Especulações Filosóficas do Livro Velho Caminho, Nuvens Brancas - Uma Braçada de Folhas de...

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Livro: Velho Caminho, Nuvens Brancas Autor: Thich Nhat Hanh Editora: Bodigaya (2007) Capítulo Quarenta e Seis Uma Braçada de Folhas de Simsapa O monastério Venuvana, em Rajagaha, o monastério Kutagarasala, em Vesali e o monastério de Jetavana, em Sravasti, tornaram-se florescentes centros de pratica de ensino do Caminho. Outros centros monásticos foram fundados em Magadha, Kosala e reinados vizinhos. Por toda parte, a visão dos mantos açafrão dos bhikkhus [discípulo mendicante] tornou-se algo familiar. O Caminho do Despertar difundiu-se longe e amplamente nos primeiros seis anos após a Iluminação de Sidarta Gautama. O Buda passou sua sexta estação chuvosa retirado na montanha Mankula e a sétima estação na montanha Samkasa, acima do Ganga. Ele passou a oitava estação em Sumsumaragira, em Baga e, a nona, próximo de Kosambi, uma grande cidade no reino de Vamsa, situado ao longo do rio Iamuna. Um monastério importante foi construído lá, numa grande floresta chamada Gosita, nomeado após a doação da floresta por um discípulo leigo. Discípulos veteranos, tais como Mahakasyapa, Mahamogalana, Sariputra e Mahakacana não ficaram com o Buda durante o retiro deste período, em Gosita. Ananda estava com ele. Rahula [filho de Sidarta Gautama] permaneceu com Sariputra. Gosita era repleta de árvores simsapa, sob as quais o Buda gostava de Meditar nas tardes quentes. Certo dia, após sua meditação, ele retornou para a comunidade segurando uma braçada de folhas de simsapa. Ele segurou-as no alto e perguntou aos bhikkhus: “Qual é maior – o número de folhas em minha mão ou o número de folhas na floresta?” Os discípulos responderam: “O número de folhas na floresta.” O Buda prosseguiu: “Do mesmo modo, o que vejo é maior do que aquilo que ensino. Por quê? Porque ensino apenas aquelas coisas que são verdadeiramente necessárias e podem ajudar na realização do Caminho.” O Buda disse isto, porque, em Gosita, havia muitos monges que tendiam a se perder em especulações filosóficas. O Página 1 de 7

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Livro: Velho Caminho, Nuvens BrancasAutor: Thich Nhat Hanh

Editora: Bodigaya (2007)

Capítulo Quarenta e Seis

Uma Braçada de Folhas de Simsapa

O monastério Venuvana, em Rajagaha, o monastério Kutagarasala, em Vesali e o monastério de Jetavana, em Sravasti, tornaram-se florescentes centros de pratica de ensino do Caminho. Outros centros monásticos foram fundados em Magadha, Kosala e reinados vizinhos. Por toda parte, a visão dos mantos açafrão dos bhikkhus [discípulo mendicante] tornou-se algo familiar. O Caminho do Despertar difundiu-se longe e amplamente nos primeiros seis anos após a Iluminação de Sidarta Gautama.

O Buda passou sua sexta estação chuvosa retirado na montanha Mankula e a sétima estação na montanha Samkasa, acima do Ganga. Ele passou a oitava estação em Sumsumaragira, em Baga e, a nona, próximo de Kosambi, uma grande cidade no reino de Vamsa, situado ao longo do rio Iamuna. Um monastério importante foi construído lá, numa grande floresta chamada Gosita, nomeado após a doação da floresta por um discípulo leigo. Discípulos veteranos, tais como Mahakasyapa, Mahamogalana, Sariputra e Mahakacana não ficaram com o Buda durante o retiro deste período, em Gosita. Ananda estava com ele. Rahula [filho de Sidarta Gautama] permaneceu com Sariputra.

Gosita era repleta de árvores simsapa, sob as quais o Buda gostava deMeditar nas tardes quentes. Certo dia, após sua meditação, ele retornou para a comunidade segurando uma braçada de folhas de simsapa. Ele segurou-as no alto e perguntou aos bhikkhus: “Qual é maior – o número de folhas em minha mão ou o número de folhas na floresta?”

Os discípulos responderam: “O número de folhas na floresta.”O Buda prosseguiu: “Do mesmo modo, o que vejo é maior do que aquilo que

ensino. Por quê? Porque ensino apenas aquelas coisas que são verdadeiramente necessárias e podem ajudar na realização do Caminho.”

O Buda disse isto, porque, em Gosita, havia muitos monges que tendiam a se perder em especulações filosóficas. O bhikkhu Malunkiaputra havia sido aconselhado pelo Buda a não se engajar em questões esotéricas que não fossem essenciais para a prática. Isto porque tinha o hábito de perguntar ao Buda tais questões como, se o universo era finito ou infinito, temporal ou eterno.Sidarta sempre se recusava a responder tais coisas. Um dia, Malunkiaputra sentiu que não podia mais suportar o silêncio do Buda e decidiu que lhe faria tais questões uma última vez e, se ele se recusasse a responder-lhe, iria pedir para ser liberado dos seus votos como bhikkhu.

Ele encontrou o Buda e disse: Professor, se concordar em responder minhas questões, continuarei a segui-lo. Se recusar, abandonarei a sangha. Diga-me sabe, ou não, se o universo é finito ou infinito. Se você não sabe a resposta, apenas diga que não sabe.”

O Buda olhou para Malunkiaputra e disse: “Quando pediu para ser ordenado, prometi responder a você tais questões? Eu disse: Malunkiaputra, torne-se um bhikkhu e resolverei os seus problemas metafísicos?

“Não, Senhor, não prometeu.”“Então, por que insiste que eu o faça agora? Malunkiaputra, você é como uma

pessoa ferida por uma flecha envenenada, cuja família convoca o médico para remover

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o artefato. O homem recebe o antídoto, porém, se recusa a deixar o médico fazer qualquer coisa, antes que certas questões sejam respondidas. O homem, letalmente ferido, quer saber quem atirou a flecha, à qual casta pertence, do que o atirador se ocupa e por que atirou nele. Quer saber qual tipo de recipiente foi usado pelo homem e como adquiriu os ingredientes utilizados na preparação do veneno. Malunkiaputra, tal homem morrerá antes de obter as respostas para suas questões. Não é diferente para alguém que segue o Caminho. Eu ensino apenas aquelas coisa necessárias para a realização do Caminho. Aquilo que não é útil ou necessário, não ensino.

“Malunkiaputra, seja o universo finito ou infinito, temporal ou eterno, há uma verdade que você deve aceitar: a presença do sofrimento. O sofrimento tem causas, as quais podem ser iluminadas a fim de serem removidas. As coisas que ensino ajudarão a alcançar desapego, equanimidade, paz e libertação. Recuso-me a falar acerca de tudo aquilo que é absolutamente inútil para a realização do Caminho.”

Sentindo-se envergonhado, Malunkiaputra pediu desculpas ao Buda por insistir com tão tola demanda. Gautama encorajou todos os bhikkhus a se empenharem na prática e evitar especulações filosóficas e debates inúteis.

Gosita, o discípulo leigo que havia doado a floresta, também apoiou a construção de dois outros monastérios – Kukuta e Pavarikambavana. Um quarto centro também foi construído na região chamada Badarika.

Em Gosita, assim como em outros monastérios, certos bhikkhus foram designados para a tarefa de memorizar os ensinamentos do Mestre. Eram denominados de mestres dos sutras, já que as palavras do Buda eram chamadas de sutras. Um era o Sutra Sobre o Giro da Roda do Darma, o discurso dado por ele aos cinco primeiros discípulos no Parque dos Cervos. Uns poucos sutras tais como o Sutra Sobre a Natureza do Não-Eu, o Sutra Sobre a Originação Interdependente e o Sutra Sobre o Nobre Caminho Óctuplo, eram memorizados e recitados duas vezes por mês por toda a comunidade de bhikkhus.

Em adição aos mestres de sutras, havia mestres de preceitos, que eram especialistas em diferentes preceitos para novatos e bhikkhus ordenados. Rahula e outros que ainda não haviam completado vinte e um anos de idade, seguiam o que era chamado de preceitos samanera [noviço ou postulante ao sacerdócio búdico].

Naquele ano, em Gosita, um conflito surgiu entre um mestre de sutras e um mestre de preceitos. A disputa entre eles se referia a um pequeno evento, mas acabou por criar uma aguda divisão na sangha [comunidade, assembléia]. O mestre de sutras esqueceu-se de limpar a bacia que havia usado e foi cobrado, por violação de um preceito menor, pelo mestre de preceitos. O primeiro era uma pessoa orgulhosa e não aceitou aquilo; já que não tinha deixado a bacia suja intencionalmente, não via motivo para ser repreendido. Alunos de cada bhikkhu tomaram o lado do seu próprio professor, e a discussão ampliou-se. Um lado acusava o outro de difamação, enquanto este acusava seus oponentes de agir tolamente. Finalmente, o mestre de preceitos anunciou em público a transgressão do mestre de sutras e proibiu-o de assistir à cerimônia de recitação de preceitos até que, formalmente, confessasse diante da sangha.

A situação cresceu mais e mais intensamente. Ambos os lados falavam mal um do outro. Suas palavras voavam como setas envenenadas. A maioria dos demais bhikkhus tomou partido, embora, naturalmente, houvesse alguns que se recusassem a escolher qualquer um dos lados. Eles diziam: “Isso é terrível! Isto somente criará desarmonia e divisão na sangha.”

Embora o Buda estivesse residindo não muito longe do monastério, ele não estava ciente do conflito, até que uma delegação de preocupados bhikkhus o visitou. Eles lhe contaram o caso e pediram sua intervenção. O Buda foi encontrar-se

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diretamente com o mestre de preceitos e disse: “Não devemos nos tronar tão apegados a nossa própria visão. Devemos ouvir cuidadosamente a fim de compreender o ponto de vista alheio. Devemos procurar por todos os meios evitar que a comunidade se divida.” Em seguida, foi até o mestre de sutras e disse as mesmas coisas. Voltando para sua choupana, estava esperançoso de que os dois homens se reconciliassem.

A intervenção do Buda, porém, não surtiu o efeito desejado. Palavras ásperas demais já haviam sido ditas. Muitas feridas haviam sido infligidas. Os bhikkhus que se mantinham na imparcialidade não possuíam influência suficiente para unir os dois lados. O conflito alcançou os ouvidos dos discípulos leigos e, após algum tempo, mesmo outras seitas religiosas ouviram falar dos distúrbios naquele centro – um sério abalo na integridade da sangha. Nagita, o assistente do Buda, não foi capaz de suportar mais a situação. Ele discutiu o assunto novamente com Sidarta, implorando-lhe que interviesse mais uma vez.

O Buda pôs o seu manto e foi direto ao salão de reuniões do monastério. Nagita fez soar o sino, convocando a comunidade. Quando todos estavam presentes, o Buda disse: “Por favor, cessem com sua discussão. Ela somente gera a divisão na comunidade. Por favor, voltem a praticar. Se nós realmente seguirmos a nossa prática, não seremos vítimas do orgulho ou da raiva.”

Um bhikkhu levantou-se e disse: “Mestre, por favor, não se envolva com este assunto. Volte e fique pacificamente em sua meditação. Este assunto não lhe diz respeito. Nos somos adultos e capazes de resolver isso por nossa conta.”

Um silêncio mortal seguiu-se às palavras do bhikkhu. O Buda ergueu-se e deixou o salão de reuniões. Retornou a sua choupana, apanhou sua tigela e desceu até Kosambi para mendigar. Quando terminou, entrou na floresta para comer sozinho. Então, ele se levantou e caminhou para fora de Kosambi, no rumo do rio. Não avisou a ninguém da sua partida, nem mesmo o seu assistente, Nagita, ou o Venerável Ananda.

O Buda andou até encontrar a cidade de Balakalonakaragama. Lá, ele encontrou seu discípulo, o Venerável Bagu, que o convidou a entrar na floresta, onde morava solitariamente. Ele ofereceu ao Buda uma toalha e uma bacia para lavar seu rosto e suas mãos. O Mestre quis saber como estava indo sua prática. Bagu respondeu que havia encontrado grande bem-estar e alegria na prática, ainda que estivesse, naquele momento, vivendo completamente sozinho. O Buda asseverou: “Às vezes, é melhor viver sozinho do que com muitas pessoas.”

Após despedir-se de Bagu, o Buda rumou para a Floresta de Bambus, a oeste, que não ficava distante dali. Quando estava perto de entrar na floresta, o vigia das terras parou-o e disse: “Monge, não entre, ou poderá perturbar os monges que já praticam lá.”

Antes que Sidarta pudesse pensar numa resposta, Venerável Anuruda apareceu, cumprimentou alegremente o Buda e disse para o vigia: “Este é o meu professor. Por favor, permita-lhe entrar.”

Anuruda levou-o floresta adentro até onde vivia com dois outros bhikkhus, Nandia e Kimbila. Eles estavam muito felizes em ver o Mestre. Nandia pegou a tigela do Buda, e Kimbila apanhou seu manto externo. Limparam um lugar para ele se sentar, perto de uma touceira de bambus dourados. Eles trouxeram uma toalha e uma bacia. Os três bhikkhus juntaram as palmas das mãos e se inclinaram para o Buda. Ele pediu para sentarem-se e perguntou: “Vocês estão contentes aqui? Como está indo a sua prática? Encontram dificuldades em mendigar alimentos, ou partilhar o ensinamento nesta região?”

Anuruda respondeu: “Senhor, estamos muito contentes aqui. É calmo e pacífico. Nós recebemos ampla oferta de alimentos e conseguimos partilhar o Darma. Todos estamos fazendo progressos em nossa prática.”

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“Vocês vivem em harmonia uns com os outros?”Anuruda disse: “Senhor, nós zelamos profundamente uns pelos outros.

Vivemos em harmonia assim como o leite misturado à água. Eu considero viver com Nandia e Kimbila uma grande bênção. Prezo a amizade deles. Antes que eu diga ou faça qualquer coisa, estando eles presente, ou não, paro e me pergunto qual seria a reação deles. Minhas palavras ou ações iriam desapontá-los de alguma maneira? Se tiver dúvida, evito as palavras ou ações que pretendia. Senhor, embora sejamos três pessoas aqui, também somos como apenas uma.”

O Buda balançou a cabeça em aprovação e olhou para os outros dois bhikkhus. Kimbila disse: “Anuruda diz a verdade. Nós vivemos em harmonia e cuidamos profundamente uns dos outros.”

Nandia acrescentou: “Nós compartilhamos tudo, desde nossa comida até nossa compreensão e experiência.”

O Buda parabenizou-os: “Excelente! Fico feliz em ver o quanto vocês vivem bem. Uma sangha só é verdadeira quando tal harmonia existe. Vocês experimentaram um despertar real, e é por isso que vocês realizam uma tal harmonia.”

O Buda passou um mês com os três bhikkhus. Observou como mendigavam a cada manhã, após a meditação. Qualquer deles que retornasse primeiro, sempre preparava um lugar para os demais se sentarem, juntava água para se lavarem e deixava e deixava uma tigela vazia. Antes de comer qualquer coisa, ele colocava um pouco de sua comida na tigela vazia para o caso de um dos irmãos não ter conseguido nada para comer. Após todos terminarem a refeição, eles colocavam qualquer resto de alimento no solo, ou em uma correnteza, tomando todo cuidado para não prejudicar qualquer das criaturas que viviam ali. Em seguida, lavaram as tigelas juntos.

Qualquer um que visse que o banheiro precisava ser escovado, fazia isso imediatamente. Eles se juntavam para realizar todas as tarefas que precisassem mais do que uma pessoa e se sentavam regularmente para compartilhar suas compreensões e experiências.

Antes de o Buda deixar os três bhikkhus, disse-lhes: “Bhikkhus, a própria natureza de uma sangha é a harmonia. Acredito que a harmonia pode ser realizada seguindo-se estes princípios:

“1. Compartilhar um espaço comum, tal como uma floresta ou lar.“2. Compartilhar o essencial da vida diária conjuntamente.“3. Observe os preceitos em comunhão.“4. Usar apenas palavras que contribuam para a harmonia, evitando todas as

palavras que possam causar discórdia na comunidade.“5. Compartilhar a própria percepção e compreensão em comunhão.“6. Respeita as visões dos demais e não forçar ninguém a seguir o nosso

próprio ponto de vista.“A sangha que segue estes princípios terá felicidade e harmonia. Bhikkhus,

procurem sempre observar estes seis princípios.”Os monges ficaram felizes por receber este ensinamento do Buda, que se

despediu deles e seguiu andando até chegar na Floresta Rakita, próximo de Parileiaka. Após sentar-se em meditação sob um viçoso salgueiro, ele decidiu passar a estação chuvosa seguinte em solitude na floresta.

-------------------Luís de Araújo (GET Ahimsa - Ribeirão Preto - SP)www.sociedadeteosofica.org.brwww.jornaloaprendiz.com.br19 de fevereiro de 2011

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