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    Os Xams e as Mquinas:Sobre algumas tcnicas contemporneas do xtase

    Pedro Peixoto Ferreira2005

    O mito cosmognico 'verdadeiro' porque a existncia do Mundo a est para prov-lo; o mito daorigem da morte igualmente 'verdadeiro' porque provado pela mortalidade do homem, e assim por diante.(Eliade 1972:12)

    Poderamos acrescentar ainda defesa eliadeana da "veracidade" dos mitos, que omito da origem da tcnica e dos objetos tcnicos verdadeiro pois as mquinas esto a para

    prov-lo. Os estudos de Mircea Eliade, talvez o mais importante historiador das religies do

    sculo XX e eterno opositor das tendncias cientificistas de "dessacralizao" do mundo, nosauxiliam em muito a perceber as dimenses mticas de nosso mundo tecnolgico "asobrevivncia subconsciente, no homem moderno, de uma mitologia abundante", de um"tesouro mtico [que] a repousa 'laicizado' e 'modernizado'" (Eliade 1996:12 e 14). Apesar demuitas vezes exageradamente essencialista em sua idealizao do homo religiosus (cf. Eliade1995), o pensador romeno iluminou com muita propriedade (e talvez involuntariamente) asdimenses mticas daquilo que ele mesmo chamou de homo faber1, i.e., aspectos da "grandemitologia da 'arte e da tcnica'" (cf. Eliade 1979:78-9).

    Veremos aqui alguns exemplos de como objetos tcnicos "modernos" soincorporados por xams em algumas cosmogonias, cosmologias, escatologias e rituais,

    procurando com isso, contribuir para o aprofundamento de nossa compreenso tanto dos

    objetos tcnicos em si quanto das prticas rituais xamnicas que fazem uso deles (nos termosde Eliade2, as "tcnicas do xtase"). Afinal, por que hoje sociologicamente correto dizer que"[o] xam o primeiro tcnico", que foram os seus ancestrais "os verdadeiros inventores detoda sorte de objetos tcnicos"(Garcia dos Santos 2003:70-1) ?

    MITOS DA TECNOLOGIA

    Nada melhor do que comear pelo "comeo", isto , por uma narrativa cosmognica,coletada pelo antroplogo Stephen Hugh-Jones entre os Barasana, que consideram atecnologia dos "Brancos" uma manifestao da tecnologia mtica do xam primordial Wribi,inventor de toda sorte de objetos tcnicos (e.g. Hugh-Jones 1988:147 e 153 nota 11):

    Certa vez falei sobre submarinos a um xam que nunca os tinha visto antes grandes canoassubmarinas cheias de pessoas que disparavam grandes flechas com seus arcos. Mais tarde, escutei ele narrar aum amigo um episdio do mito de Wribi em que o heri, aps ser engolido por uma cobra, faz uma tesoura comduas de suas costelas e corta um buraco em sua lateral, atravs do qual dispara uma flecha. "E foi assim",acrescentou ele com tranqilidade tendo-me como ouvinte ocasional, "que os Brancos conseguiram aquelascoisas que ele chamam de submarinos. Foi isto que meu av contou". (Hugh-Jones 1988:148)

    1 Segundo Henri Bergson, o homo faberse caracteriza pela "faculdade de fabricar objetos artificiais, emparticular utenslios para fazer utenslios, e variar indefinidamente sua fabricao" (2005:151). Parece ter sidoAndr Leroi-Gourhan (1964 e 1965) aquele que levou mais longe o estudo do "processo de humanizao" apartir da perspectiva tecnolgica.2

    Apesar de sua obra O Xamanismo e as tcnicas arcaicas do xtase (Eliade 1998 [1951]) ter sido a principalresponsvel pela incorporao do conceito de "tcnica do xtase" nos estudos sobre o tema, William James(1902) e Max Weber (1963 [1915]) j o haviam empregado em sentido anlogo.

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    Hugh-Jones interpretou o episdio como prova de uma "equiparao analgica criativa

    entre mito e vida [...] constantemente empregada para tornar qualquer mito relevante para asnovas experincias e eventos dirios" (1988:148). Mas talvez se trate menos de "simbolizar"uma realidade que, "em si", dada, como se as modificaes do mito correspondessem a um

    processo "que lhe permite acertar o passo com a realidade" (Hugh-Jones 1988:139) (como se"mito" e "realidade" fossem dois nveis distintos da experincia), e muito mais de "vivenciar"uma realidade que a do prprio mito. Fazendo isso, no estaramos mais do que acreditando(no sentido de "dar crdito" ao que se diz e ao que se faz) nos prprios Barasana. Se olharmos

    para a elaborao de mitos como uma tcnica especfica de "cosmicizao", de atualizao detendncias e devires coletivos de uma determinada sociedade, ento poderamos imaginar queo xamBarasana s pde narrar o mito da origem dos submarinos porque j havia, na prpriamaquinaria mtico-ritual, um modelo diagramtico desta mquina, uma espcie desubmarinovirtualatualizado na relao entre o xam e o antroplogo.

    Lawrence E. Sullivan, que se aprofundou de forma indita na idia de "tecnologiaxamnica" (cf. 1988:401-4), define tecnologia como "conhecimento ntimo e sistemtico"

    (1988:406) e trata as tecnologias xamnicas como "a cincia sistemtica da alma exttica"([t]he ecstatic's systematic science of the soul; 1988:652). Tratando dos principais pontoscomuns "variedade de mitos da origem humana na Amrica do Sul", Sullivan afirma:

    A tecnologia inerente natureza humana. A produo de fogo e o cultivo de alimentos, por exemplo,so "cincias"; isto , so tipos de conhecimento baseados na imitao de foras mais poderosas (e.g., animaissobrenaturais ou heris culturais). A capacidade de saber por imitao ou representao simblica constitui aessncia da tecnologia e serve, nas formas de arte, msica, uso de ferramentas e ao ritual, como fundamento dacriatividade e da cultura humana. (Sullivan 1988:237)

    O que Sullivan mostra aqui o lugar que a tecnologia assume nas mitologias sul-americanas: trata-se de uma ao exemplar, um modelo sobrenatural que conhecido atravsdo acesso ao tempo mtico, do contato com deuses, espritos ancestrais e mestres animais. ,enfim, atravs da imitao de procedimentos mticos, que a tecnologia transferida para oshomens, atualizada em cada sociedade. Joanna Overing confirma esta "tecnologia mtica"quando, falando sobre o xamanismo Piaroa e suas tcnicas de "fazer mundos", descreve o"tempo mtico" (to'pu) como "um perodo de rpido desenvolvimento tecnolgico"(1990:607). As relaes entre mito e tecnologia so constantes na literatura antropolgica,

    principalmente quando no se tenta mascarar os hibridismos praticados pelos xams e outroselaboradores de mitos com um vu de autenticidade primitiva3.

    O xamBarasana surpreendeu Hugh-Jones a ponto de faz-lo duvidar da realidade do prprio mito quando incorporou o recm-conhecido submarino ao mito de Wribi, o "xam

    prototpico". Mas se o antroplogo tambm nos conta que Wribi foi simultaneamente ocriador do revlver, da Bblia, do motor de popa e de toda a tecnologia que existe, ento podemos perceber que incorporando esta tecnologia que os xams contemporneos re-estabelecem o contato com ele e assim se tornam aptos a lidar com seus problemas histricosconcretos. Fazer do submarino uma metamorfose de uma "cobra mtica" que, aps ingerir

    3 A bibliografia sobre as complexidades e os impasses da questo da autenticidade cresce constantemente e seriaimpossvel abord-la aqui para uma boa introduo, ver Conklin (1997 e 2002) e as coletneas organizadas porAlbert e Ramos (2002) e Narby e Huxley (2001). Particularmente generalizada a atribuio de poder mtico aobjetos de metal como, por exemplo, nos mitos Wakunai eBaniwa que fazem referncia aAmru (cf. Hill1998; Wright 2000 e 2002:457) e nos mitos Yanomami sobre o "metal de Omama" (cf. Albert 1990, 1992, 1995,

    2002), entre muitos outros (e.g. Illius 1992:73-4; Farage 2002:522) , confirmando a insistncia de Eliade (1979)nas relaes entre xamanismo e metalurgia e incentivando a considerao de importantes contribuiesfilosficas de Gilles Deleuze sobre a potncia conceitual do metal (cf. 1979).

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    Wribi, foi transformada em submarino por um engenhoso processo tcnico no parece seressencialmente diferente de fazer da origem dos animais, das plantas, do mundo e da morte,episdios mticos. Trata-se sempre do processo de transformao de tendncias e potnciasque eram caticas (a multipotencialidade do desconhecido, dos seres mticos, das mquinasdos "Brancos") em processos controlados, tcnicos, agora cosmicizados. Em outras palavras,

    do processo de individuao de uma certa relao, de atualizao sempre histrica econtingente, pois que dependente de encontros como aquele entre o xam e o submarino doantroplogo de virtualidades pr-individuais.

    Mas xams fazem muito mais do que cosmicizar o caos atravs da criao de mitos, eos mitos so muito mais do que narraes especulativas. Atualizaes mitopoiticas so, emsi, rituais, e muito mais evidncias sobre as dimenses mticas da tecnologia podem serobtidas atravs da considerao atenta de algumas incorporaes de mquinas em operaesrituais por certos xams.

    XAMS E MQUINAS

    Piers Vitebsky nos fornece um curioso exemplo da relao xam-mquina ao publicar,"pela primeira vez com a permisso dos xams" uma "fotografia nica" (Figura 1) aonde sevem cinco xams tamus (Nepal) sentados (e rodeados por o que parecem ser msicos e

    pblico) realizando um ritual "Moshi Tiba" ("destinado a acalmar o fantasma de uma pessoaque tinha morrido de modo no natural e de mau agouro") (Vitebsky 2001:20).

    A fotografia traz tambm listras e manchas luminosas e coloridas, que se espalham demaneira curiosa pela cena e do a ntida impresso de participarem efetivamente dela.Segundo o antroplogo, todos envolvidos no ritual esperavam que uma ave atada a uma"casa-esprito" adejasse as asas, indicando a chegada das almas dos mortos. Vitebsky relata:

    Quando um dos xams viu a fotografia, exclamou: " precisamente assim que se parecem o deus, osfeiticeiros e os antepassados. Na verdade, eles no tm o aspecto com que so representados nos desenhos, comcaras. Estas so as cores exatas que eu vejo, e precisamente nas mesmas posies. Mas como que uma mquina

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    fotogrfica consegue ver aquilo que s eu vejo? Isto conhecimento secreto, as pessoas vulgares no conseguemver estas coisas. Tem de ser uma cmara fotogrfica muito boa". (Vitebsky 2001:20)

    Um fotgrafo experiente poderia dizer que as listras e manchas luminosas que sedistribuem de forma fantasmagrica pela fotografia no diferem em essncia das manchas de

    luz provocadas por uma abertura muito prolongada do diafragma da mquina fotogrfica.Alm disso, dois instrumentistas aparecem na fotografia tocando pratos de metal reluzente em posies facilmente associveis aos espectros luminosos. Mas se as manchas fossem assimexplicadas como o efeito de uma exposio prolongada do filme aos reflexos dos pratos, oque seria do depoimento do xam? Devemos tomar a explicao do fotgrafo como maisverdadeira do que a do xam? No seria possvel responder a estas questes com facilidade,

    principalmente se quisermos dar crdito s palavras do xam, afinal, ele foi capaz de fornecerao antroplogo uma explicao coerente para cada detalhe da distribuio dos traos emanchas coloridos e luminosos da fotografia4. E se as vises do xam podem ser relacionadas manifestao de fosfnios5, de nada adianta transform-las em alucinaes. precisoinvestigar de onde estas vises retiram a sua fora e eficcia, e como uma fotografia capaz

    de reproduzi-las to fielmente. Em outras palavras, ao dizer que a mquina fotogrfica "deveser muito boa", pois foi capaz de captar um "conhecimento secreto" que s ele capaz de ver-conhecer, o xam revela estar diante de uma materializao contingente e histrica de umatecnologia mtica dominada por ele, mas at ento restrita aos iniciados6. Ocasies como esta

    podem servir para aprofundar nossa compreenso tanto das tcnicas xamnicas do xtasequanto das dimenses mticas da tecnologia "moderna" (suas virtualidades).

    Em sua etnografia dos Wakunai, Jonathan D. Hill (1998) oferece mais um preciosoexemplo desta relao xam-mquina. Hill conta que, certa vez, enquanto ele e um xamWakunai armavam suas parafernlias para um ritual (cadeira, microfones, cmera, e caderno

    para registr-lo, no caso de Hill; folhas de palmeira, tabaco, alucingenos, pedras e outrosobjetos sagrados para realiz-lo, no caso do xam), ele "sentiu", pela primeira vez, que suas

    atividades, ao invs de criarem uma distncia entre o observador e o observado, "haviam setornado uma parte necessria e desejvel do processo ritual" (1998:3).

    Eu estava emocionalmente "plugado" aos circuitos de energia ritual. (Hill 1998:3)

    Segundo Hill, desde ento ele no precisou mais pedir informaes sobre os eventosrituais ele era espontaneamente informado sobre eles e nem permisso para registr-los sua presena, junto com seu gravador, seus cadernos e sua cmera, era requisitada. Hill teve antida impresso de que no exato momento em que ele passou a desempenhar papel ativo noritual, tambm os Wakunai passaram a desempenhar um papel ativo em sua pesquisa. Eleento se perguntou: "A que se deveu este processo duplo de travessia transcultural?" (Hill

    1998:4). A primeira explicao encontrada foi o desejo dos Wakunai de "obter um registro

    4 "O xam explicou que a linha amarela que atravessa a fotografia tem o exato aspecto dos espritos ancestraisque vm proteger os xams sua chegada. A barra laranja que atravessa a cabea dos xams o deus KhhlyeSondi Phhresondi, que os veio proteger das almas dos feiticeiros. Estes, que, na realidade, so seres humanosvivos malvolos, vem-se por cima das cabeas de trs xams, sob a forma de linhas verdes onduladas. Osfeiticeiros esto ausentes de dois locais significativos, que so aqueles em que a linha protetora laranja maisforte, e est sobre a cabea de um xam, direita, que se recolheu momentaneamente para um descanso e que,por conseguinte, no est envolvido na batalha espiritual." (Vitebsky 2001:20)5 Imagens provocadas por estmulos nervosos internos ao mecanismo ocular, to comuns em experincias comalucingenos. Sobre as relaes entre fosfnios e xamanismo, ver Reichel-Dolmatoff (1997:243-59) e Hodgson(2000).6

    Exemplos de atribuies a objetos tcnicos da capacidade de produzir vises antes restritas s experinciassobrenaturais dos xams podem ser encontradas tambm nas definies nativas do ayahuasca como o "cinemada floresta" (Gow 1995) e "televiso da floresta" (Narby 1998:4 e 109).

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    permanente de suas manifestaes culturais mais valorizadas, frente a sculos de pressesexternas de missionrios, comerciantes e outros que as denegriram, extirparam edesrespeitaram sem a menor vontade de compreender, muito menos de apreciar, o seu valor"(Hill 1998:4). Mas esta resposta no satisfez o antroplogo, que ento foi buscar na lgicainterna do ritual uma explicao mais consistente para o acontecimento.

    Em primeiro lugar, Hill nos conta que a "viagem musical do xam" um processo de"busca e recuperao do esprito corporal do doente", que foi perdido ou roubado por"possuidores de veneno" ou "espritos causadores de doena". A captura do "espritocorporal" perdido realizada com as "penas de seus chocalhos sagrados" ou com "fumaa detabaco", e a sua devoluo operada "soprando fumaa de tabaco sobre o topo da cabea do

    paciente" (Hill 1998:4). Segundo Hill, este "esprito corporal" foi descrito como sendoanlogo "compresso dentro de um motor". Assim, na busca pelo "esprito corporal"

    perdido, o xam sopra fumaa de tabaco sobre as cabeas de todos aqueles presentes com ointuito de conectar seus "espritos corporais" na forma de uma "fora coletiva" que oauxiliaria a "atrair o esprito corporal do paciente de volta do mundo inferior dos espritos dosmortos para o mundo dos vivos" (Hill 1998:5). A explicao nativa avana ainda mais,

    relacionando os poderes xamnicos ao gravador e escrita do antroplogo, revelando que"assim como o gravador e os cadernos puxam os sons e sensaes do ritual, tambm o canto ea fumaa de tabaco do xam so maneiras de puxar o esprito corporal do paciente" (Hill1998:5). Hill compreende, assim, como as suas aes enquanto antroplogo ganharam umnovo espao compartilhado dentro do ritual, transformando a sua pesquisa, "de um processode acumulao de conhecimento baseada em suposies questes aliengenas em um processode criao coletiva de conhecimento dentro das estruturas e suposies indgenas", colocando-a "dentro de sua esfera de controle" (1998:7). Mas Hill ainda no havia compreendido um

    ponto: Afinal, "por que todas estas analogias com mquinas e escrita?" (1998:4) A resposta simples e bastante reveladora.

    Para os Wakunai, os brancos, mestios e outras pessoas no originrias do seu"mundo social" no so 'includos na' e nem 'afetados por' sua dinmica ritual. Falta-lhes uma"alma onrica coletiva em forma de animal" como as dos Wakunai, de forma que,diferentemente destes, um estrangeiro pode retomar suas atividades cotidianas logo aps onascimento de seu filho, sem nenhuma restrio ou obrigao ritual. Mas isto no quer dizerque os estrangeiros no tenham "almas onricas coletivas", como explica Hernan Yusrinu(chefe ritual Wakunai e irmo do xam):

    Os Brancos possuem almas onricas coletivas, [...] mas elas assumem a forma de livros e papis. A almado missionrio a Bblia, a alma do comerciante seu registro financeiro e a alma do antroplogo seu caderno.[...] Um feiticeiro pode atacar a alma onrica de um Branco noite, enquanto ele dorme, matando-o ao rasgar oseu caderno, assim como um feiticeiro rasga a alma-em-forma-de-animal das vtimas Wakunai. [...] Meu irmo

    temia que as canes dele quebrariam o seu gravador. Mas quando voc comeou a gravar as canes e escreverem seus cadernos, ele sentiu que seu trabalho era bom para voc e que o auxiliava na acumulao decompresso. (Hill 1998:6)

    Apesar de deixarem Hill um tanto temeroso pela segurana de seu material, estasobservaes revelaram pontos centrais na relao do xam com as suas mquinas. Para osWakunai, todos os elos de parentesco e obrigaes rituais que constituem as suas "almasonricas coletivas em forma de animal" esto, para os Brancos, materializadas em objetos detrabalho. Assim, a parafernlia de Hill, muito mais que um conjunto de instrumentos passivose neutros sua disposio, consistia na materializao de sua "alma onrica coletiva", eenquanto tal estava sujeita destruio pelas foras espirituais manipuladas pelo xam. O

    ponto a ser destacado aqui a manifestao explcita da dimenso ritual da tecnologia, tantopor parte do xam, que incorpora gravadores, cadernos e cmeras no processo ritual, como

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    por parte do antroplogo, que passa a ver sua parafernlia como uma manifestao objetiva deuma parte espiritual de sua prpria existncia7.

    O ltimo exemplo que veremos aqui o dos Arawet, pesquisados por Eduardo B.Viveiros de Castro, que definem o xam como "um rdio":

    "'O xam um rdio', dizem. Com isto querem dizer que ele um veculo, e que o corpo-sujeito da vozest alhures, que no est dentro do xam." (Viveiros de Castro 1986a:543; sublinhado no original)

    A metfora do "rdio" no exclusiva aos Arawet8, e foi reiterada por Viveiros deCastro em outras publicaes (cf.1985:63; 1986b:19; 1992:140). Mas se trata realmente deuma metfora?

    O xamanismoArawet consiste principalmente no canto noturno dos xams, a "msicados deuses". Trata-se de um ritual dirio (ou antes, que ocorre todas as noites) em que o xamrelata, em forma de msica, uma viso onrica do mundo dos espritos e, via de regra,estabelece um contato atual com ele em benefcio da comunidade. So canes cujacomplexidade reside no "agenciamento enunciativo ali estabelecido", um "solo vocal" que,

    lingisticamente, se revela uma "polifonia" de deuses (Viveiros de Castro 1986a:548). Aautoria coletiva porm sobrenatural das "msicas dos deuses" lhe foi confirmada quando, aopedir permisso aosArawet para gravar uma sesso, ouviu que eles "nada tinham a decidirquanto a isso" pois a msica no era daquele que a entoava, mas sim daqueles que falavamatravs dele (i.e., os deuses) (Viveiros de Castro 1986a:543). Ou seja, a "msica dos deuses"cantada pelos xams no pertence a eles (no "criao" deles), mas sim aos prprios deuses,que falam atravs da boca dos xams9. Este papel puramente miditico do xam vistotambm na explicao dada pelos Arawet para sua preferncia por ouvir gravaes de"msica dos deuses" s de "msica dos inimigos":

    "Quando pediam para reproduzir cantos-danas [como a "msica dos inimigos"], o interesse se voltava

    para o que no era msica as vozes faladas em segundo plano, os comentrios, barulhos, que permitiam umarememorao daquele momento. J quando se tratava de ouvir uma fita com canto xamanstico, o interesse era poder assistir a uma re-atualizao da emisso vocal era ela em si que respondia pela singularidade domomento." (Viveiros de Castro 1986a:545 nota 57; sublinhado no original)

    Assim, da mesma forma que cada Arawet valoriza mais a reproduo da voz do"outro" do que a sua prpria10, todos osArawet do preferncia s gravaes de "msica dosdeuses" que consiste numa "materializao de uma singularidade individual e histria"(Viveiros de Castro 1986a:545), e, portanto, ocasio nica e singular em que o "outro"("deuses") se manifesta sobre as de "msica dos inimigos" cuja estrutura pr-estabelecida, e no objeto de interesse em si. Tudo se passa como se o canto dos xams

    7 Outros exemplos da relao entre xams, gravadores e antroplogos podem ser encontrados em Mller(1990:168-9, 180), Illius (1992:74) e Olsen (2001).8 Exemplos so diversos. Entre eles: osDesana encaram o xam como um "transmissor", uma "pessoa-que-comunica", moda de um "telefone" ou de um "rdio" (Reichel-Dolmatoff 1997:233); osAshanica contam queas almas dos mortos so como "ondas de rdio voando por a" e cujas canes podem ser capturadas por rdios egravadas/reproduzidas por gravadores (Narby 1998:31 e 125); os Yanomami definem as longas penas de um deseus adornos rituais como "antenas de rdio" (Laymert Garcia dos Santos, comunicao pessoal); vegetalistasmestios do Peru ocasionalmente descrevem suas vises como "um tipo de fenmeno eletromagntico" (Luna1992:242); um xam Campa diz que "os espritos se comunicam entre si por ondas de rdio" (Luna 1992:247);9 "'[M]sica das divindades', uma expresso tanto genitiva quanto possessiva. Isto : as canes so 'dos [...]["deuses"]', o xam no as aprende de outro xam, e no tem controle sobre elas." (Viveiros de Castro1986a:543)10

    Segundo Viveiros de Castro, o gravadorera "a diverso favorita dos Arawet", que gostavam sobretudo deescutar "a voz dos outros, o que os outros cantavam", em lugar da prpria voz, o que remete sua dinmicasocial centrfuga e sua alteridade radical (Viveiros de Castro 1986a:78).

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    fosse uma transmisso radiofnica feita "ao vivo" do mundo dos espritos para o mundohumano, e que sua "aura" residisse na sua irreprodutibilidade (pois se por um lado os xamsso proibidos de repetirem as mesmas canes, o resto da comunidade s o faz despindo-as detoda sacralidade11). A gravao de uma "msica dos deuses" seria, assim a nica maneira dereviver o momento do contato entre os dois mundos, assim como uma gravao da

    transmisso radiofnica seria a nica maneira de reviv-la que no implicaria nem em pardiae nem em degeneraes.Associando o xam a um rdio, se est simultaneamente revelando aspectos do

    xamanismo enquanto tecnologia e da tecnologia como xamanismo12. Poderamos perguntar:qual o limite entre o xam enquanto ser humano e o rdio enquanto objeto tcnico? Ora, talno parece ser a questo colocada pelos prprios xams. Antes, eles parecem evidenciar aexistncia de uma realidade pr-individual, anterior distino entre sujeito e objeto, entre ohomem e a mquina, na qual um devir xam-rdio (ou outros devires homem-mquina) seforma e passa a funcionar enquanto mquina desejante mtico-ritual. Talvez osArawet noestejam sendo to metafricos afinal, quando dizem que "o xam um rdio", visto que o

    prprio rdio no parece ser mais do que um aspecto da virtualidade tecnolgica do corpo do

    xam que foi externalizado e tornado objeto atual.

    MQUINAS DE SUBJETIVAO

    Vimos, at aqui, alguns exemplos de como tecnologias desenvolvidas historicamenteem sociedades de origem europia (livros, cadernos, gravadores, rdios, mquinasfotogrficas etc.) e at ento desconhecidas por povos indgenas foram incorporadas em seusmitos e rituais pela ao atualizadora e cosmicizante dos xams. Mas se tudo se passa "comose a tecnologia fosse a realizao cada vez mais intensa de virtualidades inscritas no mito"(Garcia dos Santos, 2003:186), ento tambm as aes rituais do xam i.e., sua capacidadede deixar seu corpo habitual e viajar pelos mundos espirituais cosmicizando o caos e trazendo

    para a sua comunidade conhecimentos antes inacessveis devem ser vistas como tais:tecnologias antes restritas aos seres mticos (os xams primordiais) e agora atualizadas dediferentes formas em diferentes xams. Alm de dar um sentido bastante produtivo para adefinio eliadeana de xamanismo como tcnica do xtase, esta constatao no faz mais doque reconhecer as prprias relaes dos xams com as mquinas. Afinal, no so eles mesmosquem encontram nos objetos tcnicos atualizaes materiais de suas tcnicas rituais?

    Segundo Sullivan, "[o] corpo do xam parte de sua tecnologia" e "[o] domnio doxam sobre a fisiologia e seu conhecimento das formas animais se relacionam diretamentecom sua percia nas formas espaciais em geral" (1988:419-20). Exemplo extremo daquilo queMarcel Mauss chamou de "tcnicas corporais"13, a experincia xamnica de metamorfose ,

    alm de uma conexo com o tempo mtico onde o xam se transforma em um "animal mtico,Ancestral ou Demiurgo" (cf. Eliade 1998:497-8), uma manifestao privilegiada da tcnicasubjacente prpria incorporao mtico-ritual da tecnologia. Uma viso extremamentesofisticada deste processo pode ser encontrada na teoria do perspectivismo amerndio,

    11 Da, talvez, as afirmaes de que as "msicas dos deuses nada tm de 'sagradas' ou esotricas" (Viveiros deCastro 1986a:545), que "longe de serem 'sagrados', ["os cantos individuais dos xams"] so sucessos populares"(Viveiros de Castro 1986a:41).12 E para alm da relao especfica xamanismo-tecnologia, existe todo um campo de estudos sobre os usosindgenas de tecnologias eletrnicas um caso bastante bem documentado o das tecnologias de vdeo; cf.Turner (1993), Gallois e Carelli (1995) e Ginsburg (2002) cujo estudo parece ser condio necessria para odesenvolvimento consistente de uma scio-antropologia da tcnica e da tecnologia.13

    Principalmente das tcnicas para "entrar em 'comunicao com Deus'" (Mauss 2003b:422). As relaes entretcnica e magia, tema central para a Antropologia da Tecnologia, foram tambm bastante exploradas por Mauss(cf. 2003a) e, mais recentemente e sob sua forte influncia, por Alfred Gell (1994 e 1998).

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    apresentada por Viveiros de Castro como uma relao metaestvel de diferenciao entre auniversalidade espiritual virtual da cultura (os humanos) e a singularidade somtica atual danatureza (os no-humanos), sintetizada no conceito de "um esquema corporal humano ocultosob a mscara animal" (1996:117).

    O corpo, "lugar da perspectiva diferenciante" (Viveiros de Castro 1996:131), aqui

    visto como uma espcie de camada que, vista do interior sempre e essencialmente humana,mas vista do exterior pode assumir as mais variadas formas14. Em outras palavras, aomesmo tempo que esta camada corporal no-humana singular que reveste o esquema corporalhumano universal inaugura e distorce o mundo. Assim, por exemplo, sendo a forma-jaguar o

    produto da perspectiva humana sobre uma outra manifestao exterior de sua prpriaessncia, um xam pode ter acesso ao "modo de ser humano do jaguar" se dominar a tcnica

    para assumir a sua forma, a sua perspectiva. Uma vez l, aquilo que antes pareciam aes no-humanas se revelam aes perfeitamente humanas, porm realizadas em um mundoradicalmente diverso, transformado pela forma exterior do jaguar.

    As etnografias nos mostram que, nos rituais de socializao, a humanidade do corpoainda no-humano precisa ser "fabricada" atravs de recluses e marcaes (cf. Viveiros de

    Castro 1987; Clastres 2003:183-204), que o corpo precisa ser "maximamente diferenciadopara exprimi-la completamente" (Viveiros de Castro 1996:131). De maneira anloga, etapasessenciais das iniciaes xamnicas consistem justamente em transformaes radicais docorpo do xam, tornando-o capaz de assumir formas no-humanas e, assim, ganhar acesso

    justamente alteridade radical da natureza e da sobrenatureza. O corpo visto aqui como umaroupa para o esprito, ao mesmo tempo em que roupas, marcas, mscaras etc. so percebidoscomo meios de transformar este corpo e torn-lo capaz de ingressar em outros ambientes:

    "As roupas animais que os xams utilizam pra se deslocar pelo cosmos no so fantasias, masinstrumentos: elas se aparentam aos equipamentos de mergulho ou aos trajes espaciais, no s mscaras decarnaval. O que se pretende ao vestir um escafandro poder funcionar como um peixe, respirando sob a gua, e

    no se esconder sob uma forma estranha. Do mesmo modo, as 'roupas' que, nos animais, recobrem uma 'essncia'interna de tipo humano no so meros disfarces, mas seu equipamento distintivo, dotado das afeces ecapacidades que definem cada animal." (Viveiros de Castro 1996:133)

    As tcnicas da metamorfose permitem ao xam, portanto, administrar as "relaes doshumanos com o componente espiritual dos extra-humanos, capazes como so de assumir o

    ponto de vista desses seres e, principalmente, de voltar para contar a histria" (Viveiros deCastro 1996:120). A metamorfose por conexo do corpo com prteses e instrumentos quetransformam suas capacidades acaba at mesmo aproximando os xams das "vertigens do

    ps-humano" e da ciborgologia15. Enquanto "seres transespecficos", "pessoas multinaturaispor definio e ofcio", os xams "so capazes de transitar entre as perspectivas, tuteando e

    14 O tema da dualidade perspectivista do corpo das relaes entre sua forma exterior e sua essncia interior,apresentado originalmente por Viveiros de Castro (1996) e Lima (1996), uma constante nos estudos sobrexamanismo. Exemplos podem ser encontrados em povos de todo o mundo Oosten (1994) fornece algunsexemploInuit(Alaska) e Ingold (1987:257) permite relaes tambm com os povos caadores pastores dasregies rticas , mas na Amrica do Sul que a teoria encontrou o maior nmero de exemplos e.g. Viveirosde Castro (2002a e 2002b), Carneiro da Cunha (1998), Descola (1998), Leite (1998) e Vilaa (2000). Vertambm Ingold (2000:94 e 424 nota 5).15 Alm dos exemplos j citados de incorporao xamnica de objetos tcnicos em mitos e rituais e de atribuiode poderes xamnicos a estes objetos, existem tambm diversos exemplos de referncias aos mais variadosobjetos tcnicos em relatos de experincias de iniciao ao xamanismo como viagens de avio, helicptero,caminho, lancha etc. (cf. Mller e Valado 1997; Wright 1998:80) e nas prprias prticas xamnicas como acomunicao com espritos por uma espcie de "telefone" (Perrin 1992:110), o uso de "avio, carro ou ainda

    bicicleta" (entre outros) em rituais (Gallois 1996:41 e 49 nota 8). impossvel no pensar aqui nas contribuiesque uma investigao destes casos poderia trazer para o campo de estudos aberto pelo manifesto de Haraway(1991) (e.g. Downey, Dumit e Williams 1995; Gray, Figueroa-Sarriera e Mentor 1995; Tadeu da Silva 2000).

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    sendo tuteados pelas subjetividades extra-humanas sem perder a prpria condio de sujeito"(Viveiros de Castro 1996:117 e 135). Tudo isso pois utilizam tecnologias especficas,transferidas para seu corpo na iniciao, que lhes permitem, diferentemente das pessoascomuns (que dificilmente sobrevivem a encontros com o sobrenatural), nunca perder a

    posio de sujeito.

    A metamorfose do xam em animal apenas um caso privilegiado em que suatecnologia empregada no estabelecimento de uma ligao eficaz entre os diferentes nveis darealidade, sendo o hbrido resultante (animal em corpo humano/humano em corpo animal) a

    prpria hierofania antropomrfica de que falam estudiosos da religio como Eliade e Sullivan,axis mundi capaz de conduzir experincia primordial do "tempo mtico". Outros casos so

    possveis, mas todos poderiam ser compreendidos como a construo, a partir de uma certacoordenao de elementos heterogneos e contingentes (como genealogias, acontecimentosrecentes, conflitos sociais, distrbios orgnicos, fenmenos meteorolgicos, objetos tcnicosetc.), de uma mquina de subjetivao que tem no tempo mtico seu regime de funcionamentoe na tecnologia corporal a sua principal engrenagem.

    O mito como mquina de subjetivao o "ponto de fuga universal", ponto de vista do

    sujeito humano para o qual convergem todas as perspectivas. O relato de um mito, ou a suamodificao, seriam melhor compreendidos se, para alm de esforos intelectuais declassificao do mundo (e.g. Lvi-Strauss 1962) ou disputas por propriedade ou prestgio (e.g.Harrison 1992), eles fossem vistos como instncias em que o homem, sentindo-se pertodemais do fluxo descontrolado e pressentindo a "catstrofe" do caos iminente, se transporta

    para este "ponto de fuga universal", perspectiva privilegiada das coisas e de suas relaes quelhe permite conduzir o processo de cosmicizao necessrio ao. Trata-se de uma tcnica,

    principalmente pois uma vez instalado nesta perspectiva o homem capaz de dar incio a umaseqncia causal no mundo ao seu redor, que mais ou menos eficazmente conduzir o vir-a-ser csmico em sua tenso exttica at a sua resoluo. Apesar de j pressupor umatecnologia, esta tcnica precisa ser por ela potencializada e direcionada. Assim, se a funo domito conduzir (efetivamente) do caos ao cosmos, no devemos perguntar de onde surgiuesta tcnica, visto que a pergunta j supe algo do qual ela teria surgido, quando ela seriaantes a origem de tudo. A tcnica, portanto, no surgiu de um mundo sem tcnica (como se,num belo dia, o primeiro mito tivesse sido inventado), mas sim de uma ruptura sempre

    presente que, como num xtase, simultaneamente e constantemente objetiva o mundo esubjetiviza o ser.

    Em suma, as tcnicas no tm origem pois elas so os agentes de sua contnuareproduo e evoluo: tcnica e tecnologia, alimentando-se mutuamente na contnuaatualizao de uma realidade virtual. E talvez seja justamente este o motivo pelo qual o xam o primeiro tcnico: pois "ele traz para sua comunidade um elemento novo e insubstituvel

    produzido num dilogo direto com o mundo, um elemento escondido ou inacessvel para acomunidade at ento" (Garcia dos Santos 2003:70). Tendo sido ele aquele que alcanou ofundo annimo (morte) e voltou, tambm ele aquele capaz de ver alm da realidademanifesta (o mundo criado) e conhecer a origem de todas as coisas e seu modo de existncia. importante perceber que a "volta" do xam que faz dele um mediador entre o atual e ovirtual, pois o caminho percorrido por ele o mesmo percorrido pelos mortos, e apenas oxam capaz de alcanar esta que a derradeira perspectiva e voltar. E quem volta nunca amesma pessoa que partiu, pois a experincia deixa marcas no corpo que correspondem metamorfose do xam em hbrido e sua capacidade de se colocar em perspectivasinacessveis aos demais.

    O mito como mquina de subjetivao nos coloca em contato com o prprio devir do

    real, na medida em que opera, continuamente e com um alto coeficiente de afinidademolar/molecular, a ruptura entre sujeito e objeto. Trata-se, como vimos, da prpria

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    experincia exttica, que envolve um duplo processo de comunho com o mundo e de rupturacom ele: o fluxo se experienciando como estrutura contingente. O xam, como tcnico doxtase, seria enfim o operador desta mquina mtico-ritual, colocando a si mesmo e aos outrosem contato com seus prprios devires compartilhados. Como vimos, a compreenso destaoperatria requer uma reviso no apenas de oposies tcitas como aquelas entre "aes

    tcnicas" e "aes expressivas" (cf. Leach, 1976:69-70) ou entre "ao tcnica" e "ao ritual"(cf. Harrison, 1992:237-8), mas tambm de uma distino absoluta e retroativa entre aaparncia e a realidade, entre o real e o virtual. A "verdade" do mito reside na sua eficcia emoperar a polarizao de um universo em formao, onde um mundo que simultaneamente seaproxima e se distancia do sujeito (sem que este possa saber ao certo os seus limites) pode serapreendido em sua forma e em sua funo. Talvez a atestada importncia dos xams tanto nocontedo do mito (xams mticos) como na sua forma (sua criao e re-elaborao) apenascomprove a sua natureza exttica e tecnolgica. Afinal, o caos permanece sendo"cosmicizado" por mitos, e estes mitos continuam sendo tcnicas do xtase.

    Agradecimentos especiais a Ktia Kasper, cujos comentrios sobre a verso anterior deste texto foram

    essenciais para a sua atual verso.

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    ! Pedro Peixoto Ferreira desenvolvepesquisa de doutorado em Cincias Sociais naUnicamp com apoio da FAPESP e coordena,

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