Foi em 8 de junho de 1900.Essa mesma testemunha historia o fato relativo à sua irmã Fi-lomena. Para fugir, ela com os filhos, aluga modesta carrua-gem puxada por burro. Na estrada foi detida pelos Boxersque lhe perguntam se ela era cristã. Contestou ela com au-dácia: ‘Eu sou. Matem primeiro os meus dois filhos, depois amim, aqui mesmo. O cocheiro, porém, é pagão a quem pedieste serviço. Portanto deixem-no ir. Os Boxers mataram ascrianças e a mãe; e não pouparam o cocheiro, porque que-riam apossar-se da carruagem.José Su-Koang-Joei relata um fato vivido em família. Em facedo risco de que toda a família do seu irmão fosse extermi-

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nada, o pai, que era pa-gão, lhe disse: ‘Você vaideixar-me o filho maisnovo, assim a família nãovai extinguir-se’. O meuirmão contestou: ‘Se mor-remos e o menino vivercom vocês, vai ficar pa-gão como vocês. É me-lhor que morra conosco’.Foi o que sucedeu.Perante tais comporta-mentos, os pagãos fica-vam confusos. Eles di-ziam que os cristãos eramteimosos e que se drogavam para resistir. Essa mesma testemunha traça retratos sóbrios mas interes-santes. Maria Tchang era apenas neófita, o seu rosário eramuito brilhante, de tanto que ela o usava. Ela vivia distanteseis léguas da vila e,. ainda assim, todos os domingos vinhaassistir à missa. Liu Tchang-An não era fervoroso. No começo da persegui-ção, um pagão lhe disse: ‘Vá ao ponto onde os Boxers sereúnem, oferece o incenso; como penitência sua, deixa al-gum dinheiro’. Contestou ele: ‘Isto quer dizer que devoapostatar? Eu não sou grande devoto, mas prefiro morrer arenunciar à fé’.

6.2 - A aldeia de Yen-Tze-Keu

Nesta vila o tribunal diocesano reteve o registro de 115 cris-tãos mortos por causa da sua fé. Quase sempre nos encon-tramos diante de famílias inteiras exterminadas, muitas vezesfamílias patriarcais, numerosas. A primeira testemunha chamada para este grupo, o senhorFrancisco Wang-Koei-Chuen, enumera noventa nomes decristãos mortos, que compreendem quatro ou cinco famílias:Wang, Tchung, Peng, Yung, Chao.Não sabemos se devemos ficar desconcertados pela cruel-dade das chacinas ou repletos de admiração pela docilidade

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de todos esses cristãos que marcham para o martírio. O queaparece constantemente de um testemunho a outro é a den-sidade da sua oração, a seriedade da vida cristã, o respeitodo domingo, os jejuns e as abstinências da Igreja. Por vezes,de manhã, eles estavam na porta da igreja antes do bater dosino. Esses camponeses, quase todos analfabetos, sabiam decor muitas orações e cantos; orações da manhã, da tarde e orosário eram cotidianos.Todos não são perfeitos. Alguns gostam demasiado do vinhoe então não sabem reter a língua. Outros se dão ao jogo decartas, visto pelos cristãos como vício. Um que outro nãoestá em regra com o seu casamento. Do lado das mulheres océu não é sempre límpido entre sogras e noras. Certos ho-mens e mulheres se deixam levar pela cólera. No entanto,diante da provação, eles preferem morrer a renegar a sua fé.Seguem alguns quadros pitorescos e edificantes.

André PengAndré Peng foi preso por alguns pagãos na vila Tchao-Lyng.Eles o conduzem ao palácio do príncipe Tuan, em Pequim.No caminho, ele encontra um amigo pagão que lhe diz: Porque não tenta fugir e esconder-se? André lhe responde: ‘Nãose penalize por isso. Falaremos disso no outro mundo’. Che-gado ao tribunal, o príncipe Tuan lhe pergunta: ‘Quantosanos tem você’? André responde: ’35 anos’. Desde quando você é cristão, pergunta Tuan. André responde:‘Há 36 anos’. Você tem 35 anos e é cristão há 36? Insiste An-dré: ‘Sim, porque sou cristão desde o seio de minha mãe’.Ofendido com a resposta, o príncipe o condena à morte.

Francisco TchuFrancisco Tchu e o irmão dele foram mortos perto da portaocidental de Tang-Ping-Tcheu. Francisco levava nas costaso irmão João Gabriel. O chefe dos Boxers, vendo a belezado menino, queria salvá-lo para o guardar para si. Nãopassa de criança, disse, para que matá-lo? Tentaram tirá-lo das costas do irmão. Mas Francisco resistiucom todas as forças. ‘ Trouxe o meu irmão para morrer.Chegamos juntos e juntos vamos morrer’. Não houve forma de separá-los. Os dois foram mortos.

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Wang-Koei-ChouenNo seu testemunho, o senhor Francisco Wang-Koei-Chouenacrescenta o seguinte: ‘Eis o que esqueci: enquanto Catarinae Antônio Yung eram conduzidos ao lugar do suplício, Antô-nio, ainda neófito, vendo amigos pagãos, suplicava-lhes quefizessem alguma coisa. A mulher dele Catarina, cuja famíliaera cristã de há muito tempo, o repreendeu severamente:‘Que ajuda procura entre os homens? Dentro de pouco esta-remos no céu e você busca a salvação junto dos homens’?Isso deu mais coragem a Antônio, que continuou a sua mar-cha, dizendo: ‘É ao céu que eu vou’. Foram mortos juntos.Catarina solicitou aos Boxers que primeiro matassem a ele,para estar certa da sua perseverança e que ela fosse mortadepois.

Um pequeno canhãoQuando os acontecimentos começaram, queríamos defen-der-nos, colocando um pequeno canhão. Mas os nossos ve-lhos nos disseram: ‘Seja feita a vontade de Deus. Vai aconte-cer-nos o que Deus quiser. Se Deus previu que morreríamos,a nossa resistência será vã’. Os pagãos nunca nos odiaram; mas, se vamos matar pessoas,certamente nos vão odiar. Quando os Boxers chegarem, va-mos fugir. Era a tática que havia sido adotada nas persegui-ções precedentes: fugir para a montanha e deixar que ascasas fossem pilhadas.

Paulo-Chao-An Paulo-Chao-An é aldeão de 60 anos. Os pais dele eram pa-gãos. Ele, durante a perseguição, renegou a sua fé. Reinte-grou-se à comunidade, fez penitência pública, imposta pelaIgreja, e chegou a testemunhar a favor de todos os cristãosda sua vila, mortos pelos Boxers. Ele enumerou 49, sublinhando o alto teor da vida cristãdeles.

Pedro TchuPedro Tchu, de 75 anos, era camponês. O seu testemunhono tribunal diocesano começou assim: ‘Conheço todos oscristãos do catálogo de Yen-Tze-Keu, seja porque eles eramcunhados, seja porque fossem da nossa parentela, seja ainda

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porque eram vizinhos’. Quando ele enumera os mártires,fala da mulher, dos quatro filhos, do irmão, dos sobrinhos.No total ele enumera 31 cristãos mortos. Ele próprio, comos seus, havia fugido para as montanhas, para escapar dosBoxers. Os Boxers, quando cercavam uma vila, primeiro pilhavamas casas; depois lhes punham fogo; depois iam à montanha,para procurar e matar cristãos. Muitos, com efeito, encontra-ram a morte na montanha ou no vale. João Batista Lu Tien-Hui estima em 10.000 os Boxers que deram caça aos cristãos.Quando os cristãos se viam cercados, rezavam, recitavam orosário. Os Boxers zombavam deles, dizendo: ‘ Cessem essasorações sórdidas, vocês estão mortos’.

Foto di un boxer ribelle

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Pedro Tang ChuenPedro Tang Chuen, camponês de 54 anos, deixa-nos este re-trato da esposa Ana Tchu: “Ana Tchu, minha esposa, era boacristã, muito melhor que eu. Ela fazia parte das Confrariasdo Monte Carmelo, do Santo Rosário, do Escapulário da Pai-xão. Todos os dias recitava o rosário. Assegurava boa educa-ção aos seus filhos. Todos os dias ela rezava as vésperas nacomunidade dos cristãos. Nunca falava mal de alguém. Ana Tchu constitui uma amostra dos cristãos dessa vila. Nãosomente eram piedosos, mas socialmente eram pessoas lím-pidas, simples, responsáveis, humanas, dignas de confiança,todas empenhadas nos trabalhos do campo.

Avó, mãe e esposa Chamado a dar testemunho no tribunal diocesano, AndréTchang diz que conhece todos os cristãos da vila, exceto al-guns de baixa idade. Entre os mártires, ele cita a mãe, a es-posa e a avó. Teresa Tchang, minha mãe, era levada à cólera. Mas, depoisque fez os exercícios espirituais em Pequim, voltou mudada.Ela levava toda a família à piedade, dizendo, todos os dias,em comum, as orações da manhã, da tarde e o terço. Duranteo mês de maio, junho e novembro, ela nos fazia rezar pelasalmas dos fiéis defuntos. Ela fazia parte da Confraria doMonte Carmelo e praticava a abstinência das quartas-feiras. Maria Tchang, minha esposa, era excelente cristã. Ela tinhabom caráter. Quando havia problemas graves em casa, nuncaa ouvi queixar-se. Ela respeitava todas as leis da Igreja. Elaera membro da Confraria do Monte Carmelo e, como aminha mãe, praticava a abstinência das quartas-feiras. Ana Lu era a minha avó materna. Ela era neófita e não co-nhecia muito da doutrina católica. Contudo guardava comestrito rigor todas as leis da Igreja. Não somente ela rezavade manhã e de tarde, mas de noite ela se levantava e, de joe-lhos, rezava o terço.

João Batista Tien-HuiJoão Batista Tien-Hui, de 27 anos, foi chamado ao tribunalem janeiro de 1915. Ele tinha, portanto, 12 anos, no tempodos acontecimentos. Depois de ter dito que conhecia quasetodos os cristãos mortos, ele recorda os dias da fuga. Com

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João Batista Tchao e João Batista Wang eles andaram váriosdias na montanha, até que se viram cercados pelos Boxers.Na estrada de volta, João Batista Wang se pôs a implorar queos pagãos o salvassem. O seu companheiro de cativeiro sevirou para ele e falou-lhe: ‘Você não tem o direito de imploraralgo dos pagãos’. A força da fé do amigo o confortou. OsBoxers mataram primeiro J. B. Tchao, depois amarraram J. B.Wang e lhe propuseram que oferecesse incenso para salvara vida. Ele lhes respondeu que não podia renegar a sua fé.Então os Boxers me pediram que me afastasse. Mataram-nolugar. Depois, tomados os corpos os queimaram.

João TchaoDiz-se que João Tchao, ainda menino, foi tomado e condu-zido a um pagode, onde tentaram ensinar-lhe uma oraçãobudista e fazer com que a repetisse. Ele, em vez disso, pôs-se a repetir a Ave Maria. Os budistas concluíram que nãoservia para nada e o mataram.

6.2 - As vilas Tcheng-Fu-Sze,Heu-Tuen, Si-Siao-Keo e Eul-puo-Tze

Vetula Sun Vetula Sun é feita prisioneira na vila de Che-Fuo-Tze e con-duzida à vila de Tcheng-Fu-Sze. Chegada à primeira portada vila, os Boxers queriam matá-la. Ela protestou, dizendo:‘Não, não é aqui que devo ser morta. Vamos mais longe’.Eles continuaram a marcha e chegaram à segunda porta. De novo os Boxers fizeram como se quisessem matá-la aí.Não, lhes disse ela; este também não é o lugar em que devoser morta. Prossigamos. Continuaram e entraram num tipode jardim. De fato era o cemitério dos padres, com grandecruz de pedra. Vetula ajoelhou-se ante a cruz e disse: Aqui, sim, disse ela,podem matar-me E de fato aí ela foi morta.

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Adelena WangAdelena Wang, de 49 anos, apresenta-se ao tribunal dioce-sano em 4 de maio de 1914. Ela vai testemunhar por umatrintena de mártires destas vilas e, entre eles, dois dos seusfilhos, uma irmã sua, dois cunhados, uma série de cobrinhos.Pode-se dizer que essas testemunhas sofreram o martírio naprópria carne e nas suas famílias. Disse ela: ‘Tenho ouvido dos pagãos da vila afirmar que ou-viram, muitas vezes, dos cristãos: ‘Eu sou cristão até a morte’.Esses cristãos, dizem eles, tem realmente coração forte; nadapode abalá-los.

Pedro Suen-Ta-Chao-eul Pedro Suen-Ta-Chao-eul era já idoso, quando foi preso pelosBoxers. Ele foi conduzido fora da porta ocidental desta ci-dade. Propôs-se a ele que apostatasse, assegurando-lhe avida. Mas ele recusou com coragem. Alguns dias antes, eu mesmo o havia encorajado a não traira sua fé. Ele havia contestado: ‘Eu, velho como sou, iria re-negar a minha fé? Não, eu nunca renegaria. No momentoda morte, eu lhe dizia, não esqueça de invocar a VirgemMaria. Não a esquecerei, disse ele. Nessas disposições elefoi morto.

Francisco Meng Francisco Meng, tinha 46 anos, quando foi testemunhar notribunal diocesano. Ele é um campônio. Entre os mártires eletem o seu avô, uma das suas irmãs, e cinco filhos dela. Na apresentação do seu avô, Pedro Suen, assim falou: ‘Oavô era o chefe da família. Quando fugimos, ele ficou guar-dando a casa. Feito prisioneiro, ele foi convidado a oferecerincenso. Ele respondeu: ‘Somos cristãos há muito tempo.Oferecer incenso? Não. Podem serrar-me. Nunca oferecereiincenso. Tenho 69 anos; não posso esperar outros 69 anos.Se lhes aprouver, matem-me’. É o que os Boxers fizeram.

Filippe Tchang Filippe Tchang centraliza o seu testemunho no caso Tchai-Koan e do seu filho. Tchai Koan foi detido por dois Boxersque o conheciam e que o entregaram a outros. Eles o convi-daram a queimar o incenso para salvar a vida. Mas era cristão

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forte; respondeu-lhes com audácia: ‘Quanto antes me matam,tanto antes vou ao paraíso. Quanto mais demoram, tantomais tarda o céu. No concernente ao incenso, não há nadaque fazer; nunca oferecerei incenso. Ouvindo isso, os Boxers o algemaram e o conduziram a umcemitério comum, onde o mataram. No caminho invocavacontinuamente a Jesus e Maria. O seu filho, Tchai-Che-Teu estava escondido. Um dia ele foia Eul-Pue- Tze. Um pagão, de nome Sii, convidou-o à sua

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casa, deu-lhe alimento e lhe ofe-receu hospitalidade. Era feliz emter esta oportunidade. Mas osBoxers, alertados pelo hospe-deiro, vieram e algemaram-no.Um dos Boxers, com um golpede lança, abriu-lhe o ventre, desorte que lhe saíam as entra-nhas. Ele também foi conduzidoa um pagode para oferecer in-censo aos ídolos. Ele recusou.Então o conduziram ao cemité-rio, onde o pai havia sido morto.

Aí, quase no mesmo lugar, o filho é trucidado. Enquanto eraconduzido à morte, não cessava de dizer: “Jesus, tenha pie-dade de mim. Santa Maria, salve-me”. Para tornar mais solenea execução, os pagãos haviam pedido alguma música.

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7.O martírio dairmã Filomena Tchang

Esta narrativa vem da testemunha Luís Che, de 48 anos, funi-leiro de profissão. Apresenta-nos, visto de perto, o caso deum martírio repleto de ressaltos, onde se tecem juntamentemisericórdia, amor, fidelidade e entrega da vida. Este mergu-lho em caso concreto permite apanhar certos aspectos daperseguição que habitualmente nos escapam.

No concernente à virgem Filomena Tchang, ou Irmão de SãoJosé, na proporção em que a minha memória acerta, recordoque ela foi detida pelos Boxers antes do amanhecer. Ela re-cebeu golpes de lança e de espada na cabeça e no pescoço.Os Boxers a abandonaram como morta diante da igreja in-cendiada de Tong-Tang. Ao raiar o dia, as pessoas do lugar a levam para dentro daigreja, lhe tiram as roupas e se preparam a queimá-la, amon-toando lenha sobre o corpo. Mas, de fato, eles a deixamneste estado. Ela sai do monte de lenha; com dificuldade sepõe de pé, escondendo o seu corpo contra a parede da igrejacomo para proteger a sua dignidade. A cena atraiu pessoasao seu redor. Não faltaram os que zombavam dela. Um senhor de idade, pagão que morava ao lado da igreja,vendo-a naquele estado, protestou contra o grupo: “Quemde vocês, tendo uma irmã jovem em tal situação, aceitariaque fizessem o que estão fazendo contra ela”? Arrumou al-guma roupa para cobri-la. Deu-lhe uma bengala com que seapoiasse, porque os graves ferimentos de pernas e pés lhetolhiam o andar.De tarde, impelida pela sede, ela tentou achegar-se a umpoço para beber, mas os pagãos do lugar não deixaram. Só àmeia-noite, quando não havia ninguém, conseguiu beber.Algum passante deu-lhe alguns pepinos preparados que elacomeu.

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No terceiro dia, alguns indivíduos lhe ataram as pernas e aarrastaram pelas ruas da cidade, para deixá-la semimorta emvia central de Tong-Tang.Nesse dia, passei perto da igreja; ouvi homens falando deuma mulher que jazia na rua. Entendi logo que se tratava dealguma católica ou protestante. Fui ver. Discretamente per-guntei-lhe o nome. Ela não respondeu. Perguntei se era ca-tólica ou protestante. Ela nada respondeu. Vendo isso, trateide encorajá-la; disse-lhe que não havia Boxers, acrescen-tando: “Sou homem honesto; só penso em salvá-la”. Aí, sim,ela me disse que era católica, que se chamava FilomenaTchang. Perguntando, encontrei um vizinho que era da fa-mília dela. Esperamos a noite. Pensei em alugar uma carrua-gem, mas em tal hora já não havia. Era preciso ajudá-la aandar. Pôs-se de pé, valeu-se da bengala e, segurando-a pelobraço, pusemo-nos a caminho. Deparamos com guardas no-turnos. Queriam saber aonde iria com esta mulher. Tive umasinspiração diplomática: “Hoje encontrei esta mulher que meé desconhecida. Tive pena dela, não importa que seja solteiraou casada. Quis salvá-la. Caso pensem que não estou agindobem, deixo-a aqui e se ela morrer, já não serei responsável.Sou soldado e tenho coisas urgentes que fazer”. Os guardasviram a minha farda e acreditaram que as minhas intençõeseram corretas. Então lhe revelei o meu nome verdadeiro. Ela me havia pe-dido, quando estávamos com os outros na praça, mas eunão lhe dei o meu verdadeiro nome. Chamo-me King, eulhe disse, é nome tártaro. Eu sou King Che. O padre Che,que foi cura da paróquia de Nan-Tang, é parente nosso. Seduvida, veja esta medalha que escondo na caixinha de ta-baco. Filomena pegou da medalha. Era da Santíssima VirgemMaria. Ela pôs-se a chorar.

Somente então ela teve plena confiança em mim. Até aíguardava certa desconfiança; no começo havia preferidomorrer a vir comigo. Ela falou: ‘Hoje, enquanto eu jazia naestrada, havia-se confiado a Nossa Senhora; eu lhe pediraque eu morresse, ou que ela enviasse alguém para me salvar.É o que a Virgem Maria fez’. Eu confirmei. Disse-lhe que elaestava certa em dizer que Nossa Senhora me enviara. Comefeito, eu não tinha nada que fazer deste lado; até nem sei

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por que tomei esta estrada nem por que me pus a ajudá-la.Depois de bom tempo, chegamos a uma grande via. Ela mepediu de beber. Perto havia um poço com uma bilha de ma-deira e dei-lhe de beber. Prosseguimos por uma ruela, masnão demorou que ela me disse que não podia mais caminhar.Então falei-lhe: “Vou levá-la nas costas. Somos jovens ambos;você considere-me irmão e eu a considera irmã”. Ela aceitou.Levei-a até a minha casa. Encontrei a casa vazia, todos ha-viam fugido. Coloquei-a na porta. Saltei o muro e abri pordentro a porta. Dei-lhe um pouco de água e preparei algumacomida. Como não havia mulher, eu próprio lavei-lhe o rosto.Tinha as orelhas cheias de sangue.e terra, os cabelos estavamcolados pelo sangue coagulado. Dei-lhe alguma roupa con-dizente. No dia seguinte, muito cedo, fui à casa do avô, onde a minhamãe se refugiara. Pedi que viesse à minha casa e cuidasse da

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filha. A mãe me disse que não o faria, porque em dois outrês dias todos estariam mortos. Ela tinha ouvido dizer quetodos os cristãos chineses que se refugiassem na Legação se-riam aceitos. Perguntou-me se eu queria ir com eles. Nemvivo, nem morto, irei à Legação, respondi. A mãe me ordenouque eu aceitasse dinheiro, frutas, alimento, que passasse nafarmácia para comprar remédios e que tentasse convencer afilha para salvar-se na Legação com os demais.Retornando a casa, pus Filomena a par de tudo. Ela recusouir à Legação. Aqui, diz ela, temos paz, lá com tantos homens,há muito barulho. Como me poderia cuidar? Se os Boxersvierem, tu deves fugir e não pense mais em mim. Estou prontapara o martírio; se for da vontade de Deus, então viverei. Re-zamos as orações da tarde juntos.Retornei à casa do avô, que encontrei vazia. Todos foram re-colher-se à Legação. Nesta mesma noite, começou a guerra.

Ouviam-se os tiros de fuzil e de ca-nhão.No segundo dia em que eu me en-contrava com Filomena, três homensentraram na casa e pediram dinheiro.Eu não queria dá-lo. Mas Filomenaachava que era melhor dar-lho, paraevitar alguma desordem na casa, oque atrairia os Boxers. Assim, dei-lhesalgum dinheiro. Os pedintes saíram,costeando a parede do jardim.

Os três que receberam o dinheiro voltaram com outros seisou sete da mesma laia. Vieram pelo jardim e dialogaram as-peramente conosco.– Que vais fazer com esta pessoa doente?– Aonde querem que eu a leve?– Não é da nossa conta. Vocês têm de abandonar imediata-

mente esta casa..– Permitam que espere a noite para levá-la a outro lugar.– De forma alguma, não há tanto tempo. – Pelo menos deixem que vá contratar um serviço de car-

ruagem para levar a enferma.– Não. Queremos que deixem a casa de imediato.Vendo que nada podia obter deles, fui ter com Filomena,que tudo havia escutado. Temos de sair e não tenho para

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onde levar a enferma. Mas eu conhecia certo lugar próximoonde os europeus faziam alguma parada. Vou deixá-la aí atéque encontre algum lugar. Ela concordou em tudo. Prepareium lugar debaixo de uma árvore. Retornando a casa, parabuscar Filomena, encontrei-a fechada a chave. Os homensque nos enxotaram se consideravam donos da casa.Então, um cocheiro de família tártara, chamado Fong-Tchang-Eul, que me havia ajudado a levantar a jovem, perguntou-me:– Quem é esta mulher?– É parenta minha distante.– Não é a mulher que ficou dias na rua?– É ela.– Pois bem, escute. Somos amigos há muito tempo. Permita

lhe dê um conselho para que se salve. Se a pessoa fossehomem, seria mais fácil encontrar casa; mas é mulhercheia de ferimentos. Onde você vai escondê-la? Você,que é moço forte, vai despertar suspeitos nos Boxers. Fuja.

– Trouxe esta mulher da rua até aqui; há oito dias que meocupo dela; agora você quer que eu a abandone? Issonão posso fazer.

– Claro que compreendo. Mas pense que outra solução nãoexiste. Pelo fato de uma pessoa ter de morrer não quer di-zer que outra também deve morrer. Fuja enquanto hátempo. De noite pode vir vê-la, trazer comida e esperarna vontade de Deus.

Filomena estava muito perto e tudo ouviu e ia ponderando:“Agora compreendo que apenas me resta o caminho do mar-tírio. Você não deve mais ocupar-se de mim. O que já fez ul-trapassa o que você deveria ter feito, eu lhe fico plenamentereconhecida. Parta. Deixe-me. Vamos encontrar-nos no céu.Saia agora e cuide de não renunciar à sua fé.Eu saí. Por horas andei pelas ruas. De noite, por outro cami-nho, fui ver Filomena. O luar me fez ver uma sombra. “Filo-mena ainda está aí”, pensei. – Sou eu, eu voltei, disse-lhe. Mas ela com a cabeça no

tosco travesseiro, perguntou:. – Quem é você?– Que aconteceu? Há pouco nos despedimos, e você não

reconhece a minha voz?– Depois da sua saída, muitos homens vieram. Queriam jo-

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gar-me nalgum poço. Atiraram-me tijolos ou pedras. Tenhooutra ferida grave na testa. Perdi muito sangue. Não estoumuito consciente. Pouco posso compreender.

– Quer que lhe traga alguma coisa? Queres comer?– Nada desejo. Não tenho fome. Tenho sede. A bilha em

que você me preparava o chá está cheia de terra.Fui ter com o guarda noturno da via pública; pedi-lhe umpouco de água, depositei-a perto de Filomena. Tentei con-solá-la, prometendo retornar e levá-la alhures, se me fossepossível. Fui ao refúgio do meu irmão e lhe pedique recebesse Filomena. Ele recusou,porque o dono da casa, pagão, nuncareceberia uma mulher ferida. No diaseguinte, vi o dono da casa. Ele foi ca-tegórico. ‘Você eu posso receber, masnunca a mulher ferida’.Tornei a partir. Dirigia os passos parao lugar onde estaria Filomena, Na via,um vizinho, pagão, me parou. ‘ Aondevai? A sua irmã está morta. Não vá,que eles o estão esperando. Os Boxersvieram de noite. Pegaram-na e atiraram-na numa casa deeuropeu, já queimada. Atiraram sobre o corpo trapos e velhocolchão e puseram fogo. Sobre os restos jogaram tijolos epedras’.Essa mesma versão dos fatos me foi contada, em termosquase idênticos, pelo guarda noturno que me havia dadoágua. Ele me disse que o corpo fora coberto de terra e tijolospara que não fosse profanado.

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8.O martírio da família Yun

Matias Yun, de 49 anos, farmacêutico, foi convocado ao tri-bunal diocesano em 5 de fevereiro de 1914. Por ocasião dosacontecimentos, ele tinha 35 anos.

Devo, eu também, contar o que aconteceu à minha esposa eàs duas filhas. Em 14 de junho de 1900, a minha esposa seconfessou com o padre Garrigues; em 15 de junho, pela ma-nhã, ela assistiu à missa e comungou. De tarde, a igreja deTong-Tang foi entregue às chamas.Em 16 de junho, abandonamos a casa e procuramos algumrefúgio em Pequim. Mas os Boxers montavam guarda nasportas. Uma multidão de pagãos se pôs a seguir-nos, gritandoque iriam alertar os Boxers. Mas nada fizeram. Chegamosperto de um lago que, naquele ano, por causa da longa seca,estava sem água. Numa margem escarpada, certa mulher es-tava assentada com um pobre menino nos braços. Com-preendi que era mãe cristã. Estávamos escondidos nos juncos.Eu lhe disse: ‘ O ponto não é conveniente para nos escon-dermos todos aqui. Ou nós ou você, alguém terá de deslo-car-se’. Ela levantou-se e, sem dizer uma palavra, foi sentar-se trinta metros afastada.Vendo que a multidão de pagãos aumentava, deixamos onosso refúgio e, de novo, tentamos ir a Pequim. Vagamostodo um dia e deparamos com os Boxers na guarda dasportas onde pretendíamos refugiar-nos. Vagamos sem nuncaparar, para não despertar suspeitas. Por fim, retornamos aosnossos caniços na escarpa do lago seco, onde passamos anoite. As nossas duas filhas nunca choraram.No dia 17 de junho, pelas seis horas, os Boxers chegaram.Arrastavam com eles muitos cristãos, amarrados em conjuntode dois ou de três.. Mataram dezoito, em momentos diferen-tes. Todos aqueles que eram interrogados também eram exe-cutados. Os cristãos não diziam palavra. Vi uma criança desete ou oito anos chorando à vista dos mortos.

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Os Boxers faziam-sepassar por soldadosde sentimentos reli-giosos. Obrigavamos pagãos, que vi-nham contemplar oespetáculo, a que seajoelhassem, aplau-dissem e gritassem:Bem feito!Depois da execuçãodos cristãos, namaioria mulheres ecrianças, cinco Bo-xers se puseram aexaminar os caniços.

Encontraram outros cristãos. Um deles gritou ao comando:“Chefe, há cristãos por aqui”. Pelo acento idiomático, calculeique provinha da região de Ting-Sin-Hsien. Claro, chegaramao ponto em que estávamos. Primeiro, abordaram o escon-derijo da minha esposa, que tinha a filha mais velha nos bra-ços. Um Boxer feriu-a na cabeça e lhe cortou a mão. Quandome acharam, eu tinha a filha mais nova nos braços. Pedi àmenina que invocasse Maria. Ela não me entendeu bem edisse Cheng Mu, isto é, Mãe de Deus. Aí o Boxer nos feriu, aela e a mim, mas o golpe não era profundo. Deram-nos pormortos e nos deixaram. Então sobreveio uma grande multidão de pagãos que, to-mando-nos por mortos, diziam o seguinte: “Olhem as crian-ças; estão mortas, e ainda sorriem. Reparem como se pare-cem aos europeus. E passaram a maldiçoar-nos. De fatovocês merecem a morte. Se não houvessem sido eliminados,na oitava lua estariam prontos para a insurreição e para a re-volta. Há tempo que deveriam ter sido mortos. Se tivessemsido pessoas honestas, alguns se ocupariam de vocês; masforam maus, pelo que ninguém se interessou por vocês. Jesus,salve-nos, vocês diziam; mas ele não os salvou. Parecem chi-neses, mas vocês cometeram as torpezas dos europeus e ascrianças se parecem a europeus”. Ao cair da tarde, quando todo o mundo tinha ido embora,perguntei à minha esposa:

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– Como está?– Muito mal. – Como sofre muito, invoque a Virgem Maria.Ela pôs-se a rezar, mas a voz era muito fraca. – Eu vou à porta Teng-Cheng-Men em busca de alguma car-

ruagem. Não tenho certeza de retornar. Nada encontrei,mas consegui voltar. Falei à esposa do meu insucesso. Ex-pliquei-lhe que não era prudente que ficássemos juntos.Tornei a encorajá-la a invocar a Virgem Maria. Ela o fez.Era mulher fervorosa. Nunca a ouvi falar mal de alguém.Aí me afastei alguns metros nos caniços. Exausto, caí edormi toda a noite até as seis horas do dia seguinte.

Pelas seis horas os Boxers retornaram. Vendo que havia ape-nas três corpos, exclamaram: ‘Vejam, falta um. Ou fugiu ou

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Jesus o salvou.Havia uma multidão imensa e soldados. Um deles desem-bainhou o sabre e feriu a esposa no rosto diversas vezes. Ela,porém, não morreu. Um outro sugeriu que a esmagassemcom grande pedra. Alguns foram procurar a pedra, que dei-xaram cair sobre as pernas dela. E a tomaram por morta. Epartiram. Ela, porém, ainda estava viva. Os piores deles in-sistiram em que ainda faltava um corpo. Puseram-se a pro-curar; mas não me encontraram e foram embora. De tarde, tornei a ver a esposa pela última vez. Ela ainda vi-via; mas as feridas estavam cobertas de vermes. Perguntei,mas ela não falava. Reze à Santíssima Virgem. Fez sinal afir-mativa com a cabeça. Aí eu parti e nunca mais tornei a ver aesposa.

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9.A hecatombe dos pequenos

Todos esses mártires fazem parte das vítimas das vilas próxi-mas de Pequim: Tsiao-Kia-Puo, Wang-Tsuen, Tang-Ko-Puo,Tsao-Ko-Tchuang, Pai-Tsao-Wa e Tung-Liu-Coei. Esses már-tires são campônios desarmados e que sofreram a violênciados Boxers. Quando os pagãos nos viam fugir na região das montanhas,nos diziam: “Voltem. Por que fugir, se não fizeram mal aninguém”?. Respondíamos que nos era impossível viver nesselugar. Cinco ou seis dias antes de 19 de junho, dia em que chega-ram os Boxers, grande número de pagãos vieram para pilharos nossos bens. No dia 19, os Boxers encontraram algumaresistência e se retiraram. Mas os cristãos dessas vilas com-preenderam que não poderiam defender-se por muito tempo.Pensaram em colocar em segurança as mulheres e as crianças.Primeiro, pensaram em levar mulheres e crianças às monta-nhas. Aí, porém, não havia nem abrigo nem água. Então pro-curaram uma gruta muito espaçosa e aí levaram mulheres ecrianças. Era a gruta Che-Pang-Tang. Em 20 de junho, antes do nascer do sol, em todos os cami-nhos e sendas da montanha vimos chegar os Boxers. Aregião da montanha contava com bastante cobertura vegetal.Os cristãos se puseram a fugir em todas as direções, embusca de esconderijos.

Eu e um cristão, de nome Suen, nos perguntávamos ondeencontrar refúgio. Decidimos ir a uma gruta que conhecía-mos. Na estrada, outro cristão se juntou a nós; mas achou agruta pouco segura. Prefiro, diz ele, morrer na montanha amorrer nesta prisão. Ele prosseguiu na rota da montanha. OsBoxers o viram, o perseguiram e lhe golpearam o pescoço eele caiu morto.Perto daí os Boxers encontraram uma mulher cega de 60anos. Ela não era nem catecúmena. Não sendo ainda cristã,

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pensava que os Boxers não a matariam. Ela também segueos europeus, disseram. E a mataram. Ela não cessava de re-petir: Cheng Mu, isto é, Mãe de Deus. Depois vimos os Boxers descendo da montanha: eles tinhamapanhado rebanho bovino de um cristão. Quanto a nós, en-tramos na gruta. Eu sabia que nela havia água. Levava comigofuzil e revólver. Caímos em sono profundo. Quando acorda-mos, era impossível saber a hora, por causa da escuridão dagruta. Fomos até a entrada, que havia sido fechada com pe-dras. Por uma fissura pudemos ver a luz do sol. Não ousamos

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sair, pensando que houvesse ainda pagãos. Pouco depois,escutamos conversas. Há na gruta dois homens, dizia alguém,um com fuzil e outro com lança. É perigoso entrar aí. Ontem,dizia outro, roubei um saco de favas na casa de um cristãode nome Tsiao. Eu, falou outro, roubei um pouco de trigo;ocorre que eu não me havia prevenido de saca. Uma voz,aparentemente de velho, falou assim:– “Eu não roubei nada. Esses cristãos devem tomar medica-

mentos dos europeus. Exceto a velha Wang, que gritou‘mamãe’, todos os outros parecem felizes de morrer”. Ascasas dos cristãos haviam sido pilhadas e entregues àschamas. Na pilhagem todos os rebanhos dos cristãos e osporcos que eles possuíam foram tomados. Ouvi dizerainda:

– Fechemos a entrada da gruta com pedras sólidas, de modoque eles não possam sair e morram de fome. Um outro,porém, discordou.

– Vamos embora. No vale não há mais ninguém. Se dois outrês cristãos vêm, podem fazer-nos algum mal. Vamos,quando chegarmos a casa, já não haverá sol. E foram.

Então dirigimo-nos à entrada da gruta, retiramos algumaspedras e saímos pela abertura. Fomos andando para o lugarem que na véspera havíamos deixado mulheres e crianças.Encontramos um corpo, era Tsiao-Yu, de 80 anos. Suen, po-rém, não quis continuar. Eu me aproximei da gruta e daípodia ver o vale. Era juncado de corpos brancos. Tinha cho-vido; a chuva embranquece os corpos. Havia sangue portoda a parte. Aproximei-me dos mortos; eu tinha os pés co-bertos de sangue. Entre os corpos ouvi uma voz que gemia. Aproximei-me;tirei o corpo de cima dela. Não reconheci o rosto de quemgemia, tamanho era o seu complexo ferimento. Falei:– Quem é você?– Sou Wang-Eul, a mãe.– Há dois Wang-Eul. De que família é você?– Sou da família Tsiao. E quem é você?– Sou um parente seu. Como fizeram para abrir a gruta?– Não sei como puderam abri-la. Recordo que nos sufocá-

vamos na fumaça insuportável. Depois, desceram na grutacom lanternas e com lanças recurvadas. Fizeram-nos saire nos pediram que ajoelhássemos. Uma vez todos fora,

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eles nos questionaram.– Será que falta alguém? A isso respondemos:– Ninguém está faltando. Estamos todos aqui. Aí disseram:– Vocês todos, da família Tsiao, não são pobres. Tragam para

cá as suas joias. Entregamos-lhes também os pendentesdas orelhas. Depois eles acrescentaram:

– As suas roupas também. Claro, hesitamos. Mas reiteram aordem dada. Entregamos-lhes as roupas externas. Elesqueriam também as roupas íntimas. Aí os protestos se am-pliaram.

– Preferimos ser mortos a nos desnudar. Não adiantou. Elesnos arrancaram à força as nossas roupas de baixo. Eu per-guntei à voz que gemia e que me falava se eles não leva-ram nenhuma mulher. Ela me disse que foi apenas MariaTchang, sua prima. Perguntei onde estaria ela. A voz medisse que não sabia. Ela me pediu que eu a salvasse.

Como poderia eu salvar a pessoa que me falava, se ela estavaà morte? Toque o ventre, eu lhe disse, você tem as entranhasde fora. Implore a Virgem Santíssima. Vamos encontrar-nosno céu. Eu não estou certo de poder escapar. Como a vozme dissesse que estava com frio, retirei alguns trapos deoutros corpos e a cobri. Eu a convenci de que era melhornão me chamar e se confiasse a Nossa Senhora e se manti-vesse em silêncio. Ela fez sinal afirmativo. Eu parti e nuncamais a vi.Esperamos a noite. Depois, com o outro cristão Suen, fugimospara Sang-Yii, onde ficamos até que passasse a tormenta Bo-xer. Nenhum cristão apostatou. As mães instavam as criançasa se manterem firmes. “Está pronto a morrer’? A criança con-testava: ‘Sim, estou. De igual modo, os adultos encorajavam-se: ‘Ninguém de nós renegue a sua fé. Vamos encontrar-nosno céu’. A maioria dos cristãos foi morta no dia 20 de junhode 1900.

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10.Os martíres dos Missionários Lazaristas

10.1 - O Rev.Pe. Jules Garrigues

Em 23 de junho de 1840, o Pe. JulesGarrigues nasceu em Saint-Sernin deGourgoy, na diocese de Albi, Tarn,França. A sua família contava sete filhos,três dos quais mortos em tenra idade.As duas filhas e os dois rapazes, todos,se fizeram religiosos. Jules era o último. Em 6 de outubro de 1866, Jules emitiuos votos na Congregação dos Padres Lazaristas. Em 15 de ju-nho de 1867, foi ordenado sacerdote em Paris. Em 27 de1868, ele partiu como missionário para Pequim e chegouem 28 de março de 1868. Durante muito tempo, ele foi pá-roco da igreja de Tong-Tang em Pequim. Em 14 de junho de1900, perto da igreja em chamas, ele foi chacinado pelosBoxers. Fora missionário por 32 anos e morreu com 60.

Testemunhos

Os testemunhos que provêm das pessoas chamadas ao tri-bunal diocesano de Pequim são largamente suficientes paramostrar a personalidade extraordinária deste missionário. Elefoi asceta extremamente humano.

Tomás Yen-Sung-ChaoA testemunha Tomás Yen-Sung-Chao, de 62 anos, da paróquiade Tong-Tang, paróquia oriental de Pequim, exerce a profissãode comerciante. Ele próprio perdeu quase todos os membrosda sua família nesta perseguição. Ele fala assim do Pe. Garri-gues: “Eu também conheci o reverendo padre Jules Garrigues,cuja caridade era extraordinária. A sua virtude era evidentepara o olhar de todos”.

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José Ning Cheu-TchenTestemunho de José Ning Cheu-Tchen, da mesma paróquia:“Jules Garrigues era sacerdote excelente. Ele tinha bom ca-ráter. Era simples, amava o silêncio, falava pouco. A sua ali-mentação era simples. Praticava a mortificação e se privavade carne. Ouvi dizer que o reverendo padre Jules Garriguesfoi reconhecido por dois jovens Boxers, que gritaram: ‘Eisum velho diabo”. Os europeus eram chamados diabos; ossacerdotes eram ‘grandes diabos’. Eles, dizendo isto, o mata-ram. Este sacerdote era muito bom. Ele é certamente dignode ser canonizado”.

Filomena ShuTestemunho de Filomena Shu: “O rev. sacerdote Garriguesera homem excelente, brando, humilde. Na confissão elesabia encorajar os cristãos de maneira extraordinária. Quandoalguém negligenciava a missa de domingo, ele o impedia dereceber a comunhão. Queria, desse modo, que os cristãosnão negligenciassem o domingo. No púlpito exortava os cris-tãos a se aproximar mais vezes da comunhão ou a assistir àmissa. Encorajava sempre a comunhão frequente. No co-meço, nas homilias, ele tinha o hábito de render graças aDeus ou de pedir a paz. Não há cristão que não fale dassuas virtudes. Ouvi o rev. padre Barthélémy louvar a mansi-dão e a paciência de Garrigues. Muitos cristãos diziam queele estava cheio de caridade para com todos, sobretudo paracom os mais pobres. Ele praticava a mortificação no vestir esobremodo na alimentação”.

Irmão marista Marie Nizier “Quanto ao padre Garrigues, tive sempre para com ele muitoalta estima. Sempre o considerei como santo. Entre nós, Irmãos,o chamávamos ‘Cura d’Ars’. Eu, pessoalmente, quando sentiaalguma depressão, ia a Tong-Tang e retornava restaurado”.

Matias YunMatias Yun, de 49 anos, foi convocado ao tribunal diocesanoem 5 de fevereiro de 1914. Ele tinha 35 anos no deflagrar daperseguição. Em primeiro lugar ele fala do padre Garrigues:“Conheci o padre Garrigues e muitas vezes me confesseicom ele. Falávamos de catecúmenos. Ele gostava de trabalharna conversão dos pagãos. Muitas vezes, pediu ao meu pai e

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a mim que procurássemos candidatos catecúmenos. É o queeu fazia. Garrigues era sacerdote verdadeiramente fervoroso.Nas suas relações com os cristãos, fazia prova de grande ca-ridade; nunca se mostrava importunado, quando os cristãosvinham vê-lo ou consultá-lo. Todos os dias, depois da missa,íamos ter com ele. Ele nos acolhia com alegria e nos encora-java. Antes do incêndio da igreja, quando os cristãos experi-mentavam o seu temor, vinham a ele em busca de encoraja-mento. Tinha o hábito de dizer: ‘Como vocês são medrosos’.Em termos e martírio, repetia ele, num minuto tudo está ter-minado. São palavras que foram ditas, por exemplo, à minhaesposa, quando ela se confessava. Muitos cristãos tornavama dizer isso.

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A igreja de Tong-Tang foi incendiada em 15 de junho. Opadre Garrigues se salvou pela porta meridional e se escondeuem lugar não distante da igreja. Na noite de 17 de junho, foivisto caminhar perto do pagode de Luong-Fu-Sze. Pagãos dolugar o viram e disseram: ‘Eis um grande diabo europeu’.Mas outros disseram: ‘Não; é um missionário que ensina areligião’. Os pagãos que tinham lojas no lugar saíram de todaa parte. Um homem, originário de Chantung, veio empu-nhando um utensílio de madeira e matou o padre, dando-lhegrande golpe na cabeça. Outro chegou com instrumento deferro, um daqueles que servem para reavivar o fogo e o feriutambém. O corpo do padre presume-se que foi queimado”.

Pedro KaoPedro Kao é relojoeiro de 48 anos. Eis o que disse ao tribunalem favor do padre Jules Garrigues: “Conheci muito bem opadre Jules Garrigues. Ele não tinha defeito. Entre os missio-nários, ninguém fazia mais penitência do que ele.. Nas sex-tas-feiras, contentava-se com um pouco de queijo. Com elehavia sacerdotes chineses; eles ficavam longe das suas mor-tificações. A sua caridade era sem igual. Ele não comia quasenada. Ele dava o seu dinheiro aos pobres. Ele lhes dava atéparte da própria roupa. Era de tal modo pobre, que o interiorda sua casa era nu, sem ornamento. Ele escutava as confissõesde maneira muito atenta; depois fazia observações sobrecada mandamento, sobre o respeito das leis da Igreja. Aquelesque vinham confessar-se sem verdadeira contrição, depoisdas fervorosas solicitações, sentiam-se levados ao arrepen-dimento. Os seus exemplos eram tão evidentes, que ficavamna memória de todos”.

Teresa HeuTeresa Heu era uma das empregadas das Irmãs de São José.Ela foi testemunha do martírio de algumas delas. No seu tes-temunho ela afirma que uma das Irmãs foi crucificada contraa parede, pés e mãos pregados. Um Boxer, vendo-a nesta con-dição, transpassou-lhe o lado com a lança e assim ela morreu.Quando Teresa Heu foi chamada ao tribunal, em 20 de abrilde 1914, ela tinha 52 anos. Do padre Garrigues ela disse: “Eletinha muito bom caráter, paciente, manso. Para mim, ele nãotinha nenhum defeito. Possuía verdadeira piedade”.

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Irmã Paula TchangIrmã Paula Tchang foi uma Irmã de São José. Ela tinha 58anos, quando se apresentou ao tribunal. No começo do seutestemunho, ela traça o quadro do padre Jules Garrigues:“Ele era o nosso pároco em Takeu. Dei-me conta de que eraum pastor muito piedoso. Ele rezava em todo o tempo. Erarespeitoso das regras e dava constantemente esmolas. Ouvidizer muitas vezes que também dava das suas roupas. Tinhaum vigário para auxiliá-lo; mas este queria ocupar-se apenasdas Irmãs de São José; Garrigues, em nome da paz, deixavaque assim fizesse”.

Irmã Luísa DucurtyTestemunho da Irmã Luísa Ducurty, de 71 anos, Filha de Ma-ria. “O padre Garrigues era um santo missionário. Eu melembro de que o bispo Delaplace, em conferência, nos deuo padre Garrigues como modelo de humildade, não com-preendia que se tivesse alguma consideração por ele. Noconcernente à sua caridade, bastava que um cristão viessepedir-lhe esmola, para que ele atendesse. Sempre que lheapresentavam algum presente, ele o punha de lado, e come-çava a falar dos catecúmenos por converter”.

José LyEis como o vê o relojoeiro José Ly, de 49 anos. Esta testemu-nha teve grande número de membros da sua família chaci-nados. Ele era da família dos Shu, cujo pai e um dos seus ir-mãos eram catequistas na paróquia de Tong-Tang, aquela dopadre Jules Garrigues. “Conheci muito bem o padre JulesGarrigues. Era homem de ótimo caráter, que demonstravapara com os pobres grande atenção. Nunca se incomodava,pelo contrário tratava todo o mundo com brandura. Muito oconheci, porque fiz os meus estudos na escola da paróquia.Apesar do muito barulho que fazíamos, ele ficava muitocalmo”.

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10.2 - Rev. Padre Maurice Charles Pascual DoréPÁROCO DA PARÓQUIADE SI-T’ANG

Maurice Charles Pascal nasceu em 18de maio de 1862. Terá assim 38 anos quando é morto, emPequim, sob a perseguição dos Boxers. Na ficha que traz os nomes dos márti-res da paróquia de Si-t’ang, encontramos as informações se-guintes :– É membro da Congregação da Missão (Lazarista).– É pároco dessa paróquia. – É filho de Pascal e de Elisabeth Thyriet. – Foi morto na igreja de Si-t’ang, em 18-19 da 5ª Lua, 14-15

de junho de 1900. – Mais adiante, observamos que dez outros cristãos foram

mortos nessa igreja, na mesma data. – O incêndio da igreja aconteceu no dia 14 de junho de 1900.

Testemunhos

Paul Souen  Testemunho de 24 de fevereiro de 1914. Este testemunho éo mais rico e o mais longo.Paul Souen é um homem de 29 anos, é comerciante de pro-fissão. Diante do tribunal, diz que conhece bem o Pe. Mau-rice Doré :« Ele tinha um caráter irascível, mas tratava bem os cristãos eera consciencioso no cumprimento de seu trabalho sacerdotal.Gostava de dirigir o canto das crianças, na igreja, e ensinava-lhes a tocar órgão. Eu mesmo aprendi, graças ao Padre, a tocarharmônio.» Paul Souen conta também como o Padre Dorévolta de Pé-t’ang, onde teria podido encontrar um lugar seguro,e como ele fecha todas as suas armas: fuzil, pistola, baioneta,…num pequeno quarto, passando a chave.“Por ocasião do incêndio da igreja de Si-t’ang, não houve ne-nhuma resistência da parte dos cristãos… O Pe. Doré diz a seuempregado Yang Jean (cunhado de Paul Souen): “Não vou usar

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o meu fuzil. Não podemos escapar de suas mãos e não teríamosnenhum mérito em morrer assim.” Então pegou seu fuzil, suapistola, uma espada, uma armadura de metal para os dedos efechou-os num quartinho, e não os tocou mais. Sobrava umfuzil que o empregado Yang lhe pediu e levou para sua família.Dois ou três dias antes do incêndio da igreja de Si-t’ang, oPadre Doré se tinha refugiado em Pé-t’ang. Mas, ali passouapenas uma noite, e depois voltou, porque seu bispo lhe dissera:“Teu lugar está entre teus cristãos para sustentá-los e encorajá-los!” Ele considerou isso uma ordem: “Eis o que quer meubispo e eu lhe obedeço”. Então ele preparou-se para a morte; colocou de lado o fuzil, le-vou consigo uma tesoura e um pequeno espelho, para cortar abarba, de modo que os Boxers não pudessem agarrá-lo e puxá-lo pela barba. No dia 14 de junho, de noite, eu não estava naigreja, porque o Padre me dissera de vir de manhã para servir amissa, mas que, à noite, voltasse e estivesse com minha família.Nessa noite, em torno da meia-noite, ouvi grandes gritos narua. Saí para ver e vi a igreja toda entregue às chamas. Não vimais do que isso, mas pagãos me disseram que o Padre Doréfora preso, que teve tempo para tocar o sino duas ou três vezes,o que eu ouvi distintamente, que depois ele fora morto na portada paróquia. Depois de morto, seu corpo foi atirado na igrejaem chamas… Seu empregado, Yang Jean, lhe havia proposto deconseguir-lhe uma carruagem para poder salvar-se em algumadelegação. Ao que ele lhe respondeu: “Isso jamais! Eu vou ficaraqui e que se faça a vontade de Deus!»

Etienne LouÉ um cristão de 64 anos. Confirma, quase em tudo, o teste-munho precedente. Ele recorda como o Padre Maurice Dorétinha ido a Pé-t’ang para refugiar-se e que o bispo lhe lembrouque deveria ficar com seus fiéis para animá-los e reconfortá-los, especialmente nesse momento tão difícil. A isso obedeceuimediatamente. É ainda esse testemunho que faz constarcomo os cristãos tinham feito compreender ao Padre quetoda resistência seria inútil. O Padre lhes havia respondidoque pensaria nisso e que eles pensassem na própria vida enão mais se preocupassem com ele. Essa testemunha diztambém que o Padre estava no campanário da igreja quandoo incêndio começou.

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Jean Yu HaiTestemunho do dia 29 de junho de 1914.Jean tem 48 anos quando dá seu testemunho. Antes, ele forasoldado da família imperial. Esta testemunha diz ter visto ocorpo queimado e enegrecido do Padre Maurice Doré, sobos escombros da igreja de Si-t’ang que fora incendiada. Atestemunha não pôde reconhecê-lo, mas os vizinhos lhe dis-seram que se tratava de um europeu.

Joseph Tsinn TsiennTestemunho do dia 29 de junho de 1914.Esta testemunha de 44 anos, era filho de um mandarim tár-taro. Ele recorda que a igreja de Si-t’ang tinha sido queimadano dia 14 de junho de 1900. Para o pai ele diz: “Eu vi ocorpo do Padre Doré, a parte anterior do busto, sob os es-combros de tijolos e tábuas do campanário desmoronado.Podia-se ver as pernas pretas por causa das queimaduras. Vitambém um mendigo pegar e comer da carne das pernas.”

Tchang Joui TcheEsta testemunha é um comerciante de 40 anos. Lembra-sedo Padre Doré como sendo um homem alto e pessoa de pie-dade. “Vi o corpo do Padre Doré que jazia sob os escombrosdo campanário desmoronado. Reconheci-o muito distinta-mente. Restava uma parte da barba e dos cabelos que não ti-nham queimado. Reconheci-o bem, porque o havia vistomuitas vezes.”

Jean YangEsta testemunha tem 35 anos. É cunhado de Paul Souen (oprimeiro desta série de testemunhas). Jean Yang era empre-gado do Padre Doré. Dizia que esse Padre se encolerizavafacilmente mas, para tudo quanto era referente a seu trabalhode sacerdote, era um homem zeloso. Quando era chamadopara uma extrema-unção ou para a confissão, atendia ime-diatamente, sem importar-se de suas refeições. Reparei queele tinha um defeito: antes de rezar a missa, tinha o hábitode fumar; mas ele dizia que tinha a autorização do bispo eque era devido à sua saúde… Em certo momento os cristãose o Padre tinham pensado em defender a igreja, mas depoiso Padre mudou de parecer e dizia: “Mesmo se matar alguns

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boxers, eu encontrarei a morte. É melhor abandonar-me àvontade de Deus.” Então guardou todas as suas armas e nãovaleu-se delas. A igreja de Si-t’ang foi incendiada dois diasdepois daquela de Tong-t’ang. Foi entre as sete e oito horasda tarde.

Dom A. Favier« Sexta-feira, 15 de junho, às 11h30, percebemos que a torrede Nossa Senhora das Sete Dores, de Si-t’ang, estava com ti-jolos escurecidos pelo fogo… Às 18h, soubemos que o Pe.Doré, cura de Si-t’ang, fora massacrado… Terça-feira, 19 dejunho, … um empregado de Si-t’ang, depois de andar errantepela cidade, por vários dias, terminou por encontrar-nos econtou que o Pe. Doré morreu queimado em seu quarto,com uns vinte cristãos. Ele não quis valer-se de suas armas.Alguns dias antes, esse bom padre me tinha dito:“Monsenhor, se eu for atacado, posso servir-me de meufuzil?”Eu lhe respondi: “Evidentemente; é permitido em caso de legítima defesa.”Ele acrescentou: “Mas se fosse para defender apenas a mim, não seria maisperfeito não servir-me dele?”Eu lhe disse, então: “Certamente, morrer por causa do bom Deus, sem defender-se, é o verdadeiro martírio.”

Diário de Dom A. Favier, arcebispo de Pequim, citado em ‘Annales de la C.M.’ 1901, pp. 86-88.

10.3 - Rev. Padre Pascal Raphaël D’AddosioPÁROCO DA PARÓQUIADE NAN-T’ANG

El Rev. Padre Pascal Raphaël D’Addo-sio había nacido en Otranto (Italia).Tenía 68 años en el momento de loshechos que se narran. Era párroco dela parroquia de Nan-t’ang.

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Testigos

Tchou Anna Testimonio del 3 de febrero de 1914. La testigo tiene 64 añoscuando testifica ante el tribunal. Atestigua sobre lo que ha oído. «El Padre D’Addosio iba montado en un asno, y dos cristianoslo acompañaban en el camino. Cuando los soldados lo vieron,dispararon sobre él. Los dos cristianos emprendieron la fuga yel asno, espantado por las deflagraciones, tiró al Padre por tie-rra. De una tienda próxima, donde se vendía harina, salieronvarios paganos que se pusieron a golpear al Padre a bastonazos.Un soldado lo atravesó con su bayoneta, mientras él implorabapiedad diciendo: “Soy una buena persona”. Y les ofrecía sureloj diciendo: “Este reloj es verdaderamente de oro!” Seduci-dos por la esperanza de recibir una recompensa (habían pro-metido 50 taelia), le ataron manos y pies y lo condujeron al pa-lacio Techouang-Wang-Fou, (parte norte de la ciudad imperial).Después nos hemos quedado sin saber más de él.»

Tommaso Tchao Testimonio del 8 de febrero de 1914. Este testigo tiene 40 años. «Vio el cuerpo del Padre arrastrado por los pies. Primeramentevio las botas, después notó que el rostro estaba vuelto haciatierra, se reconocía su barba blanca. Estaba vivo todavía. Ibavestido con ropas largas (¿la sotana?). Lo llevaron al palacio.¡Yo lo he visto entrar en silencio!»

Louis CheTestimonio del 8 de febrero de 1914. Este testigo es un arte-sano de 43 años. «Vio al Padre cuando lo llevaban al palacioTchouang-Wang-Fou. Una vez entrado en palacio, preguntó alos soldados dónde había sido abandonado el cuerpo del Padre.Le dijeron: “En el jardín, en medio de hierbas altas”. Pero noencontró el cuerpo; en cambio halló el pañuelo del Padre. Esposible que el cuerpo hubiera sido arrojado a un pozo.»

Ly AnnaEl testimonio es del 4 de marzo de 1914. El testigo tiene 24 años. «Conoció al Padre D’Addosio. Era muy bueno con los alum-nos. En los sermones daba la impresión de ser terrible. Eltestigo dice que se había confesado con él y le habló de pre-

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pararse para el martirio. Oyó decir que el Padre D’Addosiohabría sido matado en el camino.»

Tchao JosephTestimonio del 8 de marzo de 1914. Este testigo tiene 21años. Recuerda el hecho siguiente: «Al comienzo de la Misa,en el momento del asperges me, el Padre vio a una mujercon una flor en el pelo. Eso estaba prohibido para las mujerescristianas. Se la arrancó y en la iglesia, ante todo el mundo,quemó la flor.»

Ma MarieTestimonio del 10 de diciembre de 1914. Esta testigo tiene52 años. Jamás oyó hablar mal del Padre D’Addosio. Era ca-ritativo con todos. Cuando predicaba lo hacía con voz fuerte.

Ma ThomasTestimonio del 10 de diciembre de 1914. Este testigo es her-mano de la anterior. Tiene 54 años y trabajaba en el ministeriode Astronomía. Reconoce al Padre D’Addosio como un hom-bre justo. No queríaque los cristianos setomasen la molestiade hacerle regalos. Lesdecía: “¡Id en paz!. Nonecesito nada.” Teníael defecto de ser im-pulsivo. Si veía unapobre mujer cristianaque había empeñadosu ropa, le pagaba elprecio para que pu-diera celebrar digna-mente las fiestas dePascua. Muchos cris-tianos son intérpretesy han sido formadospor el Padre D’Addo-sio. Ponía mucho cui-dado en formar a susvicarios.

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11.Os mártires dos Irmãos Maristas

Quando consideramos os nossos Irmãos mártires da revolu-ção dos Boxers, cumpre não esquecer que eles se encontramno vultoso conjunto de quase novecentos outros, todos leigos:camponeses, operários, modestos comerciantes, homens,mulheres e muitas crianças. Longe de querer separá-los por

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uma intenção especial, deixamo-los no grande número dosmártires da tormenta chinesa de 1900, testemunhas todasdignas da nossa admiração. Cronologicamente relatemos os eventos dos nossos mártires.O Irmão José Maria Adon, chinês, e o postulante Paulo Jenforam mortos em Cha-La-Eul, em 17 de junho de 1900, nosprimeiros dias da revolta. O Irmão José Felicidade, que faziaparte do grupo dos seis primeiros Irmãos enviados à Chinaem 1891, foi morto em 18 de julho de 1900, em Jen-Tse-Tang, por ocasião da explosão de uma mina. O último foi oIrmão Júlio André, visitador, morto em 12 de agosto de 1900,enquanto tentava retirar uma mulher dos escombros que acobriam depois da explosão de uma mina.

11.1 - Ir. Júlio André

O Irmão Júlio André, no civil Ma-rie-Auguste Brun, nasceu em 17de julho de 1863, em Saint-Vin-cent- de Reins, Departamento doRhône, de família verdadeira-mente cristã. Um Irmão diretor,que o conheceu como aluno,disse ter notado nele juízo reto,caráter sério e firme, inteligênciaacima da média, amor do estudo;enfim, procedimento que o tor-nava digno de ser proposto comomodelo dos seus colegas.Com treze anos, pensou em ingressar no Instituto dos IrmãosMaristas, com a vontade de ser Irmão missionário. A mãeconcordou logo, mas o pai hesitava, porque tinha apenasum rapaz e uma jovem. Augusto entrou no noviciado deSaint-Genis-Laval em 3 de abril de 1877; ainda não tinhacatorze anos. Depois do noviciado foi enviado a diversos lu-gares: Sainte-Foy-l’Argentière, Saint-Symphorien-sur Coise eSaint-Chef.Em abril de 1883, ele foi chamado à Casa Mãe de Saint-Ge-nis-Laval, onde passou mais de dez anos, seja nos estudos,seja no ensino do noviciado e do escolasticado. Em toda a

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parte, mostrou-se religioso exemplar. Depois de dezesseis anos de trabalho apostólico na França,o Irmão Júlio André, com um grupo de Irmãos, foi designadopara ser enviado à China, onde, dezoito meses antes, haviamchegado os primeiros Irmãos. Eis como ele respondeu à con-vocação do Irmão Superior Geral: “Desconfiando das minhasforças, não lhe havia pedido de partir para as missões; masserei feliz, muito feliz, se o bom Deus me escolher para sol-dado dele na vanguarda, para apóstolo seu, como, aliás, eulhe venho pedindo há muito tempo. Antes de tudo, desejofazer a vontade de Deus. Se, pois, o senhor decide que mequer na China, irei à China, persuadido de que a graça deDeus e a proteção da Santíssima Virgem me ajudarão”.Depois da recepção da obediência, que continha a sua no-meação definitiva, ele escreveu: “Agradeço-lhe e rendo graçasao Sagrado Coração. Eu não ousava esperar o favor que meé concedido de ser missionário de Jesus. Muito almejaria serbom missionário, missionário dedicado, zeloso, fervoroso,santo”. Depois de ter passado em Londres alguns mesespara aperfeiçoar-se no estudo do inglês, o Irmão Júlio Andrépartiu para a China em julho de 1893. Desde a sua chegada,ele foi professor no colégio de Shanghai. Em 27 de setembroseguinte, ele podia escrever: “Estou muito contente aqui naChina e agradeço isso ao bom Deus todos os dias”. Todas ascartas que ele escreveu na França estão repletas de gratidãopara com Deus e para com a Virgem Maria. Humilde e modesto, o Irmão Júlio André teria querido passarignorado, desconhecido nalguma sala de aula, dedicando-se e sacrificando-se sob o olhar de Deus. Mas a Providênciaquis diferentemente. O Irmão Elias Francisco, Visitador doDistrito, faleceu em 7 de maio de 1896. Então o Irmão JúlioAndré foi nomeado Visitador. Escreveu ele: “Temo a respon-sabilidade de que me incumbem; não me cabe dizer: euaceito ou não aceito, porque seria de timbre pouco religioso.Mandam-me ir e eu irei e farei o meu possível. Espero que aBoa Mãe me estenderá o seguro da sua mão”. Ele se pôs re-solutamente à obra e se mostrou em tudo e por tudo à altura.Nas suas relações com as autoridades, com os Irmãos, comtoda a sorte de pessoas, deu provas cabais de prudência, detato, de previsão. Homem de ação e de iniciativa, não se li-mitou a empregar os seus talentos de administrador e de or-

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ganizador nas obras atualmente existentes, mas ainda pensouno futuro; ele formava projetos para a multiplicação das es-colas cristãs na China, para a extensão do Reino de JesusCristo neste vasto império.Infelizmente, ele não deveria ver a realização das suas espe-ranças, Preso na tormenta da revolução dos Boxers, foi mortoem 12 de agosto de 1900, enquanto tentava retirar uma se-nhora soterrada nos escombros causados pela explosão demina. Eis como o Irmão que sucedeu ao Irmão Visitador na redaçãodo jornal do sítio, narra o evento em que o Irmão Júlio Andréperdeu a vida. “A noite de 11 para 12 de agosto tinha sidode relativa calma. Na missa das 5h30 comungamos com onosso caro Visitador. Depois assistimos à segunda missa emação de graças . De repente, no momento da elevação, for-

midável explosão abala o soloe tudo desmorona ao nosso re-dor. Todos os assistentes se pre-cipitam para as portas, em so-corro das vítimas, cujos gritoslancinantes se misturavam à fu-zilaria dos revoltosos. A minaque acabava de explodir abriucratera de sete metros de pro-fundidade e quatro metros dediâmetro. Ela destruiu várias ca-sas e enterrou nas ruínas oitentapessoas: crianças, catecúmenose soldados italianos. O IrmãoJúlio André, comovido de com-

paixão e consultando apenas a sua caridade e coragem,avançava, rastejando para evitar as balas. Quis socorrer umasenhora soterrada nos escombros; mas, no momento em quese ergueu, uma bala o atingiu na peito e saiu pela axila es-querda, depois de ter perfurado os pulmões e talvez tambémo coração. Ouve-se que ele começa o ato de contrição emvoz alta; mas, depois de cinco ou seis palavras, a sua voz seextingue. De pressa foi transportado à capela donde acabavade sair. Chega um sacerdote, mas infelizmente foi para veri-ficar que ele estava morto, mártir da caridade e da dedica-ção”.

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Assim caiu aos 37 anos este valente operário da vinha doSenhor. Os seus Irmãos o amaram, o louvaram e o choraram.Ele mereceu o belo elogio do excelentíssimo Favier, bispode Pequim: ‘Foi homem de grande valor, que mostrou, emtodo o tempo do cerco, inteligência, dedicação e coragemsem par’. Muitas cartas dos Irmãos da China dizem como ele eraamado. Destaque-se a passagem de um deles. ‘Asseguro-lheque perdi, no nosso caro Irmão Visitador, um pai, o melhordos pais. Foi sempre tão bom comigo que não saberia es-quecer-me dele. A sua bondade e solicitude por mim, comopelos demais Irmãos, em caso de doença, eram admiráveis eo levavam a nada poupar para nos dar alívio. Há dezoitomeses, quando eu estava em Nan-Tang, caí doente, depoisde um passeio. O caro Irmão Visitador o soube às seis horasda tarde. Não conseguiu visitar-me naquele dia, porqueestava em Cha-La-Eul; mas, no dia seguinte, às sete horas,visitou-me, deslocando-se a pé. Ele queria trazer-me um re-médio contra o tifo. Depois ele me levou a Cha-La-Eul. Elequeria poder cuidar de mim, no caso de a doença piorar’.

11.2 - Ir. José Felicidade

O Irmão José Felicidade foimorto em 18 de julho de 1900.O seu nome civil era JosephPlanche. Nasceu em Etable, naSabóia, em 4 de fevereiro de1872. Era de família numerosa:sete filhos e três filhas. O pai eracarpinteiro, homem muito esti-mado; durante muito tempo foiconselheiro municipal. A mãedele, Francisca Graffion, nos cui-dados e na educação dos filhos,demonstrou ser mulher forte e profundamente cristã. Naidade de treze anos, José ingressou no juvenato de Saint-Genis-Laval, então dirigido pelo Irmão Cândido Maria que,mais tarde, em 1891, foi o primeiro Visitador do Distrito daChina. O Irmão José Felicidade e o Irmão Cândido Maria fi-

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zeram parte da primeira leva de Irmãos Maristas enviados àChina. Aos dezesseis anos, ele terminou o noviciado e foi enviadoa Grandris, seu primeiro posto, onde se desempenhou detrabalho manual. A segunda nomeação foi para Nantua, emque iniciou o seu ofício de professor. O Irmão Diretor destaescola escreveu dele: “O Irmão José Felicidade mostra ad-miravelmente este espírito de zelo e devotamento que deviacaracterizá-lo depois. Dedicado por inteiro ao seu emprego,não recua diante de nenhuma dificuldade, quando se tratado progresso e da piedade dos seus alunos. Persuadido deque nada é mais eficaz que o bom exemplo, esforça-se emser modelo para eles em tudo”.Em 8 de maio de 1891, os primeiros seis Irmãos Maristas,entre eles o Irmão Cândido Maria e o Irmão José Felicidade,embarcaram em Marseille com destino à China. Na sua che-gada a Pequim, os Irmãos foram encarregados da escola deNan-Tang. Em 1893, com a chegada de outros Irmãos, os Ir-mãos Cândido Maria e José Felicidade foram destacadospara Nan-Tang, para tomar, com outros Irmãos, a direçãode um orfanato estabelecido em Cha-La-Eul, na periferia.No orfanato havia 125 órfãos, entre sete e vinte e cincoanos, demandando os cuidados de uma infância abando-nada. A casa era receptáculo de misérias físicas e morais. Destaque-se o testemunho do Irmão Cândido Maria, Visita-dor e primeiro diretor do orfanato. “Em 31 de maio de 1893. Em três semanas, estaremos emCha-La-Eul. Temo que na hora do vencimento das obriga-ções, eu continue como devedor sem recursos. Caio no la-mento de ter tido a presunção de assumir o posto. Não es-taria ele acima das minhas forças? Temo que sim. Meu Deus, que fazer deste montão de abandonados, cristãose pagãos? As moléstias os atingem todos: micose, sarna, es-crófula, raquitismo. É a quintessência das misérias da pobrehumanidade. Como conseguir limpá-los, escová-los, asseá-los no físico e no moral? É tarefa muito bela e capaz de sa-tisfazer o zelo mais ardoroso. Vamos ter muita necessidadeda proteção de Jesus, de Maria e da assistência dos santosanjos.”Em 14 de fevereiro de 1894. “Há três dias, uma caridosa cristã me apresentou uma

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criança de onze anos,que perambulava pelasruas, em temperaturamuita fria. Nesta ma-nhã, ausentes os Ir-mãos, que saíram apasseio com aquelesde Nan-Tang, eu quisassegurar-me do es-tado geral de um órfãodo Providência. Nadadirei do seu moral;pode você ter umaidéia: pagão, abando-nado, entregue seja a

comediantes, seja a um mestre qualquer, e isto desde osseis anos. Encontrei-o coberto de chagas, devorado pelaverminose. O meu coração, em face do triste espetáculo,comoveu-se; apresentei-o a Nosso Senhor; apelei à minhafé. De repente, vi nesta miserável criatura o meu doce Sal-vador Jesus. Então, com que felicidade, com que consolação,o livrei dos seus trapos, lavei-o dos pés à cabeça. Preciseide algum tempo para livrá-lo de muitas sevandijas. Agoraele está limpo, vestido de roupa suficiente. No bem-estarque ele experimenta parece que leio no fundo do seu olhar,não vou dizer o reconhecimento, mas o despertar da inteli-gência.” (Os Primeiros Irmãos, companheiros maravilhosos de Mar-celino, p. 281-282).Há testemunhos semelhantes e numerosos nas cartas do Ir-mão José Felicidade, que sucedeu como diretor de Cha-La-Eul ao Irmão Cândido Maria, quando este morreu de tifo em1895. Ele havia cuidado dos seus quatro Irmãos doentes detifo. Todos se curaram, mas ele ficou doente da enfermidadee a ela sucumbiu. Todos os jovens Irmãos da comunidade le-ram este gesto como o sacrifício do pai para que os filhos ti-vessem vida. Quando o Irmão José Felicidade se achavaainda em Nan-Tang, sonhava em imitar o Irmão Lourenço,em acompanhar os padres que vinham às vilas próximas dePequim e, assim, ensinar o catecismo às crianças. Formulou,neste sentido, pedido expresso ao Irmão Assistente.

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Ainda jovem, com 28 anos, o Irmão José Felicidade podiaesperar, por dilatados anos, a graça de fazer o bem na China,quando a revolta irrompeu em 1900, terrível perseguiçãoque fez tantas vítimas. Enquanto lhe foi possível, ele prodi-galizou os seus cuidados aos meninos de que estava encar-regado. Quando viu o orfanato ameaçado e o perigo imi-nente, ele tomou as disposições que lhe foram indicadaspor Favier, bispo de Pequim, a fim de pô-los em segurançatanto quanto possível. Devolveu uns quarenta aos pais ou acristãos que cuidariam deles; mas onde encontrar refúgioseguro para os 120 restantes? A missão não podia recebê-los. Teve-se de entregá-los à Providência, sob a guarda dedois Irmãos chineses: José Maria Adon e Paulo Jen, postu-lante. Foi com grande aperto de coração que se separou de-les, em 12 de junho para se refugiar em Pe-Tang, segundo aordem recebida.Em 20 de junho, a novidade chegou a Pe-Tang: o estabele-cimento de Cha-La havia sido queimado em 17 de junho.O Irmão José Felicidade escreveu: “Pobres crianças, depois de ter escapado dos Boxers emNan-Tang (estabelecimento onde os órfãos se haviam refu-giado antes), de novo estão expostos à crueldade desses ban-didos. Para onde fugir? Impossível ir a Pequim, já que os Bo-xers guardam todas as portas. Na região rural já não hácristãos e, em todos os caminhos, os Boxers são numerosos.Então é o gládio ou a fome que nos espera. Meu Deus, comosofro, ao saber que as crianças estão em tal angústia”.A partir de 21 de junho, o Irmão José felicidade interrompeua sua relação, impedido, sem dúvida, pelos trabalhos deque estava encarregado em Pe-Tang. O Irmão Júlio André aterminou no seu lugar. “O bravo Irmão José Felicidade, tão ávido de verter o seusangue com os seus meninos por amor a Deus, viu os seusvotos atendidos em 18 de julho de 1900, às cinco horas datarde. Ele supervisionava os cuidados de uma contramina,quando o inimigo, que percebeu os nossos trabalhos, seapressou a fazer os seus. Às cinco horas, uma explosão es-pantosa se produziu. O Irmão José Felicidade foi projetado auma distância de quinze metros. De cabeça para baixo, elecaiu num fosso, onde foi coberto de destroços e terra. Ocorpo só foi encontrado meia hora depois. Não tinha apenas

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escoriações no exterior, mas estava morto. Depois de limpo,notou-se no rosto o ar de bondade, o doce sorriso que lhehavia conquistado os corações”.Outro Irmão escreveu:“Era um santo religioso. Como o Irmão Visitador, ele visavaà perfeição. Sem escutar a natureza, ele se doava por inteiroà glória de Deus e ao bem de todos, fazendo tudo com ale-gria, levando à prática do bem os seus Irmãos pelos bonsexemplos. A muitas misérias ele levou assistência neste or-fanato, repleto do desgracioso da natureza: cegos, surdos-mudos, por exemplo. Esses pobres abandonados recebiamdo bom Irmão não apenas cuidados corporais os mais de-votados, mas ainda o testemunho de terna afeição e o maispaternal encorajamento para o bem”.

11.3- Ir. José MariaAdon (Joseph Fan)

José Fan nasceu em Pequim em1874, de família originária deChan-Si, estabelecida em Pe-quim desde quatro gerações,distinguida pela sua fé e pie-dade. Nos distúrbios de 1860,membros desta família escon-deram em casa o único sacer-dote que havia sobrado em Pe-quim e cuja cabeça fora postaa prêmio. O pai dele, relojoeiro,era muito estimado na paróquia de Nan-Tang. A mãe era fer-vorosa cristã, pôs todo o seu cuidado em bem educar os fi-lhos. Os dois mais velhos se estabeleceram em Pequim: umnos Correios e o outro na Legação da Grã-Bretanha. O ter-ceiro estava no seminário maior de Pequim. José, o quarto,foi batizado alguns dias depois de nascido e teve por padrinhoAugusto Ly, catequista da paróquia de Nan-Tang e irmão deLy-Kin-Tang, embaixador da China em Paris. O piedoso ezeloso catequista precedeu no céu, por dois ou três dias, oseu afilhado. Foi chacinado no jardim do presbitério de Nan-Tang, ao pé da estátua de Nossa Senhora de Lourdes, em 14

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de junho de 1900, dia do incêndio da igreja e dos estabele-cimentos de Nan-Tang.O pequeno José se fez notar pela sua retidão, doçura e sim-plicidade. Desde os oito anos, foi enviado à escola de Nan-Tang. O seu professor Xavier Chao, da família imperial, seapegou aos Irmãos Maristas desde a chegada a Pequim, emmaio de 1891; não se separou deles senão por causa doseventos de 1900. Nesse tempo, ele também logrou a palmado martírio na paróquia de Si-Tang. José Fan tinha dezesseteanos, quando, em 1891, seis Irmãos Maristas chegaram aPequim e tomaram a direção do colégio de Nan-Tang, ondeele era aluno. Não demorou em atrair a atenção deles pelasua piedade e pelo bom procedimento, o que fez com que oIrmão Cândido Maria falasse dele assim: “É jovem excelente,natureza delicada e sensível, ele é piedoso e inteligente. In-terno no nosso colégio de Nan-Tang, ele fala bem o francês.A sua família é das mais cristãs; a mãe, viúva há quinzeanos, educou bem os filhos”. Foi em 15 de agosto de 1893, na época em que os Irmãostomaram a direção do orfanato de Cha-La-Eul, que José foirecebido aí como postulante. A casa de Cha-La-Eul estavalonge de oferecer o conforto e o bem-estar que a naturezabrinda de ordinário. O piedoso jovem partilhou com três ouquatro outros postulantes, generosa e alegremente, a vidapobre e operosa dos Irmãos e dos seus órfãos. Estava ele nosegundo ano de noviciado, quando, na primavera de 1895,o tifo levou a desolação à casa, fazendo nela diversas vítimas,entre elas o Irmão Cândido Maria, diretor e mestre dos novi-ços. José Fan também foi atingido pelo flagelo e sofreu porquinze dias. Em 14 de agosto de 1895, José Fan, com três outros postu-lantes, teve a felicidade de receber o santo hábito religiosodas mãos de Sua Excelência Sarthou, com o nome de JoséMaria Adon. Depois de algum tempo passado nos estudos,ele foi encarregado de uma aula do orfanato e da sacristia.Ele era feliz de poder ensinar o catecismo, que preparavacom grande cuidado e sabia torná-lo interessante e verda-deiramente proveitoso. Os seus relacionamentos com os con-frades eram sempre impregnados de caridade, afabilidade eobsequiosas antecipações; em toda a ocasião, punha a suafelicidade em prestar serviços e dar descontração.

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Na primavera de 1900,foi encarregado do en-sino de francês no or-fanato de Cha-La-Eul.Durante cinco anos devida religiosa, o IrmãoJosé Maria Adon cor-respondeu às esperan-ças que havia dadocomo aluno em Nan-

Tang, como postulante e como noviço. Mostrou-se semprecheio de estima pela sua vocação, apego ao Instituto comoà sua família e distinguiu-se pelo espírito filial para com ossuperiores.Estava-se em maio de 1900. Havia já vários meses que a tor-menta bramia e que ia fazer correr ondas de sangue cristão.Cha-La-Eul, pela sua situação fora dos muros de Pequim, tinhatudo para temer a invasão noturna dos bandos que espalhavamo terror nos arredores. Pelo fim de maio, os rumores que cir-culavam iam ficando cada vez mais inquietantes. Os Irmãosjulgaram prudente velar todas as noites, para prevenir o perigodo fogo. Perguntado o Irmão José Maria Adon sobre o quefaria à vista dos Boxers armados de grandes facões, respondeucomo se estivesse determinado ao sacrifício da sua vida: “Nãofugirei; ficarei com os meus alunos, muitos dos quais sãomuito novos e vou impedi-los de apostatarem”.Quando o perigo ficou real para o orfanato de Cha-La-Eul,os Irmãos do estabelecimento e os meninos que nele se en-contravam, por ordem do bispo Favier se transferiram a Nan-Tang, bairro de Pequim, onde havia outro orfanato, um hos-pital, escolas, residências e uma igreja pertencente à missão.O Irmão José Maria Adon teve o cuidado levar para lá os va-sos sagrados, de juntá-los àqueles da igreja de Nan-Tang ede esconder outros na terra, para subtraí-los à profanação.Esperava-se que Nan-Tang poderia ser defendida pelos sol-dados europeus. Uma esquadra foi enviada aí, mas de todoinsuficiente para resistir a um ataque; assim, ela tambémteve de abandonar o posto. Desse modo, vários Irmãos e120 órfãos ficavam expostos à crueldade dos Boxers. Ade-mais, havia aí seis Padres Lazaristas, dez Irmãs de São Vicentede Paulo, vinte Irmãs Josefinas chinesas e muitos doentes e

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outras pessoas. Em 13 de junho, de noite, doze homens ou-sados foram a Nan-Tang em busca dos padres e das religiosaspara recolhê-los às Legações. Esses doze corajosos disseramao Irmão Crescente Maria que tinham a ordem de tambémlevá-lo. Ele pediu que o deixassem ficar com os Irmãos chi-neses (Irmãos José-Maria Adon e Cândido Maria) e com osórfãos, para partilhar a sua sorte. O Irmão José Maria, porém,lhe suplicava que partisse, “porque, ponderava, se você fica,não poderá escapar da morte, ao passo que nós, chineses,temos alguma chance de ser poupados ou escapulir. Parta,meu Irmão, eu lhe peço. Se ficar vai causar-me muita tristeza.Salve-se agora, de noite. Vindo o dia, será demasiado tarde.Adeus, reze por nós”. Então os Irmãos se deram o beijo do

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adeus. Foi com este ato de generosidade e desprendimentode si que o nosso caro confrade José Maria Adon começavao seu dia.Pelas cinco horas da manhã, o exército dos Boxers, acompa-nhado de multidão fanática, ávida de pilhagem e de sangue,invadiu o bairro de Nan-Tang, com gritos selvagens de Chao,Chao: matem, queimem. Tudo foi entregue ao saque e àschamas: hospital, convento das Irmãs, escola dos Irmãos,presbitério e igreja. Numerosos cristãos foram chacinadosnestes diversos estabelecimentos. Com o perigo iminente, oIrmão José Maria Adon e os seus órfãos refugiaram-se no ter-raço da sacristia. Daí Adon considerava o triste e pungenteespetáculo que tinha sob o olhar: estátuas e imagens religiosassujadas e profanadas, candelabro, cruz, altar, ornamentossacerdotais, tudo arrastado pela rua; para cúmulo, o incêndiodos estabelecimentos e da igreja.O Irmão José Maria Adon e os seus pequenos protegidos, queestavam no terraço, desde as nove horas, esperavam a morte.Pelas três da tarde, já não podendo suportar o ardor do fogoque os circundava, desceram desse lugar de refúgio. Diversosmeninos que haviam fugido foram chacinados não longe daigreja em chamas. O Irmão José Maria Adon atravessou a mul-tidão fanática sem que alguém lhe pusesse a mão. Então foi aPe-Tang, mas encontrou a porta guardada por soldados. Deci-diu voltar a Cha-La-Eul. Ao sair da cidade, diversos meninosque o acompanhavam são detidos e mortos. Chegado a Cha-La-Eul, ele escreveu ao Irmão Júlio André duas cartas, que fo-ram conservadas. Refugiado em Pe-Tang, quis informá-lo doextremo perigo em que se encontrava.

76 • Mártires da China 1900

15 de junho

Caríssimo Irmão Visitador

Ontem fomos muito maltratados. Ficamos no

terraço da sacristia, em Nan-Tang, durante cinco

ou seis horas. Eu me salvei do meio do fogo.

Não narro detalhes, mas peço que venha so-

correr-nos. Você pode falar ao Bispo Favier, para

achar um meio de nos levar a Pe-Tang hoje. Há

comigo uns quinze meninos. A mão me treme

no escrever...

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A segunda carta é como confirmação do que afirmou na pri-meira. Por certo não faltava boa vontade para socorrer oIrmão e os meninos. Infelizmente, não se encontrou nenhummeio. Também o orfanato de Cha-La-Eul sofreu a mesmasorte dos estabelecimentos de Nan-Tang: pilhagem, incêndioe chacina. Aí o Irmão José Maria Adon encontrou a morte,na companhia do postulante Paulo Jen, em 17 de junho de1900.

11.4 - O postulantePaulo Jen

Paulo Jen era postulante por oca-sião dos eventos. Como se dissepouco antes, foi morto em 17 dejunho de 1900. Não sabemos emque parte da China nasceu, nemem que ano, nem o nome dospais. Sabemos dele apenas o quenos narrou o Irmão José Felici-dade, diretor de Cha-La-Eul e en-carregado de seguir-lhe os pas-sos, isto é, o que consta nas trêscartas que se conservaram.

Carta de 14 de novembro de 1898 “O postulante Paulo Jen dá boa impressão. Poderia prestaralguns serviços em Cha-La, como cozinheiro ou como vigi-lante”.

Carta de 4 de maio de 1899 “O postulante Paulo Jen é o relojoeiro de que lhe falei. Ele émuito dócil e parece disposto a tornar-se bom Irmão. A suainteligência não é muito desenvolvida; mas parece-me dotadode juízo reto. Tem boa vontade, mostra disposições para otrabalho manual e desempenha-se bem dos diferentes ofíciosde que o encarregam. Atualmente está aprendendo a ser co-zinheiro com o Irmão Crescente e com ele se entende muitobem. Eu lhe dou cinco instruções por semana”.

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Carta de 3 de setembro de 1899 “O postulante Paulo Jen impressiona sempre bem. Acaba desofrer uma provação, toda em favor dele. Há algum tempo,o irmão dele veio pedi-lo e quis absolutamente levá-lo, sobpretexto de negócios da família, em que seria necessária apresença de todos os seus membros. Nas circunstâncias, o

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caro Irmão Visitador lhe permitiu que se ausentasse por al-gumas semanas. Na família, percebeu que o irmão maisvelho lhe havia estendido uma armadilha: queria levá-lo acasar-se e, assim, impedi-lo de abraçar a vida religiosa. Gra-ças a Deus, o nosso postulante triunfou dessa perigosa prova.Retornou com vontade mais forte de se fazer religioso.Quanto à instrução, dou-lhe uma hora de aula por dia, queconsiste em explicar-lhe os nossos princípios de perfeição.No atinente ao emprego do seu dia, ele é cozinheiro, com aajuda de um menino. Nos seus momentos livres, ele estudano livro a aplicação da doutrina cristã, prepara o assunto dasua meditação, isto é, aprende a ler chinês no seu livro demeditação; faz alguma leitura no livro a perfeição religiosade Rodríguez, em chinês e, quando pode, assiste à aula defrancês com os meninos”.Paulo Jen era piedoso, trabalhador, obediente, caridoso, de-dicado e, pelas suas boas qualidades e bom procedimento,dava esperança de que poderia prestar bons serviços à Mis-são. Tinha cerca de vinte e seis anos e se preparava paravestir o habito religioso em breve. Em face do perigo iminentedos Boxers, ele teria podido fugir. Mas a possibilidade nãolhe veio sequer ao espírito. Como o Irmão José Maria Adon,ele quis ficar fiel ao posto, para encorajar os mais jovens elhes dar o exemplo da fidelidade a Jesus Cristo.Qual foi o lugar do seu martírio? Nan-Tang? Cha-La-Eul?Ninguém conseguiu saber. Em que data? Deve ter sido entre15 e 18 de junho.Os Irmãos Júlio André, José Felicidade, José Maria Adon ePaulo Jen são quatro gloriosos mártires que serão para o Ins-tituto dos Pequenos Irmãos de Maria, e para os seus benfei-tores, poderosos intercessores junto de Deus. A proteçãodeles muito será útil também aos nossos Irmãos da China,sob a destruição das suas obras e que a perseguição de 1900reduziu a um grande desprendimento.

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Mártires da China 1900

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ÍNDICE

1 - O documento reencontrado ...................................... p. 5

2 - As testemunhas.............................................................. p. 6

3 - Os mártires ..................................................................... p. 8

4 - Contexto histórico e social......................................... p. 12

4.1 - A China ................................................................ p. 12

4.2 - Os Boxers ............................................................ p. 13

4.3 - Os cristãos chineses ......................................... p. 15

4.4 - A Igreja de Pequim ........................................... p. 17

5 - Os mártires das paróquias de Pequim .................... p. 19

5.1 - A paróquia de Si-t’ang ..................................... p. 19

5.2 - A paróquia de Nan-t’ang ................................ p. 21

5.3 - A paróquia de Tong-t’ang................................ p. 25

6 - Os Mártires de aldeias ao redor de Pequim .......... p. 29

6.1 - Aldeias de Koan-t’eu, Ts’ai-Hu-Yng e Wa-Ts’iuen-Sze .................... p. 29

6.2 - Aldeia de Yen-Tze-K’eou................................. p. 30

6.3 - Aldeias de Tcheng-Fou-Sze, Heou-t’ouen,Si-Siao-K’eo e Eul-pouo-Tze .......................... p. 35

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7 - A irmã Filomena Tchang .......................................... p. 39

8 - A Família Yun ...............................................................p. 45

9 - A hecatombe dos pequenos.....................................p. 49

10 - Os Missionários Lazaristas........................................p. 53

10.1- R.P. Julio Garrigues...........................................p. 53

10.2- R.P. Maurice Charles Pascual Doré..............p. 58

10.3- R.P. Pascal Raphaël D’Addosio .....................p. 61

11 - Os Irmãos Maristas .....................................................p. 64

11.1- Irmão Julio André..............................................p. 65

11.2- Irmão José Felicidade.......................................p. 68

11.3- Irmão José Maria Adon....................................p. 72

11.4- O requerente Pablo Jen ...................................p. 77

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1.O documento reencontrado

Havia muitos anos que perdêramos todo e qualquer traço daCópia Pública do processo diocesano acerca dos nossos már-tires da China de 1900, isto é, os cristãos mortos pelos Boxers.Pesquisando nos Arquivos do Vaticano, o postulador geral dosLazaristas Pe. Giuseppe Guerra encontrou o Transunto, isto é,a cópia integral dos atos do tribunal diocesano de Pequim en-viado à Congregação dos Ritos que, naqueles anos, se ocupavatambém da causa dos santos. O Transunto e a Cópia Pública são dois documentos idênticos.O primeiro é enviado ao Vaticano, o segundo ao ator, isto é, àcongregação religiosa que se encarrega da causa, no nossocaso os Lazaristas.Os Arquivos do Vaticano fizeram fotos do Transunto: 1500 pá-ginas e as consignaram ao Pe. Giuseppe Guerra. Ele teve agentileza de entregar-nos um DVD, de sorte que tivéssemos aposse dos atos do Processo Diocesano de Pequim.O pedido a Roma para abrir o processo foi feito em 1905 pelobispo de Pequim. A abertura oficial do processo se realizouem Pequim, em primeiro de janeiro de 1914; em 28 de maiode 1936 o Transunto e a Cópia Pública estavam prontos eforam enviados a Roma. O tribunal diocesano, pois, ficouaberto por 23 anos. O documento se apresenta como um conjunto de 1500 pági-nas manuscritas em latim. Trata-se essencialmente da transcri-

ção dos depoimentos das teste-munhas chamadas ao tribunal.

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2.As testemunhas

A grande maioria das testemunhas são pessoas que presen-ciaram os fatos.

1 - São parentes próximos dos mártires que escaparam damorte: pais, mães, maridos, mulheres, filhos, filhas, pri-mos, vizinhos. Por exemplo, na paróquia de Tong-Tang emPequim, Tomás Yen-Sung-Chan, comerciante de 62 anos,vem depor sobre 35 pessoas, que foram clientes seus.Antes de tudo, porém, ele testemunha sobre os membrosda sua família: a mulher, os filhos, a irmã e os filhos dela,o sogro e cunhada deste. Tomás também deveria ter mor-rido na casa em chamas; mas, envolto em cobertura, lo-grou fugir.

2 - Algumas testemunhas são particulares, no sentido de quefazem parte da família exterminada; mas foram poupadas,porque eram pagãs. Essas pessoas tentaram muitas vezesconvencer os próximos a oferecerem incenso aos ídolos,habitualmente sem resultado. Depois da perseguição, elasse tornaram testemunhas preciosas do martírio dos mem-bros das suas famílias.

3 - Um grupo de cristãos, em face da ameaça de extermina-ção de toda a família, apostataram; mas assistiram ao mar-tírio dos cristãos fiéis. É o caso de Teresa Yu. Elareconheceu ter renegado a fé; aceitou a penitência im-posta pela Igreja para o seu retorno à fé. Ela viu morreravô, pai, mãe, irmã; o último dos irmãos foi consideradodesaparecido. Depois da tormenta, esses cristãos, que re-nunciaram à fé, retornaram à Igreja e se tornaram as me-lhores testemunhas.

4 - Outras testemunhas são pagãs, vizinhos que, eventual-mente, esconderam os cristãos nas suas casas, ou são pa-gãos, convertidos posteriormente à fé cristã. Há tambémmuçulmanos, budistas e pessoas que se dizem sem reli-gião. Há, enfim, aqueles que eram empregados dos Bo-xers.

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5 - Os quatro grupos citados acima são testemunhas de visu,oculares. Em número menor, há aqueles que ouviram con-tar os fatos em família ou entre amigos e até mesmo, porvezes, por antigos Boxers. São testemunhas ob auditu, deoitiva.

Em geral não são testemunhas de uma pessoa, mas de umconjunto de mártires; este grupo, por vezes, é tão numeroso,que o testemunho tem de ser resumido. Quando, em 25 defevereiro de 1914, Nicolau Tchu presta o testemunho, elepode enumerar até 51 mártires de diversas vilas próximas dePequim. Maurício Tchu, que o precede no tribunal, é capazde citar uns quarenta mártires. Outra constante: muitas vezes, membros de família extermi-nada são testemunhas que não se deixam dominar pela emo-ção. Não há nenhum impulso romântico: os testemunhos secaracterizam, em geral, por grande autocontrole, nunca ex-primem desejo de vingança. Todas essas testemunhas expressam quanto almejam a bea-tificação dos mártires, como, aliás, espera toda a cristandadede Pequim. As testemunhas são 130, muitas delas analfabetas. Deram oseu testemunho sobre 896 mártires, vítimas da perseguiçãodesencadeada na China entre junho e agosto de 1900, eventoconhecido pelo nome de perseguição dos Boxers.Do ponto de vista histórico, o valor do documento é incon-testável.

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3.Os mártires

O documento oferece uma lista de 896 mártires, númeroconsiderável, porém limitado; ocorre que o número de cris-tãos chacinados pelos Boxers é estimado em trinta mil, entrejunho e agosto de 1900. A grande maioria dos mártires é de fiéis simples: agricultoresou operários, mas cuja vida cristã era de muita intensidade.Os testemunhos declarados no tribunal diocesano permi-tem-nos entrar no universo da sua vida cristã. Podemos ficarsurpresos em verificar como o seu apego a Cristo era apai-xonado. Muitas vezes, famílias inteiras são exterminadas:pais, filhos e até crianças. São os membros dessas famílias,miraculosamente escapados da morte, que se tornam teste-munhas diretas desses mártires. Os quadros levantados dessescristãos simples mostram frescor único, uma integridade defé que edifica e isto junto de grande reserva e autocontroledos sentimentos. As idades dos mártires são extremas, descendo dos oitentaanos para os poucos dias de alguns bebês. O grupo é formadotanto de homens quanto de mulheres e com grande númerode crianças.

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Cumpre não considerar esses mártires como estóicos insen-síveis ao perigo. Pelo contrário, são tomados de medo ante aviolência que se abate sobre eles. Na medida do possível,fogem da morte. Eles medem o horror: os seus bens são pi-lhados, casas e igrejas são entregues às chamas, a sua famíliaé ameaçada de extermínio. Diante da morte, contudo, esse medo cede o lugar à coragem,à fidelidade. Por vezes, assiste-se a verdadeiros gestos de he-roísmo. O aldeão Wang Yong Shing, para dar tempo a que afamília fuja, apresenta-se diante dos Boxers que, ao invés deo matarem, lhe exigem que indique o esconderijo do dinheiroe das armas; ele contemporiza; afirma que fuzil ele não pos-sui, mas pode conduzi-los aonde há um pouco de dinheiro.A mulher, que logrou salvar-se, foi testemunhar no tribunal. Os mártires são agrupados por paróquias. Formam dezesseisblocos. A paróquia de mais mártires conta 145; outras têm115, 103, 100, 78, 67...Aquelas de menor número contam 12, 11, 8. Mais que demártires individuais, muitas vezes há grupos de mártires, fa-mílias inteiras que são chacinadas. A Congregação Marista teve quatro Irmãos mártires. O IrmãoAdon e o postulante Paulo Jen, ambos chineses, fazem partedos mártires de Chala, localidade perto de Pequim. Os IrmãosJúlio André e José Felicidade constam na lista dos mártiresde Jen-Tse-Tang e Pe-Tang. A lista oficial dos mártires deChala apresenta uma centena de nomes; mas, quando seabriu a fossa comum, (em geral lançavam os corpos em po-ços), retiraram-se 350 corpos. O número de cristãos mortosé sempre superior aos nomes que figuram na lista oficial dotribunal diocesano.A lista do tribunal dá as notas essenciais de cada mártir:nome de batismo, nome chinês, lugar do nascimento, idade,condição de vida, parentela, lugar do martírio e, por vezes,algum informe como o seguinte: Na família Shun há cercade oitenta cristãos, provindos de diversos pontos da cidadee, refugiados nesta casa, nela foram mortos. Muitos provêmde estratos sociais modestos: agricultores, operários, artesãos,alguns médicos, farmacêuticos, alguns raros professores oupequenos comerciantes. São pessoas modestas e desarmadas,que suportaram a violência dos Boxers, que estão armadosde fuzis, espadas, lanças e facões.

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Vamos a outra característica. Os simples fiéis formam o maiornúmero, enquanto os sacerdotes e os religiosos e religiosasnão passam de vinte: quatro sacerdotes Lazaristas, quatro Ir-mãos Maristas, uma dúzia de religiosas chinesas. São os cristãos chineses que os Boxers tentaram fazer desa-parecer, seja pela morte violenta, seja pela apostasia, cujacondição primeira era renunciar a Cristo.Tal grupo de mártires nos dá uma ideia desse extraordináriopovo de Deus. As nossas famílias religiosas devem sentir-se,a um só tempo, ufanas e humildes: ufanas, por ter geradoum modo chinês de ser igreja tão fortemente apegada aCristo e de uma generosidade tão inteira e fiel; cumpre queos religiosos se considerem humildes, porque os nossos már-tires lazaristas, maristas e religiosas comportam pequeno nú-mero. É o povo de Deus que foi golpeado e ficou fiel. Houve apóstatas? Em certas paróquias, nenhum; em outras,sim. Para o pai e para a mãe, era intolerável que a famíliatoda fosse ameaçada de extermínio. Quase todos esses cris-tãos, passada a tormenta, retornaram à Igreja, aceitaram apenitência imposta e se transformaram em testemunhas dosmártires. Todos os grupos de Boxers não se comportam do mesmojeito. Alguns não matam os cristãos que oferecem incenso;outros, depois de ter humilhado os cristãos por uma apostasiaarrancada, chacinam-nos sem piedade, convictos de que tais

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cristãos, uma vez restaurada a paz, retornariam à Igreja. Ostestemunhos recolhidos permitem ver que não houve com-portamento monolítico nem da parte dos Boxers, alguns dosquais não matavam as crianças, nem da parte dos pagãos,dos quais alguns viam com bons olhos a eliminação doscristãos, porque, pelo menos, tencionavam pilhar-lhes as ca-sas, ao passo que outros os salvavam, escondendo-os ou as-segurando-lhes enterro digno. As testemunhas aportam tam-bém julgamentos diferentes. Bom número deles dizem queas relações entre cristãos e pagãos eram boas antes da perse-guição, ao passo que outros reconhecem certa animosidadeno coração, sendo as relações condizentes apenas no exteriorda pessoa. Os cristãos, por outro lado, não se comportaramtodos do mesmo modo. A grande maioria não opôs resistên-cia, como agricultores ou operários desarmados, mantendo-se apenas na defensiva da fuga. Nas Legações ou no Pe-Tang, onde muitos cristãos buscaram refúgio, tal resistênciadurou meses. Era uma resistência de defesa, não de ataque,isto é, de assediados e não de sitiantes. Passada a perseguição, a Igreja de Pequim preocupou-se emdar sepultura cristã a todos os corpos que foram encontrados.Muitas vezes, porém, os mortos eram queimados. Este sinalde respeito, primeiro sinal da fama de martírio, atesta que aIgreja considerava esses cristãos como verdadeiros mártires,imolados por se manterem fiéis ao Senhor.

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4.Contexto histórico e social

Procuremos compreender o contexto histórico e social destaperseguição, na qual os cristãos foram mergulhados comopor surpresa e acuados ao martírio.

4.1 - A China

O Império da China, no século XIX, ia perdendo a sua forçade coesão e se via, de modo crescente, penetrado pelas gran-des potências coloniais, que conseguiam concessões e lega-ções no território chinês. A dinastia mandchu dos Qing experimentava certo declínio.Duas forças sociais opostas se enfrentavam no Império: oscontrarreformistas, em especial os Boxers, que pleiteavammanter a China nas suas tradições seculares, livre do aporte

O Império da China durante a dinastia Qing (1644-1911)

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estrangeiro e da presença no seu solo de armas e de religiõesde fora. Queriam uma China que não fosse presa das naçõesque sonhavam com o desmembramento do Império chinês.Essas nações coloniais eram a Grã-Bretanha, a Alemanha, aFrança, a Rússia, o Império Austro-Húngaro, a Itália, os Esta-dos Unidos e o Japão, este apenas no fim do século XIX. Oscontrarreformistas são profundamente nacionalistas, xenó-fobos, não sem razão, mas igualmente retardatários.Em contrapartida, um grupo de intelectuais quer modernizara China, dar-lhe uma Constituição, reformar a economia, osestudos e as forças armadas. A China, tendo perdido a guerraprimeiro contra a Rússia, depois contra o Japão em 1894-1895, dá-se conta do seu atraso. Esses dois grupos vivem em estado de tensão. Cixi, rainhaviúva, escolheu o movimento contrarreformista, vivendo elaprópria a humilhação a que a China foi submetida. Assim,ela vai apoiar tacitamente o movimento dos Boxers. Aqueles,porém, que visavam a modernizar a China tomaram o poderem 1911, suprimiram o Império e transformaram a Chinaem República.

4.2 - Os Boxers

O Império da China, na sua his-tória milenar, sempre conheceumovimentos de seitas secretas.Aquela dos Boxers, no começo,por volta de 1800, fazia partedesta tradição e era propria-mente contra a rainha Thu Hi. Omovimento era formado por gru-pos assaz diversos; no início,contava com agricultores que ha-viam perdido as suas terras. OsBoxers praticavam as artes marciais, como o Kung Fu, peloque os britânicos os chamaram boxers ou pugilistas. Sem tardar, o movimento adquiriu alma nacionalista, hostil atoda a presença ocidental, querendo a China forte e indepen-dente. A sua luta, por vezes desordenada, é luta nacionalistae atingiu o seu apogeu no período de junho a agosto de 1900.

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Nos primeiros dias do levante, os Boxers não estavam pre-sentes em toda a parte e matavam pouca gente. Assim,quando a Igreja de Tong-Tang foi incendiada, as Filhas deSão José tiveram de deixar o seu convento. Elas perambularampelas ruas por três ou quatro meses, mas não foram mortas. Os Boxers se opõem com a mesma violência, muitas vezesbrutal, à presença de estrangeiros tanto quanto aos chinesesconvertidos ao cristianismo, que eles chamavam de meioeu-ropeus ou Eul-Mao-Tze, modo injurioso de apelidar os cris-tãos. Para os Boxers os chineses cristãos haviam perdido aintegridade da alma chinesa. Ademais, os Boxers iam entregaràs chamas as igrejas e as casas dos cristãos, matando homens,mulheres, crianças, estripando mulheres grávidas, atirandoos corpos nos poços. Por vezes, as casas incendiadas estavamcheias de cristãos. Os pagãos os ouviam rezar no meio daschamas. Cerca de 30.000 chineses cristãos vão ser chacinados entrejunho e agosto de 1900. Cumpre reconhecer, porém, quesão raros os cristãos submetidos a torturas. Eles eram, em ge-ral, agarrados e mortos. Certa leitura da história poderia ver como heróis nacionaisos Boxers, talvez desconhecendo que eram manipuladospela rainha; eles eram sobremodo insensíveis à liberdade deconsciência das pessoas. Não estavam isentos de fanatismoe sadismo na chacina.

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Outra realidade é que a perseguição dos Boxers se inscrevenuma série de perseguições que começaram no século XVIIIe se repetiram nos séculos seguintes. Essa perseguição não éa primeira nem a última. A perseguição dos Boxers não sedeve considerar como fenômeno isolado.A desforra das nações ocidentais, a partir de agosto de 1900,foi de extrema violência, ceifando vítimas na população hu-milde e saqueando a cidade de Pequim. Os vencedores im-puseram à China a lei do mais forte e um tratado de paz deverdadeira humilhação. A repressão foi desproporcionada.Pretendia-se abater a China para que ela não mais se levan-tasse, pelo que as grandes potências estão carregadas deresponsabilidade.

4.3 - Os cristãos chineses

As relações com os pagãos, antes do acontecimento dos Bo-xers, em geral eram pacíficas. Muitas testemunhas o subli-nham, quando são chamadas ao tribunal diocesano. Outrasreconhecem ter havido uma tensão larvada. Em verdade os cristãos eram acusados de coisas extravagan-tes, como arrancar olhos e coração dos moribundos, cozercrianças em marmitas e comê-las, preparar remédios de po-deres maléficos ou mesmo envenenar a água dos poços.Acima de tudo, porém, eram acusados de se terem tornadosemieuropeus, ou Eul-Mao-Tze. Em contrapartida, eram tam-bém objeto de admiração, uma vez que muitos pagãos seconvertiam à fé cristã, o que continuou depois da perseguiçãodos Boxers.Da sua parte, os cristãos chi-neses sempre negaram que sehaviam tornado semichinesesou semieuropeus: amavam asua pátria como todos os de-mais e continuavam na vidasimples de estilo chinês. Elesnão se juntaram ao exércitodas potências ocidentais paradesforrar-se dos perseguido-res. Cerca de trinta mil foram

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as vítimas cristãs dos Boxers. Ostestemunhos falam de famíliasexterminadas, de cristãos quei-mados nas próprias casas muitomais do que de mártires indivi-duais. Um catequista de Si-Tangafirma que na sua paróquia forammortos entre 200 e 250 cristãos.Na tormenta dos Boxers, os cris-tãos chineses nunca opuseramviolência contra violência. Eramcampesinos de mãos nuas, emface dos Boxers armados de fuzis,de espadas e de lanças. Tentaram

fugir, esconder-se na cidade de Pequim. Presos pelos Boxers,a grande maioria preferiu a morte à apostasia. Aceitaram servítimas de preferência a serem matadores. Tiveram muitossinais para compreender que grande tormenta se desenca-dearia contra eles. Em tese, mártires não se improvisam; erao caso deles. . Entre os cristãos, não poucas famílias eram cristãs havia di-versas gerações. Diante dos seus carrascos, afirmavam comclareza: “Somos cristãos há muito tempo e os senhores que-rem que renunciemos a Cristo”?Eis a palavra ou pensamento chave. Os cristãos eram convi-dados, com insistência inverossímil, a renunciar à sua fé,muito mais que renunciar ao seu estilo de vida europeu, queefetivamente não tinham. Esses cristãos, de condição mo-desta, e longe de toda a política, haviam chegado ao amorde Cristo, e tamanho apego ao Senhor nos surpreende. Elestinham encontrado Aquele que dava sentido à sua vida. Epor Ele aceitaram morrer. Ficamos surpresos da fidelidadeno martírio de certos cristãosque não eram fervorosos, queraramente frequentavam aigreja, ou que tinham o hábitode se embebedar. Em face daescolha definitiva, optaram peloCristo. Todos esses que forammortos foi porque quiseram per-manecer fiéis a Jesus. Aqui nos

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deparamos com a razão central do seu martírio. A sua vidafica exclusivamente dedicada ao Senhor. Aos pagãos quelhes suplicam de oferecer incenso aos ídolos para salvarema vida, eles respondiam: “É impossível. Preferimos morrer aapostatar”. A razão política empalidece ante a fidelidade aoSenhor. Por certo eles foram vítimas políticas; mas muitomais são mártires, porque não quiseram renunciar a Cristo.

4.4 - A Igreja de Pequim

A perseguição vai abater-se especial-mente sobre a Igreja de Pequim e dosseus arredores. Durante os três mesestrágicos do levante dos Boxers, de ju-nho a agosto de 1900, as vilas das cer-canias de Pequim, povoadas de cam-pesinos sem nenhuma defesa, vãopagar pesado tributo.

Já havia quatro grandes paróquias na cidade de Pequim, de-signadas segundo a sua situação quanto aos pontos cardeais:Si-Tang, no oeste; Nan-Tang, no sul; Tong-Tang, no leste; ePe-Tang, no norte.A Igreja de Pe-Tang era a catedral. Havia também a residênciado bispo, Sua Excelência Favier, com o seu coadjutor epis-copal Jarlin. Os Padres Lazaristas tinham aí a sua missãoprincipal. Esta paróquia contava várias congregações reli-giosas na direção de escolas. No seminário maior e menorformavam-se 111 jovens candidatos ao sacerdócio. Em Jen-Tse-Tang, bairro contíguo a Pe-Tang, havia 1.800 mu-lheres cristãs e jovens e crianças, 450 moças das escolas edos orfanatos, 30 bebês nas creches. No total, havia 3.420cristãos chineses nos dois bairros.Esses dois bairros vão suportar o sítio dos Boxers por doismeses. Nesses dois bairros muitos cristãos tinham procuradorefúgio. Aí se encontravam os Irmãos Júlio André e José Feli-cidade, com outros Irmãos, ao passo que seis deles se haviamrefugiado nas Legações, isto é, residências dos representantesdas diversas nações presentes na China. Por ocasião do sítio de Pe-Tang e de Jen-Tse-Tang, os Irmãos

Monseñor Favier

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Maristas vão dedi-car-se por inteiro adefender essespostos: eles eramsucessivamentesoldados, constru-tores de barrica-das, vigias e enfer-meiros, prestandoaqui e acolá todaa sorte de serviços,sempre sob o fogodos sitiantes. Osdias e as noitesnão eram mais quecanhoneios, tirosde fuzil, combates,incêndios, explo-sões, mortes, feri-dos, doentes, mo-ribundos; em

suma, todos os horrores da guerra, seguidos do horror dafome. No espaço desses 64 dias, os Irmãos viram enterrarmais de 400 corpos dos pobres refugiados. Aí encontraram amorte os Irmãos José Felicidade, em 18 de julho de 1900, eo Irmão Júlio-André, visitador, em 12 de agosto de 1900… Cha-la-Eul, ou Cha-la, encontrava-se num subúrbio de Pe-quim. Desde o mês de maio de 1893, os Irmãos dirigiam umorfanato de 125 crianças. Os Boxers puseram fogo à igreja,à escola das Irmãs e ao orfanato. Os órfãos se dispersaram edo total apenas sobreviveram 25. Dois Maristas chineses en-contraram a morte: o Irmão José Maria Adon e o postulantePaulo Jen, em 17 de junho de 1900.Os Irmãos Maristas haviam chegado à China em 26 de abrilde 1891. No momento dos acontecimentos eles eram 48;dirigiam a escola de Nan-Tang, o orfanato de Cha-la, a escolade Tien-Tsin e uma escola em Shanghai. Em Pequim, emNan-Tang e em Cha-la havia 15 Irmãos.

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5.Os mártires das paróquias de Pequim

5.1 - A paróquia de Si-t’ang

Numa famíliaA minha mãe foi batizada poucos dias antes da sua morte.Ela tinha ido buscar o padre Maurice Doré para ser batizada.Dizia ela: ‘Se os Boxers me matam antes que seja batizada,não poderei entrar no céu’. O padre contestou: ‘Eu a batizareiquando você souber as quatro partes do catecismo. Mesmoque os Boxers a matem antes do batismo, é por Deus quevocê morre e, assim, irá ao céu’. Mas ela tanto insistiu, queo padre a batizou, junto com a minha irmã. Esta se casou al-gum tempo depois. Contudo o pai e a avó paterna insistiram na apostasia dela.A mãe aceitou, porque ela temia muito o pai. A minha irmã,em contrapartida, recusou-se a oferecer o incenso.

Em 28 de junho, os Boxers chegaram e puseram fogo à casados nossos vizinhos que eram cristãos: a casa estava cheiade gente e os pagãos os ouviam rezar no meio das chamas. Depois os Boxers irromperam na casa. Um dos meus irmãose uma das minhas irmãs, ambos crianças, puderam escapar.A minha mãe, a minha irmã , a minha cunhada e a sua filhaMaria como um dos meus irmãos, ainda criança, foram amar-rados e conduzidos para fora. Ao longo do caminho, a minhamãe e os outros da família recitavam sem cessar o Pai Nossoe a Ave Maria. O pessoal dizia com admiração: “Mesmo ca-minhando, eles rezam” . Os Boxers tomaram o meu pequeno irmão e, jogando-o aoalto, eles o aguardavam de lanças apontadas. Vendo isto, aminha mãe se pôs a chorar. Mas os Boxers os mataram todos,sem exceção.

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Um cristão pouco fervorosoJosé Tchao Yung, pescador, não era muito fervoroso. Os Bo-xers o agarraram e o conduziram ao lugar onde se achava otribunal. Pelo caminho, um pagão lhe diz: ‘No tribunal, bastaque diga que não é cristão’. Ele, porém, respondeu: ‘Issonunca. Sou cristão desde várias gerações’. Chegado ao tri-bunal, os Boxers lhe apresentaram o incenso para os ídolos.Ele teve termos de menosprezo a respeito e lhes disse: ‘Somoscristãos há várias gerações. Podem matar-me’. Conduzido àporta da cidade onde havia nascido, ele disse aosBoxers;’Aqui é a minha pátria, aqui é o paraíso’. Ele invocavaa Mãe de Deus, pedindo-lhe que viesse na sua ajuda. Foilogo executado.

Um catequistaAgostinho Pao Chan, eu o co-nheci como catequista. Antesdo seu batismo, fazia partedos cavaleiros do Imperador.Ele abandonou esta função,porque não lhe permitia querespeitasse as leis de Deus.Era cristão muito fervoroso;exortava os outros à virtude.Levou à Igreja muitos pagãos.Depois do incêndio da igrejade Pequim, buscou refúgioem Pe-Tang, que era legaçãodos europeus e que contava com soldados. Refletindo, porém,ele dizia consigo: ‘Eis uma ocasião única de morrer porDeus. ‘Vou retornar ao lugar de onde vim. Sou velho; quepode acontecer-me’? Dizia àqueles que tinham medo, re-cordando o martírio: ‘Onde podem vocês encontrar melhoroportunidade’? Ele foi preso na sua família; seis membros desta foram mortos.Ele perguntou aos Boxers: ‘Aonde vocês me levam’? Respon-deram-lhe: ‘Não é da sua conta; siga-nos’.Como passassemdiante de uma igreja de Si-Tang, pediu que o autorizassem aparar um pouco. Ajoelhou-se, fez profunda inclinação dianteda igreja queimada, cobriu o corpo com grande sinal dacruz e disse: ‘Aqui é a minha pátria’. Continuou a rezar. Os

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Boxers estavam surpresos que ele continuasse a rezar; masacordaram em matá-lo aí mesmo, já que dizia que o lugarera a sua pátria. Mesmo moribundo, prosseguia orando. Foino dia 15 ou 18 de junho de 1900. O seu corpo não foi en-contrado.

5.2 - A paróquia de Nan-Tang

Estas linhas oferecem o testemunho completo de Ana Ly, de24 anos. O testemunho nos leva a mergulhar nesses dias deterror para as famílias cristãs. O testemunho é completadopor aquele do irmão dela José Tchu, de sete anos na horados acontecimentos, e vinte e um na hora em que testemu-nha. Na formulação do seu testemunho no tribunal, ele es-tudava filosofia no seminário maior. O testemunho centra-sena sua mãe, Agnes Wang, de 41 anos, e no pai Martim Tcheo,de 38 anos. Quando os Boxers iam entrar na casa, a cunhada do cate-quista Wang (vizinho nosso, mas a mãe deles, Agnes erauma Wang), que era ainda pagã; veio à nossa casa com in-censo, para que o queimássemos perante os Boxers em sinalde veneração dos ídolos. Ela nos disse: ‘Os Boxers vão entrarna casa’. Papai e mamãe estavam escondidos no quarto dedormir. Então entraram no salão 30 Boxers e se dispuseramao redor do salão. O pai nos reconfortava, dizendo: ‘Não te-nham medo’. Depois perceberam que não poderiam mais fi-car escondidos e pensaram em fugir. O pai e o meu irmão José, segurando a mão da irmã Maria,escaparam pela porta do norte. Alguns Boxers correram atráse miraram nas suas cabeças, mas os tiros caíram no vazio epuderam salvar-se. O pai, corpulento, bateu numa pedra darua e caiu. Sobrevindo dois Boxers, mataram-no. A minhairmã ficou perto do pai e disse aos Boxers: ‘Eu também soucatólica; podem matar-me’. Eles, porém, fitando-a de revés,foram embora. A mãe e eu ficamos sós no quarto. Ela não cessava de me di-zer: ‘Fujamos, fujamos’. Ela tentou fugir e eu com ela, grudadano seu vestido. Mas no umbral da casa, os Boxers nos pega-ram. A mãe, vendo que não poderia escapar-lhes, disse-me:‘Ajoelhemos e que eles nos matem’. Ela caiu de joelhos e eu

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com ela. Tínhamos a cabeça inclinada e os olhos fechados,no aguardo da morte. Os Boxers nos feriram com as espadase lanças e ficamos prostradas no solo, semimortas. Crendo-nos liquidadas, eles se foram. Pouco depois, a mãe me per-guntou: ‘Está viva’? Eu respondi: ‘Sim, mãe’. Já que não amataram, reze uma Ave Maria, mas em voz baixa. InvoqueMaria. Entremos na casa. Perguntei: ‘Mas eles não queimarama casa’? . Então apoiando a mãe, já que eu fora ferida de leve, ajudei-a a entrar e ambas nos pusemos de joelhos. Depois, sen-tando-se, ela me disse:’Tire as suas jóias; se você morre comelas, vai ao purgatório’. Ela fez a mesma coisa e as depositousobre a mesa. Aí eu disse à mãe: ‘Vamos ao quarto de dormir. Se os Boxerspassam e nos vêem, vão acabar de nos matar’. Sim, contestouela. Ambas entramos e nos atiramos no leito. A mãe me pediu água e eu lha servi, mas a água saía do ladoesquerdo, pela grande ferida que ela tinha. Ela perguntou-me: ‘Sabe você o que aconteceu ao seu pai’. Respondi quenão sabia. Em seguida, acrescentou: ‘A minha cabeça encheude sangue a cama. Que fazer’? Respondi-lhe: ‘Tome umlenço e tampone a ferida’.Um homem de uns trinta anos entrou na casa. Era um pagãode bom coração. Do corredor perguntou-nos: ‘Vocês são ca-tólicas’? Tomando-o por um Boxer, a mãe respondeu-lhe:“Sim, somos católicas’. Continuou ele: ‘Se sois católicas,saiam depressa, porque soldados europeus estão vindo parasalvá-las’.A mãe me disse: ‘Se vieram soldados europeuspara nos salvar, você deve aproveitar’. Contestei-lhe que nãotinha sapatos para fugir. Ela, então, me disse que calçasse osda minha irmã.Mas, no exato momento, entrou na casa uma velha mulherpagã, brandindo um facão e dizendo: ‘Onde estão os bensde vocês? Se não entregam, mato vocês’. Respondeu-lhe amãe: ‘Tome aí o que quiser. Tome o que achar. Leve consigoo que bem entender’. A mulher do facão vasculhou a casa elevou o que quis.A mãe tinha ferida tamanha no pescoço, que a cabeça secosia ao peito. Então eu parti. Disseram-me que ela sobreviveu por três dias.

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Perto do túmolo dos que morreram em Pequim, o pelotão dispara salvas como últimosaudação aos mártires.

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Os Boxers retornaram e a levaram à casa de um cristão Ly-Tsin Tachang, embaixador da China na França. Puseram fogona casa. Mamãe morreu queimada.Eu, uma vez na rua, vi muitos cristãos reunidos e soldadoseuropeus. Aí encontrei o meu irmão José e, pouco depois, aminha irmã Maria. Ela me disse que os Boxers tinham matadoo pai com violento golpe de espada na cabeça, tiraram-lheas roupas e as guardaram para si. Por que mamãe não logrou salvar-se? Estava grávida, eradifícil caminhar; a ferida do pescoço era por demais profunda;assim, ela não poderia chegar à Legação estrangeira.Alguns dias antes da sua morte, melhor dizendo, quando aigreja de Na-Tang foi incendiada, mamãe nos disse: ‘Se osBoxers chegam e lhes dizem: ‘Caso vocês apostatem, estãosalvos; caso contrário, nós os matamos’. Deve-se responder:‘Somos cristãos, podem matar-nos. Mas nunca digam quenão são cristãos’. Erguendo o filho José, ela o apresentava àimagem da Virgem: ‘Veja como é bela a santa Mãe de Deus.Ela virá socorrê-lo’. José testemunhou no tribunal que a sua mãe se confessavamuitas vezes, que nos sábados e domingos ia à missa, muitocedo de manhã, cuidando de não acordá-lo; de manhã e detarde dizia as suas orações e o rosário todos os dias. Foi mu-lher muito piedosa. Ela nos ensinou a rezar.

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Chineses cristãos refugiados

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5.3 A paróquia de Tong-Tang

Este testemunho é de José Ning Cheu-Tchen. É um aldeãode 67 anos. O testemunho dele é sobre os mártires da suafamília e da sua parentela. Conheci a família Tchang: Francisco Xavier Tyii, o filho deleJoão Batista, Teresa Tchang, minha irmã e mulher de JoãoBatista, e João, Pedro, Rosa, Maria e Ana, filhos de Teresa eJoão Batista; Maria Tchang, viúva, Teresa Uang, nascidaTchang, Josefina Tchang, Gabriela Tchang, Maria Tchang,Paulina e Lúcia, mulher de Paulo, Pedro, seu filho maior e assuas irmãs Filomena e Agnes. Com eles foi morta MadalenaNing, nascida Liu, minha mãe; e Lúcia Jen, Pedro Jen, PauloJen, Filipe Jen, Maria Jen, Maria Liu, e Melquior, meu avô. Toda a família era muito correta, sobretudo Francisco Xavier:ele assistia à missa todos os dias e penso que merece a ca-nonização.

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A família Tchang nada fez para defender-se. Ela estava longede imaginar as intenções dos Boxers e de pensar que elesiriam matá-los. Se houvessem cogitado disso, poderiam terfugido. Quando os Boxers cercaram a casa, os cristãos nadapuderam fazer senão rezar, depois fugir por uma porta secreta.

Francisco Xavier TchangFrancisco Xavier Tchang, venerável ancião de 73 anos, ver-dadeiro patriarca de outrora, era muito justo no comércio,caridoso com os pobres e com os pequenos; humilde, to-mava-se como o último de todos. A sua fé e piedade se ma-nifestavam pelo respeito com que se comportava na igreja,para edificação de todos. Apesar da idade avançada, ia todosos dias à santa missa e de tarde fazia uma hora de adoração,em qualquer tempo ou estação. O pai Tchang tinha grande atrativo para as coisas de Deus;nos seus momentos livres, fazia leituras piedosas à famíliareunida, depois nos falava das boas coisas e nos exortava aobom comportamento, a não nos prevalecermos sobre os ou-tros, a nunca enganar o próximo. “O bom Deus vai aben-çoar-nos”, acrescentava sempre. Como chefe de família,todos os dias, distribuía aos pobres uma tigela de arroz ou assobras do restaurante. Na comemoração do ano novo, eledava aos pobres alguns trocados e algum presente.Por vezesesvaziava a casa, por assim dizer, para vesti-los. Entregavacobertas ou dinheiro a pessoas que ele sabia estarem na ne-cessidade ou no hospital. Certo dia, indo à igreja, o paiTchang encontra uma mulher quase nua. Sem tardar, mandouque a nora lhe desse alguma roupa. Em outro dia, encontrouuma mulher no fim da gravidez e estava sem abrigo. Mandouprocurá-la, cedeu-lhe um quarto e encarregou as suas duasnoras de cuidar dela. Só a desligou da habitação um mês de-pois, mas provida de roupa e também para o filho e comrica esmola para prover aos seus cuidados imediatos. Não logro terminar o relato dos seus atos de caridade, quesó Deus pode contar. A sua felicidade era prover os bens dasua querida paróquia, a igreja de Tong-Tang. O digno e santosacerdote Garrigues levou para o céu muito segredo dele.

Maria TchangA sua nora, viúva Maria Tchang, era a filha de um tártaro

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chamado Yang, antigo cristão. Perdeu o pai, quando ela eramuito jovem. A mãe dela era pobre; Maria Tchang foi con-fiada às Filhas da Caridade de Pequim. Aí ela ficou por trêsanos. Ela guarda eterna gratidão para com as Irmãs. Maria Tchang teve dois filhos, mortos em tenra idade e umafilha, agora Irmã de Caridade. A minha cara tia, que ficouviúva aos 22 anos, não quis contratar um segundo casamento.Eis uma verdadeira viúva, que pode ser apresentada aos cris-tãos como admirável modelo de edificação pouco comum. Muito jovem, quando ficou viúva, ela dirigiu o seu coraçãopara Deus. A Providência lhe forneceu os meios de proveràs necessidades da sua alma ávida de justiça. Encontrou novenerando sacerdote Kho um diretor sábio e prudente, que adirigiu, apoiou, consolou, traçando-lhe até mesmo uma linhade procedimento. Pelos seus conselhos, esta alma tão dóciltornou-se mulher modelar: forte na virtude, corajosa nas pro-vas, paciente nas dificuldades, generosa nos sacrifícios, so-bremodo e essencialmente piedosa. Maria Tchang levantava-se todos os dias às quatro horas; co-meçava o seu dia na oração e na meditação, quando nosimaginava dormindo. Eu a espiava, olhando discretamentede sob as cobertas, e a via muitas vezes vertendo abundanteslágrimas, tamanha era a doçura do seu entretenimento comDeus. Acabadas as suas devoções, ela se lançava prontamente aotrabalho, para deixar tudo em ordem, antes de ir à missa.Nos domingos e nas festas, ela ia à primeira missa, paradeixar aos outros o tempo e a consolação de assistir aos ofí-cios mais belos e solenes. Para tanto auxiliava e substituía asempregadas. Ela estava encarregada de prover a todas as ne-cessidades desta casa, tão grande e de tanto trabalho, agindocom bondade e exercendo vigilância escrupulosa. Em suma,esta piedosa viúva comia o seu pão no suor do seu rosto;nunca estava ociosa, sempre em busca do melhor para osoutros e do pior para ela.Maria Tchang era simples e modesta no seu vestir, mortificadano alimento, afável com todo o mundo e conservava emtodo o seu exterior a modéstia e ao mesmo tempo a dignidadeque impunham respeito.Na época da perturbação e dos rumores em Pequim, ela foipresa num agrupamento em que se entretinham velhas calú-

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nias contra os cristãos e contraas Irmãs que, dizia-se, arran-cavam os olhos e o coraçãodas crianças. Maria Tchang,sem parecer perturbada, faloucom calma: “Olhem para mim;tenho os olhos e o coração eeu fui educada pelas Irmãs”.Os pagãos ficaram sem argu-mento, em face de tal ato decoragem.Por mediação desta vida santae dos seus sacrifícios diários,Maria Tchang preparou-se parao sacrifício supremo.

Martírio de Maria TchangA viúva Maria Tchang, enquanto os Boxers pilhavam e in-cendiavam o restaurante e a casa, logrou sair pela porta donorte, levando consigo a nora Petronila, casada havia doismeses. Maria queria achar um abrigo seguro para ela. Ambaspuderam chegar a uma casa muito pobre, onde havia diversosmembros da família Tchang. Ela passou aí quatro dias de ansiedade e de angústia, deagonia mais penosa que a morte, sem saber o que se haviamtornado os seus familiares. Um empregado da família, denome Tu Chan, ainda pagão, encontrou o retiro deles. Elalhe perguntou onde estava o avô, o pai, a família dele, omeu irmão José, objeto da sua terna solicitude. Este foi oúnico que conseguiu escapar e sobreviver. Ela teve a respostade que tudo estava terminado, não havia mais nada, nemninguém. Quem pode compreender o que se passou na almadela? Ela ficou em silêncio grave; depois verteu amargas lá-grimas. Nos dias de ansiedade e angústia que precederam a suamorte, a fervorosa viúva Maria preparou para a morte toda asua família, exortando os seus a serem firmes na fé, repe-tindo-lhes: ‘Logo mais estaremos no céu’. Depois de quatro dias de indizível angústia, foi descobertopelos Boxers o refúgio da fervorosa viúva e dos membros dafamília Tchang. Os mandarins Boxers queriam levar a jovem

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Petronila, bonita e encantadora. Mas ela foi invencível, pre-ferindo a morte às suas propostas. A corajosa sogra, duranteesse tempo, a apertava nos seus braços. Ela disse aos Boxers,em tom de autoridade severa: ‘Matem-na diante de mim; eumorrerei depois, mas nunca a terão. A jovem Petronila foimorta nos braços de Maria. Perante esta heroica cristã, todosos membros da família Tchang foram também executados.Nesse último momento ela repetia: ‘No céu, logo estaremosno céu’. Por fim, Maria recebeu o golpe que lhe abriu o céu.

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6.Mártires das aldeiasem torno de Pequim

6.1 - As aldeias de Koan-Teu, Tsai-Hu-Yng e Wa-Tsiuen-Sze

Destas três aldeias o tribunal diocesano guardou um grupode 67 camponeses, todos mortos pela sua fé em Cristo. No começo os pagãos convidavam os cristãos a renunciar àsua fé; por vezes queriam defendê-los, dizendo em públicoque eles eram pagãos. Mas a grande maioria dos cristãosnão aceitou tal maneira indireta de apostatar. ‘Mas como?Somos cristãos há várias gerações. Nunca renunciaremos ànossa fé’.Às vezes, um testemunho se prende por mais tempo em talou qual mártir. É assim que Marcos Ly testemunha a mortedo pai, de nome Paulo, e da mãe, Ana Ly. Mas na sua famíliaele também perdeu um irmão, vários sobrinhos e outrosmembros. Quando a vila é invadida pelos Boxers, Paulo e Anne Ly ten-tam a fuga em duas direções diferentes. Os Boxers prendemprimeiro a mãe e a ferem com três golpes de lança. Ela caipor terra. Vendo que ela ainda respira, eles a liquidam comnovo golpe. O pai também é alcançado, reconduzido à suacasa e morto no interior dela. Em seguida, a casa é pilhada equeimada. Foi em 8 de junho de 1900.Essa mesma testemunha historia o fato relativo à sua irmã Fi-lomena. Para fugir, ela com os filhos, aluga modesta carrua-gem puxada por burro. Na estrada foi detida pelos Boxersque lhe perguntam se ela era cristã. Contestou ela com au-dácia: ‘Eu sou. Matem primeiro os meus dois filhos, depois amim, aqui mesmo. O cocheiro, porém, é pagão a quem pedieste serviço. Portanto deixem-no ir. Os Boxers mataram ascrianças e a mãe; e não pouparam o cocheiro, porque que-riam apossar-se da carruagem.José Su-Koang-Joei relata um fato vivido em família. Em facedo risco de que toda a família do seu irmão fosse extermi-

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nada, o pai, que era pa-gão, lhe disse: ‘Você vaideixar-me o filho maisnovo, assim a família nãovai extinguir-se’. O meuirmão contestou: ‘Se mor-remos e o menino vivercom vocês, vai ficar pa-gão como vocês. É me-lhor que morra conosco’.Foi o que sucedeu.Perante tais comporta-mentos, os pagãos fica-vam confusos. Eles di-ziam que os cristãos eramteimosos e que se drogavam para resistir. Essa mesma testemunha traça retratos sóbrios mas interes-santes. Maria Tchang era apenas neófita, o seu rosário eramuito brilhante, de tanto que ela o usava. Ela vivia distanteseis léguas da vila e, ainda assim, todos os domingos vinhaassistir à missa. Liu Tchang-An não era fervoroso. No começo da persegui-ção, um pagão lhe disse: ‘Vá ao ponto onde os Boxers sereúnem, oferece o incenso; como penitência sua, deixa al-gum dinheiro’. Contestou ele: ‘Isto quer dizer que devoapostatar? Eu não sou grande devoto, mas prefiro morrer arenunciar à fé’.

6.2 - A aldeia de Yen-Tze-Keu

Nesta vila o tribunal diocesano reteve o registro de 115 cris-tãos mortos por causa da sua fé. Quase sempre nos encon-tramos diante de famílias inteiras exterminadas, muitas vezesfamílias patriarcais, numerosas. A primeira testemunha chamada para este grupo, o senhorFrancisco Wang-Koei-Chuen, enumera noventa nomes decristãos mortos, que compreendem quatro ou cinco famílias:Wang, Tchung, Peng, Yung, Chao.Não sabemos se devemos ficar desconcertados pela cruel-dade das chacinas ou repletos de admiração pela docilidade

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de todos esses cristãos que marcham para o martírio. O queaparece constantemente de um testemunho a outro é a den-sidade da sua oração, a seriedade da vida cristã, o respeitodo domingo, os jejuns e as abstinências da Igreja. Por vezes,de manhã, eles estavam na porta da igreja antes do bater dosino. Esses camponeses, quase todos analfabetos, sabiam decor muitas orações e cantos; orações da manhã, da tarde e orosário eram cotidianos.Todos não são perfeitos. Alguns gostam demasiado do vinhoe então não sabem reter a língua. Outros se dão ao jogo decartas, visto pelos cristãos como vício. Um que outro nãoestá em regra com o seu casamento. Do lado das mulheres océu não é sempre límpido entre sogras e noras. Certos ho-mens e mulheres se deixam levar pela cólera. No entanto,diante da provação, eles preferem morrer a renegar a sua fé.Seguem alguns quadros pitorescos e edificantes.

André PengAndré Peng foi preso por alguns pagãos na vila Tchao-Lyng.Eles o conduzem ao palácio do príncipe Tuan, em Pequim.No caminho, ele encontra um amigo pagão que lhe diz: Porque não tenta fugir e esconder-se? André lhe responde: ‘Nãose penalize por isso. Falaremos disso no outro mundo’. Che-gado ao tribunal, o príncipe Tuan lhe pergunta: ‘Quantosanos tem você’? André responde: ’35 anos’. Desde quando você é cristão, pergunta Tuan. André responde:‘Há 36 anos’. Você tem 35 anos e é cristão há 36? Insiste An-dré: ‘Sim, porque sou cristão desde o seio de minha mãe’.Ofendido com a resposta, o príncipe o condena à morte.

Francisco TchuFrancisco Tchu e o irmão dele foram mortos perto da portaocidental de Tang-Ping-Tcheu. Francisco levava nas costaso irmão João Gabriel. O chefe dos Boxers, vendo a belezado menino, queria salvá-lo para o guardar para si. Nãopassa de criança, disse, para que matá-lo? Tentaram tirá-lo das costas do irmão. Mas Francisco resistiucom todas as forças. ‘ Trouxe o meu irmão para morrer.Chegamos juntos e juntos vamos morrer’. Não houve forma de separá-los. Os dois foram mortos.

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Wang-Koei-ChouenNo seu testemunho, o senhor Francisco Wang-Koei-Chouenacrescenta o seguinte: ‘Eis o que esqueci: enquanto Catarinae Antônio Yung eram conduzidos ao lugar do suplício, Antô-nio, ainda neófito, vendo amigos pagãos, suplicava-lhes quefizessem alguma coisa. A mulher dele Catarina, cuja famíliaera cristã de há muito tempo, o repreendeu severamente:‘Que ajuda procura entre os homens? Dentro de pouco esta-remos no céu e você busca a salvação junto dos homens’?Isso deu mais coragem a Antônio, que continuou a sua mar-cha, dizendo: ‘É ao céu que eu vou’. Foram mortos juntos.Catarina solicitou aos Boxers que primeiro matassem a ele,para estar certa da sua perseverança e que ela fosse mortadepois.

Um pequeno canhãoQuando os acontecimentos começaram, queríamos defen-der-nos, colocando um pequeno canhão. Mas os nossos ve-lhos nos disseram: ‘Seja feita a vontade de Deus. Vai aconte-cer-nos o que Deus quiser. Se Deus previu que morreríamos,a nossa resistência será vã’. Os pagãos nunca nos odiaram; mas, se vamos matar pessoas,certamente nos vão odiar. Quando os Boxers chegarem, va-mos fugir. Era a tática que havia sido adotada nas persegui-ções precedentes: fugir para a montanha e deixar que ascasas fossem pilhadas.

Paulo-Chao-An Paulo-Chao-An é aldeão de 60 anos. Os pais dele eram pa-gãos. Ele, durante a perseguição, renegou a sua fé. Reinte-grou-se à comunidade, fez penitência pública, imposta pelaIgreja, e chegou a testemunhar a favor de todos os cristãosda sua vila, mortos pelos Boxers. Ele enumerou 49, sublinhando o alto teor da vida cristãdeles.

Pedro TchuPedro Tchu, de 75 anos, era camponês. O seu testemunhono tribunal diocesano começou assim: ‘Conheço todos oscristãos do catálogo de Yen-Tze-Keu, seja porque eles eramcunhados, seja porque fossem da nossa parentela, seja ainda

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porque eram vizinhos’. Quando ele enumera os mártires,fala da mulher, dos quatro filhos, do irmão, dos sobrinhos.No total ele enumera 31 cristãos mortos. Ele próprio, comos seus, havia fugido para as montanhas, para escapar dosBoxers. Os Boxers, quando cercavam uma vila, primeiro pilhavamas casas; depois lhes punham fogo; depois iam à montanha,para procurar e matar cristãos. Muitos, com efeito, encontra-ram a morte na montanha ou no vale. João Batista Lu Tien-Hui estima em 10.000 os Boxers que deram caça aos cristãos.Quando os cristãos se viam cercados, rezavam, recitavam orosário. Os Boxers zombavam deles, dizendo: ‘ Cessem essasorações sórdidas, vocês estão mortos’.

Foto de um Boxer rebelde

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Pedro Tang ChuenPedro Tang Chuen, camponês de 54 anos, deixa-nos este re-trato da esposa Ana Tchu: “Ana Tchu, minha esposa, era boacristã, muito melhor que eu. Ela fazia parte das Confrariasdo Monte Carmelo, do Santo Rosário, do Escapulário da Pai-xão. Todos os dias recitava o rosário. Assegurava boa educa-ção aos seus filhos. Todos os dias ela rezava as vésperas nacomunidade dos cristãos. Nunca falava mal de alguém. Ana Tchu constitui uma amostra dos cristãos dessa vila. Nãosomente eram piedosos, mas socialmente eram pessoas lím-pidas, simples, responsáveis, humanas, dignas de confiança,todas empenhadas nos trabalhos do campo.

Avó, mãe e esposa Chamado a dar testemunho no tribunal diocesano, AndréTchang diz que conhece todos os cristãos da vila, exceto al-guns de baixa idade. Entre os mártires, ele cita a mãe, a es-posa e a avó. Teresa Tchang, minha mãe, era levada à cólera. Mas, depoisque fez os exercícios espirituais em Pequim, voltou mudada.Ela levava toda a família à piedade, dizendo, todos os dias,em comum, as orações da manhã, da tarde e o terço. Duranteo mês de maio, junho e novembro, ela nos fazia rezar pelasalmas dos fiéis defuntos. Ela fazia parte da Confraria doMonte Carmelo e praticava a abstinência das quartas-feiras. Maria Tchang, minha esposa, era excelente cristã. Ela tinhabom caráter. Quando havia problemas graves em casa, nuncaa ouvi queixar-se. Ela respeitava todas as leis da Igreja. Elaera membro da Confraria do Monte Carmelo e, como aminha mãe, praticava a abstinência das quartas-feiras. Ana Lu era a minha avó materna. Ela era neófita e não co-nhecia muito da doutrina católica. Contudo guardava comestrito rigor todas as leis da Igreja. Não somente ela rezavade manhã e de tarde, mas de noite ela se levantava e, de joe-lhos, rezava o terço.

João Batista Tien-HuiJoão Batista Tien-Hui, de 27 anos, foi chamado ao tribunalem janeiro de 1915. Ele tinha, portanto, 12 anos, no tempodos acontecimentos. Depois de ter dito que conhecia quasetodos os cristãos mortos, ele recorda os dias da fuga. Com

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João Batista Tchao e João Batista Wang eles andaram váriosdias na montanha, até que se viram cercados pelos Boxers.Na estrada de volta, João Batista Wang se pôs a implorar queos pagãos o salvassem. O seu companheiro de cativeiro sevirou para ele e falou-lhe: ‘Você não tem o direito de imploraralgo dos pagãos’. A força da fé do amigo o confortou. OsBoxers mataram primeiro J. B. Tchao, depois amarraram J. B.Wang e lhe propuseram que oferecesse incenso para salvara vida. Ele lhes respondeu que não podia renegar a sua fé.Então os Boxers me pediram que me afastasse. Mataram-nolugar. Depois, tomados os corpos os queimaram.

João TchaoDiz-se que João Tchao, ainda menino, foi tomado e condu-zido a um pagode, onde tentaram ensinar-lhe uma oraçãobudista e fazer com que a repetisse. Ele, em vez disso, pôs-se a repetir a Ave Maria. Os budistas concluíram que nãoservia para nada e o mataram.

6.2 - As vilas Tcheng-Fu-Sze,Heu-Tuen, Si-Siao-Keo e Eul-puo-Tze

Vetula Sun Vetula Sun é feita prisioneira na vila de Che-Fuo-Tze e con-duzida à vila de Tcheng-Fu-Sze. Chegada à primeira portada vila, os Boxers queriam matá-la. Ela protestou, dizendo:‘Não, não é aqui que devo ser morta. Vamos mais longe’.Eles continuaram a marcha e chegaram à segunda porta. De novo os Boxers fizeram como se quisessem matá-la aí.Não, lhes disse ela; este também não é o lugar em que devoser morta. Prossigamos. Continuaram e entraram num tipode jardim. De fato era o cemitério dos padres, com grandecruz de pedra. Vetula ajoelhou-se ante a cruz e disse: Aqui, sim, disse ela,podem matar-me E de fato aí ela foi morta.

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Adelena WangAdelena Wang, de 49 anos, apresenta-se ao tribunal dioce-sano em 4 de maio de 1914. Ela vai testemunhar por umatrintena de mártires destas vilas e, entre eles, dois dos seusfilhos, uma irmã sua, dois cunhados, uma série de sobrinhos.Pode-se dizer que essas testemunhas sofreram o martírio naprópria carne e nas suas famílias. Disse ela: ‘Tenho ouvido dos pagãos da vila afirmar que ou-viram, muitas vezes, dos cristãos: ‘Eu sou cristão até a morte’.Esses cristãos, dizem eles, tem realmente coração forte; nadapode abalá-los.

Pedro Suen-Ta-Chao-eul Pedro Suen-Ta-Chao-eul era já idoso, quando foi preso pelosBoxers. Ele foi conduzido fora da porta ocidental desta ci-dade. Propôs-se a ele que apostatasse, assegurando-lhe avida. Mas ele recusou com coragem. Alguns dias antes, eu mesmo o havia encorajado a não traira sua fé. Ele havia contestado: ‘Eu, velho como sou, iria re-negar a minha fé? Não, eu nunca renegaria. No momentoda morte, eu lhe dizia, não esqueça de invocar a VirgemMaria. Não a esquecerei, disse ele. Nessas disposições elefoi morto.

Francisco Meng Francisco Meng, tinha 46 anos, quando foi testemunhar notribunal diocesano. Ele é um campônio. Entre os mártires eletem o seu avô, uma das suas irmãs, e cinco filhos dela. Na apresentação do seu avô, Pedro Suen, assim falou: ‘Oavô era o chefe da família. Quando fugimos, ele ficou guar-dando a casa. Feito prisioneiro, ele foi convidado a oferecerincenso. Ele respondeu: ‘Somos cristãos há muito tempo.Oferecer incenso? Não. Podem serrar-me. Nunca oferecereiincenso. Tenho 69 anos; não posso esperar outros 69 anos.Se lhes aprouver, matem-me’. É o que os Boxers fizeram.

Filippe Tchang Filippe Tchang centraliza o seu testemunho no caso Tchai-Koan e do seu filho. Tchai Koan foi detido por dois Boxersque o conheciam e que o entregaram a outros. Eles o convi-daram a queimar o incenso para salvar a vida. Mas era cristão

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forte; respondeu-lhes com audácia: ‘Quanto antes me matam,tanto antes vou ao paraíso. Quanto mais demoram, tantomais tarda o céu. No concernente ao incenso, não há nadaque fazer; nunca oferecerei incenso. Ouvindo isso, os Boxers o algemaram e o conduziram a umcemitério comum, onde o mataram. No caminho invocavacontinuamente a Jesus e Maria. O seu filho, Tchai-Che-Teu estava escondido. Um dia ele foia Eul-Pue- Tze. Um pagão, de nome Sii, convidou-o à sua

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casa, deu-lhe alimento e lhe ofe-receu hospitalidade. Era feliz emter esta oportunidade. Mas osBoxers, alertados pelo hospe-deiro, vieram e algemaram-no.Um dos Boxers, com um golpede lança, abriu-lhe o ventre, desorte que lhe saíam as entra-nhas. Ele também foi conduzidoa um pagode para oferecer in-censo aos ídolos. Ele recusou.Então o conduziram ao cemité-rio, onde o pai havia sido morto.

Aí, quase no mesmo lugar, o filho é trucidado. Enquanto eraconduzido à morte, não cessava de dizer: “Jesus, tenha pie-dade de mim. Santa Maria, salve-me”. Para tornar mais solenea execução, os pagãos haviam pedido alguma música.

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7.O martírio dairmã Filomena Tchang

Esta narrativa vem da testemunha Luís Che, de 48 anos, funi-leiro de profissão. Apresenta-nos, visto de perto, o caso deum martírio repleto de ressaltos, onde se tecem juntamentemisericórdia, amor, fidelidade e entrega da vida. Este mergu-lho em caso concreto permite apanhar certos aspectos daperseguição que habitualmente nos escapam.

No concernente à virgem Filomena Tchang, ou Irmã de SãoJosé, na proporção em que a minha memória acerta, recordoque ela foi detida pelos Boxers antes do amanhecer. Ela re-cebeu golpes de lança e de espada na cabeça e no pescoço.Os Boxers a abandonaram como morta diante da igreja in-cendiada de Tong-Tang. Ao raiar o dia, as pessoas do lugar a levam para dentro daigreja, lhe tiram as roupas e se preparam a queimá-la, amon-toando lenha sobre o corpo. Mas, de fato, eles a deixamneste estado. Ela sai do monte de lenha; com dificuldade sepõe de pé, escondendo o seu corpo contra a parede da igrejacomo para proteger a sua dignidade. A cena atraiu pessoasao seu redor. Não faltaram os que zombavam dela. Um senhor de idade, pagão que morava ao lado da igreja,vendo-a naquele estado, protestou contra o grupo: “Quemde vocês, tendo uma irmã jovem em tal situação, aceitariaque fizessem o que estão fazendo contra ela”? Arrumou al-guma roupa para cobri-la. Deu-lhe uma bengala com que seapoiasse, porque os graves ferimentos de pernas e pés lhetolhiam o andar.De tarde, impelida pela sede, ela tentou achegar-se a umpoço para beber, mas os pagãos do lugar não deixaram. Só àmeia-noite, quando não havia ninguém, conseguiu beber.Algum passante deu-lhe alguns pepinos preparados que elacomeu.

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No terceiro dia, alguns indivíduos lhe ataram as pernas e aarrastaram pelas ruas da cidade, para deixá-la semimorta emvia central de Tong-Tang.Nesse dia, passei perto da igreja; ouvi homens falando deuma mulher que jazia na rua. Entendi logo que se tratava dealguma católica ou protestante. Fui ver. Discretamente per-guntei-lhe o nome. Ela não respondeu. Perguntei se era ca-tólica ou protestante. Ela nada respondeu. Vendo isso, trateide encorajá-la; disse-lhe que não havia Boxers, acrescen-tando: “Sou homem honesto; só penso em salvá-la”. Aí, sim,ela me disse que era católica, que se chamava FilomenaTchang. Perguntando, encontrei um vizinho que era da fa-mília dela. Esperamos a noite. Pensei em alugar uma carrua-gem, mas em tal hora já não havia. Era preciso ajudá-la aandar. Pôs-se de pé, valeu-se da bengala e, segurando-a pelobraço, pusemo-nos a caminho. Deparamos com guardas no-turnos. Queriam saber aonde iria com esta mulher. Tive umasinspiração diplomática: “Hoje encontrei esta mulher que meé desconhecida. Tive pena dela, não importa que seja solteiraou casada. Quis salvá-la. Caso pensem que não estou agindobem, deixo-a aqui e se ela morrer, já não serei responsável.Sou soldado e tenho coisas urgentes que fazer”. Os guardasviram a minha farda e acreditaram que as minhas intençõeseram corretas. Então lhe revelei o meu nome verdadeiro. Ela me havia pe-dido, quando estávamos com os outros na praça, mas eunão lhe dei o meu verdadeiro nome. Chamo-me King, eulhe disse, é nome tártaro. Eu sou King Che. O padre Che,que foi cura da paróquia de Nan-Tang, é parente nosso. Seduvida, veja esta medalha que escondo na caixinha de ta-baco. Filomena pegou da medalha. Era da Santíssima VirgemMaria. Ela pôs-se a chorar.

Somente então ela teve plena confiança em mim. Até aíguardava certa desconfiança; no começo havia preferidomorrer a vir comigo. Ela falou: ‘Hoje, enquanto eu jazia naestrada, havia-se confiado a Nossa Senhora; eu lhe pediraque eu morresse, ou que ela enviasse alguém para me salvar.É o que a Virgem Maria fez’. Eu confirmei. Disse-lhe que elaestava certa em dizer que Nossa Senhora me enviara. Comefeito, eu não tinha nada que fazer deste lado; até nem sei

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por que tomei esta estrada nem por que me pus a ajudá-la.Depois de bom tempo, chegamos a uma grande via. Ela mepediu de beber. Perto havia um poço com uma bilha de ma-deira e dei-lhe de beber. Prosseguimos por uma ruela, masnão demorou que ela me disse que não podia mais caminhar.Então falei-lhe: “Vou levá-la nas costas. Somos jovens ambos;você considere-me irmão e eu a considero irmã”. Ela aceitou.Levei-a até a minha casa. Encontrei a casa vazia, todos ha-viam fugido. Coloquei-a na porta. Saltei o muro e abri pordentro a porta. Dei-lhe um pouco de água e preparei algumacomida. Como não havia mulher, eu próprio lavei-lhe o rosto.Tinha as orelhas cheias de sangue.e terra, os cabelos estavamcolados pelo sangue coagulado. Dei-lhe alguma roupa con-dizente. No dia seguinte, muito cedo, fui à casa do avô, onde a minhamãe se refugiara. Pedi que viesse à minha casa e cuidasse da

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filha. A mãe me disse que não o faria, porque em dois outrês dias todos estariam mortos. Ela tinha ouvido dizer quetodos os cristãos chineses que se refugiassem na Legação se-riam aceitos. Perguntou-me se eu queria ir com eles. Nemvivo, nem morto, irei à Legação, respondi. A mãe me ordenouque eu aceitasse dinheiro, frutas, alimento, que passasse nafarmácia para comprar remédios e que tentasse convencer afilha para salvar-se na Legação com os demais.Retornando à casa, pus Filomena a par de tudo. Ela recusouir à Legação. Aqui, diz ela, temos paz, lá com tantos homens,há muito barulho. Como me poderia cuidar? Se os Boxersvierem, tu deves fugir e não pense mais em mim. Estou prontapara o martírio; se for da vontade de Deus, então viverei. Re-zamos as orações da tarde juntos.Retornei à casa do avô, que encontrei vazia. Todos foram re-colher-se à Legação. Nesta mesma noite, começou a guerra.

Ouviam-se os tiros de fuzil e de ca-nhão.No segundo dia em que eu me en-contrava com Filomena, três homensentraram na casa e pediram dinheiro.Eu não queria dá-lo. Mas Filomenaachava que era melhor dar-lho, paraevitar alguma desordem na casa, oque atrairia os Boxers. Assim, dei-lhesalgum dinheiro. Os pedintes saíram,costeando a parede do jardim.

Os três que receberam o dinheiro voltaram com outros seisou sete da mesma laia. Vieram pelo jardim e dialogaram as-peramente conosco.– Que vais fazer com esta pessoa doente?– Aonde querem que eu a leve?– Não é da nossa conta. Vocês têm de abandonar imediata-

mente esta casa..– Permitam que espere a noite para levá-la a outro lugar.– De forma alguma, não há tanto tempo. – Pelo menos deixem que vá contratar um serviço de car-

ruagem para levar a enferma.– Não. Queremos que deixem a casa de imediato.

Vendo que nada podia obter deles, fui ter com Filomena,que tudo havia escutado. Temos de sair e não tenho para

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onde levar a enferma. Mas eu conhecia certo lugar próximoonde os europeus faziam alguma parada. Vou deixá-la aí atéque encontre algum lugar. Ela concordou em tudo. Prepareium lugar debaixo de uma árvore. Retornando à casa, parabuscar Filomena, encontrei-a fechada a chave. Os homensque nos enxotaram se consideravam donos da casa.Então, um cocheiro de família tártara, chamado Fong-Tchang-Eul, que me havia ajudado a levantar a jovem, perguntou-me:– Quem é esta mulher?– É parenta minha distante.– Não é a mulher que ficou dias na rua?– É ela.– Pois bem, escute. Somos amigos há muito tempo. Permita

lhe dê um conselho para que se salve. Se a pessoa fossehomem, seria mais fácil encontrar casa; mas é mulhercheia de ferimentos. Onde você vai escondê-la? Você,que é moço forte, vai despertar suspeitos nos Boxers. Fuja.

– Trouxe esta mulher da rua até aqui; há oito dias que meocupo dela; agora você quer que eu a abandone? Issonão posso fazer.

– Claro que compreendo. Mas pense que outra solução nãoexiste. Pelo fato de uma pessoa ter de morrer não quer di-zer que outra também deve morrer. Fuja enquanto hátempo. De noite pode vir vê-la, trazer comida e esperarna vontade de Deus.

Filomena estava muito perto e tudo ouviu e ia ponderando:“Agora compreendo que apenas me resta o caminho do mar-tírio. Você não deve mais ocupar-se de mim. O que já fez ul-trapassa o que você deveria ter feito, eu lhe fico plenamentereconhecida. Parta. Deixe-me. Vamos encontrar-nos no céu.Saia agora e cuide de não renunciar à sua fé.Eu saí. Por horas andei pelas ruas. De noite, por outro cami-nho, fui ver Filomena. O luar me fez ver uma sombra. “Filo-mena ainda está aí”, pensei. – Sou eu, eu voltei, disse-lhe. Mas ela com a cabeça no

tosco travesseiro, perguntou:. – Quem é você?– Que aconteceu? Há pouco nos despedimos, e você não

reconhece a minha voz?– Depois da sua saída, muitos homens vieram. Queriam jo-

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gar-me nalgum poço. Atiraram-me tijolos ou pedras. Tenhooutra ferida grave na testa. Perdi muito sangue. Não estoumuito consciente. Pouco posso compreender.

– Quer que lhe traga alguma coisa? Queres comer?– Nada desejo. Não tenho fome. Tenho sede. A bilha em

que você me preparava o chá está cheia de terra.Fui ter com o guarda noturno da via pública; pedi-lhe umpouco de água, depositei-a perto de Filomena. Tentei con-solá-la, prometendo retornar e levá-la alhures, se me fossepossível. Fui ao refúgio do meu irmão e lhe pedique recebesse Filomena. Ele recusou,porque o dono da casa, pagão, nuncareceberia uma mulher ferida. No diaseguinte, vi o dono da casa. Ele foi ca-tegórico. ‘Você eu posso receber, masnunca a mulher ferida’.Tornei a partir. Dirigia os passos parao lugar onde estaria Filomena, Na via,um vizinho, pagão, me parou. ‘ Aondevai? A sua irmã está morta. Não vá,que eles o estão esperando. Os Boxersvieram de noite. Pegaram-na e atiraram-na numa casa deeuropeu, já queimada. Atiraram sobre o corpo trapos e velhocolchão e puseram fogo. Sobre os restos jogaram tijolos epedras’.Essa mesma versão dos fatos me foi contada, em termosquase idênticos, pelo guarda noturno que me havia dadoágua. Ele me disse que o corpo fora coberto de terra e tijolospara que não fosse profanado.

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8.O martírio da família Yun

Matias Yun, de 49 anos, farmacêutico, foi convocado ao tri-bunal diocesano em 5 de fevereiro de 1914. Por ocasião dosacontecimentos, ele tinha 35 anos.

Devo, eu também, contar o que aconteceu à minha esposa eàs duas filhas. Em 14 de junho de 1900, a minha esposa seconfessou com o padre Garrigues; em 15 de junho, pela ma-nhã, ela assistiu à missa e comungou. De tarde, a igreja deTong-Tang foi entregue às chamas.Em 16 de junho, abandonamos a casa e procuramos algumrefúgio em Pequim. Mas os Boxers montavam guarda nasportas. Uma multidão de pagãos se pôs a seguir-nos, gritandoque iriam alertar os Boxers. Mas nada fizeram. Chegamosperto de um lago que, naquele ano, por causa da longa seca,estava sem água. Numa margem escarpada, certa mulher es-tava assentada com um pobre menino nos braços. Com-preendi que era mãe cristã. Estávamos escondidos nos juncos.Eu lhe disse: ‘ O ponto não é conveniente para nos escon-dermos todos aqui. Ou nós ou você, alguém terá de deslo-car-se’. Ela levantou-se e, sem dizer uma palavra, foi sentar-se trinta metros afastada.Vendo que a multidão de pagãos aumentava, deixamos onosso refúgio e, de novo, tentamos ir a Pequim. Vagamostodo um dia e deparamos com os Boxers na guarda dasportas onde pretendíamos refugiar-nos. Vagamos sem nuncaparar, para não despertar suspeitas. Por fim, retornamos aosnossos caniços na escarpa do lago seco, onde passamos anoite. As nossas duas filhas nunca choraram.No dia 17 de junho, pelas seis horas, os Boxers chegaram.Arrastavam consigo muitos cristãos, amarrados em conjuntode dois ou de três. Mataram dezoito, em momentos diferentes.Todos aqueles que eram interrogados também eram execu-tados. Os cristãos não diziam palavra. Vi uma criança desete ou oito anos chorando à vista dos mortos.

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Os Boxers faziam-sepassar por soldadosde sentimentos reli-giosos. Obrigavamos pagãos, que vi-nham contemplar oespetáculo, a que seajoelhassem, aplau-dissem e gritassem:Bem feito!Depois da execuçãodos cristãos, namaioria mulheres ecrianças, cinco Bo-xers se puseram aexaminar os caniços.

Encontraram outros cristãos. Um deles gritou ao comando:“Chefe, há cristãos por aqui”. Pelo acento idiomático, calculeique provinha da região de Ting-Sin-Hsien. Claro, chegaramao ponto em que estávamos. Primeiro, abordaram o escon-derijo da minha esposa, que tinha a filha mais velha nos bra-ços. Um Boxer feriu-a na cabeça e lhe cortou a mão. Quandome acharam, eu tinha a filha mais nova nos braços. Pedi àmenina que invocasse Maria. Ela não me entendeu bem edisse Cheng Mu, isto é, Mãe de Deus. Aí o Boxer nos feriu, aela e a mim, mas o golpe não era profundo. Deram-nos pormortos e nos deixaram. Então sobreveio uma grande multidão de pagãos que, to-mando-nos por mortos, diziam o seguinte: “Olhem as crian-ças; estão mortas, e ainda sorriem. Reparem como se pare-cem aos europeus. E passaram a maldiçoar-nos. De fatovocês merecem a morte. Se não houvessem sido eliminados,na oitava lua estariam prontos para a insurreição e para a re-volta. Há tempo que deveriam ter sido mortos. Se tivessemsido pessoas honestas, alguns se ocupariam de vocês; masforam maus, pelo que ninguém se interessou por vocês. Jesus,salve-nos, vocês diziam; mas ele não os salvou. Parecem chi-neses, mas vocês cometeram as torpezas dos europeus e ascrianças se parecem a europeus”. Ao cair da tarde, quando todo o mundo tinha ido embora,perguntei à minha esposa:

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– Como está?– Muito mal. – Como sofre muito, invoque a Virgem Maria.Ela pôs-se a rezar, mas a voz era muito fraca. – Eu vou à porta Teng-Cheng-Men em busca de alguma car-

ruagem. Não tenho certeza de retornar. Nada encontrei,mas consegui voltar. Falei à esposa do meu insucesso. Ex-pliquei-lhe que não era prudente que ficássemos juntos.Tornei a encorajá-la a invocar a Virgem Maria. Ela o fez.Era mulher fervorosa. Nunca a ouvi falar mal de alguém.Aí me afastei alguns metros nos caniços. Exausto, caí edormi toda a noite até as seis horas do dia seguinte.

Pelas seis horas os Boxers retornaram. Vendo que havia ape-nas três corpos, exclamaram: ‘Vejam, falta um. Ou fugiu ouJesus o salvou.

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Havia uma multidão imensa e soldados. Um deles desem-bainhou o sabre e feriu a esposa no rosto diversas vezes. Ela,porém, não morreu. Um outro sugeriu que a esmagassemcom grande pedra. Alguns foram procurar a pedra, que dei-xaram cair sobre as pernas dela. E a tomaram por morta. Epartiram. Ela, porém, ainda estava viva. Os piores deles in-sistiram em que ainda faltava um corpo. Puseram-se a pro-curar; mas não me encontraram e foram embora. De tarde, tornei a ver a esposa pela última vez. Ela ainda vi-viva; mas as feridas estavam cobertas de vermes. Perguntei,mas ela não falava. Reze à Santíssima Virgem. Fez sinal afir-mativa com a cabeça. Aí eu parti e nunca mais tornei a ver aesposa.

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9.A hecatombe dos pequenos

Todos esses mártires fazem parte das vítimas das vilas próxi-mas de Pequim: Tsiao-Kia-Puo, Wang-Tsuen, Tang-Ko-Puo,Tsao-Ko-Tchuang, Pai-Tsao-Wa e Tung-Liu-Coei. Esses már-tires são campônios desarmados e que sofreram a violênciados Boxers. Quando os pagãos nos viam fugir na região das montanhas,nos diziam: “Voltem. Por que fugir, se não fizeram mal aninguém”?. Respondíamos que nos era impossível viver nesselugar. Cinco ou seis dias antes de 19 de junho, dia em que chega-ram os Boxers, grande número de pagãos vieram para pilharos nossos bens. No dia 19, os Boxers encontraram algumaresistência e se retiraram. Mas os cristãos dessas vilas com-preenderam que não poderiam defender-se por muito tempo.Pensaram em colocar em segurança as mulheres e as crianças.Primeiro, pensaram em levar mulheres e crianças às monta-nhas. Aí, porém, não havia nem abrigo nem água. Então pro-curaram uma gruta muito espaçosa e aí levaram mulheres ecrianças. Era a gruta Che-Pang-Tang. Em 20 de junho, antes do nascer do sol, em todos os cami-nhos e sendas da montanha vimos chegar os Boxers. Aregião da montanha contava com bastante cobertura vegetal.Os cristãos se puseram a fugir em todas as direções, embusca de esconderijos.

Eu e um cristão, de nome Suen, nos perguntávamos ondeencontrar refúgio. Decidimos ir a uma gruta que conhecía-mos. Na estrada, outro cristão se juntou a nós; mas achou agruta pouco segura. Prefiro, diz ele, morrer na montanha amorrer nesta prisão. Ele prosseguiu na rota da montanha. OsBoxers o viram, o perseguiram e lhe golpearam o pescoço eele caiu morto.Perto daí os Boxers encontraram uma mulher cega de 60anos. Ela não era nem catecúmena. Não sendo ainda cristã,

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pensava que os Boxers não a matariam. Ela também segueos europeus, disseram. E a mataram. Ela não cessava de re-petir: Cheng Mu, isto é, Mãe de Deus. Depois vimos os Boxers descendo da montanha: eles tinhamapanhado rebanho bovino de um cristão. Quanto a nós, en-tramos na gruta. Eu sabia que nela havia água. Levava comigofuzil e revólver. Caímos em sono profundo. Quando acorda-mos, era impossível saber a hora, por causa da escuridão dagruta. Fomos até a entrada, que havia sido fechada com pe-dras. Por uma fissura pudemos ver a luz do sol. Não ousamos

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sair, pensando que houvesse ainda pagãos. Pouco depois,escutamos conversas. Há na gruta dois homens, dizia alguém,um com fuzil e outro com lança. É perigoso entrar aí. Ontem,dizia outro, roubei um saco de favas na casa de um cristãode nome Tsiao. Eu, falou outro, roubei um pouco de trigo;ocorre que eu não me havia prevenido de saca. Uma voz,aparentemente de velho, falou assim:– “Eu não roubei nada. Esses cristãos devem tomar medica-

mentos dos europeus. Exceto a velha Wang, que gritou‘mamãe’, todos os outros parecem felizes de morrer”. Ascasas dos cristãos foram pilhadas e entregues às chamas.Na pilhagem todos os rebanhos dos cristãos e os porcosque eles possuíam foram tomados. Ouvi dizer ainda:

– Fechemos a entrada da gruta com pedras sólidas, de modoque eles não possam sair e morram de fome. Um outro,porém, discordou.

– Vamos embora. No vale não há mais ninguém. Se dois outrês cristãos vêm, podem fazer-nos algum mal. Vamos,quando chegarmos a casa, já não haverá sol. E foram.

Então dirigimo-nos à entrada da gruta, retiramos algumaspedras e saímos pela abertura. Fomos andando para o lugarem que na véspera havíamos deixado mulheres e crianças.Encontramos um corpo, era Tsiao-Yu, de 80 anos. Suen, po-rém, não quis continuar. Eu me aproximei da gruta e daípodia ver o vale. Era juncado de corpos brancos. Tinha cho-vido; a chuva embranquece os corpos. Havia sangue portoda a parte. Aproximei-me dos mortos; eu tinha os pés co-bertos de sangue. Entre os corpos ouvi uma voz que gemia. Aproximei-me;tirei o corpo de cima dela. Não reconheci o rosto de quemgemia, tamanho era o seu complexo ferimento. Falei:– Quem é você?– Sou Wang-Eul, a mãe.– Há dois Wang-Eul. De que família é você?– Sou da família Tsiao. E quem é você?– Sou um parente seu. Como fizeram para abrir a gruta?– Não sei como puderam abri-la. Recordo que nos sufocá-

vamos na fumaça insuportável. Depois, desceram na grutacom lanternas e com lanças recurvadas. Fizeram-nos saire nos pediram que ajoelhássemos. Uma vez todos fora,eles nos questionaram.

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– Será que falta alguém? A isso respondemos:– Ninguém está faltando. Estamos todos aqui. Aí disseram:– Vocês todos, da família Tsiao, não são pobres. Tragam para

cá as suas joias. Entregamos-lhes também os pendentesdas orelhas. Depois eles acrescentaram:

– As suas roupas também. Claro, hesitamos. Mas reiteram aordem dada. Entregamos-lhes as roupas externas. Elesqueriam também as roupas íntimas. Aí os protestos se am-pliaram.

– Preferimos ser mortos a nos desnudar. Não adiantou. Elesnos arrancaram à força as nossas roupas de baixo. Eu per-guntei à voz que gemia e que me falava se eles não leva-ram nenhuma mulher. Ela me disse que foi apenas MariaTchang, sua prima. Perguntei onde estaria ela. A voz medisse que não sabia. Ela me pediu que eu a salvasse.

Como poderia eu salvar a pessoa que me falava, se ela estavaà morte? Toque o ventre, eu lhe disse, você tem as entranhasde fora. Implore a Virgem Santíssima. Vamos encontrar-nosno céu. Eu não estou certo de poder escapar. Como a vozme dissesse que estava com frio, retirei alguns trapos deoutros corpos e a cobri. Eu a convenci de que era melhornão me chamar e se confiasse a Nossa Senhora e se manti-vesse em silêncio. Ela fez sinal afirmativo. Eu parti e nuncamais a vi.Esperamos a noite. Depois, com o outro cristão Suen, fugimospara Sang-Yii, onde ficamos até que passasse a tormenta Bo-xer. Nenhum cristão apostatou. As mães instavam as criançasa se manterem firmes. “Está pronto a morrer’? A criança con-testava: ‘Sim, estou. De igual modo, os adultos encorajavam-se: ‘Ninguém de nós renegue a sua fé. Vamos encontrar-nosno céu’. A maioria dos cristãos foi morta no dia 20 de junhode 1900.

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10.Os mártires dos Missionários Lazaristas

10.1 - O Rev.Pe. Jules Garrigues

Em 23 de junho de 1840, o Pe. JulesGarrigues nasceu em Saint-Sernin deGourgoy, na diocese de Albi, Tarn,França. A sua família contava sete filhos,três dos quais mortos em tenra idade.As duas filhas e os dois rapazes, todos,se fizeram religiosos. Jules era o último. Em 6 de outubro de 1866, Jules emitiuos votos na Congregação dos Padres Lazaristas. Em 15 de junhode 1867, foi ordenado sacerdote em Paris. Em 27 de 1868, elepartiu como missionário para Pequim e chegou em 28 demarço de 1868. Durante muito tempo, ele foi pároco daigreja de Tong-Tang em Pequim. Em 14 de junho de 1900,perto da igreja em chamas, ele foi chacinado pelos Boxers.Fora missionário por 32 anos e morreu com 60.

Testemunhos

Os testemunhos que provêm das pessoas chamadas ao tri-bunal diocesano de Pequim são largamente suficientes paramostrar a personalidade extraordinária deste missionário. Elefoi asceta extremamente humano.

Tomás Yen-Sung-ChaoA testemunha Tomás Yen-Sung-Chao, de 62 anos, da paróquiade Tong-Tang, paróquia oriental de Pequim, exerce a profissãode comerciante. Ele próprio perdeu quase todos os membrosda sua família nessa perseguição. Ele fala assim do Pe. Gar-rigues: “Eu também conheci o reverendo padre Jules Garri-gues, cuja caridade era extraordinária. A sua virtude era evi-dente para o olhar de todos”.

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José Ning Cheu-TchenTestemunho de José Ning Cheu-Tchen, da mesma paróquia:“Jules Garrigues era sacerdote excelente. Ele tinha bom ca-ráter. Era simples, amava o silêncio, falava pouco. A sua ali-mentação era simples. Praticava a mortificação e se privavade carne. Ouvi dizer que o reverendo padre Jules Garriguesfoi reconhecido por dois jovens Boxers, que gritaram: ‘Eisum velho diabo”. Os europeus eram chamados diabos; ossacerdotes eram ‘grandes diabos’. Eles, dizendo isto, o mata-ram. Este sacerdote era muito bom. Ele é certamente dignode ser canonizado”.

Filomena ShuTestemunho de Filomena Shu: “O rev. sacerdote Garriguesera homem excelente, brando, humilde. Na confissão elesabia encorajar os cristãos de maneira extraordinária. Quandoalguém negligenciava a missa de domingo, ele o impedia dereceber a comunhão. Queria, desse modo, que os cristãosnão negligenciassem o domingo. No púlpito exortava os cris-tãos a se aproximar mais vezes da comunhão ou a assistir àmissa. Encorajava sempre a comunhão frequente. No co-meço, nas homilias, ele tinha o hábito de render graças aDeus ou de pedir a paz. Não há cristão que não fale dassuas virtudes. Ouvi o rev. padre Barthélémy louvar a mansi-dão e a paciência de Garrigues. Muitos cristãos diziam queele estava cheio de caridade para com todos, sobretudo paracom os mais pobres. Ele praticava a mortificação no vestir esobremodo na alimentação”.

Irmão marista Marie Nizier “Quanto ao padre Garrigues, tive sempre para com ele muitoalta estima. Sempre o considerei como santo. Entre nós, Irmãos,o chamávamos ‘Cura d’Ars’. Eu, pessoalmente, quando sentiaalguma depressão, ia a Tong-Tang e retornava restaurado”.

Matias YunMatias Yun, de 49 anos, foi convocado ao tribunal diocesanoem 5 de fevereiro de 1914. Ele tinha 35 anos no deflagrar daperseguição. Em primeiro lugar ele fala do padre Garrigues:“Conheci o padre Garrigues e muitas vezes me confesseicom ele. Falávamos de catecúmenos. Ele gostava de trabalharna conversão dos pagãos. Muitas vezes, pediu ao meu pai e

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a mim que procurássemos candidatos catecúmenos. É o queeu fazia. Garrigues era sacerdote verdadeiramente fervoroso.Nas suas relações com os cristãos, fazia prova de grande ca-ridade; nunca se mostrava importunado, quando os cristãosvinham vê-lo ou consultá-lo. Todos os dias, depois da missa,íamos ter com ele. Ele nos acolhia com alegria e nos encora-java. Antes do incêndio da igreja, quando os cristãos experi-mentavam o seu temor, vinham a ele em busca de encoraja-mento. Tinha o hábito de dizer: ‘Como vocês são medrosos’.Em termos e martírio, repetia ele, num minuto tudo está ter-minado. São palavras que foram ditas, por exemplo, à minhaesposa, quando ela se confessava. Muitos cristãos tornavama dizer isso.

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A igreja de Tong-Tang foi incendiada em 15 de junho. Opadre Garrigues se salvou pela porta meridional e se escondeuem lugar não distante da igreja. Na noite de 17 de junho, foivisto caminhar perto do pagode de Luong-Fu-Sze. Pagãos dolugar o viram e disseram: ‘Eis um grande diabo europeu’.Mas outros disseram: ‘Não; é um missionário que ensina areligião’. Os pagãos que tinham lojas no lugar saíram de todaa parte. Um homem, originário de Chantung, veio empu-nhando um utensílio de madeira e matou o padre, dando-lhegrande golpe na cabeça. Outro chegou com instrumento deferro, um daqueles que servem para reavivar o fogo e o feriutambém. O corpo do padre presume-se que foi queimado”.

Pedro KaoPedro Kao é relojoeiro de 48 anos. Eis o que disse ao tribunalem favor do padre Jules Garrigues: “Conheci muito bem opadre Jules Garrigues. Ele não tinha defeito. Entre os missio-nários, ninguém fazia mais penitência do que ele.. Nas sex-tas-feiras, contentava-se com um pouco de queijo. Com elehavia sacerdotes chineses; eles ficavam longe das suas mor-tificações. A sua caridade era sem igual. Ele não comia quasenada. Ele dava o seu dinheiro aos pobres. Ele lhes dava atéparte da própria roupa. Era de tal modo pobre, que o interiorda sua casa era nu, sem ornamento. Ele escutava as confissõesde maneira muito atenta; depois fazia observações sobrecada mandamento, sobre o respeito das leis da Igreja. Aquelesque vinham confessar-se sem verdadeira contrição, depoisdas fervorosas exortações, sentiam-se levados ao arrependi-mento. Os seus exemplos eram tão evidentes, que ficavamna memória de todos”.

Teresa HeuTeresa Heu era uma das empregadas das Irmãs de São José.Ela foi testemunha do martírio de algumas delas. No seu tes-temunho ela afirma que uma das Irmãs foi crucificada contraa parede, pés e mãos pregados. Um Boxer, vendo-a nesta con-dição, transpassou-lhe o lado com a lança e assim ela morreu.Quando Teresa Heu foi chamada ao tribunal, em 20 de abrilde 1914, ela tinha 52 anos. Do padre Garrigues ela disse: “Eletinha muito bom caráter, paciente, manso. Para mim, ele nãotinha nenhum defeito. Possuía verdadeira piedade”.

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Irmã Paula TchangIrmã Paula Tchang foi uma Irmã de São José. Ela tinha 58anos, quando se apresentou ao tribunal. No começo do seutestemunho, ela traça o quadro do padre Jules Garrigues:“Ele era o nosso pároco em Takeu. Dei-me conta de que eraum pastor muito piedoso. Ele rezava em todo o tempo. Erarespeitoso das regras e dava constantemente esmolas. Ouvidizer muitas vezes que também dava das suas roupas. Tinhaum vigário para auxiliá-lo; mas este queria ocupar-se apenasdas Irmãs de São José; Garrigues, em nome da paz, deixavaque assim fizesse”.

Irmã Luísa DucurtyTestemunho da Irmã Luísa Ducurty, de 71 anos, Filha de Ma-ria. “O padre Garrigues era um santo missionário. Eu melembro de que o bispo Delaplace, em conferência, nos deuo padre Garrigues como modelo de humildade, não com-preendia que não se tivesse alguma consideração por ele.No concernente à sua caridade, bastava que um cristão viessepedir-lhe esmola, para que ele atendesse. Sempre que lheapresentavam algum presente, ele o punha de lado, e come-çava a falar dos catecúmenos por converter”.

José LyEis como o vê o relojoeiro José Ly, de 49 anos. Esta testemu-nha teve grande número de membros da sua família chaci-nados. Ele era da família dos Shu, cujo pai e um dos seus ir-mãos eram catequistas na paróquia de Tong-Tang, aquela dopadre Jules Garrigues. “Conheci muito bem o padre JulesGarrigues. Era homem de ótimo caráter, que demonstravapara com os pobres grande atenção. Nunca se incomodava,pelo contrário tratava todo o mundo com brandura. Muito oconheci, porque fiz os meus estudos na escola da paróquia.Apesar do muito barulho que fazíamos, ele ficava muitocalmo”.

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10.2 - Rev. Padre Maurice Charles Pascual DoréPÁROCO DA PARÓQUIADE SI-T’ANG

Maurice Charles Pascal nasceu em 18de maio de 1862. Terá assim 38 anos quando é morto, emPequim, sob a perseguição dos Boxers. Na ficha que traz os nomes dos márti-res da paróquia de Si-t’ang, encontramos as informações se-guintes :– É membro da Congregação da Missão (Lazarista).– É pároco dessa paróquia. – É filho de Pascal e de Elisabeth Thyriet. – Foi morto na igreja de Si-t’ang, em 18-19 da 5ª Lua, 14-15

de junho de 1900. – Mais adiante, observamos que dez outros cristãos foram

mortos nessa igreja, na mesma data. – O incêndio da igreja aconteceu no dia 14 de junho de 1900.

Testemunhos

Paul Souen  Testemunho de 24 de fevereiro de 1914. Este testemunho éo mais rico e o mais longo.Paul Souen é um homem de 29 anos, é comerciante de pro-fissão. Diante do tribunal, diz que conhece bem o Pe. Mau-rice Doré :« Ele tinha um caráter irascível, mas tratava bem os cristãos eera consciencioso no cumprimento de seu trabalho sacerdotal.Gostava de dirigir o canto das crianças, na igreja, e ensinava-lhes a tocar órgão. Eu mesmo aprendi, graças ao Padre, a tocarharmônio.» Paul Souen conta também como o Padre Dorévolta de Pé-t’ang, onde teria podido encontrar um lugar seguro,e como ele fecha todas as suas armas: fuzil, pistola, baioneta,…num pequeno quarto, passando a chave.“Por ocasião do incêndio da igreja de Si-t’ang, não houve ne-nhuma resistência da parte dos cristãos… O Pe. Doré diz a seuempregado Yang Jean (cunhado de Paul Souen): “Não vou usar

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o meu fuzil. Não podemos escapar de suas mãos e não teríamosnenhum mérito em morrer assim.” Então pegou seu fuzil, suapistola, uma espada, uma armadura de metal para os dedos efechou-os num quartinho, e não os tocou mais. Sobrava umfuzil que o empregado Yang lhe pediu e levou para sua família.Dois ou três dias antes do incêndio da igreja de Si-t’ang, oPadre Doré se tinha refugiado em Pé-t’ang. Mas, ali passouapenas uma noite, e depois voltou, porque seu bispo lhe dissera:“Teu lugar está entre teus cristãos para sustentá-los e encorajá-los!” Ele considerou isso uma ordem: “Eis o que quer meubispo e eu lhe obedeço”. Então ele preparou-se para a morte; colocou de lado o fuzil, le-vou consigo uma tesoura e um pequeno espelho, para cortar abarba, de modo que os Boxers não pudessem agarrá-lo e puxá-lo pela barba. No dia 14 de junho, de noite, eu não estava naigreja, porque o Padre me dissera de vir de manhã para servir amissa, mas que, à noite, voltasse e estivesse com minha família.Nessa noite, em torno da meia-noite, ouvi grandes gritos narua. Saí para ver e vi a igreja toda entregue às chamas. Não vimais do que isso, mas pagãos me disseram que o Padre Doréfora preso, que teve tempo para tocar o sino duas ou três vezes,o que eu ouvi distintamente, que depois ele fora morto na portada paróquia. Depois de morto, seu corpo foi atirado na igrejaem chamas… Seu empregado, Yang Jean, lhe havia proposto deconseguir-lhe uma carruagem para poder salvar-se em algumadelegação. Ao que ele lhe respondeu: “Isso jamais! Eu vou ficaraqui e que se faça a vontade de Deus!»

Etienne LouÉ um cristão de 64 anos. Confirma, quase em tudo, o teste-munho precedente. Ele recorda como o Padre Maurice Dorétinha ido a Pé-t’ang para refugiar-se e que o bispo lhe lembrouque deveria ficar com seus fiéis para animá-los e reconfortá-los, especialmente nesse momento tão difícil. A isso obedeceuimediatamente. É ainda esse testemunho que faz constarcomo os cristãos tinham feito compreender ao Padre quetoda resistência seria inútil. O Padre lhes havia respondidoque pensaria nisso e que eles pensassem na própria vida enão mais se preocupassem com ele. Essa testemunha diztambém que o Padre estava no campanário da igreja quandoo incêndio começou.

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Jean Yu HaiTestemunho do dia 29 de junho de 1914.Jean tem 48 anos quando dá seu testemunho. Antes, ele forasoldado da família imperial. Esta testemunha diz ter visto ocorpo queimado e enegrecido do Padre Maurice Doré, sobos escombros da igreja de Si-t’ang que fora incendiada. Atestemunha não pôde reconhecê-lo, mas os vizinhos lhe dis-seram que se tratava de um europeu.

Joseph Tsinn TsiennTestemunho do dia 29 de junho de 1914.Esta testemunha de 44 anos, era filho de um mandarim tár-taro. Ele recorda que a igreja de Si-t’ang tinha sido queimadano dia 14 de junho de 1900. Para o pai ele diz: “Eu vi ocorpo do Padre Doré, a parte anterior do busto, sob os es-combros de tijolos e tábuas do campanário desmoronado.Podia-se ver as pernas pretas por causa das queimaduras. Vitambém um mendigo pegar e comer da carne das pernas.”

Tchang Joui TcheEsta testemunha é um comerciante de 40 anos. Lembra-sedo Padre Doré como sendo um homem alto e pessoa de pie-dade. “Vi o corpo do Padre Doré que jazia sob os escombrosdo campanário desmoronado. Reconheci-o muito distinta-mente. Restava uma parte da barba e dos cabelos que não ti-nham queimado. Reconheci-o bem, porque o havia vistomuitas vezes.”

Jean YangEsta testemunha tem 35 anos. É cunhado de Paul Souen (oprimeiro desta série de testemunhas). Jean Yang era empre-gado do Padre Doré. Dizia que esse Padre se encolerizavafacilmente mas, para tudo quanto era referente a seu trabalhode sacerdote, era um homem zeloso. Quando era chamadopara uma extrema-unção ou para a confissão, atendia ime-diatamente, sem importar-se de suas refeições. Reparei queele tinha um defeito: antes de rezar a missa, tinha o hábitode fumar; mas ele dizia que tinha a autorização do bispo eque era devido à sua saúde… Em certo momento os cristãose o Padre tinham pensado em defender a igreja, mas depoiso Padre mudou de parecer e dizia: “Mesmo se matar alguns

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boxers, eu encontrarei a morte. É melhor abandonar-me àvontade de Deus.” Então guardou todas as suas armas e nãovaleu-se delas. A igreja de Si-t’ang foi incendiada dois diasdepois daquela de Tong-t’ang. Foi entre as sete e oito horasda tarde.

Dom A. Favier« Sexta-feira, 15 de junho, às 11h30, percebemos que a torrede Nossa Senhora das Sete Dores, de Si-t’ang, estava com ti-jolos escurecidos pelo fogo… Às 18h, soubemos que o Pe.Doré, cura de Si-t’ang, fora massacrado… Terça-feira, 19 dejunho, … um empregado de Si-t’ang, depois de andar errantepela cidade, por vários dias, terminou por encontrar-nos econtou que o Pe. Doré morreu queimado em seu quarto,com uns vinte cristãos. Ele não quis valer-se de suas armas.Alguns dias antes, esse bom padre me tinha dito:“Monsenhor, se eu for atacado, posso servir-me de meufuzil?”Eu lhe respondi: “Evidentemente; é permitido em caso de legítima defesa.”Ele acrescentou: “Mas se fosse para defender apenas a mim, não seria maisperfeito não servir-me dele?”Eu lhe disse, então: “Certamente, morrer por causa do bom Deus, sem defender-se, é o verdadeiro martírio.”

Diário de Dom A. Favier, arcebispo de Pequim, citado em ‘Annales de la C.M.’ 1901, pp. 86-88.

10.3 - Rev. Padre Pascal Raphaël D’AddosioPÁROCO DA PARÓQUIADE NAN-T’ANG

O Rev. Padre Pascal Raphaël D’Addo-sio nascera em Otranto (Itália). Tinha68 anos no momento dos fatos narra-dos. Era cura da paróquia de Nan-t’ang.

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Testemunhas

Tchou Ann O testemunho é de 3 de fevereiro de 1914. A testemunhatem 64 anos quando depõe ante o tribunal, sobre tudoquanto ouvira. “O Padre D’Addosio ia montado sobre umburro, e dois cristãos o acompanhavam pelo caminho.Quando os soldados o enxergaram, dispararam contra ele.Os dois cristãos fugiram, e o asno, assustado com os tiros,derrubou o Padre no chão. De um barraco vizinho, onde sevendia farinha, saíram vários pagãos que começaram a gol-pear o Padre com bastões. Um soldado atravessou-o com suabaioneta, enquanto ele implorava piedade e dizia: “Sou umapessoa de bem”. Oferecia-lhes o próprio relógio, dizendo:“Este relógio é realmente de ouro!” Seduzidos pela esperançade receber uma recompensa (haviam prometido a eles 50taelia), ataram-lhe as mãos e os pés e conduziram-no ao pa-lácio Techouang-Wang-Fou, (parte norte da cidade imperial).Depois disso, não soube mais nada dele.”

Tommaso Tchao Testemunho do dia 8 de fevereiro de 1914. A testemunha tem40 anos. “Vi o corpo do Padre arrastado pelos pés. Primeira-mente, vi as botas, depois notei que o rosto estava voltadopara o chão, reconheci sua barba branca. Estava ainda vivo.Estava vestido com roupa longa (a batina?). Levaram-no aopalácio. Vi-o entrar em silêncio!”

Louis CheTestemunho do dia 8 de fevereiro de 1914. A testemunha éum artesão de 43 anos. “Vi o Padre quando o levavam parao palácio Tchouang-Wang-Fou. Entrado no palácio, pergunteiaos soldados onde havia sido abandonado o corpo do Padre.Disseram: “No jardim, no meio de arbustos altos.” Não en-contrei o corpo; no entanto, encontrei o lenço do Padre. Épossível que corpo tenha sido atirado em algum poço.”

Ly AnnaO testemunho é de 4 de março de 1914. A testemunha tem24 anos. Disse que conheceu o Padre D’Addosio. Ele eramuito bom com os alunos. Nos sermões dava impressão de

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ser terrível. Confessou-se com ele e disse-lhe de preparar-separa o martírio. Ouviu falar que o Padre D’Addosio tinha sidomorto na estrada.

Tchao JosephTestemunho do dia 8 de março de 1914. A testemunha tem21 anos. Recorda o fato seguinte: “No começo da missa, nomomento do asperges me, o Padre viu uma senhora com umaflor no cabelo. Isso era proibido para as mulheres cristãs. Ar-rancou-a e, na igreja, diante de todos, queimou-a.”

Ma MarieDepoimento do dia 10 de dezembro de 1914, quando a tes-temunha tinha 52 anos. Nunca ouviu falar mal do PadreD’Addosio. Era caridoso com todos. Quando pregava, fazia-o com voz forte.

Ma ThomasDepoimento do dia 10 de dezembro de 1914; a testemunha éirmão da anterior. Tem 54 anos e trabalhava no Ministério daAstronomia. Reconhece o Padre D’Addosio como um homemjusto. Não queria queos cristãos tivessem oincômodo de fazer-lhepresentes. Dizia-lhes:“Vão em paz! Não pre-ciso de nada.” Tinha odefeito de ser impul-sivo. Se visse uma mu-lher cristã pobre, comroupa comprada sobfiança, pagava-lhe opreço para que pudessecelebrar dignamente afesta de Páscoa. Muitoscristãos eram intérpre-tes e foram formadospelo Padre D’Addosio.Cuidava muito na for-mação de seus vigários.

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11.Os mártires dos Irmãos Maristas

Quando consideramos os nossos Irmãos mártires da revolu-ção dos Boxers, cumpre não esquecer que eles se encontramno vultoso conjunto de quase novecentos outros, todos leigos:camponeses, operários, modestos comerciantes, homens,mulheres e muitas crianças. Longe de querer separá-los por

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uma intenção especial, deixamo-los no grande número dosmártires da tormenta chinesa de 1900, testemunhas todasdignas da nossa admiração. Cronologicamente relatemos os eventos dos nossos mártires.O Irmão José Maria Adon, chinês, e o postulante Paulo Jenforam mortos em Cha-La-Eul, em 17 de junho de 1900, nosprimeiros dias da revolta. O Irmão José Felicidade, que faziaparte do grupo dos seis primeiros Irmãos enviados à Chinaem 1891, foi morto em 18 de julho de 1900, em Jen-Tse-Tang, por ocasião da explosão de uma mina. O último foi oIrmão Júlio André, visitador, morto em 12 de agosto de 1900,enquanto tentava retirar uma mulher dos escombros que acobriam depois da explosão de uma mina.

11.1 - Ir. Júlio André

O Irmão Júlio André, no civil Ma-rie-Auguste Brun, nasceu em 17de julho de 1863, em Saint-Vin-cent- de Reins, Departamento doRhône, de família verdadeira-mente cristã. Um Irmão diretor,que o conheceu como aluno,disse ter notado nele juízo reto,caráter sério e firme, inteligênciaacima da média, amor do estudo;enfim, procedimento que o tor-nava digno de ser proposto comomodelo dos seus colegas.Com treze anos, pensou em ingressar no Instituto dos IrmãosMaristas, com a vontade de ser Irmão missionário. A mãeconcordou logo, mas o pai hesitava, porque tinha apenasum rapaz e uma jovem. Augusto entrou no noviciado deSaint-Genis-Laval em 3 de abril de 1877; ainda não tinhacatorze anos. Depois do noviciado foi enviado a diversos lu-gares: Sainte-Foy-l’Argentière, Saint-Symphorien-sur Coise eSaint-Chef.Em abril de 1883, ele foi chamado à Casa Mãe de Saint-Ge-nis-Laval, onde passou mais de dez anos, seja nos estudos,seja no ensino do noviciado e do escolasticado. Em toda a

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parte, mostrou-se religioso exemplar. Depois de dezesseis anos de trabalho apostólico na França,o Irmão Júlio André, com um grupo de Irmãos, foi designadopara ser enviado à China, onde, dezoito meses antes, haviamchegado os primeiros Irmãos. Eis como ele respondeu à con-vocação do Irmão Superior Geral: “Desconfiando das minhasforças, não lhe havia pedido de partir para as missões; masserei feliz, muito feliz, se o bom Deus me escolher para sol-dado dele na vanguarda, para apóstolo seu, como, aliás, eulhe venho pedindo há muito tempo. Antes de tudo, desejofazer a vontade de Deus. Se, pois, o senhor decide que mequer na China, irei à China, persuadido de que a graça deDeus e a proteção da Santíssima Virgem me ajudarão”.Depois da recepção da obediência, que continha a sua no-meação definitiva, ele escreveu: “Agradeço-lhe e rendo graçasao Sagrado Coração. Eu não ousava esperar o favor que meé concedido de ser missionário de Jesus. Muito almejaria serbom missionário, missionário dedicado, zeloso, fervoroso,santo”. Depois de ter passado em Londres alguns mesespara aperfeiçoar-se no estudo do inglês, o Irmão Júlio Andrépartiu para a China em julho de 1893. Desde a sua chegada,ele foi professor no colégio de Shanghai. Em 27 de setembroseguinte, ele podia escrever: “Estou muito contente aqui naChina e agradeço isso ao bom Deus todos os dias”. Todas ascartas que ele escreveu na França estão repletas de gratidãopara com Deus e para com a Virgem Maria. Humilde e modesto, o Irmão Júlio André teria querido passarignorado, desconhecido nalguma sala de aula, dedicando-se e sacrificando-se sob o olhar de Deus. Mas a Providênciaquis diferentemente. O Irmão Elias Francisco, Visitador doDistrito, faleceu em 7 de maio de 1896. Então o Irmão JúlioAndré foi nomeado Visitador. Escreveu ele: “Temo a respon-sabilidade de que me incumbem; não me cabe dizer: euaceito ou não aceito, porque seria de timbre pouco religioso.Mandam-me ir e eu irei e farei o meu possível. Espero que aBoa Mãe me estenderá o amparo de sua mão”. Ele se pôs re-solutamente à obra e se mostrou em tudo e por tudo à altura.Nas suas relações com as autoridades, com os Irmãos, comtoda a sorte de pessoas, deu provas cabais de prudência, detato, de previsão. Homem de ação e de iniciativa, não se li-mitou a empregar os seus talentos de administrador e de or-

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ganizador nas obras atualmente existentes, mas ainda pensouno futuro; ele formava projetos para a multiplicação das es-colas cristãs na China, para a extensão do Reino de JesusCristo neste vasto império.Infelizmente, ele não deveria ver a realização das suas espe-ranças, Preso na tormenta da revolução dos Boxers, foi mortoem 12 de agosto de 1900, enquanto tentava retirar uma se-nhora soterrada nos escombros causados pela explosão demina. Eis como o Irmão que sucedeu ao Irmão Visitador na redaçãodo jornal do sítio, narra o evento em que o Irmão Júlio Andréperdeu a vida. “A noite de 11 para 12 de agosto tinha sidode relativa calma. Na missa das 5h30 comungamos com onosso caro Visitador. Depois assistimos à segunda missa emação de graças . De repente, no momento da elevação, for-

midável explosão abala o soloe tudo desmorona ao nosso re-dor. Todos os assistentes se pre-cipitam para as portas, em so-corro das vítimas, cujos gritoslancinantes se misturavam à fu-zilaria dos revoltosos. A minaque acabava de explodir abriucratera de sete metros de pro-fundidade e quatro metros dediâmetro. Ela destruiu várias ca-sas e enterrou nas ruínas oitentapessoas: crianças, catecúmenose soldados italianos. O IrmãoJúlio André, comovido de com-

paixão e consultando apenas a sua caridade e coragem,avançava, rastejando para evitar as balas. Quis socorrer umasenhora soterrada nos escombros; mas, no momento em quese ergueu, uma bala o atingiu na peito e saiu pela axila es-querda, depois de ter perfurado os pulmões e talvez tambémo coração. Ouve-se que ele começa o ato de contrição emvoz alta; mas, depois de cinco ou seis palavras, a sua voz seextingue. De pressa foi transportado à capela onde acabavade sair. Chega um sacerdote, mas infelizmente foi para veri-ficar que ele estava morto, mártir da caridade e da dedica-ção”.

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Assim caiu aos 37 anos este valente operário da vinha doSenhor. Os seus Irmãos o amaram, o louvaram e o choraram.Ele mereceu o belo elogio do excelentíssimo Favier, bispode Pequim: ‘Foi homem de grande valor, que mostrou, emtodo o tempo do cerco, inteligência, dedicação e coragemsem par’. Muitas cartas dos Irmãos da China dizem como ele eraamado. Destaque-se a passagem de um deles. ‘Asseguro-lheque perdi, no nosso caro Irmão Visitador, um pai, o melhordos pais. Foi sempre tão bom comigo que não saberia es-quecer-me dele. A sua bondade e solicitude por mim, comopelos demais Irmãos, em caso de doença, eram admiráveis eo levavam a nada poupar para nos dar alívio. Há dezoitomeses, quando eu estava em Nan-Tang, caí doente, depoisde um passeio. O caro Irmão Visitador o soube às seis horasda tarde. Não conseguiu visitar-me naquele dia, porqueestava em Cha-La-Eul; mas, no dia seguinte, às sete horas,visitou-me, deslocando-se a pé. Ele queria trazer-me um re-médio contra o tifo. Depois ele me levou a Cha-La-Eul. Elequeria poder cuidar de mim, no caso de a doença piorar’.

11.2 - Ir. José Felicidade

O Irmão José Felicidade foimorto em 18 de julho de 1900.O seu nome civil era JosephPlanche. Nasceu em Etable, naSabóia, em 4 de fevereiro de1872. Era de família numerosa:sete filhos e três filhas. O pai eracarpinteiro, homem muito esti-mado; durante muito tempo foiconselheiro municipal. A mãedele, Francisca Graffion, nos cui-dados e na educação dos filhos,demonstrou ser mulher forte e profundamente cristã. Naidade de treze anos, José ingressou no juvenato de Saint-Genis-Laval, então dirigido pelo Irmão Cândido Maria que,mais tarde, em 1891, foi o primeiro Visitador do Distrito daChina. O Irmão José Felicidade e o Irmão Cândido Maria fi-

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zeram parte da primeira leva de Irmãos Maristas enviados àChina. Aos dezesseis anos, ele terminou o noviciado e foi enviadoa Grandris, seu primeiro posto, onde se desempenhou detrabalho manual. A segunda nomeação foi para Nantua, emque iniciou o seu ofício de professor. O Irmão Diretor destaescola escreveu dele: “O Irmão José Felicidade mostra ad-miravelmente este espírito de zelo e devotamento que deviacaracterizá-lo depois. Dedicado por inteiro ao seu emprego,não recua diante de nenhuma dificuldade, quando se tratado progresso e da piedade dos seus alunos. Persuadido deque nada é mais eficaz que o bom exemplo, esforça-se emser modelo para eles em tudo”.Em 8 de maio de 1891, os primeiros seis Irmãos Maristas,entre eles o Irmão Cândido Maria e o Irmão José Felicidade,embarcaram em Marseille com destino à China. Na sua che-gada a Pequim, os Irmãos foram encarregados da escola deNan-Tang. Em 1893, com a chegada de outros Irmãos, os Ir-mãos Cândido Maria e José Felicidade foram destacadospara Nan-Tang, para tomar, com outros Irmãos, a direçãode um orfanato estabelecido em Cha-La-Eul, na periferia.No orfanato havia 125 órfãos, entre sete e vinte e cincoanos, demandando os cuidados de uma infância abando-nada. A casa era receptáculo de misérias físicas e morais. Destaque-se o testemunho do Irmão Cândido Maria, Visita-dor e primeiro diretor do orfanato. “É 31 de maio de 1893. Em três semanas, estaremos emCha-La-Eul. Temo que na hora do vencimento das obriga-ções, eu continue como devedor sem recursos. Caio no la-mento de ter tido a presunção de assumir o posto. Não es-taria ele acima das minhas forças? Temo que sim. Meu Deus, que fazer deste montão de abandonados, cristãose pagãos? As moléstias os atingem todos: micose, sarna, es-crófula, raquitismo. É a quintessência das misérias da pobrehumanidade. Como conseguir limpá-los, escová-los, asseá-los no físico e no moral? É tarefa muito bela e capaz de sa-tisfazer o zelo mais ardoroso. Vamos ter muita necessidadeda proteção de Jesus, de Maria e da assistência dos santosanjos.”Em 14 de fevereiro de 1894. “Há três dias, uma caridosa cristã me apresentou uma

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criança de onze anos,que perambulava pelasruas, em temperaturamuita fria. Nesta ma-nhã, ausentes os Ir-mãos, que saíram apasseio com aquelesde Nan-Tang, eu quisassegurar-me do es-tado geral de um órfãodo Providência. Nadadirei do seu moral;pode você ter umaidéia: pagão, abando-nado, entregue seja a

comediantes, seja a um mestre qualquer, e isto desde osseis anos. Encontrei-o coberto de chagas, devorado pelaverminose. O meu coração, em face do triste espetáculo,comoveu-se; apresentei-o a Nosso Senhor; apelei à minhafé. De repente, vi nesta miserável criatura o meu doce Sal-vador Jesus. Então, com que felicidade, com que consolação,o livrei dos seus trapos, lavei-o dos pés à cabeça. Preciseide algum tempo para livrá-lo de muitas sevandijas. Agoraele está limpo, vestido de roupa suficiente. No bem-estarque ele experimenta parece que leio no fundo do seu olhar,não vou dizer o reconhecimento, mas o despertar da inteli-gência.” (Os Primeiros Irmãos, companheiros maravilhosos de Mar-celino, p. 281-282).Há testemunhos semelhantes e numerosos nas cartas do Ir-mão José Felicidade, que sucedeu como diretor de Cha-La-Eul ao Irmão Cândido Maria, quando este morreu de tifo em1895. Ele havia cuidado dos seus quatro Irmãos doentes detifo. Todos se curaram, mas ele ficou doente da enfermidadee a ela sucumbiu. Todos os jovens Irmãos da comunidade le-ram este gesto como o sacrifício do pai para que os filhos ti-vessem vida. Quando o Irmão José Felicidade se achavaainda em Nan-Tang, sonhava em imitar o Irmão Lourenço,em acompanhar os padres que vinham às vilas próximas dePequim e, assim, ensinar o catecismo às crianças. Formulou,neste sentido, pedido expresso ao Irmão Assistente.

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Ainda jovem, com 28 anos, o Irmão José Felicidade podiaesperar, por dilatados anos, a graça de fazer o bem na China,quando a revolta irrompeu em 1900, terrível perseguiçãoque fez tantas vítimas. Enquanto lhe foi possível, ele prodi-galizou os seus cuidados aos meninos de que estava encar-regado. Quando viu o orfanato ameaçado e o perigo imi-nente, ele tomou as disposições que lhe foram indicadaspor Favier, bispo de Pequim, a fim de pô-los em segurançatanto quanto possível. Devolveu uns quarenta aos pais ou acristãos que cuidariam deles; mas onde encontrar refúgioseguro para os 120 restantes? A missão não podia recebê-los. Teve-se de entregá-los à Providência, sob a guarda dedois Irmãos chineses: José Maria Adon e Paulo Jen, postu-lante. Foi com grande aperto de coração que se separou de-les, em 12 de junho para se refugiar em Pe-Tang, segundo aordem recebida.Em 20 de junho, a novidade chegou a Pe-Tang: o estabele-cimento de Cha-La havia sido queimado em 17 de junho.O Irmão José Felicidade escreveu: “Pobres crianças, depois de ter escapado dos Boxers emNan-Tang (estabelecimento onde os órfãos se haviam refu-giado antes), de novo estão expostos à crueldade desses ban-didos. Para onde fugir? Impossível ir a Pequim, já que os Bo-xers guardam todas as portas. Na região rural já não hácristãos e, em todos os caminhos, os Boxers são numerosos.Então é o gládio ou a fome que nos espera. Meu Deus, comosofro, ao saber que as crianças estão em tal angústia”.A partir de 21 de junho, o Irmão José felicidade interrompeua sua relação, impedido, sem dúvida, pelos trabalhos deque estava encarregado em Pe-Tang. O Irmão Júlio André aterminou no seu lugar. “O bravo Irmão José Felicidade, tão ávido de verter o seusangue com os seus meninos por amor a Deus, viu os seusvotos atendidos em 18 de julho de 1900, às cinco horas datarde. Ele supervisionava os cuidados de uma contramina,quando o inimigo, que percebeu os nossos trabalhos, seapressou a fazer os seus. Às cinco horas, uma explosão es-pantosa se produziu. O Irmão José Felicidade foi projetado auma distância de quinze metros. De cabeça para baixo, elecaiu num fosso, onde foi coberto de destroços e terra. Ocorpo só foi encontrado meia hora depois. Não tinha apenas

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escoriações no exterior, mas estava morto. Depois de limpo,notou-se no rosto o ar de bondade, o doce sorriso que lhehavia conquistado os corações”.Outro Irmão escreveu:“Era um santo religioso. Como o Irmão Visitador, ele visavaà perfeição. Sem escutar a natureza, ele se doava por inteiroà glória de Deus e ao bem de todos, fazendo tudo com ale-gria, levando à prática do bem os seus Irmãos pelos bonsexemplos. A muitas misérias ele levou assistência neste or-fanato, repleto do desgracioso da natureza: cegos, surdos-mudos, por exemplo. Esses pobres abandonados recebiamdo bom Irmão não apenas cuidados corporais os mais de-votados, mas ainda o testemunho de terna afeição e o maispaternal encorajamento para o bem”.

11.3- Ir. José MariaAdon (Joseph Fan)

José Fan nasceu em Pequim em1874, de família originária deChan-Si, estabelecida em Pe-quim desde quatro gerações,distinguida pela sua fé e pie-dade. Nos distúrbios de 1860,membros desta família escon-deram em casa o único sacer-dote que havia sobrado em Pe-quim e cuja cabeça fora postaa prêmio. O pai dele, relojoeiro,era muito estimado na paróquia de Nan-Tang. A mãe era fer-vorosa cristã, pôs todo o seu cuidado em bem educar os fi-lhos. Os dois mais velhos se estabeleceram em Pequim: umnos Correios e o outro na Legação da Grã-Bretanha. O ter-ceiro estava no seminário maior de Pequim. José, o quarto,foi batizado alguns dias depois de nascido e teve por padrinhoAugusto Ly, catequista da paróquia de Nan-Tang e irmão deLy-Kin-Tang, embaixador da China em Paris. O piedoso ezeloso catequista precedeu no céu, por dois ou três dias, oseu afilhado. Foi chacinado no jardim do presbitério de Nan-Tang, ao pé da estátua de Nossa Senhora de Lourdes, em 14

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de junho de 1900, dia do incêndio da igreja e dos estabele-cimentos de Nan-Tang.O pequeno José se fez notar pela sua retidão, doçura e sim-plicidade. Desde os oito anos, foi enviado à escola de Nan-Tang. O seu professor Xavier Chao, da família imperial, seapegou aos Irmãos Maristas desde a chegada a Pequim, emmaio de 1891; não se separou deles senão por causa doseventos de 1900. Nesse tempo, ele também logrou a palmado martírio na paróquia de Si-Tang. José Fan tinha dezesseteanos, quando, em 1891, seis Irmãos Maristas chegaram aPequim e tomaram a direção do colégio de Nan-Tang, ondeele era aluno. Não demorou em atrair a atenção deles pelasua piedade e pelo bom procedimento, o que fez com que oIrmão Cândido Maria falasse dele assim: “É jovem excelente,natureza delicada e sensível, ele é piedoso e inteligente. In-terno no nosso colégio de Nan-Tang, ele fala bem o francês.A sua família é das mais cristãs; a mãe, viúva há quinzeanos, educou bem os filhos”. Foi em 15 de agosto de 1893, na época em que os Irmãostomaram a direção do orfanato de Cha-La-Eul, que José foirecebido aí como postulante. A casa de Cha-La-Eul estavalonge de oferecer o conforto e o bem-estar que a naturezabrinda de ordinário. O piedoso jovem partilhou com três ouquatro outros postulantes, generosa e alegremente, a vidapobre e operosa dos Irmãos e dos seus órfãos. Estava ele nosegundo ano de noviciado, quando, na primavera de 1895,o tifo levou a desolação à casa, fazendo nela diversas vítimas,entre elas o Irmão Cândido Maria, diretor e mestre dos novi-ços. José Fan também foi atingido pelo flagelo e sofreu porquinze dias. Em 14 de agosto de 1895, José Fan, com três outros postu-lantes, teve a felicidade de receber o santo hábito religiosodas mãos de Sua Excelência Sarthou, com o nome de JoséMaria Adon. Depois de algum tempo passado nos estudos,ele foi encarregado de uma aula do orfanato e da sacristia.Ele era feliz de poder ensinar o catecismo, que preparavacom grande cuidado e sabia torná-lo interessante e verda-deiramente proveitoso. Os seus relacionamentos com os con-frades eram sempre impregnados de caridade, afabilidade eobsequiosas antecipações; em toda a ocasião, punha a suafelicidade em prestar serviços e dar descontração.

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Na primavera de 1900,foi encarregado do en-sino de francês no or-fanato de Cha-La-Eul.Durante cinco anos devida religiosa, o IrmãoJosé Maria Adon cor-respondeu às esperan-ças que havia dadocomo aluno em Nan-

Tang, como postulante e como noviço. Mostrou-se semprecheio de estima pela sua vocação, apego ao Instituto comoà sua família e distinguiu-se pelo espírito filial para com ossuperiores.Estava-se em maio de 1900. Havia já vários meses que a tor-menta bramia e que ia fazer correr ondas de sangue cristão.Cha-La-Eul, pela sua situação fora dos muros de Pequim, tinhatudo para temer a invasão noturna dos bandos que espalhavamo terror nos arredores. Pelo fim de maio, os rumores que cir-culavam iam ficando cada vez mais inquietantes. Os Irmãosjulgaram prudente velar todas as noites, para prevenir o perigodo fogo. Perguntado o Irmão José Maria Adon sobre o quefaria à vista dos Boxers armados de grandes facões, respondeucomo se estivesse determinado ao sacrifício da sua vida: “Nãofugirei; ficarei com os meus alunos, muitos dos quais sãomuito novos e vou impedi-los de apostatarem”.Quando o perigo ficou real para o orfanato de Cha-La-Eul,os Irmãos do estabelecimento e os meninos que nele se en-contravam, por ordem do bispo Favier se transferiram a Nan-Tang, bairro de Pequim, onde havia outro orfanato, um hos-pital, escolas, residências e uma igreja pertencente à missão.O Irmão José Maria Adon teve o cuidado levar para lá os va-sos sagrados, de juntá-los àqueles da igreja de Nan-Tang ede esconder outros na terra, para subtraí-los à profanação.Esperava-se que Nan-Tang poderia ser defendida pelos sol-dados europeus. Uma esquadra foi enviada aí, mas de todoinsuficiente para resistir a um ataque; assim, ela tambémteve de abandonar o posto. Desse modo, vários Irmãos e120 órfãos ficavam expostos à crueldade dos Boxers. Ade-mais, havia aí seis Padres Lazaristas, dez Irmãs de São Vicentede Paulo, vinte Irmãs Josefinas chinesas e muitos doentes e

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outras pessoas. Em 13 de junho, de noite, doze homens ou-sados foram a Nan-Tang em busca dos padres e das religiosaspara recolhê-los às Legações. Esses doze corajosos disseramao Irmão Crescente Maria que tinham a ordem de tambémlevá-lo. Ele pediu que o deixassem ficar com os Irmãos chi-neses (Irmãos José-Maria Adon e Cândido Maria) e com osórfãos, para partilhar a sua sorte. O Irmão José Maria, porém,lhe suplicava que partisse, “porque, ponderava, se você fica,não poderá escapar da morte, ao passo que nós, chineses,temos alguma chance de ser poupados ou escapulir. Parta,meu Irmão, eu lhe peço. Se ficar vai causar-me muita tristeza.Salve-se agora, de noite. Vindo o dia, será demasiado tarde.Adeus, reze por nós”. Então os Irmãos se deram o beijo do

Esquadrão de Boxers armados

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adeus. Foi com este ato de generosidade e desprendimentode si que o nosso caro confrade José Maria Adon começavao seu dia.Pelas cinco horas da manhã, o exército dos Boxers, acompa-nhado de multidão fanática, ávida de pilhagem e de sangue,invadiu o bairro de Nan-Tang, com gritos selvagens de Chao,Chao: matem, queimem. Tudo foi entregue ao saque e àschamas: hospital, convento das Irmãs, escola dos Irmãos,presbitério e igreja. Numerosos cristãos foram chacinadosnestes diversos estabelecimentos. Com o perigo iminente, oIrmão José Maria Adon e os seus órfãos refugiaram-se no ter-raço da sacristia. Daí Adon considerava o triste e pungenteespetáculo que tinha sob o olhar: estátuas e imagens religiosassujadas e profanadas, candelabro, cruz, altar, ornamentossacerdotais, tudo arrastado pela rua; para cúmulo, o incêndiodos estabelecimentos e da igreja.O Irmão José Maria Adon e os seus pequenos protegidos, queestavam no terraço, desde as nove horas, esperavam a morte.Pelas três da tarde, já não podendo suportar o ardor do fogoque os circundava, desceram desse lugar de refúgio. Diversosmeninos que haviam fugido foram chacinados não longe daigreja em chamas. O Irmão José Maria Adon atravessou a mul-tidão fanática sem que alguém lhe pusesse a mão. Então foi aPe-Tang, mas encontrou a porta guardada por soldados. Deci-diu voltar a Cha-La-Eul. Ao sair da cidade, diversos meninosque o acompanhavam são detidos e mortos. Chegado a Cha-La-Eul, ele escreveu ao Irmão Júlio André duas cartas, que fo-ram conservadas. Refugiado em Pe-Tang, quis informá-lo doextremo perigo em que se encontrava.

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15 de junho

Caríssimo Irmão Visitador

Ontem fomos muito maltratados. Ficamos no

terraço da sacristia, em Nan-Tang, durante cinco

ou seis horas. Eu me salvei do meio do fogo.

Não narro detalhes, mas peço que venha so-

correr-nos. Você pode falar ao Bispo Favier, para

achar um meio de nos levar a Pe-Tang hoje. Há

comigo uns quinze meninos. A mão me treme

no escrever...

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A segunda carta é como confirmação do que afirmou na pri-meira. Por certo não faltava boa vontade para socorrer oIrmão e os meninos. Infelizmente, não se encontrou nenhummeio. Também o orfanato de Cha-La-Eul sofreu a mesmasorte dos estabelecimentos de Nan-Tang: pilhagem, incêndioe chacina. Aí o Irmão José Maria Adon encontrou a morte,na companhia do postulante Paulo Jen, em 17 de junho de1900.

11.4 - O postulantePaulo Jen

Paulo Jen era postulante por oca-sião dos eventos. Como se dissepouco antes, foi morto em 17 dejunho de 1900. Não sabemos emque parte da China nasceu, nemem que ano, nem o nome dospais. Sabemos dele apenas o quenos narrou o Irmão José Felici-dade, diretor de Cha-La-Eul e en-carregado de seguir-lhe os pas-sos, isso é o que consta nas trêscartas que se conservaram.

Carta de 14 de novembro de 1898 “O postulante Paulo Jen dá boa impressão. Poderia prestaralguns serviços em Cha-La, como cozinheiro ou como vigi-lante”.

Carta de 4 de maio de 1899 “O postulante Paulo Jen é o relojoeiro de que lhe falei. Ele émuito dócil e parece disposto a tornar-se bom Irmão. A suainteligência não é muito desenvolvida; mas parece-me dotadode juízo reto. Tem boa vontade, mostra disposições para otrabalho manual e desempenha-se bem dos diferentes ofíciosde que o encarregam. Atualmente está aprendendo a ser co-zinheiro com o Irmão Crescente e com ele se entende muitobem. Eu lhe dou cinco instruções por semana”.

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78 • Mártires da China 1900

Carta de 3 de setembro de 1899 “O postulante Paulo Jen impressiona sempre bem. Acaba desofrer uma provação, toda em favor dele. Há algum tempo,o irmão dele veio pedi-lo e quis absolutamente levá-lo, sobpretexto de negócios da família, em que seria necessária apresença de todos os seus membros. Nas circunstâncias, ocaro Irmão Visitador lhe permitiu que se ausentasse por al-gumas semanas. Na família, percebeu que o irmão mais

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velho lhe havia estendido uma armadilha: queria levá-lo acasar-se e, assim, impedi-lo de abraçar a vida religiosa. Gra-ças a Deus, o nosso postulante triunfou dessa perigosa prova.Retornou com vontade mais forte de se fazer religioso.Quanto à instrução, dou-lhe uma hora de aula por dia, queconsiste em explicar-lhe os nossos princípios de perfeição.No atinente ao emprego do seu dia, ele é cozinheiro, com aajuda de um menino. Nos seus momentos livres, ele estudano livro a aplicação da doutrina cristã, prepara o assunto dasua meditação, isto é, aprende a ler chinês no seu livro demeditação; faz alguma leitura no livro a perfeição religiosade Rodríguez, em chinês e, quando pode, assiste à aula defrancês com os meninos”.Paulo Jen era piedoso, trabalhador, obediente, caridoso, de-dicado e, pelas suas boas qualidades e bom procedimento,dava esperança de que poderia prestar bons serviços à Mis-são. Tinha cerca de vinte e seis anos e se preparava paravestir o habito religioso em breve. Em face do perigo iminentedos Boxers, ele teria podido fugir. Mas a possibilidade nãolhe veio sequer ao espírito. Como o Irmão José Maria Adon,ele quis ficar fiel ao posto, para encorajar os mais jovens elhes dar o exemplo da fidelidade a Jesus Cristo.Qual foi o lugar do seu martírio? Nan-Tang? Cha-La-Eul?Ninguém conseguiu saber. Em que data? Deve ter sido entre15 e 18 de junho.

Os Irmãos Júlio André, José Felicidade, José Maria Adon ePaulo Jen são quatro gloriosos mártires que serão para o Ins-tituto dos Pequenos Irmãos de Maria, e para os seus benfei-tores, poderosos intercessores junto de Deus. A proteçãodeles muito será útil também aos nossos Irmãos da China,sob a destruição das suas obras e que a perseguição de 1900reduziu a um grande desprendimento.

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Finito di stampare nel marzo 2011presso la CSC Grafica - Guidonia (Roma)

www.cscgrafica.it

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