Euclides da Cunha na Alemanha - SciELOA 5 de outubro de 1897 a guerra contra Canudos, no profundo...

22
Euclides da Cunha na Alemanha BERTHOLD ZILLY A 8 DE OUTUBRO DE 1897, o diário Vossische Zeitung noticiava na primei- ra página de sua edição matutina: "O governo brasileiro anuncia oficial- mente que as suas tropas tomaram a cidade de Canudos no estado da Bahia e prenderam o líder dos fanáticos, o Conselheiro. Confirmando-se tal no- tícia - e desta vez ela surge de forma muito clara -, então pode-se parabenizar a República pelo sucesso, pois ainda poucos dias as tropas governamentais foram rechaçadas diante de Canudos. O assim chamado bando de fanáticos ameaçava seriamente a República, entretinha estreitas relações com o partido monarquista. O deflagrador do movimento foi o profeta Antônio Conselheiro, sendo seu nome verdadeiro Antônio Maciel. O nome de Conselheiro ele só recebeu de seus sequazes. Ele tem 63 anos e prega como profeta desde o ano de 1875. (...) Depois de muitos anos de vida solitária e arredia, ele apareceu como prega- dor no interior do estado da Bahia. Entre os habitantes pobres e ignorantes dessas regiões ele passava por santo, e logo tinha reunido tantos crentes ao seu redor que pôde fundar uma vila própria. Nessa colônia ele imperou como prín- cipe absoluto, dispondo sobre a vida e a morte. Recusou-se a pagar qualquer taxa ou imposto ao governo e expulsou os fiscais. Depois de alguns anos, o Conselheiro desistiu da primeira colônia e fundou mais para o interior a cidade de Canudos. Hoje esta cidade conta mais de 10 mil habitantes e possui várias igrejas com muralhas extraordinariamente resistentes. Todos os crentes andam sempre armados e também as mulheres são treinadas nas armas. Enquanto vigo- rou o Império, o Conselheiro pregou apenas a salvação das almas, mas depois da introdução da República ele a declarou obra do demônio e anunciou a volta de um príncipe que faria a Monarquia resplandecer em um novo brilho. (...) Mes- mo com toda a paciência, o governo brasileiro viu-se por fim forçado a marchar com o poder das armas sobre o cabeça dos fanáticos, já que com a precária situação econômica ele ganhava diariamente multidões de adeptos. (...) Se o movimento termina com a prisão e provável execução do Conselheiro, isto ainda vai se revelar. Talvez o messias brasileiro tenha providenciado um sucessor." O artigo do grande diário liberal berlinense contém, ao lado de imprecisões insignificantes, os fatos decisivos e as mentiras propagandistas do conflito.

Transcript of Euclides da Cunha na Alemanha - SciELOA 5 de outubro de 1897 a guerra contra Canudos, no profundo...

Page 1: Euclides da Cunha na Alemanha - SciELOA 5 de outubro de 1897 a guerra contra Canudos, no profundo sertão baiano, cerca de 400 quilômetros ao norte de Salvador e 2 mil quilômetros

Euclides da Cunhana AlemanhaBERTHOLD ZILLY

A 8 DE OUTUBRO DE 1897, o diário Vossische Zeitung noticiava na primei-ra página de sua edição matutina: "O governo brasileiro anuncia oficial-mente que as suas tropas tomaram a cidade de Canudos no estado da

Bahia e prenderam o líder dos fanáticos, o Conselheiro. Confirmando-se tal no-tícia - e desta vez ela surge de forma muito clara -, então pode-se parabenizar aRepública pelo sucesso, pois ainda há poucos dias as tropas governamentaisforam rechaçadas diante de Canudos. O assim chamado bando de fanáticosameaçava seriamente a República, entretinha estreitas relações com o partidomonarquista.

O deflagrador do movimento foi o profeta Antônio Conselheiro, sendoseu nome verdadeiro Antônio Maciel. O nome de Conselheiro ele só recebeu deseus sequazes. Ele tem 63 anos e prega como profeta já desde o ano de 1875.(...) Depois de muitos anos de vida solitária e arredia, ele apareceu como prega-dor no interior do estado da Bahia. Entre os habitantes pobres e ignorantesdessas regiões ele passava por santo, e logo tinha reunido tantos crentes ao seuredor que pôde fundar uma vila própria. Nessa colônia ele imperou como prín-cipe absoluto, dispondo sobre a vida e a morte. Recusou-se a pagar qualquertaxa ou imposto ao governo e expulsou os fiscais. Depois de alguns anos, oConselheiro desistiu da primeira colônia e fundou mais para o interior a cidadede Canudos. Hoje esta cidade conta mais de 10 mil habitantes e possui váriasigrejas com muralhas extraordinariamente resistentes. Todos os crentes andamsempre armados e também as mulheres são treinadas nas armas. Enquanto vigo-rou o Império, o Conselheiro pregou apenas a salvação das almas, mas depois daintrodução da República ele a declarou obra do demônio e anunciou a volta deum príncipe que faria a Monarquia resplandecer em um novo brilho. (...) Mes-mo com toda a paciência, o governo brasileiro viu-se por fim forçado a marcharcom o poder das armas sobre o cabeça dos fanáticos, já que com a precáriasituação econômica ele ganhava diariamente multidões de adeptos. (...) Se omovimento termina com a prisão e provável execução do Conselheiro, isto aindavai se revelar. Talvez o messias brasileiro tenha providenciado um sucessor."

O artigo do grande diário liberal berlinense contém, ao lado de imprecisõesinsignificantes, os fatos decisivos e as mentiras propagandistas do conflito.

Page 2: Euclides da Cunha na Alemanha - SciELOA 5 de outubro de 1897 a guerra contra Canudos, no profundo sertão baiano, cerca de 400 quilômetros ao norte de Salvador e 2 mil quilômetros

A 5 de outubro de 1897 a guerra contra Canudos, no profundo sertão baiano,cerca de 400 quilômetros ao norte de Salvador e 2 mil quilômetros ao norte doRio de Janeiro, depois de 11 meses e inúmeras declarações precipitadas de vitó-ria, chegava efetivamente ao fim, de forma muito mais sangrenta do que podiaimaginar o redator alemão, abastecido de notícias pelas agências internacionais.É verdade que não houve execuções em sentido jurídico - o Brasil abolira haviamuito tempo a pena de morte -, mas aqueles entre os vencidos que não tinhammorrido na luta, ou de fome, sede ou doença, estes foram assassinados sumaria-mente pelos soldados vencedores, com o consentimento de seus superiores, indoaté o ministro da guerra. Pouparam-se apenas poucas centenas de mulheres ecrianças, as quais foram em parte vendidas, pelos membros do exército, comoescravos a comerciantes e bordéis ou oferecidas como souvenirs a amigos. Opróprio Euclides ganhou um menino-jagunço, que ele todavia apoiou nos estu-dos e mais tarde - certamente de maneira refletida - impulsionou para o magistério.

Canudos, que nos quatro últimos anos se alçara com seus 20-30 mil habi-tantes à condição de segunda maior cidade da Bahia, já não existia mais no dia 8de outubro. As ruínas das suas duas igrejas e 5.200 habitações foram dinamita-das, incendiadas, demolidas pedra por pedra, viga por viga, parede por parede, earrasadas a fim de extinguir todo e qualquer resquício da comunidade insubmissa.Por esse motivo não podia haver um sucessor imediato para o Conselheiro, masperduravam a miséria social e o contexto espiritual aos quais ele havia dado ex-pressão; assim ele não foi a única figura messiânica dos pequenos agricultores,arrendatários, vaqueiros e miseráveis do sertão inóspito, castigados pelo clima,pelos latifundiários e pelas autoridades.

No mais, os fatos reais não se estampam no artigo citado de maneira maistendenciosa do que em muitos órgãos de imprensa brasileiros. Pois a guerra naremota Canudos foi - de maneira tão bárbara quanto moderna - uma guerra dedestruição e extermínio. Desde o início os habitantes não tinham chance algu-ma, pois o simples fato de pertencerem à comunidade os condenava à morte, àmedida que não haviam fugido a tempo. Governo e exército nem sequer acha-ram necessário adverti-los, ameaçá-los, estabelecer exigências e condições, nego-ciar com eles; fizeram com que as armas falassem com exclusividade. Foi umaagressão sem declaração de guerra. E os agressores lutaram não só com as armasmais modernas da indústria armamentista européia como também com recursospsicológicos, a fim de mobilizar a opinião pública, apoiados pelos jornais que decerto modo torpedeavam, de todas as posições, os moradores da miserável cida-de de taipa, tendo a imprensa mundial por aliado. Também o correspondente deguerra Euclides da Cunha participou inicialmente dessa campanha. Em nome daRepública e do progresso, até mesmo em nome da Revolução de 1789, os adep-tos do Conselheiro foram estigmatizados como loucos, criminosos, inimigos doEstado, sendo-lhes questionado propagandisticamente o direito de existência.

Page 3: Euclides da Cunha na Alemanha - SciELOA 5 de outubro de 1897 a guerra contra Canudos, no profundo sertão baiano, cerca de 400 quilômetros ao norte de Salvador e 2 mil quilômetros

Como na maioria das guerras modernas, haviatambém em Canudos uma rigorosa censura daimprensa e um desvirtuamento calculado da opi-nião pública. Não podia vazar nada a respeito doscrimes de guerra; ao invés disso, o exército espa-lhava afirmações abstrusas sobre ligações dos de-fensores com o partido monarquista e sobre oabastecimento de armas a partir do exterior.

Por 11 meses essa guerra civil localizadaabalara o imenso país com crescente intensidade epor sete meses inquietara até mesmo a opiniãopública mundial, mobilizara no total 12 mil sol-dados, quase a metade do contingente brasileirode então - junto com canhões Krupp e outrosarmamentos pesados - e custara ao exército cercade 1.100 mortos e quatro mil feridos. Ameaçara aconsolidação da jovem República sob o seu pri-meiro presidente civil, desde 1894 no cargo, as-sim como a sua recuperação econômica e, comisso, também seu crédito internacional. O alíviopela vitória era compreensível. Começaram então,de fato, anos de relativa estabilidade política e pros-peridade econômica.

Todavia, mal fora disparado o último tiro eem parte da opinião pública operou-se uma revi-ravolta na avaliação da guerra. Apareceram entãoartigos de jornal, panfletos e livros sobre atroci-dades do exército, redigidos sobretudo por estu-dantes e formados das faculdades de direito emedicina da Bahia. Até mesmo o sentido da guer-ra toda foi, não raro, colocado em dúvida. Masmesmo quem não ia tão longe, expressavafreqüentemente seu pesar pela morte de tantossertanejos, detratados antes como jagunços, comobandidos e que agora, como estavam mortos, eramdeclarados concidadãos e incorporados à nação.Iniciativas para um enaltecimento dos inimigosencontraram-se até mesmo nas últimas ordens dodia do exército. Também uma série de oficiais quelutaram em Canudos e escreveram mais tarde so-bre a campanha reconheceram posteriormente o

Os sertões na Alemanha

MARCUS V. MAZZARI*

OPRESENTE TEXTO DE Bert-hold Zilly saiu original-

mente como posfácil à suatradução para o alemão d'Ossertões de Euclides da Cunha,publicada em outubro de1994, pela editora Suhrkamp,sob o título Krieg im Sertão(Guerra no sertão).

Entre as obras da literatu-ra, brasileira traduzidas para. oalemão, talvez tenha rido estaa que obteve maior ressonân-cia, o que se pode verificarpelas resenhas, sempre elo-giosas, que saíram em váriosdos mais importantes jornaise revistas do país: um extensocomentário sobre Os sertõesabre o "panorama da litera-tura brasileira" de HugoLoetscher publicado numaedição especial da revistaSpiegel (outubro 94) dedi-cada à Feira Internacional doLivro de Frankfurt, que teveo Brasil como país homena-geado. Em periódicos comoDie Zeit, Frankfurter Rund-schau, Süddeutsche Zeitung,Freitag, Euclides foi saudado,em longas e entusiásticas re-senhas, como um Heródoto dosertão, um épico de dimensõeshoméricas. Pela sua tradução,B. Zilly recebeu em agosto de

, 1995 o recém-criado PrêmioScatched (10 mil marcos) eem novembro, na cidade deRavensburg, o conceituadoPrêmio Wieland (15 mil mar-cos), outorgado a cada doisanos pelo estado de Baden-

Page 4: Euclides da Cunha na Alemanha - SciELOA 5 de outubro de 1897 a guerra contra Canudos, no profundo sertão baiano, cerca de 400 quilômetros ao norte de Salvador e 2 mil quilômetros

heroísmo e a brasilidade dos habitantes primitivos do sertão. Assim o exércitopôde orgulhar-se duplamente, de si próprio e do adversário.

Poucos anos depois a nação começa a esquecer os aspectos questionáveis erevoltantes da guerra. Urgiam outras tarefas. Vivia-se uma euforia de moderni-zação. O Rio de Janeiro e outras grandes cidades civilizavam-se. A necessidadede informações quanto à Guerra no fim do mundo - como diz o título de umromance de Mario Vargas Llosa que remonta a Os sertões- estava aplacada. Pormeio de reportagens, análises e relatos militares, livros de memórias escritos portestemunhas com perspectivas variadas, os aspectos essenciais da guerra estavamfocalizados e, de certo modo, esclarecidos, até mesmo com apoio visual de umálbum de fotografia comercializado; e também a necessidade de comoção e en-tretenimento estava, num primeiro momento, satisfeita por alguns poemas, pe-ças de teatro e romances. Podia-se deixar que o acontecimento deplorável, mascuriosamente também edificante, se assentasse aos poucos.

Aparecem então, no final de 1902, Os sertões de Euclides da Cunha.

O autor teme o fracasso ou mesmo represálias, pois por um lado o livrosobre a guerra no sertão perdera atualidade nesse meio tempo, cinco anos apósos fatos retratados; por outro lado, o livro critica instituições poderosas, entreelas a imprensa e sobretudo o exército, não poupa sequer o comandante geral daúltima campanha.

Mas Os sertões tornam-se uma sensação, um daqueles livros não muitofreqüentes na história literária cujo significado é reconhecido desde o início ecujo impacto permanece inalterado por décacias afora. Em oito dias são vendidos500 exemplares, a metade da edição; a segunda edição segue-se após algunsmeses - espantoso para um país de 18 milhões de habitantes, dos quais a maioriase compõe de analfabetos, e só alguns poucos milhares formam aquela camadade acadêmicos em condições de ler a obra carregada de tanta erudição. No Brasilforam publicadas até hoje mais de quarenta edições do livro e, além disso, eleestá traduzido para mais de uma dúzia de línguas. Há ainda adaptações de episó-dios em forma de revista em quadrinhos, livros infantis ou folhetos, a tradicionalliteratura de cordel. Pintores e desenhistas são inspirados pelos Sertões. Intérpre-tes da brasilidade declaram ser o livro a bíblia da nação, críticos literários, aepopéia nacional. Trechos da obra, considerada difícil do ponto de vista lingüístico,entram em livros didáticos e antologias, e também as disciplinas das ciênciassociais e humanas, que vêm surgindo desde os anos 30, fazem dela leitura obri-gatória. Uma torrente bibliográfica - jornalística e acadêmica - vem sendopublicada até os dias de hoje. Em suma: Os sertões são, desde o início, um doslivros mais famosos do Brasil, embora não dos mais lidos, mais admirado do queamado, às vezes também temido pelos alunos - um clássico, um monumento.

Page 5: Euclides da Cunha na Alemanha - SciELOA 5 de outubro de 1897 a guerra contra Canudos, no profundo sertão baiano, cerca de 400 quilômetros ao norte de Salvador e 2 mil quilômetros

O autor é coberto de honrarias; mesmo osmilitares, excetuando-se alguns poucos, esboçamum sorriso amarelo ou até saúdam o livro. Umano após a publicação, o engenheiro e jornalistade ocasião Euclides da Cunha, 37 anos comple-tos e até então desconhecido, já está eleito mem-bro das duas mais significativas associações de au-tores do país, a Academia Brasileira de Letras -espécie de Academic Française do Brasil - e oInstituto Histórico e Geográfico Brasileiro. Essadupla homenagem é índice da dupla recepção dolivro: o mais exigente crítico literário do Brasil,José Veríssimo, saudou-o logo após a publicaçãocomo "o livro de um homem de ciência, umgeógrafo, um geólogo, um etnógrafo; de um ho-mem de pensamento, um filósofo, um sociólogo,um historiador; e de um homem de sentimento,um poeta, um romancista, um artista, que sabever e descrever, que vibra e sente tanto aos aspec-tos da natureza como ao contato do homem, eestremece todo, tocado até ao fundo da alma,comovido até às lágrimas, em face da dor huma-na, venha ela das condições fatais do mundo físi-co, as secas que assolam os sertões do norte brasi-leiro, venha da estupidez ou maldade dos homens,como a campanha de Canudos." José Veríssimo,contudo, censura o excesso de termos técnicos earcaísmos, uma crítica que até hoje se faz ouvir.Considerando mais atentamente a sua análise, ve-remos que ele subdivide as ciências entre aquelasque operam antes com mensurações e aquelas quese baseiam antes no compreender, de tal forma queOs sertões reúnem em si três espécies de produçãointelectual, as ciências exatas, as ciências sociais ea beletrística. Estas "três culturas", como WolfLepenies as chama, que um Diderot e um Goetheainda conseguiam abarcar, também estavamdissociadas no Brasil de então, mas jamais de for-ma tão ampla como na Europa, pois o ensino su-perior no país ainda não possuía todas as faculda-des e, sobretudo, a divisão intelectual do trabalhoestava menos avançada. Acresce-se a isso que

Württemberg (Wieland - opatrono do prêmio, foi tam-bém o primeiro tradutor deShakespeare na Alemanha).

Se o êxito d'Os sertões sedeve em primeiro lugar àssuas qualidades intrínsecas,então há que se ressaltar deimediato a competência comque essas qualidades foramtranspostas para o alemão.Uma tal empresa, levada acabo ao longo de vários anos,tem certamente suas raízes emprofundas afinidades eletivas;mas foi também através de in-tensas leituras, de exaustivaspesquisas que o tradutor se fa-miliarizou com os menoresdetalhes, as últimas sutilezasdo epos euclidiano. Não pre-cisou, é certo, criar uma lin-guagem que sugerisse ao lei-tor a impressão de uma faladialetal, como fez o tradutoralemão do Grande sertão: ve-redas, Curt Meyer-Clason.De qualquer modo, o empe-nho de Zilly em manter má-xima fidelidade ao estilo deEuclides, em transpor para asua versão o tom, o ritmo, opathos emocional do original,colocou-o também, sistema-ticamente, diante de imensasdificuldades, para as quaisencontrou via de regra solu-ções felizes.

Zilly aventa a hipótese demuitas passagens enigmáticasd'Os sertões, que assim perma-necem na sua tradução, repre-sentarem no fondo "uma es-pécie de soliloquio de umpensador contemplativo".Mas, com relação a várias ou-tras passagens mais obscuras,

Page 6: Euclides da Cunha na Alemanha - SciELOA 5 de outubro de 1897 a guerra contra Canudos, no profundo sertão baiano, cerca de 400 quilômetros ao norte de Salvador e 2 mil quilômetros

Euclides como pesquisador viajante, condição que de certo modo era a sua emCanudos, tinha por modelo eruditos que conheciam os três campos, comoAlexander von Humboldt, Martius, Saint-Hilaire, Teodoro Sampaio, os quaisele cita várias vezes.

Os sertões enfeixam sentimentos, opiniões, preferências intelectuais da vira-da do século, revestem o remorso pelas vítimas da guerra e a autocrítica da naçãoda roupagem de uma retórica clássica, na qual entraram traços de culto parnasianoda forma, entusiasmo naturalista pela descrição e crença positivista na ciência.Voltando-se para a própria realidade, Euclides vai ao encontro da necessidade deauto-investigação nacional, menos ligada a tendências de época do que o gostoliterário e que desde então se tornou um traço cada vez mais importante da vidaintelectual brasileira. O livro é enaltecido sobretudo como passo decisivo nadescoberta do interior do país, que até então mal se levara em consideração. Éverdade que o Modernismo dos anos 20, gerado em São Paulo, e o romancenordestino de crítica social, que se constitui pouco depois, assumiram uma pos-tura antes de incompreensão frente à linguagem e ao estilo de Euclides da Cu-nha, mas retomaram o seu empenho enfático em superar a fixação pela Europa,largamente difundida, em conhecer os próprios compatriotas do interior e suamentalidade, prestar-lhes ouvidos e integrá-los à cultura nacional. E se o obser-vador e narrador Euclides da Cunha valoriza o sertanejo, aquele mestiço de trêsraças que o Euclides teórico da sociedade considera um retardatário atávico,então ele prepara de certo modo o terreno para os cientistas sociais e os artistasdos anos 30. O caráter miscigenado do povo e da cultura, que até então passavapor mácula e levara gerações de intelectuais brasileiros ao pessimismo e ao ódiointrojetado, foi reavaliado por aqueles como uma qualidade e um fator de enri-quecimento étnico.

Euclides colocou questões e ofereceu respostas que giravam sobretudo emtorno de um problema: quem somos nós brasileiros, divididos pela oposiçãoentre sul e norte, civilização e barbárie, modernidade e atraso, cidade e campo,litoral e sertão? A doutrina dos dois Brasis partiu, nos anos 50 e 60, de taisobservações. Se ela foi criticada com razão pela teoria da dependência, uma vezque negligenciou as causas estruturais do assim chamado subdesenvolvimento, asdescrições dos fenômenos eram todavia procedentes e o são em parte até hoje.Euclides perguntava ainda: quem são as nossas tão estranhas subcamadas rurais?Qual o futuro do Brasil em face da concorrência internacional e da dominânciadas potências européias e da América do Norte? Tudo isso são questões de polí-tica desenvolvimentista que permaneceram atuais, embora hoje em dia os fatoresclima e filiação étnica não sejam avaliados como por volta de 1900, quandoteorias raciais de cunho social-darwinista eram, em quase toda parte, levadascientificamente a sério. Nos últimos anos a modernização da agricultura impeliuos habitantes do sertão para as cidades litorâneas e do sul num grau que era

Page 7: Euclides da Cunha na Alemanha - SciELOA 5 de outubro de 1897 a guerra contra Canudos, no profundo sertão baiano, cerca de 400 quilômetros ao norte de Salvador e 2 mil quilômetros

quase impensável no tempo de Euclides, o quegerou novos problemas sem que os velhos tives-sem desaparecido. Uma parte do sertão veio paraa cidade.

Euclides prestou uma contribuição expres-siva à constituição da consciência histórica brasi-leira. A repressão do movimento religioso cam-ponês no árido interior da Bahia não foi o únicoabalo - nem mesmo o mais grave, mais tumul-tuoso ou com o maior número de vítimas - sofri-do pelo jovem país que conquistou a independên-cia em 1822 e o regime republicano em 1889. Sea guerra de Canudos está muito mais presente namemória coletiva e na vida intelectual brasileirado que outras crises comparáveis - levantes, guer-ras, guerras civis, também mais presente do que arepressão sangrenta do movimento messiânico deContestado, no sul do Brasil, nos anos de 1910 a1916 - então isso se deve com certeza ao livro deEuclides. Canudos jamais foi esquecida. De talforma que o nome desse campo de ruínas passouhá alguns anos para outro lugarejo vizinho. NoBrasil, porém, quem diz Canudos, diz quase sem-pre Euclides da Cunha, e assim não causa espantoque - aliás muito antes da recuperação do nomeantigo - uma pequena cidade a cerca de 70 quilô-metros ao sul, a velha Cumbe, tenha sidorebatizada como Euclides da Cunha.

Também os militares jamais esqueceramCanudos. A cada par de anos um coronel ou ge-neral reformado escreve um livro sobre aquelaguerra, na maioria das vezes para corrigir Eudidesda Cunha. E por anos a fio o exército tentou im-pedir que se constituísse naquele local um novopovoado - tentativa inicialmente vã, até que seconseguiu impor por volta de 1970 a construçãode uma represa no lugar exato da antiga Canu-dos: uma perversão dos ideais de práticacivilizatória de Euclides da Cunha, o qual, de fato,sempre recomendou tais construções, mas cujolivro visa por inteiro a resguardar do esquecimento

rebuscadas ou elípticas, eleempenhou-se em elucidá-las,torná-las mais legíveis para oleitor alemão. Os exemplosdesse procedimento básico dotradutor se deixariam arrolaràs dezenas; para que se tenhauma idéia mais concreta,apresentemos aqui três exem-plos, tomados a cada uma daspartes do livro:

No 5° capítulo de "A Ter-ra", Euclides refere-se às trêscategorias geográficas esbo-çadas por Hegel, na Introdu-ção de sua Filosofia da Histó-ria, como fatores fundamen-tais de diferenciações étnicas.Mais adiante, após considera-ções do próprio autor sobreas antíteses climáticas que seobservam nos sertões do nor-te brasileiro, lê-se: "Eles im-põem por isso uma divisão es-pecial naquele quadro." Otradutor substitui o "naquelequadro", nessas alturas bas-tante distante da referênciainicial, por "no panorama deHegel".

No 3° capítulo de "O Ho-mem", que se abre com umadas frases mais antológicas danossa literatura, Euclides fazimpressionantíssima descriçãoda seca que martiriza perio-dicamente o sertanejo. E aofinal, o momento dolorosoem que este se dobra: "Nãoresiste mais. Amatula-se numdaqueles bandos, que lá se vãocaminho em fora, debruandode ossadas as veredas, e lá sevai ele no êxodo penosíssimopara a costa, para as serras dis-tantes, para quaisquer lugaresonde o não mate o elemento

Page 8: Euclides da Cunha na Alemanha - SciELOA 5 de outubro de 1897 a guerra contra Canudos, no profundo sertão baiano, cerca de 400 quilômetros ao norte de Salvador e 2 mil quilômetros

a guerra no sertão. No final dos anos 60 a ditadura militar (1964-1985) temeuque se pudesse formar um movimento guerrilheiro em Canudos. E que, efetiva-mente, houvesse um grupo que fazia tais conjecturas - este fato só pareceráestranho se não se considerar que também os guerrilheiros tinham naturalmentelido Os sertões.

Mas foi sobretudo o Conselheiro que se tornou o símbolo de um cristia-nismo autodeterminado e combativo, dos pobres do campo. Pois, no fundo,nenhum dos problemas de 1897 está resolvido. De forma alguma, decorremestes apenas da seca. Os conflitos intensificaram-se nos últimos tempos, já quecada vez mais as famílias vêm sendo expulsas da terra que utilizam desde váriasgerações. Pastam agora nessas terras, depois de terem sido cercadas, ao invés dascabras dos pequenos sitiantes, as reses dos fazendeiros. Desde o início dos anos80 existe no sertão de Canudos um movimento religioso que se originou dacomunidade de base de Monte Santo, o qual luta pela reforma agrária e reivindi-ca para si a figura de Antônio Conselheiro. O seu spiritus rector é o Padre EnoqueJosé de Oliveira, nesse meio tempo suspenso de suas funções pela Igreja.

Para a maioria dos historiadores e cientistas sociais o entrelaçamento Ca-nudos-Euclides foi e é tão grande que estes, mesmo não seguindo muitas de suasinterpretações datadas, apoiam-se em seu livro como fonte principal. Eles malretrocederam para trás de Euclides, e até pouco tempo ninguém ousou publicarnovamente uma exposição tão ampla e exigente. O autor d'Os sertões parecia,descontando-se algumas análises específicas, ter esgotado o tema. Isso poderiasurpreender à primeira vista. Quando se lêem os relatos contemporâneos sobre acampanha, relativamente numerosos, verifica-se que todos os fatos essenciaisnarrados por Euclides também se encontram naquelas outras fontes, em parteaté mesmo de maneira mais exata e completa. Exagerando um pouco: se nãohouvesse Os sertões, nós, mesmo assim, saberíamos tudo o que sabemos hojesobre Canudos. Só que, abstraindo-se dos especialistas, quase ninguém iria inte-ressar-se pelo assunto. Não são os fatos e nem mesmo muitas das reflexões quefazem a singularidade do livro, mas sim a sua apresentação estética. Se nenhumhistoriador ou cientista social pode passar ao largo dos Sertões, então isto signifi-ca um triunfo da literatura.

Quem foi o autor desconhecido, cujo primeiro livro - e em certo sentidoo único - é Os sertões? Pois o que ele escreveu depois da sua estréia, nos poucosanos até a sua morte precoce em 1909, foram relatos, artigos, ensaios sobrediversos temas históricos, geográficos e políticos, trabalhos dos quais ele reuniualguns em dois livros, Contrastes e confrontos (1907), e À Margem da História(1909), que trata sobretudo da Amazônia.

Euclides da Cunha, nascido em 1866 no interior do estado -do Rio deJaneiro, veio de família pequeno-burguesa; perdeu cedo a mãe, foi criado por

Page 9: Euclides da Cunha na Alemanha - SciELOA 5 de outubro de 1897 a guerra contra Canudos, no profundo sertão baiano, cerca de 400 quilômetros ao norte de Salvador e 2 mil quilômetros

parentes, cursou a partir de 1886, gratuitamente,a escola militar do Rio de Janeiro, uma típica tra-jetória escolar para jovens talentosos e sem recur-sos financeiros.

Desde os anos 70 do século XIX essa escolaera um refugio da modernidade, onde os estu-dantes podiam adquirir não apenas sólido conhe-cimento das matemáticas e ciências naturais, mastambém considerável formação geral. O influentedocente positivista Benjamin Constant (Botelhode Magalhães) via o soldado como "cidadão ar-mado", com missão civilizatória. Discutia-se nes-sa escola a respeito de obras e correntes literáriase, igualmente, de mazelas da sociedade e da polí-tica brasileiras. Para os jovens da classe média bai-xa o positivismo caiu como uma luva, uma vezque previa reformas sociais através de especialis-tas, sem a oligarquia, ainda que não necessaria-mente contra ela, e, sobretudo, sem as massaspopulares. Idéias, questionamentos, padrões depensamento, modelos estéticos - desde a Revolu-ção, passando pelo Romantismo e indo até a filo-sofia contemporânea - vinham na maior parte daFrança. Os intelectuais do Rio de Janeiro espera-vam impacientemente pela chegada dos naviosoriundos da Europa, os quais traziam as revistas elivros cobiçados. Enquanto a cultura era aprecia-da pelas camadas dominantes principalmentecomo elemento de ostentação e ornamentação,para todos aqueles que se entendiam como pro-gressistas, e sobretudo na escola militar, ela valiacomo fonte de inspiração na luta pelas grandesreivindicações da época: pela República, pela abo-lição da escravatura, pela civilização, pelo progres-so. E para tudo isso o Império era um empecilhoque, ademais, vedava aos muitos filhos da peque-na-burguesia representados no exército a ascen-são e um lugar na sociedade correspondente àssuas capacidades. Os oficiais no início de carreirasentiam-se como vanguarda patriótica, convoca-dos para reformar o país no sentido do positivismo,

primordial da vida." Na ver-são alemã esse elemento pa-radoxal, pois ao mesmo tem-po vital e mortífero, é eluci-dado por um aposto: "o sol".

Em uma das partes de "ALuta" - dedicada à quarta eta-pa da campanha de Canudos,"Nova Fase da Luta", 2° ca-pítulo -, descrevendo a sededas tropas legais, em númeroe potencial militar esmagado-ramente superiores, pelo san-gue dos jagunços, Euclidesescreve que estes, caso apare-cessem, "viriam ao encontrode ainda não satisfeito anelo".O tradutor deixa a sarcásticadenúncia do autor mais explí-cita: é o anelo "dos soldados".

Se, portanto, a traduçãoextrapola o original em algunsmomentos é, paradoxalmen-te, por excesso de fidelidade- menos ao que Euclidesobjetivou em seu texto doque a intenções e pensamen-tos implícitos. Os adendos esoluções explicativas do tra-dutor, longe de desvirtuaremo caráter do original, são bas-tante úteis ao leitor alemão -às vezes até mesmo impres-cindíveis, quando se trata debrasileirismos ou de outroscontextos específicos.

Sem querer agora deslocardo primeiro plano o cuidado,o rigor, a sensibilidade tomque Zilly traduziu essa gran-diosa obra da nossa literatu-ra, há razões para suspeitarque a sua recepção na Alema-nha se deva a uma inquietan-te atualidade do clássicoeuclidiano. Essa atualidade

Page 10: Euclides da Cunha na Alemanha - SciELOA 5 de outubro de 1897 a guerra contra Canudos, no profundo sertão baiano, cerca de 400 quilômetros ao norte de Salvador e 2 mil quilômetros

cujo lema Ordem e Progresso deveria adornar a bandeira republicana depois de1889. Muitos acreditavam-se confrontados com a tarefa de, finalmente - comum atraso de 100 anos -, realizar a revolução burguesa também no Brasil.

Um incidente daquela época (1888) lança luz sobre o caráter de Euclides.Vários cadetes haviam decidido utilizar a visita do ministro da guerra à escolapara uma ação de protesto antimonarquista e, em sua presença, arremessar aespada ao chão. Mas no momento decisivo só um fez isto - Euclides da Cunha.A direção da escola sugeriu-lhe pretextar uma crise nervosa como desculpa, masEuclides, que fora deixado na mão pelos colegas, insistiu corajosamente no cará-ter político do seu gesto. Como punição ele teve de abandonar a escola. Seunome, todavia, estava na boca de todo mundo.

O jornal de oposição A Província de S. Paulo, desde 1889 O Estado de S.Paulo, convidou Euclides, que já nos anos de juventude tinha ambições literárias- como aluno ginasial escrevera poemas sobre Saint-Just, Danton e outros revo-lucionários franceses -, para uma colaboração. Assim começou sua atividadejornalística, que deveria ser determinante para a sua vida e aproximá-lo da litera-tura. Ele assinou os primeiros artigos com o pseudônimo de Proudhon.

Com a proclamação da República, pôde retornar à escola militar, a qualconclui em 1892 na condição de engenheiro militar e com a patente de primei-ro-tenente. Como republicano de primeira hora, poderia fazer carreira sem difi-culdades, sobretudo nos anos turbulentos da presidência do marechal FlorianoPeixoto (1891-1894), mas rejeitou todas as ofertas que extrapolavam o regula-mento. Em virtude de sua retidão, seu senso de justiça e sua suscetibilidade,Euclides estava sempre incomodando. O serviço militar o repugnava. Estavadecepcionado com o carreirismo, as transações e a presunção de não poucoscompanheiros republicanos que ocupavam então postos importantes na política.Em 1896 ele deixa o exército para colocar-se a serviço do governo de São Paulo,como engenheiro civil encarregado da construção de estradas e pontes; mas nemnessa profissão, nem em outra qualquer, deveria conseguir uma colocação a lon-go prazo. Paralelamente, ele voltou a escrever para a imprensa. Também comrelação a essa atividade ele tinha fortes reservas. Pensava de maneira muito rigo-rosa e o que escrevia não era suficientemente fácil para o jornalismo diário. Con-siderou ligeiramente a possibilidade de tornar-se deputado, uma outra vez ficouna expectativa de uma colocação como professor secundário. Mas esse espíritoinquieto, neto do Iluminismo e filho tanto do Romantismo como do Positivismo,via sua verdadeira vocação na literatura, no ensaísmo literariamente exigente.Confessou a um amigo que sua fantasia era como um pássaro que não conseguialevantar vôo do chão, mas só de uma árvore. E esta árvore seria o fato concreto.

Um tal fato surge em março de 1897: a derrota da terceira expedição, em

Page 11: Euclides da Cunha na Alemanha - SciELOA 5 de outubro de 1897 a guerra contra Canudos, no profundo sertão baiano, cerca de 400 quilômetros ao norte de Salvador e 2 mil quilômetros

Canudos, sob o comando do coronel MoreiraCésar. Depois de Euclides ter escrito dois artigossobre a guerra no sertão, o jornal O Estado de S.Paulo o envia em agosto, como correspondente,à região em guerra. Como antigo oficial, ele acom-panha o ministro da guerra, de navio, até Salva-dor, de trem até Queimadas e depois, a cavalo,até Monte Santo, onde o ministro fica para orga-nizar comboios de abastecimentos, ao passo queEuclides segue em direção de Canudos, onde che-ga em meados de setembro. Pela primeira vez elevê o sertão. A incumbência confere a virada deci-siva ao seu desenvolvimento intelectual. Duranteainda, ou talvez até mesmo antes de sua atividadede correspondente, que termina com a queda deCanudos a 5 de outubro, ele concebe o plano deum livro sobre esses acontecimentos que o con-vulsionam.

Após o seu retorno, Euclides empregou-senovamente como engenheiro a serviço do gover-no de São Paulo, desta vez em São José do RioPardo, uma pequena cidade a 250 quilômetrosao norte de São Paulo, onde, de 1898 a 1901,reconstruiu uma ponte e ao mesmo tempo traba-lhou n'Os sertões. A cidade foi para ele um pontode tranqüilidade, talvez o único lugar onde esseser tímido, difícil, às vezes intempestivo, tenha sesentido próximo da felicidade, cercado pela mu-lher e pelos filhos - que ele, no entanto,freqüentemente negligenciava - e por amigos queapoiavam o seu projeto de escrever o livro e oabasteciam de bom grado com literatura de apoioe informações de toda espécie. No final de 1901estavam concluídos ambos os projetos, a ponte eo livro. Até hoje a cidade é o centro de homena-gens ao autor que quase assumem a forma de cul-to. Não é só o fato de a sua antiga moradia servirhoje como museu ao público e aos pesquisadores -erigiu-se sobre a cabana de zinco ao lado da pon-te, onde nasceram Os sertões, um pequeno pavi-lhão com o formato de templo em miniatura, e

não residiria apenas na críti-ca, generalizável, da dialéticada civilização, O ato de bar-bárie reconstituído por Eucli-des pode ser concebido sob oestigma de expurgo étnico que,como sabemos, assumiu for-mas extremas na Alemanhanacional-socialista. Além dis-so, Krieg im Sertão apareceunum momento em que recru-desciam, em pleno continen-te europeu, as atrocidades daguerra civil iugoslava, alcan-çando na Bósnia a configura-ção de homizio generalizadoque Euclides desvenda nacampanha de Canudos. Estarecente irrupção de anima-lidade primitiva, para usaroutra expressão de Euclides,não terá deixado de influen-ciar a recepção d'Os sertões naAlemanha, Nessa mesma li-nha de argumentação E.Krippendorff, em resenhamais recente sobre a nossa"epopéia política de dimen-sões homéricas" (outubro de95) vislumbra, num capítulodo livro, "a lógica e a dinâmi-ca da 'reconquista' da Tchet-chênia pelo estado russo".

Guerras, crimes coletivos,atos de barbárie constituemobjeto de não poucas obras daliteratura alemã que, como Ossertões, integram a literaturauniversal. Para demonstrar talfato não é preciso recorrer àhistória do século XX; bastamencionar alguns escritoresque tematizaram, das mais va-riadas perspectivas, a Guerrados Trinta Anos (1618-48).Em primeiro lugar vem Grim-melshausen, contemporâneo

Page 12: Euclides da Cunha na Alemanha - SciELOA 5 de outubro de 1897 a guerra contra Canudos, no profundo sertão baiano, cerca de 400 quilômetros ao norte de Salvador e 2 mil quilômetros

todos os anos por ocasião do aniversário de morte do autor acontecem na cida-dezinha cerimônias em sua memória, das quais participam não só eruditos eintelectuais mas também gente simples do povo.

Não havia mais dúvida alguma quanto à vocação literária de Euclides. Maso reconhecimento social não o poupou de preocupações materiais ou domésti-cas. Parece que nas instâncias superiores se hesitava em conceder-lhe uma colo-cação fixa e bem remunerada. Ele era demasiado franco, áspero, talvez tambémdemasiado honrado, pouco diplomático. O ministro das Relações Exteriores,Barão do Rio Branco, incumbiu-o da demarcação das fronteiras do país na re-gião amazônica, mas não lhe ofereceu um contrato de trabalho fixo. No mo-mento exato em que Euclides conseguiu finalmente uma colocação mais segura- um cargo de professor de filosofia numa conceituada escola pública do Rio deJaneiro - e em larga medida poderia ser aquilo que sempre quis ser - isto é, umkomme de lettres - sua vida terminou abruptamente com uma catástrofe. Estefim, provocado por ele próprio, está em insólita analogia com a sua concepçãoda história da natureza e da humanidade, que via entrelaçada com catástrofes.

As tensões conjugais, acumuladas por longo tempo, descarregaram-se porfim de maneira dramática. Euclides não era uma pessoa amorosa, era antes umser nascido para o sofrer, para o reconhecimento da dor alheia e para o compade-cimento. Por certo a estranheza entre os cônjuges foi agravada pela inconstânciaprofissionalmente condicionada e também pela sua ardente ambição literária.Com o fato de que sua mulher amava outro homem, do qual ela até mesmotinha um filho, Euclides de certa forma, como homem esclarecido e civilizado,parecia ter-se conformado - contrariamente ao arcaico código de honra entãoem vigor para esses casos, mesmo nas regiões litorâneas de cunho moderno. Masum dia, poucas semanas depois da sonhada nomeação para professor secundário,no dia 15 de agosto de 1909, ele tentou matar o rival a bala. Este, cadete eexímio franco-atirador, matou-o prontamente. No processo que se seguiu foiabsolvido por legítima defesa, embora a opinião pública lhe fosse hostil. Nãopoucas histórias literárias encobrem esta página obscura da vida de Euclides,falando da bala assassina, que arrebatou o grande escritor em meio à sua produ-ção, como se uma celebridade literária não pudesse ser culpada. Sobretudo oautor d'Os sertões sabia demasiado bem quão próximos podem estar urbanidadee brutalidade. No mais, a indústria cultural apropriou-se anos atrás do aconteci-mento e o transformou no ponto culminante de um seriado televisivo sentimen-tal. E até hoje os descendentes das famílias envolvidas brigam publicamente - emlivros, declarações para a imprensa e até mesmo em ações de calúnia - sobre aculpa de seus respectivos antepassados.

Em março de 1897, poucos dias após a divulgação da derrota da terceiraexpedição, Euclides escreveu seu primeiro artigo sobre Canudos, com o título

Page 13: Euclides da Cunha na Alemanha - SciELOA 5 de outubro de 1897 a guerra contra Canudos, no profundo sertão baiano, cerca de 400 quilômetros ao norte de Salvador e 2 mil quilômetros

aparentemente estranho de A nossa Vendéia queem julho iria ter uma continuação intitulada damesma forma. O que espanta, visto da perspecti-va atual, é o fato de ambos os artigos já conterem,in nuce, Os sertões: a visão do poder do clima e dapaisagem, decidindo a guerra e marcando a socie-dade, a comparação da campanha com uma guer-ra colonial, a concepção do sertanejo comoencarnação de estágios antigos no desenvolvimen-to da humanidade, a contradição entre a críticaespecializada à condução da guerra pelo exército,ao qual ele deseja a vitória, por um lado, e a admi-ração secreta pela tática de guerrilha dos defenso-res, pelo outro lado. Já aqui é notável a descriçãoplástica antropomórfica, patético-dramatizante, danatureza martirizada do sertão, com minúcias tãoexatas, com imagens tão marcantes como se oautor já tivesse estado lá. Mal se fala dos aconteci-mentos do dia. A aspiração, ainda que realizadanos artigos de maneira bastante lacunar, é desdeo início mais abrangente, mais rigorosa, mais am-biciosa. Ela visa a sistematização geográfica e his-tórica dos acontecimentos, a investigação de cau-sas, a descrição precisa de processos selecionadose, mais além, a presentificação quase evocativa depequenas cenas e grandes quadros. E espantosoque um jornal diário tenha publicado - e não emsuplemento literário - artigos científica e literari-amente tão exigentes. Os artigos, assim como asreportagens que seguem pouco depois, são tãoinstrutivos porque exibem, in statu nascendi, oraciocínio e os procedimentos literários do escri-tor em formação.

De certo modo, Euclides tinha na cabeça olivro sobre o sertão antes de lá chegar, ele enxer-gara o sertão antes de o ver. Entre o sertão e a suavida espiritual existia uma afinidade eletiva. Gil-berto Freyre o formulou da seguinte maneira: "Apaisagem que transborda d'Os sertões é aquela quea personalidade angustiada de Euclydes da Cu-nha precisou de exagerar para completar-se e

do morticínio, que veste amáscara ingênua e rasteira doseu herói Simplicius Símpli-cissimus (1669) para, numaprofusão de aventuras, retra-tar a irracionalidade de seutempo.

Já Friedrich Schiller apoia-se numa ordenação sobran-ceira e harmonizante dosacontecimentos da guerra, desuas inúmeras reviravoltas,para compor sua trilogia dra-mática Wallenstein (1793-99), em que decisões indivi-duais se entrelaçam intima-mente com razões de Estado,

Desviando-se largamentede Schiller, mas próximo deGrimmelshausen, vem depoisDõblin com seu alentado ro-mance histórico Wallenstein(1920), escrito sob o impac-to dá Primeira Guerra Mun-dial. Empenha-se, como se lênum recente ensaio intitulado"'Um quadro colossal paramíopes' - o outro da Histó-ria no Wailenstein de Dö-blin" de autoria de KlausScherpe, em desativar "os ri-tuais da conceptualização his-tórica" e contrapor "o poten-cial do antropológico, docriatural, do natural, do ima-ginário" à razão ordenadora.

Também Brecht, inspiran-do-se na história do séculoXVII - e na obra do próprioGrimmelshausen - buscoudemonstrar em sua peça MãeCoragem e seus filhos - umacrônica da, Guerra dos TrintaAnos as motivações capitalis-tas que geram e fomentam asguerras.

Page 14: Euclides da Cunha na Alemanha - SciELOA 5 de outubro de 1897 a guerra contra Canudos, no profundo sertão baiano, cerca de 400 quilômetros ao norte de Salvador e 2 mil quilômetros

exprimir-se nela; para afirmar-se - junto com ela - num todo dramaticamentebrasileiro em que os mandacarus e os chique-chiques entram para fazer compa-nhia ao escritor solitário, parente deles no apego quixotesco à terra e na coragemde resistir e de clamar por ela. Resistir quando todos desistem. Resistir sempre.Clamar no deserto. Clamar pelo deserto." E a este deserto pertencem também ohomem e a guerra. Quem leu as descrições da natureza em A Terra, sabe porquenão são dispensáveis as imagens trágicas de criação e declínio, de vida e luta emorte; entre outras coisas, elas preparam o traçado do caráter do sertanejo e anarrativa trágica da guerra. Na união com a criatura esfolada, reconhecível na-quela parte do livro, repousa a compreensão solidária de Euclides pelos sofri-mentos dos jagunços.

O que ressalta no vocabulário é o imbricamento de expressão regional,dicção científica e o recurso, baseado na cultura burguesa, a analogias com oVelho Mundo - uma trindade que caracteriza também o livro posterior e queresulta de três diferentes maneiras de conhecimento e representação. Desde oinício, empenhado pela verdade, o autor está diante de um problema metódicoque atravessa todos os seus escritos sobre a guerra e o sertão: como ele devetornar compreensível, para si e para os leitores orientados pela Europa, a regiãodo Brasil que, a seu ver, é não apenas a mais inóspita como também a maisdesconhecida, assim como o mais monstruoso acontecimento da recente histó-ria brasileira, se para isso ainda não há os conceitos adequados? Sendo que, ditode passagem, ele exagera o grau de desconhecimento do sertão da mesma formacomo sua singularidade. Mas também o exagero é um venerável e legítimo arti-fício literário.

Ele tenta, portanto, explicar o desconhecido através do conhecido, pro-cesso para o qual ele mobiliza inúmeras comparações, alusões, metáforas e outrasexpressões figuradas, todo o arsenal da retórica clássica. E é corrente às pessoascultas do Brasil a tradição ocidental, especialmente a Antigüidade, o Cristianis-mo, a literatura e a história da França. Assim, Euclides explica parcialmente osertão por um desvio pela Europa; traduz a parte desconhecida do Brasil emconceitos e representações ocidentais, dos quais se originam seus parâmetros decomparação e padrões de interpretação. Ele contempla sobretudo a RevoluçãoFrancesa como moldura referencial para a guerra de Canudos, sabendo-se nesseaspecto ligado aos republicanos radicais e ao corpo de oficiais. Também maistarde Euclides conserva o recurso constante ao Velho Mundo. Provisoriamenteele pensa inclusive em intitular o livro planejado de "A nossa Vendéia", antes dedecidir-se pelo título primordialmente brasileiro, não metafórico, de Os sertões-neste ponto um desvio de sua maneira comparativa de tecer considerações. Comisso, também chama a atenção menos para a guerra em si do que para o seucenário, que quase ascende à condição de protagonista.

Page 15: Euclides da Cunha na Alemanha - SciELOA 5 de outubro de 1897 a guerra contra Canudos, no profundo sertão baiano, cerca de 400 quilômetros ao norte de Salvador e 2 mil quilômetros

Nem sempre a indicação de semelhançasentre o sertão e o Velho Mundo transforma odesconhecido em elemento familiar. Em sua bus-ca desmedida de correspondências, o autor nãoraro arroja-se em equiparações que mesmo a pes-soa mais bem informada não consegue acompa-nhar e que pressupõem um leitor ideal oniscien-te. Assim, a comparação conduz ocasionalmentedo desconhecido para o ainda mais desconheci-do. Esclarecimento completo contradiz a sua con-cepção do sertão e não seria poético. Talvez asmuitas passagens meio enigmáticas do texto se-jam também uma espécie de solilóquio de umpensador contemplativo.

Euclides, porém, também estava intuindo:comparaison n'est pas raison. Para aproximar-se damancha branca no mapa chamada sertão, da qualo homem constitui uma parte, ele necessita tam-bém do conceito, da sistemática, da ciência e,como erudito-enciclopédico que é, mobiliza umpoderoso arsenal de categorias e conceitos das ci-ências sociais e naturais - um plano discursivo queigualmente o vincula ao âmbito cultural do Oci-dente, ainda que um tal plano seja acessível ape-nas a um pequeno público. Em seu ímpeto obce-cado por minuciosidade e exatidão, o escritor apai-xonado pela palavra com freqüência não tem muitaconsideração para com o leitor e extrapola oca-sionalmente os limites da própria competência.Com este procedimento, nós, do mundo de hoje,na Alemanha como no Brasil, devemos ter - emvirtude da dissociação avançada entre as mencio-nadas três culturas - dificuldades ainda maioresdo que as que tiveram os letrados entre os con-temporâneos do autor. A seleção vocabular, con-tudo, não está servindo apenas à elucidação e àcomunicação, mas também quer impressionar pelasonoridade, pela plenitude e, talvez, até mesmopelo estranhamento, pois no final das contas tam-bém a linguagem científica está a serviço da ex-pressão poética. Assim, o uso abundante de

Mas lembrar apenas obrasficcionais para contemplar Ossertões a partir de outra pers-pectiva cultural talvez seja in-justo para com um autor que,a despeito das poderosas ima-gens, metáforas e todos os re-cursos estilísticos de artistaépico consumado, via-se so-bretudo como historiador dacampanha de Canudos, em-penhado em contrapor-se aosdeslumbramentos do futuro.Para isso, em não poucas pas-sagens transpôs, pela forçaimaginativa de criador, fron-teiras colocadas à perspectivahistoriográfica. Lembremos aesse respeito, por fim, uma re-flexão feita pelo fascinantehistoriador que foi o já men-cionado Schiller, No prefácio(de 1788) à sua História dodesmembramento dos PaísesBaixos unidos do reino deEspanha o clássico de Weimarescreve que uma obra histó-rica rigorosa não precisa sernecessariamente uma "provade paciência" para o leitor; ohistoriador pode perfeitamen-te tomar recursos de emprés-timo junto à literatura (e àsoutras artes), sem que por issosua obra se converta em "ro-mance". São palavras para seter em mente toda vez que sequeira abordar Os sertões à luzde questões concernentes àrelação entre historiografia erepresentação ficcional daHistória.

* Marcus Vinicius Mazzari édoutor em germanística eteoria literária pela Universi-dade Livre de Berlim.

Page 16: Euclides da Cunha na Alemanha - SciELOA 5 de outubro de 1897 a guerra contra Canudos, no profundo sertão baiano, cerca de 400 quilômetros ao norte de Salvador e 2 mil quilômetros

sinônimos de forma alguma está correlacionado com o ideal científico da corres-pondência inequívoca de palavra e coisa, gerando antes uma mescla estranha, ecertamente desejada, de hiperclareza e vastidão desorientadora. Efeito seme-lhante surge quando termos técnicos das matemáticas e das ciências naturais,sobretudo da geologia, são empregados metaforicamente e quando se misturamas esferas do animado e do inanimado, do homem e da natureza.

Um terceiro acesso ao sertão oferecem o saber, a linguagem e as habilida-des do próprio sertanejo, coisas cujo significado Euclides logo conhece e reco-nhece. Com muito gosto ele emprega designações regionais para plantas, ani-mais, objetos, atividades da agricultura e dos ofícios, não se intimida nem mes-mo diante de grosseiros termos dialetais. Como o autóctone é o que mais bemconhece o seu próprio mundo, o autor cientista passa a freqüentar sua escola,recomendando o mesmo ao exército. Muita coisa disso ele traduz na língua docitadino culto, mas muitos termos do sertão permanecem inexplicados, levan-tam-se solitários e misteriosos no texto como os cereus na caatinga.

E todas essas terminologias e esferas do saber, ultramodernas e arcaicas,confundem-se, como as raças no sertão, numa mestiçagem íntima, que gera umestilo inconfundível. Cuja base é um português só levemente abrasileirado, bas-tante tradicional no vocabulário e na sintaxe, barroquizante e quase amaneirado,o que acentua a filiação do livro, do autor e do público ao âmbito cultural europeu.

Se Euclides conhecia o sertão antes de o ver, para enriquecer e autenticar asua fantasia e o seu estilo ele necessitou de um estudo profundo da literaturaespecializada, a qual lhe forneceu a matéria-prima dos fatos e não poucas ima-gens. Esse estudo abarcara já antes de sua partida de São Paulo livros das maisvariadas ciências, crônicas, relatos de viagem, ficção. Visto assim, Os sertões sãotambém um livro sobre livros. Além disso, Euclides, esse visionário exato dosertão, tornou-se - durante o caminho para lá e depois de sua chegada - umincansável observador e pesquisador de campo. Quando chegou, no mês de agos-to, em Salvador e foi constrangido a uma estadia de várias semanas, ele aprovei-tou o tempo para pesquisas em arquivos e entrevistas com soldados e prisionei-ros, de tal forma que, sob muitos aspectos, logo estava sabendo mais coisas sobreos bastidores da guerra, sobre a situação na zona de luta e até mesmo sobre avida no interior do arraial de Canudos, do que seus colegas e, por isso, pôdeenviar ao seu jornal, bem antes de alcançar seu destino, relatos de extremaplasticidade. Apesar de seu ensimesmamento Euclides fazia perguntas de formaexcelente, conseguia conduzir seus informantes a um máximo de informações.As lacunas, ele as supria com o seu próprio conhecimento prévio e a sua imaginação.

Durante a viagem subseqüente a Monte Santo, passando por Queimadas,ele dá continuidade a essa coleta e a esse registro incansável de todas as informa-ções acessíveis. Tudo o que vê e ouve, ele anota e desenha na única caderneta de

Page 17: Euclides da Cunha na Alemanha - SciELOA 5 de outubro de 1897 a guerra contra Canudos, no profundo sertão baiano, cerca de 400 quilômetros ao norte de Salvador e 2 mil quilômetros

campo que se conservou: extratos de crônicas e jornais, descrições de utensílios,fragmentos de frases e expressões dos jagunços, mensurações meteorológicas,boatos, impressões visuais, perfis de montanhas, poesia popular dos sertanejos -é o livro de anotações de um naturalista, etnógrafo e cronista. A amplidão deinteresses assombra. À medida que se aproxima de Canudos, ele vaicomplementando o conhecimento adquirido através da leitura anterior; e istosem modificar substan-cialmente as reportagens- abstraindo-se da maiorconcretude de muitosdetalhes. No geral, a vi-são que Euclides tem dosertão e das suas pessoasestá consolidada antes dachegada à região e nãonecessita de qualquer al-teração essencial; pautan-do-nos apenas pela suarepresentação nos textos,dificilmente poderíamosdistinguir as paisagens,acontecimentos e carac-teres contemplados como olho interior dos efeti-vamente vistos. De outromodo, aliás, não seriapossível que Euclidesnarrasse onze meses deguerra, descontando-se ahistória preliminar, sen-do que nem bem passoutrês semanas no verdadei-ro palco do conflito.

Todavia, o julgamento político dos acontecimentos altera-se. Assim,Euclides vai abandonando aos poucos a tese da conspiração monarquista e co-meça a julgar a guerra de maneira crescentemente crítica. Sobretudo a sua obser-vação e a compreensão, calcada em empatia, pelos sertanejos prevalecem cadavez mais sobre as teorias antropológicas, bastante datadas da perspectiva atual.Contudo, como sabemos de escritos posteriores, ele jamais abandonou comple-tamente essas teorias, apesar de certas simpatias por concepções socialistas. Po-der-se-ia falar de uma vitória da observação e ao mesmo tempo do sentimentosobre prevenções teóricas.

Page 18: Euclides da Cunha na Alemanha - SciELOA 5 de outubro de 1897 a guerra contra Canudos, no profundo sertão baiano, cerca de 400 quilômetros ao norte de Salvador e 2 mil quilômetros

Há outros aspectos em que a observação e a empatia do autor também lhecorrigem, parcialmente embora, os preconceitos. Imbuído de teorias psiquiátricasda época e de frágeis conhecimentos teológicos, ele considera o Conselheiro nãosó atávico, mas desequilibrado e herético, um gnóstico, taumaturgo, lídermessiânico. Ora, as fontes históricas não corroboram essa tese. As prédicas deAntônio Conselheiro por exemplo, publicadas nos anos 70, não contêm indíciosde que ele tenha sido psicopata, nem que se tenha considerado profeta ou mes-sias. Não se arrogou forças milagrosas, não contestou o direito exclusivo dospadres de administrarem os sacramentos, não se afastou da ortodoxia católica daépoca. E verdade porém que boa parte dos seus adeptos lhe atribuíam essasfaculdades.

É preconceito também a afirmação de que se tenha praticado o amor livreem Canudos, interpretação errônea do fato de que temporariamente havia mui-tos casais vivendo juntos sem a benção da Igreja, devido à grande falta de padresna região. A moral vigente em Canudos era, de modo geral, mais puritana doque libertina.

É igualmente discutível a caracterização do movimento de Canudos comoinsurreição. O próprio autor demonstra que a fundação do arraial foi antes umaretirada, uma fuga diante das forças de repressão, uma iniciativa de auto-ajudaespiritual e social, empreendida por uma população bastante pacífica, abandona-da pelas autoridades eclesiásticas e seculares. O governo é que impôs a guerra aosjagunços, aos quais o próprio autor concede o direito de legítima defesa. É ver-dade porém que a comunidade de Canudos, uma espécie de projeto social alter-nativo e relativamente bem-sucedido, quase um mini-Estado dentro do Estado,estava começando, pela simples existência e como pólo de atração para a mão-de-obra rural em todo o Nordeste, a minar o poder dos mandões regionais, dahierarquia eclesiástica, das autoridades políticas estaduais. Repete-se a crônicacontradição de Euclides: como ideólogo aceita os estereótipos das elites quesupera como escritor.

A tomada de partido por toda criatura leva-o não só a protestar contra oscrimes de guerra, mas também a considerar crime a guerra toda, o que ele porémsó no livro diz com toda clareza. E isto, sem que ele tenha questionado a neces-sidade de uma ofensiva inexorável, até mesmo imperialista, da civilização, tam-bém por meios bélicos - como sabemos de publicações posteriores. O que oamedronta são os retrocessos bárbaros, atávicos, da própria Civilização, uma vezque tais máculas entre as raças superiores absolutamente não cabem no esquemaevolucionista. Ele afirma a civilização e lamenta suas vítimas; uma mediação en-tre as posições antagônicas não está à vista. Assim, ele não consegue ver seja aHistória, seja a natureza, senão tragicamente.

Page 19: Euclides da Cunha na Alemanha - SciELOA 5 de outubro de 1897 a guerra contra Canudos, no profundo sertão baiano, cerca de 400 quilômetros ao norte de Salvador e 2 mil quilômetros

Mas o autor não está cindido apenas entre teoria e simpatia ou entre ospartidos beligerantes; freqüentes vezes ele recolhe-se num primeiro momentopara trás de exposições alheias. Ele não é um historiador ingênuo que afirmapoder narrar os acontecimentos e circunstâncias como tais. As histórias são parteda História. Ele cita, parafraseia, resume, estiliza textos escritos e orais, para cujaseleção ele não conhece tipo algum de reserva. Boatos, artigos, declarações ofi-ciais, pichações de parede, diários, lendas, poesia popular - ele utiliza tudo, comfreqüência sem comentar, vez ou outra ironicamente, de tal forma que essestextos avultam num coro polifônico, que intensifica a multiplicidade de vozespresentes no autor mesmo, e este deixa ao leitor a tarefa de formar uma imagemprópria da realidade e filtrar a verdade. Euclides esforça-se minuciosamente emreproduzir o mundo imaginário tanto do leitor de jornal do Sul como dos serta-nejos do Norte. E assim ele aproxima-se toda vez da realidade através de repre-sentações da realidade. Em uma das reportagens, escreve com o rigor do cronis-ta crítico: "Eu sistematizo a dúvida." Mas, com freqüência, sucumbe ao encantopoético das histórias. Quando Euclides reproduz sem comentários lendas e nar-rativas supersticiosas dos sertanejos ou também dos soldados, percebem-se ele-mentos do real maravilloso da recente literatura latino-americana.

Não raro afirma-se até mesmo o caráter poético de paisagens, pessoas ouacontecimentos. O sertão e a sua guerra sugerem encômios, tragédias, sagas, ouexpõem quadros e cenários que clamam por descrição poética. O escritor estáincansavelmente empenhado em fixar essas imagens e acontecimentos poéticos.

Desde o início, críticos e leitores debateram-se com a linguagem de difícilcompreensão do livro. E embora um tradutor de Euclides tenha experiências do-lorosas com essa problemática, ele pode e tem de dizer que os traços estilísticosque subjazem ao juízo são em sua maioria, descontando-se algumas cintilaçõessonoras, indispensáveis e pertencem à essência do livro. Se Os sertões fossem des-pidos de todas as dificuldades, de toda pompa estilística, de todas as metáforasarrojadas, todas as palavras raras, todas as figuras retóricas e todas as repetições,eles seriam possivelmente um relato de guerra ou um estudo geográfico-socialcomo muitos outros. Pela tradução, contudo, mal se podem imaginar as dificul-dades que o original apresenta ao leitor brasileiro. São em especial as muitaspalavras arcaicas e termos científicos, empregados suficientes vezes de maneirametafórica, que fazem mesmo o leitor culto do original estacar repetidamente.Somam-se a isso as militas referências sintáticas não reconhecíveis de imediato,como por exemplo pronomes aparentemente perdidos no texto. Fica evidenteuma tendência ao hermetismo, à qual claramente se contrapõem as freqüentesredundâncias. Frente a isso, a tradução alemã - reproduzindo na medida do pos-sível a singularidade estilística do original - tenta tornar o texto consideravelmentemais legível. Por aqui ele hão possui o nimbo de obra clássica, que no Brasil levamuitos leitores a submeter-se ao esforço da leitura - ou precisamente a evitá-lo.

Page 20: Euclides da Cunha na Alemanha - SciELOA 5 de outubro de 1897 a guerra contra Canudos, no profundo sertão baiano, cerca de 400 quilômetros ao norte de Salvador e 2 mil quilômetros

O efeito tencionado cairia no vazio se fôssemos tornar mais esguia a sinta-xe com sua disposição não raro incomum, sua seqüência de períodos longos,repletos de pausas, que se amontoam de maneira desorientadora, e frases lacônicas,em staccato. E ainda que o epíteto ornamental possa corresponder a uma estéticaenvelhecida - aqui ele é imprescindível. Pois o livro tem o gesto do discursopúblico, que soa tão alto e tão brônzeo porque deve ressoar vastamente,longamente, sobreviver aos tempos e transpor fronteiras; e isto o autor confiaem primeiro lugar aos procedimentos estéticos clássicos. O que já tem tão longaexistência, existirá ainda por longo tempo e atuará sobre outros povos. Sabe-seque Euclides, ainda antes do término d'Os sertões, empenhou-se em providenciaruma tradução para o francês. De fato, este relato sobre um ato bárbaro da civili-zação dirige-se a toda a humanidade civilizada. Um dos mais brasileiros de todosos livros - não tanto pela ambição literária, mas em razão de seu estilo e de suamensagem - está concebido desde o início como um livro da literatura universal.

O elemento desmedido, desregrado, no estilo e na composição, é expres-são desse esforço quase sobre-humano da rememoração, mas com certeza ex-pressão também do prazer pela sonoridade, pelo ritmo e pela riqueza imagéticaevocada. Euclides entusiasma-se não apenas por pessoas e coisas, mas tambémpela língua; a sua é de uma sensorialidade incomum, acústica tanto quantoópticamente, enquanto signo por um lado - imagem sonora e imagem gráfica -e, por outro lado, enquanto presentificação do visível e do audível. Comoorganizador das três primeiras edições ele empreendeu nada menos do que 10mil emendas, quase todas referentes a ortografia, vocabulário, sintaxe ou tipográfico. Em contrapartida, ele mal se preocupou com a correção de erros factuais.Nesse trabalho de aperfeiçoamento do texto, o aspecto estético esteve para ele,sem dúvida alguma, em primeiro plano.

Todavia, essa mobilização de recursos estilísticos não tem nada de L'artpour l'art; Euclides produz antes uma espécie de hiper-realismo de intensidadefantasmagórica, uma realidade atrás da realidade, penetrante como sonho. Elequer encantar e fixar o visto. Esforça-se desesperadamente para dizer o indizível,para evocar o sertão não perscrutado, talvez inescrutável, e o caráter misteriosoda guerra; ele quer exprimir com palavras a irracionalidade dos homens, de ma-neira ampla e exata, incisiva e comovente.

Atrás do coro de vozes próprias e alheias está o autor com gesto indicativo,ameaçador e suplicante, como professor, tribuno e pregador. Euclides explica osertão, acusa os assassinos, clama pelo sertanejo. Embora mal esteja presente nolivro enquanto personagem, ele fala a partir de toda linha, sobretudo do estilo,que aqui é efetivamente expressão da personalidade e confere coesão a este livroheterogêneo em tantos aspectos. Muito se escreveu sobre as analogias entre oConselheiro e Euclides, sobretudo no que diz respeito aos seus casamentos infe-

Page 21: Euclides da Cunha na Alemanha - SciELOA 5 de outubro de 1897 a guerra contra Canudos, no profundo sertão baiano, cerca de 400 quilômetros ao norte de Salvador e 2 mil quilômetros

lizes. Ambos, porém, são também mensageiros, que conduzem seus ouvintesatravés do sertão. Ambos explicam, advertem, rogam. Mas Euclides é um conse-lheiro inseguro. Falta-lhe a certeza de uma crença ou de uma concepção demundo solidamente urdida. O leitor é deixado a sós com o seu convulsionamento.Euclides apresenta seus conselhos e perspectivas de ação quase que de passagem:apenas represas e instrução poderiam ajudar o sertão. As divindades profanas damodernidade no entanto parecem ser pouco confiáveis. A civilização assassina,que enviou o soldado, deve enviar agora o engenheiro e o mestre-escola. Ela jápoderia ter feito isto antes da guerra, motivo pelo qual esta foi supérflua e umcrime. E a ciência deve investigar a psique das massas irracionais de maneiraainda melhor. De quais massas? Daquelas do sertão ou daquelas da região litorâ-nea? Isto fica em aberto. Mas como a civilização pode ajudar os habitantes igno-rantes do sertão se ela própria apresenta traços criminosos e loucos?

O discurso de Euclides é uma defesa cujo estilo segue a tradição do genussublime, sobre o qual Manfred Fuhrmann, explicando e citando Quintiliano,escreve em seu livro A retórica antiga (Die antike Rhetorik): "O estilo patético-sublime está reservado a assuntos de suficiente dignidade; ele só entra em consi-deração quando se trata de valores altos e supremos, de morte e vida, honra eultraje dos envolvidos ou bonança e ruína do Estado. Ele acumula brilho, pom-pa e grandiosidade, ou (...) anseia por sombria paixão. Ele dispõe soberanamen-te - nos limites colocados à prosa — do vocabulário mais seleto; ele coloca a seuserviço as figuras mais engenhosas e amontoa de maneira ousada, aguda, perío-dos ritmados. Utilizando corretamente todos esses meios, o estilo sublime (...)irá 'chamar os mortos de volta à vida ... e até mesmo fazer com que a própriapátria levante a sua voz'."

Bem, já que a comunidade de Canudos está aniquilada, o discurso consa-gra-se à memória dos mortos. Os sertões são um discurso fúnebre em duplo sen-tido, pois por um lado os adeptos do Conselheiro já morreram, por outro ladoEuclides teme que a raça miscigenada, tendente à homogeneidade, dos sertane-jos - que poderia ser a base e a rocha viva da nação ainda em formação - sejaesmagada antes do tempo pela civilização, em um processo secular do qual aguerra contra Canudos foi apenas um elo intermediário. Esse discurso contémassim a advertência premente de que a nação não deixe as coisas irem tão longee não volte as armas contra si própria. O discurso de defesa pelos sertanejos aindaviventes soa de maneira estranhamente sombria, como se o próprio autor nãoacreditasse na salvação e fosse aquele também um discurso fúnebre antecipado.

A rememoração inclui os soldados tombados, assim como vale tambémpara as plantas ressequidas e os animais que morreram de sede, vale para todo osertão torturado, pois natureza e humanidade estão repletas de criação e ocaso,luta e vitória e derrota, de breves alegrias e longos sofrimentos. Ainda que a

Page 22: Euclides da Cunha na Alemanha - SciELOA 5 de outubro de 1897 a guerra contra Canudos, no profundo sertão baiano, cerca de 400 quilômetros ao norte de Salvador e 2 mil quilômetros

inclusão de outras vítimas possa à primeira vista diminuir a memória dos sertane-jos, estes estão sem dúvida alguma em posição central, são as vítimas principais,são enaltecidos e declarados heróis em face da morte. E os mais corajosos dentreos soldados são igualmente sertanejos, os quais saem a campo contra os seusconterrâneos. Outro traço trágico.

Se o Conselheiro se dirige à sua comunidade do sertão e a Deus enquantoinstância suprema, o público de Euclides é infinitamente mais numeroso, maisindeterminado e anônimo. Ele dirige sua palavra à opinião pública da nação nascidades litorâneas; além disso, às pessoas cultas do mundo e a uma instância decerto modo metafísica e ainda assim real, a posteridade dos leitores.

Berthold Zilly é doutor em Romanística e professor do Instituto Latino-Americano(Lateinamerika-Institut) da Universidade Livre de Berlim. Traduziu Os sertões para oalemão.

Tradução de Marcus V. Mazzari. O original em alemão encontra-as à disposição doleitor no IEA-USP para eventual consulta.