Entre construções e ruínas: uma leitura do espaço amazônico em ...

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UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO FACULDADE DE FILOSOFIA, LETRAS E CIÊNCIAS HUMANAS DEPARTAMENTO DE LETRAS CLÁSSICAS E VERNÁCULAS PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM LITERATURA BRASILEIRA ENTRE CONSTRUÇÕES E RUÍNAS Uma leitura do espaço amazônico em romances de Dalcídio Jurandir e Milton Hatoum José Alonso Torres Freire Tese de Doutorado apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Literatura Brasileira, do Departamento de Letras Clássicas e Vernáculas da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo para a obtenção do Grau de Doutor em Literatura Brasileira. São Paulo/2006

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UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO

FACULDADE DE FILOSOFIA, LETRAS E CIÊNCIAS HUMANAS

DEPARTAMENTO DE LETRAS CLÁSSICAS E VERNÁCULAS

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM LITERATURA BRASILEIRA

ENTRE CONSTRUÇÕES E RUÍNAS

Uma leitura do espaço amazônico em romances de

Dalcídio Jurandir e Milton Hatoum

José Alonso Torres Freire

Tese de Doutorado apresentada ao Programa de Pós-Graduação

em Literatura Brasileira, do Departamento de Letras Clássicas e

Vernáculas da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências

Humanas da Universidade de São Paulo para a obtenção do

Grau de Doutor em Literatura Brasileira.

São Paulo/2006

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II

UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO

FACULDADE DE FILOSOFIA, LETRAS E CIÊNCIAS HUMANAS

DEPARTAMENTO DE LETRAS CLÁSSICAS E VERNÁCULAS

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM LITERATURA BRASILEIRA

ENTRE CONSTRUÇÕES E RUÍNAS

Uma leitura do espaço amazônico em romances de

Dalcídio Jurandir e Milton Hatoum

José Alonso Torres Freire

Tese de Doutorado apresentada ao Programa de Pós-Graduação

em Literatura Brasileira, do Departamento de Letras Clássicas e

Vernáculas da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências

Humanas da Universidade de São Paulo para a obtenção do

Grau de Doutor em Literatura Brasileira.

Orientador: Prof. Dr. Antonio Dimas

São Paulo/2006

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III

Nem se pense que haja sempre novidades para exprimir; é

uma ilusão dos parvos ou ignorantes acreditarem que

possuem tesouros de originalidade, e que aquilo que

pensam, ou dizem, nunca foi antes pensado, ou dito por

ninguém.

Fernandes Pinheiro, citado por Antonio Candido

As palavras nos dizem o que nós, como sociedade,

acreditamos que é o mundo.

Alberto Manguel

Ah, quem sabe, quem sabe,

se não parti outrora, antes de mim,

dum cais e não deixei, navio ao sol

oblíquo da madrugada,

uma outra espécie de porto?

Quem sabe se não deixei, antes de a hora

do mundo exterior como eu o vejo

raiar-se para mim,

um grande cais cheio de pouca gente

duma grande cidade meio-desperta,

duma grande cidade comercial, crescida, apoplética,

tanto quanto isso pode ser fora do Espaço e do Tempo?

Fernando Pessoa

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IV

Este trabalho é para:

D. Dó, uma narradora hábil e amorosa, que me ensinou a gostar das histórias da

floresta desde cedo

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V

AGRADECIMENTOS

É difícil avaliar a parte que cabe a cada um dos que acompanham e torcem, próximos

ou distantes, durante um percurso como este que aqui se materializa. Porém, as pessoas e

instituições seguintes seguiram mais de perto esta minha travessia. Meus agradecimentos,

portanto,

À minha mãe pela força, persistência e torcida que me acompanham sempre.

Ao Agostinho pelo longo aprendizado concentrado em poucos anos, pelo apoio e

pelo incentivo constante.

Ao meu orientador Antonio Dimas que fez perguntas incisivas (e decisivas!) e me

desafiou a vôos mais altos.

Ao co-orientador no Doutorado Sanduíche, Pedro Calheiros, pela acolhida em

Aveiro/Portugal e pelas portas de amizade que foram abertas ali.

A todos os irmãos e sobrinhos pelo carinho e força.

À amiga Cátia por todas as nossas delirantes conversas literárias.

Às Fátimas pelo acolhimento em São Paulo, pela confiança e pela amizade.

Aos muitos amigos, brasileiros e portugueses, que, às vezes, sem saber, me

ofereceram conforto pelas saudades durante o estágio em Aveiro. Entre os amigos

portugueses, um agradecimento especial ao Reinaldo Silva que, com gentileza e atenção, sabe

mostrar o que Portugal tem de melhor.

À Universidade de São Paulo/USP, no Doutorado, e à Universidade de Aveiro/UA,

no Doutorado Sanduíche, pelo apoio acadêmico e institucional essencial para a realização

desta pesquisa.

À CAPES por todas as bolsas de estudo, tanto de Mestrado (UNESP/Araraquara) e

Doutorado (Universidade de São Paulo), quanto de Doutorado Sanduíche (Universidade de

Aveiro/Portugal).

Aos componentes da Banca de Qualificação pela leitura e indicações.

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VI

SUMÁRIO

RESUMO ................................................................................................................................VII

ABSTRACT.......................................................................................................................... VIII

RÉSUMÉ.................................................................................................................................. IX

INTRODUÇÃO ......................................................................................................................... 1

I. UM PASSEIO PELOS BOSQUES DA TEORIA.................................................................. 7

II. A AMAZÔNIA COMO RELATO DE VIAJANTES E COMO FICÇÃO......................... 42

III. UM PERCURSO CIRCULAR: DALCÍDIO JURANDIR ................................................ 85

IV. O ESPAÇO E A OPACIDADE DA MEMÓRIA: MILTON HATOUM........................ 156

SOBRE OS SENTIDOS DAS TRAVESSIAS AMAZÔNICAS........................................... 214

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS................................................................................... 222

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VII

RESUMO

Nesta tese, visamos analisar a representação do espaço no corpus composto de três romances

de Dalcídio Jurandir (1909-1979) e três de Milton Hatoum (1952-...) e que são,

respectivamente: Três casas e um rio (1958), Belém do Grão Pará (1960) e Ribanceira

(1978); Relato de um certo oriente (1989), Dois irmãos (2000) e Cinzas do Norte (2005). Para

tanto, realizamos discussão prévia sobre aspectos teóricos do espaço na literatura, assim como

breve análise da tradição literária nortista, além de incursões pela história da literatura

brasileira. Dessa forma, partindo do pressuposto da existência de uma tradição de

representação ficcional da Amazônia, iniciada com os relatos dos viajantes, a obra de Dalcídio

Jurandir foi analisada a partir de categorias como travessia e viagem na trajetória do

personagem Alfredo, eixo e fio condutor dos romances, marcando a transição da literatura de

ambientação rural ou interiorana para a ficção urbana. A seguir foram analisados na obra de

Milton Hatoum os sentidos da recuperação e da disputa dos espaços íntimos da casa familiar,

assim como a configuração da cidade de Manaus, além da incorporação da história à ficção.

Cada qual a seu modo, esses dois autores são romancistas da cidade, leitores e intérpretes do

espaço urbano em sua complexidade, criadores ficcionais que observam a cada passo de seus

heróis como a história afeta a vida no interior das casas e se incorpora à memória familiar.

Palavras-chave: espaço, Amazônia, Dalcídio Jurandir, Milton Hatoum, Literatura Brasileira.

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VIII

ABSTRACT

This dissertation aims at analyzing the Amazonian physical environment as represented in the

fictional world of three novels each by Dalcídio Jurandir (Três casas e um rio, 1958) ; Belém

do Grão Pará (1960) ; and Ribanceira, 1978); and Milton Hatoum (Relato de um certo

oriente, 1989 ; Dois irmãos, 2000 ; and Cinzas do Norte, 2005). A preliminary discussion of

the scholarship focusing on this issue ; a brief analysis of Brazil’s Northern region and its

literary tradition ; and a few incursions in Brazilian literature were also attempted at this

study’s outset. Assisted by previous fictional representations of the Amazon in travel

literature, the works by Jurandir were analyzed from a range of perspectives. The categories

centering on the notion of passage and journey – as evinced in the trip undertaken by the

character of Alfredo – function as a conducting device which highlights the transition between

the literature imbued with a keynote of rural adaptation (of the so-called interior) to that of

urban fiction. This was followed up by an analysis of Hatoum’s work, especially for the

following purposes : the theme of recovery and the dispute over the intimacy of the family’s

home ; the outline of the city of Manaus ; and the inclusion of history in fiction. With each

author leaving his own imprint on the issues at stake, both are unquestionably urban writers

who read and interpret this urban setting for its complexity, in addition to demonstrating how

each step taken by their protagonists not only affects life within these houses, but also how

this is incorporated into the family’s memory.

Key words: Space, Amazon, Dalcídio Jurandir, Milton Hatoum, Brazilian Literature.

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IX

RÉSUMÉ

Dans cette thèse, ayant pour objectif l’analyse de la représentation de l’espace amazonien

dans un corpus constitué de trois romans de Dalcídio Jurandir (Três casas e um rio, 1958;

Belém do Grão Pará, 1960; et Ribanceira, 1978) et de trois autres de Milton Hatoum (Relato

de um certo oriente, 1989; Dois irmãos, 2000; et Cinzas do Norte, 2005), il s’est avéré, au

préalable, nécessaire d’établir une discussion sur les aspects théoriques de l’espace dans la

littérature, ainsi qu’une brève analyse de la tradition littéraire du nord du Brésil, outre

quelques incursions dans l’histoire de la littérature brésilienne. Partant donc du principe qu’il

existe une tradition de représentation fictionnelle de l’Amazonie, initiée avec les récits des

voyageurs, l’œuvre de l’auteur Dalcídio Jurandir a été analysée à partir de catégories telles

que le passage et le voyage dans la trajectoire du personnage Alfredo, centre et fil conducteur

des romans, marquant la transition de la littérature d’environnement rural ou provincial vers la

fiction urbaine. Par la suite, les sens de la récupération et de la dispute des espaces intimes de

la maison familiale, ainsi que la configuration de la ville de Manaus et l’intrusion de l’histoire

à la fiction, ont été analysés dans l’œuvre de Milton Hatoum. Chacun à leur manière, ces

auteurs sont des romanciers de la ville, des lecteurs et des interprètes de l’espace urbain dans

toute sa complexité, des créateurs fictionnels qui montrent, à chaque étape de leurs héros,

comment l’histoire agit sur la vie à l’intérieur des demeures et s’intègre à la mémoire

familiale.

Mots-clé: espace, Amazonie, Dalcídio Jurandir, Milton Hatoum, Littérature Brésilienne.

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INTRODUÇÃO

Neste livro se alternarão, um pouco como num romance,

os resumos, ou visões de conjunto resumidas, as cenas,

ou análises detalhadas recheadas de citações, pausas, em

que o autor comenta o que acaba de acontecer, e, é

claro, elipses, ou omissões freqüentes. Não é esse o

ponto de partida de toda história?

Tzvetan Todorov

Talvez, para que um livro nos atraia, ele precise

estabelecer, entre a nossa experiência e a da ficção –

entre as duas imaginações, a nossa e a que está impressa

–, um vínculo de coincidências.

Alberto Manguel

O processo de elaboração de uma tese é sempre uma viagem, real ou imaginária,

espacial e temporal, que pode ser árdua, trabalhosa, cheia de obstáculos sutis ou imensos, mas

é sempre solitária, ainda que muitos nos acompanhem, seja em ausência ou presença, e

sempre é uma viagem iniciática1! Durante o percurso, ou ao final, sempre descobrimos algo, e

nos descobrimos outros, nos revelamos novos, confirmamos ou negamos algo do que éramos,

buscamos descobrir nossa própria voz e a projetamos também nas de outros. A história dessa

viagem seria uma outra tese... De qualquer modo nunca mais se é o mesmo de antes da

travessia. Essa divagação inicial adquire sentidos mais específicos das dificuldades

enfrentadas ao se explicitar a ligação afetiva do autor desta tese ao objeto, pois, analisar a

1 Lembro aqui da “viagem” de Dom Quixote e Sancho, de olhos vendados, no cavalo de madeira Clavilenho, que me parece um bom símbolo da entrada do leitor no umbral da ficção – um mundo onde o leitor só tem o direito de se perder!

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conformação espacial da cidade construída nos três romances de Milton Hatoum, é também

falar sobre o espaço da infância, dos cheiros intensos do Mercado Central, alguma vez

nauseabundos, das cores, dos sabores e saberes de um lugar que ainda tinha muito de uma vila

interiorana, em que todos se conheciam e compartilhavam experiências... Ou mesmo evocar e

percorrer a complexa Belém de Dalcídio Jurandir, uma cidade ao mesmo tempo próxima e

distante de Manaus, em termos amazônicos, que sempre evoca familiaridades neste viajante...

Ambas as cidades compostas por uma geografia plena de marcas afetivas, que hoje percorro

mais virtualmente que fisicamente... Se há esse envolvimento íntimo do pesquisador,

empenhado em desvelar sem desvendar, como realizar a separação entre a experiência vivida

e o objeto de estudo que se deseja ver com distanciamento crítico? Não há resposta pronta ou

definitiva para essa questão, pois, como se sabe, não há observação neutra, que não interfira

com o motivo, especialmente no terreno da linguagem e da literatura, que exige inserção no

próprio ser do objeto estudado. Não há porque renunciar ou negar a minha imaginação, mas

aqui são mais importantes, claro está, as formas que assume a imaginação dos dois autores.

Assim, a única resposta possível é: avançar aos poucos, caminhar, tateando, ao mesmo tempo

que procuro abrir caminhos. Dessa forma, visando o objetivo primeiro de analisar a

representação do espaço em romances de Dalcídio Jurandir e Milton Hatoum, foram

necessários alguns passos prévios nos bosques sinuosos da teoria e da tradição literária

amazônica, assim como algumas incursões pela história da literatura brasileira.

Há uma ânsia de apropriação do espaço brasileiro na literatura desde as primeiras

narrativas de ficção escritas no país, pois, criar uma nação e uma literatura que lhe dê o

suporte cultural necessário implica também incorporar o máximo de espaço nacional possível

ao discurso literário e, se for preciso, mitificá-lo. Terreno fértil para as penas românticas! Essa

ânsia se intensifica com o advento da vontade modernista de conhecer mais de perto os

problemas do país, percorrendo-o incessantemente e estudando-o sob vários ângulos, dos

quais são exemplos o pluralismo do Macunaíma, de Mário de Andrade, as histórias da floresta

cifrada enfeixadas no poema Cobra Norato, de Raul Bopp, e o ensaio sobre o Brasil patriarcal

em Casa Grande & Senzala, de Gilberto Freyre, entre outros, cada um “construindo” o país à

sua própria maneira nessa busca pela realidade nacional, já com princípios e objetivos muito

diferentes da idealização característica do Romantismo. Vemos, assim, que só depois de se

libertar da vontade de se apropriar dos lugares reais, pode-se voltar a eles imprimindo-lhes

significados humanos e uma simbologia própria, representando no espaço as transformações

que o homem implantou, colocando-os a serviço dos sentidos do conjunto da narrativa.

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A grande dificuldade encontrada pelos escritores no começo da literatura brasileira

de ficção para a criação de grandes personagens diz respeito, entre outros fatores, a esse apego

ao espaço. Primeiro pela idealização romântica dos primórdios do romance brasileiro, com o

projeto de José de Alencar, depois com a visão patológica do Naturalismo e o pitoresco do

regionalismo sob várias feições. A literatura brasileira só logrou criar personagens mais

complexos quando começou a se libertar dessa necessidade, interessando-se menos pelas

alegorias e mais pelos conflitos humanos, menos pelos tipos e mais pelos indivíduos

representativos, especialmente com o Realismo. Nesse sentido, a sutileza e a sofisticação na

criação de personagens e na abordagem do espaço brasileiro talvez tenham seu grande

discurso fundador em Machado de Assis, como Roger Bastide mostrou no artigo “Machado

de Assis paisagista”. O autor de Dom Casmurro lança suas luzes especialmente sobre as

complexidades das relações sociais na cidade, que oferece uma maior concentração de

personagens e conflitos a explorar, enfatizando uma linha de exploração de ficção urbana, na

qual vão se inserir, cada um ao seu modo, os dois autores objeto desta tese, Dalcídio Jurandir

e Milton Hatoum.

No processo de escolha das obras a serem abordadas, optou-se por selecionar mais de

um romance de cada um dos escritores com o intuito de, assim procedendo, analisar cada uma

dessas séries como um grande painel composto pelos dois ficcionistas, com configurações e

chaves de interpretação específicas, mas com um grande repertório discursivo comum. Um

painel em que cada narrativa dialoga com a outra, modificando-se, ampliando-se e

desenvolvendo temas ou, pelo menos, interagindo de alguma forma, o que é um pressuposto

tomado como evidência de que cada série de obras ajuda a configurar um mesmo mundo

ficcional, sendo cada romance, com todos os seus elementos, uma parte do todo construído

por um autor. Apesar disso, claro está que cada obra dos autores estudados pode ser lida ou

interpretada independentemente dessa relação, mas o estudo comparativo pode revelar ou

desvelar aspectos comuns ou inter-relações que podem enriquecer a análise desses romances.

O primeiro capítulo da tese foi dedicado a uma delimitação do problema do espaço

na ficção, uma busca por uma definição e funções, assim como uma exploração dos estudos

teóricos ou analíticos sobre esse elemento, aparecendo durante a exposição estudiosos tão

distintos quanto Osman Lins, Ricardo Gullón, Gerard Genette e Franco Moretti; do mesmo

modo, foram citados ou comentados de passagem escritores tão diversos quanto Kafka,

Umberto Eco ou Guimarães Rosa. Essa diversidade de referências procurou dar conta da

multiplicidade de possibilidades que o estudo do espaço oferece, apesar das poucas incursões

dos críticos nesse campo de interesse da narrativa. Certas referências teóricas exploradas

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nesse capítulo, como o conceito de ambientação forjado por Osman Lins, ou a correlação

funcional entre comportamentos e ambientes estabelecida por Antonio Candido, foram

relegadas a segundo plano ou sequer lembradas durante as análises. Isso aconteceu porque ou

essas noções não se prestaram a auxiliar a leitura das obras selecionadas ou sua aplicação

pouco ou nada acrescentaria ao desvelamento do espaço no conjunto da narrativa. Por outro

lado, outros teóricos adquiriram uma relevância que o primeiro capítulo ainda não previa, tais

como Franco Moretti, Ricardo Gullón e Georges Poulet. Franco Moretti, com seu Atlas do

romance europeu (2003) que, inicialmente seria interessante pela sua curiosa utilização dos

mapas literários e a comparação aos mapas reais, cresceu de importância, especialmente por

suas discussões sobre o terceiro, aquele personagem fundamental que serve de mediador entre

os vários espaços da cidade, que teria sido introduzido no romance, conforme o autor, por

Balzac, a fim de dar conta da complexidade e diversidade do traçado urbano; por outro lado,

Moretti estabeleceu uma ligação estreita entre estilo, conflito e espaço, demonstrando como

este último elemento pode ser um componente determinante, ou pelo menos delimitador para

o enredo, o que se revelou bastante pertinente para a abordagem dos dois autores. Por seu

turno, Ricardo Gullón, com seu importante e esclarecedor trabalho Espacio y novela (1980),

em que discute vários aspectos teóricos sobre a utilização do espaço na ficção, também

adquiriu relevância imprevista, especialmente por chamar a atenção para as noções de espaço-

refúgio e espaço-vertigem (ou incógnita), entre várias outras questões, que se mostraram

especialmente eficazes para desvelar a trajetória dos personagens nos romances. Também o

trabalho de Georges Poulet, O espaço proustiano (1992), acerca de Em busca do tempo

perdido, mostrou-se bastante rico e esclarecedor ao demonstrar que, na ficção, os seres

humanos se cercam dos lugares, como se os vestissem, com estes fazendo parte da própria

caracterização dos personagens, ajudando a formar um repertório de recordações que,

eventualmente, irrompem significativamente na narrativa. Além desses, como mostram

algumas epígrafes, Alberto Manguel, por meio de seus livros No bosque do espelho (2000),

Dicionário de Lugares Imaginários (2003) e Os livros e os dias (2005), foi uma presença

inspiradora na questão do valor afetivo dos lugares literários para os personagens e para o

leitor. Antes de todos, um pequeno livro que foi o ponto de partida para a organização dos

preparativos desta viagem: Espaço e romance (1994), de Antonio Dimas.

No segundo capítulo foi abordada a apropriação da Amazônia pelos relatos dos

viajantes, que expuseram e, de certa forma, programaram, modos de ver a região e projetaram

utilizações futuras, tornando-se, assim, essenciais na fundação de uma tradição literária de

ambientação amazônica. Apesar de sua importância, esses relatos não foram exaustivamente

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examinados porque outros trabalhos, tais como A invenção da Amazônia (1994), de Neide

Gondim, já o haviam feito, e apenas procurei inserir essas incursões iniciais em uma linha que

iria criar uma tradição de incorporação do espaço amazônico à literatura. Por outro lado,

foram examinados, também de forma rápida, os escritores brasileiros que lograram incorporar

este espaço longínquo ao espaço ficcional do país ao longo do tempo, com manifestações

isoladas no começo do século XIX e, mais tarde, as decisivas contribuições para essa tradição

da parte de um Inglês de Souza, um Euclides da Cunha, um Alberto Rangel e um Ferreira de

Castro. Como veremos, Ferreira de Castro, objeto de uma análise mais demorada, ocupa uma

posição especial nessa linha de incorporação do espaço amazônico à tradição literária da

região com seu romance A selva, de 1930, abrindo caminho para uma mudança significativa

no modo naturalista de representá-la.

Partindo do pressuposto da existência dessa tradição, a obra do escritor paraense

Dalcídio Jurandir foi objeto de análise do terceiro capítulo, sendo que foram selecionados três

de seus dez romances amazônicos para um percurso mais detalhado: Três casas e um rio

(1958), Belém do Grão Pará (1960) e Ribanceira (1978). Adquiriram especial relevo

categorias como travessia e viagem na trajetória do personagem Alfredo, eixo e fio condutor

de todos os romances, com exceção de Marajó (1947), marcando a transição da literatura de

ambientação rural ou interiorana para a ficção urbana. Acompanhando os passos mais

significativos do percurso de Alfredo, poderemos ver a poderosa atração que a capital exerce

sobre os jovens interioranos, instaurando ou aprofundando conflitos familiares e forçando o

personagem a experimentar a complexidade da cidade grande, o que proporciona à narrativa a

oportunidade de mapear as divisões sociais em suas andanças inquietas. Como Alfredo é

personagem de nove entre dez romances de ambientação amazônica de Dalcídio Jurandir,

exemplos importantes e esclarecedores das outras seis narrativas foram utilizados para situar o

leitor e enriquecer a análise de alguns aspectos do conjunto da obra.

No quarto capítulo, dedicado à obra do amazonense Milton Hatoum, foram

analisados os sentidos da recuperação e da disputa dos espaços íntimos da casa familiar, assim

como a configuração da cidade de Manaus, por meio de seus três romances publicados até o

momento: Relato de um certo oriente (1989), Dois irmãos (2000a) e Cinzas do Norte (2005).

Se os conflitos familiares são o cerne mesmo dessa ficção, o autor não deixou de mapear uma

cidade que fornece o cenário e o entrecho histórico para o enredo: Manaus. Como veremos,

procurando um tempo perdido, os narradores de Milton Hatoum também buscam espaços

perdidos, percorrendo não só a casa na busca de construir suas identidades ou sentidos para o

passado, mas também a cidade da infância, que sempre se revela uma cidade imaginária.

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Em ambos os capítulos de análise, sem abdicar de relacionar fato e ficção, mas

evitando tornar essa relação uma chave de interpretação, foram incluídos breves interlúdios

sobre autores e obras, para fornecer ao leitor uma necessária visão geral de temas e motivos

abordados. Além das obras selecionadas e analisadas mais detidamente, recorri a outras para

situar alguma observação sobre os autores ou complementar com exemplos de outros

romances.

Por fim, que este percurso pelos sentidos do espaço na ficção, além de uma prova,

constitua-se como um convite à leitura e uma abertura de caminhos.

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7

I. UM PASSEIO PELOS BOSQUES DA TEORIA

Nosso belo dever é imaginar que há um labirinto e um

fio.

Jorge Luis Borges

Não sabemos onde acaba o labirinto, nem se acaba. Há

um fora, além de suas paredes? O leitor é quem decide

se ele existe ou não.

Ricardo Gullón

1. Breves indicações do percurso teórico

Como a inocência pré-teórica é impossível, já que todo discurso está impregnado de

discursos anteriores que lhe dão sustentação, é possível afirmar que em qualquer texto de

análise literária há pressupostos teóricos que o atravessam e sustentam sua argumentação,

ainda que não sejam expressos de maneira clara e em seção dedicada exclusivamente ao seu

debate. Eles atravessam o discurso analítico indiciando o caminho percorrido pelo autor e

também estão à disposição da avaliação do leitor mais atento ou interessado.

Tendo consciência dessas filigranas do discurso, esclareçamos que a intenção

primeira deste capítulo é tentar estabelecer alguns pontos teóricos que serão utilizados nas

análises a serem empreendidas nos capítulos seguintes. Isto significa que, nesta parte do

trabalho, será urdido nada mais que um frágil fio para aquele leitor, eventual, que se encoraje

a percorrer o bosque ou o labirinto desta tese, metáforas borgeanas escolhidas

deliberadamente por sua espacialidade, haja vista o objeto da análise proposta aqui.

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Como toda orientação, esse frágil fio teórico estabelecido aqui só pode ser flexível,

pois que não pode transformar-se em camisa de força a condicionar a aproximação das obras

literárias, objetos que não se pode perder de vista, sob pena de o trabalho distanciar-se demais

de seus objetivos. Apenas algumas redes com que se busca colher alguma coisa no

emaranhado da ficção: “As teorias são redes: só aquele que jogar apanhará”2 (Novalis citado

por Franco Moretti, 2003:57). Uma outra versão dessa frase, epígrafe constante da tradução

brasileira do livro de Karl Popper, em que a palavra “teoria” é substituída por “hipótese”,

esclarece melhor o sentido que a teoria tomará neste trabalho: “As hipóteses são redes: só

quem as lança colhe alguma coisa”.

A teoria pode ser imaginada como um bosque espesso e bastante extenso, para usar a

metáfora espacial que Umberto Eco utiliza para a ficção. Sempre haverá riscos para quem

intenta entrar num bosque desse tipo, seja o de perder-se no caminho ou encantar-se pelo

fascínio desse demônio (Compagnon, 2001) e deixar-se seduzir por ele. Ou, como afirma

Daniel Bergez (1997:IX-X), a utilização limitada desse arsenal – e essa palavra, que supõe

um crítico armado para enfrentar o desafio do objeto de estudo é bastante esclarecedora –

pode apenas empobrecer a interpretação da obra em nome de um dogmatismo metodológico

ou, ainda, relegar a obra estudada ao lugar de (pré) texto, chegando ao ponto de o discurso

crítico bastar-se a si mesmo, com o estudo das obras perdendo-se no emaranhado de uma

escritura artística. Desse modo, a constatação de Otto Maria Carpeaux de que “agora temos

muita teoria, uma floresta tão densa que ninguém mais consegue distinguir as árvores”

(1960:155), já em 1960, é um alerta para este viajante incauto que passeia

despreocupadamente, um lembrete de que o demônio da teoria pode ser tão sedutor que nos

afaste da meta e do objeto de estudo – a literatura. Outro risco é transformar o objeto em

cadáver a ser dissecado, reificado, o que transforma a atividade crítica em vivissecção, ao

invés de considerá-lo como um todo dinâmico, que se reanima e se reorganiza a partir de cada

leitura. De qualquer modo, o texto como tecido verbal que é, solicita a leitura, ou o

comentário, como afirma Ricardo Gullón (1980:139): “(...) o texto, a porta por onde se entra

na criação literária, sendo verbal, é por natureza susceptível de “leituras””. Segundo Antonio

Candido, o ato crítico, que é a disposição de mergulhar no texto e seus enigmas a desvelar, e a

teoria, que dá o suporte àquele ato, não se anulam, são complementares (Candido, 2003:129-

30):

2 Essa frase, como esclarece Franco Moretti, é a epígrafe do importante livro de Karl Popper, Logic of Scientific Discovery.

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O ato crítico é a disposição de empenhar a personalidade, por meio da

inteligência e da sensibilidade, através da interpretação das obras,

vistas sobretudo como mensagem de homem a homem; o ato crítico se

beneficia com a sistematização teórica, mas não se confunde com ela,

nem um substitui o outro.

Deve-se ter consciência acima de tudo que, apesar de todas as tentativas de tornar o

mais possível objetivas as incursões do crítico pelo texto literário, até mesmo as pretensões

científicas, essas leituras tendem a tornar-se qualquer coisa, até outros textos literários, menos

ciência no sentido que é utilizado para ciências exatas ou biológicas. O caminho da leitura

crítica não é um experimento passível de repetição da mesma forma que na primeira vez e

falar do mesmo pode nunca ser falar o mesmo, como Jorge Luis Borges mostra em seu conto

Pierre Menard, Autor do Quixote (Borges, 1999).

Porém, se há muitas entradas para o viajante/crítico, também há muitas saídas, e o

que importa - sem recusar os recursos teóricos que a tradição pôs à nossa disposição ou sem

sucumbir à sedução desse demônio sofisticado que é a teoria - é ter consciência de que

“nenhum método exclusivo é suficiente” (Compagnon, 2001:96), o que implica mover-se com

cautela nessa área. Ou seja, a razão de entrar e demorar-se um pouco no bosque intrincado da

teoria, no caso deste trabalho, é que precisamos estabelecer alguns pressupostos chave para a

abordagem do espaço no estudo dos romances a ser realizada aqui, além de explicitar as

razões de realizar um estudo comparativo entre dois autores que produziram suas obras ao

longo de mais da metade do século XX3: o paraense Dalcídio Jurandir e o amazonense Milton

Hatoum.

Além deste “bosque” teórico, espécie de caramanchão de entrada, está a floresta

densa da ficção e, para percorrê-la de modo produtivo, precisamos ter algumas trilhas – ou

pistas – em mente já que, no contexto de um trabalho acadêmico, o leitor não pode se dar ao

luxo de errar à toa por essa floresta, como Umberto Eco prevê que o leitor de ficção faça

muito freqüentemente (Eco, 1999:56). Lembramos aqui da interessante obra O castelo dos

destinos cruzados, de Italo Calvino. Nessa obra engenhosa, o leitor assume o papel do

viajante incauto que se perde e encontra um castelo onde a única forma de comunicação são

as cartas de tarô; ali é como que convidado a perder-se entre os bosques da ficção montada

3 Dalcídio Jurandir faleceu em 1979, e seu último romance, Ribanceira, foi publicado em 1978, sendo que o autor produziu ao longo de quase quatro décadas, se só considerarmos seus romances. A primeira publicação de Milton Hatoum que se tem notícia data de 1979: Amazonas: palavras e imagens de um rio entre ruínas (Hatoum, 1979).

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pelas histórias contadas pelos personagens por meio das cartas dispostas na mesa (Calvino,

1991).

Como afirma Luiz Costa Lima, qualquer coisa que se diga sobre um texto parte de

alguma concepção teórica, ainda que difusa, e já que “teorizar é inevitável, é sempre melhor

teorizar a partir de alguma coisa que você tenha explicitado” (Lima, 1981:213), o que

certamente justifica este “passeio pelos bosques da teoria”. Sendo assim, a teoria aqui não

será mais do que o meio para se alcançar uma leitura mais proveitosa, nada mais que uma

ponte que, se não preenche vazios, pode servir para unir mundos distantes e só parcialmente

comunicáveis, o deste leitor e o dos autores estudados. Como bem pode ser intuído a partir

desta introdução, a exposição de possibilidades teóricas com respeito ao espaço e a análise de

alguns exemplos não serão exaustivas, já que este capítulo também não pretende ser uma

“monografia dentro da monografia”, conforme avisa Osman Lins sobre os capítulos teóricos

de seu trabalho sobre o espaço na obra de Lima Barreto (Lins, 1976).

2. Antecedentes dos estudos sobre o espaço na ficção4

A questão do espaço na literatura já foi abordada de maneiras diversas pelos críticos

literários no intuito de construir sentidos para narrativas de épocas diferentes. Antonio Dimas

(1994), em uma obra introdutória acerca da importância do espaço na narrativa, cita vários

trabalhos dedicados a essa questão que, conforme o autor, em sua maioria, ao assumirem a

direção da comparação entre o romance e a realidade, resultam em trabalhos simplesmente

ilustrativos, sem abordar a questão crucial que seria a análise da configuração e dos sentidos

inusitados e peculiares que cada obra literária confere ao ambiente da ação. Ao empreender

esse tipo de leitura, o pesquisador pode estar apenas trilhando um caminho paralelo ao do

escritor, sendo que este, se toma como base elementos reais, transfigura-os a partir de sua

própria perspectiva, com o necessário distanciamento exigido pelas peculiaridades da ficção,

o que faz com que eles adquiram sentidos específicos no contexto das narrativas.

Um desses trabalhos foi realizado por André Ferré (1939), acerca da veracidade das

referências geográficas presentes na obra de Marcel Proust, cujos resultados não ultrapassam

o simples cotejamento entre a ficção e a realidade, o que nada acrescenta aos estudos críticos

acerca do autor francês. O problema mais evidente desse tipo de estudo é que o mundo

ficcional lida com uma lógica interna de funcionamento – a verossimilhança – e não a

4 Os estudos específicos sobre os autores a serem estudados, Milton Hatoum e Dalcídio Jurandir, serão devidamente analisados nos capítulos dedicados a cada um.

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veracidade, que é o que esse tipo de cotejo persegue, à qual se subordinam as relações entre

seus elementos componentes, e o simples cotejamento com uma realidade que deu ensejo a

esse cosmo não esclarece o que significa a conformação de um espaço ficcional de uma

maneira específica num dado conjunto de elementos interagindo que é a ficção. Por mais

realista que pretenda ser, o espaço reapresentado na ficção nunca é o mesmo espaço real que o

inspirou, pelos mesmos motivos que uma fotografia – que registra um fragmento da realidade

selecionado subjetivamente – não o é.

Acerca desse problema, Umberto Eco, ao referir-se aos protocolos ficcionais que

devemos aceitar ao ler um romance, assevera que “em cada declaração que envolve nomes

próprios ou descrições definidas o leitor ou ouvinte deve aceitar a existência da entidade sobre

a qual se afirma alguma coisa” (Eco, 1999:105), isto é, o leitor parte do princípio que tudo o

que está contido no ficcional deve ser visto como existente e funcional dentro desse mundo,

ainda que eventualmente recorra à Enciclopédia que todo texto requer, ou seja, sua

experiência extra-ficcional, seus conhecimentos de história (Eco, 1999: 115), para completar

sua compreensão da narrativa. Umberto Eco denomina de “passeios inferenciais” essas saídas

do leitor da superfície do texto para conferir as informações fornecidas com sua bagagem de

outras histórias, avaliar o que foi dito, prever desdobramentos, esperar que a ação siga certos

caminhos e não outros, comparar sua previsão com o que efetivamente a narrativa finalmente

entrega (Eco, 1986: 93-102). O espaço ficcional pode ter importante papel nesse processo de

fazer previsões e de colaboração ativa por parte do leitor que todo texto solicita, já que o

ambiente é um recurso essencial tanto para recuos (flash-backs) quanto para antecipações,

podendo articular-se, semanticamente, de maneira complexa com as demais categorias da

narrativa.

A obra de Marcel Proust já suscitou vários trabalhos sobre o tema e alguns deles

merecem destaque por sua abordagem crítica bem sucedida. Um desses trabalhos é o capítulo

que Álvaro Lins dedica ao assunto em sua obra A técnica do romance em Marcel Proust.

Nesse livro, Álvaro Lins demonstra como os territórios da nobreza e da burguesia descritos

por Proust em À la recherche du temps perdu são arquipélagos separados por rígidas

fronteiras, com populações exclusivas, e qualquer um que se disponha a atravessá-las deve se

revestir de uma outra individualidade (Lins, 1956:124-6), relacionando, assim, a ascensão ou

a mobilidade social com o espaço. Tese semelhante e bem posterior defende Catherine Bidou-

Zachariasen que mostra, tomando o romance de Proust como base, como a busca de

visibilidade da burguesia emergente expressava-se por meio da eleição de certos lugares da

cidade de Paris, enquanto a nobreza ocupava suas recentes residências urbanas e atuava como

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se ainda estivesse em castelos feudais (Bidou-Zachariasen, 1998). Em outro livro importante,

O espaço proustiano, Georges Poulet, ao contrário de outros críticos que apontam Bergson

como inspirador do autor francês, defende que Proust assume posição radicalmente oposta à

pure durée bergsoniana, incorporando a justaposição e a metamorfose do tempo em espaço

como princípios da obra proustiana mais famosa (Poulet, 1992:11); esse autor contribui

decisivamente para o estudo do espaço no romance ao mostrar que, em Proust (e porque não

dizer em toda narrativa bem construída!), os personagens “vestem” o cenário, como uma

máscara ou um disfarce, identificando-se com ele ou relacionando decisivamente sua própria

imagem com o entorno, o que lhes empresta solidez e ambos se tornam estreitamente ligados

(Poulet, 1992:31). Outro trabalho interessante sobre o espaço no romance é Paris dans le

roman de Proust, de Shinichi Saiki, que procura demonstrar como a topografia da cidade de

Paris liga-se ou se superpõe a uma variada gama de imagens evocadas por seus nomes e se

estende em profundidade para além de sua aparência superficial no romance (Saiki, 1996:

232). Já a obra de Nathan Kranowski (1968), Paris dans les romans d’Émile Zola, dedica-se,

como o próprio título explicita, à análise do papel da cidade de Paris na obra de Émile Zola,

autor modelar no sentido de valorização da influência, quiçá determinismo, do espaço sobre

os personagens; apesar de seu intuito grandioso, os resultados alcançados por Kranowski são

de pouca relevância para os estudos críticos sobre o escritor francês.

Roger Bastide, em um artigo publicado pela primeira vez em novembro de 1940, na

Revista do Brasil, intitulado “Machado de Assis, paisagista”, aborda a obra desse autor por

um viés diferente, mostrando que, ao contrário do que diziam os críticos sobre a

“europeização” de romances como o Dom Casmurro, a apropriação e a representação do

espaço brasileiro possuem um relevo menor, mas não sem importância, em virtude do

centramento da narrativa machadiana no diálogo e na análise psicológica dos personagens

(Bastide, 2003:194); se não havia grandes descrições da natureza brasileira, isso também se

devia ao desejo de não cair no exotismo que o europeu esperava de nossa literatura, segundo o

autor, e o ambiente está plenamente articulado com as outras categorias da narrativa. Também

sobre Machado de Assis, há um estudo crítico que segue o mesmo viés do livro de André

Ferré acima mencionado, apresentando as mesmas limitações, O mundo de Machado de Assis,

de Miécio Tati (1961), o qual busca reconstruir a paisagem da cidade do Rio de Janeiro a

partir da obra do autor de Dom Casmurro.

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Por outro lado, os resultados obtidos pelo estudo de Antonio Candido (1972) acerca

do romance L’assomoir5, de Émile Zola, são bem mais profundos e amplos, já que o autor

propõe-se e consegue desvelar a correlação entre o espaço romanesco e a trajetória dos

personagens. Acompanhando as vicissitudes de Gervaise e seus companheiros de infortúnio,

personagens de L’assomoir, Antonio Candido consegue relacionar a decadência econômica e

moral à progressiva degradação do espaço em que esses personagens se movem,

demonstrando que esse recurso pode ser criativamente utilizado na ficção e produtivamente

analisado do ponto de vista da crítica literária. Com sua análise bem sucedida, Antonio

Candido estabelece, inclusive, parâmetros metodológicos para a aplicação de sua noção de

correlação funcional entre ambientes e personagens em trabalhos semelhantes sobre o espaço.

Com o mesmo objetivo, outro ensaio do autor aborda a conformação espacial em O cortiço,

de Aluísio Azevedo, traçando importante paralelo entre esse romance e L’Assomoir. Nesse

último trabalho, Antonio Candido mostra como o cortiço (o ambiente) do romance de Aluísio

Azevedo, com todos os seus contrastes e lutas, confrontos e metáforas, condiciona o choque

de raças e determina quedas e ascensões, representando também uma necessidade de abordar,

pela ficção, a situação do Brasil à época segundo a visão do autor naturalista (Candido, 1993).

Nesse sentido, Antonio Candido procura demonstrar que a conformação espacial do cortiço é

uma alegoria, de certa maneira, do próprio país, ou da visão de país que se pode apreender

nessa obra de Aluísio Azevedo. Essas análises mostram como o espaço, mesmo no romance

naturalista/realista, converte-se em espaço simbólico ou alegórico, desvelando uma

configuração determinada e com objetivos claros ou não.

Outro trabalho relevante do mesmo autor sobre a questão é o ensaio “Entre campo e

cidade”, do livro Tese e Antítese (1964), no qual Antonio Candido estuda a relação entre o

urbano e o rural na obra do escritor português Eça de Queirós. No ensaio referido, o autor

considera que o estudo do espaço interessa ao analista já que esse é um dos elementos de

significação flutuante na síntese promovida nos romances objeto desse estudo. Nesse mesmo

livro outros ensaios também tratam dos sentidos do espaço na narrativa, ainda que

tangencialmente, especialmente em “O homem dos avessos”, ensaio que aborda o romance

Grande sertão: veredas, de Guimarães Rosa, no qual Antonio Candido avalia, entre outras

questões, os efeitos simbólicos da superposição do universo fictício na realidade geográfica.

5 Trata-se do artigo “Degradação do espaço (Estudo sobre a correlação funcional dos ambientes, das coisas e do comportamento em L’Assomoir)” publicado primeiramente na Revista de Letras. Assis: Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras, 1972. v. 14, p.7-36. Esse mesmo artigo aparece mais tarde no livro O discurso e a cidade (1993).

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Esses últimos estudos, mostrando a força da configuração de certos espaços na obra

de autores consagrados, corroboram a afirmação de Carlos Reis & Ana Cristina M. Lopes, em

Dicionário de Narratologia (1991), acerca desse aspecto com relação a essa categoria

narrativa:

A variedade de aspectos que o espaço pode assumir observa-se, antes

de mais, nos termos de uma opção de extensão (...); é em função

dessas opções que certos romancistas são associados aos cenários

urbanos que preferiram: se Eça é o romancista de Lisboa, Camilo é-o

do Porto, Machado de Assis do Rio e Dickens de Londres. (Reis &

Lopes, 1991: 129).

Dessa maneira, a obra de Dalcídio Jurandir poderia ser associada à cidade de Belém,

especialmente em função dos romances Belém do Grão Pará (1960) e Passagem dos

inocentes (1963), em que avultam os meandros políticos, os odores, a intrincada teia de

relações que o espaço da cidade apresenta com a ação e a mobilidade social, tudo

possibilitado pela peregrinação do personagem principal por suas ruas e fixado por intensa

sinestesia. Por outro lado, pensar na ficção de Milton Hatoum, que fixa sua área de

observação em torno da capital amazonense, é pensar em Manaus, pois em seus romances

estão bem presentes as peculiaridades da cidade, fixadas pela força da área comercial

dominada por imigrantes junto ao Mercado Central, assim como a proximidade com a floresta

amazônica, como uma espécie de muralha verde e enigmática que rodeia a urbe, apesar de

privilegiar a focalização dos espaços mais íntimos, especialmente a intimidade familiar das

casas. Ainda de acordo com Reis & Lopes, quanto mais particularizado e restrito o espaço,

tanto mais rico o “investimento descritivo” e os decorrentes significados (Reis & Lopes,

1991:130).

Uma análise bastante ampla, com ênfase no estudo dos reflexos dos modos de vida

rural e urbano na literatura de língua inglesa do século XVI até hoje, é O campo e a cidade:

na história e na literatura (1989), de Raymond Williams. Essa última obra interessa para este

estudo que aqui se propõe na medida em que examina a resposta que a literatura de Dickens e

Joyce, por exemplo, apresentou às mudanças ocorridas em Londres no período estudado.

Alguns trabalhos mais recentes sobre o tema merecem destaque, haja vista que

empreendem discussões sobre o espaço na mesma linha de interpretação que se pretende

seguir aqui. Milton Hatoum, um dos autores objeto desta tese, analisa, no artigo “A natureza

como ficção”, as diferentes configurações ficcionais da Amazônia nos romances Mad Maria,

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de Márcio Souza, e A selva, de Ferreira de Castro6 (Hatoum, 1993). O artigo de Cátia Toledo

Mendonça (1998), por exemplo, objetiva analisar o processo de desconstrução, levado a cabo

por escritores paranaenses em suas obras de ficção, do discurso oficial sobre a cidade de

Curitiba. Nas conclusões desse estudo, a autora considera que os ficcionistas abordados,

Dalton Trevisan entre eles, ao apropriarem-se de imagens da cidade em suas obras, visam

desmascarar o discurso ufanista que forjou uma Curitiba mítica no imaginário paranaense e

brasileiro. Em Todas as cidades, a Cidade, Renato Cordeiro Gomes (1994) analisa as imagens

de cidades presentes na literatura, enfatizando a do Rio de Janeiro, afirmando que a ficção

apropria-se do espaço real e reapresenta-o como espaço simbólico, sendo a cidade um

cruzamento de lugar e metáfora por excelência. Joaquim Alves Aguiar também contribui

significativamente com sua obra Espaços da memória: um estudo sobre Pedro Nava (1998),

ao fazer a análise da representação e da importância do espaço, entre outros aspectos

abordados, na obra do escritor mineiro. Na obra coletiva O imaginário da cidade, organizada

por Rogério Lima e Ronaldo Costa Fernandes (2000), vários ensaístas debruçam-se sobre a

obra de escritores tais como João do Rio, Murilo Rubião, Dalton Trevisan e outros,

analisando de que maneira as cidades – o espaço urbano real do qual a ficção se apropria ou a

construção de espaços fictícios, sem referências explícitas a lugares reais –, relacionam-se às

outras categorias das narrativas, além de relacionar os textos literários a uma expressão de

vivências complexas e elementos diferentes. Inserido na esfera da Nova História Cultural,

conforme o próprio texto de apresentação, o estudo intitulado O imaginário da cidade: visões

literárias do urbano (1999), de Sandra Jatahy Pesavento, dedica-se a analisar uma das

representações possíveis de acessar o passado e o imaginário da modernidade urbana por meio

da literatura, remetendo-se à configuração literária das cidades de Paris, Rio de Janeiro e

Porto Alegre, no período que vai do final do século XVIII às duas primeiras décadas do

século XX.

Uma obra de ensaios que reflete sobre o papel da cidade, especialmente relacionada à

efervescência da modernidade, entre outras questões, é Enigmas da modernidade-mundo

(2000), de Octavio Ianni. O capítulo I desse livro, intitulado “A metáfora da viagem”, é

especialmente interessante por mostrar a importância da viagem, real ou imaginária, tanto

para a ciência quanto para a literatura, sendo que, nesta última, aparece com freqüência e está

associada a sentidos diversos:

6 Como esse artigo se relaciona estreitamente com o tema dos precursores na fixação de imagens da Amazônia, que será desenvolvido no segundo capítulo, a análise de seu conteúdo será mais detida nessa parte do trabalho.

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Na literatura, a viagem parece ser a metáfora mais freqüente e

diferenciada. Aí ela adquire muitos significados e conotações. Talvez

todas nasçam de uma viagem primordial e emblemática, mas são

muitas as que se realizam e sonham ao longo das narrativas, das

poéticas que constituem a literatura universal. (Ianni, 2003:28)

Como veremos, a viagem tem importância essencial nas obras de Milton Hatoum e

Dalcídio Jurandir, ainda que por motivos diferentes. No caso do autor amazonense, a viagem

apresenta-se como uma forma de resistência, enquanto que na obra de Dalcídio Jurandir a

travessia é uma questão de mobilidade social. Em ambos, no entanto, o topos da viagem está

associado com o percurso de formação dos personagens.

O capítulo V do livro de Octavio Ianni é dedicado à reflexão acerca do papel da

grande cidade como síntese excepcional da sociedade, sendo que é exatamente nesse espaço

que nascem as idéias de descontinuidade, fragmentação e pequeno relato, com seus ecos

projetando-se sobre as obras de Kafka e Marx, entre outros. Estes dois últimos trabalhos, de

Sandra Jatahy Pesavento e Octavio Ianni, não se referem diretamente à linha de análise que

será seguida aqui, já que a focalização é mais histórica no primeiro caso e mais sociológica no

segundo, mas ambos podem complementar as reflexões desta pesquisa por se utilizarem da

literatura como ponto de partida de sua análise do espaço histórico.

Bastante relevante como referência teórica para o estudo do espaço no romance é a

obra de Osman Lins (1976) sobre a importância desse elemento na ficção de Lima Barreto,

especialmente por dedicar três capítulos de seu livro (IV, V e VI) à discussão de seus

pressupostos teóricos. Nesse estudo, de grande interesse para a consecução dos objetivos

desta tese, o autor discute conceitos-chave para o entendimento da categoria espaço no âmbito

da narrativa, além de considerar as várias possibilidades de sua configuração e importância

para a trama. Para Osman Lins, o espaço no romance, construído a partir da utilização de

estratégias narrativas conhecidas ou possíveis, transforma-se em ambiente (Lins, 1976:77).

Dessa maneira, convertido em ambientação, o espaço comparece à narrativa, segundo Osman

Lins, sob três formas. A primeira delas, a ambientação franca, é a pausa pura e simples na

narrativa e cujo vazio é preenchido pela descrição direta, sem subterfúgios, por parte do

narrador; na ambientação reflexa, a percepção do ambiente por parte do leitor está ligada

diretamente ao modo como as personagens se relacionam com ele. Ambas se destacam na

narrativa, pois se apresentam como blocos facilmente observáveis, representando mesmo

pausas específicas no desenrolar da ação. Já a ambientação oblíqua ou dissimulada é a mais

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difícil de detectar por estar completamente inserida na narrativa e intrincada na ação, sendo

que não depende do discurso do narrador, como no primeiro caso, ou da personagem, como

no segundo. Nesse terceiro tipo estaria, segundo Osman Lins, a utilização ideal do espaço na

ficção, já que importa, necessariamente, num todo em que os elementos estão em relação mais

estreita e coesa. Já transfigurado em ambientação, o espaço teria, basicamente, três funções

(Lins, 1976: 100-1): 1. influenciar os personagens (propicia, desencadeia ou provoca a ação);

2. contribuir para caracterizar o personagem e, ainda, 3. situar a ação. Quando contribui para

delinear a psicologia de um personagem, o espaço (a ambientação) pouco auxilia no

desenvolvimento da ação; o espaço provoca a ação, segundo Osman Lins, quando os

personagens não se empenham em conduzir a própria vida e se deixam arrastar por fatores

externos. De qualquer modo, a pressão que o espaço pode exercer sobre os seres que o

habitam será transformada em atos (Lins, 1976:100) e o estudo desse elemento “(...) pode

revelar-se fascinante e cheio de surpresas exatamente nos casos em que a sua funcionalidade

nos parece menos ostensiva.” (Lins, 1976:106).

O problema da funcionalidade do espaço no romance, como bem aponta Osman

Lins, pode comprometer a estrutura romanesca, já que “a narrativa repudia sempre os

elementos mortos (as motivações vazias) e dessa lei não pode o ficcionista fugir” (Lins,

1976:106). Quando o romancista situa suas personagens em determinado espaço, utilizando-o

para caracterizá-los ou estimular-lhes a ação, ele se defronta com todos os problemas que o

pintor tem que resolver para retratar uma paisagem, tais como enquadramento, perspectiva,

composição, distância do objeto, etc., de acordo com Michel Butor (Butor, 1974:43). Além

disso, ele deve resolver o que deverá ser ressaltado e que função isso assumirá no conjunto da

narrativa, sob pena de que partes descritivas pareçam meros apêndices, sem qualquer

interação com o todo. É claro que elementos acidentais ocorrem na narrativa e esta depende

também deles para representar plenamente uma ação (Lukács, 1965: 45-6). Também é

necessário considerar que a questão da funcionalidade do espaço não se resume à oposição

que Lukács estabelece entre narrar (participar) e observar (descrever), válida, possivelmente,

apenas para os escritores e as escolas analisados pelo crítico (Lukács, 1965), pois o sentido da

relação entre o ambiente e os outros componentes da narrativa nem sempre são óbvios ou

estão à superfície do discurso como no Realismo/Naturalismo. Há que se considerar, também

que, mesmo aquelas narrativas em que determinadas recursos expressivos parecem carentes

de sentido, “motivações vazias”, em certos momentos, podem revelar-se, mais tarde,

importantes na resolução do conflito representado, apresentando-se, então, como motivos

associados (Tomachevski, 1973: 174). Apesar de todas essas nuanças, o processo de

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resolução desses aspectos e as escolhas que eles impõem ao autor de uma narrativa não estão

disponíveis ao leitor que se disponha a analisá-la, e talvez esse processo importe pouco para

uma melhor compreensão e fruição daquele mundo criado e seus habitantes. O que se

apresenta a qualquer leitor é o discurso da narrativa, tal como um bloco, com todos os seus

elementos constituintes articulando-se, interagindo e significando algo, em movimento

constante, o que implica dizer que a análise de um desses elementos em separado, repita-se,

só é possível para buscar desvelar as relações apresentadas entre eles, assim como a

relevância que alguma dentre essas categorias apresenta em certos momentos ou, às vezes, na

narrativa inteira, sendo isto o que a leitura e a análise do espaço podem fazer para ampliar o

espectro de compreensão da obra.

Um trabalho específico sobre as várias nuanças que o espaço assume no romance é

Espacio y novela, de Ricardo Gullón, publicado em 1980. Nessa obra, com vários exemplos

das literaturas de língua espanhola, o crítico procura estabelecer, num primeiro capítulo, seus

conceitos de espacialidade, delineando todo um sistema de interpretação do espaço ficcional.

Segundo o autor,

O espaço literário é o do texto; ali existe e ali tem vigência. O que não

está no texto é a realidade (...). Uma das funções do eu narrador

consiste em produzir esse espaço verbal (...); espaço que não é reflexo

de nada, mas a invenção da invenção que é o narrador, cujas

percepções (trasladadas para a imagem) o engendram. (Gullón,

1980:2)

Essa afirmação levanta várias implicações para o estudo do espaço: se o espaço

literário é o do texto, este não é um mero reflexo da realidade e não se acomoda ou se adequa

facilmente a um cotejamento com um espaço existente fora de seu âmbito e vigência,

tornando, por extensão, ineficazes estudos que seguem essa linha de leitura para ampliar as

interpretações do texto, o que não invalida, é claro, a curiosidade e a circulação que esses

estudos possam ter por outros motivos. Por outro lado, esclarece o crítico, é o discurso do

narrador que constrói o espaço verbal, ou ficcional, por meio das suas percepções expressas

em alusões, paralelismos e choques de imagens; com relação a esta última assertiva

poderíamos acrescentar que é o discurso do narrador que constrói o espaço da ficção em

contraste ou em oposição com o discurso dos outros personagens, num diálogo de diferentes

personalidades e percepções do qual emerge e avulta o ambiente em que elas se movem. Isso

é especialmente esclarecedor quando se leva em conta uma narrativa em primeira pessoa,

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como é o caso do Dom Casmurro; a voz que narra é uma voz diretamente “interessada” em

fazer prevalecer seu ponto de vista, mas as próprias lacunas de seu discurso “sabotam” o

direcionamento do olhar do leitor para a cumplicidade com a visão de Bentinho.

Esse espaço construído no discurso narrativo, que arrasta consigo as impurezas da

temporalidade (Gullón, 1980:5), as quais lhe dão consistência e sentidos e cuja percepção

depende da situação dos personagens, podem se converter em espaços-metáforas – como o

Labirinto ou a Biblioteca de Jorge Luis Borges –, em espaços formadores ou deformadores

dos personagens, ou em espaços de confinamento (Gullón, 1980:9) – como a prisão em O

beijo da mulher aranha, de Manuel Puig, que obriga os personagens a exercitarem a

imaginação e a memória para passarem o tempo e esquecerem seu isolamento por meio da

rememoração de enredos de filmes. Uma inteligente concepção do que seria o inferno, um

espaço de punição e confinamento por excelência, aparece no filme Amor além da vida, de

1998, com Robin Williams, em que um dos personagens, ao se suicidar, vai para um limbo

que é uma versão de sua própria casa em ruínas, ambiente construído pela imaginação

torturada da heroína. Outros exemplos de espaços de confinamento (simultaneamente

espaços-metáfora) são o quarto de Gregor Samsa em A metamorfose, de Kafka, a prisão da

personagem Miranda, em O colecionador, de John Fowles, ou o poço em que José é jogado

por seus irmãos no conhecido episódio bíblico.

Na literatura brasileira há poucos exemplos desses espaços de confinamento,

possivelmente em virtude de um compromisso, tácito, entre os escritores, de mapear o espaço

nacional, aberto, de amplo alcance, o que, decerto trouxe muitas vezes incoerência e fantasia

ao ambiente delineado nessa “literatura empenhada”, de acordo com Antonio Candido

(Candido, 1993:26). Exemplos desse espaço de confinamento, no entanto, podem ser

apreciados em livros autobiográficos escritos na prisão, como em Memórias do cárcere, de

Graciliano Ramos, o que sempre obriga um autor a dar seu testemunho do entorno ou, mais

fartamente encontrados em obras ambientadas em épocas de ditadura, como em Pessach, a

travessia, de Carlos Heitor Cony, onde personagens de origens e concepções de vida distintas

são obrigados a viver enclausurados em um espaço limitado por algum tempo, exercitando

uma convivência que dificilmente aconteceria em outras condições. O confinamento, em

qualquer situação ficcional, como mostram os citados O beijo da mulher aranha e A

metamorfose, propicia a concentração e a verticalização da ação, tanto pelo reduzido número

de personagens quanto pelo cenário exíguo compartilhado por eles. Esse tipo de espaço

ficcional interessa para as análises das obras dos dois romancistas, pois, no caso Três casas e

um rio (1958), de Dalcídio Jurandir, o próprio espaço da casa dos pais do protagonista pode se

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converter num espaço de confinamento, se o personagem não conseguir emancipar-se e

conseguir percorrer a distância que o separa de seu sonho de cidade; em romances de Milton

Hatoum, especialmente em Dois irmãos (2000a), o narrador e personagem principal da trama,

busca seu lugar na casa e na família à qual pertence, também tendo que vencer um

confinamento e um distanciamento, principalmente hierárquicos, a partir do quarto que lhe

pertence no fundo do quintal.

Ainda segundo Ricardo Gullón, o espaço ficcional também pode sofrer mutações ou

metamorfoses (Gullón, 1980: 10), em virtude da sobreposição do espaço real do personagem e

um espaço de fantasia, onde o personagem se refugia, vítima de alucinação ou em virtude da

simples imaginação ou devaneio, como acontece freqüentemente nos romances que compõem

a Saga do Extremo Norte, de Dalcídio Jurandir, com o personagem Alfredo projetando o

espaço almejado, a escola em Belém e tudo que ela representa, sobre seu espaço-refúgio – o

chalé familiar. Num espaço ficcional onde tudo é possível, inclusive sua volatilização em

virtude da situação instável do personagem (Gullón, 1980:10), podem ressoar vários níveis de

significação: narrativo, simbólico, mítico, etc., o que enriquece e amplia as possibilidades de

leitura das obras literárias. É dessa forma que o sertão, em Grande sertão: veredas, possui

muitas referências reais do espaço físico ao qual se remete, mas sobre essas, ou atravessando-

as, há vários outros níveis de sentido nessa ambientação ficcional, conforme a análise de

Antonio Candido no ensaio “O homem dos avessos” (Candido, 1964). Por outro lado, o

próprio personagem pode se converter em seu esconderijo, se em seu devaneio consegue

evadir-se ou transformar, pelo menos mentalmente, as condições de seu ambiente: “Ninguém

me vê mudar. Mas quem me vê? Eu sou meu esconderijo.” (Joë Bousquet, citado por

Bachelard, 1978:254). É assim que Alfredo, obcecado pela viagem para Belém, utiliza um

carocinho de uma fruta, o tucumã, como objeto mágico, um talismã, num jogo capaz de

restaurar a paz, trazer de volta a irmã morta e recolocar todas as coisas em seus lugares no

romance Três casas e um rio.

É importante mencionar duas importantes categorias utilizadas por Ricardo Gullón

para representar a trajetória do herói romanesco rumo a sua emancipação como pessoa: o

espaço-refúgio – a morada familiar, o abrigo protetor sob o qual o personagem vive sua

infância e onde se prepara para enfrentar o mundo, e o espaço-incógnita ou espaço-vertigem –

o mundo amplo e desconhecido, espaço onde, necessariamente, se dará o ritual de passagem

do herói para a vida adulta (Gullón, 1980:18). Ricardo Gullón retoma nesse trecho de seu

trabalho expressões utilizadas por Gerard Genette em seu ensaio sobre livro de Georges

Matoré (Genette, 1972:100), que indicam o deslocamento do personagem do espaço

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consolador para o desconhecido inquietante. Trata-se, assim, o romance como a narração do

percurso do herói em sua travessia do espaço-refúgio rumo ao espaço-incógnita,

especialmente quando os protagonistas são heróis em pleno processo de formação, jovens que

devem emancipar-se, realizando sua iniciação na vida adulta. É a própria definição do

processo romanesco tal como Lukács o expressa:

O processo segundo o qual foi concebida a forma interna do romance

é a peregrinação do indivíduo problemático rumo a si mesmo, o

caminho desde o opaco cativeiro na realidade simplesmente existente,

em si heterogênea e vazia de sentido para o indivíduo, rumo ao

autoconhecimento. (Lukács, 2000:82)

Essa peregrinação – travessia –, nas condições em que acontece no romance de

Dalcídio Jurandir, por exemplo, forçará o herói a movimentar-se temporal e espacialmente, a

deslocar-se rumo à cidade grande a fim de completar sua trajetória e cumprir sua própria via

crucis, obrigando-o, simultaneamente, a desvelar-se e a revelar a sua percepção do entorno.

Neste ponto dessa reflexão sobre as possibilidades que o ambiente ficcional oferece, é

oportuno comentar a obra O espaço humano, de Mariano Iberico (1969). Esse livro, que

estuda o espaço sob a ótica da filosofia, busca mapear os vários tipos de ambiente, partindo do

pressuposto que o tempo está suficientemente estudado, mas seu contraponto espacial, ainda

que importante para compreender a existência humana e as transformações operadas pelo

homem em seu entorno, carece de uma visão mais profunda. Mariano Iberico analisa quatro

tipos de espaço humano: o matemático, o perceptivo, o mítico e o onírico. Para a discussão do

espaço na literatura, importa especialmente o espaço perceptivo, aquela característica que esse

elemento tem, na ficção, de responder aos estados de espírito dos personagens, mostrando um

princípio de adesão do mundo físico aos seres humanos, como acontece em Grande sertão:

Veredas, segundo Antonio Candido (Candido, 1964: 126).

Um trabalho que também aborda a questão do espaço é “Ethos, corpo e entorno:

sentido ético da conformação do espaço em Der Zauberberg e Grande sertão: veredas”, de

Paulo Soethe, em que o autor, como diz o próprio título, analisa as várias semelhanças e

diferenças entre as obras de Thomas Mann e Guimarães Rosa e a concepção ética da

configuração do espaço engendrado nesses romances. Propondo-se a abordar não só as

especificidades de cada obra, mas também emitir juízos sobre os problemas que ambas

levantam (Soethe, 1999:12), o autor busca delimitar o conceito de seu objeto de estudo,

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contribuindo de maneira efetiva para futuras análises da conformação espacial em narrativas,

buscando estabelecer o sentido ético-filosófico que essa categoria assume nos romances

analisados.

A obra Dicionário de lugares imaginários (2003), de Alberto Manguel e G. Gianni,

em tradução recente, demonstra como a literatura tem o poder de arquitetar lugares fictícios

com força e coerência tais que permanecem em nossa imaginação, pelo menos como

possibilidade e objeto de devaneio, muito depois da experiência de leitura dos livros que os

originaram. Exemplos desse poder e dessa permanência dos lugares imaginários são o País

das Maravilhas – onde o maravilhoso é quase lugar-comum, o país de Oz – onde o mágico, e

seu truque, refugia-se da ilusão criada por ele próprio, Macondo – essa cidade mítica de

Gabriel Garcia Marques, onde tudo pode acontecer e, freqüentemente, acontece, entre vários

outros exemplos da literatura mundial. Na literatura brasileira, também citados no livro de

Manguel e Gianni, há o Sítio do Picapau Amarelo, genial criação de Monteiro Lobato, e o

lugar de evasão almejado pelo poeta Manuel Bandeira, Pasárgada. Os dois últimos exemplos,

entre outros da literatura brasileira, foram inseridos na edição brasileira pelo editor local.

Muitos exemplos de lugares imaginários referem-se a ilhas, como em As aventuras

de Robson Crusoé, de Daniel Defoe, em que o isolamento também é uma projeção da

aventura solitária que é a leitura de um romance, assim como da inacessibilidade do próprio

personagem, mas também demonstra que, mesmo confinado, o homem pode adquirir uma

incomensurável experiência ao interagir com seu ambiente (Lins, 1990: 210). Um romance

que coloca em colisão espaço e tempo, de forma bastante singular, é o romance de Umberto

Eco A ilha do dia anterior, em que o personagem, isolado em um navio abandonado em uma

baía, sem saber nadar, vê à sua frente uma ilha que está virtualmente no dia anterior, já que

entre esses dois lugares está a linha que divide as datas e busca, num improvável duplo, um

gêmeo, a saída para o seu cárcere peculiar; esse é um caso raro de isolamento tanto espacial

quanto temporal. Um bom exemplo de insularidade no centro do conflito narrativo na

literatura brasileira é o romance infanto-juvenil A ilha perdida, de Maria José Dupré, em que

o personagem Simão, isolado em uma ilha quase inacessível – quase porque dois garotos

conseguem alcançá-la, causando o conflito que sustenta a narrativa –, molda o espaço de

modo a adequá-lo ao modo de vida que escolheu, o que o torna praticamente onipotente, pelo

seu conhecimento irrestrito do lugar, e onipresente, pela rede de vigilantes que ele monta.

Desse modo, o personagem que se isola traça em torno de si aquele círculo mágico de que fala

Gullón (1980:27), dentro do qual ele se acha protegido e estabelece uma relação especial com

o mundo que o cerca. No entanto, como veremos ao analisar a infância do herói de Dalcídio

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Jurandir, os personagens não precisam, necessariamente, isolar-se em algum lugar para

esconder-se de algo; a própria imaginação pode transportar, com seu poder imensurável,

aquele que se camufla. Como curiosidade, pode-se citar como caso extremo de isolamento

pela camuflagem, já com outro tipo de configuração, o do anti-herói do romance Perfume, de

Patrick Suskind; nesse romance, o personagem, nascido sem os cheiros naturais do corpo e

com talento especial para fabricar perfumes, transforma-se, desse modo, em uma base perfeita

para os odores que ele cria, como disfarce ou para chamar a atenção sobre si, podendo

transitar tranqüilamente em busca de seu objeto de desejo.

Além desse poder de fixar e solidificar, pela leitura, lugares inexistentes, a literatura

também tem o poder de transfigurar lugares reais ao reapresentá-los ficcionalmente,

atribuindo-lhes características de lugares quase míticos, de tão distantes da realidade que lhes

deu ensejo. Esse é o aspecto analisado por Neide Gondim em A invenção da Amazônia

(1994), com fartos exemplos de como a imaginação européia, por meio de viajantes e

cronistas que percorreram a Amazônia, além da ficção, construiu uma imagem da Amazônia

que pouco ou nada tem a ver com a real complexidade da região.

Considerando a importância e o pioneirismo desse trabalho para a interpretação da

Amazônia literária, a obra de Neide Gondim será analisada mais detidamente no segundo

capítulo desta tese, dedicado à análise de relatos de viajantes e ficcionistas sobre a Amazônia.

Apenas antecipando ligeiramente o assunto, pode-se dizer que o caso dos viajantes-cronistas e

dos ficcionistas analisados por Neide Gondim é bem o que descreve Franco Moretti (2003),

auxiliando-se de Paul Ricoeur (1983), ao analisar as narrativas daqueles que cruzam as

fronteiras entre dois mundos muito diferentes e tentam conter o estranhamento que o espaço

lhes causa recorrendo às metáforas (que abundam nesse tipo de relato): “Apenas as metáforas

(...) podem ao mesmo tempo expressar o desconhecido que devemos enfrentar e, contudo,

também contê-lo.” (Moretti, 2003:57). A essa atitude de nomear o novo, contendo-o por meio

da metáfora, amenizando seus efeitos sobre a percepção, mas também avaliando-o, poderia

ser estendida a afirmação de Juan Ramon: “Mata-se o fantasma com seu nome” (citado por

Gullón, 1980:11). Em geral, quando uma fronteira entre dois mundos é claramente cruzada,

como em A selva (1930), do escritor português Ferreira de Castro, narrador e protagonista

armar-se-ão de muitas metáforas e imagens para que possam entender esse “novo mundo”,

precisando também tornar-se fortes para não sucumbir aos efeitos devastadores sobre seus

sentidos, como veremos no segundo capítulo.

O trabalho de Franco Moretti, Atlas do romance europeu 1800-1900 (2003), também

aborda, como vimos acima, tangencialmente, o problema do cruzamento de fronteiras e o

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impacto que isso ocasiona no discurso narrativo, especialmente nos romances históricos do

século XIX. A proposta do estudo realizado por esse autor é, partindo de mapas literários

(aqueles que as narrativas constroem a partir de mapas reais), investigar de que maneira um

certo tipo de espaço engendra e proporciona a oportunidade do surgimento de determinadas

narrativas, e não outras, ou seja, como o espaço da ação age sobre o conteúdo desta. Com base

nessa tese, o autor analisa a configuração espacial apresentada no que ele chama de

“romances coloniais”, muitos dos quais tinham a África como cenário, e em romances de

Dickens, Balzac e outros escritores do período estudado. Sobre Balzac, Moretti faz a

interessante descoberta de que, ao invés de reduzir a complexidade da cidade (e da sociedade)

a pares binários, ou seja, ricos e pobres, nobres ou burgueses, esse escritor introduziu a figura

de um mediador, uma terceira figura (Moretti, 2003:113-120), que se move entre os vários

segmentos sociais e seus espaços respectivos, criando condições para a ficcionalização da

intrincada teia de relações que a cidade grande possibilita. O personagem que desempenha o

papel de mediador é um recurso importante para o romance contemporâneo, e será produtivo

investigar sua configuração nas obras dos dois autores a serem estudados aqui.

Um trabalho que também fornece muitos subsídios para o estudo do espaço,

combinando e contrastando dois campos de investigação, a Psicanálise, à qual o autor critica

freqüentemente por esta ver em toda imagem irrupções de monstruosidades sexuais

(Bachelard, 1978: 241, 306), e a Fenomenologia, é A poética do espaço (1978), de Gaston

Bachelard. O filósofo propõe-se a investigar as imagens poéticas de espaços amigáveis,

protetores, como a casa, o ninho, a concha, o armário e a cabana, ou seja, os espaços que

atraem os poetas e suscitam devaneios poéticos (Bachelard, 1978: 196). Dessa maneira,

Bachelard confere expressivo valor à casa como símbolo da intimidade do ser humano,

afirmando que o espaço retém o tempo comprimido, o que implica que o espaço é mais

urgente do que o tempo quando se pretende localizar as lembranças e os sonhos (Bachelard,

1978: 203). Na concepção do autor, o espaço poético, ao afluir no texto, expande-se e se

estende para fora do eu lírico, em um intenso diálogo entre o exterior e o interior (Bachelard,

1978: 328), em imagens expressivas que ligam estreitamente o espaço e a memória ou o

tempo. Em uma prosa que se abandona, freqüentemente, à corrente dos textos poéticos cujas

imagens analisa, Bachelard demonstra através de vários exemplos que “uma simples imagem,

se for nova, abre um mundo” (1978: 285), contribuindo de maneira decisiva para a

interpretação da configuração do espaço na literatura.

Por último, é necessário mencionar também o interessante trabalho de Margaret

Wertheim, que empreende um longo percurso de levantamento e análise das mutações das

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concepções de espaço de acordo com as mudanças históricas que as comunidades sofreram.

Trata-se de Uma história do espaço de Dante à Internet, publicado em 1999 e traduzido em

2001. A importância maior dessa obra para o trabalho em curso é demonstrar que, no plano da

realidade vivida, os mundos podem, virtualmente, “desaparecer”, pois a percepção que as

sociedades têm do espaço e do lugar que ocupam nele pode mudar radicalmente, conforme a

autora exemplifica com a concepção de mundo medieval (Wertheim, 2001:222), articulando e

vinculando a passagem do tempo à concepção de espaço. Novamente, ratifica-se a idéia de

que, mais do que uma existência independente do espaço “real”, o que importa é que existe e

circula uma certa concepção de mundo, que flutua de acordo a história das comunidades e

isso se projeta no texto literário, o que pode ser verificado e analisado por meio do discurso

dos personagens.

Pela própria escolha do tema chave para esta tese, é necessário esclarecer que os

romances selecionados não podem ser analisados como romances de espaço, no sentido que

Wolfgang Kayser (1968) utiliza a expressão, já que, nesse tipo de narrativa, o elemento

estudado teria primazia sobre os demais, nem como romances urbanos, como Albert

Thibaudet (1938) designou aquelas narrativas em que as cidades, pela força de sua

configuração, apresentam-se como personagens principais. Nos romances dos dois autores

escolhidos o espaço é uma categoria que adquire importância para que se possa desvelar os

sentidos que os textos sugerem, estando plenamente integrado nas narrativas, mas não chega a

se configurar como o aspecto determinante em sua composição, pelo menos não no sentido

que o Naturalismo utilizou deliberadamente o meio.

3. Espaço, personagens e outros habitantes da narrativa

Veja, meu filho, o tempo aqui se transforma em espaço.

Richard Wagner7

Um outro aspecto do estudo do espaço na narrativa é a impossibilidade de se

proceder a uma análise desse elemento isoladamente. Vários autores já apontaram tal

dificuldade, o que impõe um exame mais demorado da questão.

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Já é um consenso nos estudos críticos dedicados à literatura que os elementos

essenciais de toda narrativa podem ser reduzidos aos personagens (cujo grupo pode ou não

incluir, num sentido estrito, um outro elemento importante, o narrador), a ação

desempenhada por eles, e o tempo e o espaço onde se desenrolam essas ações, além do foco

narrativo (Aguiar e Silva, 1979: 234).

Esses elementos estruturam-se num todo mais ou menos compacto, dependendo da

habilidade de cada autor se o entrelaçamento dos vários fios da narrativa será firme ou

esgarçado. Só artificialmente e por motivos didáticos essas várias faces da narrativa podem

ser separadas (Lins, 1976: 63), ou seja, a própria coesão do romance indica a necessidade de

analisar o espaço como elemento de um todo (Gullón, 1980: 21) cujos componentes estão em

constante interação e cujos sentidos também dependem dessas trocas. Esses elementos

concorrem, cada um em sua função específica, e grau de importância que pode variar ao longo

da trama, para a plena realização da proposta da narrativa. Desse modo, as relações do espaço

com o narrador, o tempo e os personagens no universo ficcional importam mais que a

consideração isolada de cada um destes elementos.

Contando a trajetória de algumas poucas personagens, situadas em tempo e local bem

determinados, o mundo ficcional é ontologicamente mais pobre e possui limites mais estreitos

que a realidade (Eco, 1999: 91), ou seja, tudo o que há para saber sobre o mundo construído

pelo discurso romanesco está contido na narrativa, ainda que muitas questões suscitadas por

grandes romances nunca possam ser solucionadas justamente por esse “fechamento”.

Aparentemente paradoxal, a afirmação anterior tem a ver com o fato que o texto ficcional

complexo não fornece as respostas a todas as questões que suscita, e as respostas hão de variar

de acordo com as leituras e os leitores ao longo do tempo, o que leva Umberto Eco a chamar

essas obras de “abertas”. O que caracterizaria a obra aberta, segundo Eco (Eco, 1986: IX-XI),

é a solicitação, pela própria obra, por meio do autor-modelo, que é uma parte do conjunto, de

uma cooperação ativa por parte do leitor, que é chamado a completar lacunas, preencher

vazios, utilizar-se de sua enciclopédia pessoal que o ajudará a interpretar o texto. Dessa

perspectiva, a narrativa pode ser mais ou menos elíptica, dependendo do tipo de leitor a que se

dirige (Eco, 1999).

A narrativa, para realizar-se de maneira plena, busca, necessariamente, criar esse

mundo ficcional – independentemente da realidade que o cerca, transfigurando-a, ou mesmo

desfigurando-a, ainda que referências a ela sejam abundantes no texto –, como um todo

7 Citado por Moretti, 2003:14, obra citada.

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coerente, composto segundo uma lógica interna: a verossimilhança. No entanto, nos

procedimentos da análise crítica com vistas à elaboração de sentidos para o texto - cujo

objetivo é não só desvelar a complexidade desse mundo artificialmente criado, mas também

avaliar como se relacionam os vários elementos na complexa arquitetura de cada obra – , é

possível a separação desses elementos constitutivos da narrativa para que se possa entender o

tratamento concedido a cada um e qual sua funcionalidade e importância para o todo (Lins,

1976: 64 e Dimas, 1994: 5). Ricardo Gullón (1980: 21) lembra que há a

(...) exigência de entender o espaço como parte de um conjunto que

lhe dá sentido. Sua relação com o tempo, com os personagens, com o

narrador, com o leitor, e a deles com ele, importa mais que a

consideração isolada de cada um destes elementos. Isto não exclui a

necessidade de acentuar, ou de projetar o foco de luz, sobre o que em

cada momento convém destacar.

Outro aspecto da narrativa a reforçar o entrelaçamento de seus vários componentes é

o fato de que o espaço age tanto sobre o estilo como sobre o enredo, de acordo com Franco

Moretti (2003: 52-8). Ou seja, se determinados espaços só comportam determinados tipos de

narrativas e não outras, restringindo também o tipo de personagens possíveis ali, essa área de

influência também se estende para a linguagem a ser utilizada. Moretti cita, especificamente,

a recorrência de certos personagens, situações e metáforas ou imagens nos romances

históricos de Walter Scott, neste caso diretamente ligados às fronteiras nacionais e seu

cruzamento, e nos romances coloniais de Júlio Verne e Joseph Conrad, cujo cenário é a África

e têm na viagem, visando o desbravamento, o elemento fulcral (Moretti, 2003: 69).

Conforme Flávio R. Kothe, a narrativa é um sistema que, quase sempre, tem por

dominante algum tipo de herói, elemento que é o princípio de organização desse texto e

estratégico para entender o funcionamento do conjunto (Kothe, 1985: 7). No entanto, esse

herói, seja considerado um personagem plano ou esférico, simples ou complexo, situa-se de

alguma maneira em relação ao espaço e ao tempo em que está inserido, e o enredo em que ele

se move é narrado a partir de determinado ponto de vista, que pode ser o dele, o de outro

personagem ou, ainda, de um narrador que está à parte desse mundo. Esse herói pode projetar

sua visão de mundo no espaço que o cerca, viver inserido em um tempo particular, interior,

psicológico, apresentar os fatos narrados de ponto de vista próprio.

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Compreendendo, assim, que cada elemento componente do conjunto projeta-se e age

sobre essa teia, tessitura, que é o texto, torna-se possível analisar o tratamento de um dos

elementos, como o espaço, por exemplo, num determinado mundo ficcional, projetando-o na

narrativa, isto é, considerando-o como parte desse todo e sem esquecer que seus sentidos

sempre dependem do modo pelo qual ele foi posicionado nas relações que se estabelecem

entre os diversos elementos.

3.1 Espaço e tempo: aproximações

Nos dicionários, as definições de espaço vão desde a simples medida (ou distância)

entre dois pontos quaisquer até englobarem a extensão de todo o universo, incluindo tudo o

que existe (Houaiss & Villar, 2001: 1221) ou, ainda, “uma extensão tridimensional em que os

objetos ocupam posições, podendo-se também pensá-lo sem referência aos objetos e então ele

se chamará espaço absoluto” (Gullón, 1980:1). Porém, para além dessas definições tão amplas

de espaço que o tornam quase abstrato, absoluto, talvez infinito – ou finito, como pregam

correntes mais recentes da física (Luminet et al, 2003), o que interessa para um estudo

literário como este é aquele ambiente que o ser humano e seus equivalentes ficcionais, por seu

poder de transformação, transmutam em espaço significativo, habitável e seguro, em sua

busca ancestral por um sentido de lugar, segundo a expressão de W. Eckardt em sua análise

da crise das cidades (Eckardt, 1975), o que os impulsiona a imprimir uma identidade no

mundo que os cerca. Esse espaço seguro, devidamente compreendido e domado em abrigo ou

morada protetora, pode ser, por conseguinte, um reduto da ética, no sentido antigo da palavra

ethos apontado por Paulo Soethe (1999: 16), seguindo a orientação do filósofo Henrique

Cláudio L. Vaz (1993).

Ao transformá-lo, adaptá-lo a suas necessidades, os seres humanos imprimem-lhe

sentidos, impregnam de memória, afetividade, história, os objetos, as casas, os caminhos, as

cidades. Entendido dessa forma, o espaço torna-se um texto em que estão disseminados

indícios da concepção de mundo das pessoas que o ocuparam ao longo do tempo. O espaço

deixa de ser abstrato e torna-se concreto, palpável, refletindo os seres que abriga e sendo alvo

da projeção de seus medos, obsessões, terrores, paixões e rotinas. Como implicação dessa

concretude do espaço, percebe-se que esse elemento está intrinsecamente ligado a um outro

elemento importante para os estudos da narrativa – o tempo, já que sem as marcas temporais

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“(...) o espaço careceria de elementos distinguíveis”, de acordo com Ricardo Gullón (Gullón,

1980:1), ou seja, não estaria carregado de lembranças, paixões, esperanças e memórias de

seus ocupantes. Dessa forma, o espaço na ficção é um invólucro que acumula os sinais do

tempo, que se expande ou se contrai de acordo com as oscilações das percepções dos

personagens (Gullón, 1980: 33). Como veremos em um próximo item, a relação espaço-

tempo é tão estreita que pode determinar a conformação do próprio romance, sendo que

ambos os elementos têm que, necessariamente, estar em interação harmoniosa com os outros

elementos da narrativa a fim de que esta se realize plenamente.

O espaço mais despojado de qualquer significado humano parece ser a paisagem

natural, uma floresta intocada, por exemplo, virgem de rastros do contato com os homens que,

invariavelmente, deixam marcas por onde passam, alteram características físicas, imprimem

significados ao seu entorno. Por outro lado, para a Geografia, ciência espacial por natureza e

objetivos, de acordo com Milton Santos (1997:83),

A paisagem é o conjunto de formas que, num dado momento,

exprimem as heranças que representam as sucessivas relações

localizadas entre homem e natureza. O espaço são essas formas mais a

vida que as anima.

Nesse sentido, a paisagem pode se configurar, por exemplo, como as ruínas de uma

civilização desaparecida, e o espaço seria, por outro lado, uma cidade, uma casa, ou um

determinado cômodo, vivos, animados pela presença e interação de seres humanos, os quais

estão em relação constante com o entorno. Ainda recorrendo a Milton Santos (1987: 61),

pode-se dizer que, mesmo o espaço desconhecido é paulatinamente alvo de perguntas pelo

homem que visa ocupá-lo no intuito de compreender suas nuanças, apreender seu

funcionamento, o que logo resulta em troca e conhecimento, ainda que fragmentário, entre o

lugar e seus habitantes, ou seja, o homem transforma a paisagem, imprimindo-lhe sentidos,

transformando-a em espaço social:

Quando o homem se defronta com um espaço que não ajudou a criar,

cuja história desconhece, cuja memória lhe é estranha, esse lugar é a

sede de uma vigorosa alienação. Mas o homem, um ser dotado de

sensibilidade, busca reaprender o que nunca lhe foi ensinado, e vai

pouco a pouco substituindo a sua ignorância do entorno pelo

conhecimento, ainda que fragmentário. O entorno vivido é o lugar de

uma troca, matriz de um processo intelectual. (Santos, 1987: 61)

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Na ficção, no entanto, quando o espaço aflui à narrativa já perdeu qualquer aspecto

abstrato da condição de “paisagem” e está tocado de intencionalidade, impregnado de

memória e sentido – de tempo. Ou seja,

“(...) o espaço abstrato, quando aparecer no romance, será tangível,

reconhecível, identificável em sua forma e em seu sentido através e na

palavra que o cria. O espaço puro simplesmente não existe. Para ser

inteligível (...), há de arrastar as impurezas que lhe conferem

existência, e, sobretudo, essa impregnação de temporalidade que o

humaniza.” (Ricardo Gullón, 1980:5).

É possível que esse espaço intangível, desconhecido, espaço-incógnita (Gullón,

1980:18), apareça na narrativa apenas para sublinhar a distância que o separa daquele

ambiente que está conhecido e dominado, ressaltando o receio ou o medo que causa, como,

por exemplo, a floresta em torno da cidade de Manaus em Relato de um certo Oriente (1989)

e Dois irmãos (2000a), de Milton Hatoum. Mesmo assim, esse espaço incógnito está contido

pelo discurso esclarecedor do personagem-narrador: “A floresta: é sobrevoar, admirar,

assombrar-se e desistir.” (Hatoum, 2000a: 166). Neste caso, esse espaço exterior, fronteiriço,

é percebido em bloco, impenetrável como uma fortaleza, rodeando (isolando, ameaçando)

Manaus e seus habitantes, demonstrando o divórcio entre a cidade, que é sempre uma busca

de ordem e de controle sobre a natureza, e a floresta, um caos que não se oferece

impunemente ao ser humano que nele se aventura sem os necessários conhecimentos.

Paulo Soethe (2002:33), em artigo sobre a conformação do espaço em Grande

sertão: veredas e A montanha mágica, entende o espaço em literatura como

(...) não a dimensão “concreta do texto”, nem a representação

imitativa e pretensamente neutra do espaço físico tal como percebido

no mundo real, mas sim o discurso sobre a percepção do entorno na

situação específica de sujeitos ficcionais, e sobre o sentido atribuído a

essa percepção, no contexto das relações dos personagens, nas obras

em particular.

Essa concepção representa um grande esforço no sentido de delimitar o objeto

espaço na narrativa, o que, como esse autor demonstra, tem sido alvo de controvérsias. Por

outro lado, Ricardo Gullón (1980:3) mostra como a percepção do espaço é importante para a

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31

construção dos sentidos do espaço no romance: “(...) (o espaço) está repleto de memórias e

esperanças, o que de alguma maneira permite personificá-lo, senti-lo como uma realidade cuja

existência varia segundo quem a observa ou a vive”. Para os fins da análise aqui proposta,

considera-se que o espaço literário seja não o próprio discurso, mas aquele ambiente

construído pelo discurso da percepção que os personagens possuem do entorno, porque o

discurso é apenas o meio em que se arquitetam e encerram as imagens do espaço e expressa o

desejo do personagem de evadir-se ou sobrepujar as limitações espácio-sociais que o

confinam, como é o caso do narrador do romance Dois irmãos (Milton Hatoum, 2000a) e do

protagonista de Três casas e um rio (Jurandir, 1979). E, nesse caso, esse discurso que

constitui o espaço tanto pode ser o do narrador como o dos outros personagens, já que a

posição do narrador é importante, como guia autorizado do leitor, mas não determinante para

uma análise dos sentidos do espaço no romance, haja vista o contraste que pode se estabelecer

entre o que ele declara e o que os outros personagens sentem ou dizem. Por sinal, a posição de

fala é altamente significativa para a interpretação dos sentidos do espaço, já que, dependendo

de onde se vê, ou de quem vê, muda radicalmente a maneira como se vê, conforme

constataremos nos romances a serem estudados. A perspectiva narrativa torna-se, deste modo,

uma das categorias decisivas na representação do espaço (Reis & Lopes, 1991: 129),

condicionando os sentidos expressos, ainda que os próprios limites dessa visão – quem vê e

descreve não quer ou não pode abarcar tudo – abre lacunas e pontos de indeterminação para a

participação ativa do leitor.

Uma implicação mais evidente da concepção de espaço literário que aqui se assume é

a necessidade, para estudar e avaliar os sentidos dessa categoria da narrativa, de analisar o

discurso que constrói esse espaço, sempre em relação à percepção que os personagens

possuem e expressam de seu entorno, já que ao realizarem sua travessia, seu percurso de vida,

eles caminham rumo ao conhecimento de si mesmos, mas também do mundo à sua volta, ou

seja, a percepção da própria complexidade afeta a percepção do entorno, como avalia Alberto

Manguel em um dos ensaios de No bosque do espelho (Manguel, 2000: 32). Ao passo que os

personagens caminham, exploram e buscam, imprimem sentidos ao espaço.

Da forma como aqui se abstrai o espaço na narrativa, é clara a diferença em relação à

concepção do espaço expressa por Álvaro Lins: “Personagens em movimento num meio físico

e social: eis a ambiência do romance.” (Lins, 1956: 107). Nessa concepção, o espaço parece

existir a priori, para além dos personagens, como pano de fundo passivo, enquanto que para

os objetivos que se propõem aqui, como vimos antes, o espaço só existe a partir dos vários

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discursos que o constroem, o que equivale, pelo menos em parte, ao que Gullón afirma sobre

a percepção do entorno (Gullón, 1980:8):

Perceber o espaço é perceber seus rumores, seus movimentos, sua

vida: reconhecê-lo impregnado de temporalidade, de latências que

acaso estão sendo ocorrências em outra parte. (...) Pensando-o como

uma realidade e como uma força, abarca-se o que é e o que pode ser, o

que vemos (quase nada) e o que intuímos ou pensamos

(potencialmente tudo).

Quando o personagem se movimenta no espaço ficcional, devemos prestar especial

atenção não só ao que ele vê, mas também ao modo como ele vê, ou seja, que categoria

assume em sua escala de valores o entorno, incluindo os outros personagens, que podem

também, eventualmente, tornar-se parte do espaço. O movimento dos personagens mostra não

só um certo modo de ver e ocupar o ambiente, mas também o que é privilegiado pela

concepção de mundo que a narrativa cria, o que aparece em primeiro plano e o que relegado

ao pano de fundo – as alternâncias de foco que podem ser altamente esclarecedoras. Por seu

turno, o narrador é também um viajante curioso. Seu olhar “erra” pelos outros personagens e

pelos ambientes onde eles se movem, compondo-os, construindo-os e construindo sentidos

para suas ações e desejos.

Em todo romance há, em algum momento, a passagem do pequeno espaço, o espaço

familiar ou espaço-refúgio – restrito e protetor, para o grande, o espaço-incógnita – amplo e

desconhecido (Gullón, 1980). Essa passagem é necessária para marcar e incorporar a

transformação e a travessia que todo ser humano precisa realizar em direção ao

esclarecimento, à ascensão social, ou simplesmente em busca da expansão de sua consciência

do mundo. Nessa trajetória – travessia – do herói solitário retratado no romance, é essencial

que haja uma possibilidade, mesmo ínfima, de realização dos desejos que o moveram, que o

estimularam a que realizasse o perigoso movimento rumo ao (auto) conhecimento, a fim de

que haja um motivo para o prosseguimento da trama e que uma tragédia não esteja,

necessariamente, anunciada no horizonte da narrativa.

Temístocles Linhares afirma que o romance só existe em função da curiosidade que

os seres humanos carregam consigo (Linhares, 1962: 143), sendo este um dos seus mais caros

segredos segundo esse autor. No entanto, mais do que a curiosidade, o que parece incomodar

o herói do romance e empurrá-lo para deslocamentos essenciais para sua formação e para a

plena realização de um enredo, é o inconformismo com sua situação num dado momento e o

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desejo de mudança. A curiosidade pode ser apenas passiva e controlada, mas o

inconformismo e o desejo podem se transformar em obsessão, estimulando o herói a sublimar

os limites impostos por seu espaço imediato, fisicamente ou por meio de um devaneio que o

desloca também no tempo, o que cria um atrito com o espaço em torno a ele e o conduz a um

conflito com os outros personagens da trama, estando no cerne mesmo da razão de ser do

romance. É também esse desejo obsedante que estimula e encoraja o herói a sair da proteção

do espaço-refúgio para enfrentar o desconhecido do espaço-incógnita (Gullón, 1980), ou o

impele a realizar a busca, elemento principal da trama romanesca, segundo Northrop Frye

(1973:185), ou, ainda, aquela ânsia do herói problemático por valores autênticos em um

mundo degradado que Lukács afirma ser o fio condutor da história contada pelo romance

(Lukács, 2000). Esse desejo obsedante e essa busca – idólatra ou demoníaca, dependendo do

ponto de vista, podem se transformar no próprio eixo em que a narrativa se apóia e se

justifica.

A importância do espaço para o estabelecimento dos sentidos de uma narrativa pode

ser exemplificada pelo encontro de Édipo e seu pai, Laio, ambos desconhecendo suas ligações

familiares, em uma encruzilhada. A conformação do espaço da ação, nesse caso extremo, é

altamente significativa, pois, sem que os dois personagens saibam, a vida de ambos mudará

radicalmente após esse encontro, e o espaço antecipa em sua própria configuração – a

encruzilhada implica a decisão por uma direção e a exclusão das alternativas e suas

possibilidades – a profunda divisão que esse acontecimento acarretará para essas vidas em

confronto; nessa encruzilhada de destinos intimamente ligados, onde se embatem forças

acima da compreensão dos heróis envolvidos, decide-se a queda de ambos, pai e filho, cada

qual a o seu modo – nem a ignorância de Édipo o salva da punição exemplar e da queda.

Neste sentido, o espaço pertence intrinsecamente à ação, está relacionado intimamente ao

enredo e o pathos da narrativa depende dele para se realizar plenamente. É dessa maneira que

aquele narrador que busca o tempo perdido, quase ao final de seu percurso descobre que é o

espaço que reúne os vestígios do passado:

(...) se a vida é errante, sedentária é a memória, e, embora

deambulemos sem trégua, nossas lembranças, fixas nos lugares que as

deixamos, continuam levando sua vida cotidiana (...). (Proust,

1983:209)

Se a exatidão é uma das seis propostas enfatizadas por Italo Calvino (2001), na

definição do tema o autor esclarece que faz parte dessa virtude da narrativa a “evocação de

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imagens visuais nítidas, incisivas, memoráveis”, que deve ser expressa na “linguagem mais

precisa possível” (Calvino, 2001: 71), e aí também o escritor italiano demonstra a importância

que o espaço possui no complexo tecido ficcional, não só para situar a ação em papel passivo,

mas como um participante ativo e significativo.

Com relação ao tempo, essa categoria que freqüentemente é alvo de estudos da

crítica literária, o filósofo e crítico literário Benedito Nunes inicia seu livro sobre o tema

citando a seguinte questão (Nunes, 1995:5), formulada por Thomas Mann, em A montanha

mágica: "Pode-se narrar o tempo, o próprio tempo, o tempo como tal e em si?" Como o

personagem do romance afirma, narrar o próprio tempo é impossível pois a narrativa

“preenche-o com a matéria dos acontecimentos” (Nunes, 1995:5), estabelece, poderíamos

acrescentar, uma relação essencial do tempo com os personagens e o espaço em que eles se

movem e vivem suas pequenas e grandes paixões. Na impossibilidade de narrá-lo

simplesmente, o tempo espacializa-se na narrativa, é retido pelos “mil alvéolos do espaço”

(Bachelard, 1978: 202), impregna, com suas impurezas, as coisas e os ambientes em que seres

ficcionais existem (Gullón, 1980: 5).

Se o romance tem por material básico, ou domínio específico, o tempo, numa

tentativa do ser humano de fugir ao efêmero e organizar o caos de sua existência, conforme

afirma Lúcia Miguel Pereira (1994: 287), vindo daí seu caráter de artefato inacabado,

imperfeito, sempre em devir, podemos apreendê-lo apenas por meio de seus sinais impressos

no espaço, incluindo aí as marcas dele nos seres humanos. Dessa maneira, sua volatilização

implica o fato de que ele se apresente de modo quase sempre implícito na narrativa (Nunes,

1995: 6), sendo que o espaço e o tempo convergem quando a substância espacial expressa

estados de ânimo e a tensão dos personagens (Gullón, 1980: 24).

Quando o personagem de Proust, no começo de Em busca do tempo perdido,

devaneia sobre um passado que quer recuperar, é o espaço (no caso, um componente dele, um

objeto) que suscita esse desejo, que desencadeia todo um processo de reconstrução de um

mundo perdido, pois que, sem seus vestígios inscritos no espaço, já que a memória trabalha

sobre imagens vividas, o passado está irremediavelmente distante e é irrecuperável. O

continuum do tempo interior é assim apreendido pelo romance, amparando-se firmemente nas

imagens inscritas no espaço, em suas impurezas temporais (Gullón, 1980: 5). É dessa maneira

que o personagem se apóia no que há à sua volta para saber primeiramente onde e só depois

em que momento está:

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Um homem que dorme mantém um círculo em torno de si o fio das

horas, a ordem dos anos e dos mundos. Ao acordar consulta-os

instintivamente e neles verifica em um segundo o ponto da terra em

que se acha, o tempo que decorreu até despertar (...). (Proust, 1998:

11)

Esse ser humano que desperta perde, momentaneamente, a consciência de quem é,

“(...) e não sabe porque perdeu o meio de ligar o lugar e o momento em que vive a todos os

outros lugares e momentos de sua existência anterior.” (Poulet, 1992: 14). Dessa maneira,

busca recuperar um tempo perdido nas brumas da memória, mas ancora-se em seus vestígios,

imagens, impurezas espácio-temporais: a casa familiar, os objetos íntimos, os caminhos e

lugares conhecidos, etc. Não é à toa, assim, que quem sofre de vertigem perca as noções de

espaço e tempo e, ao voltar a si, também busque saber primeiro onde está e não em que

momento está (Silva, 1985: 144). Isso parece indiciar que nessa obra de Proust, ainda que o

tempo pareça prevalecer pois é para o horizonte do passado que o personagem se dirige, o

espaço é essencial nesse processo de reconstrução do tempo perdido. Como diz Bachelard

(1978:203),

(...) é no espaço que encontramos os belos fósseis de uma duração

concretizados em longos estágios. (...) Mais urgente que a

determinação das datas é, para o conhecimento da intimidade, a

localização nos espaços da nossa intimidade.

A essa relação íntima entre espaço e tempo, em que ocorrem fusões “(...) dos indícios

espaciais e temporais num todo compreensivo e concreto”, Mikhail Bakhtin denomina

cronotopo (Bakhtin, 1998: 211). Segundo Bakhtin, o princípio condutor do cronotopo na

literatura é o tempo (Bakhtin, 1998: 212), mas o mesmo autor demonstra, em outro ensaio,

que é na natureza – no espaço – que o tempo se apresenta com mais clareza:

O tempo se revela acima de tudo na natureza: o movimento do sol, das

estrelas, o canto dos galos, os objetos sensoriais, visíveis das estações

do ano; tudo isso, em uma relação indissolúvel com os momentos da

vida humana (...). (Bakhtin, 2003:225)

É uma relação entre dois elementos fora da qual nada existe, que formam uma

espécie de campo onde seres e objetos têm que se posicionar, como assevera Ernest Cassirer

(1982: 67): “O espaço e o tempo fora dos quais nada de real pode ser construído”. Assim, se a

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passagem do tempo só pode ser apreendida por meio de seus vestígios no espaço, este, por sua

vez, destituído das marcas do tempo, não as naturais, mas as humanas, não possui

formalmente significado para a memória da sociedade, e isso o torna o desconhecido que

inquieta e estimula o desejo de modificação e apropriação.

Compreendida a narrativa, assim, como um conjunto cujos elementos estão sempre

em relação e movimento, pode-se analisar, no espaço, a impregnação de temporalidade, as

projeções e os reflexos dos sentimentos, paixões e conflitos dos personagens, as mudanças

físicas que simbolizam ou indiciam as psicológicas, as antecipações, os motivos associados ou

não às ações, a inserção de pistas verdadeiras ou falsas sobre o desenvolvimento da trama, a

própria distribuição espacial como divisão social. O discurso narrativo que cria o espaço da

ação, desse modo, assume funções ambivalentes: por um lado constrói um ambiente em que

há um desdobramento da ação, dirigindo a atenção do leitor a partir de determinada

perspectiva, e por outro lado simboliza determinados estados de ânimo, projeções,

proporcionando uma moldura de acabamento à ação (Bakhtin, 2003: 25). Como se vê, o

espaço é fundamental para o romance, pois incorpora as impurezas do tempo, registra as

experiências humanas, capta a matéria da memória, sendo que a narrativa transforma em texto

inteligível o que no ambiente ficcional apresenta-se fragmentado e disperso.

Um trecho do romance Ponte do galo, de 1971, de Dalcídio Jurandir, um dos autores

a ser analisado nesta tese, parece exatamente corroborar essa estreita relação entre os dois

elementos da narrativa, com o tempo sendo absorvido de maneira indestrutível pelo espaço,

no caso deste episódio, os objetos impregnados de memória e poesia, entre os quais se move o

personagem que rememora o passado:

Apanhou a almotolia, foi azeitando o prelinho, a máquina de costura,

ah velha almotolia! Objetos do chalé, agora em destaque, lhe

transmitiam um tempo que ignorava, o obscuro tempo guardado

dentro da almotolia a escorrer na memória. Via bem, só hoje: tudo isso

se impregnou do menino e de Mariinha e de Andreza. Pingando da

almotolia uma porção de horas que só agora reconhece como tempo.

Pelas travessas da parede, corriam osgas atrás da aranha e estas em

cima da estante de papel deixavam uma teia onde as outras horas se

aninhavam, imaginários brinquedos, uma luz só do chalé, aragens de

longe e ali secretas (...). (Jurandir, 1971:6)

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Também Milton Hatoum, o segundo objeto de análise, entrelaça tempo e espaço,

com o eu lírico lançando sobre eles seus devaneios e inquietações, em seu texto poético do

livro Amazonas: palavras e imagens de um rio entre ruínas (1979):

Que outro rio surgirá

Além da superfície

Deste rio feito deserto?

*

As portas do rio foram abertas

E vazaram peixes, caboclos, ubás.

Remar tornou-se verbo estático.

O tempo ancorou no raso

E o verde se decifrou.

Relacionado estreitamente ao tempo, marcado necessariamente pelas memórias dos

personagens que o habitam, visto de uma perspectiva determinada que pode lhe impingir

sentidos e pressupostos, o espaço pode, assim, ser visto e acentuado no conjunto da narrativa,

contribuindo para caracterizar personagens, antecipar a ação, indiciar acontecimentos que

podem estar se dando, simultaneamente, em outros ambientes, entre várias outras

interferências e posições possibilitadas por sua leitura.

Por todas essas considerações, podemos concluir, ainda que parcialmente, que a

análise da percepção do espaço que o discurso constrói é importantíssima, senão para o

desvelamento dos sentidos da tessitura romanesca, mas para a articulação de uma leitura

consistente da trama narrativa, pois alguns problemas colocados pela ficção só são possíveis

em certos lugares e não em outros (Moretti, 2003: 81), ou determinados lugares impõem

determinadas questões aos seus ocupantes, suscitando certos tipos de narrativas. Mudando a

configuração do espaço, mudam as narrativas, ou o tipo de conflito que elas apresentam.

De qualquer maneira, o espaço que se apresenta nos romances que serão analisados

nos próximos capítulos não tem a simples função de “enchimento” para proporcionar um

“efeito de real” (Barthes, 1984). Desse modo, nos romances a serem abordados, é basicamente

a posição espácio-social dos envolvidos que desencadeia a ação, a mola que os impulsiona a

buscar mudanças ou sentidos para suas vidas. No caso de Milton Hatoum, em Relato de um

certo oriente (1989), a narrativa acontece porque um personagem volta para tentar reconstituir

os sentidos de um tempo perdido por meio dos seus vestígios no espaço, enquanto no romance

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Dois irmãos (2000a), a narrativa é conduzida por um narrador interessado em descobrir seu

sentido de lugar na casa (e na família) em que nasceu, o que determina de onde esse

personagem vê o conflito e como se posiciona em face dele. Já na “Saga do Extremo Norte”,

de Dalcídio Jurandir, o que sustenta a trama ao longo de boa parte8 dos romances é o desejo

obsessivo de Alfredo, esse menino pobre, mulato, de deslocar-se para Belém, a fim de

estudar, ascender socialmente e conhecer o mundo. Nesse sentido, é significativo que os

personagens de Dalcídio Jurandir sejam em sua maioria interioranos que almejam a capital

como a solução de seus problemas e os de Milton Hatoum sejam todos da capital, ou a ela já

estão definitivamente ligados, o que torna as obras desses autores complementares no

mapeamento literário da Amazônia. Em todos os exemplos, se as perspectivas – as posições

espaciais de onde os protagonistas, ou os narradores, vêem o mundo ao seu redor – mudam, as

narrativas vão se transformar, obrigatoriamente, em outras completamente distintas.

4. As escolhas necessárias: retomando

Para os objetivos que se propõem aqui, tomamos por base a concepção do espaço

como aquele que é construído a partir dos vários discursos que sobre ele são pronunciados,

tanto do narrador quanto dos personagens, assim como do conflito resultante do choque das

diferentes visões, como se pôde ver anteriormente. A partir da constatação e da escolha de

perspectiva do objeto, cabe explicitar a maneira de aproximar-se dele e de destacar as

estratégias de análise.

Quanto ao primeiro movimento, para abordar o espaço na ficção é preciso selecionar,

no todo da narrativa, momentos significativos e de relevo do elemento em relação aos outros

– momentos em que o espaço irrompe em toda a sua força no tecido ficcional. Realizada essa

primeira aproximação, ainda descritiva, seletiva, o segundo movimento será de interpretação,

de busca de sentidos para a conformação do espaço de determinado modo, impregnado de

certa simbologia e portador de indícios que podem auxiliar o vislumbre do funcionamento do

conjunto. Ambos os movimentos implicam uma combinação de crítica temática e de crítica

textual no sentido em que chamam a atenção para a repetição e o desenvolvimento de certos

8 Dizemos boa parte porque em alguns, como Chove nos campos de Cachoeira (1941), freqüentemente o desenrolar da trama – tendo como centro a trajetória do personagem Alfredo – é retardado pelos desdobramentos paralelos, em que avultam outros personagens e seus diferentes conflitos. A partir do romance Belém do Grão

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temas e para as relações em dado momento entre o espaço e os demais elementos da narrativa,

além de ressaltar na obra os mecanismos que podem explicar seu funcionamento; isso não

exclui, no entanto, a relação de intertextualidade entre as obras dos autores estudados, além de

também ser necessário considerar o contexto histórico de construção das mesmas. A

intertextualidade aí não se processa entre os autores, mas no diálogo entre as obras de cada

autor; uma espécie de “intratextualidade” que acontece em ambas as séries de obras.

Como vimos, muitas são as contribuições para o estudo do espaço na narrativa de

ficção, tanto com ênfase na discussão dos aspectos teóricos da questão, como os citados

trabalhos de Antonio Dimas, Ricardo Gullón, Michel Butor, Umberto Eco, quanto de cunho

mais analítico, como vários artigos de Antonio Candido, a tese de Paulo Soethe, os livros de

Georges Poulet, Franco Moretti e Gaston Bachelard e, ainda aquelas, como o trabalho de

Osman Lins, que unem essas duas vertentes, constituindo-se como exemplo de excelência

para trabalhos na área. Ainda que outras categorias de análise possam ser acrescentadas ou

suprimidas, para a abordagem analítica a ser empreendida nos próximos capítulos cabe

ressaltar que a distinção feita por Ricardo Gullón (1980), acerca do espaço-refúgio e o espaço-

incógnita, será essencial para entender a travessia e a busca que os personagens dos romances

deverão realizar em sua trajetória, ou a passagem que o herói romanesco precisa realizar,

saindo de seu espaço familiar para um potencialmente perigoso espaço-vertigem em busca de

seu próprio lugar e formação. Por outro lado, a correlação funcional entre os ambientes e o

comportamento dos personagens, analisados por Antonio Candido (1972) em seu artigo sobre

L’Assomoir, auxiliará o entendimento de como a memória, os ânimos e os ressentimentos

projetam-se no espaço, tornando-o significativo, transformando-o em texto onde se inscreve o

tempo.

De Franco Moretti pode-se convocar sua concepção de que determinados espaços

proporcionam determinadas narrativas, e não outras, de certa forma condicionando a

construção da narrativa possível à sua ambientação, além de sua proposta de estudar a

maneira como os romances lêem e transfiguram mapas de cidades reais, simplificando-os ou

apropriando-se de sua complexidade. A contribuição de Osman Lins é inestimável, no sentido

em que demonstra como o espaço se transforma em ambientação em narrativas bem

elaboradas, explorando as possibilidades dos vários tipos que, segundo o autor, são possíveis

na ficção.

Pará (1960), com o personagem já em Belém, a trama assume outras feições e outros conflitos passam para o primeiro plano.

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Há que se considerar ainda que a conformação espacial que se apresenta na obra de

um determinado escritor dialoga, de alguma forma, tanto com as obras que a precederam

quanto com suas contemporâneas, podendo tanto aceitar as imagens recebidas como entrar em

conflito com elas (Lotman, 1978: 372-3). Tendo em vista esse diálogo, o segundo capítulo

desta tese tratará de uma “arqueologia” sumária de alguns dos mais importantes viajantes e

ficcionistas que se pronunciaram sobre a Amazônia.

Dessa maneira, a partir de todas essas contribuições analisadas sobre as concepções

do espaço e suas diferentes nuanças na ficção, torna-se possível, neste ponto, transformar em

questões os vários aspectos da leitura do ambiente para o desvelamento da trama narrativa.

Uma delas, talvez a mais importante, seja a que se refere ao espaço construído pelo discurso:

Qual é a percepção que os personagens têm do seu espaço?

A importância da questão pode ser facilmente percebida, especialmente se

considerarmos que o espaço é construído a partir dos discursos dos personagens, ou do

choque entre esses vários discursos. Decorrente dessa primeira questão, pode-se investigar de

que maneira o espaço, seja a capital ou o interior, a casa, a cidade, a floresta, ou a Amazônia,

enfim, transfigurados em espaços ficcionais nos romances estudados, irrompem no discurso e

proporcionam estímulos ou limites à ação e à busca – a travessia – que os personagens devem

realizar. Desdobrando, ainda, essa questão, poder-se-ia perguntar: como esse espaço criado se

relaciona com o real que lhe serviu de ponto de partida? Há um sistema de trocas entre os

dois? Uma das questões mais importantes para esta tese é estabelecer as semelhanças e as

diferenças na configuração ficcional do espaço amazônico nas obras de Milton Hatoum e

Dalcídio Jurandir. O fato de partilharem o mesmo espaço na ambientação de suas narrativas,

considerando, é claro, as distâncias amazônicas entre Manaus e Belém, e construírem suas

narrativas ao longo de boa parte do século 20, de uma maneira muito diferente das

concepções naturalistas ou regionalistas, já aponta vários aspectos a serem desvelados aqui.

Com a ligação estabelecida aqui entre esses dois autores e seus lugares de nascimento e ao

âmbito de um cenário ficcional – a Amazônia – não quer dizer que se considere isso como

uma marca a ferro, uma “denominação de origem controlada”, que seria um rótulo

desnecessário, assim como a expressão “autor brasileiro” também pode ser tomada como uma

“marca”. Isso quer dizer, simplesmente, que eles vêm de determinados lugares e estes se

tornaram componentes importantes de suas obras, fazem parte de suas criações ficcionais, de

suas preocupações estéticas, ainda que transfigurados em ambientação. Por último, mas não

menos importante, que caminhos esses autores confirmam ou apontam acerca da utilização do

espaço na ficção brasileira? Decorrente dessas questões, que pressupõem uma tradição

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literária e uma continuidade, pelos menos de temas e figuras, mas com diferentes abordagens

ao longo do tempo, é possível também questionar: por que, diferentemente da nordestina, a

literatura amazônica não conheceu um período áureo? São várias e importantes questões que

os capítulos seguintes, sem a ambição de fechar o discurso sobre elas, tentarão desvelar nos

bosques intrincados da ficção dos dois autores.

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II. A AMAZÔNIA COMO RELATO DE VIAJANTES E COMO FICÇÃO

Acontece que a Amazônia é uma metáfora do Novo

Mundo, do outro mundo, do lugar dos

deslumbramentos, exotismos, maravilhas.

Octavio Ianni

1. Uma breve panorâmica

Pois se esta Amazônia é de carne, suor e sangue, ela

também fora – e será ainda? – fenômeno, experiência de

fascinação, talvez medida, sobre a terra, do absoluto

infinito.

Michel Riaudel

Peter Burke, o conhecido historiador inglês, com várias obras traduzidas em

português, questiona, em artigo publicado no jornal Folha de S. Paulo, em 2001, o uso amplo

e irrestrito da palavra “invenção” em várias obras que buscam reinterpretar o passado,

minimizando as “restrições impostas pelo ambiente físico ou cultural” (Burke, 2001),

especialmente a partir da ampla circulação da obra A invenção da tradição, de Eric

Hobsbawm. Burke afirma que os autores dessas obras9 enfatizam “a criatividade humana,

especialmente a criatividade coletiva, a vontade das pessoas comuns de modificar tanto seus

entornos quanto suas identidades, imaginando-os de novas formas.” (Burke, 2001:11).

9 Peter Burke cita em seu artigo várias obras com a palavra invenção no título, tais como: L’Invention du Quotidien, L’Invention d’Athènes e The invention of Argentina, entre outros.

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Sabendo-se que “ninguém, mesmo no meio de uma revolução cultural, existe num vácuo

cultural” (Burke, 2001:11), esse historiador sugere que seria mais adequado usar o termo

“reconstrução” nesses casos, já que quem “inventa” uma tradição está apenas tentando “dar

novos usos a materiais antigos”, trabalhando, portanto, sobre dados existentes mas

arranjando-os de novas formas ou imprimindo-lhes novos sentidos. Trata-se aí não de uma

mera questão retórica de uso deste ou daquele termo, já que Peter Burke chama a atenção para

o fato de que, aspectos como aqueles analisados nos livros citados por ele, fazem parte de

uma “reconstrução deliberada” do passado e também de um processo mais amplo de

construção da identidade de um povo, da história de uma nação, ou pelo menos uma tentativa

de intervenção no processo. A partir dessa reflexão, poder-se-ia questionar que a palavra

“invenção” do título do livro importante e pioneiro de Neide Gondim sobre leituras que

viajantes e ficcionistas fizeram sobre a Amazônia, intitulado significativamente A invenção da

Amazônia (Gondim, 1994), bem poderia ser substituída pela “reconstrução” de Peter Burke, a

partir mesmo dos argumentos expostos pela autora ao longo de sua análise, já que “a invenção

da Amazônia se dá a partir da construção da Índia, fabricada pela historiografia greco-romana,

pelo relato dos peregrinos, viajantes e comerciantes” (Gondim, 1994:9).

De qualquer maneira, “inventada”, “fabricada” ou, simplesmente, “reconstruída”, é

possível afirmar que a Amazônia também teve sua era de “mistério, (configurada como) uma

terra prodigiosa que simbolizava a busca nostálgica de uma origem perdida” (Hatoum, 2001)

e passou por um processo de reconhecimento e de estabelecimento de um discurso que

pudesse dar conta desse Outro espaço, como aconteceu com o Oriente, segundo a tese

defendida por Edward Said em Orientalismo (Said, 2001). Em suma, ela passou por um

processo de “descoberta”, ou de várias “redescobertas”, que se traduz em um discurso que se

desdobra em muitos gêneros, como Marlyse Meyer afirma para o Brasil como um todo

(Meyer, 2001).

2. Unidades temáticas na diversidade

Enigmática e fascinante, a região – e sua história feita de ciclos de expansão

desmedida e efêmera e descontinuidades – suscitou o aparecimento e a recorrência de

diversos temas que foram explorados intensamente por viajantes e ficcionistas, especialmente

se pensarmos nos surtos de interesse que a região amazônica despertou por ocasião da

exportação maciça da borracha, cujo auge se estende entre 1852 e 1910, com posterior

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estagnação, o breve período de revitalização da importância do produto por ocasião da II

Grande Guerra, até a atual supervalorização da Amazônia como área de maior biodiversidade

do planeta e determinante para a estabilidade do clima global.

Como se verá mais adiante, o primeiro período citado foi tão importante para a

região que gerou uma espécie de modernidade na selva, conforme Francisco Foot Hardman

(Hardman, 1991), ou uma belle époque amazônica, no dizer de Ana Maria Daou (Daou,

2000), o que, pelos grandes contrastes sociais e injustiças que suscitou, rendeu uma vasta

ficção sobre o período. Esse também foi um período de intensas transformações urbanas nas

duas grandes cidades da região, Manaus, conforme mostra Otoni Moreira de Mesquita

(Mesquita, 1997), e Belém, de acordo com Ana Maria Daou (Daou, 2000), criando espaços

diferenciados para a exibição do poder das elites amazônicas, como os dois grandes teatros, os

cinemas e os prédios oficiais que surgiram na época, fenômeno do qual também se apropriará

a ficção, como veremos ao analisar a obra de Dalcídio Jurandir, especialmente em Belém do

Grão Pará (1960). Gilberto Freyre, em ensaio sobre postais enviados da Amazônia por

portugueses a seus conterrâneos em aldeias de sua terra natal, mostra que esses monumentos

erigidos com o fim de ostentar a riqueza recente também eram índices de tentativas de

modernização, ou europeização, das capitais da borracha, não sem certa rivalidade entre os

habitantes de Manaus e Belém (Freyre, 1978).

Ao lado do chamado “Ciclo da borracha”, outro tema recorrente na literatura

amazônica é a Cabanagem, movimento de rebelião eminentemente popular que se passou

entre 1835 e 1840, com exemplos nos contos do paraense Inglês de Sousa10, no passado, e em

romances do amazonense Márcio Souza11, na literatura contemporânea. Pode-se dizer que os

personagens amazônicos de Dalcídio Jurandir, em sua maioria negros e mulatos pobres, são

descendentes diretos dos cabanos e marcados por um preconceito que se apresenta de maneira

crítica nos romances do autor paraense sob diversos matizes. Em vários momentos os

personagens mencionam a Cabanagem, especialmente se alguém demonstra rebeldia, como

Alfredo em diversos episódios. Se na obra de Milton Hatoum não se nota sinais da

10 Ver, por exemplo, no livro Contos amazônicos (1988), de 1893, o conto “O rebelde”, em que os cabanos são representados como violentos, vingativos e sanguinários, a despeito de um dos personagens centrais, Paulo da Rocha, tentar compreender e explicar aos outros, em longo discurso, as razões da revolta popular expressa na Cabanagem. Na verdade, o enredo mostra os sentimentos ambíguos da população em relação ao evento, ainda relativamente recente à época do conto, apresentando-se como uma mistura de fascínio, pela coragem dos revoltosos, e extremo medo pela violência e aparente indistinção de objetivos. Uma revisão histórica da Cabanagem como revolta eminentemente popular aparecerá apenas no século XX com o livro A Cabanagem, de Henrique Jorge Hurley, editado em Belém, em 1936. 11 Especialmente o romance Lealdade (1997), que faz parte de uma anunciada tetralogia intitulada “Crônicas do Grão Pará e Rio Negro”, no qual aparecem personagens importantes da Cabanagem, como Batista Campos, e onde se procura apreender a importância desse movimento popular por meio da trajetória de um dos revoltosos.

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Cabanagem – note-se que o movimento foi mais fraco no Amazonas e a época representada

ficcionalmente já é o século XX –, a Manaus configurada em suas obras exibe rastros de uma

pujança anterior e uma decadência acentuada, e a história da fulgurante e breve riqueza

proporcionada pela borracha está inscrita nesses sinais. No entanto, o autor abordará mais

detidamente a segunda metade do século passado e o advento da Zona Franca de Manaus,

buscando, entre outros aspectos, representar ficcionalmente de que maneira esse

acontecimento afetará a vida de todos na cidade.

Se o ciclo da borracha foi importantíssimo no passado, não só economicamente, mas

também no sentido de produção ficcional, a importância da floresta para o planeta como um

todo e a consciência de sua impressionante biodiversidade hoje começam a se transformar em

temas recorrentes, haja vista romances como O opositor, de Luís Fernando Veríssimo (2004).

O enredo desse romance mirabolante se passa quase todo em Manaus e adjacências, reunindo

conspiração internacional, assassinatos e o consumo maciço de ervas alucinógenas da

Amazônia. Mesmo considerando-se o tom irônico que domina o romance de Veríssimo, que

pode ser rastreado por meio das alusões12 e da descrença do personagem principal em

qualquer conspiração, a narrativa não deixa de aproveitar-se do imaginário formado em torno

da Amazônia, do “exótico” que ocorre ao ambientar um romance naquela região, numa

recorrência daquela mitificação do espaço amazônico referida por Jerôme Assa em “Mythe et

Histoire: la constructionn de l´Amazonie par les Européens” (Assa, 2002:250).

Por conseguinte, se o discurso do Ocidente já “conteve” e se apropriou, por meio do

discurso dos “orientalistas”, do Oriente e de seus “mistérios” (Said, 2001), sempre haverá de

restar lugares que se tornarão pontos de fuga para o exotismo na ficção e, certamente, a

Amazônia estará entre eles13. É a vastidão em contínua redescoberta (Meyer, 2001:35): “A

imensidão deste país-continente poderia explicar que ele não acabe nunca de ser descoberto.”

(Meyer, 2001:35). É um eterno retorno a um enigma não resolvido, como diria Octavio Ianni:

“O Novo Mundo pode ser visto como um enigma que se reitera periodicamente, desafiando

12 As alusões mais claras referem-se ao nome do dono do bar onde se passam muitas cenas do romance, Hatoum, e o nome do barco que conduzirá o jornalista e seu amigo bêbado em uma excursão à floresta para confirmar uma história de conspiração, Márcio Souza. 13 Um paralelo que se pode fazer é que em histórias que se passam no Oriente, como por exemplo O americano tranqüilo, de Grahan Greene, aparece o ópio, que povoa a relação afetiva do personagem inglês com a garota vietnamita, e no romance O opositor, de Luiz Fernando Veríssimo, que se passa na Amazônia, aparece o Ayauasca, o alucinógeno que é usado em rituais do Santo Daime, o qual é consumido fartamente pelo jornalista e narrador, iniciado que fora por uma exótica mulher de duas cores. Se o paralelo parece forçado, a proximidade é intrigante, inclusive porque o personagem principal de O americano tranqüilo também é jornalista, como aquele de O opositor, ambos desempenhando o papel de correspondentes em lugares importantes situados em lugares estratégicos do Ocidente e do Oriente.

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seus habitantes e assinalando algumas configurações e movimentos da história universal.”

(Ianni, 2003:35).

Dada a imensidão dessa região, onde tudo é abundante, de maneira inquietante para o

forasteiro que não domina seus códigos nem detém os saberes necessários para a vivência

ali14, numa vastidão verdadeiramente “amazônica”, coloca-se também o problema da unidade

literária da região, especialmente se considerarmos que os dois autores objeto de análise nesta

tese, Milton Hatoum e Dalcídio Jurandir, ambientaram seus romances nos estados do

Amazonas e Pará, centrados em Manaus e Belém, respectivamente. A distância física entre

essas duas capitais é imensa, cerca de 1.500 km em linha reta, porém, como afirma Amarílis

Tupiassú,

Apesar do difuso, repartido e isolado, é possível definir, sim, uma

Amazônia literária, porque, quando se diz Amazônia, não se pode

fugir às referências que conferem marcações de identidade à região

inteira (2005:305).

Se as “marcações de identidade” não são facilmente detectáveis do ponto de vista

cultural – ainda que a fisionomia indígena ali seja predominante –, fisicamente o rio e a

floresta, assim como as cidades que se situam nas fronteiras desses dois elementos, de certa

maneira condicionadas ou limitadas por eles, são as partes que dão unidade ao todo. As duas

principais cidades da região partilharam muitos acontecimentos marcantes, foram as que

mostraram com maior vigor os efeitos da opulência efêmera proporcionada pela valorização

da borracha e ostentaram as ruínas do mundo estagnado que se seguiu à decadência

econômica. Só pensando na região como um todo é possível falar de uma modernidade na

selva (Hardman, 1991), ou uma belle époque amazônica (Daou, 2000), cujos monumentos

espalham-se pelas suas duas maiores capitais. Um dado interessante da questão é que durante

muito tempo, provavelmente até meados do século XIX, a Amazônia constituía-se como uma

colônia à parte do Brasil, primeiramente chamada de “Grão Pará e Maranhão” e

posteriormente como “Grão Pará e Rio Negro”, segundo Márcio Souza em artigo publicado

em 2005 na revista Estudos Avançados (Souza, 2005) e em sua Breve História da Amazônia

(Souza, 1994:95-108). Esse Estado era mais distante do Brasil do que de Portugal, pois uma

viagem de Belém a Lisboa durava cerca de vinte dias, enquanto de Belém ao Rio de Janeiro

durava três meses (Souza, 1994:96). O pesquisador Leandro Tocantins também confirma a

14 Lembro aqui a perplexidade do personagem Finnegan, do romance Mad Maria (1980), de Márcio Souza, com aquele “conjunto tão vasto de perigos e ameaças” que ele encontrara na Amazônia (Souza, 1980:11).

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existência desse Estado à parte do Brasil em sua importante obra O rio comanda a vida

(1983), demonstrando que o isolamento da região merecia um tratamento diferenciado por

parte de Portugal e que essa experiência deveria ser levada em conta pelos governos

brasileiros (Tocantins, 1983:258). Capistrano de Abreu, em seu Capítulos de História

Colonial, de 1907, afirma que a idéia de criar um Estado independente na Amazônia surgira

com as dificuldades de comunicações marítimas com o resto do Brasil (Abreu, 2000:138), e

Raimundo Pontes Filho, em sua obra Estudos de História do Amazonas, sugere o mapa

reproduzido na Figura 1, com a divisão dos “dois Brasis”, ambos sob domínio português

(Pontes Filho, 2000: 88):

Figura 1. Os dois “Brasis” (Fonte: Pontes Filho, 2000: 88)

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A reprodução desse mapa é pertinente porque ilustra uma época em que o isolamento

da região encontrava-se formalizado por medidas oficiais da metrópole; além disso, esse mapa

físico coincide com o da Amazônia ficcional, construindo-se nos relatos de viajantes e na

ficção dos escritores como um lugar à parte do Brasil, distante demais para figurar no projeto

literário de um escritor do Sudeste ou mesmo do Nordeste. A reunião dos dois estados num só

aconteceu apenas depois da independência do Brasil. Incursões quase contemporâneas como

as de Mário de Andrade e Raul Bopp pela região demonstram de forma indiscutível a

novidade daquele espaço para a literatura brasileira.

Djalma Batista, eminente amazonólogo, em ensaio publicado pela primeira vez em

1955, após criticar o isolamento e as rivalidades decorrentes da divisão política, expressa da

seguinte maneira sua visão da cultura da região:

(...) temos a comunidade geográfica, temos a identidade étnica, temos

o mesmo tipo de economia; temos, provavelmente, o mesmo padrão

de cultura, no Amazonas, no Pará, no Acre, no Guaporé, no Rio

Branco ou no Amapá, com as variações que a história (principalmente

a cronologia), a demografia e a situação material impõem. (Batista,

2003:67)

Essa unidade, do ponto de vista da literatura, transformar-se-á na recorrência de

temas, como os efeitos dos sistemas econômico e social que se formaram em torno da

borracha, a interação ou o estranhamento do homem em relação às peculiaridades da região, a

representação ficcional das tentativas de conquistar e domar a natureza da Amazônia para

incorporá-la à área de exploração pelo capital – na Modernidade, a Cabanagem, a

industrialização e o extrativismo, entre outros. Dessa forma, mais do que dois mundos

diferentes, separados pela enorme extensão espacial amazônica, os universos ficcionais de

Dalcídio Jurandir e Milton Hatoum, objeto desta tese, são complementares, ainda que haja

diversidade nos aspectos abordados e nos recursos expressivos utilizados, e as peculiaridades

de cada autor serão investigadas nos capítulos dedicados a eles.

3. Relatos do espaço percorrido

Estabelecidas as unidades temáticas da região incorporadas ficcionalmente, e a fim

de preparar o caminho para as análises das obras de Milton Hatoum e Dalcídio Jurandir,

autores que ambientaram suas narrativas na Amazônia, urbana ou rural, interior – esse espaço

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marcado por imagens grandiosas e freqüentemente mitificado –, torna-se oportuno verificar

alguns antecedentes ficcionais desse ambiente. Como mostra Maria Helena Rueda, a

percepção da selva como uma metáfora cujos sentidos flutuam entre paraíso, eldorado,

cárcere, labirinto, teia, inferno e abismo faz parte de toda uma tradição de leituras e releituras

desse espaço: “Como falar hoje dessa selva imaginária e distorcida, na aparência muito

distante da selva real e sem dúvida tão determinante em nossa percepção dela?” (Rueda,

2003:31). O próprio Arthur Cezar Ferreira Reis, um dos historiadores mais conhecidos da

Amazônia, também reclamava do prejuízo causado por uma literatura que mais desfigurava

que representava (Reis, 1956:22).

Marilene Weinhardt (1996:105), tendo em vista um outro contexto, qual seja o

passado da região sul do Brasil abordada pelos cronistas e viajantes, coloca a mesma questão

de outra maneira:

(...) o espaço não é mais o mesmo depois do olhar dos viajantes. A

propósito, questionei: em que medida a criação do ficcionista se

condicionará por esse olhar prévio, quando e como se rebelará?

Essa é a questão que se coloca para os ficcionistas que ambientam sua ficção na

Amazônia, pois os discursos não nascem do vazio. Eles sempre trabalham materiais

existentes, dando-lhes novas formas e contornos, imprimindo-lhes sentidos inusitados, mas

dialogando com um repertório de imagens já existente, acrescentando-lhe sentidos e usos

renovados. Não se trata aí de uma certa “angústia da influência15”, mas da necessidade de

considerar os viajantes anteriores do caminho. Dessa forma, o espaço amazônico transformar-

se-á num palimpsesto (Riaudel, 1992), onde não somente os europeus vão projetar suas

esperanças e fantasias, religiosas e econômicas, além de sua bagagem de histórias oriundas da

Ásia (Gondim, 1994), mas os brasileiros também irão tentar torná-lo legível com obras

ficcionais ou não. Entre esses “desbravadores discursivos” estão, por exemplo, autores como

Lourenço Amazonas, com o romance Simá, Inglês de Souza, com O missionário, Euclides da

Cunha e seus ensaios de À margem da história e, especialmente, o escritor Ferreira de Castro,

com seu A selva, este último assumindo posição fundamental na construção de uma

15 Mesmo porque sabemos que o diálogo que se estabelece entre um escritor e seus precursores não é uma via de mão única, como essa expressão de Harold Bloom dá a entender (Bloom, 1991), isto é, um novo escritor nunca consegue “matar” seu antecessor ou, talvez, mesmo não o queira, especialmente quando envereda pela paródia. Esse recurso estilístico, como demonstrou Linda Hutcheon (1985), é uma arma de muitos gumes: ao parodiar, o escritor pode, simultaneamente, negar e “sacralizar” o precursor/intertexto pela simples referência a esse criador e sua obra. Isso acontece, por exemplo, no próprio Dom Quixote, romance no qual vêm à tona obras que de outra maneira poderiam não ser mais lembradas.

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representação ficcional de uma Amazônia ainda um tanto quanto naturalista, mas também de

forte conteúdo social.

Se a conquista física já acontecera, a apropriação discursiva do chamado “Novo

mundo”, em oposição ao “Velho mundo”, demandou o esforço de vários segmentos, entre

relatórios de naturalistas, relatos de aventureiros e religiosos, entre outros. Desse modo, vários

são os agentes que construíram um certo imaginário sobre a Amazônia, uma certa maneira de

olhar esse espaço e os seres que o habitam, entre cronistas de viagem, cientistas e escritores

brasileiros ou europeus. Se considerarmos a força desses relatos sobre a imaginação, não só

européia, mas também sobre os brasileiros de outras regiões, pode-se afirmar que qualquer

escritor que aborde esse espaço em sua ficção há de se confrontar, em algum momento, com

essas visões grandiosas e extremas, pois os viajantes, cronistas e ficcionistas que

perambularam pela Amazônia, ou não16, e deixaram seus relatos, conseguiram a proeza de

fixar esses depoimentos pessoais como roteiros por onde a imaginação literária poderia vagar,

abrindo veredas e preparando um certo olhar – todo um imaginário – sobre esse espaço.

Pelo menos um dos escritores estudados aqui, Milton Hatoum, já mencionou em

mais de uma ocasião ser um leitor dos relatos dos viajantes e também citou o perigo, para um

autor amazonense, de construir personagens e abordar o espaço da Amazônia com o toque de

exotismo (Hatoum, 1996: 10) que se poderia esperar de um escritor da região, enveredando

por um regionalismo que primaria pelo linguajar local marcado pelo pitoresco e pela

configuração da paisagem como um personagem opressor. No entanto, não é só o perigo do

regionalismo exacerbado, levando ao exotismo, que ronda o escritor que situa sua obra no

espaço amazônico, mas também a armadilha do Naturalismo, que coloca o homem sob o jugo,

a influência e a determinação total do meio e do clima, em um olhar que privilegia o

fisiológico, ressaltando sua feição patológica e não a psicológica.

Por boa parte da literatura amazônica, a irrupção e a colisão entre a “civilização” e a

“barbárie” são recorrentes, seja de maneira complacente, em que o mundo criado por

determinado autor aceita e reitera essa polarização, ou de forma crítica, quando o próprio

enredo encarrega-se de desmontar qualquer oposição binária, mostrando que o cenário é

muito mais complexo do que um olhar simplista poderia supor. É preciso lembrar aqui de

Márcio Souza, escritor amazonense cuja obra ficcional e ensaística vai radicalmente de

encontro a essa oposição. O que esse autor discute de forma polêmica no ensaio A expressão

amazonense (1978) será aplicado de maneira exemplar no romance Mad Maria (1980), que

16 Júlio Verne, autor de A jangada, por exemplo, como afirma Michel Riaudel (Riaudel, 1992), nunca esteve na

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apresenta um choque de nacionalidades e egos no qual sobra selvageria e incompreensão entre

os alemães e altivez e dignidade entre negros barbadianos e o índio Joe Caripuna, embora este

último seja cooptado depois como atração de salão, numa representação ficcional de sua total

perda de identidade.

As obras dos autores a serem estudados aqui, como veremos nos capítulos seguintes,

não poderiam ser vinculadas a essas duas possibilidades freqüentes na literatura amazônica, o

regionalismo e o Naturalismo, por sua centralização nos problemas humanos por que passam

os personagens de suas narrativas, seus conflitos e desejos. Se o meio amazônico aparece, não

é como um personagem que avulta sobre os outros, mas um ambiente com características

determinadas e que propõe dilemas específicos aos seres que o habitam, questões que

estimulam sua superação ou proporcionam conformismo.

A ligação do homem amazônico com o espaço, o rio que está à sua frente e a floresta

que é o outro limite, ambos apresentando-se como fronteiras que devem ser respeitadas, é

ostensiva e, assim, não é de se estranhar que esse entrelaçamento lance ecos na produção

poética da região, como assevera Socorro Santiago (Santiago, 1986). Se a ligação com esses

dois elementos é forte, é a regular alternância entre enchente e vazante do rio que parece ditar

o ritmo de vida do ribeirinho, conforme Leandro Tocantins em O rio comanda a vida

(Tocantins, 1983). Porém, a ficção contemporânea vai mostrar que essa relação íntima com o

espaço em torno, longe de tornar-se um condicionamento patológico, uma prisão ou uma

fonte de opressão para o homem que vive ali, procura revelar, antes, o respeito e a sabedoria,

em boa parte herança indígena, daquele que aprendeu a lidar com os elementos, respeitando-

os e compreendendo seus próprios limites. O problema já não é a imensidão perigosa da

floresta e seus enigmas, mas a exploração dos mais humildes, o estabelecimento e a defesa

ferrenha de áreas de influência por certos “coronéis” locais, o preconceito racial, a falta de

perspectivas para os jovens do interior, entre outros aspectos. Isso é válido pelo menos no

caso de Dalcídio Jurandir, em que os personagens são, em sua maioria, interioranos que

moram à margem dos rios e que aspiram a um lugar na cidade; já os personagens de Milton

Hatoum estão mais para aqueles citadinos de que fala Socorro Santiago em Uma poética das

águas (1986: 26), ou seja, são manauaras ou imigrantes cujas características os equivalem aos

moradores de Belém, onde a troca constante com outros centros e o tamanho e a

complexidade das cidades tendem a afastá-los do contato íntimo com o rio ou a floresta.

Amazônia, mas também já escrevera sobre a Rússia também sem ter estado lá em Miguel Strogoff.

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De qualquer maneira, como já disse antes, os relatos anteriores sobre a Amazônia e o

homem que habita aquele ambiente permanecem e circulam, lançando seus ecos ainda hoje, o

que os torna dignos de leitura e análise, a fim de examinar qual a resposta que a ficção

produzida na região apresenta a esses caminhos abertos por seus predecessores. Dessa forma,

neste capítulo enveredamos pela análise de alguns desses “discursos fundadores”17, viajantes,

cientistas e ficcionistas que deixaram registro de suas impressões ou que ambientaram sua

ficção naquele espaço, alguns deles nomes conhecidos, tais como Lourenço Amazonas, Inglês

de Souza, Alberto Rangel, Euclides da Cunha, Sir Arthur Conan Doyle, Júlio Verne e,

especialmente, Ferreira de Castro, com este último assumindo papel fundamental no

estabelecimento de um certo imaginário sobre a Amazônia. Neste capítulo, diferentemente

dos objetivos expressos por Neide Gondim em A invenção da Amazônia (1994), o que

importa é rastrear os ecos, as recusas ou o diálogo sutil que os escritores posteriores, em

especial Dalcídio Jurandir e Milton Hatoum, mantêm com essas imagens estabelecidas. É

preciso que não se confunda esse diálogo com aquela angústia da influência de Harold

Bloom, que a figurativiza como o embate entre dois poderosos opostos, Édipo e seu pai Laio,

na encruzilhada, que culmina com o patricídio, ou seja, a expressão parece significar um claro

ajuste de contas entre o novo e o velho (Bloom, 1991:40). Como se poderá ver, longe de

querer desvelar um jogo de “influências”, que parece apenas revelar uma via de mão única, a

análise pressupõe a construção de um repertório de imagens da Amazônia, com contribuições

de vários autores. É sobre esse imaginário que irão trabalhar os escritores amazônicos, como

veremos a seguir.

4. Amazônia: uma narrativa dos princípios ou notícias de um mundo não tão novo

Compreensão, incompreensão e atribuição de sentidos.

Isso é uma guerra. Aí se jogam sempre os limites do

dizer. Há séculos.

Eni Orlandi

Sem a pretensão de traçar uma história da literatura de temática amazônica, ou

mesmo uma revisão exaustiva da historiografia e da crítica sobre essa literatura, que implica

17 Segundo Foucault, os fundadores de discursividade, como Marx e Freud, por exemplo, possibilitaram, com a criação de suas obras, o fato de seus discursos serem continuamente citados, parafraseados ou refutados, e também abriram uma rede infinita de discursos (Foucault, 1992: 58-9). Utilizo aqui a expressão não no sentido forte de Foucault, mas naquele de que as obras a serem analisadas aqui transformaram-se em referências para o

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quase um processo arqueológico, o que aqui se propõe é uma abordagem sumária dos

principais “construtores” do repertório de imagens literárias da Amazônia que irão se tornar

referência para a literatura contemporânea.

O primeiro discurso pronunciado pelo europeu que chegava dava conta da visão

inicial da nova terra, o famoso “terra à vista”, enunciado que descortina tempos difíceis para

os “descobertos”, já que esse “ver” já é uma forma de apropriação e marca o início de um

processo de conquista e de uma longa produção de sentidos (Orlandi, 1990: 13-4). Dessa

forma, a famosa “Carta” de Pero Vaz de Caminha é uma espécie de certidão de batismo do

país cheio de contradições que nasce ali, juntamente com os outros dois documentos menos

conhecidos sobre a chegada dos portugueses ao Brasil, o “Relato do Piloto Anônimo” e a

“Carta do Mestre João Faras” (Pereira, 1999a). Para a Amazônia, o atestado de “nascimento”

para a história escrita pode ser considerado o “Relato” de Frei Gaspar de Carvajal, o escriba

da expedição de Francisco Orellana (1540-1542), sendo este último o que nomeou o grande

Rio em virtude de um possível ataque de mulheres guerreiras (Santiago, 1986: 29 e Pontes

Filho, 2000: 48); num procedimento típico dos viajantes em terras desconhecidas, nesse texto

Carvajal busca elementos da mitologia grega para caracterizar o estranhamento do que vê e

recorre ao argumento de autoridade de outros relatos.

Como informa Octavio Ianni (Ianni, 2003:23), desde o encontro inicial entre o

conquistador e o nativo, houve dúvidas quanto a vários aspectos do “descobrimento”, entre

eles o seguinte dilema: tratava-se do Paraíso terreal, destinado a redimir os homens, e, de

maneira mais pragmática, ampliar a área da cristandade, ou, ao contrário, a nova terra era o

Eldorado, a ser incorporado ao ocidente sob a ótica do mercantilismo, destinado a gerar lucros

fabulosos a quem o percorresse? Por outro lado, também será um motivo recorrente o

“infernismo”, contraposto ao “edenismo”, conforme Mário Ypiranga Monteiro (Monteiro,

1976), de certa maneira decorrente das dificuldades encontradas por aqueles que procuravam

o El Dorado, expresso em geral naquelas obras que se deixaram vencer pela exuberância do

meio.

A chegada dos europeus ao continente americano trouxe também uma curiosidade

obsessiva com o que esse novo mundo tinha a mostrar, ou escondia em meio a suas florestas

enormes, seus sertões abrasadores, seu litoral extenso, tudo muito amplo, muito intrincado,

pronto a receber e multiplicar a fértil imaginação que chegava, alimentada que fora pelos

“mistérios” e diferenças do Oriente em relação ao continente europeu. Essa curiosidade vai se

imaginário sobre a Amazônia.

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projetar e obter vazão num trânsito intenso de viajantes, naturalistas, pintores ou simples

arrivistas que percorreram os vários cantos do país, muitos deles deixando relatos antológicos

dos lugares por que passaram. Afora o registro de uma certa visão dos costumes por onde seus

autores passam, esses relatos são marcados pela representação do espaço, cuja novidade pode

reger a construção da narrativa, projetando-se numa relação estreita entre personagem, ação e

espaço (Reis & Lopes, 1991: 132). Segundo Neide Gondim (1994: 7718) em sua análise sobre

essa “invenção” da Amazônia pelos europeus, a visão dos vários viajantes que percorreram a

Amazônia, ainda que se considere as especificidades de cada um, parece ter oscilado, desde o

início, entre as visões do paraíso na terra – o éden, e o terror do “inferno verde”. O espaço

construído por esses relatos oscilou, por conseguinte, entre o desconhecido assustador e a

admiração por sua grandiosidade, entre a elevação e o rebaixamento, a descrição

entusiasmada das características e possibilidades daquela “nova” terra ou o desconsolo com o

incompreendido, de acordo com o olhar que dirigia o discurso. Muitas vezes com a presença e

a convivência de várias nuanças, essas imagens marcaram a literatura da região até a

contemporaneidade.

Para incorporar essa nova terra ao mapa do mundo conhecido até ali, foi necessária

toda uma gama de intérpretes, entre geógrafos, naturalistas, biólogos e outros pesquisadores

(Ianni, 2003:24), além de toda uma linhagem de aventureiros – os arrivistas de que fala

Márcio Souza em A expressão amazonense (1978) e ficcionalizados, de maneira magistral e

inventiva, pelo mesmo autor, em Galvez, imperador do Acre (1976). Um desses textos

fundadores, o relato de viagem escrito pelo Pe. Cristóbal de Acuña, publicado pela primeira

vez em 1641, assim encerra sua descrição da Amazônia, abrindo uma gama de grandes

perspectivas aos que se aventurassem pela região, englobando ao mesmo tempo os aspectos

religiosos e econômicos da empreitada, com uma série de imagens que ecoarão em textos

posteriores:

Este é, em suma, o novo descobrimento deste Grande Rio que,

encerrando em si grandes tesouros, a ninguém exclui: ao contrário, a

todos liberalmente convida a que deles se aproveitem. Ao pobre

oferece sustento; ao trabalhador, satisfação pelo seu trabalho; ao

mercador, negócios; ao soldado, ocasiões para mostrar seu valor; ao

rico, maiores riquezas; ao nobre, honrarias; ao poderoso, estados; e ao

próprio rei, um novo império. No entanto, quem mais interessado há

18 Obra citada. Interessante relato sobre essas visões antitéticas da Amazônia pode ser conferido em SILVA, R. I. Amazônia, paraíso e inferno! Como sobreviver na selva e no mar. 3ª ed. Itaquaquecetuba: Editora Renig, s/d.

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de se mostrar nesta conquista são os zelosos da honra de Deus e do

bem das almas, pois uma multidão delas está chamando por fiéis

ministros do Santo Evangelho para que, com a clareza dele, sejam

afugentadas as sombras da morte em que há muito tempo estes

miseráveis jazem. (Acuña, 1994:197)

Repetindo aspectos fantasiosos sobre a Amazônia que já haviam aparecido no relato

de Carvajal (Esteves, 1994:20), outro texto importante e pioneiro, Acuña também fala sobre

as Amazonas e menciona a existência de seres de três metros, tendo o cuidado de dizer que

apenas contava o que tinha ouvido. Dessa maneira, com todo o repertório criado por esses

primeiros viajantes, não é de se estranhar que os europeus imaginassem toda sorte de

habitantes fabulosos se movimentando sob a extensa e sólida floresta amazônica, esse espaço

de extremos, como expressa Robert Avé-Lallemant, no relato de sua viagem pelo Rio

Amazonas em 1859:

Como, ao tempo da conquista, toda a Europa se mantinha tensa,

recebia pasmada toda notícia de continentes recém-descobertos e

enfeitava com fábulas e quimeras tudo o que não era positivo, houve

época em que se estava inteiramente convencido do aparecimento,

nalguns afluentes do grande rio sul-americano, de mulheres

gigantescas, e da existência de homens de cauda. (Avé-Lallemant,

1980:59)

Para um cenário maravilhoso, que a um só tempo assusta e fascina, dominado por

uma intrincada e exuberante floresta tropical, nada mais natural que a expectativa de

encontrar aí seres quiméricos, especialmente se levarmos em conta que os europeus trouxeram

na bagagem toda uma mitologia sobre a Índia, construída por relatos de missionários e

cientistas (Gondim, 1994: 9), além, é claro, de ter em vista, em suas incursões, a

grandiosidade da fauna africana, que suscitava, por sua vez, a questão: se no ambiente da

África, sujeito a grandes variações sazonais, havia tantos e tão fantásticos animais, o que não

haveria sob a impenetrabilidade do espaço amazônico? Mas, se por um lado Avé-Lallemant

desconstrói essas imagens fabulosas, por outro afirma que a expulsão dos jesuítas e a

independência do Brasil “interromperam todo desenvolvimento no rio, ameaçando asfixiar

novamente a semente da civilização, apenas plantada” (Avé-Lallemant, 1980:59), ou seja,

essa é uma terra “à margem da história”, primitiva, que dificulta a implantação da civilização

como esse autor a entende.

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Nos relatos sobre essa terra construída pela imaginação desses viajantes, abundam as

metáforas do paraíso na terra – o éden bíblico, a figura do último refúgio, tudo isso misturado

a equívocos quanto ao equilíbrio de tão complexo ecossistema. Mesmo correndo o risco de

cair no anacronismo em virtude das concepções ecológicas atuais, é possível ver que se

atribuía a esse espaço qualidades físicas e oportunidades para seus habitantes que se

revelariam desastrosas apenas algum tempo depois em relato de um brasileiro que viajara pela

Amazônia já no século XX, Raymundo Moraes:

O roçado e a plantação, a drenagem e o fogo, do mesmo passo que se

aperfeiçoava o conforto, criando rebanhos e simplificando transportes,

limparam o ambiente dos miasmas mefíticos e tornaram a labuta

amena e resistente, com a circunstância de radicar o habitante à plaga.

(Raymundo Moraes, 1987:14219)

Domada a terra, implantadas a pecuária e a agricultura que fizeram a riqueza de outra

terra prometida, a Austrália, a região assumiria seu verdadeiro destino:

Surgirá, então, dilatado e completo, por mando dos Fados, o florido

Paraíso Verde, alcatifado, arroteado, povoado, capaz de abastecer o

orbe de frutas, de legumes, de cereais e de carnes.

(...) No dia em que a extração da seringa, do caucho, da madeira, se

transmude na plantação de arroz, da cana, do milho, do cacau, de

acordo com as exigências geográficas, a planície equatorial volver-se-

á em fabuloso refúgio da humanidade. (Moraes, 1987:142)

Se esse é um relato pautado pelo otimismo e pelo regionalismo, conforme Leandro

Tocantins em sua introdução à obra, a visão de Raymundo Moraes da Amazônia como a

“terra da promissão”, “refúgio da humanidade”, baseada não só na agricultura, mas

especialmente na indústria pastoril, parece hoje de uma ingenuidade perigosa pelo

desmatamento promovido na região para a implantação de projetos como os que ele prevê.

Porém, mais do que as exaustivas descrições e as previsões para o futuro da região

que viajantes, de épocas diversas, como Humboldt, Max e Spitz, Charles-Marie de La

Condamine, Alfred Russel Wallace, entre outros, pudessem fazer, um aspecto essencial desses

relatos, além de sua proximidade com romances de aventuras, são os recursos que eles

colocavam em circulação num meio em que a literatura de ficção começava a se estruturar,

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como afirma Flora Sussekind sobre a relação entre esses textos e as primeiras “novelas

nacionais”: “O que importa fundamentalmente? O fato de o viajante ensinar a ver, organizar

para olhos nativos a própria paisagem e definir maneiras de descrevê-la.” (Sussekind,

1990:39). Os viajantes serão, assim, mestres que fornecerão as orientações para uma

“cartografia” a ser incorporada à literatura brasileira nascente no começo do século XIX

(Sussekind, 1990: 61). Os narradores dessas primeiras obras da ficção brasileira teriam, desse

modo, configurações diversas, assumindo a posição de cartógrafos, paisagistas, historiadores,

cronistas de costumes (Sussekind, 1990: 279). Por outro lado, se o modo de ver a paisagem

brasileira já está previamente determinado por esses relatos (Sussekind, 1990: 32), Ferdinand

Denis e Almeida Garrett, em textos publicados no mesmo ano, 1826, transformam o olhar

atento à “natureza grandiosa” e a incorporação da “cor local” simultaneamente em critério de

avaliação da literatura do país recém-independente e um programa a ser cumprido por seus

escritores, segundo Regina Zilberman (Zilberman, 1994).

Movimentando-se em visões antitéticas, entre vocábulos díspares que mostram as

visões magníficas e contraditórias que os cronistas tinham da região, os quais tornam-se

verdadeiras palavras-chave ou lugares comuns quando se trata de descrevê-lo (paraíso ou

inferno verde, El Dorado, pulmão da terra, celeiro da humanidade), o espaço amazônico

intrigou, apaixonou e assustou seus visitantes ou ficcionistas europeus, ajudando a construir

uma certa visão da Amazônia, investigada a fundo por Neide Gondim em A invenção da

Amazônia (1994).

Essa obra, resultado da tese de doutorado da autora, mostra a profunda impressão

causada pela divulgação das notícias sobre a região na imaginação européia medieval. Com o

objetivo explícito de “(...) demonstrar de que maneira e por quais artifícios a Amazônia (...)”

fora inventada pelos europeus, a autora destaca pensadores como Montesquieu, Montaigne,

Buffon e Hobbes, que refletiram sobre o homem americano (Gondim, 1994: 10), e analisa

ficcionistas europeus como Júlio Verne e Sir Arthur Conan Doyle, que abordaram a

Amazônia em suas obras ou ali ambientaram suas narrativas. Gondim demonstra que a vinda

dos europeus também possuía um caráter de uma busca das origens nesse lugar onde a história

não havia chegado (vale dizer, pré-histórico), solidamente fincada sobre uma imaginação

povoada por histórias do oriente já conhecido, tanto nas narrativas de Marco Polo quanto nas

de Jehan de Mandeville:

19 Muitas idéias presentes nesta obra já haviam aparecido em obra anterior sob o título de Traços a esmo, publicada em 1908. O relato de Raymundo Moraes foi publicado já com o título atual, em 1926, em Belém.

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Essas histórias maravilhosas falavam de povos estranhos, grotescos,

monstruosos. A natureza não menos fantástica era povoada por

animais não menos estranhos: unicórnios passavam por entre

vegetação encantada, composta por ervas capazes de curar qualquer

doença, podendo ser encontradas próximas à fonte da eterna

juventude. (Gondim, 1994:16)

Como se verá mais adiante, o maravilhoso que surge desse labirinto antitético que

desnorteia os homens, cuja beleza “pode surgir do infernalmente horrível porque exige um

olhar primordialmente novo” (Gondim, 1994:273), será um ponto em comum tanto entre os

primeiros ficcionistas brasileiros que ambientaram sua ficção na Amazônia, como Inglês de

Souza e Alberto Rangel, quanto escritores europeus que irão abordar a região posteriormente,

com exceção de um português que viveu na região e a transfigurou em espaço ficcional a

partir de sua experiência: Ferreira de Castro. É com esse ficcionista que vão se destacar vários

topoi das narrativas de viagens na fixação de imagens literárias da Amazônia: enumeração de

tipos humanos da região e seus costumes, descrição pormenorizada dos lugares

desconhecidos, as dificuldades de acesso, as peripécias dos percursos percorridos, tudo isso

pela ótica do viajante estrangeiro que nunca se integrará totalmente. Dessa forma, a história

da construção da Amazônia como espaço ficcional pode ser sintetizado pelas obras de alguns

dos principais escritores que contribuíram para fixar um repertório de imagens da região,

como se pode ver na Figura 2.

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Como toda síntese, esse quadro de intérpretes da Amazônia não é exaustivo, pois

deixa de fora outros autores que também ambientaram sua ficção na Amazônia, como

Lourenço Amazonas e seu romance Simá, além de outros escritores paraenses ou

amazonenses, como José Veríssimo, com As cenas da vida amazônica, de 1888, Carlos de

Vasconcelos, com Deserdados, de 1921, Alfredo Ladislau, com Terra imatura, de 1923, e

ainda, mais recentemente, Francisco Galvão, Aurélio Pinheiro e Abguar Bastos, mencionados

por Peregrino Jr. em um panorama sobre a literatura da região (2002). Entre os ficcionistas

ausentes, merece menção especial a contribuição de Benedito Monteiro que, em romances

como Verde Vago Mundo (1972) e O Minossauro (1975), consegue alcançar uma

representação ficcional da Amazônia em que história, criação e denúncia possuem uma boa

urdidura, mas fica bem aquém da coerência do conjunto criado por Dalcídio Jurandir. Além

disso, também não foram incluídos importantes amazonólogos, tais como Nunes Pereira e seu

Moronguetá, Leandro Tocantins, Djalma Batista, Arthur Cezar Ferreira Reis e o próprio

Márcio Souza, por sua produção ensaística, entre outros. No entanto, a figura é interessante

para mostrar que a literatura da região, apesar de não se destacar como conjunto na literatura

brasileira, já possui tradição e continuidade, aspecto essencial para alimentar novas leituras.

Outra razão para essas exclusões é que o objetivo maior desta tese é a análise da configuração

do espaço amazônico em obras de Dalcídio Jurandir e Milton Hatoum, sendo, portanto, esse

panorama apenas um meio de demonstrar a tradição em que esses autores vão se inserir.

Dessa maneira, foram selecionados para uma análise mais detalhada aqueles autores que

ganharam projeção junto à crítica literária e se tornaram pontos de referência especificamente

para a literatura.

5. Incorporação da Amazônia à literatura

Excetuando-se as iniciativas poéticas na região, pode-se dizer que a incorporação da

Amazônia como tema da literatura de ficção data do século XIX, com a publicação da obra

Simá - Romance histórico do Alto Amazonas, de Lourenço da Silva Araújo Amazonas, em

1857, recentemente reeditado na Coleção Resgate II, da Editora Valer (2003). Oito anos antes

do lançamento de Iracema, de José de Alencar, o romance inicia sua história na Amazônia

significativamente por um perfil de mulher e, um dado também importante, indígena, cuja

tribo está prestes a perder a identidade. O romance incorpora, ainda, um tema inédito até

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então, especialmente no cânone romântico, o estupro (Gondim, 2003), além de um

personagem indígena bem sucedido, o tuxaua Marcos. Com relação à abordagem do espaço, o

romance abre-se como os relatos dos viajantes, com uma aproximação da paisagem a partir de

um grande plano até o fechamento sobre uma ruína de um antigo estabelecimento em uma

seqüência didaticamente enfeixada sob o título de Introdução:

Supondo-vos em viagem no Amazonas. A vossos olhos deslumbrados

se ostentam majestosas de um e outro lado suas margens, guarnecidas

de elevado arvoredo, que por efeito de sua densidade, como duas

muralhas de verdura se estendem até o horizonte. Este aspecto, apenas

interrompido por algumas insignificantes colinas, que todavia

guardam entre si distâncias de dezenas de léguas, importam uma

monotonia, que cresce de ponto na estação do inverno, ou enchente do

rio, quando pouco, ou contrário o vento, e excessiva a corrente, sois

obrigado muitas vezes a avistar ainda um mesmo objeto durante oito

dias consecutivos. (Amazonas, 2003:13)

A longa citação serve para mostrar que o discurso desse narrador está preocupado em

registrar em minúcias o que vê, de maneira quase pictórica, convidando o leitor a viajar nessa

descrição, a vivenciar por meio do relato a grandiosidade e a monotonia daquilo que de outro

modo não poderia obter. O romance, a par de sua idealização de personagens indígenas de

acordo com o cânone romântico, configura-se, principalmente, como a “fundação” e a

incorporação de uma paisagem, no caso a amazônica, de maneira semelhante à que Flora

Sussekind detecta em nossos primeiros narradores de ficção, das décadas de 30-40 do século

XIX, que dialogaram frequentemente com os viajantes (Sussekind, 1990), dos quais a

narrativa de Lourenço Amazonas não está tão distante no tempo. A especificidade desse

romance fica por conta da incorporação do espaço amazônico à literatura brasileira, bem antes

de Inglês de Souza, Alberto Rangel ou José Veríssimo. Um interessante paralelo sobre a

figura do índio na Literatura Brasileira poderia ser tentado confrontando-se os contornos dos

personagens indígenas de O guarani ou mesmo Iracema, de José de Alencar, com aqueles de

Simá, romance que, por suas características peculiares, poderia ter mudado a face indianista

do Romantismo brasileiro.

O paraense Inglês de Souza (1853-1918), antecipando o Naturalismo de Aluísio

Azevedo, publicou entre 1876 e 1877 três obras que compõem “As cenas da vida do

Amazonas”: História de um pescador e O cacaulista, de 1876, e O Coronel Sangrado, de

1877, os dois últimos apresentando o mesmo herói em diferentes etapas da vida. Em todas

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três já aparecem, à parte suas qualidades de estudos de personagens, características

naturalistas, especialmente no que diz respeito à opressão do meio sobre o homem, de acordo

com Lúcia Miguel Pereira, em dois textos sobre Inglês de Souza da década de 1940 (Pereira,

1994). Porém, é no romance O missionário, de 1888, que a configuração naturalista do espaço

amazônico e todas as implicações dessa visão aparecem com mais clareza. No romance, com

seus personagens submetidos à força do meio e da herança biológica, aparece como cenário

grandioso a floresta amazônica. Como era costume nas representações da floresta nos relatos

dos viajantes, o ambiente é uma força telúrica que condiciona os personagens e também os

aprisiona em sua grandiosidade:

O sol, dardejando os raios quase a prumo sobre a coroa das palmeiras,

parecia um sultão, recolhendo ao seu dormitório recôndito de tirano,

satisfeito com as sultanas mais esbeltas e formosas e desdenhoso da

turba das escravas. O ruído das franças agitadas pelo vento e o canto

dos passarinhos distraíam a padre Antônio da meditação religiosa em

que procurava afundar-se, suscitando-lhe imagens de gozo profano.

(Sousa, 1992:124)

O espaço da ação, em que não faltam as imagens - o sol como um sultão/tirano,

figura que é também um importante símbolo de domínio sobre os homens e sua vontade20,

arrefece a resistência e distrai o personagem em seu esforço por dominar seus instintos,

demonstrando que o meio condiciona e dirige os seres que o habitam. É significativo que

nesse meio tão sugestivo uma simples mameluca, como o narrador a descreve, seduza, talvez

sem querer, um padre acostumado a entrever “mulheres do mundo, luxuosas e apetecidas, sem

quebrar o voto sagrado que fizera (...)” (Sousa, 1992:170). O personagem é seguidamente

tentado a quebrar seu voto de castidade por vários fatores físicos, seja a dieta ou o repouso

forçado, sentindo-se aprisionado numa nova ilha de Calipso21 (Sousa, 1992:180). Não é à toa

que nessa natureza que se apresenta ao viajante seja recorrente uma imagem de labirinto

inextricável, pleno de mistérios e projeções de amor físico:

A cem braças da embocadura já o rio oferecia um aspecto muito

diverso do que nas proximidades do sítio do Guilherme, tendo um

20 Conforme Antonio Candido no ensaio citado acima sobre o romance O cortiço, de Aluísio Azevedo, o sol também exerce neste romance um papel determinante sobre os seres humanos (Candido, 1993). 21 Calipso é a personagem da Odisséia que mantém Ulisses preso sob seus encantos por longos anos em sua ilha-refúgio. A referência à personagem homérica também mostra que o espaço amazônico, neste caso, também funciona como um ambiente de confinamento, cujos atrativos enfeitiçam e quebram a vontade do personagem.

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cunho de selvagem grandeza que impressionava a imaginação e

prendia a faculdade contemplativa. As árvores da beirada, sem receio

do machado vandálico do lenhador, cresciam a uma altura

descomunal, envoltas em intrincados cipós e em apaixonadas

parasitas, que pareciam querer sufocá-las num abraço estreito; e à

claridade dúbia da madrugada projetavam no rio a sua grande sombra,

cheia de mistérios. (Sousa, 1992:121-2)

Tentado pela conformação da natureza e pela sensualidade algo animalesca de

Clarinha, condicionado pela fraqueza que a mãe lhe transmitiu, segundo sua configuração no

romance, o personagem esquece “o seu caráter sacerdotal, a sua missão e a reputação do seu

nome, para mergulhar-se nas ardentes sensualidades dum amor físico” (Sousa, 1992:196),

buscando provar a tese de que o homem é prisioneiro das seduções do meio, que por sua vez

faz aflorar a herança biológica.

Alberto Rangel (1871-1945), pernambucano que morou no Amazonas, irá contribuir

com um importante e discutido título na linha de intérpretes da região com Inferno Verde,

publicado em 1904. Essa obra incorpora em seu próprio título uma das imagens mais

recorrentes sobre a Amazônia, ainda dentro de uma linha de configuração naturalista, com sua

linguagem mostrando intenso diálogo com Os sertões, de Euclides da Cunha, autor que

escreveu o prefácio para a obra de Rangel. O texto introdutório, como veremos adiante, abre

caminhos de interpretação da obra de Rangel, ao mesmo tempo que reforça a visão da

Amazônia do próprio Euclides da Cunha.

No capítulo também intitulado “Inferno Verde” descreve-se a trajetória de Souto, um

engenheiro em viagem de trabalho pelo interior do Amazonas, às voltas com o medo do

isolamento e a saudade dos seus, que “(...) estavam como noutro planeta, ou noutra vida...”. A

floresta, o espaço que sufoca, aprisiona e cobra um alto preço àqueles que ali se aventuram,

animiza-se, emoldurando a derrocada do personagem:

A floresta sofria, a floresta ria... Dedos convulsos de um gênio em

delírio tangiam as cordas in finitas dessa grande harpa de esmeralda,

arrancando-lhe acordes e síncopes harmoniosos ou incoerentes, na

execução confusa da mais aterrorizante das sinfonias. (Rangel,

1927:252)

Nessa atmosfera sufocante, é significativo que o personagem abra o romance de Júlio

Ribeiro, A carne, de 1888, com o narrador contrastando a “oxigenada” natureza paulista com

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o seu entorno, “onde eflúvios letais d´água morta tudo circundavam de um véu funesto”

(Rangel, 1927:255). Vencido pela febre, o personagem morre em meio a um delírio, lutando

com um grande roseiral, símbolo aqui da tentativa de domínio do homem sobre a natureza

selvagem, gritando à floresta: “– Inferno!... Inferno... verde!” (Rangel, 1927: 279).

Novamente a marca naturalista do homem tiranizado pelo meio ocupa o centro da obra, com

uma linguagem sinuosa e recheada de termos rebuscados, mas adequada à concepção de

Amazônia que ali se desenha.

O próximo escritor a contribuir para a fixação de imagens da Amazônia será Euclides

da Cunha, com o prefácio ao livro de Alberto Rangel e a obra À margem da história.

6. Um viajante especial: Euclides da Cunha

Entre os viajantes que ajudaram a construir e fixar determinadas imagens da

Amazônia, ou as várias visões da região que percorrem o imaginário incorporado pela

literatura, destaca-se Euclides da Cunha, autor de Os sertões. A Amazônia, essa região que se

situa à parte, encarnação da “síntese dos contrários” para os viajantes (Gondim, 1994:273),

mostra-se ao observador eventual, simultaneamente, de maneira tão infernal e tão paradisíaca

que Euclides da Cunha, também ele um leitor dos viajantes, no seu relato sobre uma visita à

região em À margem da história, publicação póstuma de 1909, recorre às metáforas espaciais

e à animização para descrever o desencontro entre o homem e natureza:

(...) o homem, ali, é ainda um intruso impertinente. Chegou sem ser

esperado nem querido – quando a natureza ainda estava arrumando o

seu mais vasto e luxuoso salão. E encontrou uma opulenta desordem...

(Euclides da Cunha, 1975:25-6)

O homem como intruso e a Amazônia como um vasto salão ainda em processo, em

desordem de formação, um caos primordial, um espaço pré-histórico, portanto, digno dos

adjetivos grandiosos e eloqüentes, numa utilização quase abusiva de antinomias e ênfases.

Essa é uma linguagem sinuosa, que mostra uma obsessão pela busca da imagem exata na

língua para traduzir o mesmo espanto que marcou os relatos dos viajantes, com o tom do

discurso buscando dar conta da maravilhosa mas, paradoxalmente, monótona paisagem que se

descortina à frente do observador :

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A massa de águas é, certo, sem par, capaz daquele “terror” a que se

refere Wallace; mas como todos nós desde mui cedo gizamos um

Amazonas ideal, (...) ao defrontarmos o Amazonas real, vemo-lo

inferior à imagem subjetiva há tanto tempo prefigurada. (...).

E como lhe falta a linha vertical, preexcelente na movimentação da

paisagem, em poucas horas o observador cede às fadigas de

monotonia inaturável e sente que o seu olhar, inexplicavelmente, se

abrevia nos sem-fins daqueles horizontes vazios e indefinidos como os

mares. (Cunha, 1975:25)

A imagem que nesse texto se constrói sobre a Amazônia é tão impressionante

que é impossível não notar ecos de Euclides da Cunha até mesmo em texto do escritor

Peregrino Júnior, em conto da década de 1930, republicado em 1975, no qual se traça um

retrato de um paroara, nordestino que emigrara para a região:

Estranho ao drama cósmico da terra que habita, permanece estranho

também ao drama humano da sua própria alma. E dessa pungente

inconsciência vai nascendo a tragédia brutal da conquista daquele

mundo apocalíptico da Amazônia... (Peregrino Júnior, 1975: 108)

Os olhos do viajante, fatigados do verde compacto das matas (...), não

encontram na paisagem o doce perfil gracioso de uma colina sequer,

para repousar. É tudo plano e igual. (Peregrino Júnior, 1975: 119)

Na visão de Euclides, obcecado pela imagem desconstruída no confronto com o real,

a natureza amazônica, em plena construção, ou processo de criação, torna vã a luta do homem

(“civilizado”?) contra as forças titânicas de uma natureza que nunca está em pleno repouso:

“Depois de uma única enchente se desmancham os trabalhos de um hidrógrafo” (1975:26).

Assim, as antinomias buscam expressar o deslocamento temporal desse espaço onde a

natureza é grandiosa, mas imperfeita, portentosa, mas incompleta (1975:26). Euclides da

Cunha, sem atentar para o fato de que ele mesmo estava a contribuir para as visões futuras

acerca da região, analisa e desautoriza a certa altura do texto as leituras feitas sobre a

Amazônia:

A literatura científica amazônica, amplíssima, reflete bem a

fisionomia amazônica: é surpreendente, preciosíssima, desconexa.

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Quem que se abalance a deletreá-la, ficará, ao cabo desse esforço, bem

pouco além do limiar de um mundo maravilhoso. (Cunha, 1975:27)

Nesse ensaio Euclides da Cunha também utiliza algumas estratégias discursivas

presentes em Os sertões, qual seja a utilização de antinomias e intensificação. Se a primeira

estratégia aproxima palavras com sentidos contrários que se juntam em fortes oxímoros,

buscando ressaltar a tensão resultante da proximidade de adjetivos contrários, que não se

excluem, a segunda, por meio de uso de superlativos que intensificam ao extremo os efeitos

do objeto descrito. A utilização desses recursos cria uma espécie de linguagem neo-barroca,

não apenas pelo efeito retórico, mas perseguindo a adaptação dessa linguagem à magnitude do

que está sob análise, como mostram os trechos seguintes:

Destarte a natureza é portentosa, mas incompleta. É uma construção

estupenda a que falta tôda a decoração interior. (...)

Tem tudo e falta-lhe tudo (...). (Cunha, 1975:26)

As ilhas trabalhadas pelas mesmas correntes que as geraram,

desbarrancam-se a montante e restauram-se a jusante (...). Por fim,

desgastam-se e acabam. A de Urucurituba durou dez anos (1840-

1850) mercê da superfície vastíssima; e apagou-se numa enchente...

(Cunha, 1975:26) Um tronco de samaúma que tombe de uma das margens (...) desvia o

empuxo da massa líqüida contra a outra, onde de pronto se exercita,

menos em virtude da fôrça viva da corrente que da incoerência das

terras, intensíssima erosão de efeitos precipitados. (Cunha, 1975:44)

A essa linguagem singular do autor de À margem da história poder-se-ia dizer o

mesmo que o pesquisador Lourival Holanda constata acerca de Os sertões: “participa de uma

concepção espetacular, de uma representação de mundo que tende a tudo enfatizar e a tudo

dar dimensões desmedidas” (Holanda, 1999:127). Por apresentar essas características, a

própria linguagem complexa de À margem da história acaba por apreender a complexidade da

Amazônia na forma de relatar o que vê (Holanda, 1992:45). Desse modo, Euclides da Cunha

forja uma visão “magistral”, ainda que desencantada, que marcaria grande parte da produção

literária da região, tanto por suas marcas deterministas quanto pelos ecos posteriores em um

regionalismo sempre recorrente.

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Como mostra Maria Helena Rueda em um artigo sobre a literatura hispano-

americana, Euclides da Cunha é um poderoso precursor na associação e fixação de imagens

da Amazônia como uma terra ainda em formação, um caos primordial, em sua obra À margem

da história:

Essa noção da Amazônia como um território virgem, aberto ao

descobrimento, já estava presente nos textos dos que percorreram o rio

nos séculos XVIII e XIX, porém Euclides da Cunha é mais insistente

em seu afã de associá-lo com a imagem do caos, pois o descreve como

se ali o trabalho dos criadores do universo ainda estivesse inconcluso.

(...) Ao descrevê-lo como um espaço onde reina o caos das origens, o

autor erige-se como emissor do texto que lhe dará ordem. (Rueda,

2003:33)

Os ensaios de À margem da história ganham, dessa forma, status de texto fundador,

o discurso que, descrevendo e analisando, organiza o mundo indomável, projetando sobre

aquele caos dos rios da Amazônia um futuro que deverá ser de domínio e incorporação da

região ao processo produtivo do país. O pesquisador Pedro Maligo, em sua análise de

romances brasileiros que tomam a Amazônia como cenário, também afirma que essa obra de

Euclides da Cunha inspirou muitos textos, constituindo-se em importante fonte de temas e

figuras (Maligo, 1998).

Afora a relevância de À margem da história, outro texto de Euclides da Cunha

também possui grande importância para a configuração da sua idéia de Amazônia, trata-se do

preâmbulo escrito para a apresentação da obra Inferno Verde, de Alberto Rangel, de 1904,

como foi dito anteriormente. Composto com a mesma opulência vocabular e muitas

antinomias, essa apresentação de um livro que em muito se aproxima do estilo do autor em Os

sertões reforça as imagens que apareceriam no livro póstumo, À margem da história, quais

sejam a monotonia, a grandiosidade do cenário, a perpétua incompletude da natureza: “Tem a

instabilidade de uma formação estrutural acelerada. (...) A evolução natural colhe-se, no seu

seio, em flagrante.” (Cunha, 1927). Em meio a essa “terra extraordinária”, “que ainda está

crescendo”, onde, portanto, as forças primitivas da terra estão em constante movimento, “o

espaço esconde-se a si mesmo”, a vida humana é apenas um raio, e o homem um mero “ator

agonizante” (Cunha, 1927). Esse intruso, para dominar a região, ou pelo menos para

descortinar algo de sua grandiosidade, como o naturalista Walter Bates, “terá de crescer com

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ela” (Cunha, 1927:3), quase que tornando-se parte do espaço para, a partir de dentro, poder

almejar uma interpretação do conjunto.

7. Ficcionistas europeus vão ao paraíso

Entre as obras de ficcionistas europeus que ambientaram narrativas na Amazônia,

dois romances analisados por Neide Gondim em sua obra A invenção da Amazônia (1994)

referem-se diretamente ao espaço desde o título: A jangada, de Júlio Verne, e O mundo

perdido, de Conan Doyle. Além desses ficcionistas, interessa-nos também um outro europeu

que, diferentemente dos dois anteriores analisados por Gondim, esteve na Amazônia e seu

romance adquire, assim, ao lado de fortes traços naturalistas, um tom de libelo contra

condições de trabalho vividas e testemunhadas: estamos falando de Ferreira de Castro, com

seu romance A selva, o qual analisaremos mais adiante, que é o mais importante entre esses

ficcionistas europeus para os objetivos deste trabalho, já que seu relato vai se tornar um marco

na maneira de abordar a região ficcionalmente.

Em O mundo perdido, um dos romances de aventuras de Sir Arthur Conan Doyle,

publicado em 1912, o professor Challenger, eminente e irascível naturalista inglês,

desentende-se, inclusive fisicamente, com toda a comunidade científica de sua época, além de

agredir jornalistas, em virtude das idéias que defende depois de ter voltado de uma expedição

à América do Sul (Conan Doyle, 1982). Esse personagem, que é caracterizado de maneira

quase caricatural, tanto por sua postura arrogante demais quanto por se considerar o que há de

mais avançado na sociedade “civilizada”, apregoa que, ao contrário do que dizem as teorias

da época, no lugar visitado por ele, um platô em plena floresta amazônica, as leis “normais”

da evolução da vida foram suspensas e ali sobreviveram criaturas da época jurássica. Para

comprovar o que diz Challenger, forma-se uma comitiva composta por criaturas mais

estranhas que aqueles seres fantásticos que vão ameaçá-los no mundo fantástico construído

pelo romance: Summerlee, um professor convencional e extremamente cético quanto às

afirmações de Challenger; Lorde John Roxton, um caçador que possui troféus de várias partes

do mundo em sua casa, inclusive uma cabeça de raro rinoceronte branco; o jornalista Ed

Malone, que parte nessa arriscada aventura para merecer tornar-se alvo da atenção de uma

dama exigente; além do próprio professor Challenger. Essa expedição, conduzida pelo

professor Challenger (desafiante, competidor – o nome aqui não é mero acaso), inspirada nas

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viagens de naturalistas como Wallace e Bates, sai da Inglaterra e pretende ultrapassar “as

longínquas fronteiras do Novo Mundo”, “mergulhando no desconhecido” (Doyle, 1982: 84-

85). A expedição encontra em plena selva amazônica um platô onde ocorrem coisas

maravilhosas como dinossauros sobreviventes da Era Mesozóica e onde habita uma tribo de

homens-macacos. A idéia que move esse grupo é decididamente a mesma dos primeiros

viajantes-exploradores, pois eles se consideram superiores a todos que encontram, nomeiam

os acidentes geográficos que encontram e cartografam, ainda que de maneira tosca, o platô

excepcional onde se encontram. Depois de muitas peripécias, incluindo incidentes com

pterodátilos e homens-macacos, os quatro conseguem voltar a salvo para seu país, de posse de

um mapa e planos de fazer uma nova expedição, melhor equipada.

A jangada, de Júlio Verne (1966), de 1881, segue rota inversa à expedição do

professor Challenger e seus três companheiros, ou seja, vai de Iquitos, na Amazônia peruana,

até Belém, o que não impede que esses dois romances apresentem muitas características

comuns. Ambas as expedições enfrentam obstáculos, antagonistas em sua viagem linear rumo

ao objetivo, seguindo a linhagem de romances com feição colonial. Centrado na família

Garral/Da Costa, o romance de Júlio Verne acompanha a trajetória quase idílica, pois que não

aparecem grandes dificuldades no caminho, do grupo que desce o Amazonas – em uma

imensa jangada, com todos os confortos da “civilização”, em “lenta procissão naturalista e

etnográfica”, conforme análise de Antonio Dimas (Dimas, 2005: 322). O objetivo claro é ir até

o Pará para o casamento da filha de João Garral, Minha, com Manuel, amigo de Bento, o

outro filho de Garral. Um objetivo não declarado de João Garral, na verdade Da Costa, é

desfazer uma antiga condenação injusta de que fora vítima. Se não acontecem maiores

peripécias durante a viagem, é porque o maior obstáculo já segue a bordo como convidado de

Bento: trata-se de Torres, antigo capitão do mato e que pretende chantagear o protagonista. O

narrador de A jangada é decididamente otimista: a civilização – leia-se o colonizador europeu

– há de trazer a modernidade e o progresso para a região, e ai daqueles que se interpuserem no

caminho desses exploradores determinados. Desse modo, é significativo que o romance inicie

com a figura de um capitão do mato, representante do autoritarismo da velha ordem

escravocrata, e se encerre com um navio a vapor (Dimas, 2005: 7).

Um topos importante e recorrente em ambos os romances é a viagem, que permite, a

um só tempo, a evasão para um espaço distante e exótico, ligado a um tempo pretérito, pois

“primitivo”, servindo para colocar o leitor europeu em contato com distintas configurações de

22 Texto em elaboração para as Atas do Congresso Internacional dos 75 Anos de A selva, realizado em julho/2005.

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70

civilização, com evidente estatuto inferior para os nativos encontrados no caminho. Dessa

forma, as duas obras citadas acima bem poderiam ser aproximadas daquele gênero de

“romances coloniais”, assim denominados por Franco Moretti no seu Atlas do romance

europeu (2003). O que Moretti chama de romances coloniais são aquelas narrativas do século

XIX – período estudado pelo autor, que se caracterizam por seus enredos lineares, por sempre

envolverem viagens a lugares distantes, misteriosos e potencialmente perigosos para o

“homem civilizado”, escritos por autores europeus e que dão conta, ficcionalmente, da

exploração colonial em curso (Moretti, 2003: 69-71). O espaço dos romances analisados por

Moretti é o continente africano, com suas florestas, rios portentosos e a imensa sede que os

leitores europeus têm de aventura, o que os escritores europeus vão traduzir em romances,

como, por exemplo, As minas do Rei Salomão, de H. Rider Haggard, Cinco semanas em um

balão, de Júlio Verne, ou mesmo um clássico como O Coração das Trevas, de Joseph

Conrad, entre outros. Esses romances são marcados por percursos de exploração na “terra

selvagem”, viagens lineares com objetivos certos – o lucro rápido e, se possível, fácil – e não

colonização ou efetiva permanência na terra inóspita. Um aspecto interessante desse tipo de

romance, que tematiza um percurso linear, sem desvios, é que aparecem de um lado os

homens brancos, sua tecnologia ocidental, e de outro os antagonistas, que tanto podem ser

leões, mosquitos ou mesmo nativos, todos estes reunidos sob o mesmo estatuto (Moretti,

2003: 70). A tônica central desse tipo de romance “penetrar, tomar, partir (e, se necessário,

destruir)” (Moretti, 2003: 73), e nesse tipo de romance não é possível o percurso de

aprendizagem traçado nos “romances de formação” (Bildungsroman), pois é como se nada

houvesse para um jovem europeu aprender na África (Moretti, 2003: 80) – e, poderíamos

acrescentar, também na América, espaços de domínio do primitivo. Porém, Ferreira de Castro

vai provar em dois romances, Emigrantes (1928) e, especialmente A selva (1930), que tal

aprendizagem é possível pela transfiguração ficcional de sua experiência traumática no Brasil.

7.1 Um português conhece o inferno: Ferreira de Castro

Toda e qualquer viagem, seja ela real ou imaginária, temporal ou espacial, faz parte

de um processo maior de formação individual e, por toda a experiência que acarreta, torna-se

parte fundamental da trajetória pessoal. Quando essa travessia, possivelmente longa e

fatigante, mas sempre esclarecedora, resulta em um relato, seja ele um simples inventário das

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novas do desconhecido ou um texto de ficção que ultrapassa a perspectiva confessional, pode

se transformar num percurso emblemático e apresentar-se, simultaneamente, como um

testemunho de grande impacto. Como disse Octavio Ianni em seu ensaio sobre os enigmas da

modernidade, período em que o mundo fica vez menor e a noção de tempo muda

radicalmente, “sob vários aspectos, a viagem desvenda alteridades, recria identidades e

descortina pluralidades” (Ianni, 2003: 14), o que eleva os relatos dessas travessias, ficcionais

ou não, a verdadeiras pontes entre os mundos percorridos, os quais “pertencem a planos

diferentes de existência” (Poulet, 1992:64), e também transforma seus autores em importantes

intermediários entre desconhecidos. Assim, transfigurações em ficção de experiências como a

de Ferreira de Castro no romance A selva cumprem o papel essencial de se configurarem

como pontes que, se não preenchem vazios, ligam mundos quase incomunicáveis.

Dessa maneira, nesta parte da tese, levantando questões e abrindo as possibilidades

de resposta, investigo a importância da obra de Ferreira de Castro em abrir novos caminhos

para a interpretação e a representação romanesca do espaço da Amazônia, especialmente no

que diz respeito aos autores Dalcídio Jurandir, no Pará, e Milton Hatoum, no Amazonas.

7.1.1 A selva entre o Naturalismo e o Neo-realismo

A primeira edição do romance A selva, como é de conhecimento geral, é de 193023,

muito posterior, portanto, à experiência traumática de Ferreira de Castro na Amazônia, já que

ele chegou ali em 1911. Se a obra foi construída a partir da experiência própria, antes de fazê-

lo o autor percorreu muitas leituras da Amazônia, como se depreende das epígrafes do livro,

retiradas de Tavares Bastos, De Pinedo e Euclides da Cunha, sendo este último uma

referência fundamental para a arquitetura de A selva, especialmente por seu prefácio à obra de

Alberto Rangel, Inferno Verde, de onde foi retirada a epígrafe, e por À margem da história.

No romance de Ferreira de Castro, vamos encontrar uma estrutura semelhante àquela

de À margem da história e Os sertões, num relacionamento complexo entre a terra, o homem

e sua luta diária pela sobrevivência. Na “Pequena história de A selva”, escrita para a edição

comemorativa do romance em 1955, o autor já demonstra que a selva, ou o cenário luxuriante

e perigoso construído em seu romance, participará ativamente do enredo, um personagem

23 A edição que será utilizada aqui é 25ª, publicada na cidade do Porto por Guimarães, s/d, com base na edição considerada definitiva, a 24ª.

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poderoso e sempre ameaçador, mas já adiantando também a sua ambição de captar o drama

humano que ali se passava:

Um livro monótono porventura, se não pudesse dar-lhe colorido e

vibração, mas honesto, onde o próprio cenário, em vez de nos impelir

para o sonho aventuroso, nos induzisse ao exame e, mais do que um

grande pano de fundo, fosse uma personagem de primeiro plano, viva

e contraditória, ao mesmo tempo admirável e temível, como são as de

carne, sangue e osso. A selva, os homens que nela viviam, o seu

drama interdependente, uma plena autenticidade e nenhum efeito fácil

– essa era a minha ambição. (A selva, s/d:25)

Uma das epígrafes do romance A selva, trecho de um prefácio escrito por Euclides da

Cunha para o romance Inferno verde, de Alberto Rangel, outro grande fixador de imagens da

Amazônia, imediatamente o colocam ao lado daqueles que abordam a Amazônia pelo viés

mítico, ainda que buscando captar a realidade humana, partindo da preponderância do meio

sobre os personagens. Reforçada pelas demais epígrafes, essa região em transformação perene

é, simultaneamente, reduto da mais profunda solidão, como diz Tavares Bastos, e túmulo

sombrio, como afirma De Penedo. Aberto dessa forma, o romance parece que irá apenas

reiterar a nota naturalista que perpassa muito da ficção ambientada na Amazônia, com a selva

sendo, no fundo, sempre a razão última das desgraças e o cárcere do homem, o meio que

impele, de maneira obsedante, a volta do “civilizado” aos instintos primitivos, bestiais, como

acontece em certos momentos da trama com Alberto, o protagonista da trama. Essas

expressões iniciais são recorrentes e esses textos ecoam ao longo da narrativa de Ferreira de

Castro, especialmente na abundância de metáforas e imagens, tais como “mundo pré-

histórico” (p.60), “labirinto” (p.66), “mundo embrionário” (p.87), “mundo ignorado” (88),

“solidões imensuráveis” (p.89), “mundo virgem” (p.121), “mundo fabuloso” (p.151), “cripta

de encantamento” (p.151), ou mesmo na sucessão de descrições em que transparece a

monotonia e a repetição da paisagem, com o indivíduo sendo suplantado pelo conjunto,

exuberante e terrível, de flora e fauna, o qual forma uma teia inextricável para o “neófito” que

chega, desenhando um mundo fabuloso que não acaba (A selva, s/d:151). É um mundo em

que “o esforço já não para descobrir mas para corrigir a selva triunfante e inexorável” (p.92)

revelava-se frequentemente vão e mortífero, como se mostra no episódio da construção da

ferrovia Madeira-Mamoré, mencionada pelo narrador à p. 281. Ali a selva era a suprema

autoridade:

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73

Não era o segundo reino, era o primeiro em força e categoria, tudo

abandonando a um plano secundário. E o homem simples transeunte

no flanco do enigma, via-se obrigado a entregar seu destino àquele

despotismo. (A selva, s/d: 121)

Ou ainda:

A ameaça andava no ar que se respirava, na terra em que se pisava, na

água que se bebia, porque ali somente a selva tinha vontade e

imperava despoticamente. Os homens eram títeres manejados por

aquela força oculta, que eles julgavam, ilusoriamente ter vencido com

a sua atividade, o seu sacrifício e a sua ambição. (A selva, s/d: 185)

No entanto, ao zarparmos junto com Alberto nessa viagem que é, a um só tempo,

espacial, mas também temporal, por esse rio imenso, e adentrarmos junto com o narrador na

densa floresta dessa ficção, a impressão inicial sofrerá alguns abalos, ainda que não

totalmente refutadores, e avultará a força dessa ficcionalização do drama humano na

Amazônia expresso em A selva. Se toda obra é um documento sobre seu tempo, o romance de

Ferreira de Castro é também um documento da ilusão de milhares de anônimos nordestinos

que trabalharam como escravos para enriquecer seus patrões e lutaram diariamente para

livrar-se do terrível elo do saldo inalcançável no barracão.

Ao contrário da trajetória física do barco “Justo Chermont”, que navega no Rio

Amazonas desde Belém até o Seringal Paraíso, percurso de subida, portanto, a viagem que o

herói português, Alberto, empreenderá é, decididamente, de descida, até porque ele agora está

entrando naquele espaço-incógnita de que fala Ricardo Gullón em seu trabalho sobre o espaço

no romance (Gullón, 1980). A narrativa começa e surpreendemos o herói já exilado

(rebaixado) em Belém, por causa de suas convicções monárquicas, e passando por grandes

dificuldades financeiras, pois o tio com quem está hospedado já não quer mais ficar

responsável por ele e o envia para coletar o látex no distante seringal. Até aqui ressaltou-se a

nuança espacial da viagem que o herói realiza, porém é certo que esse percurso é também

temporal, especialmente se pensarmos que Alberto é obrigado a sair de um passado bem

identificado – a mãe e o espaço-refúgio da infância, o país convulsionado por lutas de

afirmação da república, o apego do herói ao antigo regime – para uma ilusão, uma

possibilidade de futuro diferente: o Brasil, que já fora, em tempos longínquos, a miragem de

seus ancestrais e que transformara-se, novamente, em destino de ingênuos, aventureiros,

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desbravadores e desesperados, cuja força como destino se traduz da seguinte maneira em

outro romance do mesmo autor, Emigrantes, de 1928:

Era um sonho denso, uma ambição profunda que cavava nas almas,

desde a infância à velhice. O oiro do Brasil fazia parte da tradição e

tinha o prestígio duma lenda entre os espíritos rudes e simples. (...)

Viam-no erguer-se refulgente, ofuscante, em moedas do tamanho do

Sol ao fundir-se na linha do horizonte, precisamente para os lados

onde devia ficar o país maravilhoso. (Emigrantes, 1985: 21)

O trecho acima é especialmente revelador se pensarmos que o romance ao qual

pertence narra a história de Manuel da Bouça, um homem que decide emigrar para o Brasil a

fim de dar novo alento financeiro à família e, particularmente, à filha em idade de casar. No

entanto, ao contrário dos que eram seduzidos por essa idéia que “residia dentro do peito de

cada homem” e “vinha já dos bisavós, de mais longe ainda” (Emigrantes, 1985:21), por essa

possibilidade de fortuna rápida e fácil, Alberto, de A selva, não se sentia atraído por esse

“Eldorado” ilusório:

Não o atraíam esses rios de lendárias fortunas, onde os homens se

enclausuravam do Mundo, numa confrangida labuta para a conquista

do oiro negro, lá onde os ecos da civilização só chegavam muito

difusamente (...). (Emigrantes, s/d:37)

Como se disse antes, se a trajetória física é de subida, a psicológica é de descida,

configurando-se como aquele descenso social que Northrop Frye afirma abrir frequentemente

o romance (Frye, 1980: 119), ou seja, um evento crucial que prepara o herói para o grande

aprendizado pelo qual ele deve passar. Com rígidas idéias de estratificação social, nessa

viagem que é fulcral para um minucioso exame do complexo e injusto sistema montado em

torno da valorização da borracha, Alberto vai defrontar-se sempre com progressivas

humilhações que o farão repensar sua estreita concepção de mundo. Humilhado pelos que ele

pensa serem os seus iguais, ele vai encontrar solidariedade onde menos espera, forçando-o a

rever seus paradigmas, buscar explicações para tantas injustiças e rebaixamentos dos seres

humanos, muitas vezes levando-os a comportamentos inaceitáveis pelo herói.

Dessa forma, a lenta e profunda transformação que Alberto vai sofrer é a maior

contribuição que seu doloroso percurso pela selva dará à sua formação. Ela se dará desde o

mais completo isolamento daqueles que o personagem e o narrador qualificam como

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pertencentes àquele curral ou redil ambulante que era o navio, com qualificações como

“caterva humana” e “rebanho24” para os passageiros da terceira classe, até a completa

consciência da profunda cisão social entre aqueles novos senhores, os seringalistas, e aqueles

pobres escravos novos, os seringueiros, em sua maioria fugidos das violentas secas do

nordeste brasileiro, intermediados por capatazes e outros funcionários administrativos.

Esse percurso selva amazônica adentro revelar-se-á, então, ao final do trajeto, como

aquela viagem iniciática dos heróis em doloroso processo de aprendizado, um verdadeiro

ritual de passagem para a vida adulta. Não por mero acaso o escritor Ferreira de Castro

cumpriu esse “ritual de passagem” com menos idade que seu herói, entre os doze e os

dezesseis anos, como ele próprio conta na “pequena história” do romance. É por isso que esse

cruzamento de fronteiras25 tão claras, o que é decisivo para a estrutura da narrativa, entre o

que herói pensa ser a civilização e o interior bárbaro e selvagem, causa uma profusão de

imagens negativas, tanto do espaço em torno quanto daqueles que se dirigem mansamente

para a exploração no seringal, e elas se sucedem, repetem-se com freqüência obsessiva

durante essa viagem. É desse modo que o espaço age sobre a retórica, projeta-se no estilo da

narrativa, não só para marcar o cenário novo que se descortina ante os olhos do personagem,

mas também para expressar sua impotência ante forças que estão acima de sua intervenção e,

ao mesmo tempo, contê-las pela sua nomeação e pelas comparações. Nesse sentido, é

significativo que a palavra “labirinto” apareça logo no começo do romance (A selva, s/d: 66).

Ainda assim, considerando o conjunto da narrativa e o equilíbrio entre os vários

elementos que a compõem, a obsessão pela selva como personagem, com o uso de grande

variação de expressões que exprimem a perplexidade, o assombro, o terror e a armadilha (o

labirinto, o cárcere, a muralha) em que o herói se sente aprisionado, impedem que o

verdadeiro culpado por aquela exploração desmedida assuma o primeiro plano, mesmo com

todas as cenas de denúncia presentes no romance. Impedem, por exemplo, que Juca Tristão, o

24 Para formar uma idéia mais ampla da obra do escritor e dos recursos estilísticos por ele utilizados, é interessante fazer um paralelo entre essas expressões com um trecho do romance Emigrantes, em que o narrador descreve um ajuntamento de pessoas e especula que se houvesse homem morto ou ferido, “não haveria aquela pasmaceira” e “todos se apertariam e mexeriam, como rebanho saindo do curral” (Emigrantes, 1985:35). Em outro trecho do mesmo romance, com o personagem já embarcado, o navio aparece como “um curral flutuante, onde se comprimia grande rebanho” (p.70). A partir dessa comparação pode-se levantar a hipótese de que aquilo que parece uma visão depreciativa dos nordestinos em A selva também é aplicado aos conterrâneos do personagem Manuel da Bouça, e não é necessariamente uma visão hierárquica do Outro, mas uma expressão com excesso de ênfase para designar o comportamento de uma multidão submissa. Acrescente-se que em Emigrantes há uma recorrência bem maior que em A selva dessa expressão, além de variações como “manada”, “récua”, etc. 25 No romance Emigrantes, que também tematiza a viagem, o narrador tem consciência do cruzamento de uma linha que separa dois mundos, pois em certo ponto da narrativa ele declara que o navio parecia “empenhado em galgar a fronteira imaginária” (Emigrantes, 1985: 73). Esse romance forma, juntamente com a selva, um painel

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dono do Paraíso, seja configurado e recebido pelo leitor como o grande representante, na

narrativa, dos opressores e que a culpa pelas crueldades perpetradas contra os trabalhadores

seja repartida pela longa rede de ajudantes do chefe e, essencialmente, com a selva. Ou seja,

ainda que A selva seja um documento e uma denúncia contundentes sobre a crueldade do

sistema da borracha, a floresta possui, no romance, um peso excessivo sobre os dramas

vividos pelos personagens.

Enfatizando o que se disse antes, o centro da arquitetura do romance não é apenas a

grandeza dramática do enredo e o olhar arguto do narrador e do personagem que flagram a

todo momento a injustiça e o desmando, com as ressalvas expressas acima sobre a natureza,

mas é a transformação por que o herói é obrigado a passar, ao contrário daquela afirmação

que Moretti faz sobre os heróis em processo de formação (Moretti, 2003: 78). O romance de

Ferreira de Castro demonstra que um jovem europeu tem muito a aprender fora do velho

continente e pode muito bem empreender sua viagem iniciática num espaço tão distinto do

seu quanto a floresta amazônica e aprenda duras lições ali, o que o marcará para sempre.

Porém, Moretti falava sobre o personagem emblemático do romance europeu de formação, o

Wilhelm Meister, de Goethe, que pertence a um tipo de narrativa cujo período áureo fora o

século XIX (Moretti, 2003), e o momento em que o romance A selva surge já é um período

consideravelmente diferente daquele. Diferentemente dos personagens dos romances de

formação, o personagem de A selva não está, conscientemente, em busca de novas

experiências e o percurso que ele empreende é aquele de aprendizagem forçada pelas

circunstâncias econômicas e políticas.

Na estrutura do romance, ainda que Juca Tristão, o dono do seringal Paraíso, exerça

um poder despótico, à maneira dos senhores medievais, e estenda seus domínios por uma área

enorme, com uma imensidão de floresta nos fundos de sua propriedade, a Selva, como

sombrio personagem que é, impera e paira, de maneira soberana, sobre tudo e sua onipresença

a rodear o herói, encarcerá-lo e amedrontá-lo, lembra, ininterruptamente, ao homem sua

pequenez e sua derrota iminente ou, pelo menos, previsível, e que qualquer vitória será

sempre provisória:

Via Firmino (...) na vida de muitos meses em comum, ambos

sepultados na selva hiante, na clareira que diminuía dia a dia, sob um

silêncio aterrador. Via-o, depois, a ele sozinho, na barraca que parecia

contundente do que seria a emigração dos portugueses no início do século XX.

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abandonada e para onde avançavam já com a persistência de sempre,

os tenazes liames da floresta. (A selva, p.319)

Este outro trecho é ainda mais esclarecedor sobre a ambigüidade entre os amos que

fazem e desfazem com os homens naquele espaço, assim como sobre a autoridade que há de

prevalecer, o índio, que se identifica plenamente, pela completa inserção, com a selva

circundante:

Legalmente todas essas profundidades indesvendadas tinham por dono

Juca Tristão, admitindo duas retas imaginárias e paralelas saindo do

Madeira até Mato Grosso; mas, em realidade, outro amo existia,

invisível, feroz, enigmático como a selva e que se comprazia em

dançar, agitando o seu capacete de plumas em volta da cabeça

degolada do invasor. (A selva, p.190)

A punição de Juca Tristão pelo fogo, ateado pelo servo que mais o ama, Tiago, o

“mefistófeles de ébano” na descrição do narrador (A selva, p.279), assume, quase ao fim do

romance a possibilidade de a justiça chegar àquele lugar à “margem da história”, ainda que

por seu menos provável executor. A dita “civilização”, que ali só chegava “muito

difusamente, como de coisa longínqua, inverosímil quase” (A selva, p.37), com esse fogo e

com os ecos das palavras de um personagem a quem ninguém dava valor, lança até ali a sua

rede e pune com a morte – a purgação – o proprietário que escraviza e explora seus

semelhantes sem a menor consideração por sua condição de homens. Se Alberto, o herói do

romance é incapaz de reagir às injustiças e às crueldades do patrão para com os fugitivos, já

que ele próprio pode ser o próximo cativo, a melhor solução para a economia da narrativa é

que um velho negro, perseguido pelo enxovalho dos companheiros, desdenhado por todos,

saia em defesa, não daqueles homens que antes riam dele, mas do direito de liberdade, como

ele próprio afirma ao se entregar ao guarda-livros e confessar seu crime, tornando-se, dessa

maneira, quase uma espécie de deus ex machina, uma solução um tanto quanto artificiosa para

livrar Alberto da obrigação de reagir de acordo com sua consciência. Apesar disso, é

significativo que parta desse personagem, “mefistófeles de ébano” ou “duende negro” (A

selva, p. 225), a purgação das injustiças cometidas no seringal, pois só ele não tem mais nada

a perder, como o próprio Tiago o afirma: “– Me mande matar, se quiser, branco. Eu já sou

muito velho e não preciso viver mais...” (A selva, p.334).

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Ao final, a título de julgamento de todo o drama ali encenado, o narrador confirma o

discurso ambíguo que o acompanhara durante toda a narrativa e desloca a culpa para mais

além dos homens:

Depois do que vira, em si e nos outros, quando o instinto pode mais e

acorda mil reações ignoradas, mil imposições que tiranizam os

próprios lúcidos e os desvairam, e os amarrotam, e os igualam aos que

trazem alma primitiva, só havia a acusar a origem remota, que não

fora perfeita na sua criação. (A selva, p.335)

Como se depreende da conclusão do romance, em Ferreira de Castro, apesar de

decorridos quase 500 anos do primeiro encontro entre europeus e “americanos”, ainda há o

“sentimento radical de estranheza” de que fala Tzvetan Todorov em A conquista da América

(Todorov, 1999: 6), e o autor de A selva compõe o romance – ele o escreverá muito depois de

“experimentar” esse encontro – ainda sob o signo do medo da floresta e seus habitantes. Essa

presença forte e assustadora impede que uma visão crítica dos problemas humanos encenados

ali ocupe o centro da narrativa, concorrendo com a visão da floresta como um

enigma/personagem sempre opressor. No entanto, o romance, com a convivência dessas

visões distintas que não se fundem nem se excluem, extrai sua força dramática do embate do

homem com forças que não consegue compreender.

7.1.2 Um interlocutor necessário para a ficção amazônica

Depois dessa brevíssima apreciação de um romance complexo como A selva,

importa, neste ponto da argumentação, avaliar sua inserção e importância na tradição literária

da região amazônica, já que a voz contundente do narrador de Ferreira de Castro não poderá

deixar de ser ouvida e avaliada por aqueles que ambientarem seus romances na região. A essa

altura, parece claro que, entre os vários escritores que abordaram os conflitos gerados por esse

ciclo, tais como Álvaro Maia, Carlos de Araújo Lima, Jarbas Passarinho e outros, Ferreira de

Castro, com seu romance A selva, ocupa um lugar especial pelos diversos aspectos explorados

aqui.

Neide Gondim já havia mostrado em sua dissertação de mestrado que vários

romancistas haviam incorporado em suas narrativas a conquista da Amazônia de maneiras

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diversas e com objetivos distintos, demonstrando que o chamado “Ciclo da Borracha” havia

sido o mais fecundo entre os ciclos de exploração para a ficção ambientada na região

(Gondim, 1982: 2), o que também afirma Maria Helena Rueda em seus estudos sobre

romances latino-americanos ambientados na selva (Rueda, 2003: 32).

Um dos motivos assimilados pela ficção ambientada na Amazônia, como já se disse,

é o “topos” da viagem, conforme constata Milton Hatoum em artigo no qual compara a

configuração do espaço em Mad Maria, de Márcio Souza, e A selva, de Ferreira de Castro

(Hatoum, 1993). Nesses romances, conforme Hatoum, a ocorrência desse motivo diz respeito

muito mais à tematização do exílio em virtude de marginalização social ou política, mas os

dois autores enveredam por diferentes concepções do espaço amazônico. Ou seja, segundo

Hatoum, defrontado com um espaço grandioso que o amedronta,

O narrador de Ferreira de Castro recorre a certos procedimentos

usados pelos cronistas que, diante de um mundo desconhecido,

procuram uma referência através de comparações insólitas. (Hatoum,

1993: 107)

É quase natural que o narrador do romance A selva, pertencente a um mundo muito

diferente, ao cruzar a fronteira entre o mundo conhecido e o desconhecido, precise

desesperadamente de comparações para dar conta da imensidão a ser desbravada e conter o

ambiente assustador ao qual ele é apresentado. Essa é uma visão do espaço que oscila do

paraíso primordial ao inferno que escraviza, e a selva parece configurar aquele labirinto que

sempre aparece quando os personagens se aproximam do desconhecido e potencialmente

perigoso26, associado também, em alguns casos, à pobreza, à miséria e à opressão.

Por outro lado, na configuração da floresta em Mad Maria, de Márcio Souza,

segundo Milton Hatoum, transparece uma posição do narrador em que “não é a floresta em si

(como sugere o narrador de Ferreira de Castro) que torna a vida degradante, e sim as

condições de trabalho adversas num mundo diferente.” (Hatoum, 1993: 113). Podemos

acrescentar à afirmação de Hatoum o fato de que, se o romance de Ferreira de Castro

ultrapassa a concepção de espaço de Inglês de Souza, Márcio Souza, com Mad Maria, busca

dar um passo além da configuração do ambiente na narrativa de Ferreira de Castro,

deslocando completamente seu foco para as relações humanas em um momento importante

para a história da região amazônica, com a selva saindo do primeiro plano da narrativa e

26 Acerca do labirinto como motivo consultar Moretti (2003: 94).

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participando, não como personagem, mas como cenário para a encenação da arrogância, da

corrupção e da exploração dos trabalhadores. É nesse espaço limiar e de condições extremas

que nacionalidades tão distintas como barbadianos, alemães, indianos, americanos e ingleses

são colocadas em confronto, não só com o espaço avassalador, mas também, e talvez

principalmente, com seus próprios medos e limitações que, por sua vez, se projetam no

espaço, o qual reflete imagens assustadoras e primitivas. De conformação a um só tempo

delicada, caprichosa e resistente às incursões, a floresta em Mad Maria também se transforma

em labirinto intransponível para os alemães que fogem das condições subumanas de trabalho:

A selva não oferecia nenhuma desculpa para eles viverem, era outra

prisão (...). Mas a selva não deixava que penetrassem nela facilmente,

resistia, interpunha obstáculos floridos e rendados que os golpes de

machado ou terçado não causavam nenhuma espécie de dano, além da

escuridão cada vez maior. (Souza, 1980: 186-7)

Porém, a floresta não é mais aqui o meio que determina a derrota, mas é o

desconhecimento de sua configuração que leva ao cansaço, ao desastre e à morte pelas mãos

dos próprios companheiros, em contraste com a total adaptação do personagem indígena Joe

Caripuna (Souza, 1980:198). A floresta não oferece passagem, fora do ambiente dominado do

acampamento dos construtores da ferrovia, a quem desconhece seus caminhos e subestima

suas possibilidades, a quem ousa enfrentar o labirinto sem um fio condutor que, deixa claro o

narrador, só o índio possui.

Em A selva, de Ferreira de Castro, o homem ainda sofre a influência do meio, mas já

há uma percepção de que a chave da degradação pode estar nas condições de trabalho,

enquanto no romance de Márcio Souza, além da consciência do narrador sobre as relações de

trabalho degradantes, há também um claro contraste entre a adaptação e a inadaptação ao

espaço, representada na contraposição entre o índio Joe Caripuna e os estrangeiros.

A aproximação dos romances de Ferreira de Castro e de Márcio Souza por Milton

Hatoum é bastante significativa da importância de A selva para a literatura da Amazônia, o

que o próprio autor de Mad Maria já havia enfatizado no ensaio A expressão amazonense: do

colonialismo ao neocolonialismo (1978). De certa forma, esses dois autores, grandes

representantes da melhor literatura amazonense, erigem Ferreira de Castro, não como fonte ou

influência, mas como interlocutor essencial, ou um ponto de referência, para a construção de

suas próprias obras ficcionais. A partir desse panorama, é possível afirmar que a voz de um

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dos personagens de A selva, seu Guerreiro, não passou despercebida do escritor Márcio Souza

quando o gerente do seringal afirma:

(...) Este rio já teve dois grandes romances. Um, foi a construção da

estrada de ferro Madeira-Mamoré. (...) O outro romance foi a tentativa

de Rondon para civilizar os parintintins, sem empregar violência. (A

selva, p. 281)

Sabemos agora que o primeiro “romance”, empreitada que Ferreira de Castro não

chegou a encarar27, foi narrado de maneira irônica e com mordaz revisão crítica da história da

região amazônica por Márcio Souza em Mad Maria, nessa narrativa que, como Hatoum

mostrou, há um claro diálogo com A selva. O segundo “romance” a que o personagem se

refere, a epopéia de Rondon junto aos Parintintins, foi narrado por Ferreira de Castro em O

instinto supremo, de 1968, de cuja trama aquele personagem histórico não participa

diretamente, mas é representado na narrativa por uma espécie de alter ego, Curt Nimuendajú,

também este personagem baseado em figura histórica (Ferreira de Castro, 1968).

Com relação ao escritor Dalcídio Jurandir, outro foco desta tese, Ferreira de Castro,

em texto escrito em 1974, poucos dias antes de sua morte, apresenta a edição portuguesa do

romance Belém do Grão Pará, avaliando que a contribuição do escritor paraense era tão

importante para o estado nortista quanto o foram para o Nordeste Jorge Amado ou José Lins

do Rego.

Como disse Fernando Cristóvão, “Ferreira de Castro, melhor do que Inglês de Souza,

lançou as bases do autêntico romance amazônico de coordenadas humanas” (Cristóvão, 1974:

21). Não faltariam outras referências sobre a importância do autor português, não só para a

literatura ambientada na Amazônia mas também para a literatura brasileira, como se percebe

nas inúmeras cartas que Ferreira de Castro trocou com autores como Jorge Amado e Lygia

Fagundes Telles, entre outros, como se pode ver em 100 Cartas a Ferreira de Castro (Alves,

1992).

É dialogando com os relatos dos viajantes, com obras como as de Inglês de Sousa,

Alberto Rangel, Euclides da Cunha e Ferreira de Castro, entre outros, que os autores

amazônicos devem encontrar seu próprio caminho. É uma ficção que nasce desafiada a

construir uma visão em que a floresta não seja o ambiente que aprisiona, condiciona e impele

27 Como se depreende de duas cartas remetidas pelo historiador amazonense Mário Ypiranga Monteiro a Ferreira de Castro, este escritor buscava reunir o máximo possível de dados a respeito da construção da Estrada de Ferro Madeira Mamoré, possivelmente com o intuito de escrever algo sobre o assunto. As cartas citadas pertencem ao

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a determinados comportamentos, mas o cenário que proporciona embates, oportunidades e

limites como qualquer outro, mas que requer respostas específicas, e a busca dessas respostas

estimulará os personagens a superar suas próprias limitações e a perseguir seus sonhos ou

conformar-se sob o peso de seu próprio medo.

O romance ambientado na Amazônia percorreu um longo caminho, não sem

descontinuidades e exceções, é claro, numa trajetória que vai desde a antecipação de temas e

figuras em Simá, de Lourenço Amazonas, e o Naturalismo de Inglês de Souza, até o grande

painel amazônico arquitetado pelo escritor paraense Dalcídio Jurandir, cujo fio condutor é a

viagem iniciática de um jovem interiorano, e a refinada ficção urbana, ambientada em

Manaus, de Milton Hatoum, passando pela abordagem de momentos históricos importantes

para a região pelo viés da ironia, da sátira e da paródia presentes na obra de Márcio Souza.

Nesse caminho, a par da fascinação e do terror pela floresta e seus enigmas presentes

em seu herói, Ferreira de Castro, com seu romance A selva, sedimentou caminhos que

possibilitaram um profundo desvelamento do processo cruel de escravização que se criou com

o ciclo da borracha. A viagem do personagem Alberto rumo ao (auto) conhecimento, à

formação de certa maneira forçada pelas vicissitudes que o obrigaram a empreender esse

percurso selva adentro, configura-se também como uma redescoberta do chamado “Novo

Mundo”, um re-encontro entre europeus e americanos que está sempre se repetindo,

reiterando-se, numa representação ficcional de um encontro que não cessa de acontecer. Resta

debruçar-se sobre os relatos desses (des) encontros para buscar entender o que cada parte

aprendeu com (ou projetou em) seu Outro.

8. Enigmas e possibilidades ficcionais do espaço-esfinge

Como mostra Lúcia Miguel Pereira, no ensaio “De Peri a Jeca Tatu”, sobre as

transmutações do herói na literatura brasileira, os personagens principais dos romances

nacionais vão perdendo paulatinamente a aura de idealização presente num Peri, por exemplo,

passando pelos heróis regionalistas de Simões Lopes Neto e Inglês de Souza, até atingirem o

status de símbolo, mas destacando-se de seu grupo social, com nome e sobrenome (Pereira,

1994), como na figura do Jeca Tatu, criação de Monteiro Lobato, que encerra o regionalismo

espólio do Museu Ferreira de Castro, em Sintra, e datam de 12.10.1956 e 26.08.1957.

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(Sodré, 1982: 416). Se a criação dos personagens passou por essa intensa transformação, que

vai do olhar mais distanciado e idealizado do Romantismo até alcançar o olhar mais próximo

e atento do Realismo, passando pela visão patológica do Naturalismo, a atenção à

configuração do espaço também se transformou ao longo desse período, com os romancistas

buscando cada vez mais um espaço brasileiro próximo da realidade, principalmente a partir da

ânsia modernista de conhecer e mapear o país. O interesse ficcional pelos conflitos suscitados

pela região amazônica não diminuiu ao longo do século 20 e, em decorrência das grandes

transformações ocorridas na região, a época áurea da borracha ainda é recorrente, bastando

ver a produção de romances sobre o tema nas últimas décadas, como Terra encharcada, de

Jarbas Passarinho, de 1968, Coronel de Barranco, de Cláudio de Araújo Lima, de 1970, e

Seringal, de Miguel Jeronymo Ferrante, de 1972, entre vários outros.

Considerando todo o imaginário construído com a chegada dos europeus ao Brasil e

pelos relatos, declaradamente ficcionais ou não, que desse encontro fizeram viajantes,

cientistas e escritores, com a grande contribuição dos textos de Euclides da Cunha é que

Marilena Chauí afirma, em “Brasil, o mito fundador”:

Vivemos na presença difusa de uma narrativa da origem. Essa

narrativa, embora elaborada no período da conquista, não cessa de se

repetir porque opera como nosso mito fundador. (...) Um mito

fundador é aquele que não cessa de encontrar novos meios para

exprimir-se, novas linguagens, novos valores e idéias, de tal modo

que, quanto mais parece ser outra coisa, tanto mais é a repetição de si

mesmo. (Chauí, 2000: 10)

Não é à toa que um mito de tão grande poder, que se revela como uma “solução para

tensões” (no sentido antropológico) e um “impulso à repetição” (no sentido psicanalítico)

(Chauí, 2000: 10), permaneça como recorrência para aqueles que abordam o espaço a partir

dessa “visão do paraíso”.

Outra forte possibilidade, ou perigo, ao se abordar ficcionalmente a Amazônia é

sucumbir ao regionalismo, ao ressaltar na floresta, em seus habitantes e em sua linguagem, o

sabor exótico, principalmente ao conferir importância maior à paisagem, reduzindo os homens

a meros componentes desta. Exemplo maior desse tipo de ficcionalização da Amazônia é a

obra Inferno verde, de Alberto Rangel, bastante marcada pela linguagem verborrágica e

neobarroca de Euclides da Cunha. Conforme, adverte Lúcia Miguel Pereira, “O regionalismo,

como expressão literária, requer do escritor que, permanecendo preso ao ambiente local pela

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sensibilidade, o transcenda intelectualmente. Do contrário confundir-se-á com o folclore.”

(Pereira, 1994:49-50). Ainda segundo a autora,

É esse o grande risco do regionalismo: a absorção do homem pelo

grupo, do elemento psicológico pelo social. (...) O vocabulário e o

cenário tornam-se mais importantes do que o ser humano, visto nas

suas reações pessoais, que o meio pode condicionar, mas não dirigir

completamente. (Pereira, 1994: 51)

É enfrentando esses perigos e, de certa maneira, respondendo a obras como as de

Inglês de Sousa, Euclides da Cunha, Alberto Rangel, e especialmente Ferreira de Castro, que

representa um importante passo além de um persistente Naturalismo, entre outros escritores, e

os relatos dos viajantes, que a concepção de espaço do escritor Dalcídio Jurandir a partir dos

anos de 1940 até 1978, e Milton Hatoum nos dias atuais, deve se contrapor e encarar a

realidade do homem da Amazônia em suas diversas feições e problemas e transfigurá-las em

literatura.

A partir desse levantamento sumário das abordagens antecedentes da região pode-se

perguntar: tendo em vista todo o repertório de recursos expressivos e o imaginário criado

pelos viajantes e romancistas naturalistas ou neo-realistas sobre a Amazônia, como as obras

de Milton Hatoum e Dalcídio Jurandir representam esse espaço ficcionalmente? Como eles

escaparam do estereótipo da floresta como personagem de primeiro plano, sempre antagonista

dos heróis e, representaram o embate dos homens consigo mesmos, e não com o meio?

Como veremos no capítulo seguinte, a ficção de Dalcídio Jurandir promove a

transição da concepção ficcional da floresta como personagem de primeiro plano que, de certa

maneira, ofuscava os personagens humanos, para a ficção de feição urbana, que há muito já

era o que de melhor se produzia na Literatura Brasileira. Já na obra de Milton Hatoum, objeto

de análise no quarto capítulo, a floresta também ainda está presente, mas distante o suficiente

para que os conflitos entre os seres humanos sejam o centro das atenções e o cenário é

decisivamente urbano, completando o afastamento do rural. Assim, as obras de ambos os

romancistas estão bem distantes tanto do Naturalismo quanto do Regionalismo que marcaram

as experiências literárias na região.

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III. UM PERCURSO CIRCULAR: DALCÍDIO JURANDIR

Os velhos se lastimavam pelo que acabou. Os novos

pelo que não vinha.

Dalcídio Jurandir

1. Breve interlúdio sobre autor e obra

Trata-se, sim, de localizar o espaço deixado vazio pelo

desaparecimento do autor, seguir de perto a repartição

das lacunas e das fissuras e perscrutar os espaços, as

funções livres que esse desaparecimento deixa a

descoberto.

Michel Foucault

Uma vez acabado o romance, adeus romancista, é ao

romance que cabe explicar-se, espalhar, entre os

leitores, o sortilégio, as intimidades, a visão particular

do mundo e do homem, brotando de suas páginas

vivas.28

Dalcídio Jurandir

Tendo a devida consciência da advertência expressa por Dalcídio Jurandir na

epígrafe, e evitando buscar na vida a explicação ou as chaves de leitura e de interpretação das

obras, traça-se nesta introdução um breve perfil do escritor cujas obras serão estudadas. O

28 O trecho citado é parte de um texto datilografado, de autoria de Dalcídio Jurandir, sem data ou indicação de publicação, pertencente ao espólio do autor, doado por sua família ao Instituto Dalcídio Jurandir, que funciona atualmente na Fundação Casa de Ruy Barbosa/FCRB, na cidade do Rio de Janeiro.

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objetivo é, antes de qualquer outro, situar a voz desse romancista tão pouco conhecido além

das fronteiras de seu estado de nascimento e levantar hipóteses para esse isolamento do autor

paraense.

O caso do escritor paraense Dalcídio Jurandir (1909-1979), nascido em Vila de

Pedras, na Ilha de Marajó, Pará, pode ser considerado exemplar de como uma obra

consistente, com um projeto literário29 bem delineado e de amplo alcance pode ser ignorada

pelos leitores. Esse romancista, que criou uma obra tão forte na representação dos dramas de

seus personagens ribeirinhos, em geral de condição humilde, mulatos, isolados em pequenas

vilas, e com a utilização consistente de uma linguagem tocada por expressivos termos

regionais, é praticamente desconhecido dos leitores brasileiros, apesar do esforço de alguns

estudiosos de sua obra. Assim como Érico Veríssimo logrou arquitetar um amplo painel sobre

o sul do Brasil em “O tempo e o vento”, mais ou menos a partir da mesma época30 Dalcídio

Jurandir compõe o seu denso painel amazônico. Com uma obra composta por onze

romances31, dez dos quais de temática amazônica, formando estes a “Saga do Extremo Norte”,

denominada desse modo por Jorge Amado, o autor contempla todas as ricas nuanças dessa

região verde e aquática do norte do Brasil que é a Amazônia, desde as terras alagáveis da ilha

de Marajó (Chove nos campos de Cachoeira, 1941), passando por pequenas vilas cheias de

vivas paixões e contradições sociais (Três casas e um rio, 1958), até a urbanidade antiga e

estratificada de Belém, que é o palco de intrigas e disputas políticas (Belém do Grão Pará e

Passagem dos Inocentes), onde mudar de casa ou bairro é também um deslocamento na escala

social – uma descida ou uma subida, dependendo das apostas feitas pelos personagens. Já em

Ribanceira (1978) acontece a volta do personagem a um espaço semelhante ao da infância,

mas já formado e com um cargo público garantido, o que lhe permite certo distanciamento

irônico para os problemas vividos pelos habitantes da pequena vila.

Dessa maneira, por sua declarada intenção, mas especialmente por sua realização, a

obra de Dalcídio Jurandir ambientada na Amazônia insere-se numa ânsia bem modernista de

mapear ficcionalmente o país, incorporar ao romanesco o espaço nacional distante e diferente

daquele já plenamente desvelado pela literatura praticada nas regiões Sudeste, Sul e Nordeste.

Por outro lado, ao fazê-lo, Dalcídio Jurandir se alinha aos intérpretes da Amazônia discutidos

29 No espólio do autor consta uma relação dos romances a serem escritos, datada da década de 1920. Essa relação encontra-se em um pequeno livro de poesias manuscritas intitulado “Alegoria”. 30 O primeiro volume de “O tempo e o vento”, O continente, de Érico Veríssimo, foi publicado em 1949, e o primeiro romance de Dalcídio Jurandir, Chove nos Campos de Cachoeira, é de 1941. 31 Na obra Dicionário Literário Brasileiro, em seu volume III, no verbete dedicado a Dalcídio Jurandir, há a notícia de uma coletânea de contos que se chamaria Rés do chão, de 1931, porém essa obra não é mencionada em qualquer outra fonte.

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no capítulo anterior, mas de maneira muito diferente, por exemplo, daquela utilizada no

Naturalismo, marcada pela ascendência do ambiente sobre os personagens, e nas obras

regionalistas, excessivamente determinadas pelo pitoresco da linguagem e dos lugares. Dessa

ânsia e dessa busca pelo país resultaram importantes obras da literatura brasileira, tais como

Macunaíma, o herói sem nenhum caráter, de Mário de Andrade, o poema Cobra Norato, de

Raul Bopp, a saga gaúcha O tempo e o vento, de Érico Veríssimo, os romances de José Lins

do Rego, que abordam a área de influência do ciclo da cana de açúcar, entre outras. De todas

essas obras, apenas Érico Veríssimo, com propósitos mais épicos e localizados na história da

região sul, e Dalcídio Jurandir, na Amazônia paraense, logram incorporar ficcionalmente

ambientes variados da mesma região. Além das obras que fazem parte dessa saga, o autor

ainda escreveu mais um romance, Linha do Parque (1959), que aborda o cotidiano e as lutas

dos operários do porto no Rio Grande/RS e é uma de suas obras mais explicitamente políticas.

Elogiado por vários escritores de renome, entre eles Jorge Amado, Adonias Filho,

Josué Montello, ou por ensaístas e críticos do porte de Sérgio Milliet e Benedito Nunes,

Dalcídio Jurandir parece não ter conseguido formar uma comunidade consistente de leitores,

um fator essencial para que uma obra literária mantenha-se viva e atuante, a despeito das

qualidades que essa obra possa apresentar. Mesmo os vários prêmios que ele ganhou ao longo

de sua carreira – entre eles o Prêmio Machado de Assis, da Academia Brasileira de Letras, em

1972, pelo conjunto da obra – não foram suficientes para levá-lo à pequena relação dos

escritores do passado que ainda são lidos e comentados. Seus livros há muito estão esgotados

por não serem reeditados com a freqüência merecida. De sua obra, apenas Chove nos campos

de Cachoeira (1941), seu primeiro romance, e Marajó, de 1947, foram reeditados e ainda

podem ser encontrados em algumas livrarias, além da reedição recente de Belém do Grão

Pará pelo Instituto Dalcídio Jurandir, em co-edição da Fundação Casa de Rui Barbosa com a

editora da Universidade Federal do Pará. Dessa maneira, essa consistente produção literária,

que abrange quatro décadas de trabalho, permanece pouco lida e, menos ainda, conhecida fora

de sua região de nascimento, além de pouco estudada em sua complexidade.

Tendo em vista esse quadro, há que se perguntar: como um autor de obra tão

importante, no sentido em que ficcionaliza e põe em foco uma região quase desconhecida

pelos brasileiros de outras regiões, sem concessões ao naturalismo ou ao regionalismo

comuns na literatura ambientada na região, tão importante pelo mapeamento empreendido,

pela construção cuidadosa de personagens e situações, pode ser deixado continuamente de

lado ou tratado como escritor periférico pelos que escrevem a história da literatura brasileira?

Ou, talvez mais importante do que a inclusão na historiografia ou a produção de estudos

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críticos, por que a obra de Dalcídio Jurandir não conseguiu criar e manter uma “comunidade

de leitores” consistente, mesmo entre seus conterrâneos nortistas? Várias hipóteses podem ser

aventadas para esse ostracismo do escritor, porém nenhuma pode ser relacionada à qualidade

indiscutível de sua obra, impecável no gesto de incorporação do espaço amazônico, dos

problemas que suscita aos seus personagens isolados e suas maneiras específicas de reagir aos

desafios, sublimando as condições do meio ou acomodando-se ao que a vida proporciona.

Uma hipótese para esse isolamento em que Dalcídio Jurandir foi colocado, levantada

durante as pesquisas empreendidas para esta tese, diz respeito à intensa militância política do

autor, ativo colaborador da Revista Diretrizes na década de 1940. De acordo com Wilson

Martins, o conhecido crítico do Modernismo em suas várias facetas32 e historiador da

inteligência brasileira, em um artigo acerca da trajetória de Otto Maria Carpeaux, afirma que

Dalcídio Jurandir “comandou” a campanha contra este crítico em resposta a uma nota fúnebre

que o mesmo havia escrito para o escritor Romain Rolland (Martins, 1999). Segundo ainda

Wilson Martins, a independência e a heresia de Carpeaux “em relação aos dogmas

partidários”, despertaram a ira dos comunistas, suscitando respostas de vários intelectuais33, já

que o crítico havia cometido a ousadia de afirmar que Romain Rolland “morto, ainda não nos

deixava em paz”.

A resposta de Dalcídio Jurandir ao artigo citado, publicada na Revista Diretrizes em

17.02.1944, sob o título de “Mais respeito a Romain Rolland”, também reproduz a nota

escrita por Carpeaux, comentando-a quase ponto por ponto, declarando que as palavras desse

crítico bem poderiam ter sido ditas por qualquer autor fascista, sem nenhuma preocupação

com a trajetória política do escritor criticado. Como agravante ao escritor paraense, Wilson

Martins salienta, no mesmo artigo, que Dalcídio Jurandir era “(...) o homem do PCB para as

"tarefas" de baixeza moral”, lembrando que ele também era encarregado de “vigiar” escritores

brasileiros no exterior para evitar deslizes, como aconteceu por ocasião da viagem de

Graciliano Ramos à antiga URSS na década de 1940. O episódio da campanha contra o crítico

austríaco também é relatado por Olavo de Carvalho, na introdução à edição de ensaios de Otto

Maria Carpeaux (Carpeaux, 1999), em que o autor confirma que Dalcídio Jurandir havia

organizado a reação contra o artigo sobre Romain Rolland.

32 Ver, por exemplo, sua obra O modernismo (1916-1945), para a coleção “A literatura brasileira”, volume VI. 33 Na mesma Revista Diretrizes, um grupo de jornalistas e escritores publicou um abaixo assinado contra a nota de Carpeaux, intitulado “Em desagravo à memória de Romain Rolland”, em 09.03.1944, p.8. Na Revista Leitura, de fevereiro do mesmo ano, p. 34-5, um autor que assina com as iniciais B.M., também publicou um artigo intitulado “Em defesa de Romain Rolland”, no qual reproduz artigos de Maximo Gorki e Aníbal Ponce sobre Rolland.

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A crítica de Wilson Martins é contundente, mas se houve um movimento deliberado

e sistemático de “vigilância” partidária, ou promoção de campanhas difamatórias por parte de

Dalcídio Jurandir, é difícil de afirmar, como faz com tanta segurança esse crítico, pois o

mesmo não cita suas fontes e a distância temporal desses acontecimentos e a morte dos

envolvidos impede o confronto com outras versões. Mais difícil ainda torna-se relacionar tais

episódios ao ostracismo vivido pelo autor, especialmente se confrontarmos esse com outro

episódio que pode ter marcado (e condenado) a trajetória literária de Dalcídio Jurandir,

relatado por Jorge Amado em seus apontamentos de memória enfeixados no livro Navegação

de Cabotagem (1992), também mencionado por Wilson Martins em seu artigo. Segundo o

escritor baiano, por ocasião do Segundo Congresso da Associação Brasileira de Escritores

(ABDE), no ano de 1949, em que houve intensa batalha pelo controle da Diretoria, Dalcídio

Jurandir, atendendo às recomendações do Partido Comunista, “arrancou a muque, das mãos

do poeta Carlos Drummond de Andrade, o livro de atas da reunião” (Amado, 1992: 326).

Segundo Jorge Amado, o que restou do fato na memória dos escritores foi um Dalcídio

marcado como “vilão principal”, embora o escritor paraense fosse uma “doce e terna

criatura”, apenas sendo fiel às suas convicções e às ordens de seu partido (Amado, 1992:

327). O fato voltou a ser comentado por ocasião das negociações para a atribuição do Prêmio

Machado de Assis, da Academia Brasileira de Letras, em 1972, quando houve “resistências

numerosas, obstinadas” contra o nome de Dalcídio Jurandir, mas que teriam sido vencidas

pelo esforço de Jorge Amado (Amado, 1992: 327).

Por outro lado, como diz Antonio Candido, “temos uma tendência quase invencível

para atribuir aos grandes escritores uma quota pesada e ostensiva de sofrimento e de drama,

pois a vida normal parece incompatível com o gênio” (Candido, 1977: 15), o que pode fazer

com que o leitor apressado torne relevante o que seria mero incidente na vida de um escritor,

ou interprete como perseguição política o que pode ser apenas o esquecimento ou o descaso,

mesmo porque um escritor bastante lido e apreciado como Jorge Amado também teve

participação ativa no Partido Comunista. Resguardadas essas possibilidades, é provável, ou

possível, que o insulamento do escritor paraense seja apenas mais um entre tantos outros de

bons escritores esquecidos, dos quais a historiografia da literatura brasileira é abundante. Não

é o caso, aqui, de elevar ou mesmo “canonizar” Dalcídio Jurandir, até porque a “canonização”

crítica não garante a construção de uma comunidade de leitores, mas investigar o seu lugar na

literatura da Amazônia e, por conseqüência, na literatura brasileira.

O fato é que, apesar da relevância e da amplitude da obra, da meticulosa construção

de personagens e situações, o escritor paraense não conseguiu formar uma comunidade

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consistente de leitores, que se renovasse ao longo do tempo, mesmo durante sua vida. No

processo de tornar viva a obra de um autor, a crítica, que desempenha importante papel,

pouco espaço dedicou aos romances de Dalcídio Jurandir, em geral apenas notas de rodapé ou

comentários de passagem, enumerando-o entre vários outros escritores.

Nos últimos anos alguns esforços isolados foram realizados no sentido de reavaliar a

obra e a importância da ficção de Dalcídio Jurandir, sendo por esse motivo que há

relativamente poucos trabalhos acadêmicos acerca da obra do escritor.

No entanto, especialmente a partir da década de 1990, surgiram alguns importantes

estudos enfocando diferentes aspectos de sua ficção. O primeiro trabalho a se considerar é a

dissertação intitulada “Marinatambalo: construindo o mundo amazônico com apenas três

casas e um rio”, de Enilda T. Newman Alves (Alves, 1984), enfocando o lugar mítico criado

por Dalcídio Jurandir e que aparece ou é mencionado em vários de seus romances. Outro

trabalho relevante é a tese de doutorado “Dalcídio Jurandir: da re-velação da Amazônia ao

sul”, de Olinda Batista Nogueira (Nogueira, 1991), que traça um panorama da obra do escritor

e sua recepção fora da região amazônica. Em dois trabalhos de Rosa Assis (1992 e 1998) é

analisado o intenso diálogo da ficção desse escritor com a linguagem falada e com o homem e

a paisagem amazônicos, os quais são apropriados e transfigurados pela ficção, sendo que o

primeiro texto enfoca as peculiaridades lingüísticas da obra do autor e o segundo é uma

edição crítica do primeiro romance de Dalcídio Jurandir, Chove nos campos de Cachoeira, de

1941.

É importante mencionar a obra “Aquonarrativa: uma leitura de Chove nos campos de

Cachoeira”, de Paulo Nunes (Nunes, 2001), que trata da onipresença da água na obra de DJ,

em contraposição à sedenarrativa, característica da prosa de Graciliano Ramos segundo o

autor. A relação intertextual que se estabelece entre histórias orais da Amazônia e a narrativa

de Dalcídio é o tema da obra O entorno da serpente: um discurso do imaginário tecido em

verbo e imagens, de Josse Fares (Fares, 2001). As dissertações de Zélia Amador de Deus e

Elizabete de Lemos Vidal, defendidas em 2001 analisam o regionalismo e o racismo, entre

outras questões, na obra de Dalcídio Jurandir (Vidal e Deus, 2001). Recentemente, foi

defendida por Marli Tereza Furtado a tese de doutorado intitulada “Universo derruído e

corrosão do herói em Dalcídio Jurandir” (Furtado, 2002), que analisa alguns aspectos dos

romances que compõem o ciclo, do ponto de vista do protagonista. Além desses há que se

mencionar artigos esparsos em revistas como, por exemplo, o artigo de Pedro Maligo (1992) e

em livros, como o de Salim Miguel (1986). Há, ainda, um capítulo na História Crítica do

Romance Brasileiro, de Temístocles Linhares (1987), prefácios nas próprias obras do autor,

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como o de Vicente Salles, para Marajó (1978), verbetes em dicionários (ver Menezes, 1969;

Moisés, 2006), além de um número especial da Revista Asas da Palavra, publicada em 1996

pela Universidade da Amazônia/Unama, de Belém.

De maneira geral, não houve uma tentativa de interpretação da transfiguração desse

extenso espaço que é a Amazônia paraense em ambiente romanesco como a que se propõe

nesta tese acerca de Dalcídio Jurandir. Se há análises do espaço essas se mostram pontuais e

servindo a outros objetivos do pesquisador. Na análise que aqui se empreende, parte-se da

hipótese de que a escolha de um personagem em franca aprendizagem, obrigado a deslocar-se

em busca de abertura de novos horizontes, que é, aliás, a configuração básica do romance

como gênero, como o personagem Alfredo, é determinante para que o mapeamento da região,

dos problemas vividos por seus habitantes, dos pequenos e grandes dramas que se passam no

isolamento do interior, seja vívido e verossímil, escapando ao perigo do Naturalismo, à

literatura como documento e ao pitoresco do regionalismo ou mesmo, ainda, à literatura

engajada.

Em romances pertencentes à saga, Alfredo é personagem recorrente e eixo em torno

do qual se desenvolvem os enredos de nove deles. Dentre eles foram escolhidos três para

análise mais detida por sua representatividade, conforme relação a seguir, na qual estão

sublinhados os romances que pertencem ao corpus básico e entre parênteses constam o ano da

primeira edição e as abreviaturas que poderão ser utilizadas deste ponto em diante:

1. Chove nos campos de Cachoeira (1941) (CCH)

2. Marajó (1947) (MRJ)

3. Três casas e um rio (1958) (TCR)

4. Linha do Parque (1959) (LPQ)

5. Belém do Grão Pará (1960) (BGP)

6. Passagem dos Inocentes (1963) (PIN)

7. Primeira Manhã (1967) (PMN)

8. Ponte do Galo (1971) (PGA)

9. Os habitantes (1976) (OHB)

10. Chão dos Lobos (1976) (CLB)

11. Ribanceira (1978) (RIB).

No primeiro romance da série, Chove nos campos de Cachoeira (1941), Alfredo já

aparecera, mas ali ele ainda era um personagem periférico, com os conflitos de seu irmão

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Eutanásio ocupando o primeiro plano. Dessa forma, é em Três casas e um rio, de 1958, que

se configura realmente a obsessão do personagem em ir estudar em Belém e o empenho da

mãe, D. Amélia, em realizar o sonho do filho. Entre os romances que têm por cenário a

cidade, Belém do Grão Pará (1960) é o mais consistente e aquele em que o personagem,

novato e curioso pelo novo espaço, a tudo explora com mais disposição. Já em Ribanceira

(1978), podemos acompanhar, por fim, o que o longo aprendizado fez com o olhar do

personagem, cuja volta ao espaço do interior é acompanhada por uma ironia bastante

significativa de sua experiência.

Como veremos no próximo capítulo de análise dos três romances do escritor Milton

Hatoum, na obra do escritor amazonense o espaço ficcional deixa de ser externo, aberto,

amplo como em Dalcídio Jurandir, para concentrar a ação na intimidade das casas, nos

conflitos familiares, com poucos deslocamentos pelas ruas e praças da cidade de Manaus, e o

tema da viagem – a busca – já aparece com outras funções, até mesmo pelas diferentes épocas

em que cada autor começou a realizar sua obra e também os distintos objetivos implícitos nos

projetos ficcionais de cada um. Já fora ultrapassada a época do mapeamento do país e dos

grandes painéis, da intensa busca da geografia nacional, e agora possivelmente o que interessa

ficcionalizar são as “histórias da vida privada”.

2. De como três casas e um rio transfiguram um mundo

A obra de Dalcídio Jurandir, planejada desde a década de 20 para ser um grande

painel da vida amazônica, pelo menos se levarmos em conta os manuscritos do autor (ver nota

2), previa várias romances com títulos diferentes daqueles que saíram editados e Belém do

Grão Pará, por exemplo, foi anunciado, em excerto publicado em jornal (sem identificação e

sem data, no acervo citado), com o título de “São João do Bruno”. Muitas obras também

foram finalizadas muito antes de terem sido publicadas, possivelmente para obedecer à

cronologia e ao desenvolvimento da trama planejados pelo autor.

Como foram selecionados apenas três romances para análise mais acurada, em uma

série de 10 romances de ambientação amazônica, dos quais Alfredo participa de nove, para

que o leitor possa situar-se nesse percurso do personagem os demais foram abordados de

forma sumária seguindo a ordem de publicação. Excepcionalmente, os outros sete romances

compareceram com exemplos consistentes para enriquecimento dos aspectos analisados. Na

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seqüência em que foi publicada a obra de Dalcídio Jurandir, o romance Três casas e um rio

(1958) aparece depois de Chove nos campos de Cachoeira (1941) e Marajó (1947).

Em Chove nos campos de Cachoeira (1941) já havia aparecido o personagem

Alfredo e delineava-se seu desejo de ascensão, de viagem para Belém a fim de estudar.

Porém, nesse romance, as tramas paralelas são tão intrincadas que a trajetória do personagem

aparece relegada a um segundo plano, sendo ele um mero espectador das tragédias que se

anunciam por meio dos outros personagens, especialmente Eutanázio, irmão de Alfredo por

parte de pai, Irene, a amada que despreza esse irmão, e Felícia, a mulher que se vende em

troca da própria sobrevivência, quase sempre apenas vilipendiada pelos homens que a usam e

roubam o pouco que tem. Os campos alagados de Cachoeira impõem-se como cenários

úmidos e dignos dos percursos trágicos a serem percorridos pelos personagens, muitas vezes

chapinhando na lama, especialmente Eutanázio e Felícia, duas ruínas em forma de seres

humanos: Felícia, pelas vicissitudes que a levaram a prostituir-se em busca da própria

sobrevivência, e Eutanázio, por sua obsessão por Irene, que o leva inexoravelmente à

decadência física e psicológica. É o romance úmido por excelência, com esses três

personagens submergindo em seus percursos trágicos pessoais, com fortes ressonâncias da

água no próprio estilo do discurso narrativo, como demonstra Paulo Nunes (2001).

Em Marajó (1947), a narrativa assume explicitamente o caráter de painel e não há,

rigorosamente, um personagem principal, mas vários que encenam, de diferentes maneiras, o

intenso drama que se passa na convivência cotidiana entre oprimidos e opressores, com

mulheres pobres vampirizadas pelos grandes proprietários da Amazônia e seus filhos (Salles,

1978). Esses últimos, considerando-se donos de tudo e de todos, usam e abusam tanto do

espaço como de todos os seres que nele se movem. Dessa maneira, nesse segundo romance, o

foco do escritor abre-se para personagens diversos e singulares, cada um apresentando uma

face do espaço marajoara: o Coronel Coutinho, um dos grandes proprietários, que comanda

com mão de ferro boa parte dos campos da grande ilha, que não hesita em avançar sobre

terras alheias ou mandar falsificar escrituras, fechar rios, proibir pescarias, que espalha filhos

– chamados de afilhados, por toda a ilha, etc.; Missunga, o filho do coronel, personagem de

caráter fraco e submisso, que recusa a vida fácil na cidade grande por simples tédio e vaga à

toa entre as várias mulheres que ajuda a “desencaminhar”; o cantador popular Ramiro, que

usa de sua viola para cantar dramas e histórias em forma de chulas, o que em determinado

momento pode lhe trazer duras conseqüências pela leitura crítica que faz dos acontecimentos;

as três mulheres que se deixam envolver pelo branco Missunga, pagando um alto preço por

isso, cada uma a seu modo sendo arrastada à destruição por essa atração de realização

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impossível: Alaíde, Guíta e Orminda. Esse romance não apresenta uma ligação clara com os

outros romances da série amazônica, já que nele não aparecem os personagens que marcam as

demais narrativas, mas o espaço abordado é o mesmo, além dos diversos ambientes e

conflitos suscitados pelo domínio dos grandes coronéis e o insulamento das pequenas vilas,

sendo que alguns de seus personagens são citados em outros romances.

O importante nesse romance é o mapeamento explícito da divisão injusta do espaço,

da análise impiedosa da incapacidade de Missunga, o filho do coronel que poderia alterar a

ordem das coisas, ou efetivamente promover alguma mudança social em seu empreendimento

mal sucedido, nomeado sugestivamente de “Felicidade”. Nesse universo sem saída possível,

pois o único que tem alguma consciência da injustiça, o cantador Ramiro, é obrigado a calar-

se, resta ao narrador mapear os responsáveis pela miséria daquela população, composta em

sua maioria por negros e mulatos. Longe de qualquer eco de paraíso, é uma Amazônia dura e

real aquela representada em Marajó, neste que talvez seja o romance mais preocupado com as

questões sociais no conjunto da Saga, desvendando as redes de poder no Brasil do interior,

longe do desenvolvimento do litoral.

No primeiro romance a ser considerado neste capítulo, Três casas e um rio (1958), o

terceiro da série, são retomados e desenvolvidos temas e figuras que já haviam aparecido no

primeiro romance e delineia-se, com maior vigor, a infância do personagem Alfredo e o

ambiente da vila de Cachoeira, com seus personagens oprimidos pela miséria e pela falta de

perspectivas, às voltas com suas pequenas e grandes paixões, frequentemente idealizando

Belém como espaço para a solução de seus problemas. Após vários episódios que preparam o

personagem para o choque de amadurecimento que se dará na cidade, a mãe de Alfredo,

Amélia, consegue hospedagem em casa de família amiga e escola em Belém e a narrativa

finaliza com a travessia carregada de significados entre a ilha de Marajó e a capital.

Se em Chove nos campos de Cachoeira Alfredo era uma personagem periférica e os

conflitos centrais eram outros, nesse romance sua ânsia de ir para Belém e para a escola torna-

se eixos centrais e é em torno desse objetivo do menino que vão girar os outros personagens.

É nesse romance que o leitor tomará conhecimento de aspectos inusitados do espaço da ilha

de Marajó, por suas enormes dimensões: nela o homem amazônico também se depara com

uma seca sazonal e o isolamento em virtude dessa característica da ilha; aqui, diferentemente

do primeiro romance, o rio divide a atenção dos personagens com as lagoas que vão

lentamente secando, sinais naturais que também são projeções de mudanças internas que estão

se processando em Alfredo. Personagens marcantes desse romance são o Major Alberto e

Dona Amélia, pais de Alfredo, que travam uma guerra não declarada em torno da ida do

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menino para Belém, e Andreza a companheira de incursões e brincadeiras que se tornará uma

lembrança recorrente. Major Alberto, o pai, é um honesto funcionário público que está sempre

às voltas com seus sonhos de tipógrafo e envolvido com sua mania de catálogos, vivendo em

um mundo de sonhos, exercitando sua comodidade com o pouco que a vida lhe proporcionou

no emprego de secretário da Intendência da Vila de Cachoeira, e divide-se entre os filhos com

Dona Amélia e as filhas do primeiro casamento que vivem em outra cidade, Muaná. A mãe,

Dona Amélia, assim como Alfredo, está empenhada em enviar o filho para Belém e divide-se

entre as culpas do passado (um filho morto), a fragilidade de sua outra filha, Mariinha, e o

alcoolismo que é sempre uma ameaça à paz familiar e uma possibilidade de fuga para ela.

Andreza, por seu turno, é a órfã pobre que mora com um tio doente e possui liberdade de

movimentos impensável para outras crianças com famílias constituídas, como Alfredo; a

personagem carrega a angústia de ter tido seus familiares assassinados pelos Menezes, uma

das famílias de grandes proprietários do lugar.

Alfredo, personagem chave nessa grande narrativa que atravessa os vários romances,

como já se disse, é o menino sonhador que observa atentamente tudo o que acontece à sua

volta, que tenta compreender e ajudar a mãe, muitas vezes projetando nela um poder de

transmudar a realidade a seu favor, de desfazer as desgraças ou trazer de volta os momentos

felizes e tranqüilos. Decorre dessa perspectiva o fato de que nessa narrativa a morte é uma

marca sobre as casas (TCR, p. 68), e é importante que se arme uma rede de proteção em torno

da casa, cuja configuração básica é afetada pela percepção e transfiguração da imaginação

fértil do menino, por sua vez guiado pela vontade obsedante de partir em busca dos novos

horizontes representados pela cidade grande.

As três casas que dão nome ao romance são lugares irremediavelmente separados,

não só pelo espaço, mas por um tempo que as coloca em planos distintos ao serem

confrontadas, como veremos adiante. Como elemento de ligação entre esses três planos

espaciais (e temporais), apresenta-se o garoto Alfredo e a história de sua busca e de sua

obsessão. Mais do que injustiças sociais, aqui a preocupação do narrador é acompanhar essa

luta desigual entre a mãe determinada e o filho sonhador, de um lado, e o pai inerte, que aceita

tranqüilamente as fatalidades que o destino lhe reserva – como a cegueira da filha e seu papel

de subserviência na Intendência municipal.

É preciso ressaltar que é no romance Três casas e um rio que se dá a transição, na

obra de Dalcídio Jurandir, de representação do espaço do interior para a capital, daí sua

importância neste percurso de análise e o que interessa é acompanhar os procedimentos e os

recursos utilizados pelo escritor no empenho em realizar essa travessia para a capital.

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2.1 O Chalé: vasto mundo a conhecer e sondar

O chalé familiar está indissoluvelmente ligado à presença marcante de D. Amélia, a

mãe que instaura, pelo menos para Alfredo, um círculo mágico em torno desse espaço-

refúgio, afastando-o de todo o mal, transportando-o para um lugar à parte, longe das ameaças

das doenças e das inseguranças que a vida traz incessantemente para todos esses personagens

humildes: “Para Alfredo, o espantalho contra as mortes era sua mãe que sabia proteger o

chalé.” (TCR, p. 70). É como se a mãe tivesse o poder de traçar sortilégios em torno da casa (e

de seus habitantes), isolando dali todo o sofrimento e todas as desgraças experimentadas pelas

pessoas mais humildes da cidade, especialmente as famílias da rua de baixo, transformando a

casa numa espécie de castelo inexpugnável, como Ricardo Gullón, em seu trabalho sobre o

espaço no romance, aponta que aconteça freqüentemente na ficção (Gullón, 1980:27):

“Habitações herméticas, casas incomunicáveis, ruas ou cidades isoladas, não encontráveis

mesmo com os mais exatos planos e mapas, são extensões e projeções do círculo mágico”.

Essa proteção mágica instituída pela personagem em torno do espaço-refúgio e do

filho será reafirmada pela própria D. Amélia, bem depois, no romance Ponte do Galo

(1971:100): “Eu pegava o bicho na toca. Você evite ele, se esqueça, ódio em cima de você, eu

aparo, como um tajá na frente da casa, aparando o mal que queira entrar.” Por isso, graças a

D. Amélia, essa é a casa no romance que incorpora “(...) um corpo de imagens que dão ao

homem razões ou ilusões de estabilidade” de que fala Bachelard (1978:208), no caso dando ao

garoto razão para ter alguma confiança de que a morte não invadirá o espaço-refúgio de sua

infância pobre: “O chalé era apenas um barco encalhado (...). Exibia o privilégio de não ter

um nome qualquer naquele poeirento e insaciável livro dos mortos do tabelião Farausto”

(TCR, p. 70).

A personagem, pelo poder de cercar o chalé familiar com sua proteção e seu poder

(uma força virtual, psicológica), liga-se definitivamente a esse espaço, tornando-o parte dela,

ainda que a vejamos em outros espaços e em outras cenas, como no episódio em que ela

atravessa Cachoeira em busca de vingança ou vai a Belém para levar o filho à escola. Dessa

maneira, o chalé é aquela espécie de vestimenta que é uma máscara e uma caracterização para

D. Amélia, a rainha negra desse castelo, recurso expressivo sobre o qual fala Georges Poulet

ao referir-se aos lugares proustianos: “Os seres cercam-se dos lugares nos quais se descobrem,

tal como se veste uma roupa que é ao, mesmo tempo, um disfarce e uma caracterização.”

(Poulet, 1992:31). Tal como d. Amélia, seu irmão Sebastião, um marujo eventual, também se

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identifica plenamente com o espaço, com as viagens e os lugares por que passa e dos quais dá

notícia: “O menino foi descobrindo no tio as viagens, trabalhos desconhecidos, misteriosos

elementos da água e da selva que constituíam toda a existência daquele preto, sorridente e

jovem” (TCR, p. 79).

Segundo Bachelard, em sua Poética do espaço, ao referir-se à segurança do espaço

familiar, “o que guarda ativamente a casa, o que liga na casa o passado mais próximo com o

futuro mais próximo, o que a mantém numa segurança de ser, é o governo da casa.” (1978:

240). Desse modo, o garoto Alfredo, cuja perspectiva se confunde muitas vezes com a do

narrador, situa a mãe como uma espécie de guardiã do chalé contra a morte e a queda para a

rua de baixo, o descenso para um lugar muito mais perigoso do que aquele em que se situa a

casa paterna. Lembremos que o chalé se situa num teso, um elevado entre os campos e o rio

(TCR, p. 13), e essa outra rua já se situa em um degrau abaixo do status ocupado por Alfredo

e sua família, apresentando-se também como um horizonte de expectativas a ser evitado a

qualquer custo, um lugar em que abundam doenças, que é habitado e assombrado por anjos,

crianças mortas na flor da idade:

Não seriam aquelas crianças da rua de baixo, agora anjos não do céu,

mas do fundo, que disputavam com os peixes as sobras de comida e as

linhas atiradas das janelas do Promotor Público, do Salu, da Lucíola,

do chalé? Quando vivas, pediam restos de jantar, o olho comprido

para o pires de farinha esquecida na ponta da mesa, a casquinha de

pão jogada no soalho, o osso, com algum nervo e carne, que a Minu

roía. (TCR, p. 24)

Nesse sentido, o chalé, situado em uma pequena ilha durante as cheias, pode ser

transmutado em barco, a oscilar entre os vários estratos daquela pequena comunidade,

flutuando ao sabor dos humores dos habitantes: “(...) O chalé era apenas um barco encalhado,

à espera de maior inundação para poder seguir e nunca mais ancorar naquele porto” (TCR, p.

70). A configuração também lembra uma arca de Noé, destinada a salvar aquela família do

desastre do esquecimento e do isolamento enfrentado por quase todos naquela vila, “(...)

encalhada no charco, castigada pelo vento das longas chuvas” (TCR, p. 135), transmutando-se

de acordo com as pequenas vitórias e derrotas acumuladas por Alfredo em seu desejo de

viagem, de Belém e de escola. Impelida por essa sazonalidade do rio, a imaginação do menino

transforma o chalé no barco que tanto pode transportá-lo para Belém como servir de fuga aos

problemas que sempre ameaçam a casa e a família, porque “as distâncias grandes o

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chamavam e lhe davam vertigens” (TCR, p. 96). No entanto, o personagem encontra-se

sempre dividido entre a necessidade de proteção do espaço familiar e a inexorável vontade de

emancipar-se dessa presença e dessa influência. Já em Chove nos campos de Cachoeira

(1941) o chalé aparecera como “uma ilha batida de vento e chuva”, no título do terceiro

capítulo desse romance, ressaltando o isolamento da casa.

Neste lugar deslocado pela imaginação de Alfredo - o chalé - onde não se fala em

relógios, os sinais da passagem do tempo estão intimamente ligados à sazonalidade das idas e

vindas do rio onipresente, ao espaço, portanto: “Era pelas enchentes de março que ilhavam o

chalé e as palhoças naquela rua da beirada, subindo a água a um metro e pouco ao pé da casa

do major, de alto soalho de madeira.” (TCR, p.15). O trecho citado mostra bem que nesse

mundo amazônico são os fenômenos naturais que marcam o tempo, aqui submetido ao

espaço, é o rio que comanda, não a vida, como poderia acontecer num romance naturalista,

mas a forma como as vidas se articulam em relação ao ambiente, respeitando-o e respondendo

aos seus desafios, de alguma forma mantendo um equilíbrio em suas relações com o espaço

ao redor.

Num longo trecho da parte II, Capítulo III, o chalé é finalmente deslocado do entorno

e situado num lugar especial, o lugar produzido pela afetividade, que sempre estará ligado às

aventuras e desventuras da infância:

Afastado daqueles recantos, o chalé era-lhe uma área inteiramente

preciosa, tão sua, restrita e universal, vasto mundo a conhecer e

sondar, para descobrir-lhe as íntimas paisagens, as diferentes

temperaturas, as misteriosas povoações do sub-solo, etc. (TCR, pp.

140-1)

Isolado, instável, complexo, mutável, um microcosmo que concentra todas as

referências essenciais para a vida de Alfredo, esse importante locus amoenus, situado à parte

do tempo e do espaço em torno, envolvido, na enchente, por “cheiro de diferentes águas e

lodos e peixes e plantas” (TCR, p. 15), também demonstra oscilações de humor, animizado

sempre pela imaginação transformadora do menino, que só por poucos momentos consegue

ver de fora esse espaço tão protetor e especial:

Agora, na pontezinha, Alfredo contemplava o chalé, a estrela frontal,

o cenho franzido das quatro janelas, os losangos na barra, feitos pelo

Mestre Candinho. Num luar, surpreendeu o rosto do chalé com os seus

quatro olhos fechados, sem aquele ar um tanto carrancudo. Estava

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adormecido, porém satisfeito com seus habitantes. De ordinário, era

aquela cara cheia de reflexões, as quatro janelas olhavam o rio com

visível desdém. (TCR, p.141)

Poder-se-ia levantar a hipótese de que o “ar um tanto carrancudo” nesse trecho tenha

mais a ver com o pai do que com a mãe, pois é esta que mantém as redes de comunicação,

tanto no interior do chalé, como deste com o restante da cidade, cumprindo o papel de

mediadora, sendo o pai muito mais retraído, apesar de sua instrução mais elaborada e de ser

um “branco” respeitado por todos na cidade. Quando a paz reina no seio da família, que

depende sempre do equilíbrio da mãe, essa tranqüilidade se projeta, necessariamente, no

espaço, indicando, novamente, que o governo, a responsabilidade pela estabilidade dessa casa

estava com a mãe e não com o pai. Em romance posterior, Primeira manhã (1967:82),

Alfredo, ao ver a mãe sendo tratada como uma senhora branca, realiza uma especulação

semelhante: “Num ar de visitante que já esperava as honras, ciente de que as brancas se

admiravam dela, a cercavam, não mais pelo Major e sim por ser a D. Amélia ou porque,

melhor que o Major, ela é o chalé?”. Em outro romance, Ribanceira (1978), também

encontraremos uma referência a essa ligação íntima de D. Amélia e o chalé: “A risada, sim,

sim, fazia aquela varanda muito mais da mãe que do pai, prelos, catálogos, tintas, soalho,

telhado, rir que era um cantar (...).” (RIB, p.157).

É natural que o personagem poucas vezes consiga ver o chalé a partir de fora, pois seu

mundo é esse espaço-refúgio, pelo menos a parte importante do mundo para ele se concentra

ali. Apesar disso, a relação de Alfredo com esse “vasto mundo a conhecer e sondar” também

apresenta oscilações, já que o personagem é impelido a projetar em outro lugar a realização de

seus sonhos, o que implica conflitos internos (no garoto) e externos (na luta surda entre os

pais), como veremos adiante: “Havia, com efeito, uma espécie de conflito entre o rio e o

chalé. Este parado sempre, aquele sempre em movimento. E entre os dois, Alfredo, cheio de

ambos, não sabia escolher.” (TCR, p. 141). Excetuando-se uma pequena área à volta do chalé,

que engloba árvores familiares, a cerca, os objetos com quem ele conversa, mas que ainda

estão dentro do perímetro de proteção, todo o entorno da personagem, que é o centro de seu

pequeno e concentrado universo, o restante do mundo situa-se em pontos eqüidistantes da

casa familiar, fora do “círculo mágico”, implicando insegurança e indistinção no quadro: “Por

isso, os outros lugares, objetos e pessoas tornavam-se mais distantes, inspirando-lhe algum

medo ou tédio, noções de lenda e proibidas aspirações.” (TCR, p.141).

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Regularmente, de acordo com as enchentes, esse espaço protegido do chalé separa-se –

fisicamente – do seu entorno, pois que na imaginação de Alfredo já o era, transformando a

pequena ponte armada para a passagem das pessoas da casa também a única via de

comunicação com o resto do mundo: “Aquela pontezinha era a frágil ligação com a

inexplicável infinidade das outras áreas do mundo” (TCR, p.141). Essa “pontezinha” tantas

vezes mencionada também franqueia a passagem para o maravilhoso, cuja vastidão é

percorrida pelo menino por meio de sua imaginação fértil (TCR, p.140): “Estar naquela

pontezinha era enfiar-se no maravilhoso e olhar quase de frente o chalé, as janelas como que

se fechavam, por si mesmas, quando o sol da tarde dava em cheio”. No entanto, para além da

proteção armada fortemente em torno do chalé, situados nas “outras áreas do mundo”, estão

Belém e o colégio, lugares em que se projetam os sonhos do personagem e determinam sua

trajetória, num desejo obsessivo cuja ausência implicaria uma narrativa completamente

diferente.

Esse mesmo espaço-refúgio da infância será muitas vezes retomado ao longo da série

de romances de Dalcídio Jurandir, aparecendo para o personagem como depositário da

memória, mas sempre se constituindo como um enigma, como se pode ver, por exemplo, em

Primeira manhã (1967: 234): “Alfredo, no íntimo, respondia: sabes vir sossegada para A

Nacional. Não tens que te encarar com o catedrático de matemática nem com a anta da aula de

desenho. Nem com o enigma do chalé.” Ou, por outro lado, mostrando indícios de segredos e

desentendimentos não declarados no romance Ponte do Galo (1971: 39): “Debaixo deste

soalho, pulga muita, ou será também o peso do chalé, de tudo que, injusto e oculto, tem aí em

cima?”.

Como forma de resistência a essas oscilações de humor que perturbavam a paz do

chalé, o garoto recorre a um jogo infantil cuja finalidade é restituir cada coisa ao lugar que

Alfredo lhe destinara:

Fugindo àquelas situações que se multiplicavam no chalé, e como se

buscasse o ímpeto da fuga, Alfredo recolhia-se ao jogo do faz de conta

tão pegado à sua infância. Era então necessário aquele carocinho na

palma da mão, subindo e descendo de onde, magicamente,

desenrolava a vida que queria. (TCR, p. 144)

Por meio desse instrumento mágico e onírico, como uma varinha de condão ou uma

bola de cristal em que o mundo se transfigura ao seu comando, Alfredo rearticula o grande

mundo real à sua (dele, Alfredo) ordem particular, redispõe os elementos desse grande mundo

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ininteligível ao redor, submetendo o externo ao interno, o grande ao pequeno, numa intensa

relação dialética. Como afirma Bachelard (1978:300): “(...) todo o universo se concentra em

um núcleo, em um germe, em um centro dinamizado. E esse centro é poderoso, já que é um

centro imaginado.” Força e evasão se concentram nesse pequeno objeto esférico e indicador

da presença do maravilhoso, em que atua a imaginação criadora e transformadora da criança

que se defronta com fatos e relações que estão muito acima de sua compreensão ou mesmo de

sua intervenção. Com o carocinho em sua mão, o personagem constitui um vasto universo

paralelo onde tudo é possível: o Major, o pai do personagem, realiza efetivamente seus sonhos

fantásticos de visionário, a mãe é uma dama digna e respeitada pela sociedade, além de não

ter vícios a esconder, a irmã Mariinha está bem viva e alegre brincando sobre o assoalho da

varanda do Chalé, e a realização de seus próprios sonhos de escola e cidade são apenas a

conseqüência natural da vida, e não objeto de uma luta intensa, muitas vezes não declarada,

entre os pais.

Esse portal do onírico só vai paulatinamente perdendo sua força transmutadora com

o amadurecimento, a vivência e o percurso do personagem através dos diversos espaços da

narrativa, em especial no contato com a cultura da capital, que impõe a aprendizagem de

novos códigos e comportamentos. Nunca será, no entanto, descartado completamente, e sua

imagem será retomada eventualmente, já sem sua função anterior, mas como um contraponto

não transformador, como um objeto de devaneio ou sonho, ele próprio a essa altura

transmudado em fantasia da criança que Alfredo já não é mais, como se observa em romance

posterior, Primeira manhã (1967: 29): “Ia meter pelo olhinho dum caroço de tucumã toda a

saudade dela: agora, sim, enterrei neste caroço o inteiro tempo em que andamos juntos, assim,

é para sempre, sem dizer água vai.”

De qualquer modo, nessa configuração do espaço familiar como um espaço-refúgio

em que se projeta (e por vezes se superpõe) a imaginação criadora do menino, nada mais

distante daquela Amazônia misteriosa, paraíso ou inferno impenetrável, opressor e

determinante do comportamento dos seus habitantes, onde o gênesis ainda está se

processando, como Euclides da Cunha a viu, ou mesmo a “floresta cifrada” de Raul Bopp,

onde ainda estão fabricando terra. Projetando seu mundo interno sobre o chalé e seus

arredores, o menino domina o entorno, torna possível o isolamento desse espaço protegido

por uma espécie de círculo mágico instituído por Dona Amélia, como já se disse, frente aos

problemas que assolam as outras casas (como as da rua de baixo). Porém, se com a morte de

Eutanázio, episódio de Chove nos campos de Cachoeira (1941), o “cemitério alcançara a

última casa que o desafiava” (TCR, p.70), um acontecimento trágico, a morte da irmã,

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Mariinha (TCR, p.195), solapa de vez a confiança de Alfredo (e da mãe também), marcando a

entrada da desgraça no espaço-refúgio da criança e desfazendo os sortilégios preparados por

D. Amélia, como pensa o protagonista. Essa invasão indesejada da fortaleza/espaço-refúgio

faz com que ele entre em desespero e se precipite em fuga, também desencadeando os

acontecimentos que vão culminar com a sua ida para Belém. Invadida essa pequena cidadela –

o chalé - pela marca da morte, não resta mais nada ao personagem a não ser lançar-se,

desesperadamente, nessa fuga mal planejada, que será frustrada pela denúncia de Andreza, a

menina que é a companheira fiel de Alfredo.

Os outros personagens-habitantes desse mundo concentrado, o Major Alberto e

Mariinha, pouco podem fazer para mudar ou deter a marcha inexorável da personagem em

busca de seus sonhos, pois a mãe de Alfredo também está determinada a realizar o desejo do

filho. Seus papéis parecem estar pré-determinados na trama. Major Alberto, o pai, que

também tem duas filhas de outro casamento em outra cidade, com sua ausência e sua falta de

habilidade para lidar com essas duas famílias, sejam os sonhos do filho, seja a cegueira de

uma filha, além do ambíguo status ocupado por D. Amélia, uma esposa de fato mas não de

direito – uma “esposarana”, no dizer de Alfredo –, é aquele que tem o “gosto de percorrer o

mundo sem mexer-se da rede”, um conformista, como vemos em Primeira Manhã (1967: 22);

o Major, um figurante nos intensos dramas que se passam no chalé, serve de mediador

honesto para o Intendente de Cachoeira, tornando legais todas as ações do Dr. Lustosa,

participando da “pantomima” que era a sessão de apreciação das contas, mesmo sabendo da

corrupção de seu chefe. Mariinha, por sua vez, com sua figura quase intangível, ainda menina

adoece e morre rapidamente, tragédia antecipada pelo episódio da borboleta que ela e o irmão

haviam queimado antes, o que concentra a atenção de todos em Alfredo e dá novas forças

para a mãe ajudá-lo na realização do sonho de viagem.

Por fim, o chalé, esse espaço que concentra tantas referências importantes para o

personagem, será sempre uma reserva de memória, um ponto de concentração a que o menino

recorrerá com certa freqüência durante sua trajetória, configurando-se naquele centro fixador

de devaneios de que fala Lúcia Miguel Pereira, ao comentar A poética do espaço, de

Bachelard:

Qualquer, porém, que seja sua influência posterior, nada se compara à

sua significação para a criança – sem dúvida porque o adulto pode

viver à custa do que em menino acumulou, volta sempre, em

imaginação à casa maternal, fixadora de seus devaneios. Para isso é

contudo mister que nela haja possuído um refúgio pessoal, privado,

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103

particular, algum recanto onde se escondesse quando descontente.

(Pereira, 1994: 299)

Daí a previsibilidade de que, quando o personagem finalmente consegue, em boa

parte graças à luta da mãe, a esperada partida para a cidade e para a escola, seus sentimentos

se dividam e o chalé apareça nesse momento em toda a sua ambigüidade, em seu caráter

duplo de proteção da qual se afasta o menino, mas ao mesmo tempo a prisão que pode

impedi-lo de continuar seu trajeto:

Esperava embarcar como um passarinho solto e o coração se fechava

em uns quantos sentimentos novos e informes, na sensação de que o

chalé ia dentro, consigo, e ao mesmo tempo o via afogado na enchente

de abril. (TCR, p. 376)

Para livrar-se desse lugar que concentra tantos significados, o personagem deve se

livrar de tudo o que o prende a esse espaço, inclusive perdendo a oração que lhe fora dada

como proteção contra as forças desconhecidas do novo lugar (TCR, p.376). Não será surpresa,

então que, mais tarde, quando o personagem volta de férias para o chalé, este seja associado

ao passado morto, em contraposição à vida que o rio representa agora que ele se libertou desse

espaço-refúgio, como vemos em Primeira Manhã (1967: 21-2): “O chalé lhe pareceu o tempo

morto, o museu das vozes mortas; abeirou-se do rio, este, sim, tão vivo, tão recém-nascido.”

Mais tarde, no romance Belém do Grão Pará, aparecerá uma frase esclarecedora de como o

personagem projeta sobre o espaço-refúgio sua imaginação criadora: “Seu Virgílio escutava

aquele diálogo um pouco estranho, cheio de uma súbita satisfação pelo afilhado. O chalé era

como uma invenção do menino” (BGP, p.85).

Dessa maneira, esse espaço-refúgio, com significados marcados definitivamente na

imaginação do menino, estende-se para além de seu próprio espaço circunscrito, também se

estendendo no tempo, ligado à infância, preservado em sua integridade, impregnado de

temporalidade, como se pode ver em um trecho de outro romance, Ponte do Galo (1971):

“Aqui era, Lucíola ficava, mas horas, olhando o chalé, ali vizinho, as quatro janelas de lado,

duas na varanda, duas no corredor, a madeira da parede lavadinha de sol, lua, vento e chuva.

É verdade, o chalé não envelhece.” (PGA, p. 9). Como se verá ao longo dos outros romances,

esse lugar da infância, será preservado em toda a sua integridade, se não física, pelo menos

através das lembranças do herói. Como o leitor há de perceber, entre esse espaço protetor da

infância e o novo e inseguro espaço em que o personagem se lançará só uma ponte é possível:

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104

a memória, sempre seletiva e caprichosa, que fornecerá pontos de referência durante a

trajetória, na verdade nem tão perigosa nem tão aventurosa. Se essa afirmativa parece dar uma

visão de monotonia ao percurso do personagem é que o romance, tal como se apresenta na

tradição realista, na qual o de Dalcídio Jurandir se inscreve, é composto de “episódios

modestos, com um valor narrativo limitado”, conforme afirma Moretti sobre o romance

moderno (Moretti, 2003:60), mas esses episódios verdadeiramente prosaicos sempre têm

algum valor.

2.2 A casa de Lucíola: uma ruína para arruinados

Ao começar o romance, a casa de Lucíola, outra das personagens importantes no

enredo do romance Três casas e um rio, é um ambiente que já pertence ao passado de

Alfredo. Lucíola, uma vizinha e freqüentadora assídua da casa dos pais de Alfredo, “adotara”

o menino em virtude da solidão de solteirona em que vivia, projetando nele a maternidade

frustrada e um desejo de posse que a faz, em certo momento, fantasiar a morte de d. Amélia.

Já emancipado dessa influência sobre sua vida, nesse ponto da narrativa Alfredo vê Lucíola

como representante de um passado em que ele era apenas “uma criancinha”, sendo que esta

personagem ainda procura tratá-lo como antes, como um seu filho perdido, o que só faz

afastar mais ainda o garoto. Desesperado pela vontade de viajar para Belém e cursar a escola,

Lucíola é o passado que o garoto quer afastar definitivamente, identificando a casa da moça

com um espaço e um tempo que têm de ser superados. Esse afastamento se radicaliza quando

Alfredo, para confirmar se o corpo de uma mulher tinha o talhe de uma palmeira, como havia

dito o pai, vai até a casa de Lucíola e a surpreende nua:

Surpreendeu-a no quarto, despida. Ela deu um pequeno grito, tapando

os seios com um pano de retalhos. (...) Logo porém baixou o pano e

lançou o peso dos cabelos para as costas, abandonando-se numa

intimidade que constrangeu Alfredo. Mas a curiosidade era maior que

o constrangimento. O corpo da mulher tinha a brancura das galinhas

cozidas. (TCR, p.72)

Contraposta à idealizada figura de Iracema e destituída, assim, física e

espiritualmente do posto de segunda mãe que ela própria havia se esforçado por criar, com a

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indiferença de D. Amélia, Lucíola é desprezada por Alfredo, que só a procura eventualmente

quando precisa.

Dadá, a irmã de Lucíola, ressentida por ter perdido as facilidades que tinha na época

em que a mãe estava viva e elas viajavam juntas freqüentemente para Belém, vinga-se de sua

decadência sobre Lucíola e seu amor materno desmedido por Alfredo:

Falava alto, para que Alfredo se doesse e ao mesmo tempo

desesperada, porque depois da morte da mãe não pudera nunca mais ir

a Belém. Se desabafava contra o menino, contra Lucíola, contra o

espetáculo. Revia as noites da cidade quando entrava no Teatro da

Paz, deslumbrada com a iluminação, os chapéus das senhoras dos

camarotes, os leques e os binóculos, as costas nuas das moças nas

poltronas, o luxo dos cenários (...). (TCR, pp. 157-8)

Essa mesma personagem reaparecerá mais tarde no romance Ponte do galo, quando

Alfredo volta em férias para Cachoeira, como a nova personificação da decrepitude da casa,

depois que Lucíola morrera. Além das duas irmãs, são também personagens dessa família

Didico e Rodolfo, os outros irmãos.

O espaço de convivência desses quatro personagens, que vivem juntos mais por falta

de alternativas do que real sentimento de família, é mais uma ruína que se junta à extensa

galeria de ruínas presentes na obra de Dalcídio Jurandir: “Como que nascera assim, já velha e

inacabada especialmente para Lucíola, com o seu ar de caruncho, a porta e a janela da frente

de parede rachada e encardida que, à noite, lembrava o rosto da moça.” (p.158). Lucíola e a

casa estão, dessa maneira, entranhadamente associadas em sua ainda jovem decrepitude e

decadência, em sua solidão e abandono. Ainda inacabada e já decrépita, a casa acumula sinais

da desistência dos quatro irmãos em buscarem algum sentido para suas vidas, ou alguma

resistência frente à apatia que os domina: “Na sala, o forro havia sido desmanchado porque

ameaçava ruir, os cartões postais, colados à parede, extinguiam-se, ou deles fugiam os

panoramas e as pessoas” (TCR, p.158). A chuva expõe mais ainda a decrepitude da casa, pois

parece lavar qualquer possível traço que possa encobrir suas condições de destroços de um

naufrágio familiar: “Depois da chuva, a velha casa de Lucíola apresentava um aspecto de

ruína e solidão de impressionar o menino.” (TCR, p. 103).

Esse espaço que concentra e reflete os fracassos dos irmãos verga-se ante o

sofrimento de Dadá, criando um vácuo sobre seu quarto, como se só ela ainda alimentasse

algum desejo, ou apenas frustração pelo que perdera com a morte da mãe: “A casa velha

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parecia arquear-se cada vez mais com aquele quarto escuro onde Dadá sufocava os soluços no

lençol e aquela sala de jantar com o fogão a um canto, junto do qual havia o poleiro das

galinhas” (TCR, p.159). Sob o olhar severo e avaliador de Alfredo, o único traço que ainda

mostra algum vigor na casa é a imagem de um Santo Expedito, o santo das causas urgentes,

com seus “olhos compassivos” que lembram ao personagem um antigo olhar de Lucíola,

quando esta ainda possuía alguma juventude e frescor e algum poder afetivo sobre o menino.

Mais tarde, no romance Ponte do galo (1971), Alfredo, já com 16 anos e de férias em

Cachoeira, volta à casa dos quatro irmãos e essa incursão pelo passado mostra como a casa

pertencia a um tempo morto, suspensa no passado, figurativizada no relógio parado e oco:

Alfredo esmiúça pela varanda, e descobre, atrás da panela de barro, o

empoeirado relógio sem a tampa de vidro, sem o ponteiro. Aqui, por

mão de Lucíola, aprendeu as horas, os algarismos romanos até XII.

- Quando quebrou?

- Quem?

- Este-um aqui?

- Ahn, era pra consertar. Quebrou de uma vez. O tempo que tinha

de contar, contou. Da máquina o tal do meu irmão fez motor de

brinquedo. Ah, também! Me cansei das horas.

- Oco, então?

- Que tu queres mais? Só a casca, como esta casa toda, meu filho.

(PGA, p. 16)

A distância e o desgosto desses irmãos arruinados não passam despercebidos de

Alfredo nessa volta a Cachoeira: “Verdade é que Alfredo não percebe entre Dadá, Didico e

Rodolfo um só laço de família. A morte da jibóia dissolvia a casa” (PGA, p. 44). Nessa

mesma revisitação à casa que lhe fora importante, esse espaço, personificação do passado, vai

mostrar-se definitivamente perdido para Alfredo, no mesmo romance, Ponte do Galo (1971:

22): “Alfredo saiu vexado, já rumo do Salu, com aquela casa dos Saraivas perdida para

sempre”.

A casa de Lucíola, por sua configuração e seus ocupantes, todos arruinados pelo que

escolheram ou deixaram de escolher, sem nenhum apego afetivo que os impulsione ou, pelo

menos, os ampare em sua queda vertiginosa, confirma que existe aquela correlação funcional

entre ambiente e percurso de personagens, mesmo fora do Naturalismo, âmbito no qual

Antonio Candido detectou tal junção (Candido, 1972). Imerso em seu passado de fracassos,

espaço concentrado de frustrações e recusas aos desafios que a vida impôs aos quatro irmãos e

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aos quais eles não souberam ou não quiseram responder, a casa em ruínas dos Saraiva tem a

oportunidade de unir-se a outra ruína personificada e sua propriedade mítica e decadente,

Edmundo Menezes.

A possibilidade de uma junção que parecia completamente improvável acontece no

episódio em que Lucíola vai socorrer Alfredo, que fugira em direção à mítica fazenda

Marinatambalo depois de mais uma decepção em relação à ida para Belém. No episódio os

dois acabam encontrando um novo personagem, Edmundo, último descendente de uma

família que havia dominado a cena em Cachoeira e que agora nada mais era que um herdeiro

de um patrimônio em ruínas.

Se em Chove nos campos de Cachoeira a fazenda aparecia como lugar mítico,

distante, quase inalcançável, projeção de sonhos e devaneios, em Três casas e um rio é apenas

um indício de um poder antigo e derrotado por seus próprios excessos, a derradeira ruína de

uma família outrora rica.

2.3 Marinatambalo em ruínas: maldição de mortos e vivos

O terceiro lugar, terceiro topos mais importante a se apresentar no romance Três

casas e um rio, é a mítica fazenda Marinatambalo, cujo estranho nome era a antiga

denominação da ilha de Marajó:

Poucas pessoas na vila pronunciavam o nome direito. Alfredo parou

pensando nesse nome estranho, nessa fazenda estranha. Seu pai

consultara o “Tupi na Geografia Nacional” e não encontrara o nome.

Achou-o num volume sobre a história do rio Amazonas.

Marinatambalo. Era um antigo nome dado à Ilha de Marajó pelos

espanhóis ou holandeses – sabia-se lá – quando andavam pela

Amazônia e aproveitado pelo Dr. Menezes para batizar a sua fazenda.

(TCR, p.213)

Nesse caso, a ligação do lugar ao nome exótico tanto serve para mostrar distinção de

instrução, já que o dono da fazenda era “membro do Instituto Histórico do Pará, tinha as suas

fumaças, gostava dos nomes cheios” (TCR, p.213), quanto para diferenciar seu reino, espécie

de propriedade feudal em que o dono faz e desfaz sobre tudo e todos:

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Em sua fazenda, que ele chamava o Reino de Marinatambalo, dava

bailes a rigor com vestidos mandados vir de Paris. Tentou fazer uma

festa de carnaval à moda antiga, com os cavaleiros cheios de pó de

arroz no cabelo e as damas de anquinhas e saia balão. (TCR, pp.213-

4)

Para completar o quadro de luxo e de exotismo desse reino já diferenciado pelo

nome, tudo era permitido ao proprietário, que instaura um regime de autoritarismo e terror ao

seu redor: “O reino de Marinatambalo levantou fama de luxo, de esbanjamento e de crueldade

também” (TCR, p.214). É nesse feudo que Edgar Menezes marca homens a ferro, manda

surrar vaqueiros e matar ladrões, tudo em meio a pavilhões de caça, zoológico e outras

curiosidades para ali transplantadas. Dessa forma, o próximo passo é a passagem do lugar a

espaço lendário, misto de paraíso com fartura de frutas e inferno ou morada de lobisomens,

lugar de morte e ruína: “Existiria de fato o reino de Marinatambalo?” (TCR, p. 215).

É interessante acompanhar os vários passos do menino que foge e se encaminha para

esse lugar mítico, um percurso que assume características de verdadeira viagem ao mundo dos

mortos, em direção às ruínas de outros tempos, àquela moradia de fantasmas. Sendo esse

percurso não só físico mas também temporal, pois o personagem está indo em direção ao

passado, é natural que ele encontre um emaranhado de obstáculos a superar no caminho de

Marinatambalo, como nos contos de fada em que o herói tem que provar ser merecedor de

vencer os obstáculos do caminho para chegar ao lugar almejado. No caso, haverá apenas uma

quebra da expectativa e o reino do maravilhoso transformar-se-á na fazenda e na família em

ruínas.

Desorientado pela noite e a pela tristeza por ter visto a mãe embriagada, Alfredo

busca Marinatambalo como ponto de fuga, mas ao mesmo tempo vê-se obrigado a escolher

entre vários caminhos, tornados iguais pela luz noturna: “A noite apagava todos os caminhos

e o menino avançava pelo aterroado com dificuldades, saltando aqui e ali, por causa dos

espinhos e com medo das cobras.” (TCR, p. 214). Sentindo-se perseguido, o personagem

depara-se com vários indícios de que esse caminho também é simbólico, o que faz Alfredo

temer pelo sobrenatural: o surgimento inesperado de uma pixuneira em flor, a lembrança da

ilha que aparecia e sumia, a cerca de arame farpado do Dr. Casemiro Lustosa, um dos

poderosos do lugar (TCR, p. 215).

Com tantas visões nessa fuga desesperada, o menino sente-se, paradoxalmente, mais

forte e maduro pelo esforço empenhado no percurso até ali: “Aumentou-lhe o desgosto de ser

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menino ainda. Queria libertar-se daquela tirania de ilusões e mentiras, de medo e de faz de

conta. E por isso sentiu que crescera muito naquela noite, tornara-se adulto pelas decepções e

pelo orgulho ferido” (TCR, p.215). O paradoxo é apenas aparente, pois o que aconteceu é uma

preparação para o que há de vir, já que essa foi a primeira vez que ele tomou a iniciativa de

afastar-se de sua casa, o que, certamente, é o início de um longo processo de separação do

chalé, seu espaço-refúgio, rumo à necessária maturidade.

Exausto pela fuga, Alfredo dorme no caminho e é encontrado por Lucíola, que o vira

fugir do chalé, e ambos chegam, enfim, ao pavilhão de caça de Marinatambalo, o reino em

destroços dos Menezes. Como contraponto a essa ruína reencontrada depois de tanto tempo,

Lucíola recorda a última festa que os donos da fazenda haviam promovido (TCR, p.221).

Surpreendentemente, Lucíola e a irmã haviam sido convidadas pelos Menezes e puderam

presenciar todo o evento que representa ao mesmo tempo o fausto e a queda de

Marinatambalo, numa ocasião em que a personagem tivera a única esperança de encontrar um

companheiro, ao conversar rapidamente com um rapaz da cidade que viera para a festa, em

cena cujo desfecho é um anticlímax: “Regressaram no mesmo galope, ela decepcionada e

feliz, sem saber o que sentia, admirando o respeito e a distinção com que aquele homem a

tratava e despeitada também por isso.” (TCR, p. 224). Ainda tocada por essa visão breve da

felicidade, é que ela presencia a cena da esposa de Edgar Menezes nua, amarrada ao tronco

por ter sido surpreendida com um vaqueiro, sendo humilhada na frente de todos os

convidados (TCR, p.226). Essa última festa reveste-se de especial significado para Lucíola, já

que o episódio dessa terrível punição assinala a derrocada dos Menezes, pelo menos

simbolicamente, e essa personagem perde a chance de viver uma vida plena, tornando-se daí

em diante uma pessoa amarga e com fixação em Alfredo, o filho de sua vizinha, D. Amélia:

“(...) em sua solidão mesquinha que tentava engrandecer com a presença de Alfredo.” (TCR,

p. 228).

Ao amanhecer, a aparição de um estranho cortejo surpreende os personagens: “Não

havia dúvida. Era uma carruagem se aproximando, no clarão da manhã que invadia o bosque.”

(TCR, p. 228). Lucíola não conseguia acreditar que tal coisa ainda existisse, nem que a

matriarca dos Menezes, D. Elisa, ainda estivesse viva:

No entanto a caleche rodava, aproximando-se dela com o ruído de

uma carroça, desconjuntada, como se carregasse todo o peso daquelas

ruínas. Os animais a conduziam com tamanha dificuldade, pareciam

fantásticos (...). Estavam velhos, quebrados por um torpor e ao mesmo

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pela consciência de um castigo, atrelados àquela coisa ruidosa e

desmantelada. (TCR, p. 228)

Inicialmente assustadora, aquela aparição revelar-se-á, num olhar mais próximo e

crítico, mais cômica que imponente, simbolizando aí também o momento de desmitificação

do mundo de Marinatambalo: “Alfredo pôs-se a examiná-la, a olhar as rodas. Era uma coisa

realmente fúnebre, fedia a defunto, a pano podre, a morcego. E pouca diferença achava,

refletiu divertido, entre a caleche e a velha que continuava inerte no chão” (TCR, p. 230). O

que era lenda transforma-se, pela aproximação que permite uma avaliação severa, em mais

uma ruína do universo ficcional dos romances de Dalcídio Jurandir.

É natural que a carruagem, a caleche de Edmundo e sua avó, pareça vir de outro

mundo, pois ela vem de “outro” mundo, um passado em ruínas dos antigos coronéis da

Amazônia, muitos deles arrasados pela quebra da borracha e essa velha matriarca de luto é a

prova ainda viva da queda de sua família:

Lucíola pôs-se a contemplar os restos daquela fortuna morta. Os três

chalés que constituíam a casa grande seguidos dos quatro pavilhões

haviam perdido a pintura próspera, azul e branca de 1910 e das suas

paredes de madeira as tábuas caíam soltas ou podres. (TCR, p. 231)

O ano que aparece no trecho é bastante significativo, já que assinala o início da

derrocada da civilização de dissipação que se erigiu sobre os lucros com a borracha, cujo auge

pode ser situado num período que se estende entre 1852 e 1910.

Enviado para estudar na Inglaterra aos três anos, o menino nunca mais retornara a

Marinatambalo, e essa fazenda de estranho nome e a ilha da qual ela fazia parte

permaneceram em sua imaginação, e ali ele sonhava implantar a administração colonial à

inglesa (TCR, p. 241): “Quanto à exploração do trabalho, imitaria os métodos do colonizador

inglês na Ásia e na África (...)”. E é com esses sonhos grandiosos que o personagem volta sem

avisar para Belém e encontra a família desarticulada e despojada de sua aura de grande

proprietária de terras, e seu objeto de desejo, a outrora grande Marinatambalo, em ruínas.

Como vimos, não é só a fazenda que está em ruínas. O que parece ter-se encerrado é

o “Ciclo da Borracha” e as grandes e breves fortunas que o produto trouxe para alguns

poucos, e o narrador baixa a cortina sobre aquele mundo trazendo de volta à fazenda um dos

filhos daqueles coronéis para que assuma o comando de sua ruína particular. Mais tarde o

personagem irá se transformar em assombração para as moças solteiras.

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2.4 Belém: o clarão que atrai os jovens

Para os jovens ansiosos por horizontes mais amplos ou sem perspectivas em suas

pequenas cidades de origem, como Alfredo, a cidade é um chamariz, um objeto de intenso

desejo, um clarão no horizonte que significa muito mais do que uma simples mudança ou

mera viagem/travessia: “Alfredo quis divisar o distante clarão que muitas vezes se erguia das

bandas do nascente, tido, por pessoas da vila, como a luz de Belém. Como aquele clarão o

chamava!” (TCR, p. 18).

Como vimos acima, a viagem iniciática de Alfredo rumo a esse clarão que tanto o

atrai, uma espécie de luz forte simultaneamente fascinante e perigosa, tanto em sua longa

preparação durante os romances Chove nos campos de Cachoeira e Três casas e um rio,

quanto na sua realização, pelo esforço e determinação da mãe do personagem, que se dará

neste último romance, desvela, no caminho, um espaço amazônico complexo, dominado pela

opressão dos grandes proprietários, que parecem viver seu ocaso no símbolo de ruína que é

Edgar Menezes, personagem que ainda aparecerá no romance Ponte do Galo.

Apesar de o menino ter a imaginação da aventura, mas não os impulsos de realização

(TCR, p. 140), sua trajetória é determinada pela atração irresistível que a cidade grande –

Belém – exerce sobre ele, e a narrativa que atravessa os dois primeiros romances da série em

que Alfredo aparece, também se mantém a partir da possibilidade, ainda que frágil, de

realização desse sonho e dessa travessia.

A passagem do interior para a capital, o evento da transposição de fronteiras que se

revelará essencial para a trajetória de Alfredo e, consequentemente, para a narrativa, é tão

importante que fecha, de forma solene, o romance Três casas e um rio. Na longa cena de

desfecho, alternam-se a visão do entorno, conduzido o narrador pelo olhar atento e ansioso do

personagem e a busca de um vislumbre do destino que, de tão ansiado, parece estar sempre

mais além, tarda a chegar, causando um efeito de retardamento do tempo da narrativa,

traduzindo o suspense e a expectativa do menino. O primeiro movimento pode ser

acompanhado no trecho abaixo:

E atrás da camarinha, reteso e mudo no bailéu, o piloto fintava as

ondas, enfiando o barco por entre gargantas vertiginosas, vorazes e

fundas, para sair adiante, viscoso e escorregadio. Grande, inclinada e

tesa, a vela, como a asa do barco, era como o perfil de D. Amélia

projetado no espaço escuro. (TCR, p. 380)

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A despeito desse olhar que acompanha o movimento do barco e do piloto em seu

comando, o que importa é a busca sôfrega por qualquer sinal da cidade no horizonte, o objeto

de um desejo tão intenso que fora capaz de romper todas as barreiras:

Quando amanhecer será a cidade? Belém? (TCR, p. 381)

A madrugada levava-lhe ressentimentos e inquietudes, vestindo-o da

inocência e ambição com que queria encontrar e conquistar Belém,

ver o mundo que os matos e as nuvens escondiam teimosamente.

Através daqueles cachos de nuvens desenhavam-se ruas, colégios e

residências, estava na Avenida Gentil Bittencourt, a casa número

cento e sessenta onde se hospedaria. (TCR, p. 382)

Junto com essa ânsia e essa travessia física, tendo o barco que vencer um temporal,

há no menino, mesmo que ainda vaga, uma consciência de que a mudança também se

processa internamente: “Era uma noção imprecisa, quase insubsistente, de já ter deixado de

ser menino ou a idéia de que o perigo havia tornado mais preciosa e mais sua a Belém que

buscava” (TCR, p.383). Se a travessia não deixava de ser perigosa, o personagem “tentava

fazer de conta que via o clarão de Belém” (TCR, p. 379), afastando o medo pela ânsia da

chegada na cidade. A travessia da ilha de Marajó para Belém revela-se, então, como o rito de

passagem de Alfredo, no qual será conduzido por sua mais árdua defensora, D. Amélia.

2.5 Três casas separadas pelo espaço e pelo tempo

Como vimos, na hierarquia de lugares estabelecida na narrativa, o chalé ocupa um

lugar privilegiado e infinitamente distante das outras duas casas, uma ilha cercada pelo

conjuro da mãe de Alfredo. A casa de Lucíola é a ruína de um tempo de menino de Alfredo,

uma etapa abandonada assim que uma nova desenha-se em sua vida, situando-se num passado

próximo, mas já recusado como ultrapassado e, de certa forma, vergonhoso. A casa dos

Menezes, a mítica Marinatambalo, situa-se num tempo e num espaço míticos, arruinada não

só pelas crueldades e traições cometidas pela família, mas também por sua decadência

financeira, além de sua tentativa de se fazer um reino à parte do resto do mundo. Sua queda

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inicia-se a partir da traição da esposa de Edgar Menezes, quando as vulgaridades (e misérias)

do mundo invadem sem aviso aquele mundo retirado da elite marajoara. Mantido à distância

pela família, mas sonhando em se tornar um grande fazendeiro em Marajó, o herdeiro

Edmundo Menezes só encontra ruínas do mundo idealizado ao voltar. Dessa maneira é que

esse último Menezes enxerga em Alfredo a possibilidade de trazer de volta o viço e a vida

para aquela família e para aquela casa arruinada, cuja matriarca é o símbolo vivo daquele

tempo mítico e violento, agora fatalmente destruído.

Recusado o casamento com Edmundo por Lucíola, que percebe o quão ridícula é

aquela união sem amor e sem nenhuma vantagem para os noivos, não restam alternativas a

esse herdeiro das ruínas, um fantasma deslocado, a não ser transformar-se em lenda viva, um

desaparecido que assombra e volta para levar as moças de Cachoeira em idade de casamento,

como se poderá ver no romance Ponte do Galo (1971: 20): “(...) das moças de Cachoeira o

fado era, cada ano, aquele encantado do mondongo, falando inglês, montado no búfalo, vir

buscar uma.”

Portanto, essas três casas, além de estarem distantes espacialmente umas das outras,

numa espécie de triângulo sobre o qual se movem os personagens e se encena a narrativa,

também estão separadas pelo tempo, sendo Alfredo o único que pode transitar tranqüilamente

entre os três ambientes e, ao mesmo tempo, representar uma possibilidade de sublimação do

mundo que os três espaços representam. A casa de Lucíola e a fazenda Marinatambalo são

percebidas por Alfredo como pertencentes ao passado e, desse modo, recusadas por motivos

diferentes: a casa de Lucíola porque representa a infância a ser esquecida ou superada, já que

o personagem já está em outra fase de seu crescimento; já a fazenda Marinatambalo, antes

mitificada pela imaginação do menino, estimulada pelos comentários das pessoas da vila,

transfigura-se ao ser visitada e desbravada por Alfredo e Lucíola. Ambos os espaços estão

arruinados e sem chance alguma de ressuscitarem, pois pertencem, como vimos antes, a um

outro tempo.

Por outro lado, o chalé, espaço-refúgio de Alfredo, ainda que seja o presente do

personagem, oscila em sua caracterização, ora figurando como espaço protetor, a imagem

óbvia do ventre da mãe, ora como prisão, um espaço de confinamento que impede a viagem

para Belém e para a escola, próxima etapa a ser percorrida em sua formação, a fase em que o

menino deve desabrochar no homem.

Por analogia, nessa última acepção, nesse momento do percurso do personagem em

que uma decisão será determinante para sua vida, o chalé lembra a cena de Alice no país das

Maravilhas, em que a menina, depois de ter comido um pedaço do bolo errado, cresce demais

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114

em espaço que lhe fica pequeno. No caso de Alfredo, o espaço não mudou fisicamente, mas

estreitou-se simbolicamente, e o habitante precisa migrar para a cidade se quiser continuar

com o novo tamanho, ou aceitar o fato de que terá viver em ambiente de possibilidades cada

vez mais restritas. Em Cachoeira, o espaço-refúgio ligado intimamente à infância e a proteção

dos pais, não há mais mistérios há desvelar para Alfredo, especialmente depois dos

acontecimentos de Três casas e um rio, quando caem as defesas do chalé, primeiro com a

morte de Eutanázio e depois com a de Mariinha, e o desvelamento do mistério de

Marinatambalo e seu mundo em ruínas.

Desse modo, em Três casas e um rio, os lugares não são puras localizações no

espaço, são também pontos de aglutinação de sentimentos, apresentam em sua própria

configuração as frustrações e amarguras dos habitantes, tendo a capacidade – projetada pelos

personagens – de proteger ou oprimir, de amedrontar ou encorajar no prosseguimento da luta,

de acordo com as variações de ânimo dos personagens, o que transforma essas três casas em

pequenos mundos, ilhas de significado para seus habitantes.

Para Alfredo, qualquer indício de Belém, esse espaço almejado e intensamente

idealizado, seja uma simples sugestão do distante clarão de suas luzes (mais sonhado que

realmente visto), ou a simples menção do nome da cidade, possui o poder de desencadear mil

viagens e realizações. Assim, é em Três casas e um rio (1958) que se inicia, para Alfredo, a

longa travessia – peregrinação – que o transportará do ambiente acolhedor do chalé às grandes

mudanças por que ele há de passar no espaço-incógnita, Belém, onde deverá enfrentar

obstáculos que hão de prepará-lo para a vida adulta.

3. Rituais de passagem em Belém do Grão Pará

Travessia perigosa, mas é a da vida. Guimarães Rosa

Entre o romance anteriormente analisado e Belém do Grão Pará (1960), o autor

publica, também em 1960, Linha do parque, um romance cujo foco é o cotidiano das lutas

operárias e das greves por melhores condições de trabalho no porto do Rio Grande/RS no fim

do século XIX. Centrado inicialmente na figura do espanhol Iglezias, foragido por ter

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participado de atentados a bomba em seu país, e depois em seus seguidores, este é o romance

em que Dalcídio Jurandir deixa transparecer com maior vigor sua concepção materialista da

história, segundo Temístocles Linhares (Linhares, 1987: 439) e aquele em que a ficção mais

se apropria da história, aproximando-se, pelo centramento na luta coletiva, da obra engajada.

Esse é o único romance do autor a não incorporar o universo amazônico, deslocando-se para

outro espaço e outros temas. Como está à parte do universo focalizado na tese, a configuração

espacial desse romance não será analisada aqui.

Toda narrativa é uma viagem ou, pelo menos, um convite à viagem pelos mundos

imaginários que a literatura cria, ainda que esses lugares ficcionais projetem-se sobre mundos

reais. Assim sendo, quando o enredo tem por dominante o tema da viagem, a narrativa parece

convidar o leitor para que acompanhe e, eventualmente, identifique-se, com as inquietações

desse caminhante solitário – o herói do romance, o que transforma esse viajante eventual em

um flâneur que é o guia do leitor por sua visão dos caminhos por que passa ou mesmo do

traçado da cidade.

Se Alfredo conseguiu empreender a travessia física que o separava de seus sonhos de

ascensão, que envolvem a ida a Belém e a escola, ao chegar à cidade começa uma outra

travessia, essa bem mais complexa que a anterior: a transição da vida de menino protegido

pela mãe para o jovem que viverá em casas de parentes ou conhecidos – a transformação de

menino em jovem. É importante assinalar que, ao conseguir realizar seu sonho de criança –

chegar à capital e à escola – a inquietação do personagem não cessará, principalmente porque

sua visão aguda dos próprios problemas e dos alheios vai levá-lo a realizar várias

peregrinações por diversos espaços da cidade, não só em suas várias mudanças de casa, mas

em sua busca incessante por sentidos cujos objetivos vão se desdobrando na obsessão por

várias mulheres, ou de um sentido para sua vida, ao longo dos romances a partir de Belém do

Grão Pará. Seja buscando alguém, seja peregrinando de bairro em bairro, à parte sua

descoberta da experiência do espaço urbano e o fascínio que a cidade propõe aos novatos, o

personagem descortina uma Belém nada idealizada, cheia de becos sujos e lamacentos, onde

medram a pobreza, a injustiça e as tramas políticas, mas também um lugar diversificado e

fascinante, povoado de personagens humildes e ricos de vivência, sobre os quais o narrador

centraliza o foco, um lugar que proporciona oportunidades e abre muitas possibilidades pela

concentração de seres humanos e sua luta cotidiana.

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116

3.1 A cidade como universo de possibilidades

Esta cidade é assim tão trancada que nunca informa? Suas

lonjuras não deixam um número?

Dalcídio Jurandir

Um dos primeiros questionamentos que pode ocorrer ao leitor mais atento de Belém

do Grão Pará é de ordem simples: esse romance se enquadraria naquilo que Albert

Thibaudet, tomando Notre-Dame de Paris, de Victor Hugo, como iniciador e modelo dessa

categoria e mencionando outras obras francesas do século XIX, chamou de “romance

urbano”? Esse tipo de romance se caracterizaria por ser um romance eminentemente de

espaço, interessado em retratar a cidade, formar uma vista panorâmica, em geral poética, em

que os personagens pouco se sobressaem e não conseguem se impor como seres

independentes do autor (Thibaudet, 1938: 207). Esse tipo de ficção é o que substituiu o

romance histórico de Walter Scott e está mais interessado na geografia, na exploração do

espaço, do que nos seres que o habitam (Thibaudet, 1938: 212).

Certamente que o nome do romance desloca a atenção para o lugar, e é evidente que

a cidade de Belém também pode ser considerada uma personagem, tanto neste romance

quanto em Passagem dos Inocentes (1963), próximo romance da série, mas ela só se

configura como tal a partir das fragmentadas visões dos vários personagens que a habitam,

especialmente Alfredo, esse novato que aprenderá a duras penas a sobreviver na cidade

percorrendo-a incessantemente, sempre inquieto, sempre em busca de algo que está mais

além. Dessa maneira, como veremos nesta parte do trabalho, os seres de Dalcídio Jurandir não

são meros fantoches ou fantasmas manipuláveis que animam um meio rico de nuanças e

labirintos – a grande cidade. Os personagens e a figura da cidade que se constrói a partir de

sua percepção em suas andanças, crescem e se realizam plenamente nos seus conflitos

particulares. Ainda assim, nesses romances pode ser observado aquilo que Franco Moretti

observa quanto aos romances do século XIX (Moretti, 2003), ou seja, o espaço – a cidade,

neste caso – proporciona, ou condiciona, o desenvolvimento de um certo tipo de narrativa, por

suas próprias características paradoxais de, a um só tempo, agregar e segregar, ao hierarquizar

nos diversos bairros, os seres humanos que a habitam.

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117

Todo viajante que cruza a fronteira, e entre o interior e a cidade existem fronteiras

claras, pode, de algum modo, não se adaptar ou se acomodar, e seu movimento, sua travessia,

não termina nesse novo mundo (Moretti, 2003: 109). Ou, como diz Ricardo Gullón (1980:

18): “A viagem do personagem pode fazer com que ele se ressinta da mudança de paisagem,

já que está passando do espaço-refúgio, maternal, para o espaço-incógnita, onde tudo são

acasos e podem representar perigo.” Se a mudança é o resultado de um inconformismo e um

desejo quase obsessivo, cedo o personagem dessa travessia, Alfredo, descobrirá que passou do

espaço protetor – o Chalé, dominado pela figura onipresente da mãe, para a vertigem e a

incógnita da capital, Belém, onde vai morar em várias casas, com pessoas que não são da sua

família, e sempre transitoriamente. Então, o que vai guiar o personagem em Belém é uma

ânsia de percorrê-la que se desdobra em vários objetivos. No fundo, apenas variações de uma

inquietação indistinta com o novo espaço a ser conquistado ou, pelo menos, conhecido e

mapeado.

É natural que o título do livro se refira ao espaço da cidade, assim como Três casas e

um rio remetia ao interior e à vila de Cachoeira, pois, como vimos no primeiro capítulo desta

tese, a natureza do lugar determina o tipo de conflito que a ficção pode ambientar ali. Se o

personagem central do romance Três casas e um rio fosse um citadino, deslocado para o

interior isolado, os problemas abordados necessariamente seriam outros; da mesma forma, se

o personagem de Belém do Grão Pará fosse um garoto nascido na capital, certamente os

conflitos vividos por ele seriam bem diversos daqueles decorrentes da inexperiência do

novato Alfredo. Porém, a construção ficcional desses lugares sempre aparece ligada a algum

personagem ou sendo desvelada a partir de seu périplo e sua visão particulares. Se para um

habitante nascido na cidade esta não possui grandes segredos ou mistérios, para Alfredo

Belém apresenta-se como um espaço-incógnita, o que o faz percorrer ou perambular por suas

ruas no intuito de apreendê-la. Como todo viajante que não conhece os códigos de

comportamento ou regras que regem esse novo espaço, Alfredo comete erros e passa por

vexames típicos de deslocamento, como o “trote” que sofrerá dos colegas de classe, episódio

do romance Primeira manhã.

Por um lado, a capital é uma fonte de brilho e atração para os personagens, assim

como a luz para os insetos, mas também pode se mostrar perigosamente enganosa, como

afirma Franco Moretti sobre as grandes cidades, cenário dos romances de formação europeus:

(...) a cidade grande é de fato um outro mundo, se comparada ao resto

do país – mas a narrativa a vinculará de uma vez por todas às

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províncias, construindo-a como a meta natural de todos os jovens de

talento. (Moretti, 2003: 75)

A cena da chegada de Alfredo e sua ida desastrada ao barbeiro para cortar o cabelo

sozinho (num primeiro ato de emancipação da mãe) são como o batismo do personagem na

complexidade da cidade grande. Neste espaço consideravelmente mais amplo e desconhecido,

não se tem qualquer vínculo com aqueles que prestam serviços ou comerciam produtos, e

qualquer erro pode resultar na vergonha pelo desconhecimento de códigos e de postura:

– Veja e não pie, meu filho. Veja e não fale, seu tio bimba. Se lembra

quando caçoava da matutice dos caboclos do Puca desembarcando em

Cachoeira? (BGP, 31)

A cidade agora só era este Salão Elegante. O Ver-o-Peso inteiro,

parecia, estava ali de olho nele: entra ou não entra? (BGP, p. 39)

A mãe, ainda que preocupada com o que o filho há de passar neste novo espaço em

que ele está longe de sua proteção, não pode voltar atrás em sua decisão de deixá-lo enfrentar

o mundo: “D. Amélia, confiada, tinha de deixar o filho estudando, corresse os riscos que

corresse” (BGP, p. 7).

Já na capital, acontece com Alfredo aquela transformação dos jovens promissores

analisada por Franco Moretti em seu estudo sobre a espacialidade do romance do século 19:

no interior eles são “filhos” e com relações, em geral, estreitas com todos; já ao chegar à

capital, transformam-se, de repente, em “jovens” (Moretti, 2003: 76), cujo tratamento será

muito diferente por parte da sociedade da qual fará parte a partir desse momento. No entanto,

a mãe já antecipara a Alfredo o cuidado que ele deveria ter com essa transformação: “Afinal,

Belém, era a casa alheia e também tinha na cabeça as advertências da mãe: “Casa alheia! Casa

alheia, está me ouvindo bem, meu filho? Não é o chalé mais.” (BGP, p. 43).

Se a intenção do autor34, expressa em diferentes ocasiões (ver, por exemplo, Revista

Asas da Palavra, 1996), foi mostrar a “aristocracia de pé no chão”, nada mais interessante do

34 Como vários estudiosos já afirmaram, a noção de “intenção do autor” é bastante problemática, pois o que ficou é o texto, esta é a materialidade que se apresenta ao leitor. Se é possível pesquisar e cruzar vida e obra, o resultado não garante que a intenção do autor tenha tido aquele objetivo, pois, como disse Barthes, o começo do livro representa a morte, se não do autor empírico, pelo menos do indivíduo que engendrou aquela narrativa. Tal cruzamento permite, sim, comparar as intenções expressas num projeto e a sua realização. Mais do que a intenção do autor, o que a interpretação busca é a “intenção do texto”, ou seja, aquelas características estruturais e a utilização de certos recursos expressivos que estimulam e regulam ao mesmo tempo a liberdade interpretativa (Eco, 1986).

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que focalizar um personagem em transição, um jovem do interior que almeja as chances que a

capital pode lhe proporcionar, ou nada mais conveniente para mapear o espaço urbano e

também traçar um paralelo com a vida no interior. A cidade grande, em tudo que a capital

representa em termos de atração especialmente para os jovens, proporciona a representação de

um espaço claramente estratificado, com lugares que marcam duramente condições sociais

adversas e distinguem aqueles que comandam e suas posições na sociedade. Cair em desgraça

política significa ter que mudar não só de casa, mas, principalmente, do status que representa

uma casa em determinado bairro. Assim, os espaços em Belém do Grão Pará expressam

divisões de classe e uma mudança de bairro também pode significar ascensão ou descenso

social. Exemplo desse aspecto é o palacete onde mora o colega de escola de Alfredo e a casa

onde os Alcântaras vão morar logo no começo do romance, no bairro de Nazaré, a qual,

mesmo em ruínas, simboliza uma possibilidade de ascensão para a filha do casal, Emilinha.

O primeiro capítulo do romance, em que D. Amélia aparece na cidade para preparar

a vinda de Alfredo, apresenta-se como uma retrospectiva, não só da família Alcântara, cuja

casa será a primeira moradia do personagem na cidade, por intervenção de uma prima da mãe,

mas também da história recente do Pará, que atingiu diretamente o padrão de vida dessa

família. Nessa primeira apresentação de Belém, veremos que “a cidade exibia os sinais

daquele desabamento de preços e fortunas” (BGP, p. 18), referindo-se o narrador ao reluzente,

mas breve ciclo da borracha. Veremos que o Senador Lemos, um dos caciques paraenses à

época do auge da borracha, promovera uma festa veneziana em plena Belém, de certa forma

representando a artificialidade e a imprevidência daqueles homens que ganharam fortunas

com a borracha e a dissiparam de forma extravagante. Acabado aquele breve período de

fausto, o Senador caíra e junto foram todos os que gravitavam em torno dele, mesmo sem

compreender exatamente o que acontecera: “E por tudo isso arquejavam as Alcântaras na

Gentil, consumiam-se as Veigas na Conselheiro numa casa caindo-lhes por cima, gotejando

por todas as telhas e paredes. Que que tinham com a borracha?” (BGP, p. 19).

Já no segundo capítulo, dominam Emília e suas recordações da época de fartura, a

história do primeiro e frustrado namoro do personagem e sua sempre progressiva gordura.

Interessante contraste de ruídos aparece nesse capítulo, como para demonstrar a artificialidade

da vida criada com a borracha e o cotidiano árduo da cidade que pulsa através de seus sons,

abafando as poucas notas que Emília consegue tirar do piano:

Essa breve combinação vesperal sofria a interferência do trem

apitando e chiando, seguindo-se o grito do vendedor de popunha e ao

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mesmo tempo o urro das vacas da vacaria, logo a carrocinha do leite

chegando com a sua campainha, e berros de crianças, cachorros, o

quarteirão inteiro ruidoso e absoluto. (BGP, p. 30).

Nesse ponto o foco da narrativa se volta para Alfredo que chega à cidade e tem sua

primeira experiência da complexidade e da diferença da capital em relação à sua pequena

cidade. Ali, já em meio ao cais labiríntico, com o grande movimento característico das

cidades portuárias, Alfredo sentirá a dura rotina que as meninas pobres do interior terão na

capital e verá que a morte despe-se daquele tabu e dos ritos que têm em Cachoeira e um corpo

transforma-se apenas num objeto constrangedor, um “charque humano”: “E logo sentiu

obscuramente que a morte na cidade se despojava daquele pudor, decência e mistério que a

todos transmitia em Cachoeira. (...) Morto, morto expoliado de sua própria morte” (BGP,

pp.34-5).

Apresentado dessa forma às agruras da cidade, Alfredo começará a desenvolver por

ela uma relação conflituosa que se estenderá por todos os romances de cenário urbano,

andando freneticamente pela cidade, buscando sentidos em meio ao seu intrincado traçado:

Compreender a cidade, aceitá-la, era a sua necessidade. Ser amado por

ela, saboreá-la com vagar e cuidado, como saboreava um piquiá,

daqueles piquiás descascados, cozidos pela mãe, receiando sempre os

espinhos. (BGP, p. 35)

Se, ao chegar, Alfredo ficara deslumbrado com a cidade, o encontro com a mulher

bêbada que levanta a saia em público sem nenhum pudor, lembrando-lhe o vício da mãe, e o

seu fatal vergonhoso, por orgulho, no barbeiro, vão arrefecer-lhe o ânimo, preparando-o para

a dureza da cidade que se descortina: “Lá fora a doca se agitava, (...) latejava a cidade, agora

ao menino, incompreensível, assustadora” (BGP, p. 35). Ao entrar no bonde, ele se depara

com passageiros que “pareciam fartos da cidade” e Belém era para ele “uma embriaguez”

(BGP, p. 41).

Passado esse momento inicial de deslumbramento e choque, Alfredo começará a

explorar a cidade e mais sinais da decadência causada pela queda dos preços da borracha

aparecerão, agora sob a forma de uma casa em ruínas de seu padrinho falido, onde ele deveria

ter morado, que aparece mais decadente ainda por causa do contraste com a vizinhança:

Baixa, envelhecida, como se fosse aos poucos se afundando, a casa

parecia consciente da ruína de seu dono. Talvez por ser pegada

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naquele palacete. (...) Com efeito a velha casa do padrinho sentia o

poder e mocidade da outra e rastejava cada vez mais as suas janelas no

calçamento. (BGP, p. 45)

Dessa forma, simbolizada na ruína dessa casa, a história da Amazônia se insere na

vida dos personagens, já que ela pertencia a um aviador de mantimentos para seringais que

falira, em cena valorizada pela descrição minuciosa do interior sem viço, com ecos de vários

elementos de uma visita que Alfredo fizera na infância, os quais parecem irremediavelmente

perdidos. Animizada, a casa representará ainda mais, pelo contraste, a derrota dos que

apostaram tudo no lucro “fácil” e rápido da borracha, e mostrará, mais ainda por essa

proximidade com a “mocidade” da casa vizinha – o palacete do Governador, que os políticos

sempre sobrevivem às crises.

3.2 O mapa social da cidade

Mais que a mãe, Belém eram muitas?

Dalcídio Jurandir

Como afirma Franco Moretti, “as cidades podem ser ambientes muito aleatórios, (...)

e os romances protegem seus leitores desse caráter aleatório, reduzindo-o” (Moretti,

2003:113). Porém, reduzir o aleatório significa também reduzir as contradições e divisões

sociais que o espaço expressa, pois a cidade não é fruto só de suas limitações físicas, também

é resultado de projeções da concepção de mundo de seus habitantes, como veremos. A

solução apresentada na ficção de Dalcídio Jurandir é, ao invés da redução da complexidade, a

exploração da multiplicidade ao centralizar o foco em um personagem que vem do interior,

desenhando o mapa social da cidade a partir da curiosidade e peregrinação desse protagonista

inquieto, que apresenta, ao contrário de fixidez e conformismo, constante movimento e busca.

Logo no começo do romance, surpreendemos uma queda vertiginosa dos Alcântaras,

a família que vai acolher Alfredo em Belém e será o centro das ações em Belém do Grão Pará

(BGP, p. 5). Se eles apostaram demasiado em um político que caíra em desgraça, isso também

significava perda de privilégios, dinheiro, status e a conseqüente obrigação de terem que se

mudar para uma casa mais humilde. O narrador nos adverte, porém, que eles poderiam ter

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caído ainda mais, o que foi o caso de outra família, os Rezendes que, pela mesma razão,

haviam sido obrigados a ir para os Covões, que se torna, assim, espaço urbano da pobreza,

punição e exílio.

Há que se notar que a família já morava ali há dez anos, num “ostracismo”

amaldiçoado por D. Inácia: “– Com os ares desta aprazível residência, engordamos, benza-nos

o diabo, dizia sempre D. Inácia, com o seu riso entre dois suspiros de mofa e logo o pelo-

sinal” (BGP, p. 5). Dessa casa mais humilde, Emília Alcântara, filha de Inácia e Virgílio,

vislumbra, sonhadora, um espaço mais que desejado: “Da janela, a Emilinha, a filha única do

casal, olhava o bonde Circular, na esquina da Generalíssimo, fazer a curva. A um passo estava

o largo de Nazaré mostrando já as torres da Basílica sempre em construção” (BGP, p. 5). Se

fisicamente o largo de Nazaré está a apenas um passo, socialmente veremos que a distância

era muito maior, pois ali era o palco da elite da cidade, onde os ricos moravam e desfilavam,

exibindo sua riqueza. Essa distância imensa mostrar-se-á mais evidente quando a família,

instigada pela jovem, gorda e ambiciosa Emilinha, muda-se para uma casa em ruínas na

Estrada de Nazaré. Para tornar-se habitável, a casa passa por uma reforma superficial, que só

retardará os sinais de queda eminente. No entanto, essa maquiagem não impedirá que sua

decrepitude aflore tanto na superfície física quanto nas relações familiares.

A primeira casa de Alfredo com a família Alcântara, ainda na Rua Gentil Bittencourt,

apresenta interessante configuração, a corroborar mais ainda a queda da família. Situada

muito perto do bairro dos ricos, mas bem distante socialmente, como vimos antes, era a casa

do meio entre três iguais, e nos fundos ficava a baixa, espécie de água servida empoçada; com

a chegada da época das chuvas, os miasmas exalados pela baixa pioram, para desanimar ainda

mais o melancólico e desenraizado Alfredo:

Dos fundos o hálito das baixas cobria o quintal. Varando o aguaceiro,

o trem passava, ruidoso e fumegante submarino. À noite, os sapos

contra o sono. E rompendo o chuvaral, revezavam-se os apitos da

Usina e do Utinga, os toques do quartel, muito distantes, como se

marcassem um tempo extinto ou pedindo socorro na cidade que

naufragava. (BGP, p. 52)

No processo de reconhecimento da cidade, que é onde realmente transparece a

importância da escolha de Alfredo como personagem eixo da narrativa, a garota indígena

Libânia, agregada dos Alcântaras, terá papel destacado nessa abertura de caminhos. Libânia

será uma espécie de guia, aquela que primeiro o levará a conhecer aspectos cotidianos desse

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espaço urbano, exercendo o importante papel de mediadora, uma cicerone privilegiada que

também viera do interior, mas já familiarizada com tudo, e que agora projeta sobre todas as

coisas um olhar de conhecimento:

Libânia não lhe dizia nada, muito íntima de tudo, a espichar o beiço, a

cara franzida para o sol, uma e outra vez cuspindo. Tentava divertir-se

um pouco com a matutice do companheiro mas este se guardava,

cauteloso, adivinhando a intenção dela (...). (BGP, p. 66).

De certa forma, Libânia ao apresentar a cidade a Alfredo, também lhe apresenta o

mundo mais amplo e aberto, cumprindo, assim, a função de iniciadora do garoto nos mistérios

da adolescência: “Sem ter bem consciência disso, achava bom tirar do menino o rapaz que já

quebrava a casca do ovo” (BGP, p. 120).

Após essa apresentação ampla da cidade, do centro ao mercado e ao porto,

possibilitada pelo olhar especial de Libânia, Alfredo vai aos poucos estendendo seu

conhecimento e, por meio dele, também nós, os leitores, usufruímos dos lugares, das pessoas,

das cores e dos sabores de Belém comandados pelo guia atento que é esse viajante altamente

interessado, que percorre com vagar as pequenas distâncias para observar melhor tudo ao

redor: “Tempo de tão singulares mudanças em Alfredo. Do 160 ao Grupo Escolar era em três

minutos, mas levava quinze ou mais. Saía cedo, olhando para as cestas de pão, as tresnoitadas

postas de peixe frito no balcão do botequim” (BGP, p. 75).

Além dessas incursões iniciais de reconhecimento da cidade, nesse período

necessário de adaptação, Alfredo também vai descobrir os espaços que lhe são interditos,

como a casa de um conhecido de Cachoeira, Joãozinho Rangel:

No patamar do sobrinho de Joãozinho Rangel, onde sempre esperava,

não sendo nunca convidado a entrar, se despedia do tio e do frango,

humilhado e encantado. Revistas debaixo do braço, voltava-se para as

fachadas. Os azulejos, como violetas, floresciam. Que salas, móveis,

louças, meninos e gramofones, gansos e queijos, banhados naquele

lilás, se ocultavam naqueles sobrados proibidos? (BGP, p. 79)

Este é um mundo onde as distâncias sociais são marcadas por muros tão grandes e

protegidos que parecem transformar as casas em fortalezas, projetando as diferenças sociais

no espaço, longe dos olhos e da curiosidade dos meninos pobres, como Alfredo: “Quando o

sol batia nos cacos de vidro, o muro faiscava de uma aguda vigilância assassina” (BGP, p.

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80). A reforçar essa dolorosa impressão de separação rígida, há ainda a interdição da casa do

novo amigo de escola, o Lamarão, que lhe paga muitas coisas, como sorvetes e doces, mas

não lhe franqueia a casa: “Lamarão o recebia pra cá das grades do portão, pra lá era o “aqui

não se entra” que o palacete queria dizer; muito mais do que os azulejos roxos, muito mais”

(BGP, p. 83).

Se a cidade que Libânia mostrara a Alfredo tinha a leveza e a faceirice da menina,

cheia de becos, atalhos, pontuados pelos gracejos dos trabalhadores do porto, Virgílio

Alcântara, por sua vez, vai mostrar-lhe uma visão de destruição na cidade, tentando se

reerguer depois da queda dos preços da borracha: “para agravar o desapontamento, seu

Alcântara dizia que Belém podia se conformar de uma vez para sempre: nunca mais via bons

circos. Era uma cidade acabada.” (BGP, p. 82). É natural que os dois personagens tenham

visões distintas da cidade, já que Libânia vem do interior e morar na capital é um avanço para

ela, enquanto que Virgílio Alcântara desfrutou por algum tempo as facilidades da época da

borracha e viu a destruição desse mundo. Ainda assim, a cidade seduz o menino com seus

sobrados, suas árvores frondosas, suas luzes e suas perspectivas tão diferentes de Cachoeira,

cuja lembrança já começa a ficar menos dolorida (BGP, p. 82): “Belém tomava conta dele,

envolvia-o com suas saias que eram aquelas mangueiras-mães, carregadas.”

Outro aspecto de Belém que aparece no romance é o espaço que as elites reservam

para ostentar, distinguir-se, como cinemas e teatros, resquícios ainda daquela belle époque de

que fala Ana Maria Daou em A Belle Époque Amazônica (2000). Esses são espaços

diferenciados e altamente estratificados, aos quais as Alcântaras só têm acesso porque a amiga

de Emilinha, a costureira Isaura, é ornamentadora de um deles e ganha entradas todas as

semanas:

Violeta, essa, não fazia muito empenho, primeiro porque o (cinema)

Olímpia pedia traje correspondente, segundo porque o Íris ali no

Reduto, com o subúrbio em peso na fita em série, ela preferia muito

mais. Olímpia era dos patrões do sapateiro e do marceneiro, das

pessoas que tinham nome no jornal, nome nas portas e janelas de

escritório, nas tabuletas do comércio, da indústria e nas residências de

doutores de Nazaré e São Jerônimo. (BGP, p. 117)

Esse é um cinema feito para que “melhor fossem vistos os figurões da cidade” (BGP,

p. 138), e “ali estava a sociedade, a alta” (BGP, p.142), onde as senhoras desfilavam suas

deselegâncias, sob o olhar atento da costureira Isaura, e se atualizavam as fofocas, um espaço

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para ver e ser visto, distinguindo seus freqüentadores dos pobres que eram empurrados para os

cinemas de subúrbio. É interessante que a própria configuração do cinema, reforce a

visibilidade de quem chega, já que a tela fica ao lado da porta de entrada e deixa os recém-

chegados expostos aos olhares curiosos dos espectadores já sentados. Pobres no cinema do

subúrbio, ricos nos grandes cinemas da cidade, confirmando que o espaço não é apenas o

cenário onde a ação ganha moldura e pano de fundo, mas é a projeção das divisões sociais, da

maneira peculiar como os habitantes da cidade o constroem. Em romance posterior, Chão dos

Lobos, de 1976, a narrativa mostra que o chão do bairro inteiro onde fica a nova casa de

Alfredo não é de quem reside e se move nele, mas de um dono que nem sequer o conhece,

privilégio de família ainda da época colonial.

Uma simples viagem ao Bosque Rodrigues Alves, a convite de Libânia, reveste-se de

símbolos e se transforma num périplo de atento deslumbramento, mas também com alguma

culpa, pois sua amiga de infância, Andreza e muitas outras crianças não teriam acesso a essa

visão já conhecida por meio de um dos álbuns do pai: “Alfredo levava Andreza consigo, todas

as meninas que nunca viram uma cidade, todas no seu bolso, na mão, agarradas ao seu

pescoço, todas iam encontrar, lá no Bosque, o que mais desejavam” (BGP, p. 125). Esse

espaço diferenciado, destinado não só ao lazer como à visibilidade que só a cidade

proporciona, insere-se naquele tipo que é alvo de projeção de sonhos, de possibilidades de

futuro que o interior nunca poderia dar: “(Alfredo e Libânia) Viam num bosque as coisas que

mais desejavam, vestido de baile, noivo, pente de madrepérola, a folha do lilás que cura os

cegos e a fada livrando as moças da perdição” (BGP, p. 125). É significativamente nesse

Bosque, um intrincado de trilhas em meio a árvores centenárias, já com a consciência da

importância e da diferença de quem possui dinheiro ali, que a cidade aparece desvelada como

o espaço-vertigem do jovem desenraizado, obrigando o personagem a se defrontar com seus

próprios fantasmas e a solidão:

E começou a cair mais sombra e mais silêncio e um sentimento em

Alfredo, de estar ali muito só – sem as meninas de Cachoeira – que

era também um pouco assustador, com uma ponta de vertigem, como

se alguma cobra invisível o estivesse mundiando. (BGP, p. 126).

Apresentando-se o bosque como um pequeno labirinto na narrativa, Alfredo perde-se

de Libânia e busca a garota com algum temor pela lembrança das histórias que ouvira sobre a

floresta e pela noite que avança entre as árvores. Quando Libânia, “trespassada de folhagem,

pássaros e resinas” (BGP, p.126), ressurge, misteriosa, parece ter completado sua

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126

transformação de menina em moça justamente ali: “Sentia nela algo de novo, sem entender,

um segredo na fisionomia, uma tristeza de quem tivesse perdido no Bosque o que lhe restava

da menina e enterrado os últimos brinquedos que nunca teve e sempre imaginou” (BGP, p.

127). É interessante lembrar aqui a força do topos “bosque” nos contos de fadas, pois é no

interior desse emaranhado que os protagonistas do episódio têm que provar que podem

sobreviver e vencer os obstáculos, lutando por sua própria conta e astúcia, vencendo o mal em

seu próprio domínio, uma espécie de rito de iniciação – uma prova de resistência – que eles

deverão passar para lograr completar a travessia sãos e salvos. É nesse bosque cheio de

símbolos que Alfredo e Libânia, ambos interioranos desenraizados na cidade cheia de

enigmas a desvendar, aspirantes à maturidade, de certa forma, dão mais um passo em seu

aprendizado, em sua travessia para a vida adulta, defrontando-se cada um deles com suas

próprias inquietações. Como se pode notar, os sentidos postos circulação pela configuração

carregada de símbolos desse bosque, projeção da floresta no espaço urbano, enquadrado e

dominado em um quarteirão da cidade, são, desse modo, radicalmente distintos daqueles da

floresta opressora de um Inglês de Souza ou de um Ferreira de Castro. Antes de ser um espaço

real da cidade, é o espaço de uma luta simbólica interior.

Em uma festa de aniversário de Isaura, a amiga e costureira de Emilinha, reúne-se a

“aristocracia de pé no chão” dos parentes de Alfredo, todos com profissões humildes como

sapateiros, marceneiros, foguistas. Porém, mesmo nessa festa humilde, onde se distinguem

Emília e a mãe pela cor da pele, Alfredo repara que Libânia, a agregada dos Alcântaras, ainda

está socialmente abaixo dos outros:

E foi um espanto, como se nunca tivesse reparado: Mas, e o sapato?

Libânia não tinha nem um sapato?

Isso para Alfredo toldou um pouco o aniversário. E o mais triste era

que Libânia fingia não se dar conta, fingia resignar-se a andar descalça

num degrau mais baixo ainda que aquele em que se bebia, cantava e

dansava no 72 ao som do violão e cavaquinho. (BGP, p. 136)

Sem respeitar aquele pequeno passo físico que representava uma grande distância

social, os Alcântaras, impelidos pela obstinada Emilinha, mudam-se para uma casa em ruínas

na estrada de Nazaré: “A princípio, Emília supôs uma casa em ruína. Mas na estrada de

Nazaré?” (BGP, p. 150). No entanto, a distinção desse espaço privilegiado, onde passava todo

o trânsito para os bairros, próximo ao cinema, aos passeios, ao teatro, fazem a personagem

esquecer do estado da casa: “Enfim, tal semelhante quarteirão, acolá o outro onde gente fina

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127

morava e ostentava” (BGP, p. 150). Desse modo, num ponto culminante da narrativa, uma

virada física que implicará também radicais alterações de atitudes para todos, a mudança

reveste-se de significados simbólicos, pois mudar para ali era esquecer o ostracismo, começar

a retomar a antiga posição perdida: “Para Emília, secretamente, aquela mudança era uma

volta, sem cor política, do ostracismo. Era tomar contato com a sociedade, não mais por meio

de um baile de cadetes mas morando na Estrada de Nazaré” (BGP, p. 155). Se antes a família,

especialmente as mulheres, era obrigada a viver apenas como observadora da alta sociedade,

com entradas para cinema e bailes conseguidas a duras penas, agora surgia a chance de estar

no próprio centro das atenções, no palco mesmo dos acontecimentos. Isso significava mudar a

sorte de toda a família, incluindo Alfredo, que poderia fazer novas amizades e conquistar

posições futuras. Porém, as intenções de Emília não passam sem que a ironia da mãe, D.

Inácia, mostre exatamente o caráter ilusório da mudança que eles irão fazer:

– Afinal, os sapos, os nossos sapos daqui não são nenhuma orquestra.

Mas a banda dos bombeiros tocando no Largo da Pólvora tão pertinho

das três janelas. Ai, meu Deus! Arruma o teu encosto em Nazaré,

minha filha. Enfim! Arrisca e petisca. Vamos encolher as barrigas e

mostrar nossos sorrisos fartos nas três janelas. Em cima, no peito, na

cara, a posição social. Embaixo, no bucho, o ronco da necessidade. As

aparências nos chamam, filhinha...” (BGP, p. 181)

Acertados todos os preparativos, pronta a casa de Nazaré para a partida dos

Alcântaras, já é possível para Alfredo associar esse movimento à consciência de uma

alteração mais profunda em si mesmo. O movimento também o assusta e o faz projetar no

espaço os sentimentos e a memória de seus habitantes, assim como suas primeiras conquistas

na cidade, compreender, enfim, os significados mais profundos do deslocamento:

Ficava ali um calor de sonos, afagos, ralhos, aborrecimentos e

aniversários. (...) E tudo ali em diante se sumia, uma cidade se

perdendo, aquela cidade a que agora mais se apegava, porque era a de

seu deslumbramento, do seu quadro de honra, de seus primeiros

espantos e surpresas. (BGP, p. 204)

Morando com os Alcântaras em Nazaré, Alfredo ampliará sua experiência da cidade,

descobrindo-lhe novas nuanças, desvelando uma complexa teia de relações sociais: “Os

recentes acontecimentos (...) produziam-lhe uma sensação nova da cidade que descobria. A

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128

cidade que estava dentro das pessoas, dos sentimentos e das lutas que ele ignorava” (BGP,

p.196). Nesse espaço consideravelmente mais intrincado do que a pequena cidade do interior

que ele conhecia, também as pessoas apresentam-se de maneira diferente, com gestos e

respostas calculadas em um jogo social a que Alfredo não estava acostumado: “Alfredo

espantava-se com esse dom de representar a inocência tão apegado nas pessoas da cidade. Era

mais que no interior” (BGP, p. 196).

Em contraponto à artificialidade das pessoas, forma-se uma cumplicidade entre os

desenraizados, Libânia, Alfredo e Antonio, outro agregado da família que, com suas histórias

de bichos, visagens e princesas, amenizava o sofrimento dos três, transformando também o

espaço em torno deles: “Alfredo ouviu Libânia dar entôo aos urros do bicho, foi então uma

cantiga, meio triste, meio arrepiadora, mudando a casa da Estrada de Nazaré para o meio de

uma floresta (...)” (BGP, p.227). É a sabedoria oral do menino transmutando o cotidiano

sofrido, exprimindo os sonhos e os devaneios nos únicos momentos de liberdade dos dois

agregados, Libânia e Antonio, mais as inquietações de Alfredo: “Afinal estavam os três

naquela alcova como num orfanato, como três irmãos, três pecadores, três passarinhos que se

agasalham nas próprias penas” (BGP, p. 281).

Para esse mundo cheio de ruínas, habitado por pessoas de cotidiano tão duro e pobre,

a narrativa parece descortinar uma saída pelo viés revolucionário de seu Lício, neto de

escravos, um dos parentes de Alfredo, colaborador do jornal para operários, “O semeador”. O

personagem sonha com o momento de reverter o sofrimento de sua classe, sempre às voltas

com a culpa pelo sofrimento de amor que causa à Mãe Ciana: “O tempo não estava para fazer

unicamente bem a uma mulher, a uma só criatura humana mas a milhões. Como desperdiçar

seu largo sentimento numa ou duas pessoas, quando dele era faminta a humanidade?” (BGP,

p.261). Dividido entre o amor da carismática Mãe Ciana e esse amor desmedido pela

humanidade, seu Lício chama para si a responsabilidade por tudo, desvelando para o leitor

uma face da cidade que é a resistência à exploração, com várias menções a greves, revoltas e,

especialmente, à Cabanagem. Apesar desse aspecto, seu Lício, como se antecipasse que essas

revoltas não produzirão ecos, desperdiça a possibilidade de ser um dos responsáveis por

mudar a situação, pois desinteressa-se de tudo e sua luta é mais pontual que um ato

conseqüente de quem visa uma mudança real a longo prazo.

Em meio a todos os dramas que se passam entre os personagens, acontece a festa

religiosa mais importante para a cidade, o Círio de Nazaré, que parece deixar tudo o mais em

suspenso, à espera: “Mais que o Natal, o Ano Bom, o São João, é o Círio em Belém,

explicava um alto funcionário da Alfândega a um colega recém-transferido do sul” (BGP, p.

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129

268). É uma ocasião propícia para uma ampla vista da cidade, que concentra romeiros do

interior, cumprindo suas promessas, transformando Belém num grande acampamento colorido

e movimentado, repleto de cheiros e de risos, com profusão de sons, especialmente em volta

do porto: “A população romeira se derramava dos barcos, canoas, igarités, curicacas, batelões,

traqueteiras, vigilengas, todas as embarcações a remo, vela e algum motor. Habitavam o

Largo, corriam a ver a cidade. A cidade” (BGP, p. 306). Mesmo sendo a procissão e a festa os

atrativos, é a cidade, multicolorida, fascinante, que, em última análise, atrai os milhares de

peregrinos, transformando suas ruas e praças em grande espaço de congraçamento sem

fronteiras sociais visíveis. Na arquitetura do romance, em que o caráter religioso da ocasião

pouco se sobressai e as comparações com as liberdades carnavalescas são freqüentes, é a

própria reunião de pessoas de origens as mais diversas que assume o primeiro plano, uma

multidão transformada numa “massa meio infrene” (BGP, 330), num “vagalhão de corpos

suados” (BGP, 331), tal como uma população oprimida liberando-se e iniciando a tão

almejada revolução de seu Lício.

Para muitos, a maioria composta de pobres que vêm pagar promessas, é a primeira

oportunidade para visitar a cidade tão idealizada e muitas vezes inalcançável, um centro no

qual projetam tantas esperanças, assim como o fora para Alfredo, mas que também obriga a

um contato mais próximo com toda a crise que se abatera não só sobre o Pará, mas sobre toda

a Amazônia. É também a ocasião em que as paixões se concentram e se precipitam, quando as

culpas e a coragem de ultrapassar todos os limites afloram com força, numa espécie de

“carnaval devoto” que atinge a todos os personagens, simbolizado no encontro entre a

dignidade altiva de Mãe Ciana, com uma caracterização que a aproxima de uma matriarca

negra e uma santa a circular entre os romeiros, acompanhando a duras penas o Carro dos

Milagres e um Virgílio Alcântara que tenta purgar seu remorso também na peregrinação

(BGP, p. 330-1). O contraste da amorosa Mãe Ciana com o atormentado Virgílio lembra um

encontro, simbolicamente possível nas circunstâncias, da santa ali reverenciada e do pecador

que lhe pede alívio.

No final do romance, depois de ser descoberta sua participação em uma operação de

contrabando, Virgílio perde o emprego e se anunciam tempos mais difíceis ainda para a

família, outro descenso, este bem pior que o anterior, pois eles são empurrados para os

Covões, o que é pontuado pela fala melancólica e sempre irônica de D. Inácia: “ – Daqui da

mansão vamos para o veraneio, subimos para os Covões, a residência imperial. Vamos para as

pampas dos Covões, senhora dona Emília” (BGP, p. 355). Cai a família e a casa estremece,

com estranhos estalidos, dando também sinais de queda iminente...

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130

Belém, apresentada dessa forma, sob a percepção da família Alcântara, de Libânia,

Alfredo, Antonio, Mãe Ciana e todos os outros personagens, assume uma configuração

específica a partir de cada personagem que, sobre o traçado “real” da cidade, projeta uma

idéia e uma visão muito particular da cidade, tornando-a sua, apropriando-se do espaço

urbano a ponto de torná-lo individualizado e singular, desdobrando a cidade em múltiplas

imagens. Assim, descortinando várias faces da cidade para Alfredo, esse personagem curioso

e atento, esse viajante em franco processo de aprendizagem, a narrativa de Dalcídio Jurandir

não reduz a complexidade do espaço urbano. Ao contrário, aceita o desafio de se apropriar da

cidade por meio de personagens que se movimentam, que se arriscam constantemente em

novos cantos, conhecendo e dando a conhecer novos personagens, incorporando a matéria da

história à economia da ficção por meio das inquietações políticas de D. Inácia ou de notícias

de revoltas dos pobres no bairro do Guamá, sempre com o narrador mostrando imenso

respeito e afeição pelos personagens que apresenta. A “personagem” Belém, por conseguinte,

não tem existência autônoma. Constitui-se e se revela em sua complexidade a partir de várias

visões dos personagens propriamente ditos.

É fundamental que o desvelamento da história se dê na capital, especialmente por

meio de personagens que participaram ativamente da política e sofreram seus reveses, já que é

na cidade grande que o poder se concentra e onde é mais fácil flagrar as contradições sociais,

marcadas ou pontuadas, às vezes sinistramente, pelos apitos da Usina, as cornetas dos

soldados, os apitos dos trens, que também possuem o caráter de anunciação da história que

passa, ancoragem temporal da trajetória espacial dos Alcântaras.

4. O retorno em Ribanceira

Logo depois de Belém do Grão Pará (1960) e antes de Ribanceira (1978), próximo

romance a ser analisado mais detidamente nesta tese, Dalcídio Jurandir publicou mais cinco

romances, completando a trajetória de seu herói, Alfredo, que, a cada mudança de casa,

incorpora às próprias preocupações os problemas alheios: Passagem dos Inocentes (1963),

Primeira Manhã, (1967), Ponte do Galo, (1971), Os Habitantes (1976) e Chão dos Lobos

(1976).

Passagem dos Inocentes vai mostrar o personagem continuando seu percurso de

aprendizagem pela cidade de Belém, mas já em outra casa, de D. Celeste, que também é de

Cachoeira. Nessa narrativa, como já acontecera com a família Alcântara no romance anterior,

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131

muitas vezes a história de Celeste, o marido e seu filho Belerofonte, ocupam o primeiro plano,

especialmente os devaneios da primeira, que oscila entre a monótona vida de casada e a fuga

empreendida no passado em um navio. Lembranças dessa fuga malsucedida são os vestidos

de festa de Celeste, guardados em velho baú, que vão sendo paulatinamente destruídos por

seu filho, numa espécie de sistemático apagamento do passado e tentativa de despertar a mãe

para o presente, processo que vai ser complementado pela dilapidação que o marido faz em

sua casa do interior, ainda uma relíquia de uma época de distinção. Alfredo continua na casa

dessa família sua aprendizagem no duro contato com uma Belém bem mais suja e destruída

do que no romance anterior, mas aqui também o espaço, a “passagem” do título, assume o

caráter de símbolo de preparação do herói para seu ritual de passagem para a vida adulta, de

“inocente” para uma consciência do mundo e uma ironia cada vez maiores. Outro sentido para

o título é a palavra “passagem” no sentido de morte: “Já não ouviram falar que a cidade está-

se cobrindo de moscas? Que está morrendo criança acima do necessário?” (PIN, p. 168).

Em Primeira Manhã (1967), anunciado em Passagem dos Inocentes com o nome de

Primeira manhã no Liceu, aparecem nova casa e novos problemas para Alfredo, agora com

dezesseis anos, ainda em Belém, sobrecarregado de todos os lugares por onde já passara até aí

e dos conflitos que presenciara: “Saiu pela São João, carregado de pressentimentos, com a

Gentil, Nazaré e a Inocentes nas costas (...).” (PMN, p. 61). Cada vez mais a cidade revela-se

múltipla e plena de sentidos a desvelar, instigando o personagem a uma intensa e tensa

peregrinação de reconhecimento: “Ao recolher o bolso, via-se vaiado por uma, duas, três,

quatro, cinco, seis, sete cidades, Belém, coberto das moscas que cobriram o subúrbio” (PMN,

p. 101). Agora o personagem, traumatizado por um trote que o humilha na escola, desenvolve

uma obsessão pela sempre ausente e sempre mencionada Luciana, da qual se poderia dizer o

mesmo que Antonio Candido afirma sobre a figura do diabo para o atormentado Riobaldo, em

Grande Sertão: Veredas: “(...) tanto mais obsedante quanto menos palpável.” (Candido, 1964:

136). O paradoxo dessa extrema presença na completa ausência, que assume sentidos bem

diversos do diabo para Riobaldo, muito mais uma obsessão, faz Alfredo projetar nos

problemas de Luciana as suas próprias inquietações, sentindo-se culpado por usufruir da casa

de onde ela fora expulsa, percorrendo obstinadamente a cidade atrás da moça desaparecida, no

fundo muito mais em busca de si mesmo. É também nesse romance que Alfredo acompanha

uma longa caminhada noite adentro de duas esposas enciumadas, Abgail e Ivaína, destituídas

momentaneamente de sua aura e da distância conferidas pelo casamento, em uma cena em que

os personagens empreendem dramático mergulho no interior de si mesmos simultaneamente

ao mergulho no escuro da noite.

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132

No começo do romance Ponte do Galo (1971), de volta a Cachoeira para passar

férias, Alfredo encontra-se no sob a proteção do chalé, mas carregado de todas as dores

próprias e das pessoas com quem conviveu, numa concentração de “sentimento do mundo”,

que o inquieta e faz projetar as suas recordações no espaço em torno, misturando tempos e

espaços. Nesse romance acontecem dois fatos importantes na trajetória do menino que se

transforma em homem, já que, pela primeira vez, volta ao chalé familiar mais maduro:

enfrenta o alcoolismo da mãe, num embate necessário para sua libertação pessoal, e acontece

a iniciação sexual do personagem, marcada pelo intenso cheiro de maracujá e sob um planta

chamada significativamente de “loucura”, episódio que estabelece uma linha divisória na vida

de Alfredo: “No chalé, deu corda no despertador velho como se o tempo começasse daquele

instante ou, entre este e aquele, intercalou-se o eterno?” (PGA, p.49). Nesse ponto de seu

percurso, depois de passar por tantas casas, ter contato com tantos dramas familiares e

individuais e desinteressar-se pela escola, o personagem conscientiza-se de que a distância

entre dois pontos estende-se bem além da linha reta, e a inquietação projeta-se

definitivamente no espaço físico: “Do Igarapé das Almas, a pé, até a Ponte do Galo, esta

noite, quantos passos? Passos, não. Mas sentimentos, quantos? Quanto Alfredo nascendo

morrendo em mim, esta noite, sem que aceite e escolha um (...)?” (p.149).

A partir de Os habitantes (1976), com Alfredo ainda na casa de D. Dudu, como o

deixamos em Ponte do Galo, a técnica narrativa do autor fica mais elíptica na exposição dos

episódios, com frases cada vez mais curtas, em contraste com os primeiros romances,

adequando o estilo, que antes se mostrara mais generoso em descrições, ao espaço urbano.

Obcecado pela presença-ausência de Luciana, a filha dos donos da casa, que fora expulsa, e

sempre acossado pelo passado e pelos problemas de sua família, Alfredo conhece seu

Floremundo, uma espécie de variação do Dom Quixote, o cavaleiro da triste figura, que lhe

apresenta outras visões de Cachoeira e Belém e por vezes parece pertencer ao ambiente, quase

reificado de tão triste e apagado que se apresenta. Outros personagens do romance anterior

continuam neste o seu percurso muitas vezes doloroso: D. Brasiliana, a moura contrabandista

e seus amantes; Nini e sua curiosidade por Alfredo; Ana, sempre rebelde e fugitiva, obcecada

por velórios; Zuzu, a adolescente que anda quase nua por necessidade, mas vestida de uma

nobre dignidade. Entre todos os enigmas representados por essas mulheres que povoam seu

percurso obsessivo, verdadeiras visões oníricas, o herói parece hesitar em busca de si mesmo:

“Entre aquela visão que sempre foi Luciana e esta de carne e água de cheiro, que é Zuzu,

Alfredo flutuava” (p.153). No fim do romance, Alfredo completa sua emancipação ao mudar

novamente, desta vez deixando de morar de favor e alugando um quarto.

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133

Em sua nova casa, já no romance Chão dos Lobos (1976), novos personagens

juntam-se à extensa galeria de figuras da cidade e um dos episódios marcantes é o primeiro

emprego de Alfredo como professor. Nesse novo mundo habitam novas figuras, a maioria

feminina, tão interessantes e enigmáticas quanto as anteriores. Aparecem, ainda, lugares da

Amazônia paraense que, como a cidade de Guimarães e seus pianos mudos e a favela Não-Se-

Assuste, são focalizados de tão perto e de forma tão aguda pelo narrador que parecem

estranhos e deslocados no tempo e no espaço. Colocados em paralelo com a rua de baixo, em

Cachoeira, o Não-se-Assuste e os Covões, em Belém, formam a tríade de lugares que

lembram ao personagem que sempre há um nível mais para cair, em geral associados à doença

e morte. Neste romance, o acontecimento mais importante no percurso do personagem é a ida

malsucedida ao Rio de Janeiro, uma espécie de fuga das inquietações interiores pelo espaço

exterior, com um novo labirinto urbano a enfrentar. No espaço desconhecido e potencialmente

perigoso da cidade grande, bem maior e mais complexo que a capital do Pará, aparece

novamente a figura do labirinto, como acontecera na chegada a Belém. Depois de passar por

várias adversidades e ajudado por um conterrâneo conhecido, o personagem consegue voltar a

Belém no final do romance.

4.1 Principiando onde tudo termina

Em Ribanceira (1978), a volta de Alfredo ao interior, tendo abandonado a escola,

com agudo senso de percepção e marcado por uma ironia que nada poupa, assume o caráter de

fracasso ou de símbolo de que já não é mais possível a formação integral de um indivíduo

num mundo movido por relações desiguais, em que os homens têm que se reificar para

conseguir sobreviver. Essa aprendizagem já não é possível pelo menos daquela maneira que

propõe o romance de formação por excelência, Os anos de aprendizado de Willhelm Meister,

de Goethe, em que o herói busca o conhecimento por diletantismo, especialmente nesse

universo amazônico de Dalcídio Jurandir, um mundo que se debate entre ruínas, metafóricas

ou não, e se deve responder ao desafio cotidiano da sobrevivência. Num mundo marcado por

diferenças sociais que se projetam no desenho espacial da cidade, ao invés da aprendizagem

que pode levar à emancipação, muitas vezes o que o herói encontra ao final de seu percurso é

o sofrimento e a alienação. Lembremos que o mundo que Alfredo encontra na cidade é aquele

que busca reconstruir-se após o desastre herdado com a queda vertiginosa dos preços da

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134

borracha, povoado de personagens que sofreram de alguma forma com aqueles fatos e tentam

sobreviver do pouco que restou. Após um curto período em que experimenta a frustração

concentrada de todos os que perderam com a queda dos preços da borracha, além daqueles

mais humildes que são arrastados nessa derrocada da elite, Alfredo desiste do cargo que

conseguira no interior e retorna à capital.

No começo de Ribanceira, novamente em Belém depois da experiência mal sucedida

no Rio de Janeiro, o personagem inebria-se com os cheiros e os sabores da cidade, retomando

suas ligações com o ambiente que aprendeu a amar, pela voz de Magá, sua parenta, e pelo

tacacá que esta lhe oferece: “Beiço a tremer da folha do jambu, Alfredo ouvia e isso era

reaver o nome, o conhecer-se de novo, o restituir-se ao chão. (...) bebia comia Pará lambendo

o dedo” (RIB, p. 12). Buscando um caminho depois da desventuras no Rio de Janeiro, Alfredo

parece trilhar um caminho idêntico ao do pai, pois encontra o Intendente recém nomeado de

uma cidade do interior e consegue o cargo de Secretário Tesoureiro, o mesmo ocupado pelo

Major Alberto em Cachoeira.

A chegada do personagem à pequena cidade é bem significativa dos novos desafios

que o aguardam, pois, como ressaltam todos, ali era uma terra sem perspectivas,

especialmente para um jovem de vinte anos, na qual de nada parecia valer o pomposo título de

seu cargo: “Aí a um passo me espera meu degredo, contam que lugar de abacate e febre”

(RIB, p. 9). No entanto, mesmo essa cidade isolada, não se oferece logo por inteira ao viajante

que chega, camufla-se, parece possuir pudores de moça recatada, como que retarda o

desvelamento de sua pobreza: “Mas a cidade? Ainda encaramujada na ribanceira. Reserva-se,

quer nos pegar de surpresa, tapando nossos olhos com suas mangueiras ou mostrar-se, telha

por telha, retraída nas paredes, preguiçosa de se levantar” (RIB, p. 10). Já no trapiche, que mal

se sustenta para receber os visitantes que chegam, Alfredo é apresentado aos homens da elite

local, com a ironia que irá acompanhá-lo aparecendo nesse primeiro contato com a terra: “Já

não é tão pouca bosta, aqui entre autoridades, pela primeira vez recebido num porto, no

guarda-sol do Intendente” (RIB, p. 29).

Quando a comitiva de “autoridades” chega à frente do comércio de “seu” Guerreiro,

ressurgem as diferenças entre ser negro ou branco, que já haviam aparecido no enredo de

romances anteriores, especialmente Três casas e um rio (1958), e que não dependem apenas

da cor da pele, mas do patrimônio pessoal e da inserção social: “Com aquele comércio, aquela

posição no Município, relações de peso em Belém, o chapéu de massa, o linho inglês, o lenço

de seda, o dente de ouro, o cabo de madrepérola, é, a rigor, branco. A pele não conta” (RIB, p.

30). Em contraposição, Seruaia, um personagem encontrado no trapiche vendendo um tucano,

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135

apesar de branco, é preto pelo estado (RIB, p. 30). São os princípios estabelecidos tacitamente

pela “branquidão social”, explica o Dr. Januário, o Intendente, a Alfredo (RIB, p. 40).

Aos poucos a cidade, a pequena burguesia e seus habitantes, cada um com suas

idiossincrasias, suas indiscrições e inimizades cultivadas, serão apresentados a Alfredo nessa

primeira caminhada com o Intendente: o Sede de Justiça, inimigo ferrenho do Juiz corrupto e

que anda de bote, nu, pelos igarapés; D. Pepa, a espanhola soberba, “ferozmente viúva” e suas

couves; Bi, a filha do ex-Intendente, que tivera um caso com um velho coletor de impostos e a

única que parece estar acima de culpas e fofocas; “seu” Guerreiro, o comerciante que nunca

se mete, mas sempre se regozija de suas intervenções; o Capitão da Brigada e a sinistra

relação de medo e opressão que mantém com sua esposa. Surpreendida pela entrada do Ceilão

no comércio da borracha, a elite relutara em acreditar que iria perder sua fonte de recursos que

parecia inesgotável: “Os grandes da terra davam o baile quando chega o gaiola que ninguém

esperava e salta a notícia, aquela, o Ceilão ia tomar conta do mercado da borracha” (RIB, p.

33). Toda a cidade apresenta os sinais da decadência advinda com a queda dos preços do

produto, com obras paradas, falta de renda e emprego e personagens obcecados por uma

notícia que possa trazer alguma esperança sobre a retomada daquele breve período de riqueza

e dissipação: “Vizinhos somos também do seu Bensabá, o judeu marroquino, com as duas

portas do negócio e a da moradia, sempre à espera que chegue o sonhado telegrama (...)

anunciando a alta da borracha” (RIB, p. 32).

4.2 A cidade morta e seus zumbis

Pela visão apocalíptica de Januário, que se intitula “Intendente Municipal dos

Escombros” (RIB, p. 42), ao falar sobre a gestão anterior do Coronel Cácio, a cidade morrera

rapidamente depois da notícia fatal: “Como foi que tão de repente a cidade morreu? Todos os

dias via cair um sobrado, embarcar uma família, via a cidade, o Município, desmanchando-se

na mão dele” (RIB, p. 41). O estado de penúria e destruição da cidade torna-se, por isso, um

adequado contraponto aos mitos das riquezas ilusórias, tanto dos primeiros aventureiros da

época colonial como aquela do ciclo da borracha: “Também vi em Altamira queimarem notas

no charuto, vi chegarem de França aquelas roupas, aqueles enxovais... E mal saltando a rolha

do champanhe o El-Dorado se afunda... Nisto.” (RIB, p. 47).

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136

Convidados pelo ex-Intendente, a quem o Dr. Januário viera substituir há pouco, os

personagens participarão de interessante encenação em um jantar (“montado como um

cenário”) na casa do Coronel Cácio, recebidos com uma mesa exageradamente farta,

especialmente quando se sabe que todos estão falidos, e cercados por quatro espelhos na sala.

Presidida pelo Coronel, um autêntico representante da grande falência com a queda dos

preços da borracha, esse episódio frequentemente coloca-se como uma representação do

antigo fausto, num último esforço dessa família em parecer que está acima das derrotas

políticas e financeiras:

Diante da cerimônia e distância do anfitrião, os convidados não sabem

como principiar, rodeados pelos quatro espelhos. Coronel contempla-

se nas louças, na comedoria, nos guardanapos, nos vinhos, mesa dos

seringais, rebanhos, trapiches, eleições, viagens à Europa, ou não é

senão seu delírio. (RIB, p. 83)

Toda a família que recebe esses convidados parece pertencer a um passado morto,

derrotada tanto pela dissipação que os filhos promoveram quanto pelos revezes políticos e

econômicos, configurando-se como autênticos mortos-vivos, como a filha do Coronel Cácio,

Bi, comentará em outro episódio. Poucos conseguem manter algo de dignidade nessa cena que

se reflete infinitamente pelos espelhos circundantes, que assumem funções importantes e

diversas durante o transcorrer do jantar, ora multiplicando o constrangimento dos convidados,

ora sobrepondo presente e passado, mas durante toda a noite dando aos acontecimentos

reverberações ambivalentes:

A pantomima, servir o jantar. Coronel busca nos espelhos a visão dos

lagos, as viagens, as viagens, Pepita Calvo no camarim recebendo-lhe

rosas, o Colégio do Amparo, em Belém, onde viu, pela primeira vez,

cheirando a freira, esta aqui ao lado, naquele dia de azul-marinho, hoje

de roxo, esfalfada pelo jantar que fez e por tudo que se acabou. Vai

levantar-se, fugir para a varanda, puxar a toalha da mesa... No joelho a

mão da mulher. (RIB, pp. 88-9)

A tensão do jantar é interrompida pela entrada intempestiva de D. Benigna,

responsável pelo correio da cidade, para convidar a comitiva oficial para um baile em sua

casa. Com a ausência dos músicos, que parecem ter sumido completamente, frustra-se o baile

de D. Benigna, essa personagem cujo nome apenas ressalta, pelo contraste, sua maledicência,

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137

e os convidados, em estranho cortejo, seguem pela noite em busca dos desaparecidos. Entre os

caminhantes, Alfredo, confuso por todos os acontecimentos da noite, acompanha Bi,

tornando-se um interlocutor para suas confissões e sonhos reveladores: “Se eu lhe contar que

já sonhei com o rio dentro da minha rede, todo com aquelas escamas prateadas da

pirapitinga?” (p.126).

Com os ruídos de desabamento de mais uma casa na cidade morta, desta vez tendo

por vítimas um velho piano e uma vaca, os próprios habitantes parecem apenas sobreviventes

à espera de sua hora:

– Mas ah! É só morte a nossa conversa? – indaga Liliosa.

- Pensando que inda és vivente, menina? Nós, a vaca, o bezerrinho, o

piano, já todos nós batemos o pacau. Já estamos de pé junto, aquela-

menina. (p.146)

Para completar a configuração do “município defunto”, a cidade possui um exagero

de quatro cemitérios, três católicos e um judeu, cada um destinado a diferentes tipos de

habitantes da cidade. Para uma cidade que mesmo na ruína ainda apresenta hierarquias

sociais rígidas, nada mais natural que a divisão se estenda e se perpetue nos cemitérios. O

primeiro deles visitado por Alfredo e o Intendente destina-se às “desassossegadas”, é o

“cemitério das donas que um mau passo deram” (RIB, p. 55); o segundo destina-se às

“senhoras e senhoritas, pessoas de respeito e a inocentada toda” (RIB, p. 57), isolando-as do

contato com as defuntas “maculadas” do primeiro; quanto ao terceiro, não se menciona a

quem se destina, mas pode-se especular que seja para todos os outros não enquadrados nas

divisões anteriores, tais como negros – vítimas constantes de preconceitos, bêbados e

indigentes. Como o protagonista irá descobrir, nesse lugar de abacates e febres, de prédios em

escombros e famílias arruinadas, todos os caminhos da cidade convergem para ali: “Alfredo

pára. Os cemitérios. Todos os caminhos e descaminhos da ribanceira levam aos cemitérios,

sim. O riozão batendo os paus no pedregulho” (RIB, p. 135). Além dos cemitérios, outros

espaços interessantes e de múltiplas funções comparecem para enriquecer a configuração da

cidade: o coche, que fora comprado para transportar os mortos e que acabou servindo de

refúgio para os amantes eventuais ou para as “desassossegadas” receberem seus clientes; o

mercado da cidade, que tanto serve para impor a autoridade sobre os comerciantes do lugar

quanto receber velórios e abrigar romeiros; o trapiche municipal que antes convidava as

embarcações a atracar e agora as afasta por estar a ponto de desabar.

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138

Enquanto as casas dos antigos poderosos expõem sinais de decadência financeira ou

moral, como as do Coronel Cácio e de seu Guerreiro, ou a própria sede da Intendência, com

as paredes podres e a reprodução da república roída pelos ratos, as casas dos pobres

conseguem conservar alguma dignidade e vida em seu despojamento, como, por exemplo, a

casa de Zezé, que faz Alfredo lembrar-se das tardes do chalé familiar: “(Zezé) Arma a rede,

faz a visita deitar-se e corre a abrir o cupuaçu. Despolpa com a tesoura os bagos amarelos,

sempre se rindo, descalça, suada, jogando os caroços no chão. Pela barraca reina sossego, ali

acumulado, cheirando a cupuaçu, a terra” (RIB, p. 230).

Ao final do romance, o jovem e inquieto protagonista, pressionado pela decadência e

as ruínas de casas e pessoas na Ribanceira, abandona o posto de secretário e volta à casa de D.

Dudu, em Belém, onde já vivera antes, para recomeçar seu périplo incansável pela cidade:

“Bóia no silêncio o guincho lá das ilhas, o cargueiro carregando. Arma a rede, dá com a

aranha no barro da parede e vê, na teia suspensa, a cidade onde vai debater-se entre a busca e

a recusa” (RIB, p. 329). Dessa maneira, o personagem, irremediavelmente presa do fascínio

pela cidade, retoma seu caminho no espaço urbano, incapaz de se deixar prender novamente

pela malha da vida interiorana.

É significativo que, em uma das últimas cenas do romance, ainda em uma breve

parada no caminho de volta para Belém, seja mencionada na narrativa uma edição em três

volumes das Mil e uma noites. Ao longo dos nove romances que compõem a trajetória de

Alfredo, vários personagens entraram nesse enredo mais amplo, entrelaçando suas vidas com

a do desassossegado protagonista, e muitos foram abandonados ao longo do caminho sem que

suas histórias se concluíssem, num procedimento típico do famoso livro de contos,

eventualmente sendo retomados em outras narrativas, mas contribuindo para compor um

complexo panorama da vida amazônica. A referência às histórias de Scherazade

Num enredo que representa também uma volta à atmosfera interiorana do começo da

série, além de manter como fio principal o percurso de Alfredo, a narrativa será construída

também com a combinação de “causos”, ditados, versos com motes e outras daquelas “formas

simples” teorizadas por André Jolles (Jolles, 1976). São pequenos acréscimos que enriquecem

a narrativa propriamente dita, em geral ligados à oralidade dos mais velhos, e que na

Amazônia paraense de Dalcídio Jurandir envolvem histórias de encantados, como a de Bonita

(RIB, pp. 52-55), prima de “seu” Dó, porteiro da Intendência, a de Maria Sabida, suas duas

irmãs e o príncipe que degola a esposa na noite de núpcias (RIB, pp. 16-20), a praga do padre

que fora roubado, entre outras. Longe de esgarçarem o fio da história principal, a assimilação

e a mescla dessas micronarrativas expandem o ambiente romanesco em direção ao

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maravilhoso, ao espaço onírico e ao mítico, tão presentes e importantes na cultura dos

personagens pertencentes ao complexo painel composto por Dalcídio Jurandir.

A narrativa apresenta, assim, a acumulação e a reiteração de elementos espaciais

reveladores do estado da cidade, tais como o cabo de telégrafo rompido, a abundância de

cemitérios, a Intendência habitada por traças e baratas, o farol que funciona para ninguém, as

casas em ruínas, as muitas dissensões entre os habitantes que impedem qualquer união em

prol da recuperação da cidade, os poderosos falidos que ainda conservam a afetação, a

resistência de preconceitos contra os negros, entre outros. Utilizando-se desse rico conjunto

de elementos, que interagem e dialogam constantemente, o autor compõe um quadro

desolador e irônico da miséria não só física, mas também social, nessa faceta do interior

paraense, onde o isolamento, as febres, a morte e as ruínas se devem menos à queda dos

preços da borracha e mais à completa desagregação da população da cidade e à corrupção ou

pelo menos a omissão daqueles que se revezam na administração do município. Sem

renunciar à riqueza de nuanças e idiossincrasias dos seres humanos que atuam nesse enredo, a

narrativa também se constitui como resistência política e como denúncia, já que coloca em

cheque o argumento de que a queda dos preços da borracha fora a causa única para os males

da decadência. Dessa maneira, pelos significados que põe em circulação, pela importância e

contribuição decisiva para a configuração de decadência no mais amplo sentido, associado e

articulado de maneira íntima aos personagens e à ação, o espaço em Ribanceira configura-se

como aquele “signo ideológico” de que falam Carlos Reis & Ana Cristina M. Lopes (1991).

Carregado de atributos sociais, econômicos e históricos, o espaço articula-se aos demais

elementos da narrativa para compor a visão ideológica que se depreende do conjunto, a qual,

em geral, não se apresenta de forma explícita (Reis & Lopes, 1991: 133).

5. Enigmas da cidade na obra de Dalcídio Jurandir

O desenho da cidade, com suas divisões em bairros, subúrbios e favelas é também

um desenho de classes, como afirma Franco Moretti em Atlas do romance europeu (Moretti,

2003), um intrincado de espaços permitidos e interditos. A cidade nunca é só o traçado

visível, ou seja, praças, ruas, casas edifícios monumentais; sobre isso tudo a imaginação

criadora dos habitantes projeta sonhos e sentimentos, assim como os viajantes buscam

alternativas e possibilidades, criando muitas cidades sobre o mesmo espaço. Por outro lado, o

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escritor, ao transfigurar uma cidade real em um espaço ficcional, pode criar, na verdade, um

espaço imaginário, ou utópico, onde não se apresentam fissuras ou abismos sociais, como é o

que acontece muitas vezes, por exemplo, nos romances policiais, simplificando o sempre

complexo traçado urbano do qual se apropriam e reduzem em alguns poucos espaços

ficcionais. De acordo com Moretti, o primeiro escritor a “enfrentar” a dificuldade de

representar a complexidade de uma grande cidade, uma capital cosmopolita como Paris, com

seus múltiplos espaços e hierarquia social, foi Balzac. Segundo Moretti, o escritor francês não

“protege” seu romance das complicações de Paris, mas aproveita-as como uma oportunidade

para estruturar sua narrativa (Moretti, 2003: 115). Para promover inter-relações entre os

vários espaços da cidade, Balzac introduz a figura de um “terceiro”, que pode ser um

personagem ou mesmo o dinheiro, como força de mediação social, a qual acaba galgando a

posição de protagonista da narrativa. A cidade se multiplica e se desdobra nas visões que

temos ou criamos dela, como se cada perspectiva construísse uma cidade, com feição própria

e configuração peculiar. É possível, a partir disso, especular que uma cidade sempre engloba

muitas faces atrás de suas muralhas, as quais podem ser visíveis ou não. Italo Calvino, com

sua narrativa As cidades invisíveis mostrou que, mesmo nos relatos de um só personagem, o

aventureiro Marco Polo, uma cidade se multiplica ou se desdobra em muitas faces. A cidade

nivela os habitantes, no sentido de que permite certa convivência entre indivíduos de

diferentes classes, mas também separa e hierarquiza ao segregar os grupos sociais em bairros,

ou seja, há uma proximidade espacial singular, em paralelo com uma convivência tensa, que é

proporcionada pela cidade e que o romance de ambientação urbana pode explorar.

Como vimos acima na análise do mapa da cidade que se constrói a partir do romance

Belém do Grão Pará (1960), assim como nas narrativas seguintes, Alfredo será o personagem

a desempenhar o papel equivalente ao “terceiro” de Balzac – o protagonista que promove a

interação dos vários espaços e personagens, transitando entre eles e buscando desvelá-los no

próprio processo de conhecer-se. Com isso esse personagem é também o mediador/guia do

leitor pelo espaço urbano, ainda que o próprio personagem não tenha plena consciência do

que tem diante de si. Ao mudar-se para a cidade, afastando-se da proteção da casa dos pais,

transformando-se no jovem agregado em casa de família amiga, Alfredo encontrará um

espaço cheio de enigmas e armadilhas para o jovem interiorano, como vemos em Primeira

Manhã (1967, p.23): “As mesmas arapucas da cidade? (...) O mesmo logro inapelável? O

alçapão é o mesmo em toda parte?”. A partir dessas constatações, o personagem intui que, ao

contrário da Belém de seus sonhos, a cidade possui sua própria arquitetura e hierarquia,

apresenta rígida separação social, desdobra-se em espaços de livre circulação e alguns espaços

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interditos: ele descobre que mudar de bairro também é mudar de status. Desse modo, há,

simultaneamente, várias cidades dentro da cidade que o personagem percorre, muitas vezes

diferentes faces que não se comunicam: “E as casas da cidade? Janelas fechadas, persianas, os

fios de luz e delas saía uma gente apressada sem nunca dar um bom dia a ninguém. Como as

pessoas na cidade se desconheciam! Abram as janelas, casas. Tão juntas e parecem de mal,

tão distantes umas das outras, se cumprimentem!” (BGP, p. 56). A cidade se desdobra

também em personagens que acrescentam seu toque pessoal ao espaço, demonstrando que a

teia urbana apresenta-se de maneira diferente para cada um, como imagens urbanas que se

“colam” aos seres, como se pode constatar em Ponte do Galo (PGA, p. 34): “Figuras e cenas,

até então sem importância, se movem, constantes. Belém da D. Marta, Belém da Brasiliana,

Belém do afinador de piano”. Dessa maneira, cada personagem, ao movimentar-se na cidade,

descortina uma outra cidade, que se identifica com um percurso específico, cujos espaços são

hierarquizados e cujo acesso é limitado pela profissão, pela cor da pele e pela posição social

que cada um ocupa. Esse processo de desdobramento de visões da cidade em personagens

atinge o ápice ainda no primeiro romance urbano da série, Belém do Grão Pará, não só na

trajetória de Alfredo, mas principalmente nas de seus parentes, como Mãe Ciana, a vendedora

de cheiros, seu Lício, o revolucionário, Isaura, a costureira, e tantos outros.

No trajeto que empreende através da cidade, em uma peregrinação, às vezes,

aparentemente, a esmo, Alfredo se defronta e se enriquece com essa Belém múltipla, cheia de

ruínas, onde as lembranças do personagem emergem, projetadas no espaço à sua volta:

Andou pela beirada do rio, saltando nos barcos podres, trapiches

velhos, espiou o estaleiro do mestre Afonso. Arqueado no mangue, o

navio morto varava a noite com um chaminé de aflição e ferrugem. E

pela escotilha saía o olhar do padrinho Barbosa. Fugiu para não ouvir

saltar do chaminé o ganso grasnando. (PMN, 1967:135)

O menino que explora o território da cidade, em repetidas andanças e buscas

infrutíferas, também encontra e marca os lugares interditos, paralelos para a conhecida rua de

baixo, ou Rua das Palhas, em Cachoeira, um ambiente que se apresenta como um estreito

labirinto de doença e morte, outra face degradada que a cidade lhe apresenta:

Fugiu do estaleiro, e agora? Entrar neste beco mal enxuto ao pé do rio,

misericórdia, nem na Inocentes, por ser este aqui mais agachado, mais

soturno, mais sem nome, salta o buraco, olha olha que é a carroça

atravessada, (...) aqui renteia a parede, ali resvalando; estreitou-se a

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goela onde as barraquinhas se afundam e de lá e cá quase se roçam o

rosto, um apagadinho de palha e barro, não sei se pedindo socorro ou

te mandando ao diabo. (PMN, pp.135-6)

Cada vez mais o menino separa-se do rapaz que está a caminho, e um rapaz que será

um curioso obstinado, em busca tanto de si mesmo como de outros: “O raio também vai me

abrindo um caminho, não na rua, nuvem ou rio, mas em mim mesmo, neste verdoengo e

secreto ser que sou. Não dizia adeus ao menino, que menino não era mais, mas a um

obstinado, inumerável tempo, adeus a certas perdas e temores (...)” (PMN, p.14). Mas, se a

Alfredo a inquietação vai causar muitas horas de apreensão e tantas buscas, para o leitor essa

sua característica é essencial, pois, buscando ele desvela todo um complexo mundo em seu

caminho, ao mesmo tempo produtor e guia do espaço urbano. Como vimos, o personagem só

pode usufruir da liberdade e do exercício de sua ânsia, impensável no refúgio materno, em

virtude de sua condição especial, que lhe faculta percorrer muitas vezes a cidade, o que

permite à narrativa uma considerável ampliação do espaço romanesco. Tal como o de

Alfredo, outros percursos obsessivos aparecem ao longo dos romances de Dalcídio Jurandir,

como veremos no próximo item.

6. Variações em torno do mesmo tema: a descida

O tema da descida, sob a forma de variações ou figurações da viagem aos infernos,

aparece freqüentemente na literatura de todos os tempos. Como afirma Ronaldo Lima Lins,

em Violência e literatura (Lins, 1990: 211), a partir do século XIX, período em que o

romance atinge seu apogeu, a viagem recriada na literatura parecerá sempre uma descida aos

infernos, tanto interior como exterior, indicando uma crescente incerteza nos homens ou

talvez indiciando que o mundo, tão cheio de certezas até o século XIX, estava agora recheado

de insegurança e perigos ou tenha se transformado no grande espaço-incógnita de que fala

Ricardo Gullón (1980). Northrop Frye chega mesmo a afirmar em La scritura profana que

todas as narrativas literárias são complicações ou derivados metafóricos de quatro

movimentos primordiais (Frye, 1980:111): 1. A queda a partir de um mundo superior; 2. A

queda, a partir deste mundo, para o mundo subterrâneo; 3. A ascensão a este ou ao mundo

superior a partir do mundo inferior e 4. A ascensão, a partir deste, até o mundo superior. Os

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dois últimos temas referentes a ascensões são comumente associados a romances

convencionais, a literatura trivial de que fala Flávio R. Kothe (Kothe, 1981), freqüentemente

com finais previsíveis, pouco apropriados para uma visão realista da narrativa como se

apresenta em Dalcídio Jurandir ou Milton Hatoum, como veremos.

O tema da descida ora assume a forma do mito de Orfeu, usando de suas habilidades

musicais para comover os deuses infernais e conseguir recuperar Eurídice no império

subterrâneo – e fracassando por ceder à curiosidade e quebrar a proibição, olhando para trás

(para baixo?); ora assume a de Perséfone, raptada por Hades e que, voluntariamente, come os

três grãos de romã – que lhe impedem de voltar ao mundo dos vivos permanentemente; ou

ainda, no percurso que Dante empreende aos infernos, cujo portal se abre ao viajante com

palavras duras e definitivas: “Deixai aqui todas as esperanças, ó vós que entrais”. Os

percursos de descida, apropriados à investigação que o romance sempre empreende acerca da

natureza humana, refletem não só uma sofrida busca de algo ou alguém, mas também, talvez

principalmente, de si mesmo, de alguma coisa externa que reflete uma inquietação interna,

como o Graal, por exemplo. De qualquer maneira, em quase todos os casos citados, é a

procura de um bem perdido, com personagens ansiando por uma recuperação essencial para

que se restabeleça uma situação de paz ou felicidade anteriores.

Muitas vezes a descida não se configura exatamente, ou fisicamente, como tal,

variando em múltiplas versões, mas sempre implica um deslocamento, em geral forçado, ou

pelo menos não de todo agradável, do personagem em busca do algo que lhe falta ou foi

tomado. Dessa maneira, a trajetória de Riobaldo, em Grande sertão: veredas, para efetivar

seu famoso pacto com o diabo, até as Veredas Mortas – uma encruzilhada que praticamente

desaparece depois do episódio, pode ser entendida como uma descida, no sentido em que o

personagem é impelido a esse encontro não só por sua vontade de se alçar à altura da chefia

do bando, mas também por uma vaga noção de predestinação, e busca aí cruzar a fronteira

que separa seu mundo para firmar um acordo com as forças que podem alçá-lo à condição

desejada. Por outro lado, a heroína do conto “A fuga”, de Clarice Lispector, também

empreende uma descida, quando decide ir embora, no sentido em que seu casamento pode ser

visto como a estabilidade, a segurança, o conforto, mesmo que falte a isso tudo o amor e o

sonho, e o lá fora seja o espaço-incógnita, onde ela deverá emancipar-se (reconhecer-se?); a

personagem perde a oportunidade de escapar de um casamento/prisão, pois ousa olhar para

trás – como Orfeu, e sua vontade e determinação se arrefecem.

É natural que Bentinho, em Dom Casmurro, sinta-se rejeitado ao voltar para a casa

da infância, descendo em direção às recordações de tempos tranqüilos e em que o amor por

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Capitu ainda não se transformara em um ciúme doentio; aquele antigo locus amoenus

transformara-se num espelho de sua própria consciência culpada por ter destruído o mundo de

sonhos da infância, como analisa Lúcia Miguel Pereira (Pereira, 1994: 305), e Bentinho deixa

que a casa seja demolida, numa espécie de autopunição, reproduzindo-a depois, de certa

maneira, purgada das lembranças em outro bairro.

Queda significativa também protagoniza Madalena, em São Bernardo, de Graciliano

Ramos, quando acredita, e declara, que a proposta de casamento que recebera era um

“negócio vantajoso” para os dois, e aceita Paulo Honório, indo morar na fazenda que dá nome

ao romance. Esse percurso, como se sabe, acaba em suicídio. Se ela consegue escapar da teia

de posse que Paulo Honório urdiu em torno dela, o gesto não a eleva literariamente pois ela

parece optar pela saída teoricamente mais fácil (já que poderia voltar à vida simples, mas

difícil, de antes) e egoísta (pois seu ato lança a tia no convívio solitário com a crueldade de

Paulo Honório). A trajetória de Paulo Honório também poderia ser descrita como uma penosa

ascensão seguida de queda melancólica, pois sua ambição o leva a conseguir São Bernardo

por meios escusos e, transformando a todos à sua volta em coisas manipuláveis e compráveis,

abre caminho para a destruição de Madalena e a sua própria, da qual tenta recuperar sentidos

por meio de sua narrativa. Aliás, esse personagem-narrador, não se redime, com sua narrativa,

da desgraça que causou ou sequer compreende sua responsabilidade em tudo, pois repete no

próprio processo de construção da história a reificação das pessoas que ainda o rodeiam.

Uma travessia que também assume o caráter de início de uma longa descida aos

infernos, que será a obsessão do personagem por um amor impossível, é a viagem de gôndola

que Gustav von Aschenbach, em Morte em Veneza, prestes a mergulhar numa busca

impossível – pela beleza ou pela perfeição, empreende ao chegar a Veneza, conduzido por um

gondoleiro comparado por Ronaldo Lima Lins com o próprio Caronte (Lins, 1990:213).

Uma descida literal é aquela de que é vítima Augusto Matraga, no conto A hora e a

vez de Augusto Matraga, de Guimarães Rosa. Após ser surrado por vários homens em virtude

de sua arrogância, valentia desmedida e crueldade, o personagem é jogado em uma ribanceira,

começando ali um longo período de sofrimento físico e mental, até conseguir reerguer-se e se

redimir ao final do conto.

Descidas significativas e exemplares também são figurativizadas no percurso de dois

grandes heróis bíblicos, José e Jesus Cristo, se tomarmos aqui a Bíblia no sentido literário

empregado por Flávio R Kothe em O herói (Kothe, 1985). A trajetória extremamente penosa

desses dois personagens mostra, por outro lado, que nem sempre o que está embaixo é ruim,

pois ambos sofrem intensa humilhação seguida de ascensão redentora.

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Interessante paralelo pode ser traçado entre as descidas literárias clássicas,

juntamente com sua recorrência em narrativas mais recentes, e alguns episódios de romances

de Dalcídio Jurandir, não como mera recuperação de antigos mitos, mas como recursos

disponíveis ao autor para figurar ou variar o tema da busca que o personagem Alfredo, o

protagonista, ou o personagem mais recorrente e eixo central dessas narrativas, tem que

realizar. Não está em discussão aqui se o autor teve ou não a intenção de projetar esses

significados nos episódios analisados, mas a maneira como eles podem ser lidos, atribuir-lhes

sentidos no sistema da narrativa. Serão descensos associados comumente ao rebaixamento

moral e à ruptura de fronteiras e hierarquias sociais, reunindo ou colocando em confronto,

ainda que seja por alguns momentos, personagens de diferentes estratos, notadamente em

espaço externos. Marcadas por uma busca, uma viagem ou um deslocamento pela cidade,

essas inúmeras descidas aparecem com funções variadas em cada romance, e não é por mero

acaso que algumas descidas aconteçam à noite, pois a noite quase sempre aparece como

variação do mundo subterrâneo, causador de um medo ancestral (Frye, 1980), como

acompanharemos a seguir, com exemplos de vários romances de Dalcídio Jurandir, mas

enfatizando aqueles dos romances selecionados.

A primeira variação desse tema aparece já no romance Chove nos campos de

Cachoeira (1941), em que o obcecado Eutanázio, cumprindo aí o papel de herói

problemático, percorre constantemente os caminhos encharcados em busca de sentidos para

uma vida aparentemente inútil, ou à procura de valores autênticos – no caso, seu amor

degradado e vão por Irene. Essa bem poderia ser vista como aquela busca idólatra (para René

Girard) ou demoníaca (para Lukács), conforme Lucien Goldman (1967: 8-10), inautêntica

porque baseada em necessidade de posse, em coisificação de um ou outro dos envolvidos.

Decaindo física e mentalmente pela recusa contínua da impassível Irene, Eutanázio não hesita

em roubar aquela que já não tem quase nada, a infeliz Felícia, prostituta que é uma espécie de

saco de pancadas e usufruto de todos os homens das redondezas, e encaminha-se para um

anunciado e trágico fim. O próprio nome sombrio do irmão de Alfredo parece antecipar essa

queda vertiginosa, essa morte antecipada e, de certo modo, provocada pela vida pregressa do

personagem. Em outro romance, o narrador, ao falar sobre os caminhos que levam a

Cachoeira, associa o percurso de Eutanázio ao tema da descida infernal (PGA, 1971: 54): “A

partir do Salu, dois caminhos para o teso onde é propriamente Cachoeira. (...) os dois

caminhos. O de baixo, roçando o catavento, é o de Eutanázio buscando Irene, a descida aos

infernos (...).” O maior exemplo dessa peregrinação demoníaca do personagem está no

capítulo XIII, significativamente intitulado “Eutanázio anda”.

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Veremos em seguida, no romance Marajó (1947), Missunga, o filho do Coronel

Coutinho, voltando a um mundo do qual poderia ter se libertado, a fazenda em Marajó, para

viver um percurso de dissipação dos bens do pai e atravessar, e mudar radicalmente, o

caminho de três mulheres na trama, Guíta, Orminda e Alaíde. Entediado com os estudos e a

vida de facilidades na cidade, ele recua – desce – ao espaço-refúgio da infância, recusando o

ambiente da capital, que já não representa mais uma incógnita nem um desafio para ele. À sua

maneira, o personagem representa exatamente o percurso contrário daquele que almeja

Alfredo – o fascínio pelo clarão de Belém, a cidade grande e a escola, com tudo o que isso

representa de libertação e emancipação. Tudo isso fora franqueado a Missunga sem que ele

tivesse que fazer qualquer esforço nesse sentido. Um significado possível do percurso de

Missunga é a anunciação, em sua trajetória, de outra descida, esta a do Coronel Coutinho e

seu mundo degradado, ou a decadência e a futura queda do império do pai, já que este não

terá continuadores para sua “obra”, ou ainda a derrota dos aventureiros e dissipadores da

época áurea da borracha, da qual esse coronel é um vestígio.

Em Três casas e um rio (1958), acompanharemos, com suspense crescente pelo

desfecho preparado cuidadosamente pelo narrador ao longo do caminho, D. Amélia e um

Alfredo deveras assustado com a estranheza do comportamento da mãe em um desses

percursos perturbadores. Ambos vão em busca de uma vingança em virtude de uma antiga

calúnia cuja autoria a mãe do personagem acabara de saber, justamente num dia de festa na

cidade, depois de longo tempo amargando a vontade de tirar a limpo a maledicência:

Bruscamente disse ela:

- Hei de cortar a língua de um, ainda. Hei de cortar. Amolo a faca e

corto. Ou corto com meus dentes. Rá! Que duvidem. E que duvidem.

(TCR, p. 100)

Na intensa e longa preparação para a caminhada noite adentro, D. Amélia olha-se em

seu velho espelho e Alfredo compara o reflexo com “uma fera no espelho gasto” (TCR, p.

100), e se põe a divagar sobre as várias faces que ali se miraram, num movimento em que o

devaneio sobre o objeto traduz uma incorporação do tempo pelo espaço:

A vaidade havia-lhe consumido o aço e em troca muitas e muitas

fisionomias estavam ali acumuladas, jovens agora velhas, bonitas hoje

mortas, as jovens rindo das velhas em que se transformaram e que iam

ali se mirar como se quisessem reaver o rosto perdido. Estavam

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147

espiando agora D. Amélia, talvez adivinhando-lhe os sentimentos e as

intenções. (TCR, p. 101)

Com todas as características de uma autêntica descida, pois a busca leva mãe e filho

em direção ao rio, ou seja, mais abaixo que a posição de sua casa, Dona Amélia segue

resoluta em direção à vendeta, sem se importar com o fato de que seu ato pode não só afastar

Alfredo definitivamente da escola, mas também fechar as portas do chalé para ela. Como o

objeto da calúnia havia sido o questionamento da paternidade de Alfredo, é este que

acompanha atentamente os sinais da cena de tensão que se prepara, acumulando-se ao longo

do caminho sob várias formas:

O menino afundou os sapatos numa poça e sua mãe ralhou com um

muxoxo contra aquela incurável distração. Ela caminhava séria,

trescalante, dona daquela noite. (TCR, p. 103)

Nisto, súbita e ruidosa pancada de chuva, de pingos graúdos, fez

debandar a pequena massa que se comprimia no trapiche. (TCR, p.

104)

A escuridão da noite caiu como lama sobre a chuva que crepitava no

telhado gotejante, sobre as vozes dispersas dos homens, maracás, bater

de pés na madeira do trapiche (...). (TCR, p. 104)

A lama, o domínio que D. Amélia tem da noite, a pancada de chuva que transforma o

final da tarde numa noite sombria, o barulho dos maracás, além do bater de pés sobre o

trapiche, tudo contribui para marcar o clima da cena, minuciosamente construído. Para essa

construção cuidadosa também contribuem os retardamentos introduzidos na narração, que

atrasam o desfecho e aumentam a expectativa da luta que será travada, com os dois

personagens observando o desembarque do boi bumbá, os desafios entre os homens, os

tambores, D. Amélia cantando uma velha música. Um desses retardamentos, absolutamente

preciso pela inserção no momento exato que o transforma em motivo associado na trama, e

especialmente tenso para o menino, é a recordação que Alfredo tem de uma antiga cena,

quando fora até a cadeia pública para que um preso cortasse seu cabelo. Esse preso matara a

ex-amante, que fora “roubada” por um comerciante, em cena que o garoto recorda ter sido

descrita da seguinte maneira:

Ele (o criminoso) entrou no quarto escuro; já dentro do mosquiteiro,

contemplou por algum tempo a sempre desejada e impossível amante

agora adormecida e marcou bem o lugar do coração. Foi uma

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148

punhalada só. Depois, o comerciante, na outra rede, acordou ouvindo

um gorgolejo no soalho. (TCR, p. 105)

Essa lembrança sangrenta, ao aparecer num momento em que o personagem segue,

temerosamente, sua mãe em direção à vingança, e associada à frase da mãe “ao ameaçar que

ainda havia de cortar língua a alguém” (p.105), confere à cena um caráter de antecipação de

um desfecho trágico que, afinal, não acontece. Enquanto isso, a própria D. Amélia contribui

para retardar o andamento da narração de sua busca e manter o suspense, quando recorda uma

outra cena decisiva de sua vida, quando tivera o primeiro filho:

D. Amélia se concentrava numa espera cheia de raiva contra o tempo,

impaciência contra a demora, esquecimento repentino da misteriosa

vingança. E nisto lhe veio a recordação de um distante carnaval em

Muaná, quando andava ainda solta, solta... (TCR, p.106)

Afinal, como desfecho da longa caminhada noite adentro, da busca em longo

caminho descendente naquela que talvez seja a cena mais elaborada do romance, D. Amélia

desafia a autora da injúria e cospe em seu rosto: “Rápida, afastando Didico e o filho, D.

Amélia avançou para a janela e cuspiu grosso e violentamente no rosto da senhora” (TCR,

p.128). Dessa maneira, a personagem coroa sua busca de vingança da calúnia que o filho

sofrera e encerra de maneira vitoriosa a empreitada.

Em Belém do Grão Pará (1960), quem empreende a descida rumo ao inferno dos

derrotados é a família que engorda na decadência, os Alcântaras, que são obrigados a mudar-

se por causa de uma eleição perdida por seu candidato e a conseqüente perda de status e

dinheiro. Esse descenso lembra aquela afirmação de Northrop Frye acerca do romance

(1980:119): “No começo de um romance ocorre com freqüência um descenso marcado na

escala social, da riqueza à pobreza, do privilégio à luta pela sobrevivência (...).” Se essa queda

vertiginosa desencadeada pela política é um mau começo para Alfredo, que está iniciando sua

tão desejada trajetória na cidade, o que será para ele um contratempo, e para os Alcântaras

uma derrota, seguida de ostracismo, antecipação de outra maior ainda por vir, para o leitor

significa que o personagem ainda tem muitos obstáculos a contornar em sua travessia e que

sua peregrinação só está começando.

D. Inácia Alcântara, a “madrinha-mãe”, é o personagem que mais sente o amargor

desse ostracismo, dessa descida forçada da família para a Rua Gentil Bittencourt, sempre a

acusar o marido pela queda e a “farejar” conspirações políticas, sem perder o orgulho da

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antiga posição: “D. Inácia exibia as suas antigas relações com um certo gosto de olhar de

frente “aqueles canalhas” e mostrar-lhes que o lugar dela era o mesmo, embora tivesse

descido para o 160 ao pé dos sapos” (BGP, p. 141). Emilinha, a filha gorda dos Alcântaras,

desesperada por reaver algo do antigo fausto, praticamente obriga a família a mudar-se para

uma casa em ruínas, mas localizada no bairro nobre de Nazaré, onde os ricos da cidade

moram. Este novo deslocamento, no entanto, revela-se a verdadeira descida, pois ao final do

romance a família é obrigada a abandonar a casa, sob vários sinais de que a queda desta é

iminente: “(...) tinham que mudar naquela hora mesma. Para onde, não sabia, mas tinham.

Pelo menos retirar a bagagem para a calçada, não no quintal porque, conforme desabasse, não

poderiam depois atravessar o entulho” (BGP, p. 358). Nesse novo espaço de aparências da

Estrada de Nazaré, seu Virgílio Alcântara, até aí um obscuro funcionário público sem maiores

sobressaltos, que é afetado pela queda de seu protetor, cai ainda mais ao aceitar participar de

um contrabando, enciumado pelo passado da esposa: “De repente, tudo cai. Agora, revirando

os destroços do lemismo e da borracha, eis que encontra o fantasma dos acontecimentos até

então despercebidos, vê as imagens de Inácia que não pudera ver e aí começa a desagregação

das coisas” (BGP, p. 273). Ao aceitar a cumplicidade no recebimento de propina na

Alfândega, a culpa pelo ato e os ciúmes pela mulher se misturam na mente do personagem,

dando o empurrão definitivo em seu equilíbrio psicológico, o que vai precipitá-lo para a

última queda, ao ser descoberta sua participação: “Quis então declarar o que pensava dela.

Dizer-lhe tudo que pensava, destapando-se. Conteve-se, sentiu um ruir de casa dentro dele,

telhas, caibros, os paredões do casarão da Alfândega, o seio de Inácia, as coxas de Inácia no

incêndio e desabamento d’A Província.” (TCR, p.298).

No romance Passagem dos inocentes (1963), Alfredo muda de casa e novos dramas

entram em cena, especialmente a descida que a personagem Celeste realiza rumo a um

casamento sem amor e sem maiores surpresas. Inconformada com uma vida monótona em

Cachoeira, Celeste esconde-se e foge em uma lancha atracada no porto, aproveitando-se que

todos estão em uma festa, episódio que será objeto de recordação constante da personagem.

Frustrada a verdadeira fuga pretendida, vamos encontrar Celeste, neste romance, casada e

com um filho, Belerofonte. Freqüentemente presa do devaneio sobre aquela fuga frustrada,

fantasiando o que poderia ter sido sua vida se aquele episódio houvesse terminado de modo

diferente, a personagem guarda num baú seus antigos vestidos de festa, últimos vestígios

daquela época em que seus pais tinham melhores condições, e que Belerofonte vai destruindo

um a um, simbolizando com seu ato uma chamada da mãe para o presente.

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150

Já em Primeira manhã (1967), uma longa descida será acompanhada por Alfredo

quase por acaso, ao encontrar, em um passeio noturno, duas vizinhas que se dirigiam à caça

dos maridos, tentando confirmar traições que eles teriam cometido. Nesse longo episódio, o

que acontece no decorrer é mais importante do que propriamente o desfecho, longamente

mantido em suspense, retardado por um rememorar entre divertido e amargo da vida das duas

mulheres, especialmente D. Abigail, a mais falante delas. Dessa forma, a trajetória em busca

dos maridos traidores também se converte em desabafo com o quase desconhecido que as

acompanha nesse percurso de descida (PMN, p. 161): “À proporção que elas acusavam, iam

se tornando vencidas, sem razão, nem esperança, enlaçadas na sedução da viagem e do que a

noite consentia.” Durante o trajeto, o narrador menciona a certa altura a natureza descendente

dessa empresa, associada à noite, aos ruídos desconhecidos e agourentos, ou seja, ao rumo

infernal do percurso empreendido por esses três solitários (PMN, p. 180): “Na busca do

marido, D. Abigail ia também desesperadamente curiosa dos infernos onde ele fumegava, e

das rivais, não ciumenta, mas invejosa.” Aí aparece, com toda a ambivalência o significado da

associação dos prostíbulos a “inferninhos” e se demonstra que a ida até lá, se é penosa e

sofrida para mulheres que se sentem traídas, também contém certa dose de curiosidade e

mistério pelo que o lugar possa apresentar em sua configuração ou por suas habitantes,

especialmente se são ambientes interditos para mulheres casadas. Na ocasião, não é de se

estranhar, como faz a amiga Ivânia, que D. Abigail fale demais sobre suas vidas, pois, nessa

descida, também ocorre uma espécie de descenso social, pelo menos um momentâneo romper

de fronteiras, ao abrigo da noite, e as duas mulheres deixam de ser aquelas que são “casadas

da cabeça aos pés”, como afirmara o narrador anteriormente, e se transformam em pessoas

comuns, desabafando sobre o que se passa dentro da intimidade de suas casas. No entanto, a

cena termina abruptamente para Alfredo, sem que o leitor saiba o desfecho da busca, pois as

duas o deixam para trás sem explicação, deixando entrever que caberia apenas a elas

cumprirem aquela descida até o fim, mais sombria ainda pela associação com o mundo

noturno, povoado de sombras e ruídos sinistros. Este encontro, na rua e durante a noite,

configura-se como aquele motivo analisado por Mikhail Bakhtin no ensaio “Formas de tempo

e de cronotopo no romance”, no qual é possível o cruzamento de barreiras sociais

normalmente intransponíveis, possibilitando contrastes e entrelaçamento de vários destinos

(Bakhtin, 1998:349-50).

Nesse mesmo romance, ainda há a longa descida da sempre ausente e tão presente

Luciana, que tem de cumprir uma longa e dolorosa via crucis pela suspeita de ter dado “um

mau passo”, significativamente libertada da prisão que os pais lhe impuseram por um raio: da

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151

associação com a intervenção divina para redimi-la da injustiça que se estava cometendo é um

passo. Se, por um lado, ela só aparece no romance por meio do discurso dos outros

personagens, sua presença está sempre se renovando graças à obsessão que Alfredo

desenvolve por ela, o que o faz buscá-la em vários lugares da cidade, perguntando a todos que

possam dar alguma informação sobre a moça amaldiçoada pelos pais. De certa maneira,

Alfredo também a acompanha em sua maldição e descida, pela obsessão e pela busca que

realiza, incomodado por ter à sua disposição a casa da qual Luciana fora expulsa, num

paralelo entre a trajetória dessa personagem e a sua própria, humilhado que fora pelos colegas

do Ginásio (p.117):

Agora, esta casa à disposição do estudante que fugiu do estudo, à

disposição do ginasiano pelo Ginásio escorraçado. Nesta casa, feita

para a predileta vir morar. A anônima corre as ruas da Babilônia,

moendo a sua farinha, passa os rios, não mais a tenra nem a delicada.

(...) A desabençoada nunca há de por o pé neste soalho, nunca há de

ver o mundo debruçada desta janela.

“Desabençoada” pelos pais, Luciana perdera o lugar que agora é ocupado por

Alfredo e este junta mais esta obsessão às suas tantas outras buscas.

Dessa maneira, essas várias descidas, com os mais diversos objetivos e personagens,

podem ser lidas como variações daquela perigosa travessia de que nos fala o personagem

Riobaldo Tatarana em Grande sertão: veredas, o percurso de aprendizagem que todo ser

humano tem que cumprir, uma obrigação da qual seus equivalentes ficcionais não podem

escapar. Ao invés da morte bela e gloriosa dos heróis épicos (como, por exemplo, Aquiles,

Pátroclo, Páris, Heitor), que almejam sair de cena no auge da força e da beleza, tendo

realizado feitos que merecessem ser cantados pelos poetas que virão (Vernant, 1978), o herói

do romance tem que viver sua vida até o fim, muitas vezes um desfecho que reserva um

balanço nada agradável de seus feitos, como acontece com Policarpo Quaresma no último

capítulo do romance de Lima Barreto. Ou seja, a trajetória desse herói solitário e

problemático, como o Alfredo, de Dalcídio Jurandir, também pode ser interpretada como uma

longa descida rumo ao (auto) conhecimento, uma longa, e freqüentemente infrutífera, busca

de valores autênticos num espaço degradado, uma viagem que, necessariamente, há de

modificar o viajante solitário.

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7. O espaço na obra de Dalcídio Jurandir

As casas não cansam? Ou tudo é nada, ou nunca o ente

pode confiar nos alicerces?

Dalcídio Jurandir

É o deslocamento de Alfredo, esse personagem, inquieto, atraído, como quase todos

os jovens das pequenas comunidades sem muitas perspectivas, pelas possibilidades da capital,

a chave que proporciona o desenho de uma região complexa, em que não é o ambiente que

determina comportamentos e trajetórias, mas impõe limites, proporciona desafios e suscita

questões aos seres humanos que nele habitam. O cruzamento dessa fronteira espacial, que não

é explícita, mas revela-se extremamente importante, que há entre o interior e a capital, por

esse personagem é um evento que pode se mostrar determinante para as pretensões da

narrativa, para a arquitetura do mundo ficcional desenhado nessa série de romances. Aliás,

como afirma Octavio Ianni, “toda viagem se destina a ultrapassar fronteiras, tanto

dissolvendo-as como recriando-as” (Ianni, 2003: 13), o que transforma o viajante num

importante mediador entre dois mundos. Se o espaço romanesco corresponde a uma região

real, a Amazônia paraense, especialmente a ilha de Marajó e algumas de suas pequenas

cidades e a capital, Belém, esses são cenários nos quais se projetam sonhos e devaneios,

desgraças e glórias, acomodação ou sublimação, deixando de ser externo e real para ser

efetivamente ambiente recriado ficcionalmente, tanto pelo discurso do narrador quanto dos

personagens que o povoam.

Ainda que, como mostra a biografia de Dalcídio Jurandir, a trajetória de Alfredo

possa ter muito de autobiográfica35, o personagem nasce e cresce plenamente dentro da

narrativa, assim como vários outros personagens complexos apresentados na série, e não

depende, para isso, do prévio conhecimento que o leitor possa ter da região, da vida do autor

ou da linguagem pontuada de termos regionais, para que a narrativa seja apreendida e

usufruída. Como afirma Franco Moretti ao analisar a espacialidade dos romances europeus do

século XIX, o estilo – a linguagem – está relacionado diretamente ao espaço e este ao enredo

(Moretti, 2003:56) ou, o espaço suscita certos tipos de narrativas e age sobre o estilo,

35 Lembramos aqui que Lukács, em sua teorização sobre o romance, considera que “a forma exterior do romance é essencialmente biográfica” (Lukács, 2000:77).

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condicionando, de certa forma o uso de uma linguagem apropriada ao ponto de vista

privilegiado no romance e ao enredo.

Ainda sobre a relação entre vida e obra em Dalcídio Jurandir, é preciso salientar que

o que perdura é a força da obra, é o discurso narrativo que discorre sobre uma região

específica, com a escolha deliberada por personagens de certo estrato social e o planejamento

claro e expresso de um painel sobre a vida na Amazônia, mas todas essas instâncias, que têm

a ver com o autor “empírico” Dalcídio Jurandir, só podem servir como auxiliares para o

entendimento de seus pontos de partida, nunca como chaves de interpretação. Mais

importante do que a relação estreita entre a vida e a obra é a transfiguração dessa vida em uma

obra significativa. Como afirmou o próprio Dalcídio Jurandir, na epígrafe utilizada no começo

deste capítulo, o que fica é a obra, em seus vários aspectos, é ela que nos interessa

primordialmente, especialmente norteados pela busca de sentidos de como essas narrativas

interagem com um espaço determinado, apropriam-se dele e transformam-no em um campo

em que personagens, muitos deles complexos e bem construídos, lutam contra as

adversidades, incluídos aí o próprio ambiente e o isolamento, acomodam-se ou sublimam as

limitações.

Ao mesmo tempo que esses personagens são amazônidas impelidos ou desafiados

pelas duras condições da região, eles também são seres que procuram viver plenamente seu

percurso de vida, sua travessia, como quaisquer outros seres humanos, identificando-se, nessa

aproximação entre o regional e o universal, com outros grandes personagens, alguns deles,

como D. Amélia, por exemplo, podendo figurar, por sua configuração e força, em qualquer

relação de personagens relevantes da literatura brasileira.

O espaço, no caso da série amazônica de Dalcídio Jurandir, como acontece em toda

narrativa, proporciona questões específicas a quem o habita, ou seja, de certa maneira,

delimita o tipo de conflito possível de ser representado, questões essas que serão respondidas

de maneiras diversas pelos personagens, em sua busca frutífera ou vã, mas sempre

esclarecedora para o leitor.

Na trama que atravessa toda a série composta por Dalcídio Jurandir, Alfredo, o

personagem que conhecemos ainda menino no primeiro romance, é praticamente empurrado

para o sonho de ir para a capital, obcecado por uma aspiração que é própria dos jovens: buscar

um caminho seu, realizar sua própria travessia que, muitas vezes implica lutar para realizar

uma trajetória diferente daquela dos pais. Dessa maneira, Alfredo, a um só tempo, representa

e não representa a trajetória de todo jovem em busca de si e de um lugar próprio no mundo:

representa porque é levado, como dissemos acima, a lutar contra as adversidades, contra a

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inércia do pai, contando apenas com a proteção e a força maternas, com o objetivo de

desbravar seu caminho, de emancipar-se. Por outro lado, se o personagem fosse apenas isso,

não passaria de um personagem tipo, mediano, representativo demais para realizar-se

plenamente como indivíduo. É por isso que o personagem também não representa aquela

trajetória exemplar, pois sua vida e sua busca obstinada, muita vez sem objetivos claros,

proporcionam a oportunidade para que o romancista componha personagens complexos e que

fogem a qualquer esquematismo do tipo. Cada ser fictício36 de Dalcídio Jurandir tem vida

própria, não se tratando de simples títeres postos a defender certas idéias ou figuras, ainda que

o façam eventualmente.

Como observou Wilson Martins sobre outras obras do Modernismo Brasileiro

(Martins, 1967: 195), os escritores modernistas mostraram intenso fascínio pela descoberta

geográfica do país, o que justifica plenamente a escolha de um personagem que, fatalmente,

irá deslocar-se pelo espaço amazônico, do interior em direção à capital e, como veremos,

também deslocando-se várias vezes em Belém, permitindo e justificando o mapeamento do

espaço nos diversos romances que compõem sua saga. Ou seja, o tema da viagem – o

deslocamento do personagem que permite (re) conhecer o entorno – atravessa essas narrativas

e lhes dá a viga mestra e a unicidade, já que a viagem proporciona a aproximação de lugares

“que pertencem a planos diferentes de existência”37, a par da estrutura autônoma de cada um

desses romances.

Se Alfredo deve cumprir sua travessia, sua viagem iniciática, primeiro com o desejo

obsedante de ir para Belém, depois com a viagem da pequena vila em que nasceu para a

capital e, finalmente, o defrontar-se com a grande cidade e seus novos desafios e, finalmente,

deparar-se, já adulto, com o mundo arruinado da infância, para o leitor resta acompanhar esse

percurso atentamente, pois ao deslocar-se da periferia para o centro e deste de volta para

aquela, o personagem desvela e nos apresenta um extenso caminho amazônico. A partir dessa

interpretação da trajetória do personagem, confirma-se a importância da

viagem/travessia/peregrinação para a estrutura do romance, transformando-se esse motivo em

conditio sine qua non para o desdobramento e a incorporação de várias feições do ambiente

amazônico. Ainda que a documentação, como nos relatos dos viajantes, não seja a meta

principal dessa série, todos os romances do autor trazem referências explícitas ao espaço em

36 A expressão “ser fictício” é considerada como um paradoxo por Antonio Candido no ensaio “A personagem do romance”. Porém, ainda segundo o crítico, é justamente esse paradoxo que constitui a natureza dual da literatura: a um só tempo criação, invenção, e expressão da verdade existencial do texto – a transfiguração do real operada pelo texto (Candido, 1987:55). 37 A expressão é de Georges Poulet em seu livro sobre o espaço proustiano (Poulet, 1992:64).

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seus títulos, inclusive Linha do Parque, que se passa em ambiente bem distinto da Amazônia.

Como o espaço pode apresentar aspectos econômicos e sociais, entre outros, que, articulados

aos outros elementos da narrativa, transforma-se em signo ideológico e pleno de sentidos, e os

títulos dos três romances analisados mais detidamente neste capítulo são bastante

representativos do “campo” onde se dá a experiência do percurso de Alfredo, partes

importantes da encenação romanesca de seu percurso de aprendizagem. Se esta não se

completa ou não termina com o esclarecimento dos romances de formação clássicos, mostram

o lento amadurecimento psicológico do personagem e, mais importante, fornece ao leitor as

referências do caminho.

Na leitura que aqui se faz da obra de Dalcídio Jurandir, as escolhas do escritor já

mostram que não importa o simples mapeamento, num olhar que apenas registra e comenta,

como ocorreu com os relatos dos viajantes e muitos escritores que abordaram a Amazônia e

não escaparam da armadilha de retratar a floresta como personagem. Interessa deixar que os

personagens abram veredas para o ambiente em que habitam, que respondam aos desafios que

o espaço lhes apresenta, além de representar em suas próprias vidas as contradições que

marcam as relações sociais e econômicas na Amazônia. Por essa utilização simultaneamente

simbólica e ideológica do espaço romanesco e pela resoluta transição da ambientação rural

para a ficção decididamente urbana, Dalcídio Jurandir merece assumir posição de relevo entre

os numerosos intérpretes da Amazônia.

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IV. O ESPAÇO E A OPACIDADE DA MEMÓRIA: MILTON HATOUM

As margens da memória, uma vez fixadas com palavras,

cancelam-se.

Italo Calvino

1. Breve interlúdio sobre autor e obra

(...) o fato de se poder dizer “isto foi escrito por fulano”

ou “tal indivíduo é o autor”, indica que esse discurso

não é um discurso cotidiano, indiferente, um discurso

flutuante e passageiro.

Michel Foucault

Propor uma abordagem acadêmica da obra de um escritor em franca atividade,

principalmente se o autor em causa possui uma obra ainda pouco numerosa, como é o caso de

Milton Hatoum, pode levantar vários problemas para a consecução de um estudo crítico. Em

primeiro lugar, não se pode afirmar que as características presentes em seus textos publicados

vão se afirmar ou se consolidar nos textos seguintes, desdobrando-se em temas recorrentes,

motivos que reaparecerão ou obsessões que irão aflorar posteriormente. Em segundo lugar,

em decorrência do que se disse antes, a crítica é feita no calor do presente, com todos os

riscos de analisar como acabado o que está em plena gestação, já que uma obra também é

composta por todas as leituras que se faz dela. Mesmo as leituras que estão se processando

neste momento movimentam-se, refazem-se, deslocam-se, articulam-se com outras, (re)

articulam-se a partir de outras. Sem contar a leitura dessas “leituras” pelo próprio autor, o que

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pode ecoar em suas próximas narrativas, num intrincado relacionamento nem sempre fácil de

desvelar. Tudo isso favorece a profusão de resenhas e notas ligeiras em jornais e revistas,

como é o caso da obra do autor amazonense, com poucos trabalhos acadêmicos registrados.

Porém, todos esses problemas, a princípio apresentando-se como obstáculos claros a transpor,

podem revelar-se, antes, como estímulo para um estudo mais aprofundado de seus três

romances: Relato de um certo oriente (1989), Dois irmãos (2000a) e Cinzas do Norte

(2005a)38.

A obra de Dalcídio Jurandir já pode ser colocada em perspectiva, não só pelo fechamento do

percurso do protagonista de sua saga amazônica, mas também pelo falecimento do autor, o

que garante o efetivo acabamento de sua obra. Por outro lado, Milton Hatoum é um autor cuja

obra, como se disse acima, está em pleno desenvolvimento, sendo, principalmente por este

motivo, o menos estudado dos dois autores selecionados. Assim, há poucos trabalhos sobre

esse escritor, em geral apenas resenhas sobre suas obras e comunicações apresentadas em

congressos como, por exemplo, os trabalhos de Scramin (2000), Nestrovski (2000), Pereira

(1999b), Gomes (2002) e a antologia de literatura amazonense compilada por Tenório Telles

(1996), entre outros. Em 2004, Tatiana Salgueiro Caldeira defendeu dissertação acerca das

relações entre identidade e memória no romance Dois Irmãos (Caldeira, 2004). Em sua tese

de Doutorado, Benedita Afonso Martins estuda a construção de imagens da Amazônia por

meio de um corpus que inclui Alberto Rangel, Benedito Monteiro e Milton Hatoum (Martins,

2004). Recentemente foi defendida por Maria da Luz Pinheiro de Cristo uma tese sobre a

construção dos narradores nos dois primeiros romances do autor (Cristo, 2005). Trabalho

consistente e inspirador sobre a obra de Milton Hatoum é a análise que Luiz Costa Lima faz

em O romance de Milton Hatoum, enfatizando a utilização fecunda da memória como traço

comum aos dois, apesar de sua maneira de realização bastante distinta, especialmente com

relação às características dos narradores (Lima, 2002). Como se disse, o autor só lançou até

agora três romances, além da publicação de contos39, poesia40 e estudos críticos esparsos em

que tem demonstrado preocupação em analisar as relações da literatura com a memória41,

além de realizar estudos sobre a literatura amazonense42. Além disso, o autor tem participado

38 A partir daqui poderão ser utilizados as seguintes abreviaturas para os romances: RCO, para Relato de um certo Oriente, DI, para Dois irmãos, e CN, para Cinzas do Norte. 39 Um de seus mais conhecidos contos é “Reflexão sobre uma viagem sem fim”, publicado na Revista USP, maio/1992, n.º 13, p. 61-65. Ver também “A casa ilhada” (Hatoum, 2005b). 40 Trata-se do texto poético que acompanha as fotografias de Maria Isabel Gouvêa, Sônia da Silva Lorenz e João Luiz Musa no livro Amazonas: palavras e imagens de um rio entre ruínas (Hatoum, 1979). 41 Como, por exemplo, em Literatura & memória. Notas sobre Relato de um certo oriente (Hatoum, 1996). 42 Ver, por exemplo, o estudo “A natureza como ficção”, no livro O espaço geográfico no romance brasileiro (Hatoum, 1993).

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ativamente de feiras literárias, como a de Parati/RJ, de debates sobre literatura e proferido

palestras em universidades no Brasil e no exterior43 e esteve envolvido em intensa polêmica

acerca da obra e da atuação do escritor Edward Said, por ocasião da morte deste.

A polêmica sobre Edward Said começou com a publicação, no jornal Folha de S.

Paulo, em 29 de setembro de 2003, de um artigo do crítico e poeta Nelson Ascher sobre a

obra e a atuação política do intelectual palestino, em que o autor conclui que a influência

intelectual de Said seria avassaladora e perniciosa. Como resposta a essa avaliação sumária de

Ascher, cento e oitenta e sete intelectuais brasileiros assinaram um manifesto, publicado no

mesmo jornal em 04 de outubro de 2003, rechaçando as acusações e defendendo Edward

Said, numa reação rápida que desencadeou polêmica das mais intensas.

A participação de Milton Hatoum na recepção de Edward W. Said no Brasil também

se refere ao envolvimento direto com a obra do intelectual palestino, pois o escritor

amazonense escreveu a “orelha” do importante e polêmico livro de Said, Orientalismo

(Hatoum, 200144), e traduziu Representações do intelectual (Said, 2005), ambos os livros

editados pela Companhia das Letras, mesma editora das obras de Hatoum. Para o breve perfil

que se traça aqui de Milton Hatoum, o que importa no episódio é que esse autor participou

ativamente dessa polêmica como um dos organizadores e redatores do manifesto que defendia

Said, como assevera Janaína Rocha (Rocha, 2003), o que mostra um autor consagrado e

atuante nos debates públicos45, sempre pronto a promover intervenções em debates, podendo

ser enquadrado justamente naquele perfil de intelectual que Said desenha e elogia em

Representações do intelectual.

Apesar de sua produção ainda consideravelmente pequena, seus livros têm sido

muito bem recebidos pela crítica especializada e têm obtido ótimas resenhas, além de ter

proporcionado a seu autor, por todos os três romances publicados os Prêmios Jabuti de

melhores romances do ano. Seu último romance, Cinzas do Norte, de 2005, também obteve

reconhecimento da crítica (Mello, 2005). Sendo assim, já se pode dizer que, pela força e

consistência de seus romances e pela refinada técnica de elaboração de seus mundos

ficcionais, sua obra já merece figurar entre aquelas dos grandes escritores nacionais e pode ser

43 Confrontar as intervenções de Milton Hatoum no debate sobre Literatura e Identidade, transcrito na revista Remate de Males nº. 14 (Hatoum, 1994a e 1994b). 44 Segundo nota no livro de Edward Said, a indicação editorial de Orientalismo foi de Milton Hatoum (Said, 2001). 45 Para mais informações acerca da polêmica envolvendo Edward Said, ver os nos. 75, 77, 78 e 79 da Revista Cult. A revista citada encerrou essa polêmica em seu número 79, considerando que o debate deve “prosseguir de outras formas” (Revista Cult, nº 79, p. 59).

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159

objeto de um estudo mais aprofundado da configuração do espaço como este que aqui se

propõe.

Os romances lançados pelo autor têm por cenário primordial a cidade de Manaus,

sendo que os dois primeiros enfocam a comunidade de origem libanesa, o que confere uma

visão alterna ao mundo amazônico urbano por ele recriado, marcada pelo desenraizamento de

seus personagens e de seus narradores em primeira pessoa, que tentam reconstruir, a partir dos

fragmentos de sua memória, o passado irremediavelmente perdido. Cinzas do Norte (2005)

expande o universo romanesco do autor, incluindo cenas no Rio de Janeiro e em cidades da

Europa, e é uma amarga visão do conflito de gerações, em que Mundo, o rebelde filho do

empresário Jano, que tinha planos para que ele continuasse seus negócios, torna-se um artista

em processo de destruição e sai do país para buscar a liberdade longe dos pais. Em todos esses

romances há uma visão crítica dos efeitos destruidores de um “progresso” desordenado que

desfigura completamente a cidade de Manaus, afetando a todos os personagens de alguma

maneira. Essa é uma configuração e uma utilização do espaço muito diferentes, por exemplo,

daquelas empreendidas por Márcio Souza, outro escritor amazonense de grande circulação,

sobre o qual defendemos dissertação em 2002 (Freire, 2002). Se em Márcio Souza os espaços

públicos e privados da cidade de Manaus são recriados com o intuito de criticar ou satirizar a

interpenetração e os significados intercambiáveis dessas duas instâncias, com integração mais

ou menos homogênea desse elemento no todo da narrativa, como, por exemplo, em A

resistível ascensão do Boto Tucuxi, de 1982, nas obras de Milton Hatoum importa aos

narradores empreenderem suas próprias buscas por identidade, com implicações claras dessas

trajetórias e dos obstáculos enfrentados inscritas na conformação do espaço romanesco. Mais

complexo que o relato desse “certo oriente” que Milton Hatoum empreende em seus dois

primeiros romances, é o encontro e o choque desse mundo de origem distante com o mundo

amazônico que os cerca. Se a distância do oriente das famílias libanesas que habitam os dois

romances perturba a identidade de alguns de seus componentes, a busca por um sentido de

identidade, que envolve estreitamente um sentido de lugar, também move os personagens

amazônicos de Milton Hatoum, especialmente o narrador de Dois irmãos (2000a), como

veremos. Já em Cinzas do Norte46, se o que está em causa é, principalmente, o conflito entre

pai e filho, acompanhados pelo amigo deste último, Lavo, que é também o narrador do

romance, há também um choque entre o interior e a cidade, por meio da locomoção e

46 A partir daqui, a referência aos romances serão feitas pelas seguintes siglas: Relato de um certo Oriente: RCO; Dois Irmãos: DIR; Cinzas do Norte: CNO.

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160

interação entre os diversos personagens, e o mundo anterior à Zona Franca e as

transformações profundas posteriores.

De certa maneira, os motivos que aparecem na obra de Milton Hatoum e a maneira

refinada com que são tratados, focalizando a narrativa na intimidade dos personagens, não

encontram paralelo na Literatura Amazonense, como se pode depreender da antologia O

Amazonas em sua literatura, organizada por Tenório Telles (Telles, 1996). Por outro lado, a

preocupação recorrente de Milton Hatoum com o espaço amazônico, transfigurado como

cenário em suas obras, pode ser rastreada tanto no texto poético composto para o livro

Amazonas: palavras e imagens de um rio entre ruínas, quanto em texto seu sobre exposição

de fotografias sobre a Amazônia, Desenhos do olhar (Hatoum, 2000b). Se no primeiro texto o

eu poético observa e transfigura o rio, mas situando-o em relação aos homens, em intensa

relação intertextual com ensaios de Euclides da Cunha, conforme Suzana Scramin, (Scramin,

2000), no segundo o escritor privilegia a focalização dos espaços íntimos, mais do que os

grandes espaços abertos da Amazônia, as cenas do cotidiano dos homens da região, de certo

modo lançando pistas sobre suas próprias preocupações ficcionais.

2. O espaço de um coral de vozes dispersas: Relato de um certo Oriente

(...) uma meia voz, uma escrita embaçada, que produzia

um leitor hesitante.

Milton Hatoum

O romance Relato de um certo Oriente, lançado em 1989, é uma intrincada

composição de muitas vozes, uma espécie de tecido em que cada voz funciona como um fio

que se vai entretecendo com os outros até formar a complexa tessitura que forma a narrativa,

sob a “coordenação” de uma voz narradora feminina, que cede seu “comando” sempre que

alguém de seu passado se dispõe a narrar e acrescentar algo que interessa à composição.

Dessa forma, o primeiro problema com que se depara o leitor desse relato é essa sua

composição múltipla, um concerto para várias vozes, explicado pela narradora em virtude de

esta levar sempre consigo um caderno de notas e um gravador para guardar os diversos relatos

que secundam o seu, tendo sempre em vista o irmão distante como interlocutor. Já que sua

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161

visão do passado é, necessariamente, limitada, e isso implica, também, um menor grau de

informação que ela pode fornecer ao leitor, essa “deficiência” de visão é amplamente

compensada pelo complemento do que sua voz pode dizer e efetivamente dirá a partir dos

relatos de vários personagens que vão se mesclando a essa voz primeira. À sua visão, ao

quadro que ela constrói a partir da própria memória, juntam-se outras visões, os quadros

construídos pelos relatos dos narradores que ela convoca ao seu relato desse certo oriente que

é a casa da família de Emilie. Dado o caráter caprichoso, fragmentário e intermitente da

memória, a voz narradora se assegura que irá apresentar um quadro mais amplo do passado

acrescentando esses outros relatos, entretecendo a sua voz aos fios de várias vozes que

compartilharam com ela preciosos detalhes acerca desse passado. Dessa forma, a narrativa se

construirá a partir da oscilação constante entre os vários tempos da família, dependendo de

cada narrador, entre antecipações e recordações esclarecedoras.

Como afirma Davi Arrigucci Jr., “este é o relato de uma volta à casa já desfeita”

(Arrigucci Jr., 1989), que será articulado a partir de lembranças e lacunas, por meio das várias

vozes que ecoam na voz da narradora, a empreender uma dolorosa viagem de retorno ao

mundo da infância. Não causa estranhamento, então, que seja mencionada no romance a

narrativa mais emblemática do mundo árabe (referência obrigatória também deste relato de

um “certo oriente”), As mil e uma noites (RCO, p.79), em que Scherazade, a narradora, para

escapar à hora da morte anunciada, entretece suas várias histórias, tecendo também um

labirinto literário em que se perdem espontaneamente o leitor e o sultão.

A casa de Emilie, espaço polimórfico e povoado de símbolos, é o mundo onde se

cruzam esse certo oriente, representado por essa família de origem libanesa, e um ocidente

reiterado pelo espaço da cidade e pelos personagens nativos que aparecem na narrativa,

inclusive a narradora, que, por sua vez, fazem parte de um outro lugar, também situado na

periferia do ocidente. Como afirmam Carlos Reis & Ana Cristina Lopes, em seu Dicionário

de Narratologia (1991: 130), à medida que o espaço romanesco se restringe à casa familiar a

importância da descrição aumenta e seus significados ficam mais ricos e concentrados. A

referência à parede onde se espalham, de maneira caótica, entre vários objetos, ideogramas e

pagodes chineses, criando um efeito pelo espelho que transforma o ambiente em um labirinto,

pode ser tomada como aquele portal que descortina o mundo do romance de que fala Northrop

Frye: “As modulações da imagem do espelho nos remetem a quadros, tapetes ou estátuas, que

aparecem tão freqüentemente no começo de um romance para indicar o umbral do mundo do

romance” (Frye, 1980:125). Assim, esse umbral que nos descortina o mundo de Relato de um

certo Oriente se assemelha a uma tapeçaria, em que diferentes artesãos, ou narradores,

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contribuem para o efeito geral do conjunto. É natural que, convergindo para um mesmo fim –

unir-se ao “coral de vozes dispersas”, orientado por uma voz que não só registra, mas também

filtra, esses múltiplos narradores se assemelhem na utilização da linguagem e das idéias

(Santiago, 1989: 4): longe de ser um defeito de falsidade ideológica, como afirma Silviano

Santiago, essa característica demonstra que os narradores tornam-se todos aparentados à

narradora principal pela afinidade com que a personagem empreende sua busca. Essa

confusão de vozes também traduz a dificuldade que a narradora encontra em manipular e

organizar num relato coerente esse conjunto impreciso de acentos e confidências, que

compõem o “coral”, e restava a ela apenas “recorrer à própria voz, que planaria como um

pássaro gigantesco e frágil sobre as outras vozes” (p.166). Apesar de declarar seu “jeito

esquivo, de observadora passiva” (p.30), é ela a encarregada de alinhavar as várias vozes em

desordem, interferindo e dando coerência aos relatos solitários. À memória é forçoso aplicar

um filtro que exclua os excessos, recorte a essência, pois não conseguimos, nem podemos,

reter tudo o que vivemos, sob pena de ficarmos enredados nas teias do passado, impedidos de

viver o presente, ou seja, o esquecimento e a seleção também são necessários. Como veremos

durante o percurso pela análise dos relatos e dos mundos que os narradores constroem, buscar

o tempo perdido é, principalmente, buscar os lugares perdidos e desfeitos da infância.

2.1 A narradora e o mundo paralisado, à espera de movimento...

A que se agarrar, se os lugares, como os tempos e os

seres, também são arrastados nessa corrida que só

conduz até a morte?

Georges Poulet

Assim como Hakim, um dos filhos de Emilie, a matriarca da família que é o centro

de Relato de um certo Oriente, ao se debruçar sobre as cartas que a mãe trocara com uma

amiga (RCO, p. 56), iniciamos a leitura desta obra como um leitor hesitante, buscando uma

orientação nessa narrativa que proporciona tantas sugestões e símbolos, enunciada quase à

meia voz e que se abre ao leitor como um quadro de características francamente

impressionistas tanto pela falta de contornos claros dos objetos e dos seres enquadrados face à

manhã nublada, quanto pela condição de recém despertar da personagem:

Page 172: Entre construções e ruínas: uma leitura do espaço amazônico em ...

163

Quando abri os olhos, vi o vulto de uma mulher e o de uma criança.

As duas figuras estavam inertes diante de mim, e a claridade indecisa

da manhã nublada devolvia os dois corpos ao sono e ao cansaço de

uma noite mal dormida. (...) Deitada na grama, com o corpo encolhido

por causa do sereno, sentia na pele a roupa úmida e tinha as mãos

repousadas nas páginas também úmidas de um caderno aberto, onde

rabiscara, meio sonolenta, algumas impressões do vôo noturno. (RCO,

p. 9)

Necessariamente turva em virtude da luz ainda esmaecida do amanhecer, nessa

primeira visão do entorno as figuras fundem-se à matéria do sonho, da qual a narradora parece

ter acabado de sair. Desde esse primeiro quadro, em que a personagem parece dissolver-se no

espaço, ainda confusa por acordar dessa maneira e possuída pelo desejo de reconstruir um

passado perdido, essa narradora sem nome dispõe-se a reconhecer o ambiente que serviu de

cenário para sua infância com o irmão:

A atmosfera da casa estava impregnada de um aroma forte que logo

me fez reconhecer a cor, a consistência, a forma e o sabor das frutas

que arrancávamos das árvores que circundavam o pátio da outra casa.

(RCO, p.10)

A evidente referência sinestésica posiciona lado a lado as sensações visuais e

olfativas do presente às “impurezas” incorporadas no passado, imbricando espaço e tempo,

transformando o primeiro em uma espécie de livro em que as várias camadas do segundo se

justapõem e dialogam, colocando-se à disposição do leitor/espectador que as interroga e lhes

atribui um sentido, ou que por meio delas busca recompor o painel do passado.

Paradoxalmente, o despertar da personagem pode ser lido como uma entrada em outro mundo,

um mundo de sonhos – o mundo do romance, no qual o que está em jogo já não é o presente,

mas o passado, mais especificamente as lembranças fixadas nos lugares do passado. Assim, a

narradora decide começar sua exploração da casa nesse retorno ao seu espaço-refúgio também

em busca de si mesma:

Duas salas contíguas se isolavam do resto da casa. Além de sombrias,

estavam entulhadas de móveis e poltronas (...). A única parede onde

não havia reproduções de ideogramas chineses e pagodes aquarelados

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164

estava coberta por um espelho que reproduzia todos os objetos,

criando uma perspectiva caótica (...). (RCO, p. 10)

Dessa maneira, explorar essa casa será como explorar seu dono, e é nessa

conformação significativa de labirinto, ampliada pela reprodução do espelho, que se apresenta

à narradora, aparentemente desabitado, que aparecem as primeiras possibilidades de

recuperação das lembranças da infância distante na forma de um pequeno papel contendo um

desenho feito por uma criança: “ao contemplá-lo, algo latejou na minha memória, algo que te

remete a uma viagem, a um salto que atravessa anos, décadas” (RCO, p. 11). No trecho

citado, estão as figuras que serão recorrentes no romance e que podem ser as chaves para a

interpretação desse périplo da personagem – a memória, a viagem e o tempo (anos, décadas) –

que ela busca articular em sua narrativa, alinhavando as várias vozes que escuta em seu

caminho: Hakim, um dos filhos de Emilie; Dorner, o fotógrafo alemão; e Hindié Conceição, a

melhor amiga de Emilie. Tal como na história de Scherazade, essas narrativas entrelaçam-se à

voz principal, muitas vezes confundindo-se com ela, fundindo-se para criar uma perspectiva

ampliada do périplo de Emilie e sua família desenraizada. O percurso da personagem também

é uma busca por Emilie, a matriarca da família que adotou a narradora e seu irmão, o

interlocutor a quem a personagem dirige todo o seu relato:

Antes de sair para reencontrar Emilie, imaginei como estarias em

Barcelona, entre a Sagrada Família e o Mediterrâneo, (...) quem sabe

se também pensando em mim, na minha passagem pelo espaço da

nossa infância: cidade imaginária, fundada numa manhã de 1954...

(RCO, p.12)

Disposta a recuperar as referências dessa cidade imaginária, de um tempo perdido, a

narradora volta ao espaço desse passado e é sob o signo da memória que ela inicia uma longa

retrospecção sobre sua infância na família de Emilie. Não será por mero acaso que o leitor

encontrará semelhanças entre os processos de recuperação do passado utilizado nesse

romance e aqueles de Em busca do tempo perdido, de Marcel Proust. Tal como afirma

Georges Poulet sobre o espaço proustiano, desde seus primeiros parágrafos, o romance de

Milton Hatoum, essa narrativa afirma-se “como uma busca não somente do tempo, mas

também do espaço perdido” (Poulet, 1992: 17), pois as cenas que se fixam na memória estão

estreitamente ligadas a lugares peculiares, no caso o “mundo até certo ponto único, exótico e

enigmático” de que fala Davi Arrigucci Jr. na apresentação do romance (Arrigucci Jr., 1989).

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165

Tal como no processo proustiano de busca do passado, é a partir do espaço que se reencontra

o tempo perdido e os personagens são associados ao espaço que lhe é peculiar. Porém, as

semelhanças ficam apenas no plano superficial, pois em Proust os lugares também estão

estreitamente ligados com as posições sociais que dividem a aristocracia decadente e a força

da burguesia, apresentando-se como autênticos campos de força a partir dos quais essas

classes demonstram seu poder.

Na busca da narradora terão papéis essenciais a recorrência às lembranças de

diversos personagens, que se tornam co-narradores, suas visões de mundo, sua ligação e culto

a certos objetos e, especialmente, sua experiência de viagem, que os coloca entre dois mundos

distintos.

Como se disse anteriormente, são também objetos e lugares que disparam a

recuperação da memória e possibilitam a narrativa coerência sobre o passado perdido.

Introduzido pelas expressivas reticências do trecho citado acima, que também são uma

espécie de portal para o passado, a narradora inicia um longo flashback, em que recordará a

infância com o irmão e a história trágica de Soraya Ângela, a menina aparentemente surda-

muda, neta da matriarca Emilie e filha de Samara Délia. Soraya, fruto de uma relação de sua

mãe com um pai nunca declarado e procurado de forma obsessiva pelos dois irmãos

“inominados”, será a prova viva, para esses irmãos, do erro materno e por isso vão perseguir

as duas sempre que possível. Isolada do entorno pela falta dos dois sentidos, a menina, como

se compensasse sua mudez e o estranhamento que causava nas crianças da vizinhança,

espalhava sua presença por todos os espaços da casa, perturbando e assustando as pessoas

com seu comportamento perverso com os animais: “Ela malinava com uma fúria que

realmente amedrontava, mas depois ria e aquietava e nos olhava com aqueles olhos graúdos e

escuros, como se algum prodígio fosse acontecer após aquele olhar” (RCO, p. 13). Se a falta

de sua voz marcava a menina como uma espécie de punição pelo “erro” da mãe, Soraya trata

de se inserir ostensivamente no espaço familiar, chamando a atenção para si pelos gritos dos

animais, isto é, pelos barulhos produzidos pelos outros, mas também por sua condição de

observadora obstinada: “Pouco a pouco ela foi ocupando o espaço da casa, atraindo os

olhares, não pelo movimento e sim pelo imobilismo do corpo” (RCO, p. 114). Por outro lado,

a menina desenvolve outras relações com o entorno, notadamente com as frutas e as flores:

“Permanecia um tempão a mirar a polpa desse coração de veludo que é o jambo; as papoulas,

as orquídeas e as flores ela cheirava demoradamente (...).” (RCO, p. 15). O único a ter alguma

atenção com Soraya era um dos tios, Hakim, que a levava às escondidas a passear pela cidade,

em trajetos durante os quais a menina expandia o universo restrito da casa e cujas

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166

experiências reproduzia durante os almoços em família: “(...) nada parecia escapar às suas

andanças, como se o olhar fosse suficiente para interpretar ou reproduzir o mundo.” (RCO, p.

18). Incorporando, por mímica, o que vê durante seus passeios, a menina cria um mundo

muito diferente daquele dos outros personagens a partir de sua própria experiência e

isolamento.

Por sua vez, Samara, a mãe, também é obrigada a viver isolada da família, ainda que

tenha a tênue defesa da mãe e a admiração do pai. Misteriosa, também criando seu próprio

mundo, ela ausenta-se regularmente sem que ninguém saiba aonde ou o que fora fazer,

praticamente obrigada a manter uma vida dupla, atraindo o comentário irônico dos dois

irmãos/inimigos, quando retorna à casa: “– De volta da morada clandestina...” (RCO, p. 19).

Porém, mais do que todos os outros, é a carismática matriarca, Emilie, que a

narradora busca, juntamente com o tempo e os lugares do passado, identificados plenamente

com essa figura: “Ninguém podia viver longe de Emilie, nem refutar suas manias.” (RCO, p.

21). Onde quer que essa personagem se situe, como veremos, até mesmo na cena trágica da

antecipação da morte de Soraya, ela se destaca do seu entorno, projeta sua figura marcante

sobre o cenário, afigurando-se tudo o mais sob uma mesma cor, e em primeiro plano apenas

Emilie e o vermelho do pequeno corpo estendido no asfalto: “Sob a luz intensa do sol todos

pareciam de bronze, apenas destoavam o florido da saia de Emilie e a mancha vermelha que

ainda se alastrava ao longo do lençol transformado em casulo” (RCO, p. 21).

Mesmo depois de morta, sua presença e importância são preservadas, pois ela é o

próprio espaço, reserva de memória afetiva: “porque tudo naquele espaço e nas pessoas que o

ocupavam ainda estava coberto pela sombra espessa de Emilie” (RCO, p. 30). É significativo

que essa mulher extravagante, que trata como um pequeno ídolo o irmão da narradora (RCO,

p. 23), identifique-se com o grande relógio negro da sala, assim como com a tartaruga Sálua e

outras relíquias de longa vida, pois ela incorpora o tempo e é a memória personificada, daí o

caráter ritualístico do ato rotineiro de dar corda ao velho objeto, revelando na cena sua

intimidade com ele e, como veremos depois, antecipando segredos:

(...) imersa na atmosfera que era só reverberação, ela abria a tampa de

cristal, procurava algo em algum recanto da caixa, e apalpando suas

paredes internas retirava uma chave, e então sua mão se perdia nas

vísceras metálicas, procurando o orifício, a fenda que se ajustaria a

chave, ali, bem no âmago da máquina. (RCO, p. 25)

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Justamente esse relógio, adquirido em uma negociação difícil e demorada, mas

movida pelo desejo obstinado de Emilie, revelar-se-á um mistério a ser desvelado mais tarde,

em razão do empenho que a personagem mostrara para possuí-lo. Tal como a reverberação na

atmosfera, a figura de Emilie, o centro em torno do qual todos gravitam, refletir-se-á em cada

relato, de certa forma magnetizando o narrador e seu interlocutor, atravessando todos os

discursos e resultando mais enigmática a cada acréscimo de visão.

2.2 O espaço romanesco de Hakim: a chave da memória

Algumas contavam as mesmas histórias, evocando

lembranças em voz alta, para que o passado não

morresse, e a origem de tudo (de uma vida, de um lugar,

de um tempo) fosse resgatada.

Milton Hatoum

Pela narrativa de Hakim, por sua vez informado por Hindié Conceição, saberemos

que Emilie, perturbada pela partida dos pais para a distante Amazônia, internara-se num

convento e só desistira depois que Emir, seu irmão, ameaçara suicidar-se. Demonstrando que

as lembranças estão fatalmente ligadas aos objetos ou lugares, explica-se no episódio a

obstinação de Emilie pelo grande relógio negro, pois havia um igual na sala da Vice-

Superiora do Convento em que estivera (RCO, p. 34). Desse modo, esse relógio marcará, para

sempre, “aquele momento diáfano de sua vida” (RCO, p. 34), cujas badaladas, aliadas ao

ribombar suave dos sinos da Igreja dos Remédios, já em Manaus, a faziam entrar em

suspenso: “Talvez por isso Emilie parava de viver cada vez que o eco quase imperceptível das

badaladas (...) pairava e desmanchava-se como uma nuvem sobre o pátio (...)” (RCO, p. 34).

Esse relógio, tal como a madalena de Em busca do tempo perdido, reveste-se do poder de

transportar quem está ligado intimamente a ele para outros tempos e lugares.

Através da palavra de Hakim, insinua-se o “fio sinuoso” do discurso da melhor

amiga de Emilie, Hindié Conceição, a narradora por excelência, “premida por uma vontade

tão grande de falar” (p.35) que mistura tempos e espaços em sua fala, evocando, por sua

estreita ligação com a narração, com a tradição de antigos narradores orais, tão presentes na

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cultura árabe. Essa mulher forte, tal como Emilie, é identificada e relembrada mais pelos

odores horríveis que exalava do que propriamente por sua personalidade: “Meu pai dizia que

era um cheiro mais enjoativo que o do gato maracajá” (p.37).

Em uma recordação de Hakim sobre um antigo Natal, em que o pai e Hindié

Conceição haviam entrado em choque por causa da matança de animais para o banquete,

veremos que o espaço romanesco também pode antecipar a tensão que se desencadeará a

seguir, oscilando em meio às brincadeiras, às comidas e a decoração, compondo “um cenário

colorido e cambiante como um caleidoscópio”, aproximando, pela justaposição de tantos

elementos e pessoas de origens diversas, a ceia religiosa de uma festa pagã (p.38). Assim

como as pessoas mostram na face as oscilações de humor, esse episódio demonstra que o

espaço, mais do que um mero cenário coadjuvante, ou simples moldura dos acontecimentos,

também participa ativamente da ação, compondo efeitos, contribuindo para o conjunto da

narrativa.

Extremamente perturbada pela partida do marido, o caos interior da personagem se

transfere para o espaço da Parisiense, misto ainda de casa e loja, em que se espalham os cacos

das imagens religiosas destroçadas na noite anterior, resultado do primeiro choque entre a

religião do esposo e a cristã de Emilie. Depois de uma intensa busca do marido pela cidade, a

empregada Anastácia Socorro encontra-o na Cidade Flutuante, conversando com amigos.

Esse refúgio do personagem em um lugar instável como a Cidade Flutuante, caótico

ajuntamento de palafitas às margens do Rio Negro, pode ser visto nesse episódio como

significativo de sua condição de estar entre vários mundos distintos: o mundo de sua religião

muçulmana, o mundo cristão de sua esposa, o Líbano distante e a Amazônia. Dessa maneira, a

resistência do personagem é colocar-se num lugar à parte, tão significativo do mundo que

adotara e, ao mesmo tempo, deslocado dele, à deriva, móvel, de certo modo um não-lugar,

apropriado para um viajante como ele. Entre sua casa e esse lugar que ocupa uma posição

espacial singular, há um dia inteiro de busca, uma distância bastante conveniente para dar

tempo para que a relação com a esposa se restabeleça. Como resultado dessa noite mal

dormida, desencadeia-se entre os dois esposos um jogo de esconder, em que cada um se

apodera de um objeto precioso ligado à religião do outro e o esconde.

Intrigado por uma inscrição em árabe que a mãe passa ao pai durante o episódio,

Hakim demonstra curiosidade pelo aprendizado da língua dos pais, que evoca, é claro, esse

mundo distante e nebuloso do oriente. É interessante que a aprendizagem dessa outra língua,

ligada mais ao passado que ao presente dos pais, começa por visitas aos “espaços recônditos”

da Parisiense, parcamente iluminados, “o corpo morto da arquitetura”, com uma enumeração

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exaustiva da rica coleção de objetos de variada procedência proporcionada pelo estoque da

loja (RCO, p. 51). Nada mais apropriado para ensinar essa língua restrita ao espaço da casa,

pois na escola e na cidade o idioma é outro; essa é uma língua fora de seu lugar, isolada do

chão a que está intimamente ligada, limitada pelo cruzamento de fronteiras, pertencente ao

“mundo ancestral onde tudo ou quase tudo girava ao redor de Trípoli, das montanhas, dos

cedros, das figueiras e parreiras, dos carneiros” (RCO, p. 52).

Tal como o umbral que abre as páginas do romance, será necessária uma mudança de

casa para que os mistérios cultivados por Emilie sejam pouco a pouco desvelados, ainda que

não partilhados por todos, já que Hakim busca avidamente esse mundo guardado em um baú:

“Mudar de casa traz revelações, deixa mistérios, e na passagem de um espaço a outro, algo se

desvenda e até mesmo o conteúdo de um pergaminho secreto pode tornar-se público” (p.52).

Depois de intensa busca no quarto dos pais, Hakim encontra, incrustada em um pequeno

pedaço de cedro, a chave que abre para ele esse mundo íntimo da personagem, protegido pela

arca. Porém, a possibilidade que essa chave representa de revelação dos pequenos segredos

que todos temos e alguns, como Emilie, cultivam com uma obstinação que apenas atrai mais a

curiosidade dos outros, faz com que o narrador Hakim hesite, mantenha o gesto de abrir em

suspenso, pois desvelar esse mundo, que contém uma vida, é abrir uma porta para o passado:

(...) violar aquela correspondência guardada dentro do relógio

implicava penetrar num tempo longe do presente. Brincava, talvez

sem saber, com esse jogo delicado e insensato que consiste em

desvendar o passado de alguém, percorrendo zonas desconhecidas do

tempo e do espaço (...). (RCO, p.54)

Aparece nessa cena tão sugestiva, novamente, a figura do umbral, que as pequenas

chaves possibilitam transpor, desta vez um portal para o passado de Emilie, num intrincado

jogo romanesco em que uma porta dá para um cômodo ou um objeto que, por sua vez, possui

outra porta que dá para os recônditos espaços dos personagens. Como só uma caixa de

segredos cuidadosamente guardada pode fazer, tal como uma arca de tesouro, o baú possui em

seu interior não só objetos diversos, mas acontecimentos distantes, o grande relógio negro,

que se revela um outro escaninho da alma de Emilie: “Numa manhã já distante da que eu

descobrira as chaves (...), tateando com os olhos os ângulos de penumbra, decidi abrir a tampa

de cristal, penetrar no fosso do relógio deitado, onde o disco dos ponteiros, os números, o

pêndulo, tudo estava coberto por objetos” (RCO, p.54).

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170

Numa relação de delicada e poética tessitura que só a ficção bem articulada

proporciona, a curiosidade que arrastou Hakim para essa busca obstinada e esse desvelamento

da intimidade da matriarca é a mesma que leva o leitor do romance a fazer associações, a

imiscuir-se nos segredos dos personagens, a montar o quebra-cabeças ao mesmo tempo em

que o personagem, uma tessitura que pode muito bem ser projetada no desenho das argolas

que ele encontra ali: “para mim, era uma espécie de entrelaçamento mágico, uma inexplicável

articulação que, ao ser manuseada, provoca curiosidade e espanto” (RCO, p. 55). A maneira

como Hakim lê a correspondência da mãe, escrita em árabe clássico, e por isso mesmo de

difícil entendimento, com intervalos temporais e lacunas semânticas, também pode sugerir

mais um aspecto essencial dessa narrativa e do leitor modelo que ela pressupõe: “A

descontinuidade da correspondência e a incompreensão de tantas frases me permitiam apenas

tatear zonas opacas de um monólogo, ou nem isso: uma meia voz, uma escrita embaçada, que

produzia um leitor hesitante” (RCO, p. 56). Cheia de lacunas, das quais algumas só serão

preenchidas aos poucos pela contribuição de cada narrador-personagem, a narrativa parece

projetar um leitor modelo que aceita com prazer o intrincado jogo romanesco cheio de elipses,

que faz algumas sugestões, construído com muitas idas e vindas temporais e, por isso mesmo,

que solicita a constante participação do receptor, assumindo-a mesmo como um componente

essencial no processo ficcional. Segundo Umberto Eco, o leitor modelo de uma história não se

confunde com o leitor empírico, pois este é um desconhecido que possui diferentes objetivos e

projeções e pode ler quando, como e onde quiser; o leitor modelo de uma narrativa seria,

então, aquele colaborador que a história “não só prevê, mas ainda procura criar” (Eco, 1999:

15). Dessa forma, o leitor modelo, que existe apenas no texto e é pressuposto por ele, é aquele

que aceita de bom grado as regras que a narrativa insinua, que atende ao pedido para que leia

o texto de certa forma e suspenda sua descrença durante sua inserção nesse mundo ficcional,

mergulhando nele sem distanciamento, utilizando-se de sua “enciclopédia” para preencher as

lacunas. Como mostra a leitura titubeante e, muitas vezes, intuitiva, de Hakim do texto em

uma língua que ele não domina totalmente, além da dificuldade que Emilie tem na “travessia”

entre sua língua natal e o português, a narrativa parece afirmar que a cumplicidade do leitor

pode ser a chave para vencer a distância entre o “idioma” a que ele está acostumado e as

regras próprias e internas da linguagem que este romance constrói.

Dessa forma, na fala de Hakim aparecerão novas contribuições para o desvelamento

da personalidade de Emilie, como sua longa correspondência com alguém que assina apenas

“V.B.”, e a menção à morte do irmão da matriarca, Emir, abrindo um vazio que será

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171

preenchido pela narrativa do fotógrafo alemão, Dorner, que “possuía (...) uma memória

invejável: todo um passado convivido com as pessoas da cidade e do seu país” (RCO, p. 59).

2.3 Dorner: a cidade filtrada pela lente de uma câmera

Caracterizado por Hakim como pessoa extremamente distraída, Dorner considera sua

câmera fotográfica como extensão de sua visão, a ponto de troçarem dele: “dizia-lhe,

troçando, que as lentes da Hassel, dos óculos e as pupilas azuladas de seus olhos formavam

um único sistema ótico” (RCO, p. 60). Como um típico personagem estrangeiro, ainda mais

destacado frente à comunidade de origem libanesa em torno da qual gira o romance, Dorner

vê a casa, a cidade e sua relação com a floresta em torno como o faria uma espécie de persona

satírica, com um discurso no qual acompanhamos tudo com o estranhamento do personagem:

“Fotografava Deus e o mundo nesta cidade corroída pela solidão e decadência. Muitas

pessoas queriam ser fotografadas, como se o tempo suspenso tivesse criado um pequeno

mundo de fantasmagorias, um mundo de imagens, desencantado (...).” (p.61).

Dorner, presente no lugar e na hora certos, exercitando seu importante papel de

narrador free lancer, é que irá testemunhar e fotografar pela última vez o irmão de Emilie,

Emir, antes que este se suicide no cais. Um imigrante diferente dos outros, pouco interessado

em enriquecer com as viagens pelo interior do Amazonas, Emir, para Dorner, é como os

narradores orais do norte da África, convencendo mais com a força da voz do que as palavras

proferidas, já que muitas frases soavam incompreensíveis aos interlocutores. Aos poucos,

Dorner desvela o segredo que abate o melancólico e desenraizado Emir, nas recordações de

seu último dia de vida: “(...) eu relembrava o rosto de Emir, a orquídea equilibrada entre os

dedos, o anel que um dia ele me mostrou com orgulho, era um regalo: memória de um amor

em Marselha” (p.63).

No discurso de Dorner, o desaparecimento de Emir soa como uma reverberação da

tênue existência do personagem, dissolvendo-o no dia chuvoso, tornando-o quase parte da

paisagem: “Eu já me afastava do cais, caminhando sobre a passarela flutuante, quando escutei

o apito, mais nítido, como se o som, estranho à silhueta branca, tivesse saído das brumas: um

assobio do espaço” (p.66). Personagem que, além de sua morte trágica, pouco contribui para a

ação, só restará de Emir a fotografia no coreto da praça pouco antes de morrer, com uma rara

orquídea vermelha na mão, prenunciando o desenlace da cena.

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172

Ao encontrar o marido de Emilie após a morte de Emir, é o próprio Dorner-narrador

que abre espaço para a fala desse viajante, transcrita pelo fotógrafo em 1929.

2.4 O espaço mutável do viajante

Por meio da fala do marido de Emilie, que não recebe um nome no romance,

conheceremos as cartas que um tio seu que viera para a Amazônia, Hanna, escrevia

regularmente aos parentes do Líbano. Semelhantes aos relatos dos viajantes estrangeiros que

percorriam todo o país nos primeiros séculos da história brasileira e construíam, mais do que

descreviam, um mundo maravilhoso, essas cartas falam não só de um outro mundo, mas

criam um lugar isolado, particularizado, atingido por aquele olhar revelador da narrativa de

viagens, cujo ponto central é a novidade do espaço descrito, abrindo horizontes para o leitor

distante: “Relatavam epidemias devastadoras, (...) homens que degustavam a carne de seus

semelhantes como se saboreassem rabo de carneiro, palácios com jardins esplêndidos (...).

Relatavam também os perigos que haviam enfrentado: rios de superfície tão vasta que

pareciam um espelho infinito” (RCO, p. 71).

Se, por um lado, os relatos de Hanna assustam pelo desmesurado das novidades que

veiculam, por outro suscitam a imaginação dos leitores a que se dirigem e, assim, de posse de

um retrato do tio, o marido de Emilie emigrara para a Amazônia distante, por orientação do

pai: “chegou a tua vez de enfrentar o oceano e alcançar o desconhecido, no outro lado da

terra” (RCO, p. 72).

Como acontece com todos os viajantes que buscam espaços desconhecidos e

potencialmente perigosos, a viagem de travessia é longa e cansativa, e à chegada os

navegantes assemelham-se a náufragos: “eu e os poucos aventureiros que me acompanhavam

parecíamos os únicos sobreviventes de uma catástrofe” (RCO, p. 72). Esse viajante-

aventureiro só irá ancorar verdadeiramente nesse espaço, em tudo grandioso, ao presenciar

um amanhecer que, significativamente, nunca mais terá o mesmo impacto sobre o

personagem:

Às cinco e meia tudo ainda era silencioso naquele mundo invisível;

em poucos minutos a claridade surgiu como uma revelação, mesclada

aos diversos matizes de vermelho, tal um tapete estendido no

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173

horizonte, de onde brotavam miríades de asas faiscantes: lâminas de

pérolas e rubis (...). (RCO, pp. 72-3)

A cena do amanhecer nunca mais será a mesma porque é como se um segredo

houvesse sido desvelado e o personagem tivesse experimentado uma espécie de epifania,

descortinando uma abertura para aquele mundo no qual chegava, depois da qual tudo passa a

ser absorvido com mais facilidade. Como o próprio narrador declara, ele fora tocado por

aquela “paisagem singular” (RCO, p.73), o que havia selado sua permanência. Ainda como

os viajantes que se deixaram seduzir pelo mundo fantástico que os relatos construíam, o

personagem verá que também fora enganado por aquelas histórias maravilhosas, pois os

palácios não existiam, haviam sido uma invenção do tio, acostumado a narrar para os

habitantes da aldeia distante de onde viera. A fragilidade da presença do homem em meio

àquela natureza logo se revela através de uma caminhada que atravessa rapidamente o curto

trajeto da cidade, composta de uns poucos casebres de madeira e menos ainda construções de

pedra, guiado pelo filho do tio Hanna: “Atravessamos a rua (e a cidade) após caminharmos

trezentos metros; e, por uma frágil ponte de madeira, cruzamos o igarapé, limite entre o

povoado e a floresta” (RCO, p. 74). Cruzando, nessa frágil ponte, uma fronteira entre dois

mundos distintos, os primos chegam a uma clareira e o personagem descobre que o cemitério

é mais vasto que a cidade, resultado da proliferação das febres, mas também um claro indício

de que o homem ainda era um intruso ali e não dominara totalmente a natureza. É interessante

notar, pela ótica desse narrador-viajante que todo aquele que emigra leva dentro de si os

lugares de origem, cria uma ponte entre aqueles e o destino: “em qualquer lugar do mundo as

águas que eles vêem ou pisam são também as do Mediterrâneo” (RCO, p. 76). Dessa forma, o

personagem reúne em sua fala a um só tempo sua experiência na pequena aldeia natal e

aquela adquirida nos percalços naturais da imigração para um país distante, tal como o

lavrador sedentário, que conhece as histórias e tradições de sua terra, e o marinheiro mercante,

que representa o narrador que vem de longe, de que fala Walter Benjamin (Benjamin, 1980:

58). É por isso que Emilie, sempre que é evocada por algum personagem, como se pode

constatar em vários desses relatos, parece trazer à sua volta a aura de um certo oriente

longínquo, ainda que adaptada plenamente ao ambiente adotado. Após viver algum tempo no

interior, num último impulso aventureiro, o viajante muda-se para Manaus e enamora-se de

Emilie.

Retornando a narrativa para Dorner, aparecerá em seu relato a referência ao livro

emblemático do Oriente, As mil e uma noites, que serve de ponte entre os dois amigos, mas

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174

também lança ecos na fala do marido de Emilie, estabelecendo um complexo jogo de

narrações entrelaçadas, aflorando, novamente, no discurso do personagem, a metaficção: “por

muito tempo acreditei no que ele me contava, mas aos poucos constatei que havia uma certa

alusão àquele livro (...), como se a voz da narradora ecoasse na voz do meu amigo” (RCO,

p.79). Como é comum no romance contemporâneo, reafirma-se, no trecho, a capacidade que o

gênero tem de simultaneamente narrar e discutir o modo como o faz.

2.5 A floresta, a cidade e o rio: conflitos

Hakim retoma a narrativa e por meio de seu relato comentará o conteúdo das cartas

que Dorner havia escrito da Europa. Esses comentários serão importantíssimos para a

narrativa porque revelam uma visão nada abonadora da relação da cidade – “uma perversão

urbana” (RCO, p.82) – com a floresta e o rio que a limitam, que oscila entre a indiferença, o

isolamento e o confronto: “A cidade e a floresta são dois cenários, duas mentiras separadas

pelo rio” (RCO, p. 82).

Apresentada por um estrangeiro, essa imagem da cidade como cenário, ou seja,

espaço artificialmente construído, simulacro de realidade mais que espaço humano,

complementa, com vigor a visão que o próprio Hakim, nascido ali, mostra em seu comentário,

ou seja, há uma clara sensação de estranhamento do habitante da cidade, espaço por

excelência da tentativa do ser humano de ordenar o caos da natureza, e a floresta, que no caso

deste romance não é mais um personagem aterrador – como em A selva, de Ferreira de Castro

–, mas um enigma que não se desvela, que é pressionado a recuar e logo retorna, lembrando a

fragilidade do homem frente a uma natureza cheia de desafios. Enquanto para Alberto,

personagem de A Selva, a floresta, no fim das contas, é a culpada pelo afloramento dos

instintos e o nivelamento entre os lúcidos e os de “alma primitiva”, para os personagens de

Hatoum, embora não consigam desvelar seus enigmas, ela é apenas o cenário que rodeia a

cidade, incompreendida e muitas vezes indesejada pelos habitantes, frequentemente apenas

um obstáculo a transpor no feroz crescimento urbano. Como veremos em Cinzas do Norte

(2005), o avanço destruidor da cidade sobre a floresta, representado pelo conjunto residencial

“Novo Eldorado”, será alvo de protesto por parte de Mundo com a obra de arte “Campo de

Cruzes”.

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175

É significativo no trecho Relato de um certo Oriente citado acima que Dorner relute

em aceitar o temor de Hakim à floresta, pois temendo-a, ela se transforma, numa “prisão

singular: aberta, mas unicamente para ela mesma” (RCO, p. 82), como acontece apenas com

os labirintos. Como uma ferida aberta numa clareira de floresta, isolada pelo rio enorme à

frente, a cidade configura-se na narrativa virtualmente como uma ilha isolada no tempo,

impondo desafios constantes a seus habitantes, daí que a travessia, a saída do labirinto, revele-

se árdua, pois “sair dessa cidade, afirma Dorner, “significa sair de um espaço, mas sobretudo

de um tempo” (RCO, p. 82). Semelhante a todo lugar isolado, a cidade vive de si mesma,

criando em torno de seus habitantes uma linha de isolamento que, ao mesmo tempo em que

protege dos perigos do desconhecido representado pelo que há além de suas muralhas, no caso

a floresta e o rio, também impede que trocas mais constantes com outros centros assegurem

uma visão mais ampla do mundo. Decorrente desse isolamento, a maneira que os habitantes

encontram para resistir a ele é o “gesto lento e o olhar perdido e descentrado” (RCO, p. 83),

de seres à parte do tempo.

É interessante observar que a narradora principal do relato, em trecho posterior do

romance, estranhe a “petrificação” de certos espaços no bairro de sua infância, a despeito do

tempo que passara desde que fora embora de Manaus. Seu estranhamento decorre apenas do

fato de que ela mudara e, consequentemente, sua relação com esses espaços também, embora

eles continuem os mesmos:

Menos de quinhentos metros separavam a casa onde nossa mãe

morava da de Emilie. Ao longo dessa breve caminhada, impressionou-

me encontrar certos espaços ainda intactos, petrificados no tempo,

como se nada de novo tivesse sido erigido. (RCO, p. 121)

Como indicação clara de que a mudança havia sido interna, a personagem descobrirá

mais adiante que, apesar de permanecerem os mesmos, esses espaços – o mais correto seria

dizer, a própria personagem – já não têm o mesmo viço de outrora e não só por causa do

tempo passado, mas pela consciência da narradora, que é outra, e os sinais do tempo morto se

inscrevem definitivamente no espaço:

Nada daquela época permanecia vivo na praça. Sim, os monumentos

eram os mesmos, mas o banco ocupado pelos irmãos gêmeos parecia

uma lápide abandonada. Ns árvores, no lago, na ponte e nos caminhos

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que circundam o espelho d´água, eu sentia falta da silhueta dos

animais e do seu alarido inconfundível. (RCO, p. 122)

Ao detectar esse estranhamento frente ao mesmo, a narrativa mostra que os lugares

são preservados associados estreitamente a determinados momentos de sua história. Como a

personagem descobrira nesse processo de arqueologia do espaço de infância perdido, sair da

cidade e do espaço-refúgio da casa, implica perder o contato com o passado, desvincular-se

do tempo próprio do lugar. Pode-se, é claro, “carregar” consigo as lembranças dos lugares,

mas paralisadas num ponto específico do tempo, marcado pelo envolvimento emocional do

personagem. Reveste-se de significado semelhante a essa visão a afirmação de Hakim sobre

as condições da casa após a morte de Emilie: “Tudo era tão diferente de hoje: a pedra da fonte

parecia pulsar de alva e porosa, e o cristal dos espelhos era tão polido que devolvia aos

homens algo mais que a repetição dos gestos” (RCO, p. 99).

Constatada essa mudança importante, em que a casa parece dormir, impregnada do

“perfume de um outro tempo, a infância” (RCO, p. 122), a narradora resolve perambular pela

cidade, lançando-se à aventura de percorrer espaços inexplorados, extrapolando na caminhada

os antigos limites que haviam lhe imposto. Se antes a cidade para ela restringia-se ao

perímetro do centro, nesse momento, já adulta, ela cruza decididamente a fronteira,

penetrando em um mundo desconhecido, ao mesmo tempo em que o espaço romanesco se

expande para a periferia, potencialmente perigosa, uma cidade proibida dentro da cidade

mapeada da infância: “sentia um pouco de temor e estranheza, e embora um abismo me

separasse daquele mundo, a estranheza era mútua, assim como a ameaça e o medo” (RCO, p.

123). Mesmo que essa estranheza incomode a narradora, que havia nascido ali, a cena é bem

um indício de que a cidade nunca é um “continuum” homogêneo, mas reúne espaços

permitidos e interditos e estes, como haviam falado à personagem durante sua infância,

podem incorporar o reino da morte, “povoado de seres de outro mundo” (RCO, p. 123), onde

se localiza o hospício e os possíveis monstros que o habitam. Se a cidade promove a

concentração, também é certo que entre seus vários “mundos” existem diferenças

hierárquicas, em alguns casos mesmo abismos, entre alguns deles.

Para desfazer os medos e as imagens fixadas na infância a respeito dessa face da

cidade, não basta apenas ficar adulta, mas é preciso também distanciar-se: “Foi preciso

distanciar-me de tudo e de todos para exorcizar essas quimeras, atravessar a ponte e alcançar

o espaço que nos era vedado” (RCO, p. 123). Só depois de a personagem percorrer uma

“trajetória tortuosa” e retornar ao centro por outro caminho, é que adquire sentido para ela

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uma afirmação do irmão e interlocutor: “Uma cidade não é a mesma cidade se vista de longe,

da água: não é sequer cidade: falta-lhe perspectiva, profundidade, traçado, e sobretudo

presença humana, o espaço vivo da cidade” (RCO, p. 124). Essa constatação é bem um

contraponto às descrições que os viajantes fizeram da Amazônia em seus relatos, pois em

quase todos a perspectiva é de quem observa a partir da água, o que muitas vezes levou a

visões equivocadas da região. Porém, mesmo que a personagem consiga desfazer-se de alguns

preconceitos, não consegue livrar-se da estranheza e, de volta ao porto, depara-se com uma

cidade modificada e novamente aparece em sua fala a significativa figura do “labirinto”,

ligado à sujeira e a multidão de vendedores, num espaço onde se apregoa de tudo: “uma praia

de imundícias, de restos de miséria humana, além do odor fétido de purulência viva exalando

da terra, do lodo, das entranhas das pedras e do interior das embarcações” (RCO, p.124). O

estranhamento se concretiza e personifica, por fim, num “arbusto humano”, um homem cheio

de animais e folhagens que atrai a curiosidade de todos à sua volta, uma multidão tão estranha

quanto aquela figura enigmática (RCO, p. 126).

Com seus personagens circunscritos ao centro, especialmente em torno do porto e da

Igreja dos Remédios, onde se fixam os imigrantes árabes, o romancista consegue incorporar

os espaços proibidos da cidade àqueles já mapeados antes por meio da perambulação de

reconhecimento da personagem que cumpre aí a importante função de mediadora social.

Dessa forma o autor utiliza com maestria essa oportunidade de ampliar a visão do tecido

urbano, expandindo o espaço romanesco e mostrando que ele é bem mais complexo e

intrincado do que o cenário da trama de primeiro plano possa insinuar. Frente a essa complexa

teia urbana, a um só tempo sedutora e opressora, o único modo de usufruí-la e entendê-la

completamente é afastar-se de sua influência para poder observá-la melhor; nesse sentido, o

irmão e interlocutor privilegiado da narradora personifica o filho que assume o risco de partir,

tal como a narradora – e o próprio autor – o fizera: “O meu querido teve de cruzar o oceano e

morar em outro continente para poder um dia regressar” (RCO, p. 137).

No romance seguinte do autor, Dois irmãos (2000a), aparecerá com toda a força a

importância do ato do cruzamento de fronteiras, como aquela que separa o interior e da

cidade, atravessando diferentes visões de mundo, o que é um ato irreversível, como descobre

a mãe cabocla de Nael, o narrador. De maneira semelhante, o narrador de Cinzas do Norte

(2005a) se sentirá incapaz de deixar a cidade, ainda que seja consciente do isolamento da

província, em contraste com a fuga de Mundo, o amigo artista atormentado pela forte

presença e a opressão do pai. De certa forma, a questão principal, que os narradores de Milton

Hatoum – no caso do Relato de um certo Oriente, a narradora principal – enfrentam, com

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algumas variações de romance para romance, é a dolorosa questão de deixar ou não a cidade

natal e buscar outras possibilidades em outros lugares. Por um lado eles se sentem

pressionados pela força da presença familiar – nos dois primeiros romances centrada na figura

da mãe e no último na do pai, e incomodados pelas idiossincrasias das relações sociais, mas

sempre tendo consciência da perda que a travessia acarreta. Tal como a narradora descobre e

o romance deixa entrever, de modo geral, os personagens de Milton Hatoum se debatem entre

cruzar ou não três fronteiras: entre o interior e a cidade, entre os bairros da cidade e, ainda,

entre a cidade – a província – e o espaço desconhecido de além de seus limites urbanos.

2.6. Emilie e sua casa: o espaço da matriarca

Se a questão de ficar e limitar-se ou libertar-se da cidade é o dilema principal de

muitos personagens de Milton Hatoum, estabelecendo sólido vínculo dos conflitos que esses

seres ficcionais enfrentam com o ambiente da ação, em Relato de um certo Oriente há o

agravante da irresistível onipresença de Emilie que é, virtualmente, o espaço e a força que

mantém a coesão da narrativa. Emilie, como mostram os relatos de Hakim e tantos outros,

impregna tudo à sua volta, tanto objetos como casas. Assim como na “Parisiense” Emilie

possuía um “espaço inviolável” (RCO, p. 52), inacessível a todos, que nada mais é que a

projeção de sua memória no espaço, esse privilégio será transferido para a casa nova, sob a

forma do baú em que ela guarda seus pertences íntimos: “Os objetos do esconderijo da

Parisiense ela arrumou no baú lacrado que carregou sozinha, caminhando ao longo dos dois

quarteirões que separam as casas” (RCO, p. 52). Como vimos, o segredo na era tão bem

guardado, pois Hakim violou esse isolamento de uma parte da vida da mãe, lendo sua

correspondência e tentando dar sentido ao passado cheio de lacunas.

Como matriarca que é, Emilie também faz a ponte entre os habitantes da casa e os

serviçais, como Anastácia Socorro, cuja relação com a família é uma variação estranha da

escravidão, como afirma Dorner: “A humilhação e a ameaça são o açoite; a comida e a

integração ilusória à família do senhor são as correntes e golilhas” (RCO, p. 88). Ainda que

essa relação “cordial” seja assimétrica, como se pode ver pelo trecho citado, a descrição dos

momentos que senhora e serva passam juntas mostram sua intensa ligação com o espaço, na

troca entre esse “certo oriente” de Emilie e o desenraizamento de Anastácia Socorro:

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Anastácia impressionava-se com a parreira sobre o pátio pequeno, o

telhado de folhas, suspenso, de onde brotavam cachos de uvas

minúsculas (...). As frutas e guloseimas eram proibidas às empregadas

(...). (RCO, p. 88)

O odor não estava ausente da conversa entre as duas mulheres. O

aroma das frutas do “sul” vaporava, se colocadas ao lado do cupuaçu

ou da graviola (...) “São frutas para saciar o olfato, não a fome”,

proferia Emilie. “Só os figos da minha infância me deixavam

estonteada desse jeito.” O aroma dos figos era a ponta de um novelo

de histórias narradas por minha mãe. (RCO, p. 89)

Tal como o narrador, Emilie nunca atravessara o rio, nunca morara no interior, mas

vivia entre dois mundos bem distintos, cuja ponte era a memória: “Manaus era o seu mundo

visível. O outro, latejava na sua memória” (RCO, p. 90). É interessante notar como Emilie, ao

narrar histórias de sua terra, era transportada diretamente a esse outro mundo invisível: “É

curioso, pois sem se dar conta, tua avó deixava escapar frases inteiras em árabe, e é provável

que nesses momentos ela estivesse muito longe de mim, de Anastácia, do sobrado e de

Manaus” (RCO, p. 90).

Porém, assim como Emilie transporta-se para o oriente e traz seu mundo por meio

das reminiscências, também Anastácia constrói todo um mundo amazônico para deleite dela e

de Hakim: “Alguma coisa imprecisa ou misteriosa na fala de Anastácia hipnotizava minha

mãe. (...) Imantada por uma voz melodiosa, quase encantada, Emilie maravilhava-se com a

descrição da trepadeira que espanta a inveja, das folhas malhadas de um tajá que reproduz a

fortuna de um homem (...)” (RCO, p. 91). Tal uma Scherazade amazônica, uma voz que

parece ecoar da própria floresta, a narrativa de Anastácia Socorro, durante horas, também tem

o sentido de suspender, por alguns momentos, sua condição ambígua na casa:

Ao contar histórias, sua vida parava para respirar; e aquela voz trazia

para dentro do sobrado, para dentro de mim e de Emilie, visões de um

mundo misterioso: não exatamente da floresta, mas o do imaginário de

uma mulher que falava para se poupar, que inventava para escapar ao

esforço físico, como se a fala permitisse a suspensão momentânea do

martírio. (RCO, pp.91-2)

Há que se notar dois detalhes importantes na fala do narrador: por um lado o

sacrifício do cotidiano suspenso pela narração; por outro o fato de que a narradora não

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consegue evocar a visão da floresta, mas seu próprio imaginário, sua visão de mundo.

Momentaneamente alçada à condição de narradora, captando a atenção de seus ouvintes, a

personagem logra escapar ao espaço estreito, mas também sedutor, da casa de Emilie,

evadindo-se por meio de seu relato. Anastácia Socorro, assim como a mãe de Nael em Dois

irmãos e Libânia, em Belém do Grão Pará, de Dalcídio Jurandir, são representantes ficcionais

de meninas vindas de famílias interioranas pobres, que eram “dadas” a famílias da cidade

apenas em troca de casa e comida para elas. De acordo com o que disse Dorner, a integração à

casa do senhor é quase ilusória, como veremos ao analisar o romance Dois irmãos, de Milton

Hatoum, onde a figura da agregada aparecerá num lugar de destaque, não pela diferença de

trato, que a sobrecarga de trabalhos é a mesma, mas como vítima de uma relação violenta da

qual lhe restou um filho.

Enquanto o marido personifica o narrador oral, que mescla histórias de sua própria

vida com episódios das Mil e uma noites, como nota Dorner (RCO, p. 79), Emilie multiplica-

se em várias facetas de acordo com os narradores que a evocam, como mostra Hakim: “cheia

de prazer, soberana, desprendida de tudo, ela podia eleger os caminhos por onde passa o

afeto: o olhar, o gesto e a fala” (RCO, p.103). Ela personifica, assim, os valores estáveis da

casa, carregada dos objetos impregnados de sua memória – sempre envolvidos por aquela

“luminosidade embaçada” (RCO, p. 115), indício de sua condição de relíquias do passado. No

final da vida, abatida pelas mortes de seu irmão Emir e do marido, além da partida de Hakim

e dos dois filhos adotados, a personagem se desvanece, entrando num limbo entre os dois

mundos nos quais sempre esteve dividida: “Ela também falava sozinha, conversava em língua

estranha até com os animais, e ultimamente despertava de madrugada e abria os janelões para

contemplar um horizonte irreal formado de aldeias incrustadas de montanhas de um país

longínquo” (RCO, p. 137). Identificada com tudo o que construíra, a morte da personagem

deixa um vazio atrás de si, o que implica a decrepitude desse espaço: “A casa está fechada e

deserta, o limo logo cobrirá a ardósia do pátio, um dia as trepadeiras vão tapar as venezianas,

os gradis, as gelosias e todas as frestas por onde o olhar contemplou o percurso solar e

percebeu a invasão da noite, precipitada e densa” (RCO, p. 155).

Frente à desordem provocada pela passagem do tempo, a única via de salvação é a

memória, que reúne os espaços do passado e do presente, anula as distâncias, seleciona e

privilegia certos vestígios, aproxima a Amazônia e o Oriente: “um corpo se inclina diante de

um templo, de um oráculo, de uma estátua ou de uma figura, e então todas as geografias

desaparecem ou confluem para a pedra negra que repousa no íntimo de cada um” (RCO, p.

159).

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181

3. Uma disputa de espaços em Dois irmãos

(...) se a vida é errante, sedentária é a memória, e,

embora deambulemos sem trégua, nossas lembranças,

fixas nos lugares que as deixamos, continuam levando

sua vida cotidiana (...).

Marcel Proust

Como vimos no primeiro capítulo, o espaço, na literatura de ficção, pode configurar-

se como uma importante chave para adentrar no labirinto narrativo, pois ele pode mostrar

indícios ou mostrar em sua conformação conflitos abertos ou apenas latentes entre os

personagens ou, ainda, contribuir para caracterizá-los (Lins, 1976:98), considerando-se

sempre seu entrelaçamento e projeção sobre o conjunto do mundo ficcional. Assim é que no

segundo romance do escritor amazonense Milton Hatoum, Dois irmãos (2000a), ambientado

na Manaus da década de 1950 e projetando-se até os anos 60 e 70, a casa se encontra dividida

pelas disputas travadas pelos dois irmãos que dão nome à obra, os quais se digladiam pelo

amor da mãe, pela atenção do pai e, sobretudo, pela constituição de suas próprias identidades.

Assim como a família se divide entre os irmãos, o próprio espaço físico expressa essa violenta

divisão.

O romance é narrado por um personagem plenamente envolvido, interessado no

destino dos gêmeos, ainda que não seja o protagonista, já que a ação está centrada no conflito

entre os dois irmãos. Claramente desenraizado, um agregado, assim como sua mãe, Nael, o

narrador, foi gerado por um encontro fortuito entre a empregada da casa – num tipo de relação

que beira a escravidão – e um dos dois irmãos. Como o leitor descobrirá ao longo da

narrativa, isso lhe confere uma posição privilegiada – mas não distanciada demais, pois ele

narra uma relação de constante competição entre dois seres e um deles pode ser seu pai – para

observar e narrar o conflito entre Omar e Yacub, sendo sua narrativa também uma busca por

espaço e identidade, dividido que está entre esses dois mundos. Sua estreita ligação emocional

com a matéria narrada com certeza reduz significativamente a distância com que narra os

acontecimentos, inserindo-o numa linha de grandes personagens-narradores, tais como o

Bentinho, de Dom Casmurro, ou o Paulo Honório, de São Bernardo. Porém, tal como esses

narradores em primeira pessoa citados, Nael também oscila entre a vontade de contar a

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182

história, um ato que requer e pressupõe alguma objetividade, e a proximidade com o enredo, o

significado íntimo do que ele desvela ao narrar. Trilhando caminhos semelhantes aos daqueles

dois personagens-narradores, como veremos, ao tentar desvelar o Outro, preenchendo as

lacunas dos relatos alheios, é que o eu se revela, recorrendo à narrativa como forma também

de libertação do peso do passado.

3.1 Um mundo feito de memória e lacunas, lembranças e relatos

A ação dos dois primeiros romances de Milton Hatoum situa-se num espaço

circunscrito, a Amazônia, mais especificamente Manaus, sendo que os personagens

concentram-se em ambientes interiores e o foco da narrativa recai no percurso que esses seres

precisam realizar em busca da demarcação de um território próprio e da construção de sua

identidade, apesar de eventualmente o enredo abrir-se e ocorrerem deslocamentos pela cidade

ou, ainda, ocorrerem viagens dos personagens, o que amplia o espaço da ação. Para ambos os

romances, é flagrante a importância da perspectiva de um narrador que busca reconstruir o

passado apoiando-se não só na memória própria ou alheia, mas, sobretudo, na reconstrução do

espaço da ação.

A epígrafe do romance Dois irmãos (Hatoum, 2000a), assim como aquela de Relato

de um certo oriente, não deixa dúvidas quanto à importância do espaço para a recuperação da

memória dos personagens e do tempo perdido:

A casa foi vendida com todas as lembranças

todos os móveis todos os pesadelos

todos os pecados cometidos ou em vias de cometer

a casa foi vendida com seu bater de portas

com seu vento encanado sua vista do mundo seus imponderáveis (...)

Carlos Drummond de Andrade

O poema de Drummond refere-se ao espaço – a casa - como uma forma de registro

de toda a memória familiar, tanto no que diz respeito aos fatos do passado que se quer

preservar (as lembranças), quanto ao que deve ser esquecido ou suprimido (pesadelos e

pecados), ou mesmo a importância das pequenas coisas, que não pode ser mensurada, os

imponderáveis. Porém, se nesse espaço houve sofrimento e dor, como deixa entrever o poeta,

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183

com ele também se foi o que pode ter havido de felicidade. Qualquer um que se aventure a

reconstituir esse passado, ainda que utilize as próprias lembranças e registre a memória dos

mais velhos, deve, necessariamente, recorrer ao espaço dessa vivência, pois é nele que ficou

registrada a passagem física desse tempo perdido: “Em seus mil alvéolos, o espaço retém o

tempo comprimido. O espaço serve para isso” (Bachelard, 1978:202). Entretanto, mesmo que

essa casa familiar tenha sido um símbolo de estabilidade e de concentração da memória, ao

evocarmos esse espaço afetivo, “acrescentamos valores de sonho; nunca somos verdadeiros

historiadores, somos sempre um pouco poetas e nossa emoção traduz apenas, quem sabe, a

poesia perdida” (Bachelard, 1978: 201).

Ao voltar ao passado familiar, buscando na narração uma maneira de articular os

relatos alheios e as próprias lembranças, o narrador procede como se estivesse compondo um

grande quebra-cabeça, sendo cada referência uma peça dessa montagem, ainda que a despeito

dos demais personagens. O relativo deslocamento desse narrador em relação ao núcleo da

família sobre a qual centra seu relato, por sua condição de filho de um dos gêmeos e não

reconhecido pelo pai, com a empregada da casa, confere uma importância especial ao seu

caráter de mediador do leitor. Ao mesmo tempo participante e observador, condição que lhe

confere uma perspectiva privilegiada, o narrador Nael reconstrói o passado da família de Zana

e Halim buscando reconstituir seu próprio passado, numa tentativa de compreender qual é seu

papel no seio dessa família tão estranha e ao mesmo tempo tão próxima.

Nesse périplo ao passado que o inquieta, o narrador utilizar-se-á tanto de sua própria

memória como das lembranças colhidas de Halim, seu avô, ou por meio das conversas

entreouvidas da família, buscando, tal como a narradora do Relato de um certo Oriente, dar

significado à dispersão de lembranças: “Desta vez Halim parecia baqueado. Não bebeu, não

queria falar. Contava esse e aquele caso, dos gêmeos, de sua vida, de Zana, e eu juntava os

cacos dispersos, tentando recompor a tela do passado” (DI, p. 134). Outra fonte utilizada na

construção de sua narrativa é a mãe que, por sua condição de agregada, transitava com

tranqüilidade por todos os ambientes da casa:

Vivia atenta aos movimentos dos gêmeos, escutava conversas,

rondava a intimidade de todos. Domingas tinha essa liberdade, porque

as refeições da família e o brilho da casa dependiam dela.

A minha história também depende dela, Domingas. (DI, p. 25)

A todas essas vozes que o ajudam a (re) compor uma visão do passado o narrador

acrescenta a sua própria visão:

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184

Mas muita coisa do que aconteceu eu mesmo vi, porque enxerguei de

fora aquele pequeno mundo. Sim, de fora e às vezes distante. Mas fui

o observador desse jogo e presenciei muitas cartadas, até o lance final.

(DI, p. 29)

Como o próprio narrador lembra sobre as histórias que ouve, o passado reconstruído

é esgarçado e cheio de lacunas que ele, o intérprete, preencherá: “Talvez por esquecimento,

ele omitiu algumas cenas esquisitas, mas a memória inventa, mesmo quando quer ser fiel ao

passado. (...) Omissões, lacunas, esquecimento” (DI, p. 90). O resultado desse alinhavado

promovido pelo narrador, no entanto, será uma versão pessoal e apaixonada, como ele mesmo

declara: “Nenhum passado é anônimo” (DI, p. 167). Na versão que se conta, sempre haverá a

interferência desse narrador interessado e mais do que envolvido – um importante

personagem de seu relato, um ser em busca de respostas para suas próprias inquietações.

Se o próprio título de Relato de um certo oriente (1989) remete à importância da

urdidura do espaço na narrativa, evocando nesse microcosmo de imigrantes reunidos em

Manaus um lugar distante e quase lendário, no romance Dois irmãos isso não acontece. Isso

leva a especular que o espaço é menos importante neste do que naquele romance, hipótese que

não se confirmará, como veremos. O espaço em ambas as narrativas se constrói a partir da

busca que seus narradores empreendem, reflete vivamente suas inquietações, construção que é

do discurso desses personagens interessados.

3.2 O lugar vital de cada um

Logo no começo da narrativa, uma breve antecipação mostra-nos Zana, a mãe dos

gêmeos, idosa e debilitada, e sua relação especial de apego com o espaço familiar, que

perdera por conta da irresponsabilidade de Omar: “Zana teve de deixar tudo: o bairro

portuário de Manaus, a rua em declive sombreada por mangueiras centenárias, o lugar que

para ela era tão vital quanto a Biblos de sua infância” (DI, p.11). O paralelo com Emilie, a

matriarca do Relato de um certo Oriente é inevitável, pois as duas personagens oscilam entre

dois mundos, o espaço adotado e aquele da infância no país distante. Tal como Emilie, há

diferenças claras nessas personagens entre a mulher apaixonada antes da chegada dos filhos e

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185

a matriarca que se configura depois, com claro prejuízo para a liberdade conjugal,

transformando-se ambas em mulheres de vida social intensa.

Com a chegada de Yaqub no aeroporto, de volta de breve mas fundamental passagem

pelo Líbano, o narrador abre uma série de flashes do caminho percorrido, desvelando aspectos

da cidade que ainda não haviam sido explorados no romance anterior, sempre ligados

afetivamente aos personagens: “Os barcos, a correria na praia quando o rio secava, os

passeios até o Careiro, no outro lado do rio Negro, de onde voltavam com cestas cheias de

frutas” (DI, p.17). Nesse flashback nota-se uma intensa ligação da população com a água dos

rios e dos igarapés que cortam o espaço urbano, sendo Manaus, na época ficcionalizada, ainda

uma cidade com ar interiorano cuja vida cultural girava principalmente em torno de quatro

lugares emblemáticos: a praça (que no romance é mencionada como a “praça das Acácias”), o

café, o cinema e o colégio, conforme análise de José Vicente de Souza Aguiar sobre esse

aspecto de Manaus nos anos de 1950 e 1960 (Aguiar, 2002).

Envolvendo alguns poucos lugares que os personagens percorrem e revelam na

cidade, o espaço romanesco acrescenta a esses lugares chave aqueles freqüentados pelos

imigrantes libaneses, especialmente por meio da trajetória de Halim, um mascate que, por isso

mesmo, percorre incessantemente os espaços do centro da cidade: o Mercado Municipal, o

Porto (Manaus Harbour), a Igreja e a Praça Nossa Senhora dos Remédios. Fora desse centro

de interesses, o que existe são os espaços interditos, os cabarés e os bares de má fama, onde

poucos personagens do núcleo central da trama se aventuram e onde Omar se esbalda com

outros arrivistas, bebidas e mulheres.

A chegada de um personagem à janela é uma excelente ocasião e um pretexto

bastante verossímil para estruturar e motivar uma visão ampla da cidade e sua história,

especialmente se este é um viajante recém chegado, embebendo-se e reencontrando-se com o

espaço da infância, como é o caso de Yaqub:

Apoiado no parapeito, Yaqub olhava os passantes que subiam a rua na

direção da Praça dos Remédios. Por ali circulavam carroças, um e

outro carro, cascalheiros tocando triângulos de ferro; na calçada,

cadeiras em meio círculo esperavam os moradores para a conversa do

anoitecer: no batente das janelas, tocos de velas iluminariam as noites

da cidade sem luz. (DI, p. 22)

Dessa maneira, o recurso permite ao romancista incorporar a história à matéria

romanesca, sem abdicar do estatuto da ficção, o que possibilita retomar esses dados da

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186

realidade com o intuito de demonstrar de que maneira os personagens são afetados pelos

acontecimentos, impelidos que são a responder aos desafios da época de escassez que a cidade

vivera durante a Segunda Grande Guerra: “Fora assim durante os anos da guerra: Manaus às

escuras, seus moradores acotovelando-se diante dos açougues e empórios, disputando um

naco de carne, um pacote de arroz, feijão, sal ou café” (DI, p. 22).

A diferença de comportamentos dos personagens também acrescenta novos recantos

de Manaus à cidade ficcional, pois se Yaqub, mesmo aos domingos (“quando os manauaras

saem ao sol e a cidade se concilia com o rio Negro”, DI, pp. 31-2), preferia ficar em casa

estudando, Omar, ainda um adolescente, é um notívago que freqüenta os salões da cidade,

expandindo, com sua impetuosidade, o mapa do espaço romanesco: “O outro, o Caçula,

exagerava as audácias juvenis: (...) saía para a noite, fardado, transgressor dos pés ao gogó,

rondando os salões da Maloca dos Bares, do Acapulco, do Cheick Clube e do Shangri-Lá”

(DI, p. 32).

Tal como a Belém de Dalcídio Jurandir, a cidade foi desde sempre um atrativo para

os habitantes do interior e num desses flashes que inserem a história na ficção o romance

mostra o crescimento urbano desordenado – um fator desagregador, como o final da narrativa

mostrará: “(Halim) Vendia de tudo um pouco aos moradores dos Educandos, um dos bairros

mais populosos de Manaus, que crescera muito com a chegada dos soldados da borracha (...).

Manaus cresceu assim: no tumulto de quem chega primeiro” (DI, p. 41). Na lógica da

narrativa, a partir da perspectiva de personagens que vivem a brutal transição, configura-se

uma visão desencantada de Manaus e sua história, como na fala sinistra de Yaqub, que soa

como profunda ironia no contexto de uma cidade sitiada por militares e inundada por mais

uma enchente, numa antecipação das profundas mudanças que a Zona Franca traria: “É que os

terrenos do centro pedem para ser ocupados”, sorriu Yaqub. “Manaus está pronta para

crescer” (DI, p. 196). Simbolicamente, essa cidade do passado, que ainda permite uma

convivência mais íntima entre pessoas tão diferentes como Halim e seus amigos peixeiros e

carregadores do porto, finda-se com a demolição das palafitas da Cidade Flutuante, um dos

lugares de refúgio de Halim (DI, p. 211).

É numa das fugas de Omar com uma de suas paixões, a fabulosa Pau-Mulato, que

Zana, desesperada, praticamente obriga Halim a procurá-lo juntamente com o narrador, uma

das raras vezes em que a narrativa abandona a circunscrição da cidade para se aventurar no

entorno, beirando rio e floresta. Nem por isso há um completo desvelamento desse além

fronteira, permanecendo o enigma do intrincado labirinto da floresta bem isolado do espaço

específico do romance: “Passamos semanas navegando em círculos. Saíamos de manhãzinha,

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187

contornávamos a ilha Marapatá, atravessávamos o paraná do Xiborena até a ilha

Merchanteria” (DI, p. 161).

No espaço ficcional dos romances de Milton Hatoum o interior, ainda que

mencionado e, eventualmente percorrido em suas bordas, não tem qualquer relevância para a

narrativa, exceto pelas trocas que possibilita com a cidade, pelos personagens migrantes que

terão importância para a história, como as empregadas e seus filhos. O romance parece

afirmar que os conflitos que a cidade de Manaus proporciona, com sua complexidade e muitas

nuanças, bastam para desvelar a psicologia dos personagens, pois a proximidade leva-os

frequentemente ao choque de interesses e buscas. Dessa forma, a cidade parece ilhada entre o

rio e a mata, incomunicável com o entorno ou indiferente a ele, com sua vida social

concentrada nas imediações do centro, pelo menos na época retratada na narrativa, como

mostra a fala de Halim, em busca de Omar: “Tantos pequenos povoados e vilas nas margens

de cada rio e seus afluentes... Mas fora daqui a vida vegeta, seria a morte para Omar, um

notívago nato” (DI, p. 156). Assim, o interior só existe para poucos personagens, um virtual

labirinto onde qualquer um pode se esconder para sempre (“mundo de ilhas, lagos, rios

intermináveis”, DI, p. 160), bem diferente do universo ficcional de Dalcídio Jurandir, por

exemplo, em que o personagem principal e todas as suas referências vêm do interior.

A obra de Dalcídio Jurandir enfatiza o fato de que a cidade se alimenta e se renova a

partir da contribuição do interior, pois os citadinos estão tão habituados ao ritmo urbano, tão

afeitos a suas preocupações cotidianas, que não são mais capazes de perceber as contradições

sociais tão evidentes nesse espaço de problemas concentrados, decorrendo daí a importância

do olhar curioso de Alfredo. Na obra de Hatoum, se há algum espaço além da cidade, os

únicos vestígios são eventuais incursões com objetivos específicos e a volta garantida, como

no episódio citado, ou ainda a presença de personagens como os amigos caboclos de Halim e

Domingas, uma garota índia “adotada” pela família, cujo retraimento e acomodação ao ritmo

de uma família que não é a sua são símbolos da incomunicabilidade entre os dois mundos.

Incapaz de dar vazão a vagos sonhos de liberdade, “enfeitiçada” pela família, como tantas

outras garotas na mesma situação, mesmo essa personagem, quando tenta recuperar algo do

passado, não consegue mais realizar a travessia entre os dois mundos de maneira tranqüila,

pois ao fazê-lo, desespera-se pela volta: “Minha mãe tinha medo de chegar tarde em Manaus.

Ou, quem sabe, medo de ficar ali para sempre, sôfrega, enredada em suas lembranças” (DI,

p.78).

Uma explicação possível para essas diferentes concepções entre Dalcídio Jurandir e

Milton Hatoum está na configuração espacial dos dois grandes centros amazônicos. As duas

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188

capitais mantêm intensa rede de trocas com o interior, mas enquanto Belém possui grande

malha viária a ligar a capital a vários municípios e outros estados, Manaus tem ligação por

terra com apenas três ou quatro cidades, sendo o restante ligado por linhas regulares de barcos

ou por avião. Outro fator, no caso de Manaus, foi a centralização das possibilidades de

desenvolvimento na capital, tornando a cidade pólo de decisiva atração para os habitantes do

interior, muitas vezes abandonado à própria sorte. Com a instituição da Zona Franca no final

dos anos de 1960, a atração radicalizou-se e a população de Manaus aumentou pelo menos

cinco vezes, criando problemas urbanos inexistentes na cidade ficcional dos romances de

Hatoum.

O ponto de vista do narrador sobre a cidade é bem o olhar que percorre o espaço em

transformação, não fornecendo explicações simplistas para a sua decadência, mas buscando

sentidos para as profundas alterações do espaço urbano frente aos aventureiros trazidos pelo

estabelecimento da Zona Franca. Uma figura emblemática da transformação que a cidade

sofre com o novo atrativo é o indiano Rochiran, um arrivista para quem tudo era provisório

(amizades, casas, cidades), apenas os negócios criavam raízes (DI, p. 226). Ele é a figura

chave, um símbolo mesmo da configuração do “progresso destruidor” de que fala Hatoum em

uma breve entrevista à Folha de S. Paulo (Lupinacci, 2003).

Depois da morte de Halim, os acontecimentos se precipitam, a casa começa a

desmoronar com a dor da esposa enlutada (DI, p. 220), esvaziando-se e envelhecendo (p.247),

e até mesmo objetos significativos para a narrativa perdem o viço, tal como a rede vermelha

que Omar usava na chegada das farras (DI, p. 243). A última nota da destruição do passado é

a transferência da casa de Zana para Rochiran, com a concordância de Yaqub, e sua

transformação na Casa Rochiran: “E o desenho sóbrio da fachada (...) foi tapado por um

ecletismo delirante. A fachada, que era razoável, tornou-se uma máscara de horror, e a idéia

que se faz de uma casa desfez-se em pouco tempo” (DI, p. 255).

Enquanto isso a cidade se transforma da noite para o dia com a chegada da Zona

Franca, para assombro dos próprios moradores: “Yaqub estava ali, naquela rua pacata e

sinuosa, tão anônimo quanto seus moradores assustados com a azáfama da cidade” (DI, p.

231). São sinais de que a cidade da infância desse narrador tão preocupado com o passado

acabara-se, assim como todo um modo de vida associado a ela, destituindo antigas elites e

abrindo espaço para os aventureiros dos novos tempos.

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3.3 Uma disputa do espaço familiar

Os irmãos gêmeos que dão o título ao romance competem entre si desde crianças,

uma disputa que transparece, expande-se e se projeta no espaço da casa de várias maneiras,

hierarquizando o espaço familiar, em lutas territoriais que exprimem embates por atenção e

pela construção de identidades e de diferenças. Trata-se, é claro, de um assunto bastante

explorado na literatura de todos os tempos e lugares. Afora o exemplo clássico de Esaú e

Jacó, de Machado de Assis, Hegel, em sua Estética, cita como exemplos dessas colisões

freqüentes entre irmãos as histórias de Caim e Abel, na Bíblia, de Selm, Rum e Chawer no

Schah-Named (primeiro épico persa), a hostilidade entre os filhos de Édipo (Hegel, 1999:

215). Se há uma só casa, um só espaço para dois irmãos que, fisicamente, são a mesma

pessoa, variações em torno do tema do duplo, todas as narrativas, mesmo a bíblica, parecem

pressupor que não haverá nem espaço nem atenção a serem distribuídos de modo suficiente e

igualitário entre os dois, o que instaura um conflito e transforma-os em competidores mortais,

frequentemente amando a mesma pessoa ou almejando as mesmas coisas, como é o caso de

Esaú e Jacó e Dois irmãos. Mais do que um ser amado, Flora, como seu nome indicia, em

Esaú e Jacó, é um campo de poder a ser disputado, um troféu, do mesmo modo que o

predomínio pelo qual lutam monarquistas e republicanos, não por acaso também os pólos a

partir dos quais os irmãos se digladiam. Já em Dois irmãos, onde os competidores são tão

iguais na aparência quanto desiguais no temperamento, como os gêmeos Omar e Yaqub,

Lívia, a garota cortejada pelos dois, não terá dúvida em escolher o mais estável dos deles.

No caso dos irmãos Yaqub e Omar, a colisão é o resultado de uma série de

circunstâncias, cada uma das quais agrava mais e mais a inimizade entre os dois. Nascidos

contra a vontade do pai, Halim, que preferiria ter a esposa só para si, os gêmeos chegam para

situar os pais em campos opostos, já que Zana apóia francamente Omar e seus desvarios,

enquanto Halim admira a inteligência e a disciplina de Yaqub, mas se mantém à parte, pouco

interfere na disputa, o que fará com que os gêmeos careçam sempre da atenção de um dos

pais, ainda que isso por si só não justifique o ódio que se constrói entre os dois. A diferença

radical de atitudes, a ousadia e a busca do risco por parte de Omar, por um lado, e a timidez e

o recolhimento de Yaqub, por outro, ainda crianças, demonstram que eles se afastam

paulatinamente, abrindo caminho para a competição aberta que se dará mais tarde.

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Semelhante à preferência da mãe, uma hierarquia rígida se expressa na casa familiar,

tanto na disposição espacial como na mesada, com os gêmeos sendo privilegiados em relação

a Rânia, a outra irmã, e também a Nael, que não questionam tal divisão:

Rânia significava muito mais do que eu, porém menos do que os

gêmeos. Por exemplo: eu dormia num quartinho construído no quintal,

fora dos limites da casa. Rânia dormia num pequeno aposento, só que

no andar superior. Os gêmeos dormiam em quartos semelhantes e

contíguos, com a mesma mobília; recebiam a mesma mesada, as

mesmas moedas, e ambos estudavam no colégio dos padres. Era um

privilégio; era também um transtorno. (DI, pp. 29-30)

Omar, por um lado, corteja a mãe e a irmã, numa relação que beira o incesto, e por

outro exibe-se e provoca constantemente o pai. Yaqub sente ciúmes da mãe, mas é incapaz de

lutar efetivamente por ela ou para despertar uma reação efetiva do pai a seu favor. Omar,

chamado de Caçula pelas mulheres da casa por ter nascido pouco depois de Yaqub, é

extremamente expansivo, audacioso nos mínimos gestos, enquanto Yaqub é naturalmente

retraído e receoso. Não é o caso de analisar aqui o desenvolvimento psicológico dos gêmeos

envolvidos nesse combate ou suas possíveis interpretações psicanalíticas, tais como um

sombrio complexo de Édipo que perturbaria Omar, movido que é por um narcisismo

exacerbado e dominado pelo princípio do prazer, tal como uma criança, derivando daí,

possivelmente, sua dificuldade em separar-se da mãe e amadurecer, como faz Yaqub. É tal a

complexidade da questão que ensejaria um outro trabalho, com base em conceitos teóricos

específicos. Seguindo os objetivos da tese, importa avaliar de que maneira a competição

travada duramente pelos gêmeos se projeta no ambiente e arquiteta determinada disposição

espacial, a qual por sua vez funciona no sentido de ajudar no processo de caracterização

desses personagens.

Essa disputa se expressa de forma clara na maneira em que cada um dos gêmeos

ocupa o espaço em torno, o que também reflete as estratégias utilizadas por esses personagens

na disputa que os move sub-repticiamente. Ocupando quartos contíguos, os gêmeos modelam

seu espaço particular de modos completamente diferentes. Por um lado, o quarto de Omar é

cheio de livros, garrafas, cinzeiros e troféus de suas conquistas amorosas, indiciando uma

tática que busca impregnar ao máximo todas as coisas com sua presença; por outro lado, o

quarto de Yaqub é despojado, “sem marcas ou entulho: abrigo de um corpo, nada mais”

(p.107), ou seja, tal como seu dono o projeta, é um espaço exclusivamente de passagem, de

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alguém que se prepara para outros vôos. Se Yaqub “era pouco mais que uma sombra

habitando um lugar” (DI, p. 44), já Omar era “presente demais: seu corpo estava ali,

dormindo no alpendre” (DI, p. 61). É significativo que a rede usada por esse gêmeo seja

vermelha, um indício claro de sua rebeldia, pois é ali que ele dorme após as noites de farra e

ali recebe o tratamento especial das mulheres da casa. Como Rânia, a irmã mais nova dos dois

percebe, os gêmeos são “uma réplica quase perfeita do outro, sem ser o outro” (DI, p. 21).

Assim, o espaço da ação expressa a natureza de seus ocupantes e presta-se a revelar as

diferentes atitudes e o caráter de cada um dos gêmeos frente à vida, em evidente função

caracterizadora dos personagens. Mas se esse espaço revelador apresenta-se pouco produtivo

para o desenrolar da narrativa, auxilia decisivamente a compor um cenário narrativo em que

os gêmeos se colocam em campos opostos desde crianças, fermentando uma inimizade tão

forte quanto a semelhança que os une. A conformação desses espaços mostra que os

personagens projetam ali suas próprias personalidades, convertendo a casa em um campo de

batalha, e explorar os significados das marcas impressas por esses personagens no ambiente

será como uma incursão por suas personalidades.

Um dos primeiros indícios dessas atitudes distintas que se expressam na ocupação do

espaço é expresso em uma fotografia contemplada por Yaqub: ele e o irmão, adolescentes,

estão sentados em um tronco que atravessa um igarapé. A expansão e o domínio de si, a

contenção e o medo estão expressos de maneira clara: apesar de ambos estarem rindo na

fotografia, as atitudes são bem diversas, pois Omar ri de maneira atrevida, com os braços

abertos e soltos perigosamente no vazio, enquanto Yaqub ri de maneira contida, as mãos

solidamente agarradas no tronco (DI, p.21). O primeiro amplia seu espaço o máximo possível,

enquanto o outro recolhe-se ao mínimo espaço que lhe cabe, prenunciando atitudes que vão se

alternar ao longo do romance.

Se Zana mostra uma clara preferência por Omar, ela tenta justificá-la com a

fragilidade desse gêmeo logo depois de nascido, ocasião a partir da qual ela se dedica mais a

ele que a Yaqub, ficando este aos cuidados de Domingas, a “cunhantã mirrada, meio escrava,

meio ama” (DI, p. 67). Configurando-se como uma virtual segunda mãe de Yaqub, Domingas

é o exemplo aqui da agregada que veio do interior, tal como vimos Anastácia Socorro em

Relato de um certo Oriente, sendo que, desta feita, a personagem tem uma relevância maior,

tanto por sua participação na vida familiar (sofrendo as violências decorrentes dessa

proximidade) quanto por ser mãe do narrador. Como o narrador mostra, essas duas mães

percorrem espaços distintos da cidade com seus filhos: enquanto Zana apresenta Omar a uma

intensa vida social, em clubes, circo, passeios de bonde, Domingas e Yaqub percorrem a

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192

cidade a pé, rodeando a área do porto e as praças do centro da cidade. Dessa forma, diferentes

cidades se configuram para cada um dos gêmeos, e novamente, o espaço romanesco

percorrido antecipa as futuras atitudes dos personagens, ajudando, dessa forma, a moldar suas

concepções de vida.

As reuniões sociais são ocasiões em que a narrativa mostra que o espaço inclui

alguns grupos e exclui outros, em que são encenadas as disputas de poder mais acirradas pelos

encontros e interações que promovem. Pode-se acrescentar que é nessas ocasiões,

especialmente aquelas que reúnem pessoas de diferentes classes sociais, que ocorrem o

entronamento, o brilho momentâneo de algum personagem, e a conseqüente destituição de

outro. É numa situação como essa – a projeção de um filme num sábado à tarde na casa de

uma vizinha – que Omar, irado por ciúmes de Lívia, uma garota da vizinhança, ataca Yaqub

com um caco de garrafa e este fica marcado por uma cicatriz, fato que ele nunca esquecerá

(DI, pp. 25-8), um acontecimento decisivo para a consolidação da inimizade entre eles. O fato

de Omar desfechar o golpe diferenciador em Yaqub justamente em uma reunião onde está

presente boa parte do bairro é altamente significativo: o ato perpetrado precisa de testemunhas

e o ritual de passagem e diferenciação precisa de um espaço público condizente com a

importância da humilhação. A cicatriz, nesse caso, assume o caráter de símbolo de identidade,

de marca ou diferença entre os irmãos, além de caracterizar também o ritual de passagem para

ambos, um gesto claro de Omar na busca de separá-los definitivamente, sendo que o caco de

garrafa usado nessa ação violenta também adquire status de objeto ritual, um instrumento de

expulsão e distinção.

3.4 A escolha de Zana

Logo após esse evento, os pais decidem separar os irmãos para evitar um desfecho

pior para a rixa que se delineava, sendo que Yaqub é escolhido por Zana para partir para o

Líbano (DI, p. 28): “Halim queria mandar os dois para o sul do Líbano. Zana relutou, e

conseguiu persuadir o marido a mandar apenas Yaqub. Durante anos Omar foi tratado como

filho único, o único menino” (DI, p. 15). A viagem de Yaqub, planejada pelos pais para

apagar o ódio entre os dois, longe de amenizar as diferenças, irá acirrar o retraimento desse

gêmeo e proporcionar a oportunidade para que Omar exercite o pleno domínio da casa dos

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pais, como declara o narrador: “Na minha mente, a imagem de Yaqub era desenhada pelo

corpo e pela voz de Omar. Neste habitavam os gêmeos, porque Omar sempre esteve por ali,

expandindo sua presença na casa para apagar a existência de Yaqub” (DI, p. 62). O único a

impor algum limite a Omar é Halim, o pai, que é vencido, no entanto, pela paixão exacerbada

pela esposa e pela proteção que Zana devota a esse filho. Dessa maneira, mesmo afastados, a

rivalidade entre os irmãos não será esquecida por eles, entrando apenas numa fase de

“fermentação”. Após cinco anos na terra natal de seus pais, Yaqub volta ainda mais recolhido

para Manaus, sentindo que sua convivência familiar fora interrompida, e seu tempo de

infância, seu espaço-refúgio, havia sido tomado por Omar: “La, não, mama”, disse ele, sem

tirar os olhos da paisagem da infância, de alguma coisa interrompida antes do tempo,

bruscamente” (DI, p. 17).

Nesse primeiro momento, Yaqub, empurrado a contragosto para um espaço-

incógnita, que se revelará um espaço-vertigem, parece levar desvantagem nessa incessante

disputa por espaços, pois é sumariamente afastado de sua família. No entanto, sua estratégia

ao voltar a Manaus será isolar-se em seu próprio mundo, aproveitar-se de seu talento para a

matemática, destacando-se na escola e, posteriormente, viajando para São Paulo a fim de

completar os estudos: “Trancava-se no quarto, o egoísta radical, e vivia o mundo dele, e de

ninguém mais. O pastor, o aldeão apavorado na cidade? Talvez isso, ou pouco mais: o

montanhês rústico que urdia um futuro brilhante” (DI, p. 32). Um conselho providencial do

professor de matemática, que muito o admirava e a quem Omar humilhara, impulsiona Yaqub

para longe do irmão e da província: “Se ficares aqui serás derrotado pela província e devorado

pelo teu irmão” (DI, p. 41). Novamente um personagem de Milton Hatoum é colocado frente

ao desafio de afastar-se da cidade para amadurecer ou ficar e conformar-se a ser a sombra do

irmão. Longe de significar uma desistência de lutar com o irmão, ou covardia frente aos seus

arroubos violentos, essa retirada revelar-se-á como gesto de ousadia de Yaqub e uma forma

estratégica de reunir forças para o encontro decisivo, o que não passa despercebido por Omar:

Ele foi esquecido, por uma vez Omar dormira sem a proteção das duas

mulheres. (...) Estava atento aos movimentos da mãe, que só tinha

olhos para o viajante. (...) O Caçula não moveu uma palha: continuou

sentado à mesa (...), o olhar desviando furtivamente para o rosto do

irmão. Sofria com a decisão de Yaqub. Ele, o Caçula, ia permanecer

ali, ia reinar em casa, nas ruas, na cidade, mas o outro tivera a

coragem de partir. O destemido, o indômito na infância estava

murcho, ferido. (DI, pp. 42-3)

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Omar, o Caçula, domina plenamente os espaços imediatos (a casa, as ruas, a cidade)

por suas atitudes ousadas, mas é Yaqub que tem a coragem de cortar seu cordão umbilical e

partir para o desconhecido, enfrentar o mundo longe da proteção dos pais, recusando até

mesmo qualquer ajuda financeira. Na partida de Yaqub, o narrador revela o pouco espaço

destinado a este gêmeo em sua casa: “Era um pouco mais do que uma sombra habitando um

lugar. Deixou na casa a lembrança forte de duas cenas ousadas: o desfile com farda de gala e

o encontro com a mulher que ele amava.” (p.44-5).

Solidamente estabelecido como engenheiro em São Paulo, vestígios da prosperidade

de Yaqub começam a aparecer em Manaus, para inveja de Omar. Fotografias dos sucessivos

progressos de Yaqub chegam às mãos de Zana, que as exibe, orgulhosa, aos visitantes. Porém,

a distância de Yaqub não impede que o narrador perceba, em sua narração retrospectiva, que

sob essas manifestações havia um gesto calculado: “Um outro Yaqub, usando a máscara do

que havia de mais moderno no outro lado do Brasil. Ele se sofisticava, preparando-se para dar

o bote: minhoca que se quer serpente, algo assim. Conseguiu. Deslizou em silêncio sobre a

folhagem” (DI, p.61). A imagem utilizada (a “minhoca que se quer serpente”) torna-se

bastante significativa do caráter de Yaqub, já que esse gêmeo, por seu próprio temperamento

retraído, não teria a menor chance num duelo aberto com Omar, e sua estratégia deve ser,

necessariamente, sub-reptícia. Como mostrara desde criança e a imagem utilizada pelo

narrador reforça, Yaqub aparentava um recuo covarde quando, na verdade, estava reunindo

forças, movendo-se decisiva e ardilosamente rumo aos seus objetivos. Enquanto Omar, um ser

que se poderia dizer “solar”, expõe-se constantemente nos espaços abertos e expressa

claramente sua aversão ao irmão (DI, p. 62), Yaqub era o que se pode chamar “noturno”,

sorrateiro, “um mistério e tanto: um ser calado que nunca pensava em voz alta” (DI, p. 61).

Um paralelo para as imagens utilizadas para caracterizar Yaqub poderia ser aquela que o

narrador emprega ao se referir a um “olheiro” contratado por Zana para espionar Omar:

“Zanuri era um assim: camuflado, cobra papagaio enroscada em folhagem escura” (DI, p.

141). Ou mesmo, ainda, a maneira como em episódio posterior o negociante Rochiran se

aproxima da família e se apropria da casa: “(...) um homem encapotado parou diante da

vitrine, observou o interior da loja iluminado e entrou lentamente, deixando um rastro de lama

no chão. Era Rochiran” (DI, p.252). A lama que acompanha o personagem também é aquela

que o animal que rasteja deixa em seu caminho, e nas imagens utilizadas para caracterizar

esses personagens ou o tipo de estratégia utilizada por eles, ocorre uma associação clara com

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195

seu caráter dissimulado. Porém, mais do que radicalmente opostos, as características desses

irmãos parecem ser complementares, como a conclusão do romance deixa entrever.

Yaqub, depois de visitar Manaus e brigar novamente por causa do irmão, decide

ajudar a família, às voltas com a permanente crise que se abate sobre a cidade, tão distante do

desenvolvimentismo reinante no país com a inauguração de Brasília (DI, p. 128). Considerado

o contexto desse acontecimento, a reforma da casa e da loja familiar, às custas da ajuda

financeira de Yaqub (DI, p. 128-30), assume o aspecto simbólico de reapropriação dos

espaços que lhe foram negados (especialmente a casa como refúgio da infância), uma espécie

de vingança contra seu exílio forçado no Líbano e os amplos espaços franqueados aos abusos

de Omar sob a proteção da mãe e a resistência indecisa do pai. Omar, como forma de resistir

ao gesto ambivalente de irmão, o inimigo eleito, recusa qualquer interferência no espaço de

seu quarto, único aposento a ficar intacto: “Omar desprezou a reforma da casa e da loja.

Proibiu que pintassem seu quarto, privou-se de qualquer sinal de conforto material que viesse

do irmão” (DI, p. 131). Entrincheirado simbolicamente no quarto, transformado em refúgio e

fortaleza, Omar defende seu espaço particular das intervenções dessa retomada promovida

pelo irmão, ainda que, de acordo com seu comportamento oportunista, não recuse regulares

ajudas financeiras oriundas do dinheiro de Yaqub, mas intermediadas por Rânia ou a mãe. Até

mesmo os aposentos de Nael e sua mãe, Domingas, no fundo do quintal, são reformados com

essa ajuda providencial (DI, pp. 129-30). Após essa reforma, Yaqub, em outra viagem a

Manaus, pode voltar a se sentir como filho na casa dos pais e não como o hóspede de suas

primeiras visitas (DI, p. 195), apesar de manter-se frio com a mãe que, afinal de contas,

privilegia o irmão desordeiro.

É interessante observar que, como saída para o seu temperamento retraído e a

competitiva agressividade do irmão, Yaqub busca o afastamento da família para amadurecer e

armar-se para a luta. Até mesmo o casamento com Lívia (que a mãe, por ciúmes,

provavelmente, faria tudo para impedir), é realizado longe de todos, de modo que não há a

menor possibilidade de intervenção familiar em seus assuntos. Seu ritual de passagem para a

vida adulta, iniciado com a viagem para o Líbano, completa-se com a viagem para São Paulo,

um espaço-incógnita que ele não hesita em buscar – uma travessia que ele anseia a fim de

preparar-se para a vingança e o enfrentamento que se completariam depois. A vingança que

Yaqub arma para Omar depois que a mão deles morre deixa entrever que sua passagem, que

implica amadurecimento, e o distanciamento não estavam completos, e sua ligação com a

infância perdida para o irmão – expressa no próprio espaço que Omar conquistou – precisava

ser recuperada.

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Por outro lado, todas as fugas que Omar, o Caçula mimado pelas mulheres,

empreende, circunscrevem-se à área próxima a Manaus, ainda que fosse muito fácil para ele

desaparecer no meio da amplidão das distâncias amazônicas. É como se ele receasse afastar-

se demasiado do espaço afetivo e familiar e assumir a responsabilidade pela própria vida,

como se pedisse à mãe que o encontrasse e o trouxesse de volta para a sua área de influência e

proteção. Por seu turno, Zana sabota qualquer tentativa de emancipação do filho, empurrando-

o, com isso, para uma vida de dissipação que o levará ao completo desespero e alheamento.

Entre os dois irmãos, iguais apenas no físico, o medo de assumir a vida adulta e todas as

vicissitudes que a decisão acarreta, ficou, paradoxalmente, para o que aparentava mais

coragem: “No fundo, Omar era cúmplice de sua própria fraqueza, de uma escolha mais

poderosa do que ele” (DI, p.178).

No final do romance, Yaqub consegue completar sua vingança ao fazer com que

Omar seja condenado por agressão e passe uma temporada na penitenciária, depois de ser

surrado pela polícia numa praça. O grande e ousado aventureiro, protegido pelo amor doentio

e ambivalente da mãe, aquele que espalhara suas marcas e seu domínio por toda a cidade,

encontrou finalmente os limites que sempre procurara e o espaço para expiar suas culpas.

Após algum tempo na cadeia, Omar é solto, mas nunca mais voltará a ser o mesmo dominador

e aventureiro de antes. Sem o apoio da mãe e sem ter poder para enfrentar o irmão, é natural

que perca o rumo e fique à deriva: “Omar titubeou. Olhou para mim, emudecido. Assim ficou

por um tempo, o olhar cortando a chuva e a janela, para além de qualquer ângulo ou ponto

fixo. Era um olhar à deriva. Depois recuou lentamente, deu as costas e foi embora” (DI, p.

266).

Em seu olhar inquiridor para o passado, o narrador conclui melancolicamente que

ambos os irmãos se equipararam nos males e sofrimentos que causaram, como se também

concluísse que não valia a pena ser filho de nenhum dos dois personagens (DI, pp. 263-4).

3.5 Enquanto isso, o narrador empreende sua própria busca...

O narrador, cuja perspectiva, como se disse antes, é essencial para o desvelamento

dos sentidos do espaço nesse romance, ao narrar o passado da família de Zana e Halim,

também empreende uma busca pessoal por respostas para suas inquietações. É essa busca e a

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197

perspectiva a partir da qual se narram seus desdobramentos que determinam a matéria da

narrativa, já que qualquer mudança no ponto de vista alteraria o próprio rumo do romance.

Filho da índia agregada à família, Domingas, e de um dos gêmeos, o narrador Nael

possui uma posição privilegiada para articular esse passado buscando seu próprio lugar

naquela família, simultaneamente, tão estranha e tão próxima. Porém, por seu interesse em

desvelar o passado de uma família que também é a sua, o narrador empreende a sua própria

seleção de possíveis focos de atenção. Ou seja, como ele narra retrospectivamente, sua

perspectiva é a de quem já sabe o desenlace dos acontecimentos, e o que foi selecionado é o

que interessa a ele como elemento significativo para desvendar esse passado. Assim, Nael é o

guia do leitor nesse périplo pelo passado da família, configurando-se, também, como uma

possível ponte entre esses dois mundos tão diferentes e que se cruzam na casa de Zana e

Halim: os desenraizados do Oriente (o casal de libaneses e seus filhos) e os desterrados em

seu próprio meio, com status ambíguo (Domingas e seu filho). O lugar de Nael é a fronteira

que divide os dois mundos configurados no romance, posição que determina a maneira como

ele vê o que está a sua volta.

Durante boa parte do romance o leitor desconhece a identidade do narrador, assim

como o próprio personagem desconhece sua origem e pouco sabe de si mesmo, o que implica

que narrador e leitor vão construindo pouco a pouco um lugar e um sentido para esse

personagem enigmático: “Eu não sabia nada de mim, como vim ao mundo, de onde tinha

vindo. (...) Minha infância sem nenhum sinal de origem. É como esquecer uma criança dentro

de um barco num rio deserto, até que uma das margens a acolhe” (DI, p. 73). A ressonância

da imagem utilizada lembra imediatamente a história de Moisés, recolhido das águas por uma

princesa egípcia e criado como príncipe no palácio do faraó. Como Moisés no episódio

bíblico, a narrativa parece levantar a hipótese de que o narrador pode tentar pacificar as duas

margens, as duas faces em conflito daquela família. No entanto, no caso desse personagem,

não é possível qualquer adequação às margens disponíveis (o mundo indígena perdido da mãe

e o distante mundo do pai), como se vê ao longo do romance, e seu relato será, então, a busca

por uma identidade, por um sentido de lugar ou de acolhida. Nesse sentido, Nael encarna

aquele personagem em cujo destino se cruzam princípios ou posições contrárias, aquela figura

essencial para o romance de que nos fala Lukács:

Trata-se apenas de encontrar aquela figura central em cujo destino se

cruzem os extremos essenciais do mundo representado no romance,

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aquela figura em torno da qual se pode construir assim todo um

mundo, na totalidade das suas vivas contradições. (Lukács, 1965:78)

A imagem espacial utilizada também representa sua situação, uma criança entre dois

mundos – as margens do rio deserto – e é bastante significativa sobre a posição que ele ocupa

na casa em que nasceu e cresceu: um filho da empregada com um dos patrões, um pária que

não é índio, como sua mãe, nem pertence de todo ao oriente distante representado por seu pai,

um dos gêmeos. Longe de conformar-se com essa origem nebulosa, o personagem busca, por

meio de seu relato, uma identidade, e só aos poucos se permite falar de si mesmo, sobre sua

origem, da posição ocupada por ele junto aos outros personagens no esquema da ação narrada,

as razões para empreender sua busca e essa narrativa.

Desde as primeiras páginas do romance, a posição desse narrador-detetive em busca

do passado se expressa na maneira como ele se coloca à parte do pequeno mundo que

pretende reconstruir, como foi citado anteriormente (DI, p. 29). Na hierarquia familiar, para

Zana, a dona da casa, ele era quase invisível, existindo apenas como rastro de seus filhos

gêmeos (DI, p. 35). Apenas Halim, seu avô, parece ter algum carinho e atenção para Nael, e

se constitui em uma das vozes constantes em seu relato. Para que haja narrativa e

distanciamento do passado daquela família, que também é a sua, é necessário o passar do

tempo:

Naquela época, tentei, em vão, escrever outras linhas. Mas as palavras

parecem esperar a morte e o esquecimento; permanecem soterradas,

petrificadas, em estado latente, para depois, em lenta combustão,

acenderem em nós o desejo de contar passagens que o tempo dissipou.

(...) Só o tempo transforma nossos sentimentos em palavras mais

verdadeiras, disse Halim (...). (DI, p. 244-5)

Ainda que o leitor seja conduzido por esse narrador-personagem, ou seja, nós só

chegamos a saber o que ele queria que soubéssemos, podemos vislumbrar toda a sua vida se

visualizamos o relato como um todo. A escolha dessa perspectiva é crucial para o conjunto da

narrativa, pois só esse personagem poderia tentar descrever de fora esses dois mundos, já que

estava dividido entre eles.

Considerando essa posição, é natural que o narrador, ao lembrar do lugar em que sua

mãe vivera depois de ter ficado órfã (DI, p. 179), refira-se a esse espaço como um cativeiro e

o relacione ao cemitério indígena tragado pela cidade. A referência ao cemitério indígena em

que fora construída uma praça é digno de nota, já que essa é uma forma de apropriação e

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símbolo da maneira como os índios foram tratados pelos europeus não só na cidade de

Manaus, mas também em todo o país, uma relação de degradação retratada na condição que

Domingas, a mãe de Nael, possui na casa de Zana. Ela não é nem empregada, pois não possui

salário, nem tampouco parente, pois não usufrui de qualquer regalia. Desconsiderar um

espaço sagrado da cultura perdedora e sobrepor um símbolo da cidade por excelência – a

praça – só faz marcar definitivamente a posse e relegar o Outro à periferia, à marginalidade e

à mendicância.

Em um episódio bastante esclarecedor, Nael conta sobre suas saídas pela cidade de

Manaus aos domingos, em seus raros momentos de flanêur, em que narrativa e narrador se

abrem para olhar a cidade. No capítulo 4, o narrador sai pela cidade em um desses domingos e

seus olhos vão desenhando um mapa da cidade no qual ressalta a face anfíbia de Manaus, com

as palafitas e seus habitantes como cenário:

Via um outro mundo naqueles recantos, a cidade que não vemos, ou

não queremos ver. Um mundo do escondido, ocultado, cheio de seres

que improvisavam tudo para sobreviver, alguns vegetando, feito a

cachorrada esquálida que rondava os pilares das palafitas (DI, p. 81).

A passagem mostra um estranhamento muito semelhante à que a narradora de Relato

de um certo Oriente sente em sua incursão pelo mesmo caminho, revelando afinidades

ficcionais entre os dois mundos que esses romances constroem, além de mostrar uma clara

dissensão entre o centro e esse bairro bem mais pobre e sem estrutura, separado pelo igarapé.

Sem a obsessiva preocupação política de mostrar os conchavos da elite de Manaus,

como acontece em A resistível ascensão do Boto Tucuxi (1982), de Márcio Souza, o que

emerge dessa incursão do personagem pelo espaço urbano são os personagens humildes e

anônimos que constroem a cidade com seu trabalho, sua forma de moradia, como se as

vísceras que espalham seu cheiro pelo igarapé fossem os do próprio espaço urbano – a cidade

expondo suas entranhas para que os olhos do narrador a perscrutem e atribuam sentidos para a

sua conformação:

No meio da travessia já se sentia o cheiro de miúdos e vísceras de boi.

Cheiro de entranhas. Os catraieiros remavam lentamente, as canoas

emparelhadas pareciam um réptil imenso que se aproximava da

margem. Quando atracavam, os bucheiros descarregavam caixas e

tabuleiros cheios de vísceras. Comprava os miúdos para Zana, e o

cheiro forte, os milhares de moscas, tudo aquilo me enfastiava (...).

(DI, p. 81).

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Nesse mundo aberto, amplo, em que a perspectiva do narrador mistura seres, sons e

cheiros, num entrecruzamento sinestésico bastante revelador, nessa parte da cidade que não é

a área de circunscrição do personagem, é natural que a comparação com a imagem do réptil

compareça ao seu enunciado, pois comparações e metáforas são essenciais para quem se

depara com o novo.

Imerso num mundo desconhecido, é essencial que o narrador nomeie o que estranha

e, assim fazendo, contenha o excesso daquilo que seus sentidos apreendem, demonstrando

com esse recurso que as comparações e a metáfora são típicas da fronteira entre mundos,

sendo que, ao ultrapassá-la, esse recurso quase que desaparece. Ou seja, “a fronteira foi

cruzada e a língua imediatamente sentiu isso” (Moretti, 2003:94), demonstrando já sua

adaptação à nova situação e olhar ainda atento, mas agora a partir de dentro.

No espaço físico da família de Zana, ele ocupa um local afastado da casa principal,

com sua mãe, uma espécie de edícula em condições precárias de manutenção (DI, p.29), que

mais tarde vamos saber que era úmida, o que o impedia de estudar nos dias de chuva (DI, p.

129). O interior da casa estava aberto para ele, podia comer e beber o mesmo que a família,

mas sua vida era um sem fim de tarefas, o que, ainda assim, não o impedia de bisbilhotar tudo

o que pudesse, uma característica de Nael que será essencial para o futuro narrador (DI, p.

90). Se, por vezes, o personagem revolta-se com sua posição e só pensa em vingança, sem

saber a quem dirigi-la (DI, p. 93), ele também se conforma com a situação e renuncia aos

sonhos de fuga (DI, p. 67), enredado, como a mãe, na teia dos sentimentos familiares. Com

essa desistência, o personagem pouco aparece na narrativa, em contraste com a importância

dos demais, especialmente os gêmeos que polarizam a atenção dele e do leitor. Sua ação de

maior interesse para o leitor e uma maneira de resolver suas pendências com o passado é o

empreendimento dessa narrativa.

Tratado como moleque de recados por Zana e suas vizinhas, poucas vezes esse

personagem encontra espaço para escapar da casa. Aos domingos, no entanto, como vimos

antes, Nael usufrui de alguma liberdade e passeia pela cidade, o que amplia

consideravelmente o espaço do romance, vislumbrando um mundo inexistente para as pessoas

comuns, pois ignorado, habitado por “seres que improvisavam tudo para sobreviver” (DI, p.

80).

Desse modo, tanto a cidade quanto a família da qual se ocupa o narrador aparecem

desveladas por seus olhos de “estrangeiro”, entre dois campos de significados distintos, de

uma persona muitas vezes implacável e sem lugar, posição que lhe garante também uma visão

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privilegiada do mundo que o cerca – espacialmente separado do contexto que descreve e

busca entender. Como uma espécie de prêmio de consolação, a família, ao vender a casa,

reserva para Nael o quartinho dos fundos em que ele mora, sua parte na herança de um espaço

maior e de um tempo perdido: “A área que me coube, pequena, colada ao cortiço, é este

quadrado no quintal” (DI, p. 256). Ao final do romance, o narrador recusa-se a cuidar do

pequeno quintal que restou, pois, nesse caso, zelar pelo espaço significava render culto ao

passado ou a uma família que nunca o incluíra completamente: “Zelar por essa natureza

significava uma submissão ao passado, a um tempo que morria dentro de mim” (DI, p. 265).

Tal como o percurso da narradora de Relato de um certo Oriente, a busca empreendida parece

ter sido vã, pois sua narrativa é apenas o relato de um tempo e de um espaço perdidos.

3.6 Por um sentido de lugar

Na economia do romance, nesse microcosmo de personagens tão complexos como os

gêmeos (fisicamente iguais e radicalmente opostos, ainda que semelhantes por suas ações

destrutivas), Zana (com um amor pelos gêmeos tão desmesurado quanto ambíguo,

especialmente por Omar) e Halim (um homem enredado no passado e na vida amorosa

destruída pela chegada dos gêmeos), os personagens projetam suas esperanças e frustrações

no espaço e este, por sua vez, possui a função de ajudar a caracterizá-los, ilustrando e

ampliando o impacto da ação narrativa. Com refinamento e delicadeza, a narrativa mostra que

o espaço concentra a memória de seus habitantes, impregnando-se de sentimentos e

ressentimentos.

Vagando pelo labirinto do passado, sem um fio confiável para marcar o caminho, o

narrador de Dois irmãos, busca reconstruir a história de um espaço e de uma família que é

também a sua. Um filho não reconhecido, um pária no próprio espaço que habita, ele

empreende a difícil missão de buscar respostas para questões básicas de qualquer ser humano.

Ainda que o personagem sofra por ser “uma criança entre dois mundos”, o último na

hierarquia da casa, é essa mesma posição que lhe franqueia vagar por todos os espaços e

construir seu relato, alinhavando fragmentos de conversas, relatos do avô e da mãe. Se ele

pode vagar por quase todos os espaços, entre os dois mundos configurados na casa de Zana e

Halim, e pelo mundo vasto representado pela cidade, pode-se dizer também que sua narrativa

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é mais do que interessada, já que o conflito que passa entre os irmãos também ocorre entre os

dois indivíduos que podem ser seus pais e é a partir dessa posição que acompanhamos seu

relato.

Por meio de seu olhar atento podemos ver reconstituídos e avaliados tanto os

descaminhos dos irmãos gêmeos que dão nome ao romance, quanto da cidade de Manaus

(uma cidade ilhada entre a floresta e o rio), às voltas com as drásticas mudanças causadas pela

instalação da Zona Franca e pelo aparecimento de empresários arrivistas, como o indiano

Rochiran, que chegam como aves de rapina, este último talvez o maior representante no

romance dos novos tempos e dos novos ricos da cidade. Oscilando seu olhar e sua inquietação

entre esses dois irmãos tão iguais na aparência quanto diferentes no comportamento, o

narrador empreende a difícil e solitária trajetória no intuito de buscar um espaço para si entre

dois mundos que não lhe pertencem, desenhando nesse caminho uma cidade às voltas com

transformações radicais. A saída para esse personagem, se há uma, enredado entre a família

de seu pai e o mundo de sua mãe, é narrar a sua história e apreender para tentar compreender.

4. As Cinzas do Norte

Em Relato de um certo Oriente, o guia por esse passado recente dos personagens,

mais extremamente difícil de reconstruir, assim como a organizadora do “coral de vozes

dispersas”, é uma mulher que volta para casa quando esta já está em processo de

desintegração, pois a matriarca, Emilie, morre logo no início de seu relato, e o que vemos é a

uma presença que se afirma cada vez mais na ausência, seja nas relíquias impregnadas de

sentidos, seja na própria casa; por outro lado, essa narradora também mostra, em sua

peregrinação de filha pródiga, um mapa da cidade que gira em torno do movimentado centro,

com poucas incursões reveladoras das hierarquias urbanas pelos arredores, potencialmente

perigosos e interditos para crianças. Já em Dois irmãos, o narrador que, tal como sua mãe, é

um agregado, de status ambíguo entre parente e empregado, percorre um passado que pode

esclarecer o seu próprio, já que um dos gêmeos é seu pai; com rígida hierarquia expressa no

espaço, ele observa a vida familiar buscando seu lugar nessa casa, mas também, em alguns

momentos, excursiona pela cidade, desvelando uma intensa vida portuária, onde se movem

personagens humildes ligados ao mercado e às atividades relativas ao rio. Em ambos os

romances muitos personagens se debatem com as fronteiras da província, que aprisiona e

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pode sufocar, especialmente se o inimigo maior mora no quarto ao lado, como são os casos de

Samara Delia e seus irmãos/perseguidores, em Relato de um certo Oriente, e o de Yaqub, em

Dois irmãos. Em ambas as narrativas o espaço da infância funciona como poderoso atrativo,

seja para a volta melancólica à casa em processo de destruição, como em Relato de um certo

Oriente, seja para o retorno de um personagem como anjo vingador, como em Dois irmãos,

constituindo-se, neste último romance, um dos fatores decisivos do desmantelamento do

espaço familiar. De qualquer maneira, mesmo aqueles personagens que conseguem libertar-se

tanto da casa quanto da cidade provinciana, deles não conseguem se desvencilhar por

completo, figurando ao fundo como interlocutores ou observadores atentos da trama que ali se

encena.

Desse modo, depois de percorremos os espaços intrincados de casas desfeitas de duas

famílias de origem libanesa em Relato de um certo Oriente e Dois irmãos, guiados por

narradores que buscam reconstituir o passado e assim também construindo sentidos para suas

trajetórias, ambos ambientados em Manaus, nesta parte do capítulo examinaremos a visão

amarga construída no romance mais recente de Milton Hatoum: Cinzas do Norte (2005a).

Levando em conta os objetivos da tese, quais sejam, analisar as configurações do espaço

amazônico que os romances estudados oferecem e sua inserção em uma tradição literária de

ambientação amazônica, as principais questões a esclarecer em Cinzas do Norte referem-se ao

impacto desse mundo em transformação: de que maneira os personagens são afetados pelas

mudanças drásticas sofridas pela cidade após a instalação das fábricas da Zona Franca? Como

reagem a essas mudanças e se posicionam na nova configuração? Como veremos, as respostas

para esses questionamentos envolverão tanto uma relação estreita entre história e ficção

quanto a consciência que os personagens expressam ao perceberem a transformação

inexorável de seu entorno, fornecendo um importante lastro para o título do romance.

4.1 A representação da capital na selva

Confirmando o dilema recorrente com que se embatem os narradores de Milton

Hatoum, desta vez conduzido por um narrador que tem medo de partir e chega a afirmar

que “minha cidade é minha sina” (CN, p.269), o romance Cinzas do Norte dá continuidade

a um projeto de incorporar à ficção a história e as transformações da cidade de Manaus

durante o século XX, se considerarmos a obra literária do autor como um todo. Quando

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204

seu romance anterior, Dois irmãos, chega ao fim, Zana havia perdido a casa da família

para um arrivista indiano, Rochiran, que viera com as possibilidades abertas pela Zona

Franca, por culpa de Omar e sua luta incansável e absurda com o irmão. Simbolizadas por

esse aventureiro para quem tudo era provisório, menos os negócios, o episódio deixa

entrever as mudanças profundas por que passará a cidade, um processo que envolve a

substituição da elite local, a transformação da cidade numa espécie de grande bazar e o

desaparecimento de todo um modo de vida e de ligação com o espaço urbano.

Transformada em poderoso atrativo para a população esquecida do interior, a narrativa

mostra que a cidade incha e se degrada cada vez mais, sem condições de absorver os

milhares de novos habitantes, com a conseqüente perda irremediável de qualidade de vida

de seus moradores.

Lavo, o menino órfão e pobre, que é ajudado de maneira discreta pela mãe de um

amigo quase da mesma idade, é o narrador perturbado com a história de Mundo e a

relação conturbada deste com o pai, que projeta nele um desejo obsessivo de ter um

herdeiro para seu empreendimento de cultivo de juta na Vila Amazônia. Observador

afetuoso desse mundo em convulsões familiares e políticas, que se projetam de modo

inexorável sobre a face da cidade, Lavo será o guia do leitor por um mundo em

transformação, em que os cultivos tradicionais, como a juta – e, bem à distância no tempo,

a borracha –, e seu contexto de empregados quase escravos, tornaram-se anacrônicos,

perderam o sentido num mundo às portas da chegada da Zona Franca. É assim que em

Cinzas do Norte teremos importantes acréscimos ao painel ficcional – também histórico –,

que o autor arquiteta em seus três romances, da cidade de Manaus e a ficcionalização dos

efeitos da transformação urbana que a cidade sofre a partir do final dos anos de 1960.

Para mapear e incorporar à matéria romanesca essa transfiguração, veremos que

Jano, o pai de Mundo, é amigo dos principais agentes e representantes das futuras

mudanças, não à toa figuras estreitamente ligadas ao golpe militar, outro fator histórico

chave para o enredo: o coronel e futuro prefeito Zanda e o empresário que aproveita as

novas oportunidades para se estabelecer, Albino Palha. Por outro lado Jano também é o

representante dos grandes coronéis da Amazônia, que tenta manter o filho longe dos

empregados e dirige sua propriedade com mão de ferro. Enquanto Jano traça planos para

que o filho tenha uma formação adequada para ser o herdeiro de sua propriedade/feudo, a

Vila Amazônia, a rebeldia de Mundo se expressa na escolha da arte como caminho, para

desespero do pai. Por outro lado, Alícia, a esposa, mantém um longo e tempestuoso caso

Page 214: Entre construções e ruínas: uma leitura do espaço amazônico em ...

205

com Ranulfo, tio do narrador e que se revelará uma espécie de mentor para Mundo,

juntamente com a misteriosa figura do pintor Arana.

Frequentemente os personagens olharão para o ambiente à sua volta com a

melancolia de um espaço do passado irremediavelmente perdido, como Alícia em sua

conversa com Lavo: “Olhou-me de esguelha, percebeu que eu ia perguntar de novo por

Mundo e começou a dizer que o igarapé dos Cornos não era a imundície de hoje. Ela

nadava e passeava de canoa ali com o meu tio, mas brigavam muito” (CN, p. 192). O

mesmo cenário de devastação urbana aparece na fala irônica de Ranulfo, ao debruçar-se na

janela de Lavo, seu sobrinho, que mora próximo a um dos igarapés da cidade: “Que

paisagem magnífica, hein, rapaz? Esse igarapé cheio de crianças sadias, essas palafitas

lindas, um cheiro de essências raras no crepúsculo. E quanta animação!” (CN, p. 261). Já é

um cenário bem diferente da infância dos gêmeos em Dois irmãos, por exemplo, em que

eles tomavam banho nesses igarapés, sendo fundamental para a narrativa uma fotografia

dos dois em um desses banhos públicos em posições radicalmente distintas, como vimos

anteriormente. A mesma personagem, Alícia, irá surpreender-se com o que encontra no

antigo bairro onde morava, antes um lugar afastado, de chácaras, e agora um grande

aglomerado de casas, como conta Macau, o motorista do marido: “E aí segui até São Jorge

e entrei no bairro. Ela nem sabia que tudo tinha mudado. Perguntou: “Cadê o Castanhal, a

floresta, as chácaras?”. Não respondi” (CN, p. 275). O que esse novo mundo de Cinzas do

Norte expõe é a proliferação de bairros sem estrutura, a cidade que cresce como um

monstro, flagrando a convivência promíscua e a miséria: “Conheci moradores da

vizinhança, vinham tentar a sorte na banca de jogo do bicho. Gente do Jardim dos Barés e

da Cidade das Palhas, um bairro novo, só barracos de ponta de madeira e papelão” (CN, p.

213).

Um personagem que se transforma em símbolo dos novos tempos é o coronel

Zanda que, após o golpe militar, começa a realizar seu projeto político de se lançar à

prefeitura da cidade. Como prefeito, o personagem irá alterar significativamente a face

urbana, revelando uma sanha megalomaníaca ao destruir antigos traçados e abrir caminho

para uma “nova” cidade, marcada pela pilhagem e autoritarismo:

Em poucos anos Manaus crescera tanto que Mundo não

reconheceria certos bairros. Ele só presenciara o começo da

destruição; não chegara a ver a “reforma urbana” do coronel

Zanda, as praças do centro, como a Nove de Novembro, serem

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206

rasgadas por avenidas e terem todos os seus monumentos

saqueados. (CN, pp. 258-9)

A primeira grande “obra” desse coronel prefeito é o conjunto Novo Eldorado,

para onde seriam transferidas as famílias que haviam sido retiradas da Cidade Flutuante –

um episódio que acompanhamos em Dois Irmãos, que é mais um cenário de devastação e

pobreza, crescendo como uma cidade dentro da cidade: “Os moradores da beira do rio.

Foram jogados no outro lado da cidade. A área foi toda desmatada, construíram umas

casas... Sobrou uma seringueira. Quer dizer, o tronco e uns galhos... a carcaça” (CN, p.

144). No fim desse novo bairro, os moradores expulsos do centro ateiam fogo na mata,

abrem clareiras e constroem barracos da noite para o dia (CN, p. 273). O episódio se

refere às chamadas “invasões”, que se constituem como forma popular de ocupação onde

as autoridades não fornecem estrutura para os migrantes que não param de chegar. Um

dado a enfatizar é a ironia do nome desse conjunto habitacional, pois a palavra tem longa

tradição no repertório de imagens da Amazônia, privilegiada tanto por viajantes quantos

por escritores de várias épocas. Outro componente a complicar as condições da cidade são

os migrantes de outros estados, atraídos também pelas promessas da Zona Franca, em cena

em que se descreve a amante de Macau: “Brasileiros do Maranhão... todos pobres, só com

os farrapos do corpo. Ela trabalhava num babaçual. Veio atrás de fartura, não encontrou

nada.” (CN, p.273).

Nesse ambiente urbano em que são alterados significativamente ou simplesmente

demolidos alguns ícones da cidade dos anos de 1950, tais como praças e cinemas,

aparecem os arrivistas que aproveitam as oportunidades para enriquecer, como Arana e

sua pintura de encomenda para turistas e políticos, como veremos no próximo item.

4.2 História de uma decomposição: ou a obediência estúpida, ou a revolta

O enredo de Cinzas do Norte (2005) gira, basicamente, ao redor de Raimundo,

um artista inconformado com as expectativas que o pai tenta lhe impor, e que expressa sua

rebeldia em uma pintura obcecada pelo universo de sua infância e adolescência, tanto em

Manaus como na Vila Amazônia, a propriedade de seu pai. É a partir da trajetória de

Mundo que agem os outros personagens, empenhados, é claro, em resolver seus próprios

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207

problemas, mas também sempre envolvidos de alguma maneira com o protagonista e a ele

se reportando. Desempenhará papel primordial e, ao mesmo tempo, pelo menos a

princípio, aparentemente gratuito, na trajetória de Mundo, o pintor Arana, misto de artista

e charlatão. Esse é o romance que acompanha o difícil percurso de aprendizagem desse

personagem desgarrado que é Mundo, aproximando-se do chamado de “romance de

formação”, tanto pela recusa da realização burguesa de continuar a “obra” do pai, quanto

pela escolha do personagem do caminho da arte como resistência. Porém, de maneira

diferente do gênero consolidado por Goethe, não há esclarecimento e inclusão social ao

final da trajetória do personagem e ele é destruído por suas próprias escolhas. Embora

muitos romances de épocas diversas, tais como O Ateneu e Grande Sertão: Veredas,

apresentem percursos de aprendizagem, classificar uma obra como “romance de

formação” é bastante problemático, pelas características muito específicas do Wilhelm

Meister, como demonstra Wilma Patrícia Maas em O cânone mínimo – o ‘Bildungsroman’

na história da literatura (2000).

Desde cedo Mundo revelar-se-á uma pessoa circunspecta, que vive num universo

próprio, onde apenas seus desenhos exprimem um olhar crítico sobre o entorno, muitas

vezes utilizando a caricatura como forma de apreender e responder às situações em que é

obrigado a atuar em público, como na escola: “Corpos caídos foi a primeira seqüência que

ele deixou sobre sua carteira numa manhã em que foi à cantina. Vimos nossos corpos

tombados, nossos rostos fazendo caretas medonhas” (CN, p.17). Por conta de sua altivez e

de suas caricaturas, o personagem ganha a inimizade de muitos no colégio, sendo

humilhado em plena praça e começando aí sua trajetória sinuosa e sofrida. Depois de ser

expulso novamente de outra escola, o pai interna-o no Colégio Militar, com a

cumplicidade do coronel Zanda, onde passa por duros treinamentos e presencia a

crueldade dos militares. Aparentemente resignado com a rotina árdua, Mundo arquiteta

sua vingança na forma de uma obra de arte que será um protesto contra as condições

absurdas do conjunto Novo Eldorado. Com a ajuda de Ranulfo, Mundo implanta naquele

conjunto residencial um campo de cruzes simbolizando o crime urbano perpetrado ali e a

expulsão dos moradores da Cidade Flutuante para longe do porto. Perseguidos por todos,

Ranulfo e Mundo se escondem, mas o primeiro é encontrado logo depois e espancado a

mando dos militares. Logo depois Jano destrói tudo o que encontra no quarto de Mundo,

num ato simbólico de desprezo pela pretensão de seu filho em ser artista.

A arte de Mundo, como vimos acima, demonstra ser um excelente recurso

expressivo para a ficção discutir tanto o papel do artista quanto os sentidos da própria arte,

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208

configurando-se, em muitos momentos, como uma autêntica metaficção ou poética. Dessa

maneira, há freqüentes choques entre a concepção de arte de Mundo e a de Arana, o pintor

que é inicialmente seu mentor, mas que irá confirmar mais tarde ser o charlatão que

Ranulfo antecipara: “Estás vendo aquele peixeiro? Prega numa parede o tabuleiro dele

com peixe e tudo; depois decepa umas cabeças, faz uma pirâmide no chão e mela com

tinta vermelha. Arana chamaria isso de arte... Agora ele está trocando as formas ousadas

por pinturas de pôr-do-sol. Deve estar possuído pela nossa natureza grandiosa” (CN,

p.102). É interessante notar na passagem uma concepção de arte que despreza a mera

tentativa de representação objetiva da natureza, tal como o naturalismo intentou fazer na

literatura, pregando antes a observação trabalhada pela imaginação, conforme o mesmo

Ranulfo, ao responder à crítica da irmã: ““Estou trabalhando, mana”, disse tio Ran.

“Trabalho com a imaginação dos outros e a minha”” (p.24). Essa é uma observação chave

para a literatura em geral, pois a imaginação e a abstração do Outro é o caminho de todo

artista, mas o importante para a obra de Hatoum é a singularidade da incorporação e do

choque de várias vozes narrativas, dos fragmentos de memória trabalhados lentamente

pelo tempo, indícios de uma busca não apenas individual, mas também coletiva, de

sentidos.

É dessa forma que a pintura de Arana se converte em atração para turistas ou

encomenda para os novos empresários da Zona Franca, reproduzindo em suas telas a

natureza amazônica: “Disse que o pedido lhe dera muito trabalho. Não perguntei do que se

tratava: bastou olhar as fotos coloridas de araras numa parede. Duas, de asas abertas,

cresciam numa tela, e prometiam voar num céu dourado que iluminava a floresta” (CN,

p.169). Deve-se ressaltar que essa crítica à reprodução da “natureza grandiosa”, que

configura Arana como um aproveitador seduzido pelo dinheiro advindo com a

industrialização, pintor de retratos de políticos, interessa e muito à discussão sobre o

espaço ficcional que aqui se propõe. Assim procedendo, a narrativa se coloca e se declara

no campo da imaginação, no trabalho intelectual sobre a memória, e não subordinada à

documentação, como fez a maior parte da literatura amazônica tanto naturalista quanto

regionalista. Desse modo, há uma recusa em assumir a grandiosidade amazônica como

única ou original, pois todo lugar é único, especialmente quando representado

ficcionalmente:

“(Mundo) Disse que ia inventar novos monstros e enterrar de vez

a nossa natureza. (...) Fez pouco dos meus quadros e objetos, e me

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209

chamou de pintorzinho de floresta. (...) No começo, se interessou

pela nossa região, percebeu que a Amazônia não era um lugar

qualquer. Mas foi se afastando de tudo isso...”

“Nenhum lugar é um lugar qualquer”, eu disse. (CN, p.170)

Uma “obra” de Arana, exemplar da concepção de arte recusada no romance, é

descrita por Lavo, quando ele busca informações sobre a mãe de Mundo, Alícia, em uma

sua visita ao escritório de Albino Palha, na qual a natureza aparece tão real que se

aproxima da alucinação, representação ficcional por excelência daquele “progresso

decadente” que Hatoum menciona em entrevista (Lupinacci, 2003): “Nenhum objeto ou

imagem no escritório lembrava a amizade e os negócios com Jano. Ao me virar, vi a

parede coberta por um painel pintado com araras. Imensas, sobrevoavam um amontoado

de torres de vidro e concreto no horizonte desmatado. A visão alucinada e grotesca da

floresta, e talvez do futuro, me arrepiou” (CN, p. 264).

Após a morte do pai, Mundo e Alícia viajam para o Rio de Janeiro, e o personagem

segue daí para a Europa, escapando da perseguição dos militares amigos de Zanda. Ainda que

percorra países como Alemanha e Inglaterra, as referências de Mundo continuam sendo a

Amazônia, especialmente Manaus e a Vila Amazônia, e constrói sua obra a partir dessas

reminiscências. Como contraponto claro à obra de Arana, que privilegia uma visão artificial

da floresta, os trabalhos de Mundo refletem muito mais sobre os rostos e os ambientes que

conhecera em suas andanças pela cidade, intitulando um deles de “Capital na Selva”, sobre o

qual escreve a Lavo: “Consegui vender três das cinco pinturas da seqüência Capital na selva.

Dois rostos da mesma mulher num quarto da pensão Marapatá e na cabine de um barco

encalhado para sempre num estaleiro dos Educandos” (CN, p. 234). A colisão no interior da

narrativa entre essas duas concepções de arte, com evidente rebaixamento de Arana e

elevação do caminho escolhido por Mundo, deixa entrever que qualquer lugar pode ser

artisticamente relevante, pois a arte, especialmente a literatura, no caso do romance, deve se

interessar não pela exaltação do lugar ou da natureza, mas pela interação possível entre seres e

lugares, pela importância afetiva que os seres humanos projetam nos lugares, pelos

significados que estes assumem para aqueles. A obra maior de Mundo, intitulada

significativamente “História de uma decomposição – Memórias de um filho querido”, que

Lavo conhecerá no apartamento de Alícia no Rio de Janeiro após a morte do amigo, mostrará

exatamente a importância da memória na constituição pessoal, além da ligação estreita de

lugares e pessoas, ressaltando Jano associado à propriedade da Vila Amazônia. Nesse

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210

trabalho, o artista enfatiza a figura do pai e sua propriedade em várias telas, ao longo das

quais ele vai envelhecendo e se deformando, juntamente com seu cachorro Fogo, a figura

mais ligada a esse personagem, mostrando também a convivência dos trabalhadores

oprimidos de Jano, contrapondo a miséria e a natureza (CN, pp. 292-3). Na última tela, roupas

e sapatos de Jano, usados ao longo da seqüência, aparecem incorporados e deformados (CN,

p. 293), numa clara alusão à importância do pai na trajetória do personagem, ao mesmo tempo

uma forma de exorcismo de sua figura opressora.

Mais além da história da lenta e terrível “decomposição” de Mundo, este é também

um romance em que não há saída para qualquer um dos personagens, cada um às voltas com

seu próprio processo de busca de sentidos. É assim que Ramira, retrato da amargura e do

isolamento, é a personagem que se refugia na máquina de costura como a uma trincheira, um

objeto de proteção contra o mundo, mas também uma posição de vigilância, à qual ela se

identifica e se associa. Ranulfo, irmão de Ramira, recusa todo tipo de trabalho e por isso

também frustra qualquer esperança de dar vazão ao amor que sente por Alícia. Esta, por sua

vez, escolhendo Jano para marido unicamente por razões econômicas, viverá o casamento

como uma prisão, da qual ela escapa durante as férias no Rio de Janeiro ou durante suas

tardes com Ranulfo. Por sua vez, Lavo, o narrador, é incapaz de se libertar da cidade, e segue

o caminho da advocacia, para desprezo do tio, Ranulfo, recorrendo à narrativa como forma de

dar coerência e sentido à sua própria história e a dos que o rodeiam. Cada um a seu modo,

todos os personagens contribuem para compor uma visão amarga das possibilidades que a

vida na província proporciona: se a cidade representa uma tentativa de dominar o caos que é a

floresta, configurando-se, por isso, também como um espaço de proteção, por outro lado ela é

uma prisão da qual a fuga é muito difícil.

5. Figurações do espaço na obra de Milton Hatoum

Ainda que nos três romances de Milton Hatoum o espaço se expanda

consideravelmente para São Paulo, Rio de Janeiro ou Europa, com alguns de seus

personagens principais aí passando boa parte da vida, seu espaço romanesco imprescindível e

primordial é, sem dúvida, a cidade de Manaus. É nessa cidade que seus personagens vivem a

infância em meio a grandes transformações urbanas, formam seu imaginário e seu repertório

memorialístico, almejam escapar dos limites estreitos da província ou a eles se conformam,

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adaptando-se aos desafios e buscando a narrativa como forma de compreender o passado

familiar. Com suas visões multifacetadas do entorno, podemos acompanhar o

desmantelamento de um espaço urbano ao longo do século XX, especialmente nos anos de

1960 e 1970, em contraste com a cidade decadente mas viva e de convivência mais íntima dos

anos 50, ao mesmo tempo em que podemos vislumbrar de que maneira esses pontos de vista

diversos compõem um mosaico de várias cidades dentro da cidade.

Os personagens de Hatoum, em geral, moram no centro da cidade, e sempre que se

deslocam para a periferia encontram fronteiras a serem desbravadas, seja na forma de espaços

interditos, onde proliferam a sujeira, a miséria e, por vezes, o caos urbano, marcados, por

exemplo, pelos cheiros e as cores fortes do mercado e dos vendedores de peixe, seja nos

cabarés onde os personagens adquirem experiência bem distantes dos limites familiares. Por

outro lado, as narrativas também se entrelaçam e dialogam, demonstrando que compartilham

o mesmo universo ficcional, revelado pela “migração” e aparecimento de personagens de um

romance em outro, tais como a visita de Emilie, de Relato de um certo Oriente, à matriarca de

Dois irmãos e as aulas de alemão que Mundo, personagem de Cinzas do Norte, tem com

Gustav Dorner, personagem e um dos narradores do segundo romance do autor. Note-se que o

leitor de Hatoum é convocado a preencher lacunas importantes, e o autor modelo que

atravessa os três romances espera que seu interlocutor relacione os personagens com seus

lugares (ou romances) de origem e usufrua dessa “migração” entre textos ou histórias. Dessa

maneira, vistos como partes autônomas de um mesmo mundo ficcional, os três romances

enformam um projeto literário que se insinua em afirmação de Milton Hatoum sobre Dois

irmãos e que pode ser projetada também em suas outras obras: “Eu tinha uma dívida afetiva e

moral com a minha cidade, e eu tentei quitá-la escrevendo um romance” (Lupinacci, 2003).

Entretanto, essa ligação não leva o autor a exaltar o lugar da infância como um locus

amoenus, idílico, ou mesmo rememorar uma parte do passado da cidade como uma época de

ouro perdida, mas proporciona a investigação ficcional dos dramas e conflitos dos

personagens que ali viveram os anos de profundas transformações urbanas. A concentração

proporcionada pela província, ao invés da natureza dispersiva da metrópole, permite

verticalizar o enredo, observar com mais proximidade os embates humanos e buscar neles

características universais. Os conflitos apresentados nos romances do autor, sem

representarem uma volta ao regionalismo, por sua ambientação e identificação com a história

de determinada cidade, são problemas humanos universais que adquirem sua grande força

ficcional quando colocados num ambiente que lhes impõe certos limites e desafios, além de

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212

contribuir, pela via do discurso dos personagens, para caracterizá-los e expressar afetividade,

apresentar projeção de conflitos, concentrar a memória familiar ou coletiva.

Como vimos ao comentar o livro de Franco Moretti, Atlas do romance europeu

(2003), no primeiro capítulo desta tese, o que acontece no romance, a ação narrativa, depende

em boa parte do lugar onde acontece, do espaço ficcional, afirmação extremamente válida

para os três romances de Milton Hatoum, além dos três de Dalcídio Jurandir selecionados e

analisados no capítulo anterior. Nas obras de ambos os autores é a cidade, especialmente a

capital, que confere a ambientação necessária em sua concentração de problemas e

oportunidades que possibilitam esmiuçar a trajetória de personagens tão distintos quanto

Alfredo de Dalcídio Jurandir, e Nael, Yaqub, Omar e Mundo, de Milton Hatoum.

Há traços que, após três romances, e pela reiteração, a freqüência com que aparecem

e a importância estrutural para as narrativas, já se pode dizer que são obsessões do romancista,

constituindo-se mesmo como pontos de apoio de sua ficção. Uma dessas recorrências,

diretamente ligada à questão do espaço, é a casa em processo de desmantelamento, que

aparece em todos os três romances, com diferentes funções, mas sempre marcada pela

dispersão e pela morte do personagem que com ela se identifica mais intimamente,

demonstrando que sempre há um ponto de apoio comum para a vida familiar e para o espaço

que a acolhe: Emilie, em Relato de um certo Oriente, Zana, em Dois irmãos, e Jano, em

Cinzas do Norte. No entanto, enquanto nos dois primeiros romances a derrocada da casa e a

morte da matriarca significam também o fim de um tempo de forte convivência familiar, que

gera nos personagens a sensação de uma perda de uma parte importante de suas vidas e de

importantes implicações na memória, isso não acontece em Cinzas do Norte; nem a

demolição da casa nem a morte de Jano causam impacto maior na vida de sua família ou

amigos, e isso porque ele não é a figura em torno da qual os personagens se agrupam, não é o

“esteio” afetivo que mantém a coesão da memória familiar, e sua morte é antes uma libertação

para os que o rodeiam do que real motivo de comoção. Com a morte das matriarcas nos dois

primeiros romances e a dissensão e dispersão definitiva dos filhos, é natural que a casa

animize-se, envelheça e desmorone, pois nesses casos ela concentra a memória afetiva. A

segunda recorrência, que se alterna em ordem de importância, por vezes, com a primeira, é a

cidade ficcional que se constrói nos três romances a partir da cidade de Manaus. Cada

romance contribui à sua maneira para a representação ficcional desse complexo urbano que é,

como em toda capital, ao mesmo tempo hierarquizado, pela divisão clara dos seus espaços, e

democrático, pela proximidade e pelas trocas que ela possibilita com o Outro.

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Apesar das advertências presentes sobre a essência ficcional, e não real, em Dois

Irmãos e Cinzas do Norte, uma simples comparação entre o enredo dos romances de Hatoum

com a história da cidade de Manaus, considerando-se também aquela história extra-oficial, de

veiculação oral e popular, mostraria que a realidade imiscui-se frequentemente na ficção,

embora isso não implique prejuízo do estatuto próprio desta última. Esse desajuste não

acontece em parte porque não é a mera documentação naturalista o que a narrativa almeja,

mas também porque os fatos históricos aparecem no enredo de maneira sutil e diretamente

relacionados à importância que têm para a trajetória dos personagens, para a configuração de

sua visão de mundo, assim como para demonstrar por quais meios eles atravessam as vidas

das pessoas em seu dia a dia e definem mudanças que afetam as perspectivas de todos. Porém,

mais importante do que realizar uma comparação entre a cidade real e aquela construída

ficcionalmente – ação que, como vimos no primeiro capítulo, acrescenta muito pouco à

interpretação da obra de arte literária –, é buscar na própria narrativa os recursos que a fazem

funcionar e a mantém de pé. Por outro lado, comparar a cidade ficcional com a real, sem a vã

preocupação de demonstrar até que ponto o autor foi fiel em sua representação, pode levantar

pistas dos aspectos privilegiados na concepção de mundo específica do romance, lembrando

que não só a presença, mas também a ausência de determinados espaços contribuem para isso.

Os narradores de Milton Hatoum arquitetam a narração como uma forma de

depuração, pois a remissão para as escolhas pretéritas é impossível ou mesmo indesejada. Isso

acontece porque eles estão enredados num passado que persiste e precisa ser esmiuçado numa

forma coerente de narração, o que não quer dizer, necessariamente, linearidade. Narrar o

passado para eles é também, fundamentalmente, situar essa fábula – tomada aqui no sentido

de esquema fundamental da matéria narrada – num lugar específico, pois que todos buscam

igualmente um sentido de lugar, um ponto de referência no espaço, o que implica, ainda,

entender a posição (espacial e hierárquica) que cada um ocupa na casa familiar, na cidade de

nascimento e no mundo.

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214

SOBRE OS SENTIDOS DAS TRAVESSIAS AMAZÔNICAS

No teatro do passado que é a nossa memória, o cenário

mantém os personagens em seu papel dominante.

Gaston Bachelard

A estupidez consiste em um desejo de concluir.

Gustave Flaubert

Sob o espectro dessa sombria advertência proferida pelo autor de Madame Bovary

(citado por Alberto Manguel, 2000: 290) e, simultaneamente, pressionado a inserir-me na

ordem do discurso, ou seja, instado a pronunciar-me pela necessidade levantada pelo próprio

percurso crítico deste trabalho, é necessário expressar aqui as inquietações que as leituras e as

análises empreendidas suscitaram neste leitor, embora isso não implique concluir de maneira

categórica. E isto não quer dizer fugir à responsabilidade de me pronunciar, mas reconhecer a

óbvia leitura particular das obras analisadas nesta tese, embora com acompanhantes de peso

explicitados em epígrafes e citações, o que quer dizer que esta seção não fecha o discurso – a

questão – dos sentidos do espaço nos romances analisados, mas intenta mostrar associações e

dissensões possíveis entre as obras de Milton Hatoum e Dalcídio Jurandir. Além disso, busca

também mostrar de que maneira a conformação do espaço amazônico atinge níveis e

significações diferentes nessas obras em relação às obras do naturalismo e do regionalismo

que abordaram a região, ou mesmo aquelas dos viajantes que a contemplaram exaustivamente

e deixaram relatos exemplares, forjando com eles modos de ver e de usar.

Ao finalizar essa abertura de algumas veredas para a literatura produzida na

Amazônia, espero ter estendido algumas pontes entre dois autores que não se conheceram,

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mas se inseriram definitivamente na tradição ficcional de representação da Amazônia:

Dalcídio Jurandir e Milton Hatoum. O primeiro por utilizar um ambiente carregado de

referências bibliográficas marcantes, porém nele projetando sentidos simbólicos e

ideológicos, e também por promover a transição da literatura ambientada no interior para

aquela focalizada na complicação social da cidade. O segundo por explorar as intimidades da

casa, ao mesmo tempo em que desenha um mapa de uma cidade em transição em algumas

poucas andanças de seus personagens, perplexos ante as mudanças profundas em seu espaço e

em seus modos de vida. Ambos os autores por inserirem definitiva e criativamente a história

na ficção, assumindo a primeira como parte relevante da segunda, sem qualquer subserviência

desta em relação àquela. Um dos objetivos desta tese foi justamente demonstrar o quanto

perde a historiografia da literatura brasileira ao relegar Dalcídio Jurandir a um segundo ou

terceiro planos, muitas vezes classificando-o de “regionalista”, como se ambientar um

romance em uma região longe das luzes do Sudeste fosse obrigatoriamente um crime de lesa

literatura, a ser punido com a indiferença ou a nota de rodapé. Mais do que esgotar as

possibilidades de leitura desses dois autores, seguindo lições de um Umberto Eco, por

exemplo, busquei “entrar” nos “bosques” de seus romances e olhar em volta, enxergar

“figuras no tapete”, procurando preservar sua complexidade sem renunciar ao olhar crítico.

Como vimos, na trajetória de todo herói romanesco há, em algum momento, a

dolorosa transição do ambiente restrito e protetor, para o amplo e desconhecido, necessária

para que a narrativa possa incorporar a emancipação que o herói persegue. Assim, nas obras

de Milton Hatoum (especialmente em Dois irmãos, 2000a e Cinzas do Norte, 2005) e

Dalcídio Jurandir (Três casas e um rio, 1958) essa travessia se dá em função do desejo quase

obsessivo de seus personagens em sublimar sua condição (confinados e condenados que estão

em espaços limitados e isolados) sócio-espacial (por motivos diferentes) e tentar seguir a

trajetória em direção à constituição da própria identidade ou de sua aprendizagem, o que faz

com que lutem ardentemente por seus sonhos de mudança, com conseqüências diferentes para

cada um. Nesses casos, apenas a viagem, ou a narrativa de um retorno ou de um percurso,

pode colocar em contato ou estabelecer uma ponte entre esses mundos distintos que são o

interior e a capital, para Dalcídio Jurandir, e a província e o mundo externo, no caso de Milton

Hatoum. Sem ela, o que resta é o conformismo e o isolamento, ou pelo menos a frustração por

tudo o que poderia ter sido experimentado e não o foi, com a conseqüente e amarga sensação

de perda.

Por seu turno, a cidade, como demonstram as obras desses dois romancistas, só é

uniforme na aparência, não se abre ou se revela completamente a todos os seus habitantes, há

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hierarquias e espaços interditos, um pequeno passo no traçado urbano pode representar um

salto social, desde que se pague o preço pelo deslocamento. É certo que essa complexidade da

cidade, largamente utilizada desde Balzac, não é uma descoberta dos dois autores, mas o fato

digno de nota é que essa configuração ficcional seja ambientada nas duas maiores capitais da

Amazônia, cuja literatura sempre foi pródiga em enfatizar a floresta como espaço romanesco.

Apesar desse complexo traçado das cidades, em todos os romances estudados, se a

maioria dos personagens está limitada a certos trechos urbanos, que não chegam a se

configurar como guetos, há aqueles outros, por algum motivo desobrigados de respeitar essas

posições, que possuem a chance de perambular pela cidade, ampliando a gama de

perspectivas, descentralizando o mapa ficcional. É assim, por exemplo, que, nos romances de

cenário urbano de Dalcídio Jurandir, Alfredo, um interiorano desenraizado e, por isso mesmo,

curioso das possibilidades que a cidade oferece, transita, com alguma tensão, por diferentes

espaços, disponibilizando-os à construção e à avaliação do mapa ficcional por parte do leitor.

Já na obra de Milton Hatoum, encontraremos, em Relato de um certo Oriente, por exemplo,

Dorner, o fotógrafo alemão, que percorre a cidade com sua câmara, documentando pessoas e

seus costumes, revelando aspectos inusitados do cotidiano citadino, sendo testemunha chave

de acontecimentos importantes para a narrativa, em boa parte por conta de sua posição de free

lancer e de seu olhar desautomatizado. Em Dois irmãos, um exemplo desse transeunte

essencial para a configuração do espaço narrativo é Omar, um farrista que se especializa na

periferia da cidade, na noite e no prazer dos lugares marginais, nos cabarés onde se encontram

personagens bem diferentes daqueles dos centros. Cinzas do Norte apresenta o exemplo de

Ranulfo, tio do narrador Lavo, um personagem que é um misto de artista e marginal, símbolo

de boêmia e rebeldia com os códigos sociais, da recusa ao trabalho e à cooptação pela

trajetória convencional, que vive de pequenos expedientes e percorre a periferia da cidade

com a tranqüilidade de um conhecedor.

Do mesmo modo como o tempo na narrativa pode entrar em estado de suspensão ou

acelerar-se de acordo com o ânimo dos personagens, certos lugares podem “cristalizar-se” em

um estado afetivo, em um momento específico experimentado, dependentes que são dos

responsáveis pela suspensão, e “deslocar-se” na bagagem daqueles seres que mantêm relações

especiais com eles, marcando uma sutil convergência de espaço e tempo. Por conseqüência,

os lugares multiplicam-se, desdobram-se em seus sentidos, ultrapassam as barreiras do tempo

por obra e graça de quem os transporta na memória. Ou seja, os lugares não “vivem” sem a

presença e o ânimo de quem lhes dá o “sopro da vida”, de quem lhes atribui sentidos por meio

de um discurso apaixonado ou ressentido. Quando um personagem se propõe a recuperar esse

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momento perdido, e o espaço perdido associado intimamente com ele, a imagem interior pode

não coincidir com o que encontra – e frequentemente isso acontece, daí que toda busca pelo

passado seja potencialmente problemática, podendo resultar em frustração e conflito,

condição essencial para que haja literatura. O personagem do romance é, assim,

necessariamente, um inconformado, um ser que busca algo, nem sempre esse algo é muito

claro, mas há ali uma inquietação, o que o transforma naquele indivíduo problemático

teorizado por Lukács, envolvido permanentemente em uma busca idólatra ou demoníaca, pois

obsessiva. Se essas buscas mostram-se infrutíferas e não fornecem respostas para as questões

que lançam, é porque a melhor literatura intenta muito mais inquietar seu leitor que mostrar-

lhes saídas seguras e edificantes.

Dessa forma, o herói de Dalcídio Jurandir, Alfredo, vai carregar, ao longo de nove

romances, o peso das lembranças do chalé familiar, associado a essa figura simples, poderosa

e comovente que é D. Amélia, a guardiã das forças desse topos isolado de seu entorno, essa

“ilha batida de vento e chuva”. Além disso, ele acrescentará ao seu repertório de lugares

aqueles pelos quais vaga incessantemente, tal como o peregrino errante do mito, as casas onde

viverá amores adolescentes, descobertas, dissabores, vislumbrará intensos dramas familiares

– e dos quais, por vezes, participará a contragosto, acumulará experiências e questões mal

resolvidas, apresentando várias faces da cidade, cada uma delas justapondo-se e se associando

ao percurso de um personagem, lembrando que a cidade existe apenas em função das

projeções de seus habitantes. Não há um epílogo claro para sua história e, nesse sentido,

Alfredo é a personificação do interesse romanesco em desvelar conflitos humanos, ao

peregrinar pelas casas alheias e adentrar nas intimidades familiares, ao mesmo tempo em que

mapeia o mundo ao redor, construindo um espaço ficcional de múltiplas faces e atribuindo

sentidos na caminhada.

Por sua vez, a narradora de Relato de um certo Oriente (1989), de Milton Hatoum,

volta à cidade de origem em busca de um tempo perdido e de uma mulher desenraizada, mas

para isso ela tem que percorrer os espaços de uma cidade imaginária do passado, contrapor a

imagem criada com o que encontra para descobrir, finalmente, que sempre é tarde demais e o

espaço da infância está irremediavelmente perdido. Já o narrador de Dois irmãos (2000a),

pairando entre dois mundos, entre duas margens de rio, percorre, inquieto, um longo caminho

entre a edícula na qual mora com a mãe no fundo do quintal até a casa de uma família que é

também a sua, buscando entender seu sentido de lugar, e acaba encontrando uma “terceira

margem”, a posição privilegiada de narrador para tentar ver de fora aquele “pequeno mundo”.

Também é a saída da narrativa a via encontrada por Lavo, o narrador de Cinzas do Norte

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218

(2005a) que, com o “sopro” de seu relato, tenta recuperar os sentidos da vida, tanto a sua

como a de seu melhor amigo, o artista perdido, Mundo. Em todos os três romances, por meio

do discurso de narradores solidamente fincados, em virtude da infância, num traçado urbano

que vão expandindo com suas andanças e seu discurso, a experiência do passado impõe-se

como matéria a ser narrada, pois só assim pode ser apreendida, renascer das cinzas, tal como a

Fênix, adquirindo sentidos.

Tanto em Dalcídio Jurandir quanto em Milton Hatoum, dois autores que olham para

a Amazônia, mas focalizam, principalmente, a vida nas cidades, a história se inscreve no

espaço urbano, que por sua vez é lida pelo discurso dos narradores: na excessiva presença de

ruínas que povoam o caminho de Alfredo, entre a pequena vila de Cachoeira e Belém, e

dizem tanto sobre o passado de dissipação e riqueza ilusória da borracha e a posterior

decadência que de algum modo afetou a todos no mundo construído por Dalcídio Jurandir; no

processo de transformação da cidade de Manaus posto em movimento com o “progresso

decadente” da Zona Franca, destruidor de um mundo e de modos de vida, obrigando os

personagens a re-articularem a maneira de ver a cidade e de vivê-la, captado pelos romances

de Milton Hatoum. Cada qual a seu modo, esses dois autores são romancistas da cidade,

leitores e intérpretes do espaço urbano em sua complexidade, criadores ficcionais que

demonstram a cada passo de seus heróis como a história afeta a vida no interior das casas e se

incorpora à memória familiar.

Essa constatação leva à questão problemática do relacionamento íntimo entre a

especificidade dos mundos ficcionais e a realidade, pois aqueles, como diz Umberto Eco, são

sempre parasitas desta. Ainda assim, por maior proximidade que um texto literário cultive

com determinada época histórica, por mais que ouçamos no texto certas vozes e (re)

encontremos figuras familiares à nossa enciclopédia particular, há sempre a possibilidade de o

autor e o editor da obra recorrerem ao estatuto da ficção como restrição às comparações e ao

paralelismo com o real – como lembra a advertência em Cinzas do Norte. Isso é natural, pois

a ninguém, especialmente quem expressa suas inquietações por meio da literatura, é permitido

ficar fora da história e, claro, não é possível impedir que um texto se constitua como signo

ideológico. É sempre perigoso discutir as características de uma época ou de uma cidade com

a liberdade que a ficção postula, porém, ainda que dispersa entre os percursos dos

personagens, disseminada sob a forma de construções e ruínas, a história está ali. Nesse

sentido, todo romance é uma concepção de mundo, o que implica que, se os universos

ficcionais não se “referem a pessoas e fatos concretos”, decisivamente emitem opinião sobre o

que existe além de suas fronteiras, mesmo a despeito da consciência do autor, sendo, por isso,

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sempre fruto de experiências pessoais concretas transfiguradas em ficção. Isso é válido para

ambos os autores, consideradas as especificidades de cada um. Cabe à engenhosidade do

escritor, no entanto, criar mundos que possuam sua própria coerência, onde os elementos se

relacionem de forma harmoniosa, em que os personagens expressem uma visão de mundo

coerente com seu perfil e não apenas a do autor. Dessa forma, Dalcídio Jurandir e Milton

Hatoum, narrando a história de seus personagens, documentam também visões de destruição:

o romancista paraense ao incorporar à sua ficção o desmantelamento do mundo fugaz

construído com a riqueza gerada pela borracha, que espalha ruínas e derrotas por todos os

lados; o segundo ao situar seus personagens em meio à transformação destrutiva advinda com

a Zona Franca, surpreendendo uma cidade crescendo como uma doença, flagrando a pobreza

e a impotência dos habitantes mais pobres, expulsos de seus modos de vida e de seus centros

de referência.

Como diz Lavo, o narrador de Cinzas do Norte (2005a), ao responder à interpelação

de outro personagem referindo-se à Amazônia, nenhum lugar é um lugar qualquer, mas a

essência de um dado lugar é um componente substancial da ação em um romance, já que cada

espaço determina ou pelo menos limita os tipos de conflitos que podem ser representados

ficcionalmente. Como vimos ao analisar os romances de Dalcídio Jurandir, o fato de Alfredo,

um interiorano que almeja as oportunidades da capital, ser o personagem eixo dessas

narrativas determina o deslocamento do foco do interior para a capital, com o conseqüente

mapeamento desse caminho extenso; claro está que Alfredo não veria Belém da mesma forma

se houvesse nascido ali, pois a condição básica de sua curiosidade é o fascínio pelo novo

espaço. Da mesma forma, o fato de os personagens de Milton Hatoum serem todos citadinos

ou interioranos já incorporados ao espaço urbano, delimita o tipo de conflito que eles

apresentam, incluindo, em alguns casos, sua adaptação forçada a esse ambiente. Se fosse uma

típica citadina, a mãe de Nael, em Dois irmãos, não teria experimentado a sensação de

extremo desconforto ao atravessar o rio e aproximar-se do espaço de onde fora tirada à força e

com o qual perdera as redes de ligação afetiva, transferidas estas para a casa da família

adotiva.

Dessa maneira, o espaço ficcional nunca é um mero cenário, mas um elemento de

força no interior da narrativa, que auxilia a configuração do todo a partir de dentro. Por isso

mesmo, é possível afirmar que, à parte as diferenças já apontadas nos conflitos representados

nos romances dos autores estudados, suas narrativas são o resultado de um embate entre duas

forças conflitantes e igualmente significativas, em produtiva relação dialética entre o mundo

interno e o externo: uma centrípeta, que revela a incorporação de elementos reais ao mundo

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ficcional, e uma centrífuga, que busca convocar o leitor para uma reflexão sobre as

implicações dessa concepção de mundo, preencher suas lacunas, recorrer à sua própria

“enciclopédia” para observar o que é privilegiado e o que é descartado no conjunto. Do

percurso tortuoso que todos esses personagens fazem fica a certeza que não há final possível

para a trama de que são parte, não há remissão/redenção/epifania possível para o herói do

romance contemporâneo nem pode haver conclusão para a sua inquietação: a busca – ou a

obsessão, outro de seus nomes – continua. Como sempre interessou ao romance, de vários

lugares e épocas, o que importa para esses dois escritores, com a utilização de diferentes

recursos expressivos, é buscar sentidos para o ser e o estar no mundo.

Post Scriptum: Uma pergunta inquietante que surge ao estudar autores que, queiram ou não47,

estão ligados a lugares que tendem à periferia na história da literatura brasileira, como a

Amazônia: por que a literatura de ambientação amazônica não teve um período de grande

visibilidade, como a nordestina?

Arriscando algumas hipóteses, poderíamos dizer que em primeiro lugar porque a

colonização do país iniciou-se no Nordeste, com o surgimento de centros de grande produção

de riqueza, como Salvador, Recife e Olinda, cidades com uma vida cultural intensa e antiga.

Além disso, a densidade de ocupação nessa região sempre foi bem maior que a da região

amazônica, o que implica maior população urbana letrada, fator essencial para o

desenvolvimento de um sistema literário com produção, distribuição e circulação regulares.

Por outro lado, as trocas do Nordeste com as grandes cidades do Sudeste e Sul, onde a

população letrada é mais concentrada, diferente da dispersão nortista, sempre foram maiores

do que aquelas que a região Norte manteve. Esse fator tem menos relevância para o estado do

Pará, especialmente Belém, que, por sua idade e localização, mantém uma rede de trocas mais

efetivas há mais tempo que Manaus. Por essa última característica, se fosse possível comparar

os números de autores das duas capitais, Belém teria uma massa maior de escritores de

projeção, com Manaus crescendo de importância nesse sentido a partir dos anos 50, com a

fundação do Clube da Madrugada, que marca a chegada efetiva do Modernismo na capital

amazonense.

De qualquer modo, a árdua trajetória literária de Dalcídio Jurandir mostra bem como

é difícil furar o cerco da indiferença ou destacar-se na área. Milton Hatoum chegou mesmo a

47 Milton Hatoum, em recente entrevista sobre Cinzas do Norte, recusou-se terminantemente a ser tachado de escritor amazonense: preferia ser lembrado como autor brasileiro. Afora o fato de que tanto a primeira quanto a segunda expressão sejam “marcas de lugar”, denominações de origem, isso se deve, possivelmente, à limitação

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admitir, em entrevista sobre o sucesso de crítica e público de suas obras, que teve a sorte de

seu primeiro romance ter sido lido e apresentado por um professor e crítico de renome, Davi

Arrigucci Jr., e publicado por meio de uma grande editora. Esses episódios insinuam que há

muito mais a explorar na literatura nortista, com ou sem “denominação de origem

controlada”, do que sonham nossos manuais.

regionalista que a expressão agrega ao nome do autor.

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