Esoterismo em Fernando Pessoa

download Esoterismo em Fernando Pessoa

of 15

Transcript of Esoterismo em Fernando Pessoa

  • 7/24/2019 Esoterismo em Fernando Pessoa

    1/15

    O ritual esotrico no poema Iniciao, de Fernando Pessoa

    Fernando de Moraes Gebra*

    RESUMO:O presente artigo toma como corpus o poema Iniciao, inserido noCancioneiro, de Fernando Pessoa (1888-1935), importante para a compreensodessa obra como uma poetizao discursiva do ritual esotrico, muito presentenas consideraes gnsticas do autor em seu discurso ensastico. O presenteestudo se vale de elementos tericos da Semitica de Greimas, responsveis peloestudo das categorias da enunciao, as quais problematizam as condies deproduo do discurso.

    Palavras-chave:Fernando Pessoa. Cancioneiro. Esoterismo. Ritual. Iniciao.

    Introduo

    Deus quere, o homem sonha, a obra nasce. O primeiro verso do poema Infante, que abrea seo de cunho mais pico de Mensagem, de Fernando Pessoa (1888-1935), parece apontar parauma das dominantes do pensamento de Fernando Pessoa- ele mesmo: o destino como responsvelpelos grandes feitos do homem, como fio condutor dos grandes empreendimentos, responsvel pelosurgimento da grande obra. A misso do sujeito seria, portanto, de interpretar os smbolos codificadospela esfera divina, ou pela natureza, como j postulado por Charles Baudelaire em seu poemaCorrespondncias, em que o poeta seria um tradutor, um decifrador de smbolos. A incorporaodos smbolos na natureza do indivduo e a consequente interpretao dessa outra ordem de realidade

    faz parte de uma estrutura narrativo-discursiva em que o poeta se reconhece como um iniciado,como aquele capaz de apreender a linguagem cifrada do cosmos. Nesse sentido, o presente artigo,centrado no poema Iniciao, de Fernando Pessoa, estabeleceuma homologia entre os poemas doCancioneiroe o ritual esotrico, sem precisar qual tipo de ritual (manico, rosacruz, teosfico), poisno h a particularizao de qual discurso esotrico faz parte de cada poema. O que interessa para ospoemas de Fernando Pessoa e para este trabalho o entendimento da essncia do ritual esotrico: oprocesso de autoconhecimento, que se encontra poetizado em textos do Cancioneiro.

    Em ensaio escrito em 1973 e republicado no livro Fernando Pessoa revisitado, Eduardo Loureno(1981, p. 175), ao analisar poemas ocultistas de Pessoa, faz afirmaes contundentes: A poesia ocultistacobre o espao inteiro da vida e da obra de Pessoa; No h em toda a poesia de Fernando Pessoa

    nada mais afirmativo que a pulso ocultista (LOURENO, 1981, p. 176, grifos do autor); A visoocultista permite a Pessoa integrar positivamente o obstculo des-realizante por excelncia, a Morte,[...] como transparncia suprema e supremo repouso (LOURENO, 1981, p.177). Pela leitura desuas cartas e de seus poemas, possvel perceber que Pessoa sempre foi muito atento aos estudosesotricos. Numa das ltimas cartas escritas antes de seu falecimento, em 1935, o poeta comenta:

    Quanto iniciao ou no, posso dizer-lhe s isto, que no sei se responde sua pergunta: no perteno a Ordem Inicitica nenhuma. A citao, epgrafeao meu poema Eros e Psyche, de um trecho (traduzido, pois o Ritual emlatim) do Ritual do erceiro Grau da Ordem emplria de Portugal, indica

  • 7/24/2019 Esoterismo em Fernando Pessoa

    2/15

    IPOTESI,JUIZDEFORA, v.16, n.2, p. 47-61, jul./dez. 2012 48

    simplesmente o que facto que me foi permitido folhear os Rituais dostrs primeiros graus dessa Ordem, extinta, ou em dormncia, desde cerca de1888. Se no estivesse em dormncia, eu no citaria o trecho do ritual, pois seno devem citar (indicando a origem) trechos de Rituais que esto em trabalho(PESSOA, 1999, p. 347).

    Por esse trecho, alm da fidelidade que Fernando Pessoa manifesta em relao aos ensinamentosda Ordem dos emplrios, o poeta no se reconhece iniciado. No entanto, Yvette Centeno encontrou,entre os documentos pessoais do poeta, datado tambm de 1935, a seguinte declarao:

    Posio religiosa: ... Fiel, por motivos que mais adiante esto implcitos, radio secreta do Christianismo, que tem ntimas relaes com a radioSecreta em Israel (a Santa Kabbalah) e com a essncia oculta da Maonaria.Posio inicitica: Iniciado, por comunicao directa de Mestre a Discpulo, nostrs graus menores da (aparentemente extinta) Ordem emplria de Portugal(CENENO, 1985b, p. 69-70).

    Percebe-se claramente um confronto entre dois discursos do prprio Fernando Pessoa. Osegundo discurso nega o primeiro na medida em que seu enunciador revela ser um iniciado, o que nofizera no anterior. Ao se analisar atenciosamente o primeiro discurso, possvel perceber o enunciadorpreocupado com o que tem a dizer. Basta lembrar que ele diz posso dizer-lhe s isto, o que me levaa inferir que h mais coisas a serem ditas. Vale lembrar que a carta foi escrita em 1935, ano marcadopela ditadura salazarista, de extrema direita e repressora das ordens secretas em Portugal. FernandoPessoa jamais poderia se declarar iniciado em uma carta, mesmo sendo o enunciatrio dela um amigocomo Adolfo Casais Monteiro. Por outro lado, como o segundo discurso pertence aos fragmentos doesplio, ou seja, eram documentos de estudos pessoais, Pessoa se revela um iniciado nos trs grausmenores da Ordem emplria de Portugal que, segundo ele est aparentemente extinta. Por aqui,

    percebemos que as atividades esotricas no findaram, mas foram suspensas no decorrer da ditadurasalazarista, para que seus membros no sofressem perseguies do governo.No presente trabalho, no procurarei examinar provas da iniciao de Fernando Pessoa. Fazer

    isso seria redundar em biografismo. Interessa-me verificar, antes do estudo analtico do poemaIniciao, os posicionamentos de Pessoa acerca de iniciao, smbolo e ritual. Para o autor,

    iniciar algum, no sentido hermtico, conferir-lhe conhecimentos que eleno poderia obter por si, quer pela leitura de livros, quer pelo exerccio da suainteligncia, por forte que seja, quer pela leitura de livros luz dessa mesmainteligncia (CENENO, 1985b, p. 69).

    Nesse trecho, Fernando Pessoa nega a iniciao enquanto pertencente apenas intelignciaracional (leitura de livros, exerccio da sua inteligncia, leitura de livros luz dessa mesmainteligncia). Em outro trecho de seu esplio, diz que

    todos os symbolos e ritos dirigem-se, no inteligncia discursiva e racional,mas intelligencia analogica. Por isso h absurdo em se dizer que, ainda quese quizesse revelar claramente o occulto, se no poderia revelar, por no haverpara elle palavras com que se diga. O smbolo naturalmente a linguagemdas verdades superiores nossa intelligencia, sendo a palavra naturalmentea linguagem daquellas que a nossa intelligencia abrange, pois existe para asabranger (CENENO,1985b, p. 70-71).

  • 7/24/2019 Esoterismo em Fernando Pessoa

    3/15

    IPOTESI,JUIZDEFORA, v.16, n.2, p. 47-61, jul./dez. 2012 49

    Para o poeta, smbolo e iniciao so formas de comunicao com o cosmos. al iniciao marcada por um ritual, por meio do qual so conferidos ao sujeito conhecimentos que ele jamais obteriapela sua inteligncia discursiva e racional, pois a iniciao contm smbolos que constituem umalinguagem das verdades superiores nossa inteligncia racional, mas entendidas pela nossa intelignciaanalgica. O oculto no pode ser revelado, j que a linguagem simblica inacessvel racionalidade.

    Para Fernando Pessoa, o ocultismo entendia-se como a verdadeira forma da iniciao esotrica queele tanto buscava. Faz-se necessria uma breve conceituao dos termos ocultismo, esoterismo eexoterismo. O primeiro conceito sinnimo do segundo, uma vez que uma atividade esotrica secaracteriza por ser secreta, oculta. Com relao diferena entre exoterismo e esoterismo, assimse posiciona Fernando Pessoa, em um fragmento do esplio:

    [...] segue que se pensou que esses ensinamentos se deveriam dividir em duasordens: exotericos ou profanos os que so expostos de modo que a todos possamser ministrados; esotericos ou occultos os que, sendo mais verdadeiros, ouinteiramente verdadeiros, no convm que se ministrem seno a indivduospreviamente preparados, gradualmente preparados, para os receber. A esta

    preparao se chamava, e chama, iniciao (CENENO, 1985a, p. 45).

    Nas iniciaes esotricas, os rituais estabelecem a dimenso do sagrado e tm como funoo despertar da viso psquica do sujeito, a partir de uma comunicao marcada por smbolos. ParaFernando Pessoa, o smbolo deve ser, pois, primeiramente sentido para que posteriormente sejaintegrado pelo prprio sujeito:

    primeiro sentir os symbolos, sentir que os symbolos teem vida ou alma queos symbolos so gente. Mais tarde vir a interpretao mas sem esse sentimentoa interpretao no vem. Os rituais, entre outros fins, teem o de fazer sentir aoiniciado pela solemnidade e o deslumbramento a vida dos symbolos que lhecommunicam. Quem tenha em si o poder de sentir prompta e instinctivamentea vida dos symbolos no precisa de iniciao ritual [...] (CENENO, 1985b, p.72-73).

    Dessa forma, a aquisio de um determinado conhecimento no ocorre apenas de formaintelectual, mas tambm de forma emocional, por meio do simbolismo da iniciao, o que justificaa afirmao de Pessoa de que sem esse sentimento a interpretao no vem. Quanto sabedoria,Pessoa conseguiu transpor em versos seus rituais de iniciao, no de forma explcita, mas com asimbologia hermtica que apenas iniciados na senda esotrica podem perceber. Apesar do hermetismoque caracteriza os poemas esotricos de Pessoa, a poetizao do discurso esotrico no Cancioneiropoder ser entendida com a descrio de mecanismos lingusticos e simblicos utilizados no arranjo

    discursivo dos poemas.

    O ritual esotrico no Cancioneiro de Fernando Pessoa

    Quando desenvolvi meu trabalho de Mestrado sobre a poesia de Fernando Pessoa, levantei ahiptese de que o fato de muitos poemas do Cancioneiro apresentarem uma linguagem hermtica,prpria da ritualstica esotrica, marcada por smbolos do universo mstico, pode ter causado grandedificuldade aos leitores de Fernando Pessoa, o que comprovei, na poca, pelo pequeno nmero deartigos dedicados a essa obra.

  • 7/24/2019 Esoterismo em Fernando Pessoa

    4/15

    IPOTESI,JUIZDEFORA, v.16, n.2, p. 47-61, jul./dez. 2012 50

    Ao fato da pouca quantidade de fortuna crtica sobre o Cancioneiro, soma-se a dificuldade emse fazer uma edio crtica da obra em questo. No Brasil, as edies da Nova Aguillar, prefaciadase comentadas por Maria Aliete Galhoz, tm sido as mais indicadas devido ao acurado trabalho dapesquisadora em estabelecer a ordem dos poemas que, no seu entender, obedecem a uma escolhado prprio poeta em confidncias feitas a seus amigos e nos papeis em que lanou os seus planos de

    trabalho:

    A ideia de subordinar parte ou quase toda a sua obra ortnima portuguesa -exceo feita da de feio mstico-nacionalista ao ttulo geral de Cancioneiroaparece como a mais persistente nos seus muitos e no realizados ou incompletosprojetos de criao e publicao [...] Na sua fase adulta, em que o cultivo de estufados ismos substitudo por uma madura e perfeita arte potica, Cancioneiro,desdobrado em vrios livros, viria a englobar toda a obra potica assinada porele-mesmo [...] (GALHOZ, 1999, p. 734).

    Outro trabalho que se destaca pela sua acurada anlise dos aspectos da musicalidade, doplatonismo e do esoterismo inerentes aos poemas do Cancioneirointitula-se O canto e a lida: percursoesotrico e mstico da poesia de Fernando Pessoa e Ceclia Meireles.Nesse trabalho, a autora Hiudiaempesta Rodrigues Boberg analisa uma srie de poemas considerados pela crtica como hermticos,tanto poemas de Pessoa como de Ceclia Meireles, para depois estabelecer relaes intertextuaisentre os dois autores. A autora assim se posiciona acerca da poesia esotrica, presente no Cancioneiropessoano:

    Chamamos de poesia esotrica ou alqumica, ou ocultista ou inicitica oumesmo mstica, portanto, no caso pessoano, poesia que manifesta umacrena em verdades transcendentes, no se levando em conta as caractersticaspertinentes a cada termo. Em Pessoa, essa crena encarada, invariavelmente,como uma espcie de sacerdcio, pois o poeta assume a condio de iniciado

    ou de algum que se distingue dos demais por possuir um dom divino, conformedeixou registros em apontamentos e cartas (BOBERG, 1989, p. 76).

    Antes de conceituar poesia esotrica, a autora cita os poemas do Cancioneiroque mereceramateno em seu estudo: Alm-Deus, Passos da cruz, Episdios/ A mmia, Iniciao, Nasombra do Monte Abiegno, Eros e Psique, Do vale montanha, No tmulo de ChristianRosencreutz, Sbita mo de algum fantasma oculto, Abdicao, Hoje que tarde calma e o cutranquilo, dentre outros. Para o estudo desses poemas, alm do uso de textos de crticos e de tericosda literatura, a autora aplicou as teorias do platonismo e do esoterismo no decorrer de suas anlises.E conclui seu estudo, destacando a preocupao de Fernando Pessoa em perquirir os domnios

    do oculto e relacionando esse interesse com a potica do Cancioneiro: O transcendentalismo queemana do Cancioneiro prova mais que suficiente do interesse do poeta pelo ocultismo, no bastassea quantidade de fragmentos ainda existentes no esplio, direcionados para a tarefa de elucidar asuprarrealidade (BOBERG, 1989, p. 149).

    Alm dos estudos de Galhoz e de Boberg, encontrei, at aquele momento, poucos estudosespecficos sobre o Cancioneiro. Leodegrio Amarante de Azevedo Filho, em artigo intituladoInfluxos teosficos na lrica de Fernando Pessoa prope uma anlise do poema Iniciao por meioda recorrncia a elementos externos ao texto, como as teorias teosficas e rosacrucianas, na medida emque essas teorias possam iluminar a compreenso do texto.

  • 7/24/2019 Esoterismo em Fernando Pessoa

    5/15

    IPOTESI,JUIZDEFORA, v.16, n.2, p. 47-61, jul./dez. 2012 51

    Na viso de Antonio Candido, a anlise de um texto literrio no pode prescindir do seu contexto.H, para o referido crtico, uma interpretao dialeticamente ntegra (CANDIDO, 1973, p. 4), comcontribuies da crtica historicista e da crtica estruturalista. Sabemos, ainda, que o externo (no caso,o social) importa, no como causa, nem como significado, mas como elemento que desempenha umpapel na constituio da estrutura, tornando-se, portanto, interno (CANDIDO, 1973, p. 4).

    Destacam-se, no mtodo de Candido (1973, p.7), as relaes literatura e sociedade. Para ocrtico, considera-se o elemento social como fator da prpria construo artstica, estudado no nvelexplicativo e no ilustrativo. Dito de outra forma, as questes sociais podem ser apreendidas no exameminucioso da estrutura textual, onde o externose torna internoe a crtica deixa de ser sociolgicapara ser apenas crtica (CANDIDO, 1973, p.7). Dessa forma, o elemento social se torna um dosmuitos que interferem na economia do livro, ao lado dos psicolgicos, religiosos, lingusticos e outros(CANDIDO, 1973, p. 7). Os elementos externos, como os mticos e esotricos, por exemplo, so,assim, incorporados estrutura interna, atuando no processo de fatura da obra.

    Para Leodegrio Amarante de Azevedo Filho, os poemas do Cancioneiro buscam a essnciaprofunda do ser e mostram o mundo como simples iluso. Conclui seu artigo com uma reflexo

    acerca dos elementos de representao (elementos onricos, mticos e esotricos) na poesia pessoana,marcadamente a do Cancioneiro:

    Na poesia de Fernando Pessoa, como na poesia de qualquer grande poeta, claro que todos esses elementos esto presentes, ressaltando-se aqui os influxosteosficos em vrios poemas do Cancioneiro, mas sempre em linguagemessencialmente potica, por fora de construes metafricas, resultantes decondensaes latentes, motivadas por deslocamentos manifestos de sentido. E sisso d aos poemas de Fernando Pessoa uma dimenso verdadeiramente esttica(AZEVEDO FILHO, 1995, p. 305).

    Ainda que no ligado diretamente produo potica do Cancioneiro, destaca-se o trabalho de

    Dalila Pereira da Costa intitulado O esoterismo de Fernando Pessoa, em que a autora busca estabeleceras caractersticas do espiritualismo pessoano. Com referncia ao esoterismo presente no Cancioneiro,a autora cita 1932 como o ano crucial da produo potica pessoana ligada ao ocultismo:

    Nestes ltimos anos da vida do poeta, sobre os quais incide e se limitaparticularmente esta tentativa de cercar o seu pensamento durante a sua aventurainicitica, 1932 ser por certo o ano crucial, aquele onde se revela mais ntida edramaticamente a sua procura atravs das correntes esotricas (COSA, 1996,p. 58).

    Dos sete poemas que fizeram parte do corpusdo meu estudo, trs deles foram escritos na data

    citada: Iniciao, Eros e Psique e Monte Abiegno.

    Neles surgem os mesmos temas que toda a vida acompanharam o poeta:preexistncia, conhecimento por reminiscncia, vida terrestre como exlio, euterrestre como sombra doutro que vive na eternidade, esta vida como um estadode sono, a procura da alma, ou do anjo[...] (COSA, 1996, p. 58-59).

    No estudo empreendido por mim naquela poca, os temas mencionados acima foram organizadosem trs estgios pelos quais o sujeito potico precisa passar para atingir o estado de transcendncia: o

  • 7/24/2019 Esoterismo em Fernando Pessoa

    6/15

    IPOTESI,JUIZDEFORA, v.16, n.2, p. 47-61, jul./dez. 2012 52

    desdobramento do eu, a iniciao propriamente dita e o desapego dos bens materiais. No decorrer doprocesso analtico, alm dos conceitos da semitica greimasiana e dos textos de fortuna crtica sobreo esoterismo em Fernando Pessoa, confrontei, sempre que se fez necessrio, o discurso literrio dospoemas com o discurso esotrico contido em algumas das cartas de Fernando Pessoa, respaldado emposicionamento de Dalila Pereira da Costa acerca do discurso ensastico como intelectualizao do

    discurso das produes simblicas:

    As opinies totalmente conscientes e intelectualizadas na sua obra em prosa,nunca estaro em contradio com as criaes da imaginao: mas estassero como o seu aprofundamento, porque atingidas a um nvel de realidadeinfinitamente mais rico, inesgotvel (COSA, 1996, p. 46).

    importante destacar que Fernando Pessoa produziu importantes ensaios, muitos delesenfeixados no volume Obra em prosa, cujas notas so de responsabilidade de Cleonice Berardinelli.No gnero ensastico, realiza-se a escrita do eu, que busca fundamentar seus argumentos, a partirde uma atitude autorreflexiva, com opinies e concepes diversas, sem os preconceitos prprios do

    discurso cientfico. Pode-se ler, nessa perspectiva, no apenas as cartas em que o poeta fundamenta ospressupostos filosficos de sua obra, mas tambm os fragmentos deixados por ele no seu esplio, quetm ganhado publicaes recentes a partir do trabalho de iminentes pesquisadores como eresa RitaLopes, Cleonice Berardinelli e Leyla Perrone Moiss.

    No presente artigo, o estudo analtico do poema Iniciao considerar no somente os aspectosimanentes do texto, com respaldo na semitica greimasiana, como tambm considerar a relao dopoema com cartas e fragmentos do esplio, medida que esses correspondem ao que entendo por escritaensastica. anto nas cartas como nos fragmentos do esplio, Pessoa explicita aspectos que nos poemasficam subjacentes a uma linguagem repleta de smbolos. No entender de Pfeiffer, enquanto o discursofilosfico marcado por conceitos, o discurso literrio rico em imagens (PFEIFFER, 1964, p. 22).

    Com base na fundamentao terica proposta pela semitica greimasiana e pelo confronto entretexto lrico e texto epistolar, analisei na Dissertao de Mestrado, nessa ordem, os seguintes poemas:Chuva Oblqua I, Eros e Psique, Iniciao, Na sombra do Monte Abiegno, Abdicao, Omenino da sua me e Neste mundo em que esquecemos. Embora situados em diferentes posiesnum conjunto de 203 poemas que compem o Cancioneiro, os poemas analisados, ao serem dispostosna ordem apresentada acima, revelam um fio narrativo que remete, em cada poema, a um fragmentode um ritual esotrico.

    O fio narrativo foi imprescindvel para estabelecer uma ordem para os poemas, na qual seconsiderasse a reiterao de temas e motivos e seguisse uma estrutura ritualstica, na acepo deritual como transformao, em que o Nefito passa por diversas fases para atingir a autognose ea experincia do sagrado. Dessa forma, o Nefito passa por duas fases de desdobramento (Chuvaoblqua I e Eros e Psique), responsveis pelo reconhecimento de sua identidade dupla nas categoriasactanciais, espaciais e temporais. Aps as fases de desdobramento, o Nefito passa por duas iniciaes,uma ocorrida num espao situado no interior de uma caverna, correspondente baixa iniciao(Iniciao), e outra que deveria ocorrer no alto de um castelo, smbolo da alta iniciao (Na sombrado monte Abiegno). Mais adiante, passa pelas fases do desapego dos bens materiais (Abdicao) e doprprio corpo (O menino da sua me) para o alcance da transcendncia, ocorrida no poema Nestemundo em que esquecemos, em que o sujeito passa a entender os aspectos da dualidade csmica, isto, o mundo sensvel como manifestao material do mundo inteligvel, o qual se apresenta como oduplo desejado pelo sujeito produtor do discurso potico.

  • 7/24/2019 Esoterismo em Fernando Pessoa

    7/15

    IPOTESI,JUIZDEFORA, v.16, n.2, p. 47-61, jul./dez. 2012 53

    A purificao inicitica e a poetizao do discurso esotrico

    Iniciao

    No dormes sob os ciprestes,Pois no h sono no mundo,

    ....................................................O corpo a sombra das vestesQue encobrem teu ser profundo.

    Vem a noite, que a morte,E a sombra acabou sem ser.Vais na noite s recorte,Igual a t i sem querer.

    Mas na Estalagem do Assombroiram-te os anjos a capa.Segues sem capa no ombro,

    Com o pouco que te tapa.

    Ento Arcanjos da EstradaDespem-te e deixam-te nu.No tens vestes, no tens nada:ens s teu corpo, que s tu.

    Por fim, na funda caverna,Os Deuses despem-te mais.eu corpo cessa, alma externa,Mas vs que so teus iguais.....................................................

    A sombra das tuas vestesFicou entre ns na Sorte.No sts morto, entre ciprestes......................................................Nefito, no h morte.

    Ao sustentar a tese de que os poemas do Cancioneiropodem ser lidos como um ritual esotrico eao propor o estudo dessa obra nas trs fases do ritual (desdobramento, iniciao e transmutao), possoverificar que no presente poema o sujeito no mais se encontra desdobrado como em Chuva OblquaI e Eros e Psique. Em Iniciao, o sujeito j est com os lados exterior e interior reintegrados emum nico ator no discurso potico, o Nefito. Com relao ao presente poema, assim se posicionaLeodegrio Amarante de Azevedo Filho, em seu artigo Influxos teosficos na lrica de FernandoPessoa:

    O texto tem sido considerado hermtico ou de difcil interpretao por vrioscrticos, que tentaram analis-lo sem qualquer recurso a princpios teosficos.Mas, no poema, entendendo-se por discurso literrio o lugar a partir do qual seengendra uma representao, que no exclui a presena de elementos referenciaisou mesmo ideolgicos, claramente se percebe um processo de iniciao, emtermos esotricos, instruindo-se o nefito sobre a verdadeira essncia do ser(AZEVEDO FILHO, 1995, p. 303).

  • 7/24/2019 Esoterismo em Fernando Pessoa

    8/15

    IPOTESI,JUIZDEFORA, v.16, n.2, p. 47-61, jul./dez. 2012 54

    Essa instruo esotrica mencionada pelo crtico ocorre por meio de estgios. Fernando Pessoa,ao abordar graus pelos quais um indivduo passa at chegar ao supremo conhecimento dos mistriosdo cosmos, afirma que

    Qualquer que seja o nmero de graus, exteriores ou interiores, na escala de

    ascenso para a Verdade, eles podem ser considerados como trs - Nefito,Adepto e Mestre... O Nefito, ao longo dos graus que esta expresso descreve, essencialmente um aprendiz; a sua via em direco do conhecimento naesfera exterior. No Adepto, ao longo dos seus trs degraus, h um processo naunificao do conhecimento com a vida. No Mestre h, ou diz-se que h, umadestruio da unidade assim atingida, em ordem a uma unidade mais elevada(CENENO, 1985a, p. 70).

    O Nefito do poema de Pessoa busca o autoconhecimento pelo processo inicitico. Para isso,precisar passar pelo processo ritualstico que lhe dar a competncia necessria para alcanar apurificao. No nvel narrativo do texto, encontramos um sujeito de estado guiado pelo fio discursivopor um sujeito operador que lhe apresenta a descrio lingustico-simblica do processo inicitico.Encontram-se mais trs sujeitos operadores, os anjos na terceira estrofe, os Arcanjos na quarta e osdeuses, na quinta. ais sujeitos so responsveis por possibilitarem ao sujeito de estado sua disjunocom a capa (segunda estrofe), com as vestes (terceira estrofe), e com o corpo (quarta estrofe),permitindo, assim, sua conjuno com a vida eterna (quinta estrofe), como se nota pelo verso Nefito,no h morte.

    A semitica greimasiana postula que as estruturas narrativas so revestidas de termos que lhedo concretude. Os esquemas narrativos so assumidos pelo sujeito da enunciao, que os converteem discurso, por meio de escolhas de pessoa, tempo, espao e figuras feitas por esse sujeito queconta a narrativa (BARROS, 2001, p. 53).

    No tocante ao elemento temporal, podemos constatar que o tempo verbal predominante

    no poema o presente do indicativo, numa debreagem enunciativa, com proximidade do tempodo enunciado com relao enunciao. al debreagem pode ser constatada nos seguintes verbos:dormes, h, , encobrem (primeira estrofe), vem, , vais (segunda estrofe), tiram,segues, tapa (terceira estrofe), despem, deixam, tens (trs vezes), s (quarta estrofe),despem, cessa, vs, so (quinta estrofe), ests, h (sexta estrofe). Encontramos 22 verbosno presente, e apenas dois no passado que so acabou (segunda estrofe) e ficou (sexta estrofe).

    Dos 22 verbos no presente, quatro esto precedidos pelo advrbio negativo no. So eles:dormes (primeira estrofe), tens com duas recorrncias na quarta estrofe, ests e h na sextaestrofe. ais verbos, precedidos do advrbio no, negam, respectivamente o ato de dormir, o ladomaterial figurativizado pelas vestes e o lado efmero figurativizado pela morte. Ainda que sem

    negao explcita, a figura sombras na segunda e na sexta estrofe deixada pelo sujeito, como senota pelos verbos no passado acabou e ficou. Assim, o sono, as vestes, a morte e as sombras soabandonados quando o sujeito passa do mundo material para o mundo espiritual, resultando noverdadeiro significado da iniciao que, segundo Fernando Pessoa,

    que este mundo visvel em que vivemos um smbolo e uma sombra, queesta vida que conhecemos atravs dos sentidos uma morte e um sono, ou, poroutras palavras, que o que vemos uma iluso. A iniciao o dissipar umdissipar gradual, parcial dessa iluso (CENENO, 1985a, p. 61).

  • 7/24/2019 Esoterismo em Fernando Pessoa

    9/15

    IPOTESI,JUIZDEFORA, v.16, n.2, p. 47-61, jul./dez. 2012 55

    No trecho citado, destaco como significativas as palavras sombra, morte, sono e iniciao,com recorrncias significativas no poema Iniciao, o que demonstra uma relao interdiscursivaentre o discurso esotrico representado pelo fragmento em prosa, prximo do ensaio, e o discursoliterrio, em que ocorre a incorporao de tal discurso.

    Na anlise de poemas como Chuva Oblqua I e Eros e Psique, afirmei que os obstculos se

    referiam ao mundo material. Na minha proposta de estabelecer uma narratividade para sete poemasdo Cancioneiropessoano, lido por mim como ritual esotrico, encontra-se em Eros e Psique o sujeitonum caminho que o levar Estalagem do Assombro no poema Iniciao. No entender de GeorgRudolf Lind, com excepo do castelo, que reencontraremos logo em seguida numa outra poesiaesotrica, as demais estaes do percurso, o caminho (path), a estalagem (inn) e a cave (cave) aparecemigualmente em Iniciao como estrada, estalagem e caverna (LIND, 1981, p. 286).

    A espacializao do poema estrutura-se em um processo de interiorizao. O sujeito passada estrada para a estalagem e da estalagem para a caverna, onde a primeira iniciao se completa.De acordo com o Dicionrio de Smbolos, de Jean Chevalier e Alain Gheerbrant (2001, p. 213), acaverna um lugar subterrneo ou rupestre, de teto abobadado, mais ou menos afundado na terra

    ou na montanha e mais ou menos escuro. Representa, nas tradies iniciticas, o mundo. Segundoo pensamento platnico, esse mundo um lugar de ignorncia, de sofrimento, de punio, ondeas almas humanas so encerradas e acorrentadas pelos deuses como se estivessem dentro de umacaverna (CHEVALIER; GHEEBRAN, 2001, p. 213).

    A alegoria da caverna, criada por Plato, explica a relao entre o mundo dos sentidos e omundo das ideias. Para Plato, em uma caverna com uma entrada para o lado da luz, viviam homensacorrentados nas pernas e no pescoo. Estavam presos no mesmo lugar desde a infncia e s viam assombras do mundo de fora devido a um fogo que ardia por trs deles, fazendo-os crer que aquelassombras correspondiam realidade.

    Essa alegoria descreve o mundo como um estado de sombras, de punio, de sofrimento e deignorncia, percebido pelos nossos cinco sentidos imperfeitos. A luz do sol que entra na caverna seriao mundo das ideias perfeitas, o mundo da transcendncia. Entrar na caverna , portanto, retornar origem e, da, subir ao cu, sair do cosmo (CHEVALIER; GHEEBRAN, 2001, p. 216), resultandonum processo de interiorizao necessria para o alcance do Bem e Verdade maiores.

    Segundo o referido Dicionrio, numerosas cerimnias de iniciao comeam com a passagemdo postulante para dentro de uma caverna ou fossa (CHEVALIER; GHEEBRAN, 2001, p. 214), afim de lev-lo libertao de laos e paixes materiais para o alcance da luz. No discurso do verbetecaverna, encontram-se duas figuras em oposio: sombras versussol, que num sentido mais amploseria escurido versusclareza.

    Nos espaos ocupados pelo Nefito no decorrer do processo inicitico, encontram-se, nonvel discursivo, trs atores (anjos, arcanjos e deuses) que apresentam, no nvel narrativo, os mesmos

    papeis actanciais, ou seja, o de atuarem como sujeitos operadores que possibilitam, como abordadoanteriormente, a disjuno do Nefito com os bens materiais (capa, vestes e corpo) e suaconjuno com a vida eterna. Como o processo inicitico se faz em etapas, cada um desses atoresapresenta um papel temtico.

    O primeiro ator so anjos que esto na Estalagem do Assombro. Para explicar a simbologia dosatores, George Rudolf Lind recorre aos escritos do tesofo Rudolf Steiner, segundo o qual o anjo seriao Guardador do Limiar, que incorpora todos os feitos bons e maus que o sujeito realizou durantesua vida. ais feitos saem da personalidade do sujeito e concretizam-se na figura fantasmagrica doGuardador, que apresenta ao caminhante o espelho do seu Eu passado. Se a imagem for imperfeita,

  • 7/24/2019 Esoterismo em Fernando Pessoa

    10/15

    IPOTESI,JUIZDEFORA, v.16, n.2, p. 47-61, jul./dez. 2012 56

    o sujeito dever buscar a purificao necessria para atingir a beleza perfeita (SEINER, ano apudLIND, 1981 p. 286-287).

    O segundo ator so os Arcanjos que despem-te e deixam-te nu. Segundo Steiner, o sujeito deveabandonar a comunidade em que vive e os valores da mesma, para ser reduzido sua essncia, o queexplica o verso de Pessoa: Despem-te e deixam-te nu. Liberto de todos seus acessrios e reduzido

    sua essncia (ens s teu corpo, que s tu), o indivduo v uma figura luminosa no caminho, que oGro-Guardador do Limiar, ou seja, os arcanjos (SEINER, 1935 apud LIND, 1981, p. 287-288).

    O terceiro ator so os deuses que aparecem ao sujeito no seu mais alto grau de purificao. Naspalavras de Georg Rudolf Lind, o Nefito, no grau mais alto da sua purificao, chega, caverna(a cave do castelo!) e descobre ali que est altura dos deuses, pois estes deuses so como ele prprioimperfeitos e meros ajudantes a servio do destino longnquo e sem nome (LIND, 1981, p. 288).

    A citao do livro de Lind aponta para a figura da caverna como a cave do castelo. PeloDicionrio de Smbolos, verifica-se que a caverna est relacionada com um lugar de interiorizao eisolamento pelo qual o iniciante deve passar a fim de superar suas paixes materiais para alcanara luz. O discurso do Dicionrio se apropria do discurso do mito elaborado por Plato, em que a

    caverna representa o mundo imperfeito com reflexos do mundo perfeito das ideias. Ao analisar osrituais iniciticos, Gertrude Spencer, em seu livro O drama da iniciao, associa a caverna com osimbolismo do processo inicitico nas sociedades secretas, marcado pelo retorno ao estado embrionrio(SPENCER, 1995, p. 28-29). Durante uma cerimnia inicitica, o candidato conduzido aos estgiosde separao, morte, ressurreio e revelao. A caverna representa, assim, o retorno do sujeito aoestado embrionrio antes de renascer.

    Segundo o Dicionrio de SmbolosO carter centralda caverna faz com que ela seja o lugar donascimento e da regenerao; tambm da iniciao, que um novo nascimentoao qual conduzem asprovas do labirinto, que geralmente precede a caverna (CHEVALIER; GHEERBRAN, 2001, p.216). Ao me reportar novamente ao poema Eros e Psique, quero chamar a ateno para o fato deque o caminho percorrido pelo lado exterior do ser (Infante) para alcanar o lado interior (Princesa)era cheio de obstculos e se assemelhava a um labirinto, o qual precedeu a caverna encontrada emIniciao, poema subsequente no ritual esotrico do sujeito produtor do discurso do Cancioneiro.

    Com base no que discuti sobre a caverna, pode-se decompor tal figura nos traos smicos delugar subterrneo, sombrio, mundano, de nascimento e regenerao, necessrio para o alcance da luz.Pela anlise da figura caverna e pela sua consequente decomposio smica, possvel perceber queessa figura se relaciona com outras duas encontradas no poema: noite e morte. Convm lembrarque o enunciador do poema relaciona essas duas figuras por meio do processo de sinonmia, noprimeiro verso da segunda estrofe: Vem a noite, que a morte.

    No Dicionrio de Smbolos, a figura morte relaciona-se ao verbete iniciao. Nas cerimniasiniciticas, a morte mstica o segundo dos quatro estgios j mencionados por Gertrude Spencer.

    morte mstica sucede o estgio de separao e antecede os de ressurreio e revelao. A iniciaoimplica em fazer morrer. A morte inicitica considerada uma sada do profano e uma entrada nosagrado, num processo de metamorfose ou transformao. um rito de passagem, que simboliza onascimento de um novo ser. O Nefito, para superar sua condio profana, opera um novo nascimento,penetra na noite e, mesmo vivendo neste mundo profano, penetra na eternidade, acedendo a uma vidanova (CHEVALIER; GHEERBRAN, 2001, p. 506).

    Com relao figura da noite, sinnimo de morte no poema de Fernando Pessoa, pode-sedizer que

  • 7/24/2019 Esoterismo em Fernando Pessoa

    11/15

    IPOTESI,JUIZDEFORA, v.16, n.2, p. 47-61, jul./dez. 2012 57

    a noite simboliza o tempo das gestaes, das germinaes, das conspiraes,que vo desabrochar em pleno dia como manifestao da vida [...] Ela aimagem do inconsciente e, no sono da noite, o inconsciente se libera. Comotodo smbolo, a noite apresenta um duplo aspecto, o das trevas onde fermenta ovir a ser, e o da preparao do dia, de onde brotar a luz da vida (CHEVALIER;GHEERBRAN, 2001, p. 640).

    Com relao decomposio smica das figuras morte e noite, possvel afirmar que, nosfragmentos citados do Dicionrio de Smbolos, ambas as figuras apresentam a possibilidade do vira ser, da entrada numa nova vida, da preparao do dia, de onde emergir a luz. Em Iniciao,morte e noite no se opem luz. Ao contrrio, fazem parte do mesmo percurso figurativoda espiritualidade, j que anunciam um novo dia, uma nova vida, o terceiro estgio da cerimniainicitica, ou seja, o de ressurreio, aps o estgio embrionrio da caverna.

    Enquanto noite, morte e caverna so associadas iniciao, ao percurso figurativoda espiritualidade, as figuras capa, vestes e corpo se associam ao percurso da materialidade,representado tambm pela figura do sono e das sombras. As figuras materiais so todas negadas

    ou por advrbios de negao ou por verbos no passado. O verbete sombras do Dicionrio de Smbolosexplica seu significado, que, acredito ser anlogo ao da figura sono: A sombra , de um lado o que seope luz, , de outro lado, a prpria imagem das coisas fugidias, irreais e mutantes (CHEVALIER;GHEERBRAN, 2001, p. 842). A ausncia de sombra pode ser explicada de trs modos: ou pelapermeabilidade absoluta do corpo luz por meio da purificao, ou pela libertao das limitaes daexistncia corporal [...] ou pela posio central do corpo, no aprumo exato do sol em relao a seuznite (CHEVALIER; GHEERBRAN, 2001, p. 842).

    Acredito que, no poema analisado, a queda das sombras resultado da purificao do iniciado,cujos bens materiais so abandonados para alcanar a luz. Assim, as figuras claras e escuras constituemuma rede de oposio significativa no poema Iniciao. A atmosfera espacial do poema marcadapela escurido (noite, morte, sombra, funda caverna). A luminosidade no aparece de formaexplcita, mas se encontra presente no discurso do poema de duas formas: ou pela pressuposio, vistana anlise das figuras noite, morte, e caverna, de que o estado noturno, de morte inicitica e deretorno embrionrio so estgios necessrios para o alcance da luminosidade, ou ainda na anlise dafigura ciprestes.

    A figura ciprestes aparece de forma circular no poema, no primeiro verso da primeira estrofe(No dormes sob os ciprestes) e no antepenltimo verso da sexta e ltima estrofe (No ests mortoentre ciprestes). Pode-se observar que h o advrbio de negao no introduzindo os versos citados,o que demonstra, semelhana do que ocorre com a figura sombras, a negao do lado efmero damorte fsica e o anncio da transcendncia, temas recorrentes nos poemas da terceira parte do ritualesotrico, composto pelos poemas Abdicao, O menino da sua me e Neste mundo em que

    esquecemos.Como todo ritual inicitico apresenta as fases da separao, da morte, da ressurreio e da

    revelao, aps o estgio embrionrio de separao e de morte fsica na funda caverna, o Nefitoadquire conscincia de que houve a morte mstica, e no uma morte espiritual ou o sono profundo deque fala o comeo do poema (Pois no h sono no mundo).

    Com base no Dicionrio de Smbolos, percebe-se que cipreste smbolo da imortalidade,da longevidade, da ressurreio e das virtudes espirituais. O Dicionrio assinala que o cipreste uma rvore sagrada para numerosos povos. Graas sua longevidade e sua verdura persistente,

  • 7/24/2019 Esoterismo em Fernando Pessoa

    12/15

    IPOTESI,JUIZDEFORA, v.16, n.2, p. 47-61, jul./dez. 2012 58

    chamada rvore da vida (CHEVALIER; GHEERBRAN, 2001, p. 250). J que cipreste apresentao trao smico da imortalidade, pode entrar no percurso figurativo da luminosidade espiritual.

    Dessa forma, em Iniciao, a oposio fundamental poderia ser assim estabelecida: de umlado, as figuras capa, vestes, corpo, sono e sombras referem-se ao lado material, efmero,transitrio de um mundo material imperfeito; de outro lado, as figuras ciprestes, noite, morte

    e funda caverna representam o lado espiritual, os estgios pelos quais o Nefito deve passar paraatingir a transcendncia. Nesse poema, a poetizao do discurso esotrico no discurso literrio feitaprincipalmente por meio do trecho de um ritual de um dos primeiros graus da Ordem emplria.George Rudolf Lind, em seu livro Estudos sobre Fernando Pessoa, cita o trecho do ritual mencionado,que se encontra no esplio pessoano da Biblioteca Nacional de Lisboa:

    Recebestes a luz da Ordem em que reis cego. Ides receber agora a sua Veste deque reis nu. Agora que recebestes a Luz e a Veste da Ordem, estareis lembradode que vos falta a Guarida da Ordem. A luz no vos deu mais que luz; mas a luzpassa e vem a noite e vs no a tendes. A Veste no vos deu mais que a Veste;por baixo dela sois nu como reis. A Guarida porm vos dar o onde tenhais luz

    ainda que falte luz de fora, o onde tenhais veste, pois tendes abrigo, ainda quena guarida estejais nu ... Cego, nu e pobre entrastes na vida. Cego, nu e pobreentrareis na morte. No h, porm, vida nem morte: No h, Nefito, senovida. O que vos sucedeu ao nascer, vos suceder ao morrer: entrareis na vida. Isto a verdade: o entendimento convosco, assim como o regrar-vos por ela comodeveis (LIND, 1981, p. 285).

    No presente trabalho, abono o posicionamento crtico de Georg Rudolf Lind quando esteafirma que o discurso esotrico do poema Iniciao provm do discurso esotrico do trecho acimatranscrito. A relao interdiscursiva (entre discursos) entre o texto do ritual e o poema Iniciao expressa por Lind em seu artigo Elementos ocultistas na poesia de Fernando Pessoa:

    O Padre do Ritual , pelos vistos, idntico ao locutor da poesia Iniciao.Descreve ao nefito as diferentes etapas do caminho inicitico, que vai percorrer,munido da guarida da Ordem que o protege. a viagem aps a morte corporalpara o Alm, e as etapas do caminho estalagem, estrada, caverna marcamposies gnsticas (LIND, 1966, p. 62).

    O motivo da viagem, como liberao a partir da morte corporal para o Alm, presente nodiscurso de Lind, encontra-se no ensaio A viagem, de Benedito Nunes, que descreve como essemotivo faz parte da estrutura, da temtica e das intenes morais das narrativas de Guimares Rosa.Para Benedito Nunes, Riobaldo percorre os espaos que formam o espao do mundo ilimitado. Ora,encaminhando, ou desencaminhando, as veredas, divergentes em seu curso, convergem todas nomovimento da viagem redonda, que as unifica e lhes d sentido (NUNES, 1976, p.174-175).

    Durante todo o ensaio, Benedito Nunes atribui sentido existencial viagem, relacionando-a abertura de espao, ao desvendamento do mundo, multiplicao de perigos (1976, p.174), aprendizagem da vida (1976, p.175), soluo prxima de um conflito moral e espiritual, antecipao da morte (p.177), peregrinao deriva (1976, p.178), dentre outros significadosresponsveis pela construo identitria do indivduo, que , ao mesmo tempo, objeto e sujeito datravessia, em cujo processo o mundo se faz (1976, p.179).

    Seguindo o motivo da travessia em direo ao sagrado, possvel perceber que o sujeito produtordo discurso transcrito descreve as etapas do caminho do Nefito at sua purificao depois da morte.

  • 7/24/2019 Esoterismo em Fernando Pessoa

    13/15

    IPOTESI,JUIZDEFORA, v.16, n.2, p. 47-61, jul./dez. 2012 59

    Numa relao tridica, o enunciador aponta os objetos modais Luz, Veste e Guarida, necessriospara o alcance das verdades do cosmos e da transcendncia. Dos trs objetos, o mais importante aGuarida, que trar a luz interior (A Guarida porm vos dar o onde tenhais luz ainda que falte luz defora) e o abrigo (ainda que na guarida estejais nu).

    Acredito que o abrigo se refere ao retorno que o sujeito faz ao estgio embrionrio antes de

    sofrer a morte mstica. Convm ressaltar que, no ritual inicitico, no h morte fsica, mas sim amorte mstica que consiste no despertar para a vida (O que vos sucedeu ao nascer, vos sucederao morrer: entrareis na vida). E aps o estgio de renascimento, o entrar na vida, vem o estgio derevelao, a compreenso da verdade que deve ser prpria de cada iniciado e guardada por ele (Isto a verdade: o entendimento dela convosco, assim como o regrar-vos por ela como deveis).

    O discurso esotrico transcrito apresenta algumas relaes significativas com o discurso dopoema Iniciao. O verso final Nefito, no h morte apresenta-se como citao do ritual quetem o vestido como protetor, enquanto no poema, as vestes, como os demais bens materiais, devemser deixados para o alcance da transcendncia, objeto de estudo da terceira parte do ritual esotrico.Para Gaspar Simes (1950, p. 549),

    a doutrina em que Fernando Pessoa, nefito, possivelmente foi iniciado est,de fato, sob forma alegrica ou metafrica, nas breves estncias deste belssimopoema. Gnosticismo, neoplatonismo, teosofismo, espiritismo, ocultismo tudoconduz mesma concluso: que o sentido do mundo e a explicao da vida e daprpria morte pertencem aos iniciados nos mistrios do oculto.

    De fato, marcado por uma pluralidade de discursos esotricos e filosficos, Iniciao integra asquatro etapas do desenvolvimento espiritual do iniciado: a separao, a morte mstica, o renascimentoe a revelao. O sujeito, aps o abandono dos bens e paixes terrenos, reduzido sua essncia,prosseguindo, no seu escolhido caminho alqumico, at conseguir alcanar a purificao, que deverser atingida numa iniciao mais alta, sob a simbologia do castelo, motivo dominante no poema Na

    sombra do Monte Abiegno.

    Consideraes finais

    Durante o estudo empreendido sobre a poetizao do discurso esotrico no Cancioneirode Fernando Pessoa, foi possvel observar determinados aspectos ignorados pela crtica maistradicionalista, tal como a aproximao da obra pessoana a um ritual esotrico. odo e qualquer ritualesotrico marcado por uma linguagem simblica e hermtica, de difcil acesso racionalidade, umavez que dirigido nossa inteligncia analgica ou intuitiva. Alm disso, os rituais tm a funo dedespertar a viso psquica do iniciado, que vai alm da viso puramente objetiva e que despertada

    gradativamente atravs da iniciao, cujo intuito operar uma transformao no interior do sujeito elev-lo a obter a chave do autoconhecimento.Enquanto o enunciador dos poemas do Cancioneiropercorre o caminho alqumico, transmutando

    o metal bruto de sua personalidade em ouro j lapidado, tambm procurei, na organizao de umpensamento crtico e reflexivo, trilhar o caminho recomendado por Fernando Pessoa, enfrentandopreconceitos ligados minha proposta de abordagem esotrica dos poemas e configurando o trabalhode anlise do discurso esotrico em apresentaes acadmicas, sempre atento s pequenas nuances eaos obstculos que apareciam na travessia. Fiz um longo percurso nesse caminho alqumico rumo aointerior do pensamento de Fernando Pessoa, at chegar a alguns resultados, dando minha pequenacontribuio vasta fortuna crtica pessoana.

  • 7/24/2019 Esoterismo em Fernando Pessoa

    14/15

    IPOTESI,JUIZDEFORA, v.16, n.2, p. 47-61, jul./dez. 2012 60

    Foi possvel discutir, desse modo, que qualquer linguagem pode ser poetizada, seja ela dodiscurso poltico, social, histrico ou, no caso do presente trabalho, do discurso esotrico, poetizadoatravs de imagens e smbolos hermticos, que muito dificultam, para alguns leitores, a anlise depoemas do autor em questo. Os poemas do Cancioneiro apresentam uma linguagem simblica entendida como uma linguagem de difcil acesso racionalidade , o que dificulta a leitura dos

    mesmos por muitos leitores. A anlise dos poemas e seu confronto com fragmentos de textos emprosa, de natureza ensastica, permite a compreenso dos aspectos esotricos da poesia pessoana.

    Esoteric ritual in the poem entitled Iniciao by Fernando Pessoa

    ABSTR ACT:Te present essay focuses on Iniciao, inserted in Cancioneiro, by FernandoPessoa (1888-1935), important to the understanding of this book as a discoursivepoetry of the esoteric ritual, present in the the authors gnostic considerations inhis essays. Te present study makes use of some theoretical elements of Greimas

    Semiotic, responsible to the study of the enunciation cathegories, which discussthe conditions of the discourse production.

    Keywords:Fernando Pessoa. Cancioneiro. Esoterism. Ritual. Initiation.

    Notas explicativas

    * Doutor em Letras, rea de Estudos Literrios, pela Universidade Federal do Paran. professor adjunto na rea deeoria Literria e Literaturas de Lngua Portuguesa na Universidade Federal da Fronteira Sul, campusde Chapec.

    Referncias

    AZEVEDO FILHO, Leodegrio Amarante de. Influxos teosficos na lrica de Fernando Pessoa.Letras, Santa Maria, n.10-11, p.301-5, jan./jun. jul./dez, 1995. 305 p.BARROS, Diana Luz Pessoa de. Teoria semitica do texto. 4. ed. So Paulo: tica, 2001.96 p.BOBERG, Hiudia. O canto e a lida: percurso esotrico e mstico da poesia de Fernando Pessoae Ceclia Meireles. Dissertao (Mestrado em Literaturas de Lngua Portuguesa). Faculdade deCincias e Letras, UNESP, Assis, 1989. 292 p.CANDIDO, Antonio. Literatura e sociedade: estudos de teoria e histria literria. 3. ed. revista. So

    Paulo: Editora Nacional, 1973.193 p.CENENO, Yvette K. Fernando Pessoa e a filosofia hermtica: fragmentos do esplio. Lisboa:Presena, 1985a. 82 p.

    _

    . Fernando Pessoa. O amor. A morte. A iniciao. Lisboa: A Regra do Jogo, 1985b. 131p.CHEVALIER, Jean; GHEERBRAN, Alain. Dicionrio de Smbolos. 16. ed. (Coord. CarlosSussekind). raduo Vera da Costa e Silva e outros. Rio de Janeiro: Ed Jos Olympio, 2001. 996 p.COSA, Dalila Pereira da. O esoterismo de Fernando Pessoa. 4. ed. Porto: Lello & Irmo, 1996. 307 p.LIND, Georg Rudolf. Elementos ocultistas na poesia de Fernando Pessoa. Colquio. Revista de

    Artes e Letras. Lisboa, n. 37, p. 60-63, fev. 1996. 90 p.

  • 7/24/2019 Esoterismo em Fernando Pessoa

    15/15

    IPOTESI,JUIZDEFORA, v.16, n.2, p. 47-61, jul./dez. 2012 61

    LOURENO, Eduardo. A existncia mtica ou a porta aberta. In:_. Fernando Pessoarevisitado: leitura estruturante do drama em gente. 2. ed. Lisboa: Moraes, 1981. p.169-183. 197 p.NUNES, Benedito. A viagem. In:_. O dorso do tigre. So Paulo: Perspectiva, 1976. p.173-179. 278 p.PESSOA, Fernando. Correspondncia: 1923-1935. (Organizao Manuela Parreira da Silva). Lisboa:

    Assrio & Alvim, 1999. 475 p.

    _

    . Obras em prosa. (Organizao, introduo e notas de Cleonice Berardinelli). Rio deJaneiro: Nova Aguilar, 1998. 729 p._. Obra potica. (Organizao, introduo e notas de Maria Aliete Galhoz). 3. ed. Rio de

    Janeiro: Nova Aguilar, 1999. 842 p.PFEIFFER, Johannes. Introduo poesia. raduo Manuel Villaverde Cabral. Lisboa: PublicaesEuropa-Amrica, 1964. 103 p.SIMES, Joo Gaspar. Vida e obra de Fernando Pessoa:histria de uma gerao. Lisboa: Bertrand,1950. 635 p.SPENCER, Gertrude (Coord. e superv. Charles Vega Parucker). FRC. O drama da iniciao. 4. ed.

    raduo Grande Loja da Jurisdio de Lngua Portuguesa. Curitiba: Ordem Rosacruz AMORC,1995. 48 p.SEINER, Rudolf. Wie erlangt man erkenntnisse der hheren welten?Dornach: Verlag, 1935 apudLIND, Georg Rudolf. Estudos sobre Fernando Pessoa. Lisboa: Imprensa Nacional - Casa da Moeda,1981. 489 p.

    Recebido em: 31 de maio de 2012Aprovado em: 17 de outubro de 2012