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Caderno pedagógico, Lajeado, v. 11, n. 2, p. 50-72, 2014. ISSN 1983-0882 50 EICHMANN EM JERUSALÉM E A BANALIDADE DO MAL: PERCEPÇÕES NECESSÁRIAS PARA A URGÊNCIA DE UMA EDUCAÇÃO EM DIREITOS HUMANOS Letícia Regina Konrad 1 Resumo: O presente artigo traz à baila o sentido da banalidade do mal para Hannah Arendt, em sua obra “Eichmann em Jerusalém”. Após a percepção desse contexto, inicia-se uma interlocução com o discurso atual dos direitos humanos e, consequentemente, com a iminente educação em direitos humanos. Analisa- se a proposta da emancipação a partir da educação de modo que tais atrocidades não mais se repitam, ou seja, uma educação para a humanização, em que o sujeito se perceba como de direitos e deveres para com o outro. Nesse sentido, não se pode deixar de mencionar a questão da alteridade, como componente estrutural para a prática desse discurso. Para tanto, utiliza-se o método de abordagem hipotético-dedutivo, fundamentado na análise de bibliografias sobre o tema. Palavras-chave: Direitos humanos. Banalidade do mal. Educação em direitos humanos. Estado democrático de Direito. Abstract: e present article brings up the sense of the banality of evil to Hannah Arendt in her book “Eichmann in Jerusalem”. After the perception of such a context, it starts a dialogue with the current human rights discourse and consequently with the impending human rights education. Analyzes the proposal of emancipation through education so that such atrocities not recur, ie, an education for humanization, where the subject is perceived as rights and duties towards each other. And in that sense, one can not fail to mention the issue of otherness, as a structural component to the practice of this discourse. For this, we use the method of hypothetical-deductive approach, based on analysis of bibliographies on the subject. Keywords: Human Rights; Banality of Evil; Human Rights Education; Democratic State. “O mundo não é humano só por ser feito de seres humanos, nem se torna assim somente porque a voz humana nele ressoa, mas apenas quando se transforma em objeto do discurso[...] Nós humanizamos o que se passa no mundo e em nós mesmos apenas falando sobre isso, e no curso desse ato aprendemos a ser humanos. Esse humanitarismo a que se chega no discurso da amizade era chamado pelos gregos de filantropia, o amor do homem, já que se manifesta na presteza em compartilhar o mundo com outros homens.” (Hannah Arendt) 1 Mestra em Direitos Sociais e Políticas Públicas pela Universidade de Santa Cruz do Sul – Unisc, linha de pesquisa Constitucionalismo Contemporâneo, com bolsa Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes). Integrante do grupo de Pesquisa Direitos Humanos, coordenado pelo Prof. Pós-Dr. Clóvis Gorczevski, e do grupo de Pesquisa “Comunitarismo, instituições comunitárias e políticas públicas”, coordenado pelo Prof. Dr. João Pedro Schmidt e pelo Prof. Pós- Dr. Inácio Helfer, ambos grupos vinculados ao Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), bacharela em Direito, especialista em Direito Civil com ênfase em família e sucessões, advogada, mediadora familiar e professora do Centro Universitário UNIVATES. E-mail: [email protected].

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EICHMANN EM JERUSALÉM E A BANALIDADE DO MAL: PERCEPÇÕES NECESSÁRIAS PARA A URGÊNCIA DE UMA EDUCAÇÃO EM DIREITOS

HUMANOSLetícia Regina Konrad1

Resumo: O presente artigo traz à baila o sentido da banalidade do mal para Hannah Arendt, em sua obra “Eichmann em Jerusalém”. Após a percepção desse contexto, inicia-se uma interlocução com o discurso atual dos direitos humanos e, consequentemente, com a iminente educação em direitos humanos. Analisa-se a proposta da emancipação a partir da educação de modo que tais atrocidades não mais se repitam, ou seja, uma educação para a humanização, em que o sujeito se perceba como de direitos e deveres para com o outro. Nesse sentido, não se pode deixar de mencionar a questão da alteridade, como componente estrutural para a prática desse discurso. Para tanto, utiliza-se o método de abordagem hipotético-dedutivo, fundamentado na análise de bibliografias sobre o tema.

Palavras-chave: Direitos humanos. Banalidade do mal. Educação em direitos humanos. Estado democrático de Direito.

Abstract: The present article brings up the sense of the banality of evil to Hannah Arendt in her book “Eichmann in Jerusalem”. After the perception of such a context, it starts a dialogue with the current human rights discourse and consequently with the impending human rights education. Analyzes the proposal of emancipation through education so that such atrocities not recur, ie, an education for humanization, where the subject is perceived as rights and duties towards each other. And in that sense, one can not fail to mention the issue of otherness, as a structural component to the practice of this discourse. For this, we use the method of hypothetical-deductive approach, based on analysis of bibliographies on the subject.

Keywords: Human Rights; Banality of Evil; Human Rights Education; Democratic State.

“O mundo não é humano só por ser feito de seres humanos, nem se torna assim somente porque a voz humana nele ressoa, mas apenas quando se transforma em objeto do discurso[...] Nós humanizamos o que se passa no mundo e em nós mesmos apenas falando sobre isso, e no curso desse ato aprendemos a ser humanos. Esse humanitarismo a que se chega no discurso da amizade era chamado pelos gregos de filantropia, o amor do homem, já que se manifesta na presteza em compartilhar o mundo com outros homens.” (Hannah Arendt)

1 Mestra em Direitos Sociais e Políticas Públicas pela Universidade de Santa Cruz do Sul – Unisc, linha de pesquisa Constitucionalismo Contemporâneo, com bolsa Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes). Integrante do grupo de Pesquisa Direitos Humanos, coordenado pelo Prof. Pós-Dr. Clóvis Gorczevski, e do grupo de Pesquisa “Comunitarismo, instituições comunitárias e políticas públicas”, coordenado pelo Prof. Dr. João Pedro Schmidt e pelo Prof. Pós-Dr. Inácio Helfer, ambos grupos vinculados ao Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), bacharela em Direito, especialista em Direito Civil com ênfase em família e sucessões, advogada, mediadora familiar e professora do Centro Universitário UNIVATES. E-mail: [email protected].

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Letícia Regina Konrad

1 INTRODUÇÃO

Assim que os nazistas chegaram ao poder, colocaram fim à República de Weimar e, consequentemente, à sua democracia parlamentar. Adolf Hitler, nomeado chanceler em 30 de janeiro de 1933, transforma a Alemanha, com o imediato retrocesso de direitos fundamentais básicos garantidos na Constituição de Weimar2. O parlamento alemão prontamente suspende os direitos civis constitucionais e declara estado de emergência.

Essa situação demonstra que se está diante do Terceiro Reich, momento mais sombrio vivenciado na Alemanha e com consequências para toda a humanidade. É iniciada a perseguição aos judeus, ciganos, deficientes físicos e mentais, minorias consideradas inferiores ao povo alemão, segundo a ideologia nazista. Coloca-se em prática o holocausto, um genocídio3 em massa de quase seis milhões de judeus, a partir de um programa de extermínio étnico idealizado pelos nazistas, conhecido como “Solução Final”.

Não há, no entanto, sombra que paire para sempre na história esquizofrênica da humanidade. Assim, com o fim da Segunda Guerra Mundial e a queda da Alemanha, vários são os responsáveis trazidos a julgamento, dentre eles um personagem merecedor de análise: Adolf Eichmann.

Pretende-se no presente artigo trazer a baila o sentido da banalidade do mal para Hannah Arendt, em sua obra “Eichmann em Jerusalém”. Após a percepção desse contexto, inicia-se uma interlocução com o discurso atual dos direitos humanos e consequentemente com a iminente educação em direitos humanos.

Analisa-se a proposta da emancipação a partir da educação de modo que essas atrocidades não mais se repitam, ou seja, uma educação para a humanização, como denota Paulo Freire, em que o sujeito se perceba como de direitos e deveres para com o

2 “A Constituição de Weimar nunca foi ab-rogada durante o regime nazista, mas a lei de plenos poderes de 24 de março de 1933 teve não só o efeito de legalizar a posse de Hitler no poder como o de legalizar geral e globalmente as suas ações futuras. Dessa maneira, como apontou Carl Schmitt – escrevendo depois da II Guerra Mundial –, Hitler foi confirmado no poder, tornando-se a fonte de toda legalidade positiva, em virtude de uma lei de Parlamento que modificou a Constituição. [...] Esta subversão do Direito do Estado, que deixa de ser, em consonância com os procedimentos e técnicas do constitucionalismo moderno, um mecanismo para controlar o poder e, destarte, uma qualidade de governo, viu-se aprofundada pela importância de instituições não-disciplinadas por normas, como o partido e a polícia” (LAFER, 1988, p. 95).

3 “O genocídio não é um crime contra um grupo nacional, étnico racial ou religioso. É um crime que ocorre, lógica e praticamente, acima das nações e dos Estados – das comunidades políticas. Diz respeito ao mundo como um todo. É, portanto, um crime contra a humanidade que assinala, pelo seu ineditismo, a especificidade da ruptura totalitária. [...] Indico, inspirado por Hannah Arendt, como o crime de genocídio, administrado por Eichmann e perpetrado no corpo do povo judeu, é um crime contra a humanidade porque é uma recusa frontal da diversidade e da pluralidade – características da condição humana na proposta arendtiana de um mundo centrífugo” (LAFER, 1988, p. 23).

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outro. E nesse sentido, não se pode deixar de mencionar a questão da alteridade como componente estrutural para a prática desse discurso.

Para tanto, utiliza-se o método de abordagem hipotético-dedutivo, fundamentado na análise de bibliografias sobre o tema.

2 EICHMANN EM JERUSALÉM: UM RELATO SOBRE A BANALIDADE DO MAL

Na Casa da Justiça em Jerusalém, o palco foi montado para o espetáculo do julgamento daquele que deveria ser o maior carrasco nazista: Adolf Eichmann. O comando israelense havia o encontrou o homem e sequestrou-o no subúrbio de Buenos Aires em 1960, na Argentina, onde vivera foragido por anos. Após ser encontrado, foi levado de forma arbitrária para julgamento em Jerusalém, cidade judia.

Na época, Hannah Arendt, representando a Revista The New Yorker, acompanhou o julgamento, trazendo seus relatos sob perspectiva filosófica e política, que se encontra na sua obra “Eichmann em Jerusalém”.

Quando da publicação de tal obra, a autora foi muito criticada, pois na condição de judia lhe era esperado um posicionamento judeu nesse julgamento, que vislumbrasse a favor de sua “identidade judaica”. Entretanto, para a surpresa de muitos, não foi o que a autora fez. Ela, na condição de filósofa, ateve-se à descrição dos fatos e trouxe em sua obra uma reflexão que se encontra atual até os dias de hoje.

O julgamento de Eichmann deveria ser o maior da história após o julgamento do Tribunal de Nuremberg, entretanto, Hannah traz à tona a figura de um funcionário mediano, burocrata, incapaz de refletir sobre seus atos ou de fugir aos clichês burocráticos, descobrindo, a partir de sua análise filosófica, um “coração das trevas”, cuja capacidade destrutiva e de burocratização da vida pública poderiam representar uma ameaça à democracia (ARENDT, 1999).

O “monstro da cabine de vidro”, que representava ser funcionário público honesto e obediente, cumpridor de metas e da lei, a cada dia de julgamento que se passava, tornava-se mais “arrivista de pouca inteligência, uma nulidade pronta a obedecer a qualquer voz imperativa, um funcionário incapaz de discriminação moral – em suma, um homem sem consistência própria, em que os clichês e eufemismos burocráticos faziam às vezes do caráter” (ARENDT, 1999, orelha do livro).

A justiça exige que o acusado seja processado, defendido e julgado, e que fiquem em suspenso todas as questões aparentemente mais importantes – ‘Como pôde acontecer uma coisa dessas?’ e ‘Por que aconteceu?’, ‘Por que os judeus?’, ‘Por que os alemães?’, ‘Qual o papel das outras nações?’ e ‘Até que ponto vai a responsabilidade dos aliados?’, ‘Como puderam os judeus, por meio de seus líderes, colaborar com sua própria destruição?’ e

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‘Por que marcharam para a morte como carneiros para o matadouro?’. A justiça insiste na importância de Adolf Eichmann, filho de Karl Adolf Eichmann, aquele homem dentro da cabine de vidro construída para sua proteção: altura mediana, magro, meia-idade, quase calvo, dentes tortos e olhos míopes, que ao longo de todo o julgamento fica esticando o pescoço para olhar o banco de testemunhas (sem olhar nenhuma vez para o banco da plateia), que tenta desesperadamente, e quase sempre consegue, manter o autocontrole, apesar do tique nervoso que lhe retorce a boca provavelmente desde muito antes do começo deste julgamento. Em juízo estão os seus feitos, não o sofrimento dos judeus, nem o povo alemão, nem a humanidade, nem mesmo o anti-semitismo e o racismo (ARENDT, 1999, p. 15).

Importante destacar que, com o juramento realizado para Hitler, renunciava-se à própria consciência4. Nesse sentido, as dimensões dos atos de Eichmann estariam legitimadas, afinal, este estaria apenas obedecendo às leis e ordens. Arendt (1999) traz em sua obra a figura de um burocrata, um funcionário a serviço da Alemanha, que devia obediência ao Führer de forma incondicional5, fato esse que alerta para a reflexão da banalidade do mal.

Eichmann não se perturbou com questões de consciência. Sua cabeça estava inteiramente tomada pelo gigantesco trabalho de organização e administração, não apenas em meio a uma guerra, mas – e isso era muito mais importante para ele – em meio a inúmeras intrigas e disputas sobre as esferas de autoridade entre os vários departamentos do Estado e do Partido envolvidos em ‘resolver a questão judaica’ (ARENDT, 1999, p. 168).

Eichmann, quando é ouvido no banco dos réus, tem presente de forma muito tranquila em seu discurso que apenas “transportava os judeus”, não se sentindo em momento algum o responsável pela morte deles. A mediocridade de Eichmann espanta, afinal, era incapaz de pensar, de transcender o que representavam seus atos e atitudes. Tinha para si apenas o cumprimento de uma tarefa, enaltecendo que a sua maior honra era sua lealdade.

Nesse sentido, encontra-se a banalidade do mal, a que inviabiliza a capacidade para juízos morais. Trata-se de apenas um burocrata zeloso, seguidor de regulamentos, orgulhoso de quando completa suas tarefas com êxito, mesmo que essas tarefas

4 "[...] quanto a sua consciência, ele se lembrava perfeitamente de que só ficava com a consciência pesada quando não fazia aquilo que lhe ordenavam – embarcar milhões de homens, mulheres e crianças para a morte, com grande aplicação e o mais meticuloso cuidado” (ARENDT, 2009, p. 37).

5 “Aquilo que para Hitler, o único e solitário arquiteto da Solução Final (jamais uma conspiração, se tal fosse, precisou de menos conspiradores e mais executores), estava entre os principais objetivos da guerra, cuja implementação era de máxima prioridade, a despeito de considerações econômicas e militares, e que para Eichmann era um trabalho, com sua rotina diária, seus altos e baixos, era para os judeus, bastante literalmente, o fim do mundo”. (ARENDT, 1999, p. 170).

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sejam encaminhar judeus para câmaras de gás, valas de morte ou, ainda, campos de concentração.

Para Arendt (1999), o pensamento, como uma manifestação do ato de pensar, não é o conhecimento, mas a habilidade de distinguir o bem do mal, o belo do feio, o bom do ruim. É o pensar de forma consciente que possibilita a autonomia nas pessoas para que contemplem a sua liberdade de forma digna e protagonizem as próprias capacidades dos juízos morais.

Ao observar Eichmann descrevendo o seu trabalho de Chefe da Seção de Assuntos Judaicos, Arendt (1999) denota a alienação moral dos oficiais nazistas. É evidente o orgulho sentido por Eichmann ao falar das suas tarefas muito bem desenvolvidas para atender as ordens do Führer6. Essa obediência é tão cega que nem em seu próprio julgamento conseguiu dar-se conta das imoralidades cometidas sob o manto das ordens de Hitler. Intitula-se com muito orgulho, um cidadão respeitador das leis e moralmente acobertado pelas leis da época.

Era assim que as coisas eram, essa era a nova lei da terra, baseada nas ordens do Führer; tanto quanto podia ver, seus atos eram os de um cidadão respeitador das leis. Ele cumpria o seu dever, como repetiu insistentemente à polícia e à corte; ele não só obedecia ordens, ele também obedecia à lei. Eichmann tinha uma vaga noção de que isso podia ser uma importante distinção, mas nem a defesa nem os juízes jamais insistiriam com ele sobre isso. As moedas bem gastas das ‘ordens superiores’ versus os ‘atos de Estado’ circulavam livremente; haviam dominado toda a discussão desses assuntos durante os julgamentos de Nuremberg, pura e simplesmente por dar a ilusão de algo absolutamente sem precedentes e seus padrões. Eichmann, com seus dotes mentais bastante modestos, era certamente o último homem na sala de quem podia esperar que viesse a desafiar essas ideias e agir por conta própria. Como além de cumprir aquilo que ele concebia como deveres de um cidadão respeitador das leis, ele também agia sob ordens – sempre cuidado de estar ‘coberto’ –, ele acabou completamente confuso e terminou frisando alternativamente as virtudes e vícios da obediência cega, ou ‘obediência cadavérica’ (kadavergenhorsam), como ele próprio a chamou (ARENDT, 1999, p. 152).

6 "O que afetava as cabeças desses homens que tinham se transformado em assassinos era simplesmente a ideia de estar envolvidos em algo histórico, grandioso, único (‘uma grande tarefa que só ocorre uma vez em 2 mil anos’), o que, portanto, deve ser difícil de aguentar. Isso era importante porque os assassinos não eram sádicos ou criminosos por natureza; ao contrário, foi feito um esforço sistemático para afastar todos aqueles que sentiam prazer físico com o que faziam. As tropas dos Einsatzgruppen tinham sido convocadas da SS Armada, uma unidade militar que não tinha em seu histórico nada além da cota normal de crimes de qualquer unidade comum do Exército alemão, e seus comandantes foram escolhidos por Heydrich entre a elite da SS, gente com diplomas acadêmicos. Por isso o problema era como superar não tanto a consciência, mas sim a piedade animal que afeta todo o homem normal em presença de sofrimento físico. O truque usado por Himmler – que aparentemente sofria muito fortemente com essas reações instintivas – era muito simples e provavelmente eficiente; consistia em inverter a direção desses sentidos, fazendo com que apontassem para o próprio indivíduo. Assim, em vez de dizer ‘Que coisas horríveis eu fiz com as pessoas’, os assassinos poderiam dizer ‘Que coisas horríveis eu tive de ver na execução dos meus deveres, como essa tarefa pesa sobre os meus ombros!’ ” (ARENDT, 1999, p. 122).

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Ainda, verifica-se a “banalidade do mal” trazida por Arendt (1999) quando se depara com o fato de nenhum traço de perversão ou sadismo, demonstrando, portanto, a normalidade de Eichmann ante aquela engrenagem insana de eliminação de pessoas tão humanas quanto os executores à época do Terceiro Reich.

O problema com Eichmann era exatamente que muitos eram como ele, e muitos não eram nem pervertidos, nem sádicos, mas eram e ainda são terrível e assustadoramente normais. Do ponto de vista de nossas instituições e de nossos padrões morais de julgamento, essa normalidade era muito mais apavorante do que todas as atrocidades juntas, pois implicava que – como foi dito insistentemente em Nuremberg pelos acusados e seus advogados – esse era um tipo novo de criminoso, efetivamente hostis generis humanis, que comete seus crimes em circunstâncias que tornam praticamente impossível para ele saber ou sentir que está agindo errado. Sob esse aspecto, as provas no caso de Eichmann eram ainda mais convincentes que as provas apresentadas no julgamento dos criminosos de guerra, cujas alegações de consciência tranquila podiam ser descartadas mais facilmente porque combinavam o argumento da obediência a ‘ordens superiores’ com várias bazófias sobre ocasionais desobediências. Mas embora a má-fé dos acusados fosse manifesta, a única base para se provar efetivamente a consciência pesada seria o fato de os nazistas, e especialmente as organizações criminosas a que Eichmann pertencera, terem estado muito ocupados em destruir a prova de seus crimes durante os últimos meses de guerra. E essa base era bastante frágil. Não fez mais que comprovar o reconhecimento de que a lei de assassinato em massa, devido a sua novidade, ainda não era aceita por outras nações; ou, na linguagem dos nazistas, que eles tinham perdido sua luta para ‘libertar’ a humanidade do ‘domínio dos subumanos’, principalmente da dominação dos Sábios de Sion; ou, em palavras comuns, o fato não provara mais do que a admissão da derrota. Algum deles teria sofrido de consciência pesada se tivesse vencido? (ARENDT, 1999, p. 299-300).

É impressionante como o funcionário público Eichmann tinha introjetado dentro de si o discurso de que cumpria “atos de Estado”, devendo obedecer sem pensar no significado de uma ordem. Tanto é verdade que no seu julgamento nega fervorosamente ter algo a ver com a morte dos judeus, dizendo nunca ter matado um judeu, ou um não judeu, ou ainda um ser humano, ou seja, demonstra desconhecer a prática de qualquer crime nesse sentido e declara-se inocente até o final do julgamento.

Assim como Eichmann, vários eram considerados “normais” reproduzindo o mal, entretanto, no Terceiro Reich houve alguns momentos de luz, de esperança, em que houve a recuperação da consciência. A Dinamarca7, por exemplo, foi um dos poucos

7 Lafer (1988, p. 27) foi aluno de Hannah Arendt e menciona em suas obras a análise desta sobre a desobediência civil na situação verificada na Dinamarca frente à política antissemita do invasor nazista. Ele denota que, para a filósofa política, a desobediência civil é legítima, podendo ser bem sucedida na resistência à opressão. Ainda, cumpre ressaltar que a “obediência como virtude foi a base da condição verdadeiramente abjeta da possibilidade do nazismo enquanto um modelo de assassinatos em massa” (ANDRADE, 2010, p. 115).

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países que teve uma jogada de mestre quando foram abordados pelos alemães para entregarem os seus judeus do país. Uma vez que o Estado foi solicitado para introduzir o emblema amarelo na sua população judia como identificador, eles simplesmente disseram que o seu rei seria o primeiro a fazer questão de usá-lo. Claro que, para essa resposta, tiveram a cautela de saber no que implicaria a renúncia ao uso, misturando, então, os dinamarqueses nativos de origem judaica aos judeus alemães refugiados asilados no país antes da guerra, agora declarados apátridas pela Alemanha.

Assim, utilizaram-se do argumento dos judeus alemães apátridas não mais serem cidadãos alemães e, nesse sentido estarem sob a responsabilidade da Dinamarca, necessitando, portanto, do consentimento do país para a requisição daqueles. Ou seja, pode-se dizer que foi um ato em que o governo dinamarquês optou por proteger os judeus do seu Estado, dando-se conta do que aconteceria se os entregasse ao Estado Alemão.

Política e psicologicamente, o aspecto mais interessante desse incidente é talvez o papel desempenhado pelas autoridades alemãs na Dinamarca, sua evidente sabotagem das ordens de Berlim. É o único caso que conhecemos em que os nazistas encontraram resistência nativa declarada, e o resultado parece ter sido que os que foram expostos a ela mudaram de ideia. Aparentemente eles mesmos haviam deixado de ver com naturalidade o extermínio de todo um povo (ARENDT, 1999, p. 193-194).

Embora a Alemanha tenha burlado a verdadeira proposta do Terceiro Reich, maquiando a Solução Final e iludindo os povos com a ideia de que se direcionavam para uma “nova pátria”, alguns países conseguiram se dar conta do que estava efetivamente acontecendo e mostraram-se contrários principalmente às deportações judias, para proteger essas vidas. Ou seja, conseguiram recuperar a consciência antes de auxiliar a Alemanha.

Eichmann teve papel fundamental na logística da deportação da comunidade judaica. Era considerado um especialista na concentração e evacuação de judeus da Alemanha, da Áustria e da Tchecoslováquia pelo transporte ferroviário que conduzia aos campos de concentração. Pode-se dizer que sua inteligência foi otimizada para a realização das maiores atrocidades possíveis contra o ser humano.

Embora tenha apresentado uma vida comum, sem grandes méritos e congratulações frente a sua comunidade, em 1932 Eichmann entrou para o Partido Nacional Socialista, desconhecendo totalmente a ideologia partidária, nunca tendo sequer lido o livro referencial “Mein Kampf ”, que desenvolvia o programa partidário.

Em 1934, solicitou um emprego público e tornou-se empregado da SD (Serviço de Inteligência do Partido), com atuação na SS (uma espécie de tropa de elite a favor do

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partido). Posteriormente foi promovido a chefe de Seção de Assuntos Judaicos, eis que apresentou grande destaque na questão da logística8 para o holocausto.

O que restou nas memórias de Eichmann não foi a evacuação e deportação de judeus, pois isso, para ele, eram práticas diárias, da rotina. Suas memórias eram preenchidas com o jogo de boliche, com o fato de ser hóspede de um ministro (ARENDT, 1999). Essas lembranças assustavam ainda mais Arendt, pois o grande carrasco esperado não passava de um homem pragmático incapaz de ter consciência de seus atos e atitudes.

Para Arendt (1999), o mal é a ausência de pensamento, vinculando-se à capacidade humana de discernir o bem do mal. Eichmann respondeu por seus atos mecanizados, por suas más ações diante de um sistema capaz de tornar uma simples conduta repetitiva em completa alienação. A banalidade do mal é quando não mais se percebe o próprio agir, não consegue se colocar no lugar do outro e ter a dimensão do que representa o próprio ato.

Os buracos de esquecimento não existem. Nada humano é tão perfeito, e simplesmente existem no mundo pessoas demais para que seja possível o esquecimento. Sempre sobra um homem para contar a história. Portanto, nada pode ser ‘praticamente inútil’, pelo menos a longo prazo. Seria de grande utilidade prática para a Alemanha de hoje, não meramente para o seu prestígio no estrangeiro, mas para a sua condição interna tristemente confusa, se houvesse mais dessas histórias para contar. Pois a lição dessas histórias é simples e está ao alcance de todo o mundo. Politicamente falando, a lição é que em condições de terror, a maioria das pessoas se conformará, mas algumas pessoas não, da mesma forma que a lição dos países aos quais a Solução Final foi proposta é que ela ‘poderia acontecer’ na maioria dos lugares, mas não aconteceu em todos os lugares. Humanamente falando, não é preciso nada mais, e nada mais pode ser pedido dentro dos limites do razoável, para que este planeta continue sendo um lugar próprio para a vida humana (ARENDT, 1999, p. 254).

A humanidade deve aprender a indignar-se para que possa alterar o seu presente e construir um futuro digno. Assy (2001) diz que Arendt vislumbrou em Eichmann alguém com ausência de pensamento crítico e autônomo, em que foi verificada a banalidade do mal, quando os agentes identificavam as suas vítimas não mais como pessoas, mas como, simplesmente “algo supérfluo”, sem valor, desumano. A banalização

8 Era impressionante a capacidade de logística de Eichmann. Ele otimizou, inclusive, os passaportes para os judeus, que antes levavam meses para conseguir: “Quando Eichmann entendeu como a coisa toda funcionava, ou melhor, não funcionava, ele ‘se pôs a pensar’ e ‘concebi a idéia que achei que iria fazer justiça a ambas as partes”. Ele imaginou “uma linha de montagem, na qual o primeiro documento era posto no começo, depois iam sendo inseridos os outros papéis, e no final o passaporte teria de sair como produto final”. Os judeus entravam na fila ainda com suas propriedades e “saíam na outra ponta sem dinheiro, sem direitos, apenas com um passaporte onde se lê: ‘Você deve deixar o país dentro de quinze dias. Senão irá para um campo de concentração’” (ARENDT, 1999, p. 58).

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do mal representa, portanto, a falta de reflexão sobre os acontecimentos, a falta de alteridade.

Interessante trazer os apontamentos de Lafer (1988, p. 178):

De fato, num Estado totalitário fundado em princípios criminosos, a lei é instrumento de uma dominação posta a serviço da perversidade, que não se encontra nas pessoas que agem em conjunto ou individualmente, mas sim na dinâmica corruptora do totalitarismo. Esta dinâmica marcou os algozes, permeou a sociedade e alcançou até mesmo as vítimas. É por essa razão que o mal, no III Reich, deixou de ser uma tentação individual ou a conspiracy de um grupo para converter-se em legalidade.

Tanto Eichmann quanto a maioria dos cidadãos alemães respeitavam e acatavam a lei, daí a inadequação frente à ruptura totalitária, valendo-se do positivismo jurídico, que identifica o Direito com a lei. Justificavam-se as banalidades a partir do cumprimento legítimo da lei, afinal, próprio da cultura positivista: uma vez escrito, cumpra-se.

Para Lafer (1988, p. 179), o genocídio não significa “uma discriminação em relação a uma minoria, não é um assassinato em massa, não é um crime de guerra, nem um crime contra a paz”. Trata-se de um “crime burocrático, sem precedentes, cometido por pessoas ‘aterradoramente normais’ como Eichmann”. Essas pessoas agem sob o manto da capacidade profissional e não por inclinação para o mal radical. É a técnica que torna banal o assassinato em massa, inviabilizando todo e qualquer pensamento.

É minha opinião agora que o mal nunca é ‘radical’, que ele é apenas extremo e que não possui nem profundidade nem dimensão demoníaca. Ele pode invadir e destruir todo o mundo precisamente porque se propaga como um fungo na superfície. Ele desafia o pensamento, como disse, porque o pensar busca a profundidade, procura alcançar as raízes e, no momento em que se ocupa do mal, se vê frustrado porque nada encontra. Esta é a banalidade do mal. Só o bem tem profundidade e pode ser radical (ARENDT apud SOUKI, 1998, p. 101).

O ato de pensar e refletir apresenta consequencias morais, gera discursos consigo mesmo para que se previna o mal. O totalitarismo, ao fixar formas homogêneas para o agir e o pensar, priva o ser humano para algo de mais humano que é capaz de fazer: pensar e refletir.

Para Arendt, o mal9 não tem raízes, não tem profundidade. Como um fungo, espalha-se pela sociedade, alastrando-se na “massa de cidadãos inaptos para a capacidade

9 “A questão do mal não é, assim, uma questão ontológica, uma vez que não se apreende uma essência do mal, mas uma questão da ética e da política. [...] O problema do mal sai, verdadeiramente, dos âmbitos teológico, sociológico e psicológico e passa a ser focado na sua dimensão política” (SOUKI, 1998, p. 104).

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de pensar e incapazes para dar significado aos acontecimentos e aos próprios atos” (ANDRADE, 2010, p. 113). O mal, portanto não tem inspiração própria, mas nem mesmo por isso pode ser menos catastrófico frente as suas consequências. O precipício entre a gravidade dos atos e a simplicidade das motivações é o que dá ênfase ao conceito de banalidade de Arendt.

O mal, portanto torna-se banal a partir da superficialidade e da superfluidade. A superficialidade está contida na ideia de que quanto mais superficial for uma pessoa, maior a probabilidade de ela ceder aos encantos do mal. Para tanto, utilizam-se os clichês, as frases feitas, adesão a códigos e expressão e conduta convencionais e padronizadas, que impedem a percepção da realidade e do consequente pensamento aprofundado. Essa superficialidade é facilmente verificada em Eichmann. Já a superfluidade vincula-se ao sentido utilitário das sociedades de massa, em que a política e a economia tornam o homem supérfluo a partir de seus instrumentos totalitários (ARENDT, 1999).

Assim, frente a essa discussão, não há como deixar de mencionar a importância da educação em direitos humanos justamente para evitar o retrocesso humano e a continuidade das banalidades do mal, que foi objeto de estudo do presente item. Quantos são os Eichmanns espalhados pelo mundo, que, induzidos por um discurso, se esquecem da própria consciência10, perdendo-se de si mesmos, e perdidos os seus valores, cometem crueldades.

Não é necessário ir muito longe para lembrar algumas situações brasileiras, como o caso do índio pataxó, Galdino Jesus dos Santos, líder indígena, queimado vivo em um abrigo de um ponto de ônibus em Brasília, no dia 20 de abril de 1997, após ter participado de manifestações do Dia do Índio. O crime foi praticado por cinco jovens da classe média-alta da cidade.

O discurso dos direitos humanos, o qual é evidenciado a partir da proteção do ser humano, independente da cor, classe, credo ou raça, dá-se de forma igualitária e universal. Esse discurso surge de forma iminente após as barbáries da Segunda Guerra Mundial. Nesse período, o mundo se dá conta dos momentos sombrios, dos crimes cometidos para com o outro. A falta de alteridade talvez possa ser buscada nesse mesmo discurso, que prevê a universalização da democracia a partir da cultura da paz. Nesse sentido, traz-se o próximo item do presente artigo.

10 "Não é o conhecimento, mas sim o conhecimento do conhecimento, que cria o comprometimento. Não é saber que a bomba mata, e sim saber o que queremos fazer com ela que determina se a faremos explodir ou não. Em geral, ignoramos ou fingimos desconhecer isso, para evitar a responsabilidade que nos cabe em todos os nossos atos cotidianos, já que todos estes – sem exceção – contribuem para formar o mundo em que existimos e que validamos precisamente por meio deles, num processo que configura o nosso porvir. Cegos diante dessa transcendência de nossos atos, pretendemos que o mundo tenha um devir independentemente de nós, que justifique nossa irresponsabilidade por eles. Confundimos a imagem que buscamos projetar, o papel que representamos, com o ser que verdadeiramente construímos no nosso viver cotidiano” (MATURANA e VARELA, 2001, p. 270-271).

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3 DIREITOS HUMANOS: APENAS UM DISCURSO? A EDUCAÇÃO EM DIREITOS HUMANOS COMO PRÁTICA DIÁRIA NA CONSTRUÇÃO DE UM ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO

A Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1948 é um marco fundamental na história dos direitos humanos, uma vez que trouxe consigo um olhar de proteção para a sociedade, relembrando valores como cidadania, democracia, participação política, igualdade e solidariedade que são intimamente reforçados na educação em direitos humanos. Ela trouxe consigo princípios morais e éticos que devem servir de orientação para todas as nações, representando a baliza da internacionalização dos direitos humanos.

Sabe-se que o momento histórico no qual a Declaração foi redigida ocorreu justamente após as atrocidades cometidas durante a Segunda Guerra Mundial, demonstrando, portanto, a preocupação mundial com a paz.

O preâmbulo da Declaração Universal dos Direitos Humanos traz a grande necessidade de esforços entre indivíduos e entidades, no sentido de viabilizar a educação em direitos humanos, de modo a reforçar que os homens devem ser livres e iguais em dignidade e direitos.

Considerando que o reconhecimento da dignidade inerente a todos os membros da família humana e de seus direitos iguais e inalienáveis é o fundamento da liberdade, da justiça e da paz no mundo, Considerando que o desprezo e o desrespeito pelos direitos humanos resultaram em atos bárbaros que ultrajaram a consciência da Humanidade e que o advento de um mundo em que os homens gozem de liberdade de palavra, de crença e da liberdade de viverem a salvo do temor e da necessidade foi proclamado como a mais alta aspiração do homem comum, Considerando essencial que os direitos humanos sejam protegidos pelo Estado de Direito, para que o homem não seja compelido, como último recurso, à rebelião contra tirania e a opressão, Considerando essencial promover o desenvolvimento de relações amistosas entre as nações, Considerando que os povos das Nações Unidas reafirmaram, na Carta, sua fé nos direitos humanos fundamentais, na dignidade e no valor da pessoa humana e na igualdade de direitos dos homens e das mulheres, e que decidiram promover o progresso social e melhores condições de vida em uma liberdade mais ampla, Considerando que os Estados-Membros se comprometeram a desenvolver, em cooperação com as Nações Unidas, o respeito universal aos direitos humanos e liberdades fundamentais e a observância desses direitos e liberdades, Considerando que uma compreensão comum desses direitos e liberdades é da mais alta importância para o pleno cumprimento desse compromisso [...] (DECLARAÇÃO UNIVERSAL DOS DIREITOS DO HOMEM, 1948, preâmbulo)

Tamanha a importância da Declaração, ela foi transcrita para mais de 360 idiomas, sendo o documento mais traduzido do mundo e servindo de inspiração para muitos Estados e democracias da atualidade (ONU, 2013).

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A partir da perspectiva trazida pela Declaração, “[...] somos iguais na diferença e na diversidade”, de modo que a “consciência do outro como um igual precisa ser lembrada, reconhecida, aperfeiçoada a cada momento de nosso processo de permanente educação” (FORTES, 2010, Apresentação).

A partir da Conferência de Viena, realizada no ano de 1993 pela Organização das Nações Unidas, instaurou-se a “Década Internacional da Educação em Direitos Humanos”, fomentando que todos os países membros organizassem processos educacionais para promoção da compreensão dos direitos fundamentais do ser humano como forma eficiente no enfrentamento aos abusos e violações de “direitos civis e políticos, econômicos, sociais, culturais e ambientais, bem como no combate à intolerância étnico racial, religiosa, cultural, geracional, territorial, físico-individual, de gênero, de orientação sexual, de nacionalidade, de opção política” etc. (FORTES, 2010, Apresentação).

Então, no Brasil, criou-se o Programa Nacional de Direitos Humanos, no ano de 1996, apresentando uma segunda versão no ano de 2002 e uma terceira no ano de 2009. A partir do Programa Nacional, houve mobilização para a realização de um plano de ação, o qual consistuiu posteriormente o Plano Nacional de Educação em Direitos Humanos, que atualmente se encontra conjecturado em sua segunda versão e dispõe de diretrizes e princípios gerais que estabelecem ações programáticas a serem alcançadas em cinco eixos ou áreas, a saber: educação básica, educação superior, educação não formal, educação dos profissionais dos sistemas de justiça e segurança e educação e mídia (BRASIL, Plano Nacional de Educação em Direitos Humanos, 2009).

O Plano Nacional de Educação em Direitos Humanos (PNEDH) representa o compromisso do Estado com a concretização dos direitos humanos, tendo como princípio a afirmação dos direitos humanos como universais, indivisíveis e interdependentes, buscando, consequentemente, a promoção da igualdade de oportunidades e da equidade no que diz respeito à diversidade e, principalmente, na consolidação de uma cultura democrática e cidadã. Trata-se de uma política pública que visa a aperfeiçoar os ideais do Estado Democrático de Direito (BRASIL, Plano Nacional de Educação em Direitos Humanos, 2009).

A educação em direitos humanos pode ser compreendida como:

[...] um processo sistemático e multidimensional que orienta a formação dos sujeitos de direitos, articulando várias dimensões, como apreensão do conhecimento sobre Direitos Humanos; a afirmação de valores, atitudes e práticas que expressam uma cultura de Direitos Humanos; a afirmação de uma consciência cidadã; o desenvolvimento de processos metodológicos participativos; e o fortalecimento de práticas individuais e sociais que gerem ações e instrumentos em favor da promoção e da defesa dos Direitos Humanos (FORTES, Apresentação, 2010).

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Para Carbonari (2009, p. 149), existem princípios fundamentais que devem orientar a educação em direitos humanos. São eles:

a) aprendizagem reflexiva e crítica, pelo acesso ao saber acumulado historicamente pela humanidade e sua reconstrução a partir das vivências; b) aprimoramento da sensibilidade (artística e estética), para perceber, promover e produzir na e com a diversidade, como congraçamento; c) capacidade de acolhimento, cuidado e solidariedade no reconhecimento do outro, especialmente o mais fraco; d) postura de indignação ante todas as formas de injustiça e disposição forte para a superação – não somente punitiva; e) disposição à corresponsabilidade solidária na garantia de promoção da vida de/para todos.

A Unesco (2009, p. 1) afirma ser imprescindível a construção de ações pedagógicas capazes de possibilitar que os educandos possam compreender a agir ante as carências de direitos do outro. Assim, “tanto o que é ensinado como o modo que é ensinado deve refletir os valores dos direitos humanos, estimular a participação a esse respeito e fomentar ambientes de aprendizagem nos quais não existam temores e carências”.

Sabe-se que o atual constitucionalismo contemporâneo volta-se para a promoção da dignidade da pessoa humana11, irradiando em todo o sistema jurídico. Nesse sentido, uma política pública voltada para a educação em direitos humanos vem ao encontro da afirmação dos ideais vislumbrados pelos Estados Democráticos, que, por sua vez, corrobora com a afirmação de Bobbio12, de que não há democracia sem proteção de direitos humanos e não há possibilidade de construção de paz sem a democracia.

Compreender a democracia e os direitos humanos como uma construção que se faz ao longo da história, e que tem diante de si o futuro, pressupõe atribuir à educação um lugar indispensável de formação em e para os direitos humanos, na medida em

11 Com a Constituição Federal de 1988, resta evidente a busca do equilíbrio entre a esfera de proteção social e o regime capitalista de mercado. O Estado assume o papel de médium entre sua função de regulador econômico em contraponto ao seu papel de garantidor social, perquirindo sempre a proteção da dignidade da pessoa humana e a concretização dos direitos fundamentais.

12 “A princípio, a enorme importância dos direitos do homem depende do fato de ele estar extremamente ligado aos dois problemas fundamentais do nosso tempo, a democracia e a paz. O reconhecimento e a proteção dos direitos do homem são a base das constituições democráticas, e, ao mesmo tempo, a paz é pressuposto necessário para a proteção efetiva dos direitos do homem em cada Estado e no sistema internacional. Vale sempre o velho ditado – e recentemente tivemos uma nova experiência – que diz inter arma silent leges. Hoje, estamos cada vez mais convencidos de que o ideal da paz perpétua só pode ser perseguido através de uma democratização progressiva do sistema internacional e que essa democratização não pode estar separada da gradual e cada vez mais efetiva proteção dos direitos do homem reconhecidos e efetivamente protegidos não existe democracia, sem democracia não existem as condições mínimas para a solução pacífica dos conflitos que surgem entre os indivíduos, entre grupos e entre grandes coletividades tradicionalmente indóceis e tendencialmente autocráticas que são os Estados, apesar de serem democráticas com os próprios cidadãos” (BOBBIO, 2004, p. 203).

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que, através do ato educativo, pode-se senão transformar a sociedade, construir a cultura indispensável para esta transformação (VIOLA, 2010, p. 22).

Deve haver uma ligação indissolúvel entre os direitos humanos, a democracia e a resolução pacífica de conflitos para que efetivamente possa se pensar no ser humano como elemento central do ordenamento não só jurídico.

O tema educação em direitos humanos atrela-se ao discurso do processo de redemocratização no Brasil, marcando os anos 1980, em que é visada a construção de uma cultura de participação cidadã, em que o ser humano se reconheça como um sujeito de direitos. Há um momento de “reorganização da sociedade civil e dos movimentos sociais nela organizados” (VIOLA, 2010, p. 15-16).

Destaca-se que os debates sobre direitos humanos são um tanto quanto tardios na América Latina, principalmente no Brasil. Embora fosse perceptível o destaque ao princípio da liberdade nas lutas anticolonialistas e antiescravistas dos séculos XVIII e XIX, assim como o princípio da igualdade, presente nas manifestações da classe operária do século XX, essa defesa acontecia em prol de um grupo, sem conexão ao discurso da defesa dos direitos humanos. Os direitos humanos compõem a história nacional efetivamente como resposta às práticas ditatoriais do autoritarismo militar, quando este aboliu quase que de forma irrestrita espaços de liberdade da sociedade civil. Começam em pequenos espaços, principalmente vinculados às igrejas cristãs (VIOLA, 2010).

Os direitos humanos são fruto de lutas libertárias e emancipatórias, viabilizando a construção de uma nova cultura de direitos humanos, tendo sua base na indignação e na solidariedade. A luta faz a denúncia de violações (momento da indignação), como também propõe “a partir do conteúdo construído pelas vítimas, propostas alternativas de justiça (solidariedade). Uma nova cultura dos direitos humanos é um novo modo de ser pessoal, grupal e social” 13 (CARBONARI, 2010, p. 87).

[...] a educação para os direitos humanos, na perspectiva da justiça, é exatamente aquela educação que desperta os dominados para a necessidade da ‘briga’, da organização, da mobilização crítica, justa, democrática, séria, rigorosa, disciplinada, sem manipulações, com vistas à reinvenção do mundo, à reinvenção do poder (FREIRE, 2001, p. 99).

13 Para Carbonari (2010, p. 86), o sentido dos direitos humanos pode ser desdobrado conforme a luta almejada: a) luta por direitos humanos conjuga temporalidade e territorialidade; b) luta por direitos humanos é pretender ser reconhecido como gente [simplesmente humana]; c) luta por direitos humanos é universalizar demandas; d) luta por direitos humanos é gerar presença; e) luta por direitos humanos constrói sujeitos.

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Para Kant (1996, p. 15) “homem é aquilo que a educação dele faz”. O filósofo, ao retratar a educação como uma ferramenta de transformação social, como um processo de constante libertação do homem, vem ao encontro da fala de Freire, que denota: “É exatamente em suas relações dialéticas com a realidade que iremos discutir a educação como um processo de constante libertação do homem” (FREIRE, 2006, p. 75).

A educação é, portanto, amplamente reconhecida na formação do indivíduo, sendo um dos pilares para o desenvolvimento de uma sociedade. Sabe-se que a educação já foi utilizada apenas para a formação das classes dominantes, não apresentando a universalidade que hoje se concebe.

Pisón (2003, p. 18) ensina que a popularização da educação nas camadas sociais inicia-se no século XVI, época de grandes transformações na Europa. O Iluminismo rompe com os ideais da Idade Média e as “luzes” invadem as perspectivas do Novo Mundo. Portanto, a ruptura com a religião, a queda do Feudalismo e a abertura à racionalidade fazem com que a educação passe a ser entendida como um potencial instrumento de transformação do homem nos novos tempos. Atualmente, a educação é um direito fundamental reconhecido na Constituição Federal e, também, internacionalmente, por meio de pactos, tratados e declarações internacionais (GORCZEWSKI, 2009). Ante a fundamentalidade e a importância assumida pela educação nos dias atuais, embasa-se a necessidade da educação em direitos humanos.

Arendt (2007) destaca ser a missão primordial da educação “apresentar o mundo”, conscientizando os indivíduos que este mundo é pertencente a um conjunto, ou seja, a uma comunidade plural. Pode-se dizer que, para a autora, é a partir do nascimento que o indivíduo é contextualizado no mundo. Nesse sentido, o nascimento, ou a natalidade, termo utilizado pela autora, representa justamente um novo ser no mundo, que será abrigado, acolhido e estreado no mundo já existente a partir da educação, tornando-se, para tanto, apto à herança da humanidade.

A educação está entre as atividades mais elementares e necessárias da sociedade humana, que jamais permanece tal qual é, porém se renova continuamente através do nascimento, da vinda de novos seres humanos. Esses recém-chegados, além disso, não se acham acabados, mas em um estado de vir a ser (ARENDT, 2007, p. 234).

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Para Arendt (2007), a preservação do mundo e o amor14 ao mundo (amor mundi) são de suma essencialidade e devem ser transmitidos pelo educador aos seus alunos na escola. A educação resultará nas responsabilidades do “novo ser” para com o mundo já existente.

Logo, a renovação do mundo se dá a partir da natalidade. Nascer significa trazer uma nova ordem a partir da mera presença (ARENDT, 2007). Todo o homem tem como característica ser um “iniciador na humanidade”. Nesse contexto, entra o papel primordial da educação.

A tarefa da educação é justamente a de apresentar o mundo às gerações do presente, tentando fazê-las conscientes de que comparecem a um mundo que é o lar comum de múltiplas gerações humanas. Ao conscientizá-las do mundo a que vieram, estas deverão compreender a importância de sua relação e ligação com as outras gerações, passadas e vindouras. Tal relação se dará, primeiro, no sentido de preservar o tesouro das gerações passadas, isto é, no sentido de a geração do presente tomar o cuidado de trazer a esse mundo sua novidade sem que isso implique a alteração, até ao irreconhecimento, do próprio mundo, da construção coletiva do passado (FRANCISCO, 2008, p. 34).

Essa responsabilização pelo mundo trazida por Arendt (2007) está intimamente ligada à participação social, uma vez que a educação vai contribuir com o processo de emancipação do ser humano, de modo que este tenha autonomia no mundo.

Nas palavras de Freire, “Ninguém nasce feito. Vamos nos fazendo aos poucos, na prática social de que tornamos parte” (FREIRE, 2001, p. 40). A educação apresenta-se como o fio condutor a perquirir o desenvolvimento da autonomia, da tomada de consciência.

A inconclusão do ser humano e sua consciência de inacabado torna a educação algo constante, uma vez que a procura do conhecimento se faz contínua. É a análise crítica da educação que faz com que o ser humano se torne mais humano. A educação sob perspectiva revolucionária viabiliza a liberdade de forma humanizadora, visando ao “ser mais”, possibilitando a emancipação do ser humano.

É esta percepção do homem e da mulher como seres ‘programados, mas para aprender’ e, portanto, para ensinar, para conhecer, para intervir, que me faz entender a prática educativa como um exercício constante em favor da produção

14 A educação é o ponto em que decidimos se amamos o mundo o bastante para assumirmos a responsabilidade por ele e, com esse gesto, salvá-lo da ruína que seria inevitável não fosse a renovação e a vinda dos novos e dos jovens. A educação é, também, onde decidimos se amamos nossas crianças o bastante para não expulsá-las de nosso mundo e abandoná-las a seus próprios recursos, e tampouco arrancar de suas mãos a oportunidade de empreender alguma coisa nova e imprevista para nós, preparando-as, em vez disso, com antecedência para a tarefa de renovar um mundo comum (ARENDT, 2007, p. 247).

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e do desenvolvimento da autonomia de educadores e educandos. Como a prática estritamente humana jamais pude entender a educação como uma experiência fria, sem alma, em que os sentimentos e as emoções, os desejos, os sonhos devessem ser reprimidos por uma espécie de ditadura reacionalista (FREIRE, 1996, p. 54).

Cumpre advertir que, para a educação ser libertadora, proporcionar a emancipação que vislumbra, ela tem que vir ao encontro da efetivação dos direitos humanos. Freire propõe que:

A educação para os direitos humanos, na perspectiva da justiça, é exatamente aquela educação que desperta os dominados para a necessidade da briga, da organização, da mobilização crítica, justa, democrática, séria, rigorosa, disciplinada, sem manipulações, com vistas à reinvenção do mundo, à reinvenção do poder. [...] essa educação tem que ver com uma compreensão diferente do desenvolvimento, que implica uma participação, cada vez maior, crescente, crítica, afetiva, dos grupos populares (FREIRE, 2001a, p. 99).

Então, quando se fala em educação, não se pode esquecer que ela vem para contemplar os direitos humanos. A educação deve ter como fim o educar para “ser mais humano”, para ter mais qualidade enquanto gente, simplesmente, educar para humanizar.

Nesse sentido, se traz a educação em direitos humanos, quando Eichmann, um burocrata nato, sem consciência própria, manipulado por clichês e eufemismos burocráticos, não consegue pensar além de suas tarefas e nem na dimensão daquilo que elas representam. A proposta da educação libertadora vem no sentido de possibilitar a reflexão para um pensar com profundidade, de modo a resgatar-se a consciência.

Para Warat, a educação em seu fim refere-se “ao objetivo de fazer crescer as pessoas em dignidade, autoconhecimento, autonomia e no reconhecimento e afirmação dos direitos da alteridade (principalmente entendidos como o direito à diferença e à inclusão social)” (WARAT, 2003, p. 57).

Warat (2010, p. 85) conceitua a emancipação como “o conjunto das experiências radicais de alteridade, entendendo esta última expressão como minha possibilidade de estabelecer vínculos de cuidado e afeto”, não no sentido de dependência tóxica, ou codependência ou, ainda, alienação.

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Pensar a alteridade15 também é importante para verificar o sentido de uma educação em direitos humanos, uma vez que

[...] Os direitos humanos jamais podem triunfar; eles podem padecer e até mesmo ser temporariamente destruídos. Mas sua vitória e sua justiça estarão sempre em um futuro aberto e um presente fugaz, porém premente. É nesse sentido que os direitos humanos representam nosso princípio utópico: um princípio negativo que coloca a energia da liberdade a serviço da nossa responsabilidade ética em relação ao Outro (DOUZINAS, 2009, p. 374).

O signo do Outro é o seu rosto único, um somatório total das características faciais, que “aproxima a fala e o olhar, o dizer e o ver”, de modo a se verificar no outro o meu rosto (DOUZINAS, 2009, p. 355).

O Outro vem primeiro. Ele é condição de existência da linguagem, do Eu e da lei. O Outro sempre me surpreende, abre uma brecha em meu muro, sucede o ego. O Outro me precede e me convoca: qual é o seu lugar? Onde você está agora e não quem você é. Todas as perguntas ‘quem’ terminaram nos movimentos fundadores da (de)ontologia. O Ser, ou o Eu do cognito cartesiano e o sujeito kantiano transcendental começam com o Eu e criam o Outro como um imitatio ego. Na filosofia da alteridade, entretanto, o Outro jamais pode ser reduzido ao Eu, ou o diferente ao mesmo. Tampouco constitui o Outro uma instância da alteridade ou de alguma categoria geral, um objeto para um sujeito que pode se tornar um movimento na dialética (DOUZINAS, 2009, p. 354).

Pode-se dizer que o discurso dos direitos humanos é duplo e paradoxal e reconhece dois tipos de intersubjetividade e comunidade. Ao mesmo tempo que viabiliza a liberdade, também abre a linguagem como forma de estratégia política do funcionamento da sociedade.

Os direitos humanos ainda conseguem institucionalizar uma “ética da alteridade e o dever de respeitar a existência singular e única do Outro”. Nesse sentido, “a experiência da falta de fundamento e a experiência da liberdade tornam impossível

15 Nesse mesmo sentido, Maturana e Varela (2001, p. 268-269) trazem a questão do amor como um ato de ver o outro como igual: “A esse ato de ampliar nosso domínio cognitivo reflexivo – que sempre implica uma experiência nova –, podemos chegar pelo raciocínio ou, mais diretamente, porque alguma circunstância nos leva a ver o outro como um igual, um ato que habitualmente chamamos amor. Além do mais, tudo isso nos permite perceber que o amor ou, se não quisermos usar uma palavra tão forte, a aceitação do outro junto a nós na convivência, é o fundamento biológico do fenômeno social. Sem amor, sem aceitação do outro junto a nós, não há socialização, e sem esta não há humanidade. Qualquer coisa que destrua ou limite a aceitação do outro, desde a competição até a posse da verdade, passando pela certeza ideológica, destrói ou limita o acontecimento do fenômeno social. Portanto, destrói também o ser humano, porque elimina o processo biológico que o gera. Não nos enganemos. Não estamos moralizando, nem fazendo aqui uma prédica do amor. Só estamos destacando o fato de que biologicamente, sem amor, sem aceitação do outro, não há fenômeno social. Se ainda se convive assim, vive-se hipocritamente, na indiferença ou na negação ativa”.

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definir, descrever ou delimitar uma sociedade de direitos humanos. Tal sociedade sempre vislumbra redefinições e reconciliações, novas possibilidades e subjetividades” (DOUZINAS, 2009, p. 362), como discorre Freire frente à constante inconclusão do ser humano e sua consciência de estar inacabado.

De certo modo, o compreender o outro “faz com que cada um conheça melhor a si mesmo”. É “complexa a forma como nos identificamos”. Cada ser humano “define-se em relação ao outro, aos outros e aos vários grupos a que pertence”. As múltiplas relações fazem com que se busque valores comuns, que “funcionam como base da ‘solidariedade intelectual e moral da humanidade’, de que se fala no documento constitutivo da Unesco” (DELORS, 1999, p. 59).

Para Douzinas16, o fim dos direitos humanos, tema polêmico trazido em sua obra, implica justamente na sua crítica da necessária positivação daqueles para concretização, em que os mesmos são dinâmicos e precisam sempre ser alargados pelo olhar do eu no rosto do outro. Para o autor, a humanidade está no rosto de cada pessoa, devendo cada um conseguir colocar-se no lugar do outro (alteridade) e, com isso, respeitar integralmente cada indivíduo na sua dignidade ímpar.

De certo modo, Douzinas (2009) propõe uma ética da responsabilidade universal, assim como Freire e Habermas. Para Freire, a luta política atrela-se ao “horizonte ético da transformação social, da superação das injustiças, através de um esforço que provém da capacidade humana de agir” (POLLI, 2012, p. 137).

Freire entende que o desenvolvimento da libertação humana é uma tarefa não experimentada pela sociedade e alerta para as dificuldades de se promover a mudança a partir de uma nova forma de existência, voltada para o ato solidário-transformador, e o compromisso em ajudar a promover a emancipação17 de todos (POLLI, 2012).

16 “[...] Os direitos humanos não podem ser reduzidos à categorização e à classificação; seu conteúdo não se presta à apresentação categórica. Temos uma sensação de estar cercados por injustiça sem saber onde a justiça reside. Os direitos humanos representam essa denúncia de injustiça e continuam necessária e radicalmente negativos, tanto em sua essência quanto em sua ação. Para uma política que protege os direitos humanos, a injustiça seria a tentativa de cristalizar e fixar identidades individuais e de grupo, de estabelecer e policiar as fronteiras do social, de torná-lo co-extensivo e encerrá-lo em torno de alguma figura de autoridade ou lei. Para uma lei que protege os direitos humanos, a injustiça seria o esquecimento de que a humanidade existe no rosto de cada pessoa, em seu caráter único e em sua singularidade não repetida, e que a natureza humana (o universal) está constituída na e por meio de sua transcendência pelo mais particular” (DOUZINAS, 2009, p. 373).

17 “O dualismo oprimido-opressor ainda configura o interior de cada um dos homens, que podem tomar consciência do seu opressor interno e assumir um compromisso pela libertação do oprimido, estando ao seu lado e percebendo que ninguém mais do que ele, o oprimido, pode entender o significado da opressão. A percepção que os oprimidos podem ter de sua própria opressão os qualifica como agentes de mudança para um mundo mais solidário e justo” (POLLI, 2012, p. 137-138). Essa configuração, trazida por Freire, corrobora com a atualidade dos problemas mundiais da fome, da pobreza, da miséria e do desemprego.

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A ideia de uma ética universal do ser humano, enquanto uma ética da solidariedade, parte do compromisso pessoal de cada um com a solidariedade e a transformação. O oprimido, uma vez que se sente capaz e livre, como alguém que faz parte do mundo e é agente de mudança, terá atuação sob a perspectiva da ética da solidariedade, posicionado-se contra tudo o que for oposto à ética. Assim é viável se pensar um projeto humanista de sociedade. “A atuação consciente e a presença do homem mundo não permitem que ele escape à sua responsabilidade ética. Todos os condicionamentos não impedem de assumir um compromisso transformador” (POLLI, 2010, p. 139).

O mesmo valerá para o pensamento de Habermas (2003)18, quando, a partir da comunicação, diz ser possível a superação da insensibilidade proveniente dos processos de dominação, que, por sua vez, intensificam posturas egocêntricas e narcisistas, inviabilizando o reconhecimento do outro. Habermas destaca a importância da linguagem na interação humana, pois o entendimento entre as pessoas, com a consequente integração sócial, ocorrerá a partir do diálogo. Portanto, a teoria do agir comunicativo vem ao encontro também da democracia19.

Diante da democracia há sempre que se trazer o discurso dos direitos humanos, em especial da educação em direitos humanos. O esforço para as práticas democráticas vem ao encontro de uma luta por mudanças, vislumbrando transformações a partir de práticas solidárias que contribuem com a utopia de um mundo melhor. Ou seja, uma práxis libertadora e humanizadora, com vistas à emancipação do ser humano, pode ser encontrada na perspectiva da educação em direitos humanos e, portanto, auxiliar na superação da banalidade do mal.

18 Para Habermas, a sociedade não funciona como um organismo. Ele a vislumbra sob duas esferas: sistema e mundo da vida. Na esfera do sistema, encontra-se a reprodução material dada pela lógica instrumental (adequação dos meios aos fins), incorporada nas relações hierárquicas (poder político) e de intercâmbio (economia). Já na esfera do mundo da vida é que se encontra a reprodução simbólica da linguagem, das redes de significados possibilitadores da visão de mundo: fatos subjetivos, normas sociais e conteúdos subjetivos. O mundo em que se vive é um processo constante de entendimento no qual pessoas distintas se entendem a partir de um mesmo pano de fundo: o mundo objetivo dos fatos, muito bem ilustrado pela cultura; o mundo social das normas e o mundo subjetivo das vivências. A comunicação acontecerá quando ocorrer a interação dessas estruturas. O mundo da vida é parte fundamental na teoria de Habermas, sendo constituído de três elementos essenciais: cultura, sociedade e personalidade. A cultura é facilmente verificada com o conhecimento que é repassado de geração para geração ao longo dos anos. A sociedade pode ser explicada e visualizada nas noções de solidariedade e convivência com o outro. Já a personalidade advém da cultura e da sociedade em que o indivíduo se insere pela linguagem e consequente entendimento.

19 Habermas veicula a proteção dos direitos e a participação política à sobrevivência da democracia, uma vez que esta é percebida como um grande ideal de vida ética. Assim, no mundo da vida é possível à cidadania. É a partir do diálogo no mundo da vida que reside a participação ativa dos cidadãos na esfera pública, resultando no crescimento do sentimento de responsabilidade civil, de cidadania: eis a democracia deliberativa.

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4 CONSIDERAÇÕES FINAIS

O presente artigo trouxe à baila o sentido da banalidade do mal para Hannah Arendt, em sua obra “Eichmann em Jerusalém”. A banalidade do mal, de certo modo, ainda não foi superada e pode acontecer a qualquer momento nas práticas diárias. Todos podem ser um Eichmann, não há como superar essa possibilidade. Trata-se de um trabalho árduo e cotidiano.

Aqui entra o papel da educação, mais especialmente da educação em direitos humanos, que seja capaz de tornar mais humano e realmente diferenciar o ser humano dos demais seres. A sua racionalidade nem sempre poderá ser usada para o bem, no entanto, cumpre a cada um ter presente que o respeito ao direito do outro também faz parte de um valor ético a ser perseguido no atual Estado Democrático de Direito. Colocar-se no lugar do outro é o primeiro passo, ou como já dizia Maturana, “colocar o sapato do outro [...]”, para que se possa vivenciar os direitos humanos de todos na prática, e não só no discurso.

A emancipação a partir da educação é um discurso que traz esperanças, que renova a utopia, de modo que as atrocidades vivenciadas pela humanidade não mais se repitam. O pensamento crítico e autônomo pode ser amparado pela educação em direitos humanos, que promove a liberdade e a consciência dos direitos e deveres.

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