Famílias Contemporâneas e as Dimensões Da Responsabilidade – Paulo Lôbo

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Famílias contemporâneas e as dimensões da responsabilidade – Paulo Lôbo A experiência democrática contemporânea operou a interdependência entre liberdade e responsabilidade, ao contrário da disjunção liberal. Ou seja, não há liberdade sem responsabilidade, nem esta sem aquela. Em outras palavras, quanto mais liberdade se conquista, com redução conseqüente do quantum despótico, mais responsabilidade se impõe a quem exerce aquela. A liberdade das famílias contemporâneas, assegurada pelo direito, encontra sentido e legitimidade na ética da responsabilidade. Vê-se, então, que a idéia de responsabilidade, desenvolvida nos últimos duzentos anos, não se volta apenas às conseqüências dos atos realizados no passado, mas se dirige, igualmente, à realização ética de deveres voltados ao futuro. Na ética da convicção o que conta é a boa intenção, ou a vontade moralmente boa, ou os princípios ideológicos, sem preocupação com os efeitos dos atos praticados. No plano das relações pessoais, que nos interessa neste estudo, melhor será que se encontre o ponto de equilíbrio entre convicção e responsabilidade, ponderando ou balanceando uma e outra em cada situação concreta. Em obra denominada O princípio da responsabilidade, Hans Jonas sustenta que a responsabilidade esteve distanciada da ética antropocêntrica que marcou a modernidade: O homem é o centro e o fim, para o que a natureza seria meio a ser explorado, e se necessário destruído. Essa racionalidade estaria na base do descompromisso com o futuro, com as futuras gerações, agravado pela acumulação imensa de poder tecnológico de destruião. O homem não apenas se serve da natureza, mas pode destruí-la e, consequentemente, destruir a si próprio, comprometendo os que virão.

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Famílias contemporâneas e as dimensões da responsabilidade – Paulo Lôbo

A experiência democrática contemporânea operou a interdependência entre liberdade e responsabilidade, ao contrário da disjunção liberal. Ou seja, não há liberdade sem responsabilidade, nem esta sem aquela. Em outras palavras, quanto mais liberdade se conquista, com redução conseqüente do quantum despótico, mais responsabilidade se impõe a quem exerce aquela. A liberdade das famílias contemporâneas, assegurada pelo direito, encontra sentido e legitimidade na ética da responsabilidade.

Vê-se, então, que a idéia de responsabilidade, desenvolvida nos últimos duzentos anos, não se volta apenas às conseqüências dos atos realizados no passado, mas se dirige, igualmente, à realização ética de deveres voltados ao futuro.

Na ética da convicção o que conta é a boa intenção, ou a vontade moralmente boa, ou os princípios ideológicos, sem preocupação com os efeitos dos atos praticados. No plano das relações pessoais, que nos interessa neste estudo, melhor será que se encontre o ponto de equilíbrio entre convicção e responsabilidade, ponderando ou balanceando uma e outra em cada situação concreta.

Em obra denominada O princípio da responsabilidade, Hans Jonas sustenta que a responsabilidade esteve distanciada da ética antropocêntrica que marcou a modernidade: O homem é o centro e o fim, para o que a natureza seria meio a ser explorado, e se necessário destruído. Essa racionalidade estaria na base do descompromisso com o futuro, com as futuras gerações, agravado pela acumulação imensa de poder tecnológico de destruião. O homem não apenas se serve da natureza, mas pode destruí-la e, consequentemente, destruir a si próprio, comprometendo os que virão.

O novo tipo de sujeito da nossa época é: “aja de modo a que os efeitos da tua ação sejam compatíveis com a permanência de uma autêntica vida humana sobre a terra”, porque nós não temos o direito de escolher a não existência de futuras gerações em função da existência da atual, ou mesmo de as colocarem em risco.

Para além da responsabilidade derivada de todo agir causal entre os seres humanos, que impõe a reparação dos danos causados (imposição formal), propugna por outra noção de responsabilidade que não concerne ao cálculo do que foi feito ex posto facto, “mas à determinação do que se tem a fazer; uma noção em virtude da qual eu me sinto responsável, em primeiro lugar, não por minha conduta e suas conseqüências, mas pelo objeto que reivindica meu agir”. Responsabilidade, por exemplo, pelo bem-estar dos outros, que considera determinadas ações não só do ponto de vista da sua aceitação moral, mas se obriga a atos que não tem nenhum outro objetivo.

Para Jonas, o poder se torna objetivamente responsável por aquele que lhe foi confiado. O exercício do poder (ai incluídos os poderes privados, como o “poder familiar”) sem a observação do dever é, então, “irresponsável”, ou seja, representa uma quebra da relação de confiança presente na responsabilidade.

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Sob o ponto de vista do direito, a noção de Jonas de responsabilidade como determinação do que se tem a fazer se enquadraria como obrigação de fazer, ao lado da tradicional obrigação de reparar, que era o campo até então da responsabilidade civil negocial ou extranegocial.

O Estado social – o estágio contemporâneo do Estado moderno, apesar da globalização e do neoliberalismo –, marcado profundamente pelas diretrizes de solidariedade e justiça social, provoca intensa alteração na concepção de responsabilidade, não só para torná-la mais objetiva, mas também para inclusão de sujeitos vulneráveis no âmbito de proteção e, consequentemente, da responsabilização das pessoas físicas e jurídicas.

A grande dicotomia da responsabilidade no direito situa-se entre a responsabilidade penal, voltada a infligir o autor do mal uma pena, um sofrimento e a responsabilidade civil, destinada a reparar o mal. O campo da responsabilidade civil era o da reparação, havendo dano, enquanto o da responsabilidade penal era o da pena, ainda que não houve dano (tentativa de homicídio, p. ex.). atualmente, retoma-se com força a idéia de conjugação da reparação e de pena (punitive damages) na responsabilidade civil (principalmente em situações de danos morais), enquanto que no ilícito criminal cada vez mais assiste-se à substituição da pena de prisão por “penas alternativas”, de natureza civil, como obrigações de fazer ou obrigações de dar.

O dano não é mais elemento nuclear do ilícito civil, pois pode estar em uma espécie (o ato ilícito, regido pelo art. 186 do CC), e não estar em outra. Pode haver ilícito civil sem culpa e sem dano (o abuso do direito, regido pelo art. 187 do CC), na composição do seu suporte fático. Pode haver, ainda, dano reparável sem ser proveniente de ilícito civil, ou seja, o fato que lhe causou é fato jurídico lícito (Estado de necessidade). São situações de responsabilidade civil ou imputabilidade sem ilicitude. O dano causado por fato lícito e reparável, mas não é ilícito, o que também torna dispensável o pressuposto de nexo de causalidade da responsabilidade civil.

A doutrina tradicional afirma categoricamente que sem dano efetivo não há responsabilidade civil. A idéia de reparação, que domina o direito da responsabilidade civil, orienta-se pelo que ocorreu no passado; é um remédio ao prejuízo já realizado. Ocorre que o Estado e o direito assumiram novas funções, incluindo as preventivas e as de proteção, de modo a evitar danos, lançando mão principalmente das proibições de conduta, como a proibição de vendas de produtos, para o que a mera circulação ou exposição já constitui fato ilícito.

A prevenção é, consequentemente, categoria que há de ser considerada na noção contemporânea de responsabilidade civil. Ao lado da responsabilidade curativa trilha a responsabilidade preventiva.

Os efeitos de ato ou atividade não contrários ao direito também podem ser objetos de responsabilidade, que não tem por finalidade a reparação, o que seria contradição nos termos. A degradação do meio ambiente teve causa lícita, necessária e inevitável, para que a atividade pudesse ser exercida.

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No âmbito da responsabilidade civil, que mais interessa ao nosso tema, houve o progressivo distanciamento do requisito liberal e individualista da culpa, condicionante da ilicitude do evento danoso, para a imputação da responsabilidade a alguém, em virtude de certas situações, independentemente da culpa do responsável ou até mesmo quando exerce ato ou atividade lícitos. Alguns autores insistem que a responsabilidade civil no Brasil é culposa, reservando-se a responsabilidade civil objetiva para situações excepcionais, que estejam explicitadas na lei.

Indicação marcante do declínio do papel da culpa na responsabilidade civil é a trajetória da natureza da responsabilidade dos pais pelos danos causados por seus filhos. Outro ponto a destacar é que a imputabilidade, na evolução do direito desligou-se da culpa e da causa de responsabilidade pelo ilícito civil. No direito anterior da responsabilidade civil, de teor subjetivista, a imputabilidade estava vinculada à culpa. Imputável era o culpado. Se não fosse possível caracterizar a culpa do autor do ato ilícito ou de outra pessoa que a assumisse, então não se poderia cogitar a imputabilidade. A ausência de culpa levava à inimputabilidade, à irresponsabilidade e ao desaparecimento da própria ilicitude. No quadro atual do direito, imputabilidade é a aptidão de ser civilmente responsável, independentemente de culpa. A imputabilidade, nos dias atuais, diz respeito à atribuição de responsabilidade pelo dano, independentemente de ter havido culpa ou participação no evento. Assim, não mais a imputabilidade está relacionada à capacidade delitual dos agentes, ou capacidade para praticar ilícito, salvo para os atos ilícitos referidos no art. 186 do CC.

Se a culpa, o risco, o ato ilícito, o dano efetivo, o nexo de causalidade e a reparação não constituem pressupostos ou requisitos abrangentes de todas as hipóteses de responsabilidade civil, o que há de comum ou nuclear, ou seja, o que se encontra presente em todas elas? Apenas a imputação da responsabilidade a alguém em face de determinado fato lícito ou ilícito gerador de obrigação extranegocial. Não são mais determinantes a licitude ou ilicitude do fato gerador, a existência ou não de dano real, a possibilidade ou não de reparação, a equivalência da reparação em razão de extensão do dano, o nexo causal entre determinado fato e o dano, a culpa do agente.

A responsabilidade na família é igualmente pluridimensional e não se esgota nas consequências dos atos do passado, de natureza negativa. Mais importante e desafiadora é a responsabilidade pela promoção dos outros integrantes das relações familiares e pela realização de atos que assegurem as condições de vida digna das atuais e futuras gerações, de natureza positiva. A família, mais que qualquer outro organismo social, carrega consigo o compromisso com o futuro, por ser o mais importante espaço dinâmico de realização existencial da pessoa humana e de integração das gerações

A paternidade e a maternidade lidam com seres em desenvolvimento que se tornarão pessoas humanas em plenitude, exigentes de formação até quando atinjam autonomia e possam assumir responsabilidades próprias, em constante devir. Não somente os pais, mas também todos os que integram as relações de parentesco ou grupo familiar. Nesta linha, o art. 227 da Constituição impõe à família, em sentido amplo, e bem assim à

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sociedade e ao Estado, deveres em relação à criança e ao adolescente concernentes à preservação da vida, à saúde, à educação familiar e escolar, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, à liberdade, e à convivência familiar. Por seu turno, o art. 229 da Constituição estabelece que os pais têm o dever de assistir, criar e educar os filhos menores. Esse complexo enlaçamento de deveres fundamentais existe pelo simples fato da existência da criança e do adolescente, sem necessidade de ser exigível por estas. Basta a situação jurídica da existência, do nascer com vida.

A viragem copernicana da assunção de deveres fundamentais em face da criança resulta de sua emersão como sujeito de direitos próprio. A responsabilidade com sua formação integral, em respeito à sua condição de pessoa em desenvolvimento, é muito recente, na história da humanidade. A concepção então existente de pátrio poder era de submissão do filho aos desígnios quase ilimitados do pai; a criança era tida mais como objeto de cuidado e correção do que como sujeito próprio de direitos. Fora da família, a criança era tida como menor em condição irregular. No Brasil, a viragem, decorrente da difusão internacional da doutrina de proteção integral da criança, concretiza-se com o advento da Constituição de 1988 e do Estatuto da Criança e do Adolescente de 1990. De objeto a sujeito chega-se à responsabilidade e aos deveres fundamentais.

Ainda com relação aos filhos, a supressão ou limitação dos direitos dos havidos fora do casamento legitimavam a irresponsabilidade. Os filhos ilegítimos, que marcaram o direito de família brasileiro, até 1988, não podiam sequer ser reconhecidos juridicamente pelos pais, na legislação anterior. E, assim, a responsabilidade natural era vedada pela lei, inexistindo direitos e deveres. Diferentemente da noção ética de responsabilidade contemporânea, a liberdade era dela dissociada; livre era o genitor do filho ilegítimo e, conseqüentemente, irresponsável.

A mudança radical em prol da responsabilidade, faz ressaltar a importância da ressignificação do poder familiar como autoridade parental, que deixou de ser um conjunto de competências atribuídas ao pai, para converter-se em conjunto de deveres de ambos os pais no melhor interesse do filho, principalmente da convivência familiar.

A união estável é outro exemplo na direção da responsabilidade positiva no direito de família. Jogada na vala comum das relações concubinárias, a irresponsabilidade imposta aos companheiros pelo direito apenas foi atenuada com a construção doutrinária e jurisprudencial da sociedade de fato. Retirada das sombras da ilegalidade e convertida em entidade familiar resultou em assunção de responsabilidades igualitárias dos companheiros, que passaram a ser sujeitos recíprocos de direitos e deveres de natureza material e moral.

O distanciamento do padrão da culpa, para a conformação da responsabilidade, é mais acentuado no direito de família contemporâneo. A culpa, em virtude de sua moral individualista, é incompatível com o princípio da solidariedade familiar, cujo traço tem sido destacado pela doutrina atual. As diretrizes do direito de família não são mais informadas pela punição de condutas; têm por finalidade, essencialmente, a promoção da dignidade e da solidariedade entre os integrantes das relações familiares, de seus

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deveres recíprocos, de modo mais objetivo possível, condicionando a noção de responsabilidade, que é forçosamente positiva, para cônjuges, companheiros, pais, filhos, parentes.

Mesmo nas hipóteses das causas subjetivas ou culposas para a separação judicial, mantidas no Código Civil de 2002, a ocorrência de qualquer delas não constitui dano reparável. São causas que possibilitam a separação judicial, mas não necessariamente se confunde com evento causador de dano. Se dano material ou moral houve, então cai-se na regra comum da responsabilidade civil geral.

O Código Civil estabelece deveres comuns para os cônjuges e para os companheiros, de natureza mais ética que jurídica. Quais as sanções para sua violação? Nenhuma, diretamente, como se vê nos arts. 1.566 e 1.725: são normas jurídicas sem sanção direta. Na tradição da culpa, havia consequências indiretas, relacionadas a supressão de direitos do culpado pela separação, em relação à guarda dos filhos, aos alimentos, à partilha dos bens, ao uso do nome. Essas restrições odiosas, que encobriam a ideologia religiosa da indissolubilidade do casamento, foram gradativamente suprimidas da legislação.

Tradicionalmente, a culpa pela separação dos pais determinava a guarda exclusiva. O culpado ficava relegado ao direito de visita, como punição, revelada na restrição à convivência com o filho. No direito contemporâneo, a convivência converteu-se em direito e dever fundamentais de intensa reciprocidade, no sentido de relação afetiva desimpedida, de contato e de acesso: direito amplo do filho de conviver com o genitor com quem não resida e, reciprocamente, do genitor com seu filho.

O direito à convivência familiar não se esgota na chamada família nuclear, composta apenas pelos pais e filhos. O Poder Judiciário, em caso de conflito, deve levar em conta a abrangência da família considerada em cada comunidade, de acordo com seus valores e costumes. Na maioria das comunidades brasileiras, entende-se como natural a convivência com os avós e, em muitos locais, com os tios, todos integrando um grande ambiente familiar solidário. Consequentemente têm igualmente fundamento nos deveres da convivência familiar as decisões judiciais que asseguram aos avós o direito de visita a seus netos

A convivência familiar é direito-dever de contato e convívio de cada pessoa com seu grupo familiar. É direito porque pode ser exercido contra quem o obsta, seja o Estado, o grupo familiar, o grupo social ou até mesmo outro membro da família. É dever porque cada integrante do grupo familiar, ou cônjuge, ou companheiro, ou filho, ou parente está legalmente obrigado a cumpri-lo, além da família como um todo, ou, ainda, a sociedade e o Estado. É dever de prestação de fazer ou de obrigação de fazer, configurando responsabilidade em sentido positivo.

a) As relações familiares hauridas da convivência familiar duradoura ou constituídas por laços afetivos, fora da consangüinidade, têm recebido proteção legal crescente, importando assunção de responsabilidades. A socioafetividade é conceito em expansão, com reflexos positivos nas decisões judiciais. No que respeita à filiação, o direito

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brasileiro contempla três modalidades para além da origem biológica: a adoção, a posse de estado de filho e a concepção mediante inseminação artificial heteróloga. Nestas hipóteses, o estado de filiação é inviolável e não pode ser desfeito por decisão judicial, salvo na situação comum de perda do poder familiar (art. 1.638 do Código Civil). A responsabilidade parental é idêntica à resultante da filiação biológica. Pai, com todas as dimensões sociais, afetivas e jurídicas que o envolvem, não se confunde com genitor biológico; é mais que este.

O art. 1.593 do Código Civil enuncia regra geral que contempla a socioafetividade em geral, ao estabelecer que “o parentesco é natural ou civil, conforme resulte de consangüinidade ou outra origem”. Essa regra impede que o Poder Judiciário apenas considere como verdade real a biológica. Assim os laços de parentesco na família (incluindo a filiação), sejam eles consangüíneos ou de outra origem têm a mesma dignidade e submetem-se às mesmas regras de responsabilidade.

b) A responsabilidade por alimentos que decorre da relação de família ou da relação de parentesco conjuga obrigações de dar e de fazer. Responsável é o cônjuge, companheiro ou parente que possa suportar o sustento material do outro, em comprovada necessidade. Os alimentos podem decorrer, ainda, da exigibilidade do dever de amparo cujo titular do direito é o idoso (art. 230 da Constituição e Estatuto do Idoso). O descumprimento dos deveres jurídicos de sustento, assistência ou amparo faz nascer a pretensão e a correlativa obrigação de alimentos, de caráter pessoal.

A responsabilidade e a consequente obrigação exsurgem da situação jurídica criada com o parentesco ou a união, por imposição legal de solidariedade; somos parentes, somos responsáveis uns com os outros. Os alimentos já foram concebidos como imposição do dever de caridade, de piedade ou de consciência, contendo-se nos campos moral e religioso. A grande família, com filhos numerosos e agregados, era a única segurança de amparo aos que não estavam no mercado de trabalho, especialmente os menores e os idosos. No século XX, com o advento do Estado social, organizou-se progressivamente o sistema de seguridade social, entendendo-se ser de inarredável política pública, com os recursos arrecadados dos que exercem atividade econômica, a garantia de assistência social, de saúde e de previdência. Mas a rede pública de seguridade social não cobre a necessidade de todos os que necessitam de meios para viver, especialmente as crianças e os adolescentes, mantendo-se os parentes e familiares responsáveis por assegurar-lhe o mínimo existencial, especialmente quando as entidades familiares se desconstituem ou não chegam a se constituir (LÔBO, 2009b, p. 348).

c) É do Estado-legislador a responsabilidade por garantir a tutela jurídica às relações existenciais afetivas, como já fez explicitamente com a união estável e com as famílias monoparentais. Nessa direção é o Projeto de Lei nº 2285, de 2007, da Câmara dos Deputados. É responsabilidade do Estado-juiz dar efetiva aplicabilidade à norma de inclusão do art. 226 da Constituição, relativamente às entidades familiares

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constitucionalmente implícitas, sempre que se comprovar convivência familiar duradoura e pública, consolidada na afetividade.

Como tivemos oportunidade de dizer alhures, os tipos de entidades familiares explicitados nos parágrafos do art. 226 da Constituição são meramente exemplificativos, sem embargo de serem os mais comuns, por isso mesmo merecendo referência expressa. As demais entidades familiares, socialmente reconhecidas, são tipos implícitos incluídos no âmbito de abrangência do conceito amplo e indeterminado de família indicado no caput. Como todo conceito indeterminado, depende de concretização dos tipos, na experiência da vida, conduzindo à tipicidade aberta, dotada de ductilidade e adaptabilidade (LÔBO, 2002, p. 45). Assinale-se, ante a responsabilidade do Estado pela tutela da dignidade da pessoa humana, que a proteção da família é proteção mediata, ou seja, no interesse da realização existencial e afetiva das pessoas. Não é a família per se que é constitucionalmente protegida, mas o locus indispensável de realização e desenvolvimento da pessoa humana. Sob o ponto de vista do melhor interesse da pessoa, não podem ser protegidas algumas entidades familiares e desprotegidas outras, pois a exclusão refletiria nas pessoas que as integram por opção ou por circunstâncias da vida, comprometendo a realização do princípio da dignidade humana.

d) Independentemente da preservação das relações familiares socioafetivas, impõe-se a responsabilidade do Estado, da sociedade, dos genitores biológicos por assegurar o conhecimento da origem genética dos filhos cujo parentesco decorre de outras origens. Com relação ao filho havido por adoção, a Lei 12.010, de 2009, que introduziu profundas modificações no modelo de adoção, estabelece que o “adotado tem direito de conhecer sua origem biológica, bem como de obter acesso irrestrito ao processo no qual a medida foi aplicada e seus eventuais incidentes, após completar 18 (dezoito) anos”. Como se vê, na sequência do que a doutrina contemporânea brasileira já enunciava, o direito ao conhecimento da origem genética não tem propósitos de impugnar ou modificar o parentesco constituído pela adoção, que é definitivo; sua natureza é de direito fundamental ou direito da personalidade, que tutela a pessoa em si.

e) Nota-se crescente distanciamento da responsabilidade das famílias com a formação de suas crianças, transferindo para terceiros, principalmente a escola, seu indeclinável dever de educação integral. Sabe-se, desde os antigos, que a formação da pessoa envolve três ambientes fundamentais: a casa, a escola e o espaço público. É a integração entre espaço privado e espaço público que os gregos antigos denominavam paideia, para diferençar de pedagogia, que fazia parte daquela. A complexidade da vida contemporânea, o mundo do trabalho e os imensos territórios das cidades fazem com que os pais dediquem menos tempo aos filhos, transferindo inclusive a absorção de valores e da compreensão do mundo para a escola e a rua.

A noção de educação, para fins da responsabilidade na família, é a mais larga possível. Inclui a educação escolar, a formação moral, política, religiosa, profissional, cívica que se dá em família e em todos os ambientes que contribuam para a formação do filho,

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como pessoa em desenvolvimento. Ela inclui, ainda, todas as medidas que permitam ao filho aprender a viver em sociedade. A educação ou formação moral envolve a elevação da consciência e a abertura para os valores. O art. 205 da Constituição enuncia que a educação “direito de todos e dever do Estado e da família, será promovida e incentivada com a colaboração da sociedade, visando ao pleno desenvolvimento da pessoa, seu preparo para o exercício da cidadania e sua qualificação para o trabalho”. Por seu turno, a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional, Lei n. 9.394, de 1996, estabelece em seu art. 1° que a educação “abrange os processos formativos que se desenvolvem na vida familiar, na convivência humana, no trabalho, nas instituições de ensino e pesquisa, nos movimentos sociais e organizações da sociedade civil e nas manifestações culturais”. Apenas a conjugação família-escola permite cumprir plenamente tais deveres e alcançar os fins legais.