Fichamento7.Amartya.vinicius

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UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA FACULDADE DE DIREITO PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM DIREITO VINÍCIUS SOARES CARVALHO FICHAMENTO Nº 7 Salvador 2015

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FICHAMENTO MESTRADO VINÍCIUS SOARES CARVALHO

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UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA

FACULDADE DE DIREITO

PROGRAMA DE PS-GRADUAO EM DIREITO

VINCIUS SOARES CARVALHO

FICHAMENTO N 7Salvador

2015VINCIUS SOARES CARVALHO

Fichamento textual do livro do professor da Universidade de Harvard Amartya Sen, intitulado A IDEIA DE JUSTIAAtividade proposta pelo docente como requisito avaliativo para a disciplina Teoria Geral do Direito, PPGD/UFBa, no semestre letivo de 2015.1Salvador

2015SEN, Amartya. A ideia de justia. Traduo de Ricardo Doninelli Mendes (captulos 1 a 15) e Denise Bottmann (captulos 16 a 18 e ndices) So Paulo: Companhia das Letras, 2011.Pgs.

26Introduo: Uma abordagem da justia(...) A questo subjacente se temos de concordar com uma nica linha especfica de censura para chegarmos a um consenso fundamentado no diagnstico de uma injustia que exige reparao urgente. (...)

27(...) A reduo arbitrria de princpios mltiplos e potencialmente conflitantes a um nico e solitrio sobrevivente, guilhotinando todos os outros critrios avaliativos, de fato no um pr-requisito para chegar a concluses teis e robustas sobre o que deve ser feito. (...)

28- argumentao racional e justiaNo so protestadores indignados os que frequentemente se esquivam da justificao arrazoada, mas sim plcidos guardies da ordem e da justia. (...)

Os requisitos de uma teoria da justia incluem fazer com que a razo influencie o diagnstico da justia e da injustia. (...)

30- o iluminismo e uma divergncia bsica

A distncia entre as duas abordagens, o institucionalismo transcendental, de um lado, e a comparao focada em realizaes, de outro, bastante significativa. Por acaso, sobre a primeira tradio a do institucionalismo transcendental que a filosofia poltica hoje predominante se apoia amplamente em sua explorao da teoria da justia. (...)

31(...) A caracterizao de instituies perfeitamente justas transformou-se no exerccio central das teorias da justia modernas.

- o ponto de partida

Devemos atribuir importncia ao ponto de partida, em especial seleo de algumas questes a serem respondidas (por exemplo, como a justia seria promovida?) em lugar de outras (por exemplo, o que seriam instituies perfeitamente justas?). Esse ponto de partida tem como efeito uma dupla divergncia: primeiro, toma-se a via comparativa, em vez da transcendental; segundo, focam-se as realizaes que ocorrem nas sociedades envolvidas, em vez de focar apenas as instituies e as regras. Dado o presente balano de nfases na filosofia poltica contempornea, esse efeito vai exigir uma mudana radical na formulao da teoria da justia.

32Considerarei sucessivamente os argumentos a favor das duas respectivas divergncias. Comeo com os problemas da identificao transcendental, partindo do problema da factibilidade e depois enfrentando o da redundncia.

33- a factibilidade de um acordo transcendental nico

Se um diagnstico de arranjos sociais perfeitamente justos for incuravelmente problemtico, ento toda a estratgia do institucionalismo transcendental est profundamente prejudicada, mesmo que todas as alternativas concebveis no mundo estejam disponveis. (...)

35 / 36- trs crianas e uma flauta: um exemploA questo geral aqui que no fcil ignorar como infundadas quaisquer das pretenses baseadas respectivamente na busca da satisfao humana, na remoo da pobreza ou no direito a desfrutar dos produtos do prprio trabalho. Todas as diferentes solues tm srios argumentos a seu favor, e podemos no ser capazes de identificar, sem alguma arbitrariedade, um dos argumentos alternativos como aquele que deve prevalecer invariavelmente.

36 / 37- uma estrutura comparativa ou transcendental?(...) Se uma teoria da justia deve orientar a escolha arrazoada de polticas, estratgias ou instituies, ento a identificao dos arranjos sociais inteiramente justos no necessria nem suficiente.

37 claro que possvel ter uma teoria que faa as duas avaliaes: comparaes entre pares de alternativas e uma identificao transcendental (quando isso no for impossvel devido sobrevivente pluralidade de razes imparciais que reivindicam a nossa ateno). Ela seria uma teoria conglomerada, mas nenhum dos dois tipos de juzo decorre do outro. Mais imediatamente, as teorias padro da justia, associadas abordagem de identificao transcendental (por exemplo, as de Hobbes, Rousseau, Kant ou, atualmente, Rawls e Nozick), no so de fato teorias conglomeradas. Contudo, verdade que, no processo de desenvolvimento de suas respectivas teorias transcendentais, alguns desses autores apresentaram argumentos especficos que por acaso valem para o exerccio comparativo.

38A teoria transcendental simplesmente trata de uma questo diferente da tratada pela avaliao comparativa - uma questo que pode ser de interesse intelectual considervel, mas que no tem relevncia direta para o problema da escolha que tem de ser enfrentado. (...)

(...) a abordagem comparativa central para a disciplina analtica da teoria da escolha social, iniciada pelo Marqus de Condorcet e outros matemticos franceses no sculo xviii, que trabalhavam principalmente em Paris. (...)

Na abordagem construtiva que busco apresentar neste trabalho, insights da teoria da escolha social tero um papel substancial a desempenhar. (...)

- realizaes, vidas e capacidades

(...) A necessidade de uma compreenso da justia que seja baseada na realizao est relacionada ao argumento de que a justia no pode ser indiferente s vidas que as pessoas podem viver de fato. (...)

38 / 39(...) Instituies e regras so, naturalmente, muito importantes para influenciar o que acontece, alm de serem parte integrante do mundo real, mas as realizaes de fato vo muito alm do quadro organizacional e incluem as vidas que as pessoas conseguem - ou no - viver.

39(...) Primeiro, as vidas humanas so ento vistas sem excluso, levando em conta as liberdades substantivas que as pessoas desfrutam, ao invs de ignorar tudo menos os prazeres ou as utilidades que elas acabam tendo. H tambm um segundo aspecto significativo da liberdade: ela nos faz responsveis pelo que fazemos.

(...) Uma vez que uma capacidade o poder de fazer algo, a responsabilidade que emana dessa capacidade - desse poder - uma parte da perspectiva das capacidades, e isso pode abrir espao para demandas do dever - o que pode ser genericamente chamado de exigncias deontolgicas. (...)

40- uma distino clssica na teoria do direito indiano(...) Contrastando com niti, o termo nyaya representa um conceito abrangente de justia realizada. Nessa linha de viso, os papis das instituies, regras e organizaes, importantes como so, tm de ser avaliados da perspectiva mais ampla e inclusiva de nyaya, que est inevitavelmente ligada ao mundo que de fato emerge, e no apenas s instituies ou regras que por acaso temos.

NOTA: matsyanyaya, a justia do mundo dos peixes

43- a importncia dos processos e das responsabilidades

(...) Seria difcil descartar a perspectiva das realizaes sociais em razo de que ela estreitamente consequencialista e ignora o argumento subjacente s consideraes ontolgicas.

45- institucionalismo transcendental e negligncia global

Com efeito, a teoria da justia, assim como formulada no mbito do institucionalismo transcendental hoje dominante, transforma muitas das questes mais relevantes da justia em retrica vazia - mesmo que seja reconhecida como uma retrica bem-intencionada. (...)

46Por mais envolvente que seja esse desejo de que a esperana rime com a histria, a justia do institucionalismo transcendental deixa pouco espao para tal envolvimento. Essa limitao fornece um exemplo da necessidade de uma mudana substancial nas teorias da justia predominantes nos dias de hoje. Esse o tema deste livro.

51Parte i as exigncias da justia

1. Razo e objetividade

(...) Os defensores da chamada teoria da escolha racional (proposta pela primeira vez na economia e, em seguida, adotada com entusiasmo por vrios pensadores polticos e jurdicos) esforaram-se para nos fazer aceitar a ideia peculiar de que a escolha racional consiste apenas na promoo inteligente do

autointeresse (que como, curiosamente, a escolha racional definida pelos defensores da marca registrada chamada teoria da escolha racional).

TEORIA DA ESCOLHA RACIONAL

54- crtica da tradio iluminista

(...) h uma necessidade especial de enfrent-las [as questes zetticas a cerca do uso da razo, das suas limitaes e potencialidades] aqui, dado o foco sobre o exerccio argumentativo da razo na explorao da ideia de justia neste trabalho.

56- Akbar e a necessidade da razo

(...) Quando seu segundo filho, Murad, que sabia que Akbar se opunha a todos os rituais religiosos, perguntou-lhe se esses rituais deveriam ser proibidos, Akbar imediatamente se disse contrrio proibio, argumentando que impedir o tolo insensvel que considera o exerccio fsico uma adorao divina equivaleria a impedi-lo de lembrar-se de Deus [absolutamente].

(...) Na verdade, talvez a observao mais importante feita por Akbar em sua defesa de uma sociedade multicultural, laica e tolerante diga respeito ao papel que ele atribuiu ao uso da razo nessa tarefa como um todo. (...)

(...) Ele concluiu que o caminho da razo ou a regra do intelecto (rahi aql) deve ser o determinante bsico do comportamento bom e justo, bem como de um marco aceitvel de direitos e deveres legais.

57- objetividade tica e anlise arrazoada

(...) O argumento a favor da anlise arrazoada no depende de que esta seja uma via infalvel para acertar (tal via no pode existir), mas de que seja to objetiva quanto for razoavelmente possvel. (...)

58(...) O importante papel dado argumentao racional neste trabalho diz respeito necessidade de basear o pensamento sobre questes de justia e injustia em razes objetivas.

(...) Quando debatermos as exigncias da objetividade tica, no estaremos discutindo a natureza e o contedo de supostos objetos ticos.

58 / 59A argumentao que desenvolverei na anlise das exigncias da justia incluir algumas exigncias bsicas de imparcialidade, que so partes essenciais da ideia de justia e injustia. Neste ponto, vale a pena convocar as ideias de John Rawls e sua anlise da objetividade moral e poltica, como ele a apresenta em sua defesa da objetividade da justia como equidade (um tema ao qual o prximo captulo ser dedicado). Rawls afirma: O primeiro elemento essencial que uma concepo da objetividade deve estabelecer uma estrutura pblica de pensamento suficiente para que o conceito de juzo se aplique e para alcanar, aps discutir e refletir apropriadamente, concluses baseadas em razes e evidncias empricas. (...)

OBJETIVIDADE E IMPARCIALIDADE so elementos (ainda que indiretos) da abordagem de Amartya Sen sobre os aspectos da sua teoria da justia.

59(...) Procurei argumentar em outro lugar que, de modo geral, todos ns somos capazes de ser razoveis sendo abertos ao acolhimento de informaes, refletindo sobre argumentos provenientes de diferentes direes e investindo, junto a isso, em deliberaes e debates interativos sobre a forma como as questes subjacentes devem ser vistas. (...)

60 (...) O papel da argumentao pblica irrestrita bastante central para a poltica democrtica em geral e para a busca da justia social em particular.

- Adam Smith e o espectador imparcial

(...) Se Rawls oferece uma maneira de pensar a objetividade na avaliao da justia, Adam Smith oferece outra ao invocar o espectador imparcial. (...)(...) A insistncia de Adam Smith sobre a necessidade, inter alia, de vermos nossas opinies de uma certa distncia motivada pelo objetivo de analisar no apenas a influncia do interesse pelo benefcio prprio, mas tambm o impacto da tradio e do costume arraigados.

61Embora existam diferenas entre as distintas abordagens da objetividade consideradas aqui, a semelhana mais abrangente entre elas reside no reconhecimento compartilhado da necessidade de encontrar um fundamento imparcial (essas abordagens diferem principalmente quanto ao domnio da imparcialidade exigida, como ser discutido no captulo 6). claro que a razo pode assumir formas distintas que tm muitos usos diferentes. Mas, na medida em que procuramos a objetividade tica, a argumentao necessria tem de satisfazer o que pode ser visto como os requisitos da imparcialidade. As razes da justia podem diferir, para usar uma das expresses de Smith, das razes do amor-prprio, e tambm das razes da prudncia, mas as razes da justia continuam constituindo um mbito extremamente vasto. Muito do que se segue neste trabalho consistir em explorar esse enorme territrio.

62- o alcance da razo

(...) Centenas de milhares, de fato milhes, podem morrer devido calamitosa inao resultante de um fatalismo irracional disfarado de compostura baseada em realismo e senso comum. (...)

63(...) Para evitar catstrofes causadas pela negligncia humana ou uma insensvel obstinao, precisamos da anlise crtica, no apenas da boa vontade em relao aos outros.

64- a razo, os sentimentos e o Iluminismo

(...) Adam Smith, figura central no Iluminismo escocs (e muito influente no Iluminismo francs tambm), discutiu amplamente o papel central das emoes e das respostas psicolgicas em sua obra Teoria dos sentimentos morais. Smith pode no ter ido to longe quanto David Hume, que afirmou que a razo e o sentimento concorrem para quase todas as determinaes e concluses morais, mas ambos veem raciocinar e sentir como atividades profundamente interligadas. Tanto Hume como Smith foram, naturalmente, tpicos autores iluministas, no menos do que Diderot e Kant.

No entanto, a necessidade de uma anlise arrazoada das atitudes psicolgicas no desaparece mesmo depois de reconhecer o poder das emoes e celebrar o papel positivo de muitas reaes instintivas (como o sentimento de repulsa crueldade). Smith em particular, talvez at mais do que Hume, deu razo um papel enorme na avaliao de nossos sentimentos e interesses psicolgicos. (...)

65(...) O que Akbar chamou de caminho da razo no exclui prestar ateno ao valor das reaes instintivas, nem ignorar o papel informativo que nossas reaes mentais frequentemente desempenham. E tudo isso bastante coerente com no conceder a nossos instintos no analisados uma incondicional palavra final.

( trs autores utilizados por Amartya Sem no tratamento da questo da ANLISE ARRAZOADA (uso adequado da razo), quais sejam, Adam Smith, David Hume e Akbar, em face DAS EMOES E DOS INSTINTOS. (PODER DAS EMOES E REAES INSTINTIVAS)

66f. [nota de rodap]: Obviamente verdade que muitas crenas grosseiras se originam de alguns tipos de razo, talvez os bem primitivos (por exemplo, os preconceitos racistas e sexistas sobrevivem, com bastante frequncia, em funo da razo percebida de que os no brancos e as mulheres so biolgica ou intelectualmente inferiores). A defesa do recurso razo no envolve nenhuma negao do fato facilmente reconhecido de que as pessoas oferecem razes de algum tipo em defesa de suas crenas (no importa quo grosseiras sejam). O aspecto central da argumentao como mtodo sujeitar ao exame crtico as opinies prevalecentes e as razes alegadas. Essas questes sero discutidas nos captulos 8 e 9.

702. Rawls e mais alm

(...) Vou discutir minhas discordncias em breve, mas primeiro tenho de aproveitar a oportunidade para reconhecer a base firme sobre a qual Rawls assentou todo o tema da teoria da justia. Alguns dos conceitos bsicos que Rawls identificou como essenciais continuam inspirando minha prpria compreenso da justia, a despeito da direo e das concluses diferentes do meu prprio trabalho.

71- justia como equidade: a abordagem rawlsiana(...) A especificao de Rawls das exigncias de imparcialidade baseada em sua ideia construtiva de posio original, que central para sua teoria da justia como equidade. (...)

(...) Os princpios da justia, em uma formulao rawlsiana, determinam as instituies sociais bsicas que devem governar a sociedade que esto, podemos imaginar, por criar.

72- da equidade justia

(...) a escolha unnime desses princpios de justia faz boa parte do trabalho no sistema rawlsiano, o que inclui a escolha das instituies para a estrutura bsica da sociedade, bem como a determinao de uma concepo poltica da justia, o que, Rawls supe, correspondentemente influenciar os comportamentos individuais em conformidade com essa concepo partilhada (...)

75- a aplicao dos princpios rawlsianos de justia

a. Cada pessoa tem um direito igual a um esquema plenamente adequado de liberdades bsicas iguais que seja compatvel com um esquema similar de liberdades para todos. ( PRINCPIO DA LIBERDADEb. As desigualdades sociais e econmicas devem satisfazer duas condies. Primeira, elas devem estar associadas a cargos e posies abertos a todos em condies de igualdade equitativa de oportunidades. ( PRINCPIO DA IGUALDADE DE OPORTUNIDADES Segunda, elas devem ser para o maior benefcio dos membros menos favorecidos da sociedade. ( PRINCPIO DA DIFERENA. LEMBRAR DA NOO RAWLSIANA DE PREFERNCIAS ABRANGENTES, as quais so estabelecidas na POSIO ORIGINAL, ou seja, num momento de suposta IGUALDADE MATERIAL.

76(...) Rawls considera que os bens primrios incluem coisas como direitos, liberdades e oportunidades, renda e riqueza, e as bases sociais da autoestima. (...)

77(...) Em um mundo de justia comparativa, o mundo justo de Cohen pode estar acima daquele que Rawls descreve na justia como equidade, mas o principal uso da teoria da justia comparativa seria fazer comparaes entre possibilidades viveis menos sublimes - com relao justia - do que os mundos justos tanto de Cohen como de Rawls.

79 / 80- algumas lies positivas da abordagem ralwsiana

(...) concentrando-se em bens primrios (isto , nos meios gerais teis para algum alcanar seus objetivos abrangentes), Rawls reconhece indiretamente a importncia da liberdade humana em dar s pessoas oportunidades reais - por oposio quelas apenas formalmente reconhecidas - para fazerem o que bem entendam com suas prprias vidas. (...)

80 / 81- problemas que podem ser efetivamente enfrentados(...) A converso de bens primrios na capacidade de fazer vrias coisas que uma pessoa pode valorizar fazer pode variar enormemente devido a diferentes caractersticas inatas (por exemplo, propenso a sofrer de algumas doenas hereditrias), bem como a diferentes caractersticas adquiridas ou efeitos divergentes de variaes do meio ambiente envolvente (por exemplo, viver em um bairro com a presena endmica, ou surtos frequentes, de doenas infecciosas). (...)

o autor prope uma mudana da anlise focada nos BENS PRIMRIOS (Rawls) para as CAPACIDADES E LIBERDADES SUBSTANTIVAS (Sen).

81 - 87- dificuldades que necessitam de novas investigaes

1) A inescapvel relevncia do comportamento real2) Alternativas abordagem contratualista

3) A relevncia das perspectivas globais

913. Instituies e pessoas

(...) Muitos economistas hoje compartilham, claro, a viso de Kautilya de uma humanidade venal, mas essas vises contrastam nitidamente com a crena otimista de Ashoka em fazer que as pessoas se comportem muito melhor, persuadindo-as a refletir mais e encorajando-as a compreender que o pensamento negligente tende a produzir um comportamento grosseiro, com terrveis consequncias para todos.

92- a natureza contingente da escolha institucional

(...) Uma questo que pode ser feita sobre a formulao de John Rawls da justia como equidade a seguinte: se os padres de comportamento variam entre diferentes sociedades (e h provas de que eles variam), como Rawls pode usar os mesmos princpios de justia, no que ele chama de fase constitucional, para estabelecer as instituies bsicas em diferentes sociedades?

93Quando nos voltamos para a segunda parte desse princpio de escolha institucional (o requisito importante que fica evidente pelo prprio nome de princpio da diferena), temos de examinar como os diferentes potenciais arranjos institucionais se entrelaariam e interagiriam com normas comportamentais padro na sociedade. Com efeito, mesmo a linguagem do princpio da diferena reflete o envolvimento desse critrio com o que realmente acontece na sociedade (isto , se as desigualdades sociais terminarem funcionando para o maior benefcio dos membros menos favorecidos da sociedade). Mais uma vez, isso d a Rawls muito mais espao para incluir a sensibilidade s diferenas de comportamento.

64 / 65- restries comportamentais atravs da argumentao contratualista

(...) A ideia rawlsiana de comportamento razovel se estende ao comportamento real que se pode presumir, uma vez que as instituies escolhidas - por unanimidade na posio original - sejam estabelecidas.

96- o poder e a necessidade de compreenso(...) A questo da prtica democrtica pode estar intimamente relacionada existncia e utilizao de poderes compensatrios em sociedades com uma pluralidade de fontes de voz e fora.

( John Kenneth Galbraith defendeu a importncia de diferentes instituies sociais que poderiam exercer poder compensatrio umas sobre as outras. Essa exigncia e sua relevncia so definidas em seu livro de 1952, American capitalism. (pg. 95) ( PODER COMPENSATRIO

66- instituies como fundamentos

(...) Ainda que a perspectiva centrada em arranjos da niti seja muitas vezes interpretada de maneira a tornar a presena das prprias instituies adequadas para satisfazer as exigncias da justia, a perspectiva mais ampla de nyaya indicaria a necessidade de examinar quais realizaes sociais so de fato geradas atravs dessa base institucional. (...)

96(...) O fundamentalismo institucional no s pode passar por cima da complexidade das sociedades, mas muitas vezes a autossatisfao que acompanha a suposta sabedoria institucional at impede uma anlise crtica das consequncias reais de ter as instituies recomendadas. (...) ( cita DAVID GAUTHIER

98(...) De fato, ele passou a fazer uma possvel exceo ao caso em que o sistema que defendia, com prioridade total dos direitos libertrios, levasse ao que chamou de horror moral catastrfico. (...) ( cita ROBERT NOZICK ( direitos libertrios (liberdades individuais de Nozick como prioridade para um sistema de justia social)

A questo mais geral, claro, a falta bsica de confiabilidade em no ter sensibilidade constante para o que realmente acontece no mundo, no importa quo excelentes as instituies sejam consideradas. (...)

99(...) Em contraste com tais abordagens institucionais, h teorias da justia e da escolha social que levam bastante em conta os estados sociais que realmente emergem a fim de avaliar a forma como as coisas esto indo, e se os arranjos podem ser vistos como justos. (...)

Na perspectiva inclusiva de nyaya, nunca podemos simplesmente entregar a tarefa da justia a alguma niti das instituies e regras sociais que vemos como precisamente corretas, e depois a descansar, libertando-nos de posteriores avaliaes sociais (para no mencionar coisas como estar livre da moralidade, para usar a expresso vivaz de David Gauthier). Perguntar como as coisas esto indo e se elas podem ser melhoradas um elemento constante e imprescindvel da busca da justia.

1024. Voz e escolha social

(...) as teorias da justia no so consideradas, pela maioria dos especialistas cuja viso dominante, algo to geral e subdeterminado como uma estrutura de argumentao. Pelo contrrio, esses profissionais parecem estar decididos a levar-nos de imediato a alguma frmula bastante detalhada para a justia social e a uma firme identificao, sem indeterminao alguma, da natureza das instituies sociais justas. (...)

103(...) No caso da justia rawlsiana, esses princpios incluem principalmente (como discutido no captulo 2) a prioridade da liberdade (primeiro princpio), algumas exigncias de igualdade processual (primeira parte do segundo princpio) e algumas exigncias de equidade, combinadas com a eficincia na forma da prioridade conferida promoo dos interesses e vantagens do grupo em pior situao (segunda parte do segundo princpio). (...)

104(...) A importncia de uma estrutura de argumentao pblica muito enfatizada pelo prprio John Rawls - particularmente importante nessa prtica mais ampla.

Talvez a natureza da tarefa possa ser mais bem esclarecida com a ajuda da teoria da escolha social. Passo agora a essa linha de investigao.

- a teoria da escolha social como uma abordagem

A motivao dos primeiros tericos da escolha social inclua evitar a arbitrariedade e a instabilidade nos processos de escolha social. (...)

PARADOXO DE CONDORCET (Teoria da Escolha Social) / Teorema da Impossibilidade de Arrow ou, como o prprio Kenneth Arrow (1950) chamou, TEORIA DA POSSIBILIDADE GERAL

106(...) Se todas as informaes que podemos inserir no sistema de avaliao ou tomada de deciso assumirem uma forma to emaciada, ento teremos de nos resignar aos resultados pessimistas. Mas para chegarmos a uma adequada compreenso das exigncias da justia, das necessidades de organizao e instituies sociais, bem como da realizao satisfatria das polticas pblicas, teremos de buscar muito mais informaes e provas analisadas e justificadas.

Kenneth Arrow se juntou a outros na busca por meios e formas de ampliar a base informacional da escolha social. (...) ( BASE INFORMACIONAL DA ESCOLHA SOCIAL

108- o alcance da teoria da escolha social

(...) Como um mtodo de avaliao, a teoria da escolha social est profundamente interessada na base racional dos juzos sociais e decises pblicas na escolha entre alternativas sociais. Os resultados do processo da escolha social assumem a forma de ordenaes de diferentes estados de coisas desde um ponto de vista social, luz das avaliaes das pessoas envolvidas. (...)

109- a distncia entre o transcendental e o comparativo

(...) A teoria transcendental no precisa ser o que chamamos na Introduo de teoria conglomerada (resolvendo simultaneamente questes transcendentais e comparativas), e, mesmo que haja uma maior articulao na argumentao rawlsiana sobre questes comparativas do que em muitas outras teorias transcendentais, ainda resta um grande abismo. Rawls no necessita de uma teoria conglomerada para seus princpios de justia (que identificam perfeitamente as instituies justas), e ele no oferece tal teoria.

TEORIA CONGLOMERADA (

110(...) Em particular, comparaes da distncia da transcendncia qual os diferentes arranjos sociais se encontram poderiam ser a base de tal avaliao comparativa? (...)

As crenas implcitas na suficincia ou na necessidade (ou em ambas) de uma abordagem transcendental para a avaliao comparativa tiveram claramente um papel poderoso na convico generalizada de que a abordagem transcendental crucial para toda a teoria da justia. (...)

113- abordagem transcendental suficiente?

(...) A busca pela justia transcendental pode ser um exerccio intelectual atrativo em si, mas - independentemente de concebermos a transcendncia quanto ao correto sem graduaes ou no mbito dos melhores de uma classificao graduada - ele no nos diz muito sobre os mritos comparativos

de diferentes arranjos sociais.

- abordagem transcendental necessria?

(...) A possibilidade de haver uma alternativa identificavelmente perfeita no indica que seja necessrio, ou mesmo til, fazer referncia a ela ao julgar os mritos relativos de duas outras alternativas; (...)

116- juzos comparativos identificam a transcendncia?

(...) A aceitabilidade da incompletude avaliativa sem dvida um assunto central em toda teoria da escolha social, e relevante para as teorias da justia tambm, apesar de a justia como equidade rawlsiana e outras teorias similares firmemente afirmarem (e uma afirmao, em vez de algo de fato estabelecido pelos argumentos apresentados) que um acordo pleno com certeza surgir na posio original e em outros formatos afins.

117(...) Uma teoria sistemtica da justia comparativa no precisa de uma resposta (nem necessariamente a produz) para a pergunta o que uma sociedade justa?.

117 e ss.- a escolha social como estrutura argumentativa

Quais so, ento, os pontos de relevncia da teoria da escolha social para a teoria da justia? Existem muitas ligaes, mas vou concentrar-me aqui em sete pontos de contribuio significativa, alm do foco nas realizaes sociais (j discutido).

1) Focalizar as comparaes, e no apenas o transcendental (pg. 117)

2) Reconhecer a pluralidade inescapvel de princpios concorrentes (pg. 117)

3) Permitir e facilitar o reexame (pg. 117)

4) Permitir solues parciais (pg. 118)

5) Permitir a diversidade de interpretaes e inputs (pg. 119)

6) Enfatizar a articulao e a argumentao precisas (pg. 120)

7) Especificar o papel da argumentao pblica (pg. 121)

123- a dependncia mtua entre reforma institucional e mudana comportamental

(...) a ligao fundamental entre a argumentao pblica, por um lado, e as demandas de decises sociais participativas, por outro, fundamental no apenas para o desafio prtico de tornar a democracia mais efetiva, mas tambm para o problema conceitual de basear uma ideia devidamente articulada de justia social nas exigncias da escolha social e da equidade. Ambos os exerccios tm um lugar importante na tarefa na qual esta obra est envolvida.

1255. Imparcialidade e objetividade(...) No pensamento classificatrio de hoje, a primeira posio (a de Burke sobre o domnio britnico na ndia) pode parecer de esquerda, enquanto a segunda (a de Burke sobre a Revoluo Francesa) seria considerada de direita, mas elas se encaixam perfeitamente com relao aos prprios princpios de Burke e so bem coerentes.

129- imparcialidade, compreenso e objetividade

(...) A alegao de Wollstonecraft sobre a correo essencial da incluso de todas as pessoas na contabilidade moral e poltica ou a afirmao de Sidgwick da verdade da universalidade e da no tendenciosidade envolvem questes tanto de compreenso interpessoal como de veracidade geral. (...)

131- emaranhamentos, linguagem e comunicao

(...) O primeiro item que Gramsci lista sob essa rubrica a prpria linguagem, que uma totalidade de noes e conceitos determinados e no apenas de palavras gramaticalmente vazias de contedo. Seria difcil deixar de perceber a relevncia disso para vermos a linguagem e a comunicao de maneira antropolgica, o que Sraffa defendeu diante de Wittgenstein, e essa de fato uma das principais preocupaes dos Cadernos do crcere, de Gramsci.

132- argumentao pblica e objetividade

(...) A objetividade em cada sentido tem um papel nesse mtodo de argumentao pblica, e os papis esto inter-relacionados, mas no so exatamente iguais.

- diferentes domnios de imparcialidade

O lugar de imparcialidade na avaliao da justia social e dos arranjos sociais fundamental para a compreenso da justia, vista a partir dessa perspectiva. H, no entanto, uma distino fundamental entre duas maneiras bem diferentes de invocar a imparcialidade, e esse contraste precisa de mais investigao. Vou cham-las respectivamente imparcialidade aberta e fechada. (...)

132 / 133No caso da imparcialidade fechada, o processo de fazer juzos imparciais invoca apenas os membros de dada sociedade ou nao (ou o que John Rawls chama de determinado povo), para quem os juzos esto sendo feitos. O mtodo de Rawls da justia como equidade usa o dispositivo de uma posio original, e um contrato social nela baseado, entre os cidados de determinada comunidade poltica. Nenhum outsider est envolvido em (ou uma parte de) tal procedimento contratualista. Em contrapartida, no caso da imparcialidade aberta, o processo de fazer avaliaes imparciais pode (e, em alguns casos, deve) invocar juzos, entre outros, de fora do grupo focal, para evitar o vis paroquial. No famoso uso de Adam Smith do dispositivo do espectador imparcial, a exigncia de imparcialidade requer, como ele explica em Teoria dos sentimentos morais, que sejam invocados juzos desinteressados de qualquer espectador justo e imparcial, no necessariamente (na verdade, por vezes, idealmente no) pertencentes ao grupo focal. As vises imparciais podem vir de longe ou de dentro de uma comunidade ou nao ou cultura. Smith argumentou que h espao para - e necessidade de - ambas.

1366. Imparcialidades fechada e aberta

(...) Portanto, o argumento smithiano no apenas admite, mas exige, a considerao das opinies dos outros, que esto distantes e prximos. Esse procedimento para alcanar a imparcialidade , nesse sentido, aberto em vez de fechado e limitado s perspectivas e aos entendimentos da comunidade local.

137 / 138- a posio original e os limites do contratualismo

(...) a estrutura contratualista da justia como equidade que faz com que Rawls limite as deliberaes na posio original para um grupo politicamente segregado cujos membros nasceram na sociedade em que levam suas vidas. (...)

138(...) O procedimento smithiano inclui, como resultado, a insistncia de que o exerccio de imparcialidade deve ser aberto (em vez de localmente fechado), j que s podemos fazer isso esforando-nos para ver [nossos prprios sentimentos e motivaes] com os olhos de outras pessoas, ou como outras pessoas provavelmente os veriam.

140- cidados de um estado e de outros

Para concluir essa discusso, a avaliao da justia exige um compromisso com os olhos da humanidade; em primeiro lugar, porque podemos nos identificar de forma variada com as pessoas de outros lugares e no apenas com nossa comunidade local; em segundo, porque nossas escolhas e aes podem afetar as vidas dos outros, estejam eles distantes, estejam prximos; e terceiro, porque o que eles veem desde suas respectivas perspectivas histricas e geogrficas pode nos ajudar a superar nosso prprio paroquialismo.

Superao do nosso paroquialismo

144(...) O acordo que surge a partir de uma estrutura pblica de pensamento pode ser do tipo parcial, mas til.

146No que segue, vou concentrar-me em algumas questes especficas que esto firmemente relacionadas com a forma fechada da imparcialidade buscada atravs da posio original. As possveis limitaes podem ser classificadas em trs tipos gerais:

(1) Negligncia na excluso

(2) Incoerncia na incluso

(3) Paroquialismo processual

148- negligncia na excluso e justia global

152- incoerncia na incluso e plasticidade do grupo focal

155- imparcialidade fechada e paroquialismo

163Parte ii - formas de argumentao racional

7. Posio, relevncia e iluso

A necessidade de transcender as limitaes de nossas perspectivas posicionais importante na filosofia moral e poltica, e na teoria do direito. A libertao do isolamento posicional pode nem sempre ser fcil, mas um desafio que o pensamento tico, poltico e jurdico tem de incorporar. Temos de ir alm daquele juiz que livremente ofende aquele humilde ladro.

163 / 164- a posicionalidade da observao e do conhecimento

Tentar ir alm do confinamento posicional tambm central para a epistemologia. H, no entanto, um problema com a observao e, muitas vezes, um obstculo compreenso do que est acontecendo a partir da perspectiva limitada daquilo que observamos. O que podemos ver no independente de onde estamos em relao ao que estamos tentando ver. E isso, por sua vez, pode influenciar nossas crenas, compreenso e decises. As observaes, crenas e escolhas posicionalmente dependentes podem ser importantes para a tarefa do conhecimento, bem como para a razo prtica. Na verdade, a epistemologia, a teoria da deciso e a tica, todas tm de levar em conta a dependncia das observaes e inferncias daposio de observador. Obviamente, nem toda objetividade diz respeito aos objetos, como foi discutido acima,a mas, na medida em que as observaes e as compreenses observacionais esto envolvidas na natureza da objetividade que est sendo procurada, a posicionalidade das observaes deve ser levada em conta.

164A objetividade posicional exige a invarincia interpessoal quando a posio observacional fixa, e essa exigncia inteiramente compatvel com variaes do que visto de posies diferentes. Diferentes pessoas podem ocupar a mesma posio e confirmar a mesma observao; e a mesma pessoa pode ocupar diferentes posies e fazer observaes dissimilares.

165- o esclarecimento e a iluso da posicionalidadeAo contrrio, o que pode ser chamado de objetividade posicional diz respeito objetividade do que pode ser observado a partir de uma posio especfica. Estamos interessados em observaes e na observabilidade que no variam com a pessoa, mas que so relativas posio, exemplificadas por aquilo que somos capazes de ver a partir de dada posio. O tema de uma avaliao objetiva no sentido posicional algo que pode ser verificado por qualquer pessoa normal ocupando determinada posio observacional. Como exemplificado pelas afirmaes sobre o tamanho relativo do Sol e da Lua, o que observado pode variar de posio a posio, mas diferentes pessoas podem realizar as respectivas observaes da mesma posio e fazer observaes idnticas.

168A busca de algum tipo de compreenso do mundo que seja independente da posio fundamental para o esclarecimento tico que pode ser procurado em uma abordagem no relacional. Quando Mary Wollstonecraft ridicularizou Edmund Burke por seu apoio Revoluo Americana, sem ter nenhum interesse na condio dos escravos, como se a liberdade que ele apoiou para os americanos brancos no precisasse ser aplicada a seus escravos negros (como foi discutido no captulo 5), Wollstonecraft estava defendendo uma perspectiva universalista que superaria os preconceitos posicionais e o favoritismo divisrio. O essencial a no a compreenso posicional, mas algum tipo de compreenso transposicional. Assumir um ponto de vista desde lugar nenhum seria, obviamente, a ideia adequada nesse contexto.

- iluses objetivas e objetividade posicional

Mesmo quando um ponto de vista independente da posio o apropriado para uma avaliao epistemolgica, tica ou poltica, a realidade da dependncia posicional das observaes pode ter de ser levada em conta para explicar a dificuldade de conseguir uma compreenso posicionalmente no tendenciosa. Manter perspectivas posicionais pode ter um importante papel de dificultar s pessoas a superao de pontos de vista posicionalmente limitados.

169(...) Ao explicar a tolerncia incontestada da assimetria e da discriminao sociais que podem ser vistas em muitas sociedades tradicionais, a ideia de objetividade posicional tem certa contribuio cientfica a fazer, fornecendo-nos um insight sobre a gnese de uma aplicao ilegtima da compreenso posicional (quando o necessrio uma compreenso transposicional).

(...) O conceito de uma iluso objetiva invoca a ideia de crena posicionalmente objetiva e o diagnstico transposicional de que essa crena , de fato, equivocada.

170- sade, morbidade e variaes posicionais

O prprio uso de Marx da ideia de iluso objetiva era feito, principalmente, no contexto da anlise de classes, e o levou a sua investigao do que chamou de falsa conscincia. (...)

171A iluso de baixa morbidade nos estados socialmente atrasados da ndia de fato tem uma base objetiva posicionalmente objetiva para uma populao com educao escolar e experincia mdica limitadas. A objetividade posicional desses diagnsticos paroquialmente equivocados exige ateno, e os cientistas sociais dificilmente podem descart-los apenas como subjetivos e caprichosos. Mas essas autopercepes tampouco podem ser consideradas reflexos precisos da sade e da doena em uma compreenso transposicional adequada.

172 / 173- discriminao de gnero e iluses posicionais

A ideia de objetividade de posicionamento particularmente importante na compreenso da desigualdade de gnero em geral (...)

- posicionalidade e a teoria da justia

Essa questo muito importante para a formulao de uma teoria da justia e, mais especificamente, para explorar uma teoria que atribua um papel especial argumentao pblica na compreenso das exigncias da justia. O alcance da argumentao pblica pode ser limitado na prtica pela forma como as pessoas leem o mundo em que vivem. (...)

Embora a posicionalidade da observao e da construo desempenhe um papel importante no processo de avano do conhecimento cientfico, ela mais amplamente significativa na formao da opinio em geral: na compreenso social, bem como na busca das cincias naturais. Na verdade, o papel da posicionalidade pode ser particularmente importante na interpretao das iluses persistentes e sistemticas que podem influenciar e distorcer de forma significativa a compreenso social e a avaliao dos assuntos pblicos.

174- superando as limitaes posicionais

Na busca da justia, as iluses posicionais podem impor srios entraves que precisam ser superados atravs do alargamento da base informacional das avaliaes, que uma das razes pela qual Adam Smith exigiu que as perspectivas desde outros lugares, incluindo os longnquos, tm de ser sistematicamente invocadas (ver captulo 6). Embora muito possa ser feito atravs do uso deliberado da imparcialidade aberta, no podemos esperar realizar inteiramente um avano sem problemas desde pontos de vista posicionais at uma derradeira viso desde lugar nenhum. (...)Tudo isso no indica, porm, que a posicionalidade no possa ser parcial ou totalmente superada de modo a nos levar a uma viso menos limitada. Aqui tambm (como na escolha do foco de uma teoria da justia) podemos razoavelmente buscar por comparaes, e no pelo objetivo utpico da transcendncia. A ampliao comparativa faz parte do persistente interesse no trabalho inovador na epistemologia, tica e poltica, e produziu um grande nmero de recompensas na histria intelectual do mundo. O nirvana da total independncia de caractersticas pessoais no a nica questo na qual temos razo para nos interessar.

177- quem nosso vizinho?

largueza das vises dos homens que a busca da imparcialidade aberta recorre. E a crescente fora de suas mtuas conexes que faz com que as fronteiras da justia ainda cresam mais. (...)

1818. A racionalidade e as outras pessoasH, no entanto, uma questo metodolgica bastante bsica sobre o uso da maximizao na economia que exige certa ateno prvia. Trata-se da dupla utilizao do comportamento maximizador na economia: como dispositivo preditivo (conjeturando sobre o que provavelmente acontecer) e como critrio de racionalidade (avaliando quais normas devem ser seguidas para que a escolha seja considerada racional). A identificao de duas questes muito diferentes (a saber, a escolha racional e a escolha real), uma prtica bastante padro em grande parte da economia contempornea, levanta uma pergunta-chave sobre se a escolha racional (no importando como ela possa ser devidamente caracterizada) seria de fato um bom instrumento de previso do que de fato escolhido. H obviamente alguma coisa para discutir e analisar aqui.

183- decises racionais e escolha real(...) Friedman chegou a afirmar que at mesmo o que vamos considerar como uma descrio realista no deve basear-se na veracidade da representao, mas em verificar se a teoria funciona, o que significa se ela produz previses suficientemente precisas. Essa , na verdade, uma viso muito especial do realismo descritivo.

184- a escolha racional versus a chamada teoria da escolha racional

Uma resposta que ganhou popularidade na economia e, mais recentemente, na poltica e no direito que as pessoas escolhem racionalmente se e apenas se elas inteligentemente buscam realizar o seu autointeresse, e nada mais. Essa abordagem bastante estreita da escolha racional recebe o ambicioso nome estranhamente no sectrio de teoria da escolha racional ( chamada apenas assim, um tanto surpreendentemente, sem nenhuma outra qualificao). A marca teoria da escolha racional, ou ter, para abreviar, caracteriza a racionalidade da escolha simplesmente como a maximizao inteligente do autointeresse.

188A possibilidade da pluralidade de razes sustentveis no apenas importante para fazer justia racionalidade; tambm distancia a ideia de escolha racional de seu papel putativo de simples instrumento de previso da escolha real, como ela tem sido amplamente utilizada na economia dominante. Mesmo que cada escolha real resulte ser sempre racional, no sentido de ser sustentvel passando pela crtica, a pluralidade da escolha racional torna difcil obter uma previso nica da escolha real de uma pessoa a partir da ideia de racionalidade apenas.

189- o estreitamento da economia dominante

O mesmo vale e de maneira muito mais articulada para a linha de pensamento sobre essas questes desenvolvida por Adam Smith, o pai da economia moderna. Com frequncia se pensa erroneamente em Smith como um defensor do pressuposto da busca exclusiva do autointeresse, na forma do chamado homem econmico. Na verdade, Smith discutiu bastante elaboradamente as limitaes da pressuposio de uma busca universal do autointeresse. Ele apontou o fato de que o amor-prprio, como ele chamava o impulso subjacente por trs do comportamento estritamente autointeressado, pudesse ser apenas uma das muitas motivaes que os seres humanos tm. Ele distinguiu claramente entre as diferentes razes para ir contra os ditames do amor-prprio, (...)

191Smith tambm observou que s vezes nosso comportamento moral tende a assumir a forma de simplesmente seguir as convenes estabelecidas. Embora Smith tenha sustentado que homens reflexivos e especulativos possam ver a fora de alguns desses argumentos morais com mais facilidade do que a maior parte da humanidade, no h nenhuma sugesto, em seus escritos, de que as pessoas comuns sistematicamente no conseguem ser influenciadas pelas consideraes morais ao escolher como agir. importante notar, porm, o reconhecimento de Smith de que, mesmo quando somos movidos pelas implicaes dos argumentos morais, podemos no os ver nessa forma explcita e podemos perceber nossas escolhas como aes conforme as prticas bem estabelecidas em nossa sociedade.

No entanto, embora Smith tenha sido perfeitamente claro sobre a importncia de uma variedade de motivaes que, direta ou indiretamente, movem os seres humanos (como foi salientado no incio deste captulo), uma grande parte da economia moderna tem se deixado enganar, cada vez mais, pela simplicidade de ignorar todas as outras motivaes distintas da busca do autointeresse, e a marca chamada teoria da escolha racional ainda elevou essa falsamente alegada uniformidade do comportamento humano a princpio bsico da racionalidade.

192- autointeresse, simpatia e compromisso

Ainda que a chamada teoria da escolha racional pressuponha que a racionalidade da escolha caracterizada pela busca inteligente do autointeresse, no necessrio excluir a possibilidade de que uma pessoa possa ter simpatia ou antipatia em relao s outras.

192 / 193A simpatia combinvel com o comportamento autointeressado, e perfeitamente compatvel mesmo com o que Adam Smith chamou de amor-prprio. Se algum tenta remover a misria dos outros s porque e somente na medida em que afeta seu prprio bem-estar, isso no significa um afastamento do amor-prprio como a nica razo aceita para a ao. Mas, se algum est comprometido, digamos, a fazer o que pode ser feito para eliminar a misria dos outros seja o prprio bem-estar afetado ou no, e no apenas na medida em que seu prprio bem-estar seja assim influenciado ento isso um claro afastamento do comportamento autointeressado.

193(...) Na verdade, as pessoas no precisam ser egocntricas para serem autointeressadas, e podem levar em conta os interesses dos outros dentro de sua prpria utilidade. (...)

196- compromissos e objetivos

No h nada de muito peculiar, tolo ou irracional em sua deciso de deixar os outros em paz. Vivemos em um mundo no qual h muitas outras pessoas, e podemos dar espao a sua prpria maneira de viver, mesmo sem tomar seu caminho como algo que temos de ver como bom de promover. O compromisso pode assumir a forma no s de querer perseguir objetivos que no sejam inteiramente parasitrios do autointeresse, mas tambm de seguir as regras do comportamento aceitvel, talvez at generoso, que restringem nossa tendncia a sermos guiados exclusivamente pela promoo de nossos prprios objetivos, independentemente de seu impacto sobre os outros. Ser atencioso com os desejos e objetivos dos outros no precisa ser visto como uma violao da racionalidade.

1999. A pluralidade de razes imparciais

Argumentou-se no ltimo captulo que no h nada de extraordinrio ou irracional em fazer escolhas e tomar decises que ultrapassam as fronteiras estreitas da busca exclusiva do autointeresse. Os objetivos das pessoas podem ir muito alm da promoo obstinada do autointeresse apenas, e suas escolhas podem at ir alm da obstinada busca de seus objetivos pessoais, talvez movidas por algum interesse pela decncia no comportamento, permitindo aos outros que tambm busquem seus objetivos. A insistncia da chamada teoria da escolha racional na definio de racionalidade simplesmente como promoo inteligente do autointeresse d pouco valor ao uso humano da razo.

200As exigncias de escrutnio precisariam ser refinadas e acentuadas quando passamos da ideia de racionalidade para a de razoabilidade, se seguirmos a interpretao de John Rawls dessa distino. Como foi discutido no captulo 5, a ideia de objetividade na razo prtica e no comportamento pode ser sistematicamente vinculada s exigncias de imparcialidade. Partindo disso, podemos assumir que o padro relevante de objetividade dos princpios ticos est ligado a sua defensibilidade em uma estrutura aberta e livre de argumentao pblica. As perspectivas e avaliaes de outras pessoas, bem como seus interesses, teriam um papel aqui de uma forma que a racionalidade por si no necessita exigir.

201 / 202- o que os outros no podem razoavelmente rejeitar

O critrio de Scanlon diferente das exigncias de equidade de Rawls feitas atravs do dispositivo da posio original, que foi analisado acima? Certamente, h uma forte conexo entre os dois. Na verdade, o vu de ignorncia na posio original (segundo o qual ningum sabe quem ser no mundo real) foi concebido por Rawls para fazer as pessoas verem alm de seus interesses pelo prprio benefcio e objetivos pessoais. No entanto, existem diferenas substanciais entre a abordagem firmemente contratualista de Rawls, centrada, em ltima instncia, nos benefcios mtuos resultantes do acordo, e a anlise mais ampla da argumentao feita por Scanlon (apesar de Scanlon turvar bastante a gua ao insistir em chamar sua prpria abordagem de contratualista).

204- a pluralidade da no rejeitabilidade

Algo bastante importante est envolvido na compreenso da pluralidade de razes robustas e imparciais que podem surgir a partir da anlise penetrante. Como foi discutido na Introduo, temos diferentes tipos de razes concorrentes de justia, e pode ser impossvel rejeitar todas com exceo de um s conjunto de princpios complementares que se harmonizam bem e integralmente uns com os outros. Mesmo quando uma pessoa tem uma prioridade claramente favorita, essas prioridades podem variar de pessoa para pessoa, e pode ser difcil para algum rejeitar razes completa e possivelmente bem defendidas s quais os outros do prioridade.

205- os benefcios mtuos da cooperao

No difcil ver por que a abordagem contratualista atrai alguns supostos realistas que querem que o comportamento decente surja de alguma considerao ltima relacionada vantagem pessoal. O desejo de Rawls de ver a sociedade como um sistema justo de cooperao se encaixa bem nessa perspectiva geral. Como Rawls diz, a ideia da cooperao inclui a ideia de vantagem racional ou o bem de cada participante e a ideia de vantagem racional especifica o que que as pessoas envolvidas na cooperao esto buscando promover desde o ponto de vista de seu prprio bem. Existe algo em comum aqui com a perspectiva do autointeresse da teoria da escolha racional, exceto que se usa nas condies da posio original, com um vu de ignorncia sobre as identidades pessoais. Alm disso, todas as pessoas envolvidas reconhecem claramente que no podem conseguir o que desejam sem a cooperao dos outros. Assim, o comportamento cooperativo escolhido como uma norma de grupo para o benefcio de todos, e envolve a escolha conjunta dos termos que cada participante pode razoavelmente aceitar e s vezes deveria aceitar, desde que todos os outros os aceitem da mesma forma.

206- o argumento contratualista e seu alcance

Resta pouca dvida de que o argumento prudencial com base ltima no benefcio mtuo , a favor da cooperao social e, atravs desta, da moralidade social e poltica, tem ampla relevncia para a compreenso das sociedades e de seus sucessos e fracassos. A linha contratualista de argumentao tem feito muito para explicar e desenvolver a perspectiva da cooperao social atravs de desvios ticos, bem como de arranjos institucionais. A filosofia poltica e a antropologia explicativa foram bastante reforadas pelo discernimento gerado pelo argumento contratualista.

207 / 208Atravs da anlise rawlsiana da justia como equidade, o argumento contratualista desenvolve um alcance que o leva muito alm do antigo territrio da literatura contratualista. Contudo, o foco na vantagem individual em geral, e na vantagem mtua em particular, central tambm para a linha argumentativa rawlsiana (ainda que de forma sofisticada), em comum com toda a abordagem contratualista. Apesar do que conseguido pelo argumento contratualista nessa forma ampliada, uma pergunta que aguarda exame saber se a busca da vantagem, de forma direta ou indireta, fornece a nica base slida para o comportamento razovel na sociedade. Uma pergunta relacionada se o benefcio mtuo e a reciprocidade devem ser os fundamentos de toda razoabilidade poltica.

209- o poder e suas obrigaes

O essencial aqui reconhecer a existncia de diferentes abordagens da busca do comportamento razovel, e nem todas elas precisam depender necessariamente do argumento sobre a cooperao mutuamente benfica baseada na vantagem. A busca de benefcios mtuos, na forma hobbesiana direta ou na forma rawlsiana annima, tem enorme relevncia social, mas no a nica espcie de argumento relevante para a discusso do que poderia ser considerado um comportamento razovel.

210O benefcio mtuo, baseado na simetria e reciprocidade, no o nico fundamento para pensar no comportamento razovel em relao aos outros. O poder efetivo e as obrigaes que surgem dele de maneira unilateral tambm podem ser uma base importante para o raciocnio imparcial, que vai muito alm da motivao pelos benefcios mtuos.

21410. Realizaes, consequncias e agncia

- os argumentos de Arjuna

Na verdade, essa uma dicotomia com duas posies substanciais, cada uma das quais podendo ser defendida de diferentes formas. A batalha de Kurukshetra mudou a vida das pessoas no pas, como vemos no prprio pico, e as decises sobre o que deve ser feito exigem uma ampla avaliao crtica e no uma simples resposta baseada na rejeio de todas as outras consideraes, exceto a identificao do suposto dever de Arjuna de lutar a qualquer preo, qual se chega atravs de um enfoque que ignora as consequncias.

217 / 218- resultados abrangentes e de culminao

Uma vez que os argumentos baseados em consequncias so frequentemente considerados como interessados nos resultados (e, em alguns casos, interpretados como interessados somente nos resultados), para compreender os argumentos de Arjuna seria til examinar a noo de resultado de forma mais prxima e crtica do que ela geralmente tratada. Um resultado significa o estado de coisas consequente de qualquer varivel relativa deciso em questo, assim como uma ao, uma regra ou uma disposio. Mesmo que a possibilidade de descrever qualquer estado de coisas em sua totalidade no seja credvel (podemos sempre acrescentar mais alguns detalhes, se necessrio, por meio de uma lupa focada sobre eventos e aes), a ideia bsica de um estado de coisas pode ser informativamente rica por permitir que atentemos para todas as caractersticas que consideramos importantes.

218Em minhas obras anteriores sobre a teoria da deciso e da escolha racional, defendi a importncia de prestar especial ateno aos resultados abrangentes, que incluem as aes realizadas, as agncias envolvidas, os processos utilizados etc., junto com os resultados simples separados de processos, agncias e relaes o que tenho chamado de resultados de culminao. Essa distino pode ser fundamental para alguns problemas na economia, na poltica, na sociologia e na teoria geral das decises racionais e dos jogos. Acontece que a distino tambm crucial para avaliar o alcance do raciocnio baseado em consequncias, visto que uma consequncia mais do que um mero efeito. A valorao dos resultados abrangentes pode ser uma parte integrante da avaliao de estados de coisas e, portanto, um elemento fundamental da avaliao consequencialista.

219 / 220- consequncias e realizaes

(...) importante notar que o raciocnio sensvel s consequncias necessrio para uma compreenso adequadamente ampla da ideia de responsabilidade. Isso tem de ser parte da disciplina da escolha responsvel, baseada na avaliao dos estados de coisas feita por quem escolhe, incluindo a considerao de todas as consequncias relevantes luz das escolhas feitas e os resultados abrangentes associados ao que acontece como resultado. Essa questo substantiva no est, claro, diretamente relacionada com o uso do termo consequencialismo. Se as ideias de responsabilidade e de realizaes sociais, como exploradas aqui, devem ser colocadas em uma cesta suficientemente larga chamada consequencialismo no uma questo de muito interesse substancial (da mesma forma que tais ideias so substancialmente interessantes).

221- realizaes e agncias

Dada a importncia dos estados de coisas nas realizaes sociais, uma questo que poderia ocorrer a muito crticos do raciocnio consequencialista esta: se quisermos levar em conta a agncia, os processos e as relaes pessoais, h esperana real de obtermos um sistema coerente de avaliao das realizaes sociais no qual as decises arrazoadas e responsveis possam ser baseadas? Tendo em conta as exigncias de consistncia, como possvel que duas pessoas avaliem o mesmo estado de coisas de forma diferente, dependendo de suas respectivas aes e responsabilidades? O problema percebido aqui surge claramente da tentao de considerar a avaliao das realizaes sociais em termos estritamente impessoais. A insistncia de que voc e eu, se seguirmos o mesmo sistema tico, temos de avaliar um resultado abrangente exatamente da mesma maneira corresponde s exigncias da tica utilitarista, que obviamente um caso clssico de raciocnio consequencialista, mas altamente restritivo quanto informao. Insistir na mesma exigncia na avaliao de resultados abrangentes, mesmo quando estamos interessados nas agncias, nas relaes e nos processos, parece ser totalmente arbitrrio e, de fato, motivacionalmente contraditrio.

226 / 227Parte iii Os materiais da justia

11. Vidas, liberdades e capacidades

Ao avaliarmos nossas vidas, temos razes para estarmos interessados no apenas no tipo de vida que conseguimos levar, mas tambm na liberdade que realmente temos para escolher entre diferentes estilos e modos de vida. Na verdade, a liberdade para determinar a natureza de nossas vidas um dos aspectos valiosos da experincia de viver que temos razo para estimar. O reconhecimento de que a liberdade importante tambm pode ampliar as preocupaes e os compromissos que temos. Poderamos optar por usar nossa liberdade para melhorar muitos objetivos que no so parte de nossas prprias vidas em um sentido restrito (por exemplo, a preservao de espcies animais ameaadas de extino). Trata-se de um tema importante na abordagem de questes tais como as exigncias da responsabilidade ambiental e do desenvolvimento sustentvel. Voltarei a esse importante tema mais tarde, aps um exame geral da perspectiva da liberdade na avaliao das vidas humanas.

227 / 228- valorizando a liberdadePodemos, claro, tentar fazer comparaes estatsticas sobre a frequncia relativa com que a ideia de liberdade invocada em diferentes regies do mundo durante diversos perodos da histria, e poderiam de fato emergir algumas interessantes concluses numricas, mas h pouca esperana de capturar a distino ideolgica entre ser favorvel ou contrrio liberdade em alguma grande dicotomia geogrfica.

228- liberdade: oportunidades e processos

A liberdade valiosa por pelo menos duas razes diferentes. Em primeiro lugar, mais liberdade nos d mais oportunidade de buscar nossos objetivos tudo aquilo que valorizamos. Ela ajuda, por exemplo, em nossa aptido para decidir viver como gostaramos e para promover os fins que quisermos fazer avanar. Esse aspecto da liberdade est relacionado com nossa destreza para realizar o que valorizamos, no importando qual o processo atravs do qual essa realizao acontece. Em segundo lugar, podemos atribuir importncia ao prprio processo de escolha. Podemos, por exemplo, ter certeza de que no estamos sendo forados a algo por causa de restries impostas por outros. A distino entre o aspecto de oportunidade e o aspecto de processo da liberdade pode ser significativa e tambm de longo alcance.

229A distino entre resultado de culminao e resultado abrangente, discutida anteriormente, relevante aqui. O aspecto de oportunidade da liberdade pode ser visto de diferentes maneiras luz dessa distino. Pode ser definido apenas com relao oportunidade para resultados de culminao (com o que uma pessoa acaba), se vemos uma oportunidade desse modo particularmente estreito e consideramos que a existncia de opes e a liberdade de escolha no tm maior importncia. Como alternativa, podemos definir de forma mais ampla a oportunidade e acredito que com maior plausibilidade quanto realizao de resultados abrangentes, levando tambm em conta a forma como a pessoa atinge a situao culminante (por exemplo, quer atravs de sua prpria escolha, quer por meio dos ditames dos outros).

230A distino entre as vises estreita e ampla da oportunidade ser bastante central quando passarmos da ideia bsica da liberdade a conceitos mais especficos, como as capacidades que uma pessoa tem. Devemos examinar, nesse contexto, se a capacidade de uma pessoa para levar o tipo de vida que valoriza deve ser avaliada apenas pela alternativa da culminao com a qual ela realmente acabaria, ou atravs do uso de uma abordagem mais ampla, que leve em conta o processo de escolha envolvido, em especial as alternativas que ela tambm poderia escolher, dentro de sua aptido real para faz-lo.

230 / 231- a abordagem das capacidades

Em contraste com as linhas de pensamento baseadas na utilidade ou nos recursos, na abordagem das capacidades a vantagem individual julgada pela capacidade de uma pessoa para fazer coisas que ela tem razo para valorizar. Com relao s oportunidades, a vantagem de uma pessoa considerada menor que a de outra se ela tem menos capacidade menos oportunidade real para realizar as coisas que tem razo para valorizar. O foco aqui a liberdade que uma pessoa realmente tem para fazer isso ou ser aquilo coisas que ela pode valorizar fazer ou ser.

Obviamente, muito importante para ns sermos capazes de realizar as coisas que mais valorizamos. Mas a ideia de liberdade tambm diz respeito a sermos livres para determinar o que queremos, o que valorizamos e, em ltima instncia, o que decidimos escolher. O conceito de capacidade est, portanto, ligado intimamente com o aspecto de oportunidade da liberdade, visto com relao a oportunidades abrangentes, e no apenas se concentrando no que acontece na culminao.

233No difcil perceber que o raciocnio subjacente a essa mudana de rumo em favor da capacidade pode fazer uma diferena significativa e construtiva.

- por que ir alm da realizao, oportunidade?

O ncleo da abordagem das capacidades no , portanto, apenas o que uma pessoa realmente acaba fazendo, mas tambm o que ela de fato capaz de fazer, quer escolha aproveitar essa oportunidade, quer no.

236(...) h muitas razes positivas pelas quais seria sensato usar a perspectiva informacional mais ampla das capacidades em vez de se concentrar apenas no ponto de vista, mais restrito em termos informacionais, dos funcionamentos realizados.

237- o medo da incomensurabilidade

(...) Dado que os resultados so todos reduzidos a uma dimenso, s precisamos verificar o quanto de uma nica coisa boa, qual cada valor reduzido, cada respectiva opo fornece.

239- valorao e argumentao pblicaA avaliao refletida demanda raciocnio sobre a importncia relativa, e no apenas contando. Esse um exerccio no qual estamos constantemente envolvidos. A esse entendimento geral preciso adicionar a eventual importncia do exerccio da razo pblica como forma de estender o alcance e a confiabilidade das valoraes e de torn-las mais robustas. A necessidade de anlise e avaliao crtica no apenas uma exigncia de avaliao autocentrada por parte de indivduos isolados, mas um indicador da fecundidade do debate pblico e da argumentao pblica interativa: as avaliaes sociais podem carecer de informaes teis e bons argumentos se forem inteiramente baseadas em reflexes solitrias. A discusso pblica e a deliberao podem levar a uma melhor compreenso do papel, do alcance e do significado de funcionamentos especficos e suas combinaes.

240- capacidades, indivduos e comunidades

(...) As capacidades so vistas sobretudo como atributos das pessoas, no das coletividades, assim como das comunidades. Naturalmente, no h maior dificuldade em pensar nas capacidades dos grupos. (...)

241De fato, alguns crticos da abordagem das capacidades tm visto na concentrao sobre as capacidades das pessoas a influncia maligna do chamado no um elogio individualismo metodolgico. Comeo discutindo, em primeiro lugar, por que identificar a abordagem das capacidades como individualismo metodolgico seria um erro significativo. Mesmo que o chamado individualismo metodolgico tenha sido definido de muitas maneiras diferentes, Frances Stewart e Sverine Deneulin focam na crena de que todos os fenmenos sociais devem ser explicados com relao quilo que os indivduos pensam, escolhem e fazem. Sem dvida, tem havido escolas de pensamento baseadas no pensamento, na escolha e na ao individuais, independentemente da sociedade em que ocorrem. Mas a abordagem das capacidades no s no supe tal separao como seu interesse nas aptides das pessoas para viver o tipo de vida que elas tm razo para valorizar traz influncias sociais, tanto com relao ao que elas valorizam (por exemplo, tomar parte na vida da comunidade) quanto com relao s influncias que atuam sobre seus valores (por exemplo, a relevncia do exerccio da razo pblica na avaliao individual).

246Sem dvida as pessoas tm necessidades, mas elas tambm tm valores e, em particular, apreciam sua capacidade de raciocinar, avaliar, escolher, participar e agir. Ver as pessoas apenas de acordo com suas necessidades pode nos dar uma viso muito pobre da humanidade.

247Para usar uma distino medieval, no somos apenas pacientes cujas necessidades merecem considerao, mas tambm agentes cuja liberdade de decidir o que valorizar e a forma de busc-lo pode se estender muito alm de nossos prprios interesses e necessidades. O significado de nossa vida no pode ser colocado na caixinha de nossos padres de vida ou da satisfao de nossas necessidades. As necessidades manifestas do paciente, por mais importantes que sejam, no podem eclipsar a relevncia vital dos valores arrazoados do agente.

25012. Capacidades e recursos

J que a ideia da capacidade est ligada liberdade substantiva, ela confere um papel central aptido real de uma pessoa para fazer diferentes coisas que ela valoriza. A abordagem se concentra nas vidas humanas, e no apenas nos recursos que as pessoas tm, na forma de posse ou usufruto de comodidades. Renda e riqueza so muitas vezes tomadas como o principal critrio do xito humano. Ao propor um deslocamento fundamental do foco de ateno, passando dos meios de vida para as oportunidades reais de uma pessoa, a abordagem das capacidades visa a uma mudana bastante radical nas abordagens avaliativas padro amplamente utilizadas em economia e cincias sociais.

251(...) No entanto, apesar de os bens primrios serem, na melhor das hipteses, os meios para os fins valiosos da vida humana, eles prprios so vistos como o principal indicador para julgar a equidade distributiva segundo os princpios rawlsianos de justia. Atravs do reconhecimento explcito de que os meios para a vida humana satisfatria no so eles mesmos os fins da boa vida (o ponto principal do argumento aristotlico), a abordagem das capacidades ajuda a produzir uma significativa ampliao do alcance do exerccio avaliativo.

- a pobreza como privao de capacidade

Uma das questes centrais nesse contexto o critrio de pobreza. A identificao da pobreza com baixa renda est bem estabelecida, mas j existe uma literatura bastante substancial sobre suas insuficincias. O foco rawlsiano sobre os bens primrios mais abrangente do que a renda (de fato, a renda apenas um de seus constituintes), mas a identificao de bens primrios ainda guiada, na anlise de Rawls, por sua busca por meios teis para mltiplos fins, entre os quais a renda e a riqueza so exemplos especficos, e particularmente importantes. No entanto, pessoas diferentes podem ter oportunidades completamente diferentes para converter a renda e outros bens primrios em caractersticas da boa vida e no tipo de liberdade valorizada na vida humana. Assim, a relao entre os recursos e a pobreza varivel e profundamente dependente das caractersticas das respectivas pessoas e do ambiente em que vivem tanto natural como social.

252 / 253A distribuio de recursos e oportunidades dentro da famlia levanta complicaes adicionais para a abordagem da pobreza com base na renda. A renda da famlia aumenta graas a seus membros economicamente ativos, e no a todos os indivduos que a compem, independentemente de idade, sexo e aptido laboral. Se a renda familiar desproporcionalmente usada para promover os interesses de alguns familiares em detrimento de outros (por exemplo, se h uma preferncia sistemtica pelos meninos na alocao dos recursos dentro da famlia), ento a extenso da privao dos membros negligenciados (as meninas, no exemplo considerado) pode no estar adequadamente refletida pelo valor agregado da renda familiar. Essa uma questo crucial em muitos contextos. O preconceito de gnero parece ser um fator importante na atribuio dos recursos da famlia em muitos pases da sia e do norte da frica. A privao das meninas mais facilmente e confiavelmente avaliada pela considerao da privao de capacidades que se traduz, por exemplo, em maior mortalidade, morbidade, desnutrio ou negligncia mdica do que pelos resultados encontrados com base na comparao entre as rendas das diferentes famlias.

253- inaptides, recursos e capacidades

A relevncia das inaptides na compreenso das privaes no mundo muitas vezes subestimada, e esse pode ser um dos argumentos mais importantes para prestar ateno na perspectiva da capacidade. Pessoas com inaptides fsicas ou mentais esto no s entre os seres humanos mais necessitados do mundo, como tambm so, muitas vezes, os mais negligenciados.

(...) Alm disso, no mundo em desenvolvimento, os inaptos so frequentemente os mais pobres dentre os pobres com relao renda, mas, alm disso, sua necessidade de renda maior do que as dos fortes e sos, uma vez que precisam de dinheiro e assistncia para tentar ter vidas normais e aliviar suas desvantagens. A deficincia da capacidade de obter renda, que pode ser chamada de desvantagem da renda, tende a ser reforada e amplificada pelo efeito da desvantagem da converso, isto , pela dificuldade em converter renda e recursos em viver bem, precisamente por causa de suas inaptides.

254Uma compreenso das exigncias morais e polticas das inaptides importante no s porque uma caracterstica muito generalizada e muito prejudicial da humanidade, mas tambm porque muitas de suas trgicas consequncias podem realmente ser superadas de forma substancial com determinada assistncia social e interveno imaginativa. As polticas para lidar com as inaptides podem cobrir um amplo terreno, incluindo a melhoria dos efeitos das desvantagens, por um lado, e os programas de preveno de inaptides, por outro. extremamente importante compreender que muitas inaptides so evitveis, e muito pode ser feito no apenas para diminuir a penalizao das inaptides, mas tambm para reduzir sua incidncia.

255- o uso dos bens primrios por Rawls

Dada a importncia da distncia entre as capacidades e os recursos, por razes j discutidas, difcil no ser ctico em relao ao princpio da diferena proposto por John Rawls, que se concentra inteiramente nos bens primrios para julgar as questes distributivas segundo seus princpios de justia para a base institucional da sociedade. Essa divergncia, com toda a sua importncia, obviamente no significa a falta de preocupao de Rawls com a importncia da liberdade substantiva como j observei neste trabalho. Ainda que os princpios de justia de Rawls se concentrem nos bens primrios, em outro lugar ele se ocupa da necessidade de corrigir esse foco nos recursos para ter uma melhor apreenso da liberdade real das pessoas. A ampla simpatia de Rawls pelos desfavorecidos est abundantemente refletida em suas obras.

257Acredito que Rawls tambm seja motivado por sua preocupao com a equidade distributiva das liberdades substantivas e capacidades, mas ao fundamentar seus princpios de justia na perspectiva informacional dos bens primrios contida no princpio da diferena, ele deixa a determinao das instituies justas para a justia distributiva e para a orientao institucional bsica exclusivamente sobre os ombros delgados dos bens primrios. Isso no concede a sua preocupao subjacente com as capacidades um espao suficiente para que elas influenciem a fase institucional pela qual seus princpios de justia esto diretamente interessados.

- desvios da teoria rawlsiana

Ao contrrio do foco de Rawls no institucionalismo transcendental, a abordagem da justia explorada neste trabalho no busca um cenrio sequencial e priorizado para o desdobramento de uma sociedade perfeitamente justa. Ao centrar-se no melhoramento da justia, atravs da mudana institucional e de outras, a abordagem aqui consequentemente no abandona a questo da converso e das capacidades a um estatuto de segunda classe, a ser mencionada e considerada mais adiante. Compreender a natureza e as fontes da privao de capacidades e da iniquidade de fato central para eliminar as injustias manifestas que podem ser identificadas pela argumentao pblica, com uma boa dose de acordo parcial.

258A vantagem da perspectiva da capacidade sobre a dos recursos reside em sua relevncia e importncia substantiva, e no em qualquer promessa de produzir uma ordenao total. Na verdade, como Elizabeth Anderson persuasivamente discutiu, a mtrica das capacidades superior mtrica dos recursos porque se concentra nos fins e no nos meios, pode lidar melhor com a discriminao contra pessoas incapacitadas, adequadamente sensvel s variaes individuais em funcionamentos que tm importncia para a democracia, e apropriada para orientar a justa prestao dos servios pblicos, sobretudo na sade e na educao.

- a igualdade de recursos de Dworkin

Enquanto Rawls usa a perspectiva dos recursos em seus princpios de justia atravs do ndice de bens primrios, efetivamente ignorando as variaes da converso entre recursos e capacidades, o uso feito por Ronald Dworkin da perspectiva dos recursos possibilita de forma explcita a considerao dessas variaes atravs de um pensamento habilmente orientado para o mercado, mais especificamente atravs da utilizao de um mercado primordial imaginrio de seguros contra as desvantagens de converso.

259Apesar de minha imensa admirao pelo trabalho de Ronald Dworkin, tenho de dizer que estou um tanto confuso para decidir por onde comear a analisar o que est errado nesse argumento contra uma abordagem baseada em capacidades. Em primeiro lugar (para comear por um aspecto menor, apenas para tir-lo do caminho), mesmo que a igualdade de capacidades equivalesse igualdade de capacidades para o bem-estar, no seria a mesma coisa que a igualdade de bem-estar. (A distino entre capacidade e realizao foi discutida no ltimo captulo.) No entanto, mais importante ainda, deveria estar claro a partir do que tenho dito sobre a perspectiva das capacidades desde sua primeira apresentao que no defendo a igualdade de bem-estar nem a igualdade de capacidades para realizar o bem-estar.

262 Como foi discutido acima (em especial no captulo 3), o avano da justia e a eliminao da injustia exigem um compromisso conjunto com a escolha institucional (lidando, entre outras coisas, com as rendas privadas e os bens pblicos), o ajuste do comportamento e os procedimentos de correo dos arranjos sociais baseados na discusso pblica daquilo que prometido, em como as instituies realmente funcionam para fora e como as coisas podem ser melhoradas. No h licena para desligar a razo pblica interativa supondo a prometida virtude de uma escolha institucional definitiva baseada no mercado. O papel social das instituies, incluindo as de carter imaginrio, mais complexo.

26513. Felicidade, bem-estar e capacidades

(...) a relevncia das capacidades no se limita a seu papel em nos informar sobre as vantagens de uma pessoa (e nesse papel que a capacidade pode competir com a felicidade), uma vez que tambm traz implicaes para os deveres e obrigaes de uma pessoa, pelo menos em uma perspectiva. Como foi observado acima, a capacidade tambm um tipo de poder, de uma forma que a felicidade claramente no . Quo significativas so as implicaes desse contraste para a filosofia moral e poltica em geral e para a teoria da justia em particular?

- felicidade, capacidades e obrigaes

(...) Ao contrrio do argumento contratualista, a defesa do dever ou obrigao do poder efetivo para fazer a diferena no se baseia, nessa linha de raciocnio, na reciprocidade de benefcios comuns atravs da cooperao ou do compromisso assumido em algum contrato social. Em vez disso, baseia-se no argumento de que, se algum tem o poder de fazer a diferena na reduo da injustia no mundo, ento h um forte e fundamentado argumento para que faa exatamente isso (sem ter de disfarar tudo sob a vestimenta de alguma vantagem prudencial imaginria em um exerccio hipottico de cooperao).[...]

266A liberdade em geral e a liberdade de agncia em particular so partes de um poder efetivo que uma pessoa tem, e seria um erro considerar a capacidade relacionada com essa ideia de liberdade apenas como um conceito de vantagem humana: ela tambm uma considerao central para a compreenso de nossas obrigaes. Essa considerao produz um contraste maior entre felicidade e capacidades como ingredientes informacionais bsicos de uma teoria da justia, pois a felicidade no gera obrigaes da forma como a capacidade inevitavelmente gera, se admitirmos o argumento sobre a responsabilidade do poder efetivo. A esse respeito, h uma diferena significativa entre o bem-estar e a felicidade, de um lado, e as liberdades e capacidades, do outro.

As capacidades tm um papel na tica social e na filosofia poltica que vai muito alm de seu lugar como rival da felicidade e do bem-estar como guias para a vantagem humana.

267- economia e felicidade(...) A economia do bem-estar concedeu felicidade o status de importncia nica na avaliao do bem-estar e da vantagem humana, colocando-a como a base da avaliao social e da elaborao de polticas pblicas. O utilitarismo foi por um tempo muito longo algo como a teoria oficial da economia do bem-estar, embora (como mostra a brilhante anlise de John Roemer) hoje existam muitas teorias atrativas.

268Essas questes dizem respeito ao estatuto de outras formas de julgar a bondade das vidas humanas, e a importncia da liberdade na maneira como vivemos, e se todas essas outras consideraes devem ser vistas como secundrias ou subsidirias da utilidade, ou talvez vistas com relao a seu papel como determinantes (ou instrumental) para o aumento da felicidade. A questo central no o significado da felicidade, mas a alegada insignificncia de todo o resto, na qual muitos defensores da perspectiva da felicidade parecem insistir.- o alcance e os limites da felicidade difcil negar que a felicidade seja extremamente importante e que temos muito boas razes para buscar promover a felicidade das pessoas, incluindo a nossa. Richard Layard, em sua bem argumentada e espirituosa (eu diria, criadora de felicidade) defesa da perspectiva da felicidade, pode ter subestimado um pouco nossa habilidade para discutir questes difceis, mas fcil ver o que ele quer dizer quando afirma: Se nos perguntam por que a felicidade importa, no podemos oferecer nenhuma razo adicional ou externa. bvio que importa. Certamente, a felicidade sem dvida uma conquista momentosa, cuja importncia suficientemente manifesta.

269Apesar da crena fortemente declarada por Layard de que na defesa do critrio da felicidade no podemos oferecer nenhuma razo adicional ou externa, na verdade ele oferece uma razo, uma razo plausvel. Ao discutir o argumento das capacidades, Layard apresenta sua crtica: Mas, a menos que possamos justificar nossos objetivos com as crenas das pessoas, h o perigo real do paternalismo (p.113). Evitar o paternalismo certamente uma razo externa, diferente da alegada bondade indiscutivelmente autoevidente da felicidade. Layard invoca a acusao de paternalismo julgar-se Deus e decidir o que bom para os outros contra qualquer observador social que assinale que aqueles que sofrem privaes irremediveis com frequncia se adaptam a suas privaes para tornar suas vidas mais suportveis, sem fazer com que as privaes desapaream.

269 / 270Podemos argumentar e argumentamos frequentemente com ns mesmos em nossas prprias reflexes, e com os demais em discusses pblicas, sobre a confiabilidade de nossas convices e reaes mentais para verificar se nossos sentimentos imediatos no nos enganam.

270Isso vale tambm para o papel da educao pblica de hoje, por exemplo, em matria de cuidados de sade, hbitos alimentares e tabagismo, e relevante para entender a necessidade de um debate aberto sobre as questes de imigrao, intolerncia racial, carncia de direitos assistncia mdica ou posio das mulheres na sociedade, sem desencadear o alegado paternalismo. Existe muita argumentao que pode e, em muitas sociedades, consegue desafiar a inquestionada hegemonia dos sentimentos e das crenas no examinadas sobre todo o resto.

- o interesse probatrio da felicidade

Por mais importante que seja, a felicidade dificilmente pode ser a nica coisa que temos razo para valorizar, nem a nica mtrica para medir as outras coisas que valorizamos. Mas quando a ser feliz no dado um papel to imperialista, esse funcionamento humano pode ser visto, com boa razo, como muito importante, entre outros. A capacidade de ser feliz tambm um aspecto fundamental da liberdade que temos boas razes para valorizar. A perspectiva da felicidade ilumina uma parte extremamente importante da vida humana.

271(...) as razes que temos para a valorizao de nossos objetivos (no importa quo longe eles estejam da mera busca da felicidade) de fato ajudam a explicar por que podemos nos sentir razoavelmente felizes em alcanar o que buscamos alcanar, e frustrados quando no temos xito. A felicidade pode assim ter um mrito indicativo por estar geralmente relacionada com nossos sucessos e fracassos na vida. Isso assim, mesmo que a felicidade no seja a nica coisa que buscamos ou temos razes para buscar.

272- o utilitarismo e a economia do bem-estar

(...) j que os economistas se convenceram com demasiada rapidez de que de fato havia algo metodologicamente errado no uso das comparaes interpessoais de utilidades, a verso mais completa da tradio utilitarista logo deu lugar, nos anos 1940 e 1950, a uma verso informacionalmente empobrecida da confiana na utilidade ou felicidade. Essa verso veio a ser conhecida como a nova economia do bem-estar: manteve as avaliaes baseadas apenas nas utilidades (isso frequentemente chamado de welfarismo), mas dispensou as comparaes interpessoais por completo. A base informacional da economia do bem-estar permaneceu estritamente confinada s utilidades, mas as formas autorizadas de utilizao das informaes das utilidades foram ainda mais limitadas pela proibio de comparaes interpessoais de utilidades. O welfarismo sem as comparaes interpessoais , de fato, uma base informacional muito restritiva para os juzos sociais. Poderamos discutir se a mesma pessoa mais feliz em um estado social do que em outro, mas nos informaram que no poderamos comparar a felicidade de uma pessoa com a de outra.

273- limitaes e impossibilidades informacionais

Ao formular o problema da escolha social baseada nas preferncias individuais, Arrow adotou o ponto de vista (seguindo o que ento era a tradio dominante) de que as comparaes interpessoais de utilidades no tm nenhum significado. A combinao de depender apenas das utilidades individuais e negar qualquer uso das comparaes interpessoais de utilidades teve um papel decisivo na formulao do teorema da impossibilidade.

(...) Consideraes sobre a equidade basicamente perdem sua aplicabilidade nessa estrutura. A extenso da felicidade como um indicador da situao de uma pessoa aplicada separadamente a cada indivduo sem nenhuma comparao entre os nveis de felicidade de duas pessoas diferentes e no possvel recorrer mtrica da felicidade para avaliar a desigualdade e levar em conta as exigncias da equidade.

274Os meios e mtodos de resoluo dessas impossibilidades foram amplamente explorados desde aqueles dias pessimistas e, entre outras coisas, ficou claro que enriquecer a base informacional da escolha social uma importante necessidade para superar os efeitos negativos de um sistema de deciso com carncia de informao (como inevitavelmente ocorre com sistemas de votao, sobretudo quando aplicados a questes econmicas e sociais). Em primeiro lugar, preciso atribuir s comparaes interpessoais de vantagens e desvantagens dos indivduos um papel central nesses juzos sociais. Se a utilidade o indicador escolhido da vantagem individual, ento as comparaes interpessoais de utilidades se tornam uma necessidade crucial para um sistema eficaz de avaliao social.

275Nesse contexto, foram levantadas poderosas questes sobre a sabedoria de contar apenas com a utilidade interpretada como felicidade ou satisfao de desejos como base para a avaliao social, ou seja, sobre a aceitabilidade do welfarismo.