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ENTRE O CINEMA DE GLAUBER ROCHA E O TEATRO DE AMIR HADDAD: ODILOGO INTERMIDITICO DO CANGAO
Luiz Roberto Zanotti (UFPR)
IntroduoO presente ensaio se insere nos estudos de traduo intersemitica e cultural: visaexaminar o processo intermiditico da personagem cangaceiro Lampio em Auto de
Angicos, e Corisco, em Deus e o diabo na terra do sol a partir da transposio do textodramticoAuto de Angicos (2003), de Marcos Barbosa, para o espetculo intitulado Virgolino e
Maria: Auto de Angicos (2008), com direo de Amir Haddad, e da norma extra-textual dacoexistncia de elementos mutuamente excludentes que se encontra presente, tanto no longa-
metragem de Glauber Rocha, Deus e o diabo na terra do sol (1964), como no espetculo deAmir Haddad.
Esta noo de normas extra-textuais conforme conceito apresentado atravs das
palestras de Wolfgang Iser por ocasio do VII Colquio UERJ (ROCHA, 1999) de suma
importncia para a nossa anlise, pois atravs da mesma abandonamos o tradicional conceito de
hipertextualidade de Gerard Genette (2005), que descreve a possibilidade das interminveiscorrelaes entre textos, para nos fixarmos nica e to somente na coexistncia dos elementos
mutuamente excludentes.
Assim, trabalhamos com a possibilidade da coexistncia do mau e do bom, nos
afastando da grande maioria das obras sobre o cangao, que destacam a personagem do
cangaceiro dentro de um plano imaginrio ou como um completo heri, ou como um vilo,
como o caso de inmeros textos literrios, flmicos e msicos, tais como: a literatura infantil
(Lampio e Maria Bonita: o Rei e a Rainha do Cangao (2005), de Liliana Iacocca e RosinhaCampos), a literatura ficcional, que vo dede o primeiro romance escrito sobre cangao no
Brasil, O cabeleira (1981), de Franklin Tvola, at obras como Lampio, o Rei do Cangao(s/d.), de Eduardo Barbosa, e Capito Virgolino Lampio (1975), de Nertan Macedo, os filmes
Lampio, o rei do cangao, de Coimbra, e Deus e o diabo na terra do sol (1964), de Glauber
Rocha, as msicas: Acorda Maria Bonita (1957), composta pelo cangaceiro Volta Seca dobando de Lampio; Mulher rendeira (s/d), composio atribuda por muitos a Lampio; bemcomo a trilha musical de Deus e o diabo na terra do sol (1964), de Sergio Ricardo e Glauber
Rocha
Dessa forma, inicialmente traamos uma breve breve anlise desta epopia
intermiditica da personagem Lampio contextualizando a personagem e a sua violncia que
mostra, atravs da diversa bibliografia sobre o cangao, as condies histricas e sociais de
como essa figura real, histrica e imaginria que atravs de um processo de mitificao acaba
por eleger Lampio, entre vrios cangaceiros possveis (Cabeleira, Jesuino Brilhante e Corisco,
como o heri (ou anti-heri) de toda uma cultura nordestina.
A seguir, fazemos uma ligeira reviso da teoria iseriana desde o aparecimento da teoria
dos efeitos (reader-response criticism), que enfoca a assimetria entre texto e leitor, at o
conceito de antropologia literria, que trata da interao entre o fictcio e o imaginrio, para
depois nos focarmos na similaridade das duas obras no que tange coexistncia dos elementos
mutuamente excludentes.
1.Contextualizao do cangaceiro como personagem
Essa breve contextualizao ser o ponto de partida para a discusso a respeito do
desenvolvimento esttico da personagem Lampio (heri ou anti-heri), uma personagem que
desde o seu aparecimento comeou a chamar a ateno dos artistas em geral. Essa figura que
acabou por se tornar lendria se formou no s em razo de seus feitos, mas tambm em razo
de uma mdia vida de notcias sensacionalistas, que propiciou todo um trabalho artstico,
inspirando poemas, msicas, peas teatrais, artesanato, romances, etc.Uma das mais interessantes estetizaes da personagem Lampio est ligada a um
gnero cinematogrfico que recebeu a denominao de nordestern, composto em sua grande
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maioria, por filmes ambientados na regio nordestina, espao, onde se verificou a ocorrncia do
fenmeno cangao; fez o encantamento da platia atravs de uma temtica brasileira, da
indumentria original e do forte esquema musical, apesar do esquema simplrio no
estabelecimento do desenvolvimento do conflito que geralmente colocava heris-mocinhos
contra bandidos.
Encontramos esse heri entre o bando de cangaceiros, mas ele no exatamente um cangaceiro, sente-se deslocado, o que poderamos chamar
de um cangaceiro desajustado; encontramo-lo relacionado com o cangao,
mas invariavelmente a sua relao com o cangao so de conflito.
(BERNARDET e RAMALHO JUNIOR, 2005, p. 33)
Mas esta posio dicotmica bonzinho-malvado tambm repercute at mesmo entre
renomados historiadores e antroplogos, tais como, Luitgarde Barros (2000), Frederico Mello
(2005) e Maria Christina Machado (1978), entre outros, que possuem diferentes vises sobre
este assunto, sendo que enquanto Barros e Mello ressaltam o seu carter ligado ao banditismo,
procurando desmistificar a imagem mitolgica de Lampio como justiceiro e ideologicamente
voltado para a defesa dos fracos num combate ao coronelismo, Machado apresenta Lampio dentro de uma perspectiva marxista no como um fato isolado, mas sim como o resultado de
uma poca em que se processava a luta surda, empreendida pelo vaqueiro contra o senhor da
terra. (MACHADO, 1978, p. 6).
2.A teoria dos efeitos (A interao entre o leitor e o texto)
Pode-se dizer que tanto a teoria dos efeitos de Iser, como a esttica da recepo, que tem
como o seu principal artfice Hans Robert Jauss, so em grande parte, inspiradas em Hans-
Georg Gadamer; mas enquanto a esttica da recepo se articula a partir da reconstruo
histrica de juzos de leitores particulares, objetivando verificar o modo como se processa a
interao das expectativas tradicionais do leitor frente a um texto especfico, ou seja, atravs da
anlise da fuso dos horizontes de expectativa com o ato de leitura; a esttica do efeito trabalhada a partir do texto, uma vez que ela pretende elaborar uma descrio da interao
fenomenolgica que ocorre entre texto e leitor.
Iser elabora o constructo da existncia de uma assimetria inicial entre texto e leitor, sendo
que a esttica do efeito almeja compreender o ato de leitura como uma forma particular de
negociao daquela assimetria. Para tanto, investiga a estrutura prpria dos textos literrios,
valorizando a interao especfica que tal estrutura provoca.
Em suma, enquanto a esttica da recepo trabalha com atos de leitura historicamente
verificveis, a teoria do efeito esttico busca o estabelecimento de um modelo genrico que d
conta do prprio ato de leitura de textos literrios, independentemente de seus contextos
particulares de atualizao. A teoria de Iser analisa o efeito esttico como relao dialtica entre
texto e leitor, uma interao que ocorre entre ambos, ou seja, ainda que se trate de um fenmeno
desencadeado pelo texto, a imaginao do leitor acionada, para dar vida ao que o textoapresenta e reagir aos estmulos recebidos.
Do ponto de vista epistemolgico, essa metfora da interao designa uma instncia
textual que guia a recepo do texto e um leitor que "processa" ativamente o texto. Para Iser,
quando produtiva, essa interao entre duas instncias (agencies) se apia na negatividade e na
indeterminao enquanto modos de contato. Da mesma maneira que um texto bem-sucedido
ultrapassa as fronteiras das determinaes histricas e culturais, uma leitura produtiva processa
e, com isso, muda ativamente o que "manifesto" num texto. Gabriele Schwab lembra que para
Iser: a determinao nos decepciona num texto tanto quanto numa leitura. (SCHWAB in
ROCHA, 1999, p.37)
Ao se reportar decepo com os textos determinados que oferecem uma simples
busca da mensagem e do sentido, e propor o constructo da interao texto-leitor, Iser deixa claro
a importncia que credita indeterminao de um texto, o que como veremos adiante possibilita
a idia da coexistncia de elementos mutuamente excludentes. Iser, no primeiro captulo Arte
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parcial- A interpretao universalista do livro O ato de leitura (1996) apresenta a inadequaodo gesto da interpretao terica da literatura que busca as significaes aparentemente ocultas
nos textos literrios, tomando como exemplo o conto The figure in the carpet (1896), de
Henry James, onde o autor problematiza a procura por significaes ocultas nos textos o que
provavelmente desempenhou um papel importante na crtica literria de sua poca , mostrando
a sua inadequao (ISER, 1996b, p. 23).Assim, uma vez perdido o solo firme do essencialismo e com o texto deixando de ser o
foco principal da anlise, esta passa para o leitor em sua interao com o texto; e ciente que
nenhuma histria pode ser contada na ntegra, Iser vai trabalhar com o constructo de um texto
que pontuado por hiatos, lacunas e negatividades que tm de ser negociados no ato da leitura.
A lacuna (vazio) no texto ficcional induz e guia a atividade do leitor com a suspenso da
conectibilidade entre segmentos de perspectivas, possibilitando a participao do leitor no texto;
enquanto a negatividade significa a no realizao de um procedimento (que esperado pelo
leitor), isto , a sua realizao negativa com a inteno de empurrar o leitor para fora do texto.
Toda esta estrutura, segundo Schwab traz um aspecto fundamental na obra iseriana que
mostra a sua tentativa de evitar as armadilhas da manifestao concreta e, em ltima instncia,
solapar qualquer forma de determinao, e cita: "o que a linguagem diz transcendido por
aquilo que ela revela, e aquilo que revelado representa o seu verdadeiro sentido" (SCHWABin ROCHA, 1999, p. 35).
3.A interao entre o fictcio e o imaginrio
A interao do fictcio com o imaginrio, assim como a interao leitor-texto, tambm
abre vrios espaos para a indeterminao, e a origem deste novo constructo interao fictcio-
imaginrio se encontra no fato da teoria do efeito esttico no conseguir explicar a aparente
necessidade dos seres humanos por um meio de "fingimento" (fico), uma caracterstica que
aparece nas investigaes de Iser sobre o que de fato acontece quando lemos.
A partir desse pressuposto, Iser amplia o horizonte da teoria do efeito esttico, a fim de
transformar o estudo da estrutura dos textos literrios e, sobretudo, da interao entre texto e
leitor, numa investigao dos modos de operao que caracterizam o desenvolvimento dedisposies propriamente humanas, apresentada em O fictcio e o imaginrio: perspectivas de
uma antropologia literria (1996).
Neste ensaio, Iser apresenta a idia de que a narrao se encontra na fronteira que
delimita o ficcional, o imaginrio e a realidade, tornando possvel a caracterizao do
referencial reportado, mas sem a possibilidade de ser por ele determinado, afirmando assim a
proximidade entre os textos ficcionais e no-ficcionais, uma vez que eles so apenas materiais
para a inteno do autor quando seleciona estes elementos que vo aparecer na narrao, pois,
no h representao puramente concebida, re-presentada.
O processo de elaborao do texto ficcional bastante complexo, podendo ser
caracterizado como uma travessia de fronteiras entre dois mundos, que sempre inclui, o mundo
que foi ultrapassado e o mundo alvo a que se visa, que tanto pode se relacionar a uma mentira
que busca exceder a verdade, como uma ultrapassagem do mundo real. Para se perceber as
implicaes destas duplicaes importante notar que os atos de fingir, componente bsico dos
textos literrios, oferecem diferentes reas para o jogo.
O fictcio para realizar o que tem em mira, depende do imaginrio que no auto-
ativvel , pois o que tem em mira s aponta para alguma coisa que no se configura em
decorrncia de se estar apontando para ela: preciso imagin-la. O horizonte de possibilidades
prefigurado pela transgresso de fronteiras inevitavelmente modifica as realidades que foram
ultrapassadas, sendo que o imaginrio s pode ser apreendido por meio de seus efeitos que uma
vez ativados, faz com que o que era no possa permanecer o mesmo.
Sendo assim, a ativao desse potencial precisa ser moldada, e disso se encarregam os
atos de fingir, ao forarem a fantasia a assumir uma forma, para que as possibilidades abertas
por eles possam ser concebidas, j que o prprio ato de fingir no pode conceber aquilo para oque ele apontou. A imposio de forma tem um duplo efeito: torna concretas as vrias
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transgresses de fronteira, ao mesmo tempo, que converte o fictcio num meio para que o
imaginrio se manifeste. (ISER in ROCHA, 1999, p. 71)
Vista sob esta perspectiva a literatura no reproduz ou espelha nada fora dela, mas antes
apresenta algumas ilimitadas possibilidades que existem alm das manifestaes histricas
concretas, sejam relativas aos sujeitos individuais, sejam referentes s culturas, e da abre-se a
possibilidade do aparecimento da coexistncia de elementos opostos, que a princpio, dentro deuma filosofia cartesiana e dicotmica deveriam ser mutuamente excludentes.
Dessa forma, numa primeira abordagem pode-se dizer que enquanto o fictcio se
manifesta de uma maneira intencional, o imaginrio trabalha de uma forma espontnea, com
ambos fazendo parte de uma interao que se expande continuamente atravs de um jogo que
tem o papel de uma estrutura reguladora da interao. Este jogo possui regras e os jogadores
tm de obedec-las na tentativa de saber que questo essa. No existem respostas definitivas.
Ao invs de um discurso vitimador, uma conscincia crescente que num mundo aberto as
solues so, na melhor das hipteses, provisrias, inexistindo respostas conclusivas (ISER in
ROCHA, 1999, p. 217).
Iser desenvolve a interao do fictcio com o imaginrio, apesar da dificuldade de
qualquer afirmao de suas naturezas ontolgicas, pois s podemos apreend-los mediante uma
descrio operacional das suas manifestaes, atravs do jogo (play), uma estrutura capaz depropiciar diferentes tipos de interao, quer entre o texto e o leitor, quer entre o fictcio e o
imaginrio. Isso significa que a ficcionalizao sempre est sujeita a mudanas, em
decorrncia de sua inabilidade para controlar o alvo a que visava. O jogo emerge da
coexistncia do fictcio e do imaginrio que se fundem, visto que cada um em si mesmo
incapaz de cumprir qualquer funo especfica, sendo necessria a sua interao para
desencadear aquele movimento de jogo.
Assim, num universo ficcional indeterminado, dentro de uma ilimitada perspectiva de
interpretao apoiada pela dinmica semntica fornecida pelo jogo interpretativo, e pelas
mudanas constantes de realizaes imaginrias, aparece a condio de existncia para a
coexistncia de elementos mutuamente excludentes, um conceito, que segundo Jean Paul
Riquelme no pode ser previsto por Aristteles, pois ao contrrio da mimesis; Iser mostra,
desenleaando a trama aristotlica, que a leitura da literatura mltipla, podendo chegar-se aofinal dela, sem nunca esteja terminada, semelhana das histrias que contava Sherazade
(RIQUELME in ROCHA, 1999, p. 215).
Dentro, deste panorama, que Riquelme chama a Antropologia literria de um espao
no-euclidiano , pois Iser apresenta a noo da possibilidade da coexistncia de termos
excludentes como uma importante propriedade da obra literria, e porque no dizer da obra de
arte em geral: A ficcionalidade como coexistncia ou simultaneidade de elementos mutuamente
excludentes, traduo de alguma coisa para outro registro, escapa a fundamentao ontolgica
(coisificao) e estimula a necessidade de compreend-lo (ato de traduo correspondente a
ausncia de qualquer totalidade). (ISER in ROCHA, 1999, p. 221), ou como Oscar Wilde
indicou: uma verdade na arte uma afirmao cujo oposto tambm verdadeiro (WILDE
citado em ROCHA, 1999, p. 216).
Assim sendo, Iser se libertando das muletas literrias, vai trabalhar nas suas obsesses de
dissolver as fronteiras, limites, e teorias levadas ao limite que esto relacionadas a resistncia a
movimentos essencialistas, totalizantes e ontolgicos; vai trabalhar a literatura como uma obra
em movimento; e assumir a importncia da indeterminao e da coexistncia de termos
mutuamente excludentes, [...]. (SCHWAB in ROCHA, 1999, p. 227)
4.Coexistncia de elementos mutuamente excludentes emDeus e o diabo.
Glauber Rocha ao filmarDeus e o Diabo vai buscar uma situao em que, segundoAvellar, a relao espectador/filme parte de um sentimento idntico: o filme como uma
expresso incompleta, melao de cana, para ser refinada pelo espectador. Um provocador
onrico, pois o filme tambm um provocador crtico, e cita o prprio Glauber: Na medida emque se d ao espectador um tipo acabado [...], um tipo reduzido, um tipo estratificado, um tipo
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dentro dessa tradio, no se d a menor possibilidade de dilogo com o espectador, porque se
coloca [...] (AVELLAR, 1995, p. 17)
Da mesma forma como observou certa vez Marcel Duchamp, "o artista no o nico a
realizar o ato de criao porque o espectador interpreta e decifra suas significaes profundas e
acrescenta assim sua prpria contribuio ao processo criativo", Glauber v a criao como uma
srie de esforos, de dores, de satisfaes, de negaes, de decises que no podem nem devemser plenamente conscientes, pelo menos no plano esttico. A obra a expresso em estado
bruto, que deve ser refinada pelo espectador, pois: "Liberta pela imaginao o que proibido
pela razo" (GLAUBER citado em AVELLAR, 1995, p. 59)
Mas esta liberdade oferecida pela imaginao no significa para Glauber, assim como
j vimos em Iser, que o filme altere a realidade, pois para ele sempre existe o aproveitamento e
desenvolvimento de elementos reais:
No h uma s coisa no filme que no corresponda a um dado real e concreto, inclusive
o prprio fato do cangaceiro girar. Por que escolhi o Corisco? O Corisco tinha todas aquelas
caractersticas que me interessavam: era um sujeito rpido, gil, mstico, histrico e verboso.
Tinha tudo isso, se chamava Corisco porque ningum acertava nele: andava rodando mesmo.
(GLAUBER citado em AVELLAR, 1995, p. 87).
Mas Corisco a prpria constatao da coexistncia de elementos mutuamenteexcludentes pois, no filme, o ator Othon Bastos que encena a personagem Corisco, alm de
emprestar a sua voz a sua prpria personagem, faz ainda uma outra voz, a do Santo Sebastio -
algo mais grave que a de Corisco, a idia de usar a mesma voz para deus e para o diabo,
segundo Avellar (1995, p. 22) surgiu somente durante a montagem, de modo a que o espectador
pudesse identificar uma certa semelhana entre as propostas e mais rapidamente concluir com o
filme que a terra do homem, nem de deus nem do diabo.
Esta coexistncia, segundo Claudio da Costa, tambm pode ser percebida em um
espelhamento de uma na outra, pois enquanto Sebastio tem parte com Deus e com o Diabo,
como diz Antnio das Mortes, Corisco o diabo que foi possudo por So Jorge. Esses
espelhamentos dobram em ambigidades a palavra do cego e de seus mitos. A palavra mtica,
afirma Luiz Costa Lima, verdade e engano, simultaneamente. Com as palavras de Marcel
Detienne, Costa Lima nos diz que, "no pensamento mtico os contrrios so complementares"(COSTA LIMA citado em COSTA, 2000, p.68)
Deus e o diabo vai trabalhar com outras interaes, alm daquelas constatadas por Iser,
pois a escrita da imagem uma forma de jogo que afirma a interao infinita entre a palavra
(som) e a imagem (fotografia), a conjugao em reversibilidade entre duas dimenses do
audiovisual. Tal reversibilidade infinita torna possvel a coexistncia dos elementos contrrios,
pois como vimos, Glauber cria uma imagem onde o espectador descobre que no est a ser
imposta uma viso dirigida como um produto concludo do autor, buscando eliminar a idia do
espectador como um ser que contempla, trabalhando com uma certa indeterminao. O artista
quer expulsar e revelar no homem seu conflito e inconformismo com o mundo e impulsion-lo
ao desconhecido.Neste sentido, a coexistncia dos excludentes trabalha no sentido de quebrar a
resistncia, a automao da conscincia, na desconstruo do carter normativo das coisas, a
fim de abrir espao para o novo: Pela arte possvel "pensar a natureza e o absurdo"
(GLAUBER citado em VENTURA, p. 170).
A desrazo que possibilita a coexistncia dos excludentes faz parte da esttica de
Glauber que reivindica a libertao das variaes ideolgicas da razo e que promova a fuso do
humano ao cosmos. A revoluo explicita que a pobreza um fenmeno da razo dominadora
que recusa o desconhecido, classificando-o como irracional. A revoluo a "desrazo" que
liberta o homem da razo repressiva. Ela se faz na imprevisibilidade (VENTURA, 2000, p.
284).
5.Coexistncia de elementos mutuamente excludentes em Virgolino e Maria: Auto deAngicos.
Para evitar esta armadilha da dicotomia bom/mau, o diretor Amir Haddad, um dos
maiores encenadores brasileiros contemporneos que, desde a criao do Teatro Oficina em
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1958 que vem dando provas de seu profundo envolvimento no desenvolvimento da dramaturga
brasileira com o seu trabalho baseado na desconstruo da dramaturgia, abolindo o palco
italiano, e investindo na utilizao aberta dos espaos cnicos e na interao entre atores e
espectadores, vai busca os elementos estticos constitutivos de seu espetculo, dando especial
ateno presena do ator ao invs da representao.
Esta presena que foi conceituada pelo filosofo alemo Hans Ulrich Gumbrecht(2004) que mostra como a dramaturgia reagiu s profundas mudanas no pensamento filosfico
ocidental na sua crtica ao excessivo racionalismo contemporneo, lembra que o homem de hoje
esqueceu que os objetos (coisas do mundo) podem ser mais que uma simples atribuio de um
significado metafsico e que o impacto dessas coisas pode ir alm da razo, perpassando todo o
corpo fsico.
Para Lehmann, esta produo de presena trata-se de trazer s coisas ao alcance, de
modo que possam ser tocadas: [...] Nesse sentido, ele compara o acontecimento esportivo como
o teatro medieval: tanto um quanto o outro no se demanda uma atitude hermenutica, o ator
no age como no teatro moderno, como se no notasse o pblico. (LEHMANN, 2008, p. 235)
Assim, uma das estratgias, utilizadas por Haddad para evitar a costumeira dicotomia
bonzinho-malvado de Lampio, est na utilizao desta produo da presena, que foi
obtida ao escolher para o papel de Virgolino, o ator Marcos Palmeira, enquanto o papel deMaria foi entregue a Adriana Esteves, ambos com bitipos bem diversos das personagens
nordestinas. Alm disso, Haddad, diferentemente da produo anterior do espetculo, dirigido
por Elisa Mendes, Haddad no caracteriza as personagens com os tradicionais trajes do cangao,
os conhecidos defeitos fsicos de Lampio.
Esta produo da presena, segundo Haddad em entrevista para ns concedida em 1
de junho de 2008 que evita a todo custo o dilogo realista, consegue exprimir melhor a
densidade de sentimentos que move os personagens e, sobretudo, valorizar a corpo, o
movimento livre dos atores sem marcaes, assim como no seu teatro de rua. Seja num
ambiente fechado ou de rua, o espetculo tem que proporcionar uma verdade para cada um dos
espectadores que deve ser apresentada nua e crua, e no colocada como uma essncia que
poucos podero atingir.
Assim, nesse sentido Haddad j visando a necessidade de se afastar da perspectiva donordestern, trazendo a constatao do carter multifacetado (HALL, 2004) de Lampio, ele
re-nomeia a pea Auto de Angicos para Virgolino e Maria: Auto de Angicos, lembrando que
Lampio tambm Virgolino.
Haddad coloca o espetculo Virgolino e Maria : Auto de Angicos como um marco nadramaturgia brasileira a respeito da temtica de Lampio pois no coloca um pr-julgamento de
valores, Lampio no nenhum Robin Hood e Dick Turpin das picadas do serto como
apresenta Eduardo Barbosa (s/d, p. 9), e nem uma pessoa possuidora de uma crueldade
comparvel a Hitler, como gostaria Pereira da Silva (citado em CARVALHO, s/d., p. VII).
Concluso
Assim, a existncia dos mutuamente excludentes que aparecem em Virgolino e Maria,tambm faz parte do repertorio de Deus e o Diabo, que trabalha no somente na dualidade davoz de Othon Bastos, mas tambm no conflito entre Antnio das Mortes e Manuel, o matador
de cangaceiros e o vaqueiro so personagens igualmente condicionados por deus e o diabo, um
na forma de agir, outro no modo de pensar.
Para Aguilar, so duas dimenses do mesmo personagem, projees das duas cabeas
de Corisco, pois o que Manuel ouve de Sebastio: Voc foi enviado pra ser minha fora no
sofrimento e na guerra. Voc tem de lutar por mim!, quase o mesmo que o que ouve de
Corisco: Parece que So Jorge t me ajudando. Precisamos dum cabra corajoso, um cabra da
minha qualidade. Tou gostando da sua cara de macho.
Ou ainda, o que Antnio diz ao cego Jlio: Eu no queria mas precisava. Eu no matei
os beatos pelo dinheiro. Matei porque no posso viver descansado com essa misria quetambm muito se aproxima do que grita Corisco: No deixo pobre morrer de fome! e do que
prega Sebastio: Quem pobre vai ficar rico no lado de Deus. (AGUILAR, 1995, p. 109).
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A esta coexistncia promovida pelos discursos, Claudio Costa traz a observao das
tomadas da cmera de Glauber, que se fixa atravs de elementos mveis, meios de transportes,
que tm justamente a funo de promover uma passagem, de fazer algo circular. E toda essa
circulao ocorre para que a imagem surja, para que uma determinao se configure. A
imagem-movimento tem por condio a passagem ou a troca que produz na aproximao de
dois elementos mutuamente excludentes tais como: o vidente e o visvel, o visvel e o invisvel,o homem e o mundo, a imagem e o som, a figura e o fundo, e assim por diante.
Nessa aproximao, uma instncia pode se prolongar em outra de maneira que elas se
tornem equivalentes e a circulao chegue a um fim ao se formalizar uma unificao. Nesse
caso, a imagem s alcana designar, manifestar, ou, no mximo, significar o mundo, o real, o
visvel. Em outros casos, aproximados os domnios, uma diferena ntima entre os afetos
permanece, fissura que jamais cicatriza e atravs da qual os domnios se comunicam e se
revertem infinitamente. Nessa comunicao infinita as instncias se transformam e o real,
transfigurado, torna-se transreal. (COSTA, 2000, p. 133).
Por outro lado, Haddad conseguiu romper com esta tradio que impossibilita a
convivncia entre o bem e o mau, afrouxando as amarras do teatro dramtico e oferecendo ao
pblico a oportunidade de refletir, pois se o casal de cangaceiros tem o seu lado Lampio, tem
tambm o lado Virgolino, e muitos outros, e que o ser humano uma grande rede depossibilidades.
Finalmente, podemos afirmar que tanto Glauber Rocha, como Amir Haddad, agregou ao
seu repertorio uma esttica onde se privilegia a indeterminao, mostrando a incrvel aderncia
da teoria de Iser, pois, as duas obras tornam concebvel a extraordinria plasticidade dos seres
humanos, que por possuir uma natureza determinvel, podem expandir-se no raio praticamente
ilimitado dos padres culturais, ou seja, da natureza humana e sua multiplicidade de padres
culturais possibilitar formao ilimitada e contnua do ser humano, e portanto da leitura ( e
interpretao).
Referncias bibliogrficas
AVELLAR, Jos Carlos. Deus e o diabo na terra do sol: a linha reta, o melao de cana e oretrato do artista quando jovem. Rio de Janeiro: Rocco, 1995.BARBOSA, Eduardo.Lampio: rei do cangao. Rio de janeiro: Edies de ouro, s/d.
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8/7/2019 entre_o_cinema_de_glauber_rocha_e_o_teatro_de_amir_haddad_o_dilogo_intermiditico_do_cangao_luiz_roberto_za
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