Elizaine_Bagatelli_Okde

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UNIVERSIDADE FEDERAL DE MATO GROSSO INSTITUTO DE EDUCAÇÃO PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM EDUCAÇÃO Elizaine Bagatelli Okde REINSERÇÃO ESCOLAR DE MENINAS EM SITUAÇÃO DE RISCO SOCIAL: um diálogo com a Educação, a Cultura e a Subjetividade CUIABÁ-MT 2007

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  • UNIVERSIDADE FEDERAL DE MATO GROSSO

    INSTITUTO DE EDUCAO PROGRAMA DE PS-GRADUAO EM EDUCAO

    Elizaine Bagatelli Okde

    REINSERO ESCOLAR DE MENINAS EM SITUAO DE RISCO SOCIAL:

    um dilogo com a Educao, a Cultura e a Subjetivi dade

    CUIAB-MT

    2007

  • UNIVERSIDADE FEDERAL DE MATO GROSSO INSTITUTO DE EDUCAO

    PROGRAMA DE PS-GRADUAO EM EDUCAO

    Elizaine Bagatelli Okde

    REINSERO ESCOLAR DE MENINAS EM SITUAO DE RISCO SOCIAL:

    um dilogo com a Educao, a Cultura e a Subjetivi dade

    Dissertao apresentada ao Programa de Ps-Graduao em Educao, Instituto de Educao, Universidade Federal de Mato Grosso, como requisito obteno do ttulo de Mestre em Educao, sob a orientao da Professora Doutora Maria Augusta Rondas Speller.

    CUIAB-MT

    2007

  • FICHA CATALOGRFICA

    O41 r Okde, Elizaine Bagatelli

    Reinsero escolar de meninas em situao de risco social: um dilogo com a Educao, a Cultura e a Subjetividade / Elizaine Bagatelli Okde. _ _ Cuiab: UFMT/IE, 2007.

    X, 143 p.: il. color.

    Dissertao apresentada ao Programa de Ps-Graduao, Instituto de Educao, Universidade Federal de Mato Grosso, como requisito obteno do ttulo de Mestre em Educao, sob a orientao da Professora Doutora Maria Augusta Rondas Speller. Bibliografia: p. 137 142 Inclui apndices CDU 374.3

    ndice para Catlogo Sistemtico 1. Educao 2. Reinsero 3. Meninas em situao de risco

  • Dedicatria

    Dedico este trabalho a todas as meninas abrigadas na Casa de

    Retaguarda com sentimento de gratido por tudo que pude me

    descobrir nelas.

  • AGRADECIMENTOS ESPECIAIS

    Sentimentos de gratido pelas duas grandes mestras:

    Professora Doutora Maria de Lourdes Bandeira, por ter me iniciado nos caminhos

    instigantes da pesquisa cientfica, ensinando-me a importncia do rigor

    metodolgico.

    Professora Doutora Maria Augusta Rondas Speller, por ter me proporcionado, de

    forma potica, a clareza de minhas possibilidades intelectuais.

  • AGRADECIMENTOS

    Aos meus pais, Wilson e Ildete, pela oportunidade de vir a esse mundo.

    Ao Nasser, marido e companheiro de todas as horas. Por ter me

    possibilitado esse vo.

    Patrcia, minha filha. Pela compreenso nos momentos de

    distanciamento.

    Aos meus irmos: Eliane, Wilson Carlos e Elizete. Pela ajuda e carinho.

    Dona Latife, minha sogra. Pelas constantes lies afetuais de sabedoria

    que me proporcionam sempre ver a vida pelo avesso.

    professora Dr. Maria Ceclia Sanchez Teixeira, pelas grandiosas

    contribuies que aperfeioaram este trabalho.

    professora Dr. Maria do Rosrio Silveira Porto, pela passagem amiga

    no percurso da pesquisa.

    Aos amigos Flvia e Dudu, pelo constante estmulo.

    s funcionrias da Casa de Retaguarda Dr. Paulo Prado, em especial

    Genilda, coordenadora da Casa. Pela confiana demonstrada.

    Denise Klein, companheira de turma e de jornada de pesquisa. Pela

    partilha, carinho e amizade.

    Marineide e Rafael, estagirios de Iniciao Cientfica, que me

    ajudaram, com muita prontido, nas transcries das entrevistas.

    Aos colegas do Grupo de Pesquisa Educao, Subjetividade e

    Psicanlise: Ana, Aline, Mrcia, Enjy, Eliana e Cludio. Pelos constantes debates

    de idias.

    Vera Blum, pela convivncia e presena amiga.

    s funcionrias da Secretaria da Ps-Graduao, Mariana e Luiza. Pela

    disponibilidade, prontido e estmulo.

    Deus, por tudo isso...

  • No sou a areia onde se desenha um par de asas ou grades diante de uma janela. No sou apenas a pedra que rola Nas mars do mundo, em cada praia renascendo outra. Sou a orelha encostada na concha da vida, sou construo e desmoronamento, servo e senhor, e sou mistrio. A quatro mos escrevemos o roteiro para o palco de meu tempo: o meu destino e eu. Nem sempre estamos afinados, nem sempre nos levamos a srio. Lya Luft

  • RESUMO

    O presente trabalho tem como propsito investigar a reinsero escolar de meninas

    em situao de risco social que vivem em um abrigo pblico no municpio de Cuiab,

    Mato Grosso. A discusso terica tecida a partir dos dados coletados em escolas

    pblicas e no prprio abrigo e interpretados segundo os conceitos de educao,

    cultura e subjetividade. O objetivo do trabalho desvendar como meninas em

    situao de risco social se sentem e se vem ao serem reinseridas no processo de

    escolarizao. O eixo central est na discusso sobre como as diferenas, tratadas

    com preconceito no espao escolar, culminam em situaes de intolerncia na

    relao interpares e no processo de incluso. Nesta perspectiva, destaca-se o papel

    da escola enquanto instituio mediadora do processo conflituoso a fim de abrir

    caminhos que possibilitem lidar, de maneira mais criativa, com as diferenas que se

    colocam no s na vida de aluno como em todas as situaes do viver conjunto. A

    orientao metodolgica da pesquisa de natureza qualitativa, de inspirao

    fenomenolgica e do tipo etnogrfico. Foram utilizadas as tcnicas de observao

    nas escolas e no abrigo, anotaes no dirio de campo, depoimentos escritos e

    entrevistas semi-estruturadas.

    Palavras-chave: Educao. Reinsero. Meninas em Situao de Risco

  • ABSTRACT

    The main objective of this work is to present a preview reflection on reintegration of

    adolescent girls in situation of social risk who lived in a public shelter. The theoretical

    discussion was based on data collected in a municipal school, in Cuiab city, Mato

    Grosso. The methodological orientation is qualitative and it used techniques of

    participant observation and interviews to data collection. This discussion focused on

    the stigmas as peculiarities of differences that consist of inequalities in public

    schools, reaching to situations of violence among the school fellows as well as

    resulting in process of exclusion. According to this perspective, it was highlighted the

    importance of school role as a peacemaker institution in conflicting process of

    accepting the differences considering the whole process in a holistic vision taking into

    account political, educational and social considerations.

    Key-words: school inclusion, peculiarities, inequality, violence.

  • LISTA DE ILUSTRAES

    Figura 01 Fachada de entrada da Casa de Retaguarda......................... 60 Figura 02 Vista da guarita da Casa de Retaguarda e do porto de acesso rua...............................................................................................

    61

    Figura 03 Entrada que d acesso ao interior da Casa de Retaguarda... 62 Figura 04 Momento na Casa em que as meninas esto fazendo tarefa da escola....................................................................................................

    63

    Figura 05 Momento na Casa em que as meninas esto fazendo tarefa da escola....................................................................................................

    64

    Figura 06 Momento de descontrao das meninas na Casa.................. 65

  • SUMRIO

    INTRODUO............................................................................................ 12 CAPTULO 1

    DISCUTINDO A EDUCAO, A CULTURA E A SUBJETIVIDADE: em

    busca de elementos tericos para a compreenso do

    objeto...........................................................................................................

    23

    CAPTULO 2

    RETRATOS DA INFNCIA E DA ADOLESCNCIA POBRES NO

    BRASIL.......................................................................................................

    34

    2.1 Notas histricas sobre a infncia brasileira desvalida.......................... 35

    2.2 A noo de situao de risco como construo social....................... 42

    2.3 As instituies de abrigagem................................................................ 45

    2.4 Criana, adolescente e cidadania......................................................... 53

    CAPTULO 3

    A PROPSITO DE UMA ETNOGRAFIA DO UNIVERSO PESQUISADO 59

    3.1 A Casa de Retaguarda Paulo Prado.................................................. 60

    3.2 As meninas da Casa de Retaguarda.................................................... 70

    3.3 As escolas das meninas....................................................................... 81

    3.3.1 Escola Sinal Verde.......................................................................... 81

    3.3.2 Escola Sinal Azul............................................................................. 83

    3.3.3 Escola Sinal Amarelo...................................................................... 87

    3.3.4 Escola Sinal Vermelho.................................................................... 88

    3.4 Percepo das meninas acerca da escola, violncia, preconceito e

    Casa de Retaguarda...................................................................................

    89

    3.5 Escola Oportunidade: uma sala de aula diferente............................. 93

    CAPTULO 4

    AS DIFERENAS NO PROCESSO DE REINSERO ESCOLAR.......... 107

    4.1 A construo da noo de excluso..................................................... 108

    4.2 Reinsero escolar: entre a excluso e a incluso.............................. 111

  • 4.2.1 Mal-estar na escola: como ficam as diferenas?............................... 113

    4.2.2 O narcisismo das pequenas diferenas na formao dos grupos..... 121

    4.3 A Escola no processo de reescolarizao das meninas...................... 125

    CONSIDERAES FINAIS ....................................................................... 131 REFERNCIAS........................................................................................... 137 APNDICES................................................................................................ 143

  • INTRODUO

    Procuro despir-me do que aprendi, Procuro esquecer-me do modo de lembrar que me ensinaram, E raspar a tinta com que me pintaram os sentidos, Desencaixotar as minhas emoes verdadeiras, Desembrulhar-me e ser eu... preciso esquecer a fim de lembrar, preciso desaprender a fim de aprender de novo... Alberto Caeiro

  • Foi em uma ambincia de festas natalinas, visitando

    uma exposio de artesanato, que conheci o projeto da Casa de Retaguarda

    Paulo Prado. As meninas abrigadas da Casa estavam expondo trabalhos manuais

    que elas haviam confeccionado para a comemorao do Natal. Eram guirlandas,

    enfeites de mesa e de parede. Percebi a satisfao no olhar daquelas meninas ao

    descreverem o seu objeto de criao: elas faziam isso com dados

    pormenorizados que encantavam cada visitante que passava por l.

    Interessei-me pelo projeto j que, para mim, tratava-se

    de um trabalho interessante e inusitado em nossa cidade. Ainda na exposio,

    procurei a coordenadora da Casa que me prestou todos os esclarecimentos s

    minhas indagaes - a Casa de Retaguarda Paulo Prado, criada em 1999, faz

    parte de uma poltica preventiva da Prefeitura Municipal de Cuiab. A Casa abriga

    meninas em situao de risco social, vtimas de violncia e abandono, alm de

    buscar a reintegrao delas famlia original ou substituta.

    Tive a oportunidade de conhecer o espao da Casa de

    Retaguarda no ano de 2000, j com uma inteno de pesquisa. Mas por que esse

    lugar? O que procurava ali? O que chamou a minha ateno para a pesquisa?

    Speller (2002, p. 2) nos revela que em todas as nossas escolhas sempre h

    determinaes psquicas que se no se apresentam conscientemente, insistem e

    persistem, manifestando-se das mais diversas maneiras, escolhendo diferentes

    invlucros. Que no percurso deste trabalho eu possa encontrar essas respostas.

    Atravs do Regimento Interno da Casa, percebi que

    uma das exigncias para a permanncia das meninas no abrigo a freqncia

    escola. medida que as meninas chegam l, elas so imediatamente

    matriculadas em alguma escola, geralmente a mais prxima da Casa.

    Como acontecia o processo da reinsero escolar

    dessas meninas consideradas em situao de risco so cial? Este

    questionamento comeou a fazer parte de minhas reflexes acerca daquelas

    meninas e foram se desdobrando em outras questes: como as meninas eram

    recebidas/tratadas pelos colegas, professores e funcionrios da escola? Como elas

    prprias se viam/sentiam nesse processo? Existia alguma preocupao da escola

    com a questo?

  • Procurando responder ao clamor constante destas

    perguntas que no mais calaram dentro de mim que me propus iniciar a pesquisa

    em 2001, orientada pela professora Dr Maria de Lourdes Bandeira no Programa de

    Ps-Graduao em Educao da Universidade de Cuiab - Unic.

    O exerccio de investigao iniciou no ano de 2001 em

    uma escola municipal no bairro Bela Vista em Cuiab-MT que recebia alunas

    abrigadas na Casa de Retaguarda Paulo Prado. Nessa escola, encontravam-se seis

    meninas matriculadas naquele ano.

    Minha ento orientadora, Dr Maria de Lourdes Bandeira,

    na Unic, orientou-me a elaborar um roteiro para nortear as entrevistas com as

    meninas e os professores da escola com a finalidade de aprofundar as questes e

    esclarecer os problemas observados. Ao todo, em 2001/2002, foram entrevistados

    seis professores e apenas trs meninas na escola, pois as demais saram do abrigo.

    Para contextualizar o fenmeno estudado e complementar

    as informaes coletadas atravs das outras fontes, analisei as fichas de matrcula,

    histricos escolares e relatrios de rendimento escolar.

    Ao iniciar a anlise e interpretao dos dados coletados

    em 2001 e 2002, fui surpreendida com a informao de que o Programa de Ps-

    Graduao em Educao da Universidade de Cuiab, onde ento fazia meu

    Mestrado, no seria reconhecido pela Capes. Este fato abalou a continuidade da

    pesquisa.

    Em 2005 fui aprovada no exame de seleo do Programa

    de Ps-Graduao em Educao da Universidade Federal de Mato Grosso. No

    grupo de pesquisa Educao, Subjetividade e Psicanlise, sob a orientao da

    Professora Dr. Maria Augusta Rondas Speller, tive a oportunidade de retomar o

    trabalho e dar continuidade pesquisa.

    Levando em conta os dados obtidos em 2001 e 2002, e

    considerando que atualmente as meninas pesquisadas naquela ocasio no se

    encontram mais na Casa de Retaguarda e na escola estudada, sem descartar dados

    j obtidos que fossem interessantes para a pesquisa atual no processo da

    reinsero escolar, busquei pesquisar a populao atual daquele abrigo,

  • contrastando os dados de 2001/2002 com os coletados em 2006, diante da mesma

    problemtica.

    Aproximei-me novamente da Casa de Retaguarda em

    2006, verificando que a Casa contava com uma nova gesto, tanto em mbito

    poltico quanto tcnico. Solicitei formalmente ao novo Secretrio Municipal de

    Assistncia Social e Desenvolvimento Humano a concesso do espao da Casa

    para a minha pesquisa no que fui prontamente atendida.

    Ao todo, em 2006, entrevistei treze meninas, uma

    conselheira tutelar, cinco professoras, uma diretora e trs coordenadoras

    pedaggicas das escolas freqentadas pelas meninas. No contato com as meninas,

    pude perceber histrias tristes de perdas, violncias vividas, abandonos,

    negligncias parentais em suas vidas. Surpreendi-me, em alguns momentos,

    bastante emocionada, noutros surpresa, com experincias que jamais imaginava

    que podia passar uma criana.

    Freqentei a Casa de Retaguarda por aproximadamente

    trs meses, convivendo com a rotina das meninas, as idas escola, ao mdico, ao

    dentista, ao acompanhamento psicoterpico e ainda, nas suas horas de lazer. A

    coordenadora e os funcionrios da Casa contriburam bastante com o meu trabalho,

    cooperando com a disponibilidade do espao para as entrevistas com as meninas e

    tambm me convidando para participar das reunies internas onde eram tratados os

    mais diversos assuntos relacionados a elas.

    Coletados os dados na Casa atravs das entrevistas e

    observao participante, parti para trabalhar nas escolas freqentadas pelas

    meninas. Ao todo foram trs escolas onde coletei informaes acerca da reinsero

    escolar das meninas.

    A produo de conhecimento sobre o que se convencionou

    chamar reinsero escolar no muito grande no Instituto de Educao da

    Universidade Federal de Mato Grosso. Prova disso foi o nmero rarefeito de obras

    encontradas nas bibliotecas da Universidade. Com efeito, um estudo da situao

    atual da pesquisa desse tema no pode desconsiderar reflexes anteriores, mesmo

    que difiram quanto abordagem do objeto.

  • A pesquisa e a reflexo sobre a reinsero escolar de

    meninas em situao de risco social no tm sido comuns no meio acadmico. Aps

    levantamento realizado em bibliotecas locais e em banco de dados, pela internet, de

    universidades brasileiras at outubro de 2007, encontrei apenas quatro dissertaes

    de mestrado e um estudo exploratrio com abordagens que se aproximam do meu

    tema de estudo, sendo duas em nvel local (BIRCK, 2003; AIZA, 2003) e trs em

    nvel nacional (MOREIRA, 2002; OLIVEIRA, 2002; BARIANI et al, 2005).

    No estado da arte da pesquisa sobre a reinsero escolar

    no encontrei de forma explcita, tanto em nvel local quanto nacional, a temtica da

    reinsero escolar. Entretanto, parto do pressuposto de que se h movimento de

    reinsero, porque h excluso, tema este comum nas produes analisadas.

    Em Mato Grosso, a pesquisa e a reflexo acerca de

    questes relacionadas escola tm sido feitas principalmente junto ao curso de

    Pedagogia da Universidade Federal de Mato Grosso, que ocupa lugar significativo

    na produo de conhecimento sobre as problemticas do ensino brasileiro e

    contribuindo na instituio de polticas pblicas educacionais na regio.

    O corpus sobre o qual incidiu esse levantamento limita-se

    a dissertaes defendidas no Instituto de Educao da Universidade Federal de

    Mato Grosso e includas no sistema Microisis das bibliotecas setorial e central da

    Universidade at outubro de 2007.

    O levantamento teve incio com um rol de expresses de

    busca ampliada referentes reinsero escolar1. Procedeu-se, ento, leitura dos

    ttulos e assuntos das obras encontradas no Microisis com temas e abordagens

    aproximadas ao objeto de estudo. Nos casos em que as informaes disponveis no

    sistema no eram suficientes, procedeu-se consulta dos textos em pauta no

    acervo das bibliotecas. Ao final, foram localizadas apenas duas dissertaes que

    tangenciam a temtica da reinsero escolar: As prticas excludentes do cotidiano

    das escolas pblicas de Cuiab, de autoria de Wilce de Ftima Calazans Birck,

    (2003) e Desvelando a excluso de jovens e negros: o ponto de vista dos

    excludos, de autoria de Maria Aparecida de Souza Aiza, (2003). 1 So elas: escola e/ou educao, associados s palavras com asterisco; (*)reinsero; (*)incluso; (*)excluso; (*)violncia; (*)evaso; (*)repetncia; (*)cultura escolar; (*)diversidade cultural; (*)estigma; (*)etnocentrismo; (*)preconceito; (*)esteretipo; (*)desigualdade; (*)intolerncia; (*)diferena; (*)prticas excludentes; (*)estatuto da criana e do adolescente; (*)relaes escolares; (*)instituio.

  • Em ambas as produes locais encontradas, notamos a

    coexistncia de concepes comuns de escola e/ou educao. Tanto as polticas

    pblicas quanto as escolas enquanto instituies sociais tratam a evaso e

    repetncia de forma homognea, sem levar em conta a pluralidade tnico-cultural do

    pas.

    Com efeito, esses relatos de pesquisa consideram que a

    prtica escolar exclui os alunos marcados pelas diferenas, sejam elas de cor,

    classe social, sexualidade, etc. Nesse sentido, ambas as dissertaes consideram

    que a diversidade uma problemtica do fenmeno educativo, por isso indicam que

    as diferenas na escola sejam tratadas de acordo com as particularidades dos

    alunos buscando atender ao princpio da eqidade.

    A temtica da violncia tambm tratada em ambas as

    produes locais de forma convergente, indicando que a instituio da diferena

    com intolerncias tem se tornado uma forma resistente de corporificao da

    violncia nas instituies escolares, alm das ameaas, das agresses verbais, do

    preconceito e discriminao manifestados atravs da excluso escolar gerada pelo

    fracasso no ensino-aprendizagem.

    Quanto ao fracasso do aluno e conseqente desistncia da

    escola, uma das produes constatou que a escola indica a famlia do aluno como a

    grande responsvel. A outra produo constatou que a escola aponta ser o aluno o

    responsvel pelo fracasso e desistncia, isentando-se de qualquer responsabilidade.

    Dessa forma, reproduz e refora o discurso oficial.

    Diante das possibilidades de superao da problemtica

    estudada, apenas uma autora (BIRCK, 2003) apresenta alternativas para a

    minimizao do processo de excluso da escola, propondo a superao do modelo

    conservador e reprodutivista atravs de mudanas metodolgicas que considerem

    as bagagens escolares dos alunos, suas histrias, suas temporalidades, seus

    cdigos lingsticos, suas culturas, seus valores. Essa pesquisadora enfatiza a

    importncia de a escola realizar pesquisas e produzir conhecimentos de forma a

    priorizar os alunos como seus sujeitos.

    Em nvel nacional, trs pesquisas foram encontradas com

    temticas que tangenciam meu objeto de estudo. Uma, refere-se a uma abordagem

  • psicolgica da reinsero escolar de crianas com cncer (MOREIRA, 2002),

    revelando que a volta da criana com cncer para a escola estressante por

    envolver aspectos emocionais e questes relativas aceitao social. Outra

    pesquisa (OLIVEIRA, 2002) investiga o processo de incluso social na vida de

    adolescentes em conflito com a lei, onde a dialtica da excluso/incluso se

    manifesta pela confirmao, negao ou construo da identidade desses

    adolescentes. A terceira pesquisa encontrada (BARIANI et al, 2005) refere-se a um

    estudo exploratrio em que foram ouvidos professores sobre suas dificuldades

    encontradas em relao aos alunos em liberdade assistida.

    lvaro Vieira Pinto (1969) alerta sobre a importncia da

    reflexo terica e filosfica no trabalho do investigador cientfico, colocando-a como

    condio vital para a superao da etapa da cultura reflexa, vegetativa, emprestada

    e imitativa. Ele defende a tese de que a formao terica do pesquisador deve se

    constituir por uma filosofia de pesquisa cientfica que contemple toda a reflexo

    sobre a metodologia da investigao, a lgica do raciocnio cientfico e a sociologia

    da cincia.

    Desta feita, neste trabalho busco evitar a cristalizao do

    conhecimento e de fazer dessa pesquisa espao de produo de saber que tenha

    constante movimento. Nesse sentido, a interlocuo realizada com outras pesquisas

    possibilitou a reflexo sobre questes levantadas e no respondidas por

    investigaes anteriores; possibilitou-me tambm contribuir com o avano do

    entendimento de questes candentes postas pela realidade escolar brasileira, de

    modo a colaborar, de fato, com a construo histrica da escola pblica.

    A metodologia que orienta este trabalho de natureza

    qualitativa, de inspirao fenomenolgica e do tipo etnogrfico, tal como estudamos

    em Andr (1998).

    A metodologia qualitativa nas cincias sociais surge com o

    advento da fenomenologia. Na dcada de 1970, na Inglaterra, iniciou-se uma

    corrente fenomenolgica fundamentalmente de natureza sociolgica, influenciando o

    campo da educao na pesquisa e no currculo.

    A pesquisa do tipo etnogrfico em educao , segundo

    Andr (1998), uma adaptao onde certos requisitos da etnografia no necessitam

  • ser cumpridos pelos investigadores de questes educacionais, como por exemplo,

    uma longa permanncia do pesquisador em campo, o contato com outras culturas e

    o uso de amplas categorias sociais de anlise de dados. (ANDR, 1998, p. 28).

    Em uma pesquisa do tipo etnogrfico, o pesquisador faz

    uso de tcnicas associadas etnografia, como a observao participante, a

    entrevista intensiva, anotaes em caderno de campo e anlise de documentos.

    Considerando essa a minha abordagem de pesquisa, na

    coleta de dados utilizei como tcnicas a observao participante, dirio de campo,

    entrevistas semi-estruturadas e anlise de documentos.

    Na observao, busquei apreender, atravs das diferentes

    formas de linguagem das meninas, aspectos latentes, no verbais, expressivos de

    seu modo de se situar no social e nas circunstncias de suas vivncias, assim como

    a dinmica de funcionamento das instituies estudadas e as relaes

    estabelecidas. A observao chamada de participante porque parte do princpio

    de que o pesquisador tem sempre um grau de interao com a situao estudada,

    afetando-a e sendo por ela afetado. (ANDR, 1998, p. 28).

    Nas entrevistas utilizei um roteiro flexvel orientado no

    sentido de registrar a voz dos sujeitos sobre si mesmos, sobre quem so, como se

    vem e como pensam ser vistos. As meninas foram estimuladas a falarem

    livremente, a relatarem acontecimentos do dia-a-dia na Casa de Retaguarda e na

    escola e sobre suas histrias e condies de vida. Com os professores,

    coordenadores pedaggicos, diretora e conselheiros tutelares, busquei aprofundar

    as questes e esclarecer os problemas observados.

    Ao todo, registrei depoimentos de 16 (dezesseis) meninas

    abrigadas, sendo 03 (trs) meninas nos anos de 2001/2002 e 13 (treze) meninas em

    2006. Nas entrevistas, solicitei a elas que escolhessem um nome fictcio para que

    suas identidades fossem preservadas na pesquisa. Apresento cada uma delas:

    Mikeli, 14 anos, estudante da 6 srie; Ludimila, 14 anos, estudante da 5 srie;

    Lucicleide, 16 anos, estudante da 5 srie; Daiana, 14 anos, estudante da 8 srie;

    Beatriz, 13 anos, estudante da 7 srie; Rafaela, 13 anos, estudante da 2 srie;

    Mariana, 12 anos, estudante da 4 srie; Brenda, 17 anos, estudante da 6 srie;

    Evelin, 13 anos, estudante da 3 srie; Sabrina, 15 anos, estudante da 5 srie;

  • Daniela, 11 anos, estudante da 3 srie; Kathelyn, 16 anos, estudante da 8 srie;

    Tatiane, 15 anos, estudante da 2 srie; Gabriela, 11 anos, estudante da 2 srie;

    Lupita, 11 anos, estudante da 1 srie; Cssia, 11 anos, estudante da 2 srie.

    Analisei as fichas de matrcula e os relatrios de

    desempenho escolar das meninas no sentido de contextualizar o fenmeno,

    explicitar suas vinculaes mais profundas para complementar as informaes

    coletadas.

    No tempo em que estive em coleta de dados, tanto na

    Casa de Retaguarda quanto nas escolas, utilizei a forma de registro em caderno de

    campo, em que busquei anotar todas as minhas impresses enquanto pesquisadora:

    os silncios, os suspiros, os olhares distantes, os gestos, os sinais, inclusive o

    sentido que tudo isso tinha para mim.

    Entreguei s meninas um caderno pequeno para que elas

    registrassem aquilo que achassem mais importante dos acontecimentos e situaes

    ocorridas no cotidiano da vida na escola, desde o primeiro dia de aula. Para tanto,

    sugeri um roteiro temtico para orientar e estimular a escrita das meninas,

    constando dos seguintes tpicos: como voc se sentiu na chegada a essa escola;

    como foi recebida na escola; situaes de alegria e de tristeza na escola; colegas;

    professores; aulas, tarefas e provas; hora do lanche; amizades; entrada e sada da

    escola; festas na escola; preconceitos; violncias.

    Ao todo, foram elaborados oito dirios, cujos registros

    foram categorizados nos temas escola, violncia, preconceito e casa de retaguarda,

    aos quais explicitei significados, buscando compreender e interpretar o que foi

    escrito pelas meninas. Os dirios foram instrumentos importantes neste estudo,

    possibilitando discutir aspectos singulares da Casa de Retaguarda e das escolas, a

    partir da viso das prprias meninas. Ao final deste trabalho, com o intuito de ilustrar

    os instrumentos utilizados na pesquisa, coloco como apndice minhas anotaes no

    dirio de campo e os roteiros de entrevistas com as meninas.

    Atravs dos materiais colhidos, foi possvel identificar os

    aspectos objetivos e subjetivos que compunham a realidade vivida pelas meninas na

    escola. As perguntas feitas a elas quem voc e qual a histria da sua vida -

  • foram recorrentes em suas respostas elementos reveladores de como pensam,

    vem a si prprias e se sentem na Casa de Retaguarda e na escola.

    Assim, comecei a montar redes de informaes, anotando

    e descrevendo os fenmenos. Eu sentia que havia chegado numa etapa crucial da

    pesquisa.

    Oliveira (1998) em seu livro O trabalho do antroplogo,

    problematiza a questo do olhar, ouvir e escrever nas cincias sociais. Ele diz que

    esses atos cognitivos assumem um sentido especfico, uma vez que com eles que

    elaboramos o saber cientfico. Argumenta que atravs do olhar e do ouvir

    disciplinados que realizamos nossa percepo, no entanto o nosso pensamento

    expressar de forma pura atravs do ato de escrever.

    Esse autor diz que o olhar do pesquisador estrutura-se

    pelo esquema conceitual apreendido durante sua vida acadmica e funciona como

    uma espcie de prisma por meio do qual a realidade observada sofre um processo

    de refrao. Entretanto, para chegar estrutura das relaes sociais o pesquisador

    dever utilizar um outro recurso de obteno de dados: o ato de ouvir. Para esse

    autor, tanto o ouvir como o olhar, no podem ser tomados como faculdades

    independentes no exerccio da investigao. Ambas completam-se e servem para o

    pesquisador como duas muletas que permitem caminhar na estrada do

    conhecimento.

    Segundo o autor, o momento de escrever, marcado por

    uma interpretao de e no gabinete, faz com que os dados sofram uma nova

    refrao contaminada pelo ambiente acadmico. O escrever passa a ser parte

    indissocivel do nosso pensamento, uma vez que geralmente simultneo ao ato de

    pensar. O ato de escrever um ato cognitivo, que pode ser repetido quantas vezes

    forem necessrias, aperfeioado do ponto de vista formal, melhorando a veracidade

    das descries e da narrativa, aprofundando a anlise e consolidando argumentos,

    sempre marcado por uma postura relativista do pesquisador.

  • Buscando, assim, relativizar2 os dados coletados atravs

    das tcnicas utilizadas descritas anteriormente, iniciei a anlise dos dados com o

    intuito de compreender e interpretar o objeto da reinsero escolar.

    Este trabalho foi desenvolvido em quatro captulos. No

    primeiro captulo, adotando uma abordagem multirreferencial, elucido elementos

    tericos que me favoreceram a compreenso da reinsero escolar a partir da

    articulao dos conceitos de educao (Brando, 1999; Bandeira, 2000, 2003),

    cultura (Geertz, 1989; Bandeira, 2000, 2003, 2006a, 2006b) e a subjetividade

    (Freud, 1995; Fuks, 2003; Speller, 2002, 2004, 2006, 2007).

    No segundo captulo apresento um breve histrico sobre a

    infncia e a adolescncia pobres no Brasil, procurando compreender o objeto de

    pesquisa em questo dentro de sua construo histrica. Neste captulo, abordo

    como a noo de crianas em situao de situao de risco se constituiu

    socialmente problematizando o uso desse termo na contemporaneidade; abordo

    tambm, sob uma perspectiva crtica, as instituies de abrigagem enquanto

    polticas de atendimento e discuto de uma forma problematizadora a questo da

    cidadania de crianas e adolescentes to propalada nos dias atuais.

    No terceiro captulo, numa perspectiva dialgica, proponho

    uma etnografia do universo da pesquisa, onde fao uma descrio densa da Casa

    de Retaguarda, das meninas e das escolas por elas freqentadas e, ao mesmo

    tempo, inicio a anlise interpretativa dos dados encontrados. Encerro o captulo

    descrevendo uma sala da aula realmente diferente do que normalmente

    encontramos nas escolas, um verdadeiro achado em minha pesquisa.

    No quarto captulo dou continuidade anlise e

    interpretao os dados luz do referencial terico escolhido e inter-relacionando

    com o contexto histrico social das meninas consideradas em situao de risco.

    Para tanto, valho-me das grandiosas contribuies que a psicanlise traz para a

    educao.

    Ao final, apresento as consideraes finais.

    2 Por relativizar entendo a atitude do pesquisador de escapar da ameaa dos conceitos preestabelecidos de ver o mundo.

  • CAPTULO 1

    DISCUTINDO A EDUCAO, A CULTURA E A SUBJETIVIDADE:

    EM BUSCA DE ELEMENTOS TERICOS PARA A COMPREENSO D O OBJETO

  • Basta uma folha de rvore para lermos nela as propriedades essenciais de todas as folhas pertencentes ao mesmo gnero; mas um homem no pode jamais representar ou expressar a essncia da humanidade. Agnes Heller

    A escola um lugar de vida, uma comunidade que rene um conjunto de

    pessoas e de grupos em interao recproca. Ela est imersa num mundo

    globalizado cujas prticas sociais esto cada dia mais complexas, demandando

    novos olhares e novas perspectivas para a leitura do objeto educacional.

    A multidimensionalidade dos problemas do mundo globalizado coloca-se

    como desafio para pesquisadores das reas das Cincias Humanas e Sociais,

    requerendo destes um olhar plural e dialgico sobre seu objeto de investigao.

    Entendendo a educao como prtica social imersa na complexidade do

    mundo contemporneo, mister se faz que busquemos uma multiplicidade de olhares

    sobre o humano, a partir da conjugao de vrias correntes tericas, o que se

    desdobra em nova perspectiva epistemolgica na construo do conhecimento

    sobre os fenmenos educativos.

    A respeito disso, o professor Jacques Ardoino, da Universidade de Paris

    VIII, prope o pensamento multirreferencial, que vem contribuir para a elaborao de

    uma abordagem no fechada em si, mas aberta complexidade da realidade.

    (Barbosa, 1998).

    A abordagem multirreferencial, segundo Ardoino (1998), prope-se a uma

    leitura plural de seus objetos sob diferentes pontos de vista de modo a romper os

    laos que nos tornam prisioneiros de uma linguagem unidimensional,

    indiferenciadora e sincrtica da cincia moderna. Nesse sentido, Ardoino postula

  • que prefervel demarcar, escolher, distinguir, reconhecer, diferenciar os sentidos

    mais diversos que podem revestir os termos empregados pelos sujeitos, em funo

    das posies sociais e subjetivas dos interlocutores, de acordo com as conjunturas

    mais amplas nas quais se inscrevem as prticas sociais.

    A investigao do fenmeno educativo, perspectivada na

    multirreferencialidade, mobiliza diversos saberes que podem contribuir para a sua

    compreenso. A natureza do objeto de pesquisa desta dissertao, a reinsero

    escolar de meninas em situao de risco social, demanda diferentes olhares, um

    olhar plural de diferentes ngulos. A sua compreenso se enriquecer

    incontestavelmente se for efetivamente levado em considerao a partir de diversas

    ticas.

    Dentre as diferentes possibilidades de enfoques tericos, nesta

    dissertao vou privilegiar o enfoque da educao, da cultura e da subjetividade,

    num esforo de conjugar preceitos antropolgicos e psicanalticos como mltiplos

    olhares, multirreferenciais, para a compreenso da reinsero escolar das meninas

    em situao de risco.

    Neste trabalho fao uma interlocuo com Brando (1999) e Bandeira

    (2000; 2003) para falar de educao; discuto cultura com Geertz (1989) e Bandeira

    (2000; 2003; 2006a; 2006b); e a subjetividade com Freud (1995), Fuks (2003) e

    Speller (2002; 2004; 2006; 2007).

    O conceito de educao com o qual trabalho se baseia em Brando

    (1999) para o qual a educao no se circunscreve to somente sala de aula, mas

    se realiza em todos os espaos e em todos os momentos da vida, da o

    reconhecimento popular disso ao dizer que nascemos, crescemos e morremos

    aprendendo. Sob essa tica a educao uma prtica social. Uma vez praticada

    modifica e acresce.

    Entendendo a educao como um fenmeno, Bandeira (2000) vai nos

    dizer que a educao um fenmeno da cultura, compreendendo cultura como

    discurso social. Nesse sentido, para essa autora, a educao constituda nesse

    discurso e, por conseguinte, dele constitutiva. Ao se falar da educao como

    fenmeno da cultura e da cultura como discurso social, postula-se a cultura como

  • fonte de sentidos, sendo toda significao dela inseparvel. (BANDEIRA, 2000, p.

    144).

    Calligaris (1997) tambm define cultura como um fluxo discursivo, tudo o

    que foi se articulando discursivamente, oralmente ou por escrito. Ele diz: Imaginem

    que [a cultura] seja uma espcie de rio de palavras que vai andando e, no meio

    deste rio, a gente fala e pede carona. De repente, o que a gente diz s encontra

    significao no que vai ser dito ou no que foi dito antes. (CALLIGARIS, 1997, p.

    194).

    Uma das caractersticas marcantes do ser humano que um ser que

    est em constante construo, o que demonstra sua condio de incompletude. Ele

    cria a cultura e por ela criado num processo de recursividade3. A esse respeito, diz

    Freire (1989) que o atributo geral do homem ser produtor de cultura e que o

    significado das coisas acontece no real e atravs do real, lugar onde o homem

    adquire e sistematicamente conhece a experincia humana.

    Descoberto como fazedor de cultura, o homem desenvolve uma ao

    sgnica criando significados de cunho dialgico relacional, em espaos

    temporalmente localizados, nas relaes com a natureza e com outros homens. Ao

    interferir na natureza, o homem modifica a realidade. Criando e recriando a vida

    torna concreta a sua vida como indivduo integrante de um grupo enquanto

    coletividade que o lugar onde supera os desafios e as adversidades. , portanto,

    com a realidade e na realidade que o homem se torna pessoa no mundo,

    integrando-se na qualidade de ser humano. (BANDEIRA et al, 2003).

    Para Bandeira e Freire (2006a), a cultura formata e preenche toda a vida

    humana como se fosse, ao mesmo tempo, o vaso que molda e contm nosso modo

    de vida, e o lquido, que o preenche, que o nosso estilo de vida. (p. 24). Eles

    dizem que, apesar de a cultura preencher a vida, ela raramente interfere em nosso

    pensamento consciente porque a maior parte das condutas e comportamentos

    humanos no determinada conscientemente. Assim, os autores completam:

    O sistema cultural introjetado em nosso inconsciente, atuando sobre as condutas e comportamentos. Cada membro da cultura, em

    3 Processo que realiza um circuito, em que o produto ou efeito ltimo torna-se elemento primeiro ou causa primeira.

  • sua experincia cotidiana, no capta e nem explicita todas as possibilidades da totalidade da cultura em suas prticas, aes e expresses afetivas. (BANDEIRA; FREIRE, 2006a, p. 24).

    Nesse sentido, quando praticamos aes corriqueiras, no temos

    conscincia das regras que as regem, pois o sistema simblico, marcado pela

    cultura, est assimilado em nosso inconsciente. Lembro de Tristo de Athayde

    quando diz que cultura tudo aquilo que fica de tudo que se esquece.

    Podemos inferir, ento, que a cultura pode ser compreendida como as

    dimenses simblicas da ao social. A esse sistema simblico dialogicamente

    construdo pelo homem, Geertz (1989) tambm nomeia de cultura e atribui a ela um

    conceito semitico.

    Geertz, criador do interpretativismo antropolgico, redefine a cultura

    diante da perspectiva da antropologia tradicional, por acreditar que o homem um

    animal amarrado s teias de significados que ele mesmo teceu. Nesse sentido, ele

    assume a cultura como sendo essas teias. Para ele, assim como para os autores

    citados anteriormente, o ser humano um animal incompleto e inacabado e que

    apenas se completa atravs da cultura. Sem os homens certamente no haveria

    cultura e sem cultura no haveria homens.

    Geertz entende que a abordagem semitica de cultura contribui para

    acessar o mundo conceitual no qual vivem os sujeitos favorecendo ao pesquisador

    um dilogo com eles no sentido de apreender seu universo cultural e o papel da

    cultura na vida deles. Nesse sentido, ele diz:

    Nossa dupla tarefa descobrir as estruturas conceptuais que informam os atos dos nossos sujeitos, o dito no discurso social, e construir um sistema de anlise em cujos termos o que genrico a essas estruturas, o que pertence a elas porque so o que so, se destacam contra outros determinantes do comportamento humano. (GEERTZ, 1989, p. 19).

    Dito de outra forma, esse autor encara a cultura como uma cincia

    interpretativa procura do significado. Da a proposio que faz da anlise cultural

    como forma de conhecimento. Ele esclarece que a anlise cultural uma avaliao

    das conjeturas onde o investigador traa suas concluses explanatrias a partir das

  • melhores suposies. Esclarece ainda que no estudo da cultura, os significantes

    no so sintomas ou conjuntos de sintomas, mas atos simblicos [...] e o objetivo

    no a terapia, mas a anlise do discurso social (GEERTZ, 1989, p. 18) para

    investigar a importncia no aparente das coisas.

    O autor explica que a cultura mais bem vista como um mecanismo de

    controle para governar o comportamento humano, em que os planos, as receitas,

    as regras, as instrues, os programas so inteiramente importantes para ordenar o

    comportamento humano. No dirigido por padres culturais [...] o comportamento

    do homem seria virtualmente ingovernvel, um simples caos de atos sem sentido e

    de exploses emocionais. (GEERTZ, 1989, p. 33). Nesse sentido, a cultura uma

    condio essencial para a existncia humana, a principal base de sua

    especificidade.

    Com efeito, para dita anlise cultural, Geertz prope a etnografia densa

    como uma forma de leitura e interpretao dos fios tecidos pelos homens que vo

    constru-los e por eles ser construdos na vida social. Esses fios formam desenhos

    variados, contextos passveis de serem interpretados.

    No trabalho investigativo, o autor orienta que se deve deixar que o sujeito

    fale por ele prprio, a fim de se poder descobrir o que significa o discurso social,

    enquanto interpretao de uma produo simblica que pensa ser significativa para

    o seu grupo naquele momento. Ao mesmo tempo, o sujeito deixa contar o que a

    sociedade e a vida social evidenciam como significativo, pois, como membro dessa

    mesma sociedade, ele vai fornecer dados que permitem ao pesquisador ler e

    interpretar as ilhas de sentido que constituem o saber do grupo.

    Esse autor acredita que no uso da linguagem, escrita ou falada, o sujeito,

    em seu discurso, manifesta o discurso vigente da sociedade, do tempo e lugar em

    que se encontra. Logo, ao falar, o sujeito no fala apenas em seu prprio nome, mas

    fala pela sociedade a que se integra. O discurso , pois, o lugar de manifestao da

    significao e o seu meio de transmisso.

    Contudo, vale observar que a percepo do mundo no se d igualmente

    para uns e outros. Na diversidade dessas percepes que se estabelecem

    comportamentos sociais cujas diferenas refletem a viso de mundo de grupos

    sociais que expressam representaes, mitos, smbolos, com os quais organizam o

  • real, configurando um formato de vida social especfica. Assim as diferenas

    culturais passam a definir aquela comunidade: seu crer, seu fazer, seu saber, seu

    ser. (BANDEIRA et al, 2003).

    Essas diferenas culturais, que sero expressas e associadas a prticas

    culturais, definem os processos de identificao, de construo social da pessoa e,

    por sua vez, permitem integrar o sujeito a um dado grupo social. A criana, ao

    nascer, educada como membro da sociedade e da cultura para assuno de

    papis, a isso denomina-se socializao.

    a famlia a primeira instituio responsvel pela socializao da pessoa,

    tendo como foco a identidade social e sua expresso lingstica. Bandeira e Freire

    (2006b) observam que com o rito da nominao, aps o nascimento, que se marca

    o reconhecimento social do indivduo como membro de grande parte das

    sociedades. A partir da ser-lhe-o agregados novos atributos que passaro a fazer

    parte de sua identidade como pessoa e indivduo numa comunidade historicamente

    determinada e geograficamente delimitada. A segunda atribuio, aps a

    nominao, a de gnero, que definir o posicionamento da criana na famlia,

    como filho ou filha. Essa identidade, de ser homem ou ser mulher implica status

    social. No caso de sociedades patriarcais, machistas, a atribuio do status de

    gnero faz-se pela primazia do homem e secundarizao da mulher.

    Na nossa sociedade, o terceiro estgio de socializao corresponde ao

    processo de escolarizao, isto , a preparao para a vida produtiva, para o

    trabalho. A organizao de ensino compreende quatro graus: ensino fundamental,

    ensino mdio, ensino superior e ensino ps-graduado. A localizao no sistema de

    posies se far com a mediao do grau de escolarizao, a que correspondem

    diferentes lugares no ordenamento social.

    O quarto estgio de socializao vai corresponder insero no mundo

    do trabalho; o quinto e, ltimo, estgio corresponde fase da terceira idade.

    Para Bandeira e Freire, a escola, no contexto da sociedade brasileira,

    depois da famlia, a segunda instituio formal investida de poder, autorizada e

    legitimada pela sociedade para transmisso de uma parte da cultura, principalmente

    os conhecimentos tcnico-cientficos socialmente produzidos, cabendo a outras

    prticas sociais, a transmisso do que a escola no consegue dar conta.

  • Cabe educao, concebida como produo cultural, garantir a

    transmisso, continuidade e manuteno da cultura, de um lado e, por outro,

    contribuir para a transformao desta pelas prticas educativas. por meio da

    prtica educativa escolar, aliada a outras prticas sociais e culturais, que o homem

    entra em contato com o mundo simblico da cultura escolar e nela - e por meio dela

    - tem acesso ao conhecimento disciplinar, aos contedos curriculares.

    Por conseguinte, a escola a instituio legalmente autorizada

    educao formal, logo, responsvel por fazer circular e produzir conhecimentos,

    principalmente no que concerne ao conhecimento cientfico.

    Entendo que dentre as prticas sociais manifestadas pela cultura

    perpassam relaes subjetivas entre os indivduos que necessitam ser consideradas

    quando buscamos compreender o fenmeno educacional. Para analisar essas

    prticas busco as contribuies que a psicanlise tem para a educao no debate

    acerca da subjetividade na contemporaneidade.

    Resende (2007) recupera de Freud a concepo da educao ligada a

    processos civilizatrios, implicando cultura, processo de formao, de

    desenvolvimento individual e coletivo, mecanismos subjetivos. A psicanlise no

    restringe o olhar educao meramente a questes de ensino e aprendizagem. A

    interlocuo da psicanlise com a educao passa pela discusso da subjetividade,

    no enfrentamento do indivduo e da sociedade que a realidade se constitui.

    Em Speller (2007) verificamos que

    para a psicanlise, a educao entendida como um discurso social, implicando transmisso na cultura. Assim, as intersees entre psicanlise e educao se do num campo mais abrangente que o conformado pela psicanlise e pela cultura entendida como fluxo discursivo. [...] Assim, as possveis articulaes entre a psicanlise e a educao inserem-se num campo mais amplo que o criado pela psicanlise e cultura. Feitos na e pela linguagem, temos, para esboar as possibilidades da psicanlise junto educao, que escutar o discurso social, o discurso da cultura. (SPELLER, 2007, p. 1).

    Se para a psicanlise a cultura entendida como um fluxo discursivo da

    linguagem de mltiplas vozes sobre os sentidos diversos da vida e morte, cabe

    educao inserir o sujeito nesse mundo da linguagem tornando-o um ser discursivo.

  • Fuks (2003) detalha essa questo quando diz que se o beb no for

    introduzido no reino da linguagem ficar fora da cultura. A primeira interlocuo que

    se estabelece entre ele e o ser mais prximo que ocupa o lugar do Outro4 da

    linguagem, que geralmente a me, vai significar e nomear sua dor e a reconhecer

    as excitaes internas causadas pelas necessidades vitais e aprender a separ-las

    das excitaes externas que fluem do mundo externo. Segundo a autora,

    justamente na entrada desse Outro da linguagem na figura de um estranho que vai

    se dar a sociabilidade que

    [...] tem incio exatamente nesse ponto de captura da estranheza do prximo, nesse momento do nascimento de uma relao de parentesco para alm de toda a biologia, em que o outro , a um s tempo, um semelhante e aquilo que h de mais estranho e estrangeiro dentro de si para o sujeito. (FUKS, 2003, p. 12).

    Para Fuks (2003) isso seria um dos pontos fundamentais para futuros

    processos de subjetivao da criana e do adulto nas trocas com o outro. Imerso no

    mundo da linguagem e da cultura, o pequeno ser humano se sociabiliza.

    Entendida pela psicanlise como um discurso social, a educao est

    imbricada na cultura. Segundo Fuks (2003, p.10), Freud define cultura como sendo

    a interioridade de uma situao individual [...] e a exterioridade de um cdigo

    universal, subjacente aos processos de subjetivao e aos regulamentos das aes

    do sujeito com o outro.

    Nesta perspectiva, a educao percebida como algo amplo, no restrita

    somente a espaos pedagogizados e institucionalizados, ou seja, a educao se

    manifesta desde o momento que o ser humano, ao nascer, entra em contato com o

    mundo, com a cultura, atravs das suas primeiras relaes com o ser mais prximo,

    que em geral, a me. Esse ser prximo significa e nomeia sua dor, incentiva-o a

    julgar e a reconhecer as excitaes internas suscitadas pelas necessidades vitais

    [...] e a separ-las da fonte de excitaes externas que fluem sobre si mesmo, o

    mundo externo. (FUKS, 2003, p.11).

    4 Segundo Speller (2004), em psicanlise o Outro (escrito com a inicial maiscula) se refere cultura, linguagem, ao espao onde as palavras ganham sentido.

  • Dessa forma, educar, ento, um ato de cultura. Ainda em Fuks (2003, p.

    13), vemos que a cultura erotiza a criana para, em seguida, frustr-la com uma

    srie de necessrias interdies educativas cujo objetivo diminuir a fora das

    pulses sexuais e, mais tarde, impor represses realizao das pulses erticas e

    agressivas. medida que a criana cresce, vai se deparando na realidade com

    obstculos que se apresentam ao desfrute do prazer impostos pela cultura: so os

    limites do comportamento no social no qual est inserida a criana. De repente, o

    beb - que j no mais to beb assim - no pode andar nu pela rua; a menina

    no pode sair por a beijando na boca os meninos que encontrar pela frente; o

    rapazinho no pode agredir o colega na escola; a filha no deve dizer palavres; e

    por a vai.

    A incluso da criana nessas normas que regem os laos sociais

    determinada, segundo Freud, pelo superego, uma instncia proibitiva do indivduo,

    ligada cultura.

    Em O mal-estar na civilizao (1930/1995) verificamos que Freud faz

    uma analogia entre o processo civilizatrio e o caminho do desenvolvimento

    individual. Ele diz que alm do indivduo, a comunidade tambm desenvolve um

    superego coletivo sob cuja influncia se produz a evoluo cultural. Com isso,

    podemos entender que a constituio psquica do indivduo sofre influncia do lastro

    cultural da comunidade da qual se encontra, ou seja, dependendo do lugar em que o

    indivduo vive seu superego poder se constituir de padres mais abertos ou mais

    repressivos, de acordo com os princpios e regras locais.

    Estabelecidas as devidas propores epistemolgicas, o superego

    cultural assinalado por Freud assemelha-se aos mecanismos de controle da cultura

    explicados por Geertz, ou seja, so foras externas, vindas e construdas na

    cultura na qual o sujeito vive, que regulam a sua constituio psquica e a sua vida

    em sociedade. Geertz deixa claro que quando prope a anlise cultural no est

    preocupado em fazer terapia com o sujeito e sim analisar o discurso social para se

    investigar aquilo que no est aparente nas coisas, nos fenmenos sociais. J para

    Freud, seu objeto de estudo o inconsciente, o desconhecido.

    A teoria psicanaltica, explicada por Speller (2004), proclama que existem

    processos e conflitos psquicos inconscientes que desconhecemos, que determinam

    o que somos, o que fazemos, o que pensamos e como vemos a ns e aos outros.

  • Esses processos esto presentes em ns e nos outros e interferindo em tudo o que

    fazemos.

    Aderindo contribuio de Freud sobre a cultura, deixo claro o fato de

    que, para compreendermos o sujeito em toda a sua subjetividade, precisamos

    entender tambm o meio cultural - atravs do discurso e da linguagem - no qual ele

    vive e est sendo educado, como vimos em Geertz e, a sim, chegarmos a algumas

    consideraes relacionadas educao.

    Conforme explicitei no incio deste captulo, a abordagem multirreferencial

    que adoto para a leitura da reinsero escolar das meninas em situao de risco se

    constri a partir dos olhares da educao, da cultura e da subjetividade. Embora a

    problemtica da reinsero escolar seja uma questo educacional, para a sua

    compreenso estou privilegiando tambm os aspectos culturais e subjetivos das

    meninas e dos atores envolvidos, com o intuito de enriquecer a compreenso do

    objeto.

  • CAPTULO 2

    RETRATOS DA INFNCIA E DA ADOLESCNCIA POBRES NO BR ASIL

  • A criana o princpio sem fim. O fim da criana o princpio do fim. Quando uma sociedade deixa matar suas crianas porque comeou seu suicdio como sociedade. Quando no as ama porque deixou de se reconhecer como humanidade.

    Herbert de Souza

    Neste captulo fao uma anlise histrico-social da situao da criana e

    do adolescente pobres no Brasil, perspectivada numa abordagem crtica, tanto do

    ponto de vista da criana quanto das situaes de risco social, instituies de

    abrigagem e cidadania.

    2.1 Notas histricas sobre a infncia brasileira de svalida

    So as marcas da infncia que determinam a direo de vida dos sujeitos. Mercedes Minnicelli

    Durante muito tempo coube Igreja a tarefa de assistir a chamada

    infncia desvalida. No perodo colonial brasileiro, sculos XVI e XVII, os trabalhos

    com as crianas rfs eram realizados pelos jesutas atravs da Companhia de

    Jesus. Os missionrios evangelizavam e ensinavam as crianas a ler e a escrever,

    conduzindo-as pelos valores defendidos pela companhia religiosa.

    J no sculo XVIII, foi criado um sistema de atendimento chamado Roda

    dos Expostos voltado s crianas pobres, rejeitadas ou rfs, considerado a

    principal poltica de assistncia criana abandonada do perodo colonial brasileiro

    at a recente dcada de 1950 no perodo republicano.

    Em Marcilio (2006), verificamos que a roda era um mecanismo rotativo

    de madeira em forma circular onde se colocavam os bebs que seriam

    abandonados. Instalada numa parede da instituio, a roda oferecia a possibilidade

    de girar ora para dentro, ora para fora do recinto. Ao depositar a criana no tabuleiro

    inferior da roda, o expositor acionava uma sineta avisando a vigilante ou a rodeira

    que um beb acabava de ser abandonado e furtivamente se retirava do local para

    no ser identificado.

  • A roda dos expostos teve sua origem no sculo XII na Itlia. Diante do

    enorme nmero de bebs encontrados mortos no Tibre, o papa Inocncio III criou o

    primeiro hospital destinado a acolher e assistir as crianas abandonadas, o Hospital

    de Santa Maria in Saxia, onde foi organizado um sistema institucional de proteo

    criana exposta. Esse sistema logo foi disseminado entre as principais cidades

    italianas e em toda a Europa. Sculos depois, foi exportado para outros continentes.

    Segundo Marcilio (2006), a tradio da roda passou para o Brasil no

    sculo XVIII diante do crescente fenmeno do abandono de bebs pelas cidades,

    onde algumas crianas amanheciam mortas e outras mordidas por ces e outros

    animais.

    No Brasil, foram criadas treze rodas de expostos, sendo trs no sculo

    XVIII, em Salvador, Rio de Janeiro e Recife; uma no incio do Imprio, em So

    Paulo; e todas as demais foram criadas aps a instituio da Lei dos Municpios que

    isentava a Cmara da responsabilidade pelo cuidado dos expostos, se na cidade

    houvesse uma Santa Casa de Misericrdia que pudesse se incumbir das crianas

    desamparadas, como foi o caso de Cuiab, em Mato Grosso.

    Conforme constatamos no estudo de Marcilio, a roda de expostos em

    Cuiab foi criada em 1833, junto Santa Casa de Misericrdia. A autora cita que o

    relatrio do presidente da provncia de Mato Grosso registra que nos primeiros anos

    da roda foram deixadas algumas crianas, sem, contudo, quantific-las. No ano de

    1939 foram deixados trs bebs na roda, um menino e duas meninas. Depois disso,

    parece que nenhuma criana foi deixada na roda, embora continuasse o costume de

    se abandonar crianas recm-nascidas nas portas de residncias. Segundo a

    autora, a provedoria atribuiu esse fato colocao da roda muito prxima do

    Hospital Militar, local muito freqentado noite.

    Importante ressaltar que, segundo essa autora, no Brasil, a roda dos

    expostos foi um fenmeno essencialmente urbano. Nas cidades onde no havia a

    assistncia institucionalizada da roda, por determinao legal, cabia s Cmaras a

    assistncia s crianas desvalidas, o que no era muito bem aceito por elas, pois

    justificavam ser, os expostos, um encargo superior as suas possibilidades materiais.

    Dessa forma, as Cmaras atendiam uma parcela bastante pequena de crianas

    abandonadas. A grande maioria delas morria logo aps o abandono, por fome, frio

  • ou comida por animais. As crianas que venciam essas adversidades eram

    encontradas e criadas por famlias por dever de caridade ou por compaixo.

    Passetti (2007) comenta que no sculo XIX o abandono de crianas nas

    rodas dos expostos ou o recolhimento em instituies para meninas pobres revelava

    a dificuldade de muitas famlias para garantir a sobrevivncia de seus filhos. As

    Santas Casas eram uma real possibilidade de sobrevivncia para as crianas

    dessas famlias cuja situao de pobreza se agravava.

    Os expostos eram um encargo bastante oneroso para as Santas Casas

    de Misericrdia. Mesmo com o apoio dos governos provinciais, as instituies

    religiosas tinham dificuldades para manter os pequeninos, pois as verbas dotadas

    sempre foram aqum das necessidades e muitas vezes nem chegavam

    regularmente aos destinatrios.

    O sistema da roda comportou fraudes e abusos de toda sorte. Vemos em

    Marcilio (2006) que era comum mes levarem seus filhos roda e depois se

    oferecerem como amas-de-leite do prprio filho e ganhar uma espcie de

    remunerao para isso, pois as Santas Casas pagavam uma quantia em dinheiro

    pelo trabalho dessas amas. Em outras situaes, dentro da tradio do Direito

    Romano, toda criana escrava colocada na roda tornava-se livre. No entanto, muitos

    senhores mandavam suas escravas colocarem seus filhos na roda e depois busc-

    los para serem amamentados com o intuito de receberem a remunerao. Ao final

    da criao, paga, as crianas continuavam a ser escravas. A autora diz que, em

    muitos casos, havia a conivncia de pessoas de dentro da prpria instituio para

    essas fraudes. Freqentemente, tambm, acontecia da ama-de-leite no declarar

    Santa Casa a morte de uma criana e continuar por algum tempo recebendo o seu

    salrio de ama, como se o beb estivesse vivo. Situaes como essas no so

    muito diferentes das fraudes que vemos nos dias atuais nos programas federais do

    Bolsa Famlia e Bolsa Escola e na prpria previdncia social.

    Como as Misericrdias no tinham meios para manter um rgido controle

    sobre as crianas que protegiam, algumas medidas foram tomadas para melhorar a

    administrao e a assistncia s crianas desamparadas que estavam prejudicadas

    por toda parte. Os bispos buscaram apoio junto aos principais governos provinciais

    para trazerem irms de caridade da Europa para assumirem a administrao das

  • casas dos expostos. A iniciativa teve sucesso e foi adotada pelos demais

    presidentes das provncias e respectivos bispos.

    A roda dos expostos no tinha uma funo especfica de asilar as

    crianas abandonadas. Assim que uma criana era colocada na roda, a rodeira5 logo

    buscava colocar o beb recm-chegado em casa de uma ama-de-leite, onde ficaria

    at a idade dos trs anos. No entanto, a instituio buscava sensibilizar as amas a

    ficarem com a criana sob sua guarda recebendo uma pequena remunerao at

    que a criana completasse doze anos e, a partir da, poder-se-ia explorar o trabalho

    da criana de forma remunerada, ou apenas em troca de casa e comida, como foi o

    caso da maioria que aceitava continuar com a criana.

    Entretanto, nem todas as amas continuavam com as crianas. Ao

    completar a idade devida, devolviam as crianas e, como as Misericrdias no

    podiam abrigar todas as crianas que voltavam, grande parte delas ficava sem ter

    para onde ir. Acabavam perambulando pelas ruas, prostituindo-se ou vivendo de

    esmolas ou pequenos furtos.

    Diante dessa situao, a administrao da roda procurava casas de

    famlias que pudessem receber as crianas como aprendizes (ferreiro, sapateiro,

    balconista, empregadas domsticas). Para os meninos, havia tambm a

    possibilidade de serem conduzidos para as Companhias de Aprendizes Marinheiros

    ou de Aprendizes do Arsenal de Guerra, cumprindo a disciplina militar, nessas

    instituies que eram as escolas profissionalizantes dos pequenos desvalidos.

    Marcilio (2006) comenta que foram instaladas oficinas para os meninos

    iniciarem em ofcios de marceneiro, pedreiro, tecelo e outros mais. Eles viviam ao

    lado de presos, escravos e degredados, recebendo uma alimentao fraca, base

    de farinha de mandioca, e acabavam definhando e muitas vezes morrendo.

    As meninas recebiam as maiores preocupaes da Santa Casa devido

    preservao da honra e castidade. Junto s maiores Misericrdias foi criado um

    abrigo para meninas rfs e desvalidas deixadas na roda dos expostos.

    Outras alternativas foram criadas, segundo a autora, para o recolhimento

    das crianas rfs. Em fins do sculo XVIII, 1799, foram criados pelos jesutas em

    Salvador, a Casa Pia e o Seminrio de So Joaquim, cujos fins mesclavam a moral

    5 Nome dado mulher da Instituio que recolhia as crianas deixadas na roda dos expostos.

  • crist da caridade e do bom aproveitamento do indivduo para aumentar a riqueza da

    nao.

    Durante todo o sculo XIX buscou-se apoio pecunirio do Governo

    Provincial da Bahia para manter as casas de abrigo que recebiam meninos entre

    sete e doze anos e que os mantinham por, pelo menos, seis anos. Recebiam

    instruo primria elementar, ensino profissionalizante, aulas de msica e de

    desenho e, dentro da disciplina militar, aprendiam o manejo de armas. Para as

    meninas desvalidas, foi criado em 1804, em Belm, pelo Frei Caetano Brando, com

    o apoio do tesouro provincial do Par, o Colgio de Nossa Senhora do Amparo que

    oferecia s meninas educao, alimentao, vesturio e cuidados mdicos.

    A partir dos anos de 1860, surgiram no Brasil vrias instituies de

    proteo infncia desamparada, algumas seguindo modelos da Frana e

    Inglaterra. As ordens religiosas fundaram abrigos por toda parte, criando instituies

    com a filosofia de prevenir e remediar os vcios e infraes de menores mediante o

    ensino profissional remunerado.

    No incio do sculo XX, a maioria das pequenas rodas dos expostos j

    havia desaparecido do pas, subsistindo as maiores, as de Salvador, So Paulo,

    Porto Alegre e Rio de Janeiro, at meados do sculo.

    Passetti (2007, p. 348) registra o relato do imperador Pedro I

    Assemblia Constituinte, em 3 de maio de 1823:

    A primeira vez que fui Roda dos Expostos, achei, parece incrvel, sete crianas com duas amas; sem bero, sem vesturio. Pedi o mapa e vi que em 13 anos tinham entrado perto de 12 mil e apenas tinham vingado mil, no sabendo a Misericrdia verdadeiramente onde elas se achavam.

    Segundo Passetti, vemos que o sculo XX trouxe a tenso provocada por

    um redimensionamento econmico prspero cujo custo social foi a politizao dos

    trabalhadores urbanos e a priso ou deportao das principais lideranas

    anarquistas acusadas de subverso. A situao crtica de vida das crianas (sem

    escolas, com tratamentos desumanos) propiciou as reivindicaes polticas de

    direitos e contestaes s desigualdades. Em 1923 surge o regulamento de

  • proteo aos menores abandonados e delinqentes, reconhecendo a situao de

    pobreza como geradora dessa situao. Em 1927 aprovado o Cdigo de Menores,

    onde o Estado responde pela primeira vez com internao e responsabiliza-se pela

    situao de abandono, propondo-se aplicar os corretivos necessrios para suprimir o

    comportamento delinqente.

    Graciani (2005) diz que, nessa poca, o termo menor passa a ser uma

    nomenclatura jurdica (baseada na faixa-etria) e social, como categoria

    classificatria da infncia pobre, diferenciando-a de outros segmentos infantis da

    poca. Segundo essa autora, essa distino entre menor e criana perpassa todo o

    sculo XX, marcando a distino entre a infncia dos vrios segmentos sociais

    sendo rompida com o advento da Constituio Brasileira de 1988.

    Voltando a Passetti, verificamos que nos primeiros trinta anos da

    Repblica o Estado via a criana pobre como criana potencialmente abandonada e

    perigosa e cabia-lhe prestar o atendimento, integrando a criana ao mercado de

    trabalho para tir-la da vida delinqencial. Nesse sentido, escola e internato

    passaram a ser instituies fundamentais em nome de uma educao para o

    mundo.

    A filantropia surge no Brasil com um modelo assistencial, fundamentada

    na cincia, para substituir o modelo de caridade, atribuindo-se a tarefa de organizar

    a assistncia dentro das novas exigncias sociais, polticas, econmicas e morais do

    Brasil republicano.

    A partir de 1930, foram criadas associaes filantrpicas de amparo e

    assistncia infncia desamparada, como por exemplo, a Liga das Senhoras

    Catlicas, o Rothary Club e a Associao Prola Bygthon.

    Aps 1960, surgem mudanas nos modelos de assistncia infncia

    abandonada, iniciando a fase do Estado do BemEstar, com a criao da Fundao

    Nacional de Bem Estar do Menor - FUNABEM (1964), seguida da instalao da

    Fundao Estadual de Bem Estar do Menor - FEBEM em vrios estados.

    A Constituio Federal de 1988 marca o incio do Estado Social e

    Democrtico de Direito no Brasil. Consagraram-se valores cujo fundamento , acima

    de tudo, o respeito dignidade e aos direitos fundamentais da pessoa humana.

    dever do Estado e da sociedade civil a garantia da observncia desses direitos.

  • Seguindo as idias democrticas expressas na Constituio, mostrou-se urgente a

    ampliao, o aprofundamento e a garantia dos direitos dos cidados do pas.

    Nesse contexto, emergiu o debate sobre a incluso da criana e do

    adolescente como sujeitos de direitos. Como resultado de longa luta e presso dos

    movimentos de defesa dos direitos da criana e do adolescente, acompanhando a

    Declarao Universal dos Direitos da Criana de 1959 e a Conveno Internacional

    sobre os Direitos da Criana de 1989, a sociedade brasileira assumiu a

    responsabilidade legal de garantir um futuro digno sua juventude.

    Assim, em 13 de julho de 1990, aprovado o Estatuto da Criana e do

    Adolescente - ECA que estabelece o dever da famlia, da sociedade e do Estado a

    garantia da qualidade de vida infncia e adolescncia. Nesse momento, o termo

    menor, no qual esto socialmente embutidas as idias de pobreza, delinqncia,

    desorganizao familiar e evaso escolar, substitudo por criana e adolescente.

    A nova legislao incorpora a Doutrina da Proteo Integral, uma forma

    de olhar jovens e crianas, colocando-os como prioridade absoluta e propondo um

    novo modelo de estruturao e gerenciamento das polticas pblicas a eles

    destinadas. Com o pressuposto de que as crianas e adolescentes devem ser vistos

    como prioridade absoluta, sobretudo no que diz respeito elaborao e

    implementao de polticas pblicas em todo territrio nacional, o ECA estabeleceu

    diretrizes para o atendimento dos direitos, tais como: criao de conselhos

    municipais, estaduais e nacional, criao e manuteno de programas especficos,

    manuteno de fundos vinculados aos respectivos conselhos, integrao

    operacional de rgos do Judicirio, Ministrio Pblico, Defensoria, Segurana

    Pblica e Assistncia Social, entre outros mecanismos. Enfim, o Estado assume sua

    responsabilidade sobre a assistncia infncia e adolescncia desvalidas, e

    estas, pela primeira vez na Histria, se tornam sujeitos de direito.

    Exatamente nesse ms e ano em que escrevo este texto, o Estatuto da

    Criana e do Adolescente est fazendo 17 anos desde sua aprovao e possvel

    verificar que muita coisa ainda no saiu da carta legal. O Brasil ainda deve fazer

    muito para atender ao menos os direitos bsicos das crianas e adolescentes. No

    site eletrnico Aprendiz (2007a), verifica-se que

  • o 3 Relatrio Nacional sobre Direitos Humanos no Brasil indica que o pas teve mais de 150 mil novos casos de trabalho infantil entre 2004 e 2005. A constatao eleva o nmero de crianas trabalhando de 1.713.595 para 1.864.822 (+8,8%). O mesmo relatrio mostra que cerca de 16% dos recm-nascidos brasileiros no so registrados. Entre os amazonenses o ndice sobe para 41%. Segundo o governo federal, entre 2003 e 2004, s o Disque-Denncia, servio coordenado pela Presidncia da Repblica, registrou 5,5 mil denncias de violncia fsica, abuso sexual, negligncia e outras violaes de direitos. (APRENDIZ, 2007a).

    Um dos argumentos para a grave situao, segundo a reportagem, a

    falta de recursos financeiros. Um paradoxo, num momento de tamanha exploso de

    notcias de corrupo e gastos indevidos e escandalosos de recursos pblicos e,

    assim, os velhos problemas com educao e sade continuam persistindo. Segundo

    a reportagem, 1,9 milho de jovens brasileiros so analfabetos e um, em cada 10

    bebs de at seis meses, alimentado apenas com o leite materno. Esses dados,

    se no causam, deveriam causar mal-estar em quem se enveredou para a seara da

    vida pblica e, de certa forma, em todos ns cidados.

    Recentemente foi veiculada amplamente pela mdia, especialmente nos

    meios de divulgao eletrnica, a reabertura da roda dos expostos na Itlia, uma

    proposio da ministra para assuntos da famlia, Rosy Bindi. Esta notcia nos

    inquieta, despertando sentimentos ambivalentes. Por um lado nos espanta, vez que

    mostra o retrocesso a formas antigas de lidar com o fenmeno do abandono infanto-

    juvenil, como foi retratado no incio deste captulo. Por outro lado nos acalma, pois

    esse fato oferece a possibilidade de apresentar o problema sem eufemismo,

    podendo ser analisado e enfrentado pelo Estado e sociedade de forma mais

    legtima.

    No Brasil contemporneo, no temos mais esse mecanismo. A nossa

    roda dos expostos mais complexa, envolvendo diversas instncias, como os

    Conselhos Tutelares e os Juizados da Criana e do Adolescente, que, requisitando

    vagas em abrigos para crianas e adolescentes que ficam sob a tutela do Estado,

    colocam a roda a girar.

    A Casa de Retaguarda enquanto abrigo pblico - participa desse giro da

    roda na medida em que passa a ser a gestora dos riscos na vida das meninas

  • abrigadas, buscando reintegr-las nas famlias biolgicas ou substitutas e reinseri-

    las no processo de escolarizao.

    2.2 A noo de situao de risco como construo social

    O real no est na sada nem na chegada, ele se dispe para a gente no meio da travessia. Guimares Rosa

    A Casa de Retaguarda Paulo Prado, criada em 1999, faz parte de uma

    poltica da Prefeitura Municipal de Cuiab. A Casa abriga meninas em situao de

    risco social. Embora o Estatuto da Criana e do Adolescente no defina diretamente

    as situaes de risco pessoal e social, estas so entendidas socialmente como

    negligncia, explorao, violncia, crueldade e opresso em relao criana ou ao

    adolescente.

    Mas como se constituiu socialmente a noo de situao de risco?

    Guareschi e Hning (2002) esclarecem que, medida que os manuais de psicologia,

    pediatria, pedagogia e outras cincias descreveram comportamentos, atitudes,

    sentimentos e necessidades da infncia e adolescncia de forma padronizada e

    universal, aqueles que no correspondiam s categorias descritas tornaram-se uma

    categoria distinta. As autoras afirmam que a cincia tratou de categorizar, de

    estabelecer etapas, fases, sentimentos e pensamentos adequados para cada idade,

    como se a infncia e a adolescncia fossem nicas, deixando de habitar o espao

    da diferena. Elas explicam:

    Submetida s verdades das Cincias que a tomam como objetos, a Adolescncia e a Infncia o outro do adulto - deixaram de habitar primordialmente o espao da diferena para submetendo-se a regras, padres, fases de desenvolvimento, constiturem-se em uma identidade do Mesmo e nesse processo (des) encontraram outras infncias/adolescncias, as que desviaram-se do Mesmo para constiturem-se como diferenas. (GUARESCHI; HNING, 2002, p. 2).

    Paralelamente constituio de uma infncia dita normal e inocente,

    temos ento outras infncias e um squito de especialistas que se voltou para elas,

  • infncias que, ao fugirem da norma, constituram-se em ameaa, risco: infncias de

    risco. Risco para elas ou para a sociedade?

    Quando certas disciplinas produzem saberes para governar os riscos

    entendidos como aquilo que no se deseja culmina em prticas que associam a

    criana ou o adolescente pobre com a menoridade, com o risco. Nesse caso, a

    relao a estabelecida articula a condio social e econmica desfavorvel com a

    situao do menor e com o risco, de modo que ser menor j pressupe um desvio

    da norma, e as noes de em risco e de risco se confundem, a vulnerabilidade e a

    ameaa se confundem. (GUARESCHI; HNING, 2002, p. 44, grifo das autoras).

    Vemos, assim, que quando se faz meno ao menor, a noo de risco j est

    pressuposta.

    Desta maneira, o risco passa a ser vivido no s como vulnerabilidades

    dos que esto em situaes de risco, como tambm a ameaa que representam as

    crianas e adolescentes de risco. Isso se verificou numa das escolas pesquisadas

    onde estudava um aluno que tinha um histrico de agressividade, segundo sua

    Conselheira Tutelar, ele estava colocando a vida dos colegas em risco porque ele

    levava estilete, pedra, caco de vidro, ele ficava esperando a professora, quebrou o

    brao da professora, ele subia no muro, gritava, ele perturbava o colgio todinho.

    Na anlise dessa conselheira, o menino vive em situao de risco constante porque

    ele pequeno e no consegue ficar em casa, vive na rua, passando fome, sem

    nenhuma proteo. Por outro lado, ela disse que esse menino representava um risco

    para as demais crianas da escola, ele as agredia causando pequenas leses; em

    decorrncia disso, em sua pasta no Conselho Tutelar, havia vrios boletins de

    ocorrncia pelas suas passagens na delegacia da criana e do adolescente.

    Na referncia criana em situao de risco social, h um olhar que de

    antemo a exclui da sociedade, como se aquela no fizesse parte desta. O risco

    est e fica restrito ao outro que estranho. Para as autoras, de certo modo, o que se

    constitui um risco-diferena, ou seja, todos aqueles que so estranhos s noes

    preestabelecidas como padres de normalidade passam a ser os diferentes e

    materializam a ameaa aos nossos modos de vida, aos nossos desejos, aos nossos

    espaos, passando a ser tomados como pessoas a serem evitadas a fim de proteger

    nossa idealizada segurana, nosso imaginrio controle.

  • Segundo Guareschi e Hning (2002), a noo do risco entra em pauta

    nas ltimas dcadas quando programas assistenciais obedecendo a determinaes

    legais voltaram-se ao atendimento desses estranhos infanto-juvenis. Criam-se

    instituies de apoio, projetos de acompanhamento, tcnicas especiais de

    tratamento. O diferente passa a ser alvo de discursos ortopdicos e passa tambm a

    ser tratado como um fenmeno que precisa ser normatizado e corrigido por

    pedagogias, psicologias e tecnologias voltadas ao cuidado destes indivduos.

    Para as autoras, ao se aceitar como natural a existncia de crianas ou

    adolescentes em situao de risco, a sociedade fica isenta de compromisso com

    esse segmento. Associa-se a condio econmica desfavorvel a uma

    personalidade predisposta marginalidade, ao desvio das normas compreendido

    como socialmente prejudicial. Ao responsabilizar os sujeitos pela sua situao de

    desvantagem social, surgem as mais diversas formas de violncia: da ao da

    polcia na abordagem dos seus suspeitos, perversidade de racionalizarmos o

    medo que sentimos destes outros que nos afrontam nas esquinas e sinaleiros das

    vias pblicas, e mesmo na situao de aceitarmos que os nossos iguais sejam

    crianas e adolescentes, enquanto os outros permaneam sendo simplesmente

    menores.

    Spink (2000b apud GUARESCHI; HNING, 2002) diz que os riscos so

    fenmenos socialmente situados e definidos no mbito de uma formao social

    especfica de um determinado grupo. Os riscos precisam ser entendidos como um

    sentido produzido por diferentes campos disciplinares e prticas culturais e sociais.

    Nas entrevistas com professoras, coordenadoras e conselheiros tutelares,

    pude perceber os sentidos que a situao de risco tem para cada um deles. Esses

    sentidos apontam que o risco situado primordialmente na pobreza a incidncia

    maior na pobreza mesmo, na vulnerabilidade. Apontam tambm que o risco se

    localiza dentro da prpria famlia, pai e me alcolatras, maus tratos, abuso sexual

    do pai, irmo, tio, padrasto, sem ter o que comer; dentro da escola quando no

    avana de srie, no tem bom aproveitamento; nas casas de prostituio; no

  • consumo de drogas e apontam tambm para o perigo que o risco constitui para

    outras crianas, colocando-as tambm em situao de risco.6

    De um modo geral, as percepes acerca das crianas em situao de

    risco repetem-se entre os segmentos entrevistados. Nenhum deles apresenta um

    discurso no qual se revelem implicados com a situao dessas crianas. Vemos que

    a noo de risco social construda a partir da expectativa de modos de vida que se

    diferenciam do que tido por normal na cultura. Ento, o risco fica por conta

    daqueles que escapam do quotidiano, do comum, do normal... daqueles que fogem

    da acolhida institucional, que se atrevem a pensar e a viver o que no se pode

    pensar e viver, que se atrevem a ser diferentes, a sobreviver na diferena. (FIGA,

    1998, p. 90).

    Diante disso, como podemos entender o estatuto da normalidade?

    Bandeira e Freire (2006b, p. 35) dizem que a distino entre normalidade e

    anormalidade se afilia lgica da excluso. O sujeito normal inscreve certas

    caractersticas que formatam um modelo, um padro cultural. Aqueles sujeitos que

    no se ajustam a esse padro so considerados anormais, podendo ser excludos

    do grupo social.

    Quando definimos padres de comportamentos, modos de ser e agir,

    estamos estabelecendo uma norma, um referencial. Ao mesmo tempo, estamos

    constituindo o diferente, considerado aquele que no est includo na referncia por

    ns delimitada, portanto, estamos constituindo o anormal, como bem explica Veiga-

    Neto (2001, p. 115), [...] tambm o anormal est na norma, est sob a norma, ao

    seu abrigo. O anormal mais um caso, sempre previsto pela norma. Ainda que o

    anormal se oponha ao normal, ambos esto na norma. [...] ningum escapa dela.

    inegvel que muitas crianas e adolescentes passam por grandes

    situaes de vulnerabilidade, pois a excluso, realizada a partir dos padres da

    normalidade, faz parte do mecanismo perverso da desigualdade econmica e social

    instalada pelo sistema econmico vigente. No entanto, preciso questionar o

    enquadramento dessas crianas e adolescentes na categoria em/de risco que ignora

    as particularidades e as diferenas entre eles e, acima de tudo, questionar a

    banalizao da expresso risco social que, quando dita nas mais diferentes

    6 Importante observar na fala dos entrevistados a associao situao de risco e pobreza, denotando o quanto preconceituosa e excludente, uma vez que o risco est associado a outros fatores e atravessa as classes sociais.

  • circunstncias, propicia o entendimento de que quem est correndo risco a prpria

    sociedade.

    a partir dessa banalizao das ditas situaes de risco social que, no

    item seguinte, discuto a constituio das instituies de abrigagem enquanto

    programas assistenciais de polticas pblicas voltadas para as crianas em situao

    de risco social.

    2.3 As Instituies de Abrigagem

    Melhor uma liberdade sempre em perigo mas expansiva que uma liberdade protegida mas incapaz de evoluir. Somente uma liberdade em perigo capaz de se renovar. Uma liberdade incapaz de se renovar acaba por se transformar, cedo ou tarde, numa nova escravido. Norberto Bobbio

    A preocupao veiculada pelas polticas pblicas e pelos programas de

    assistncia criana e ao adolescente tem se voltado historicamente para a

    promoo da recuperao e a salvao dos menores ligados ameaa que estes

    representam para a sociedade, atravs da suposio de um potencial marginal ou

    infrator, e nesse caso, uma tentativa de controle sobre seus futuros. Pouco conta se

    o adolescente cometeu alguma infrao ou foi vtima de violncia, ou mesmo que

    no tenha acontecido nenhuma dessas situaes. O que se faz ignorar essas

    diferenas e procurar anular as que possam emergir.

    No Brasil, desde o perodo colonial at os dias atuais, a poltica de

    atendimento s crianas e jovens em situao de abandono vem sofrendo

    transformaes. A administrao dessas polticas de atendimento saiu,

    gradativamente, do poder da Igreja, passando por profissionais filantropos at ser de

    responsabilidade do Estado, como foi abordado no incio deste captulo.

    Foi a partir do Estatuto da Criana e do Adolescente ECA, em 1990,

    que as crianas e os adolescentes passam da condio de objetos de tutela a

    sujeitos de direitos e deveres. Cabe ressaltar que, como qualquer mudana, os

    princpios do ECA at hoje no foram totalmente assimilados pela sociedade e

    tampouco pelas autoridades pblicas. Prova disso so as condies deficitrias de

    sade e educao que ainda encontramos hoje em relao s crianas pobres.

  • Verificamos que o ECA privilegia o direito convivncia familiar e

    comunitria, prevendo o fim do isolamento presente na institucionalizao em

    dcadas anteriores. Com isso, as instituies de abrigagem devem estar

    configuradas, agora, em unidades pequenas, com poucos integrantes, mantendo um

    atendimento personalizado e estimulando a participao em atividades comunitrias.

    (SIQUEIRA; DELLAGLIO, 2006).

    O sistema de abrigo est previsto no ECA como medida provisria e

    transitria. No entanto, a permanncia na instituio relaciona-se histria de cada

    criana abrigada. Cabe ao abrigo a promoo de aes efetivas de insero social

    para que a institucionalizao seja realmente uma medida protetiva de carter

    excepcional e transitrio.

    No caso da Casa de Retaguarda, nota-se que essa preocupao

    apenas da coordenao da casa. A mantenedora do abrigo, a Secretaria Municipal

    de Assistncia Social e Desenvolvimento Humano, volta-se apenas, e to somente,

    para o provimento material e humano, no considerando em suas medidas, uma

    viso sistmica de redes de apoio para as famlias das crianas. Recursos existem e

    programas tambm, principalmente de mbito federal, como por exemplo, o

    Programa de Ateno Integral Famlia PAIF, o Programa de Erradicao do

    Trabalho Infantil PETI, o Projeto Agente Jovem de Desenvolvimento Social e

    Humano, entre outros, cujos recursos so repassados diretamente aos municpios.

    O que falta um gerenciamento dessas aes numa perspectiva macro de redes de

    apoio social. Sem essa viso mais abrangente com foco nos resultados, a citada

    insero social requerida pelo ECA vai acontecer somente em casos isolados,

    quando aparecem pessoas com boa vontade para fazer com que isso acontea.

    Como, ainda, as polticas pblicas de promoo social no se comunicam

    no sentido de acionar as redes de apoio, muitas crianas e adolescentes ficam anos

    em instituies sem a possibilidade de estarem em famlias substitutas, ou ainda,

    sem poderem voltar para suas famlias de origem.

    Poli (2005) analisa, sob a luz da psicanlise, os efeitos produzidos pelo

    acolhimento institucional de adolescentes. Ela diz que preciso considerar o fato de

    que o ingresso numa instituio de abrigagem implica na destituio temporria ou

    permanente da guarda familiar. O poder judicirio designa a instituio a assumir as

    funes parentais em deco