Eduardo Pellejero, Mil Cenários - Deleuze e a Inatualidade Da Filosofia(Introdução)

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  • 7/24/2019 Eduardo Pellejero, Mil Cenrios - Deleuze e a Inatualidade Da Filosofia(Introduo)

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    Evidentemente, como todas, a filosofia

    de

    Deleuze se r

    sempre menos

    do

    que exigimos ou esperamos dela, mas

    tambm

    muito

    mais do qu e lhe concedemos ou dizemos

    da

    mesma. No que tem de vivo,

    de

    vital, a

    obra de

    Deleuze n

    o de

    ixa de provocar fugas em todos os

    comentrios

    que

    perseguem sua totalizao

    conta de

    uma

    imagem

    ,

    de

    uma

    dout

    rina ou

    de uma

    data . No h

    um

    Deleuze, radicalizado fora de privileg iar o que

    tem de irredutvel com relao aos diferentes horiz

    ont

    es

    de

    leitura.

    Mas tambm

    no existem dois Dele uze,

    desdobrados segundo uma dialtica

    de apropriao

    que

    requereria, para a salvao de um punhad o de

    princpios, o

    antema

    de parte

    de

    sua filosofia .

    iga-

    mos, antes,

    que

    h pluralidade

    de

    conceitos, de pers-

    pectivas e de textos,

    que

    associamos ao nome de Deleu-

    ze

    , mas sempre de um

    modo

    local, estratgico, essen-

    cialmente aberto.

    Na

    sua

    determinao

    propr

    iamente

    deleuziana, a histria

    da

    f ilosofia

    no

    tem por

    objeto

    restaurar o sentido

    profundo

    do que os autores teriam

    dito

    para ns, mas apenas extrai r um

    dupl

    o .

    E

    com

    os

    duplos, j

    se

    sabe

    como

    nunca est

    am

    os seguros de

    quem

    quem

    . Os desiguais textos q ue

    compem

    o

    presente

    volume no

    pretendem desmasca

    rar

    imposto-

    res, mas

    multiplicar

    os espelhos.

    II

    IIhI I (Ih' '

    lIoh

    II

    , ,lvliI

    I

    d u r d o

    Pellejero

    .

    .

    enarlos

    in)atJualidade da PilosoPia

    Tr aduo

    Susana Gue

    rra

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    REITORA

    ngela Maria Paiva Cruz

    VICE REITORA

    Maria de Frima Freire de Melo Ximenes

    DIRETORA DA EDUFRN

    Margarida Maria ias de Oliveira

    VICE DfRETOR D EDUFRN

    Enogue Pauli no de lbugueJgue

    CONSELHO EDITORI L

    Margarida Maria Dias De Oliveira presidenre

    Andrea Cmara Viana Venncio Aguiar

    Angela Luzia M ir

    anda

    Anronio Sergio Arajo Fernandes

    Emerson Moreira

    De

    Aguiar

    Eni lson Medeiros dos Sanros

    Humberto

    Hermenegildo de Araujo

    Jones de ndrade

    Marcus Andre Vareja Vasconcelos

    Maria Aniolly Queiroz Maia

    Maria da

    Conceio

    F,

    B,

    Sgadari Passeggi

    Ricardo Oliveira Guerra

    Rodr igo Pegado De Abreu Freiras

    Sarhyabama Chel lappa

    T n ia Cristina Meira Garcia

    EDITOR

    Helron Rubiano de Macedo

    REVISOR

    Madsa Mourinha

    Nelson

    Parriora

    CAPA

    He lron Rubiano de Macedo

    EDITORA SSISTENTE

    Pau la Frassinetri dos Sanros

    DI GR M O

    Michele de Olivei ra Mou ro Holanda

    PRI IMPRESSO

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    SUPERVISAO EDITORIAL

    Alva Medeiros da COSia

    SUPERVISAo GRFICA

    Francisco Guilherme de Santana

    duardo

    Pelle

    ro

    Traduo de

    Susana Guerra

    Mil cenrios

    eleuze

    e a in)atualidade

    da

    filosofia

    4-''4 '

    Editora dQ UFRN

    Natal, 2014

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    Div iso de Servios Tcnicos

    Catalogao da Publicao na Fome. UF RN r Biblioteca Central Zila Mamede

    Pe

    ll

    ejero, Eduardo.

    Mil cenrios: Oeleuze e a (in)a tua lidade da fi losofi ar Eduardo

    Pel

    lejero ;

    rr

    aduo de Susana

    Guerra. - Nara l, RN : E

    OUFRN

    2014.

    362 p

    ISBN 978-85-425-0196-4

    I . Filoso fi

    a.

    2. Oeleuze, G il lcs , 1925-1995 - Filosofia. 3. Filosofi a e historiografia . . Guerr

    a

    Susana.

    11.

    T tulo.

    RN/

    U

    F/BCZM

    2014/25

    COO 100

    CD U

    1

    Todos os dir e os desta edirio reservados EDUF RN - Editora da UFRN

    Av Se nado r

    Sa

    lgado Filho 3000 I Campus Universitrio

    la goa

    Nova

    I

    59.078-970

    I

    Nara llRN \ Smil

    c mai l:

    cdufrn@cdirora

    ufrn .brl .w w.edirora ufrn .br

    Telefon

    e:

    84

    32

    15-

    3236\

    Fax: 84 3215-3206

    Sumrio

    Introduo _

    7

    A inatualidad

    e

    omo

    programa filosfico

    _

    _ _ _ _

    7

    O q ue isso a inatualid

    ad e

    ?_ _

    _ _

    9

    A

    inatualidade omo programa

    _ _ _ _

    17

    A inatualidade

    e a

    redefinio da

    filosofia

    _ _ _ _ _

    26

    Filosofia e acontecimento: in tu lid de como

    eventu liz o e contr efetu o

    __________

    Lgic a

    do

    acontec i

    mento

    _ _ _ _

    35

    A revoluo

    omo

    acontec imento _ _

    47

    Histria

    e

    devir _ _

    _ _ _ _

    60

    Eventualizao e

    contra

    e

    fetuao

    _ _

    75

    II Filosofia e historiografia: in tu lid de como

    pl no de coexistnci _______________

    Borges e Kafka: a

    al

    egria da influncia

    _

    _ _

    Os

    precursores de

    Deleu

    ze _ _

    _

    _ _ _

    Repetio e difere

    n a

    : a perspectiva

    da

    cria

    o _ _ _

    Metafsica

    da

    inatualidade o tempo omo

    ord

    em

    de

    co existnc io

    III ilosofill (> rn t todo: in tu lid de como

    94

    1 3

    113

    132

    33

    89

    pe

    r pt

    tlvi ) I

    rlltl lrlatilao 145

    II I II / 11111/ / i III 111/1 rll ,/ ' " 1 11 1 dCl pe rgunto 147

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    acrtica experimentao 16

    Des)continuidade

    do

    mto

    do

    dramtico: LAnti-CEdipe

    173

    Mil cenrios (ou do teatro

    da

    filosofia)

    18

    V

    Filosofia e posicionamento a in tu tid de como

    desterritorializao

    89

    Fontes

    e significao da terminologia

    territorial

    196

    A filosofia

    como

    vetor de desterritorializao

    209

    Desterritorializao

    e atopia

    222

    V Filosofia e menoridade a

    in tu tid de

    como devir

    -

    237

    Devir

    da

    filosofia

    239

    o

    que-como-quando

    devir

    ?

    245

    Literatura

    e

    devir

    253

    Dev

    ir

    e

    anomalia

    271

    VI Filosofia e povo a in tu tid de como t bul o

    279

    A necessidade de uma rela

    o com o

    povo

    280

    Prolegmenos ao conceito de fabulao

    288

    O

    c

    on

    c

    eito deleuziano

    de

    fobula

    o

    302

    Micropolticas de al

    c

    ance

    maior:

    Nietzsc

    he

    go e

    s

    to Hollywo

    od

    321

    A fabulao no um idealismo

    342

    VII Manifesto da filosofia a

    in tu tid de como perspectiva

    poltica gener liz d 47

    Uma

    perspe

    c tiva

    de

    leitura, 348

    Filos

    ofia

    e

    programa 35

    Referncias 357

    Introduo

    inatualidade como programa filosfico

    Se

    o volume ou o tom

    da obra

    podem levar a

    crer que o autor tentou uma soma apressar

    se a assinalar-lhe que est ante a tentativa

    contrria a de uma subtrao.

    Julio Cortzar

    O jogo da

    amarelinha

    Evidentemente como todas as demais a filosofia de Deleuze ser

    sempre menos do que exigimos ou esperamos dela mas tambm

    e ao mesmo tempo muito mais do que lhe concedemos ou dize

    mos da mesma. Nesse sentido e dadas as circunstncias o sculo

    que passou pode no ter sido propriamente deleuziano o que no

    implica que no chegue a s-lo alguma vez. A astcia de Foucau lt ao

    lanar - como

    uma

    provocao - o seu panegrico ter apostado

    tudo inatualidade da filosofia; isto potncia

    do

    devir e s foras

    retroativas que subjazem histria do pensamento e que o lanam

    sempre para alm da sua determinao total por uma institucionali

    zao da opinio ou da crtica.

    o

    que tem de vivo de vital a obra de Deleuze no deixa

    de escoar de provocar fugas em todos os comentrios que perse

    guem sua totalizao conta de uma imagem de uma doutrina ou

    7

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    Mil c

    fJ

    rlrios

    de uma data (nem "pensamento de 68", nem "capitalismo digital",

    nem

    "autmato purificado"').

    No h "um" Deleuze, radicalizado fora de privilegiar o

    que tem de irredutvel com relao aos diferentes horizontes de lei

    tura, sempre demasiado esquerda (Mengue), ou demasiado direita

    (Lardreau), da perspectiva dos seus censores. Mas tampouco existem

    dois" Deleuze, desdobrados segundo

    uma

    dialtica de apropriao

    que requereria, para a salvao de

    um punhado

    de princpios, o an

    tema de parte

    da

    sua filosofia (Badiou), ou das consequncias da sua

    filosofia (Zizek). Digamos, antes, que h "pluralidade" de conceitos,

    de perspectivas e de textos, que associamos

    ao

    nome de Deleuze, mas

    sempre de

    um modo

    local, estratgico, essencialmente aberto.

    So menos consideraes de ordem metodolgica que notas

    para a assuno de uma perspectiva de leitura que, se pode chegar a

    desconhecer, em alguma medida, os seus limites, no ignora o sis

    tema

    da

    sua prpria parcialidade. Reler a obra de Deleuze do ponto

    de vista da inatualidade, com efeito, implica muito especialmente

    considerar o corpus textual associado segundo

    um

    princpio bsico

    de no totalizao. Menos sistema de referncia que plano de varia

    o contnua. Isso no significa que os conceitos deleuzianos no

    retomem

    ou

    elaborem em distinta medida e segundo

    uma

    diver

    sidade de linhas temticas a ideia de inatualidade (pelo contrrio,

    estou convencido de que uma leitura a partir da mesma pode ser no

    s produtiva, mas tambm altamente rigorosa); porm implica que,

    na

    sua singularidade, esses mesmos conceitos

    podem

    ir muito alm

    da

    perspectiva

    da

    inatualidade, prolongando outras linhas temticas

    ou levantando questes de todo diferentes.

    8

    Cf. Ferry-Renam,

    a

    pense 68: essa i sur J'ami-humanisme comemporain.

    Paris: Gallimard, 1985,

    p. 11-13. Cf.

    ZiZek,

    Organs

    without

    bodies.

    On

    Deleuze

    and

    Consequences,

    New

    York

    : Routledge, 2004,

    p.

    xii. Cf. Badiou,

    DeLeuze:

    La

    clameur

    de

    J'E[re, Hacheue, Paris: 1997 p. 21.

    I , II),

    II

    I, ) I

    III

    I

    I )

    ll l

    l l l l l i l k l

    de Illlla aproxima

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    MII I I ( I I I ( ' .

    algumas das caractersticas trazidas luz nas onsideraes intem-

    pestivas constituem o essencial do historicismo: objetivao genera

    lizada do passado ou narrativa totalizante que apaga os traos da

    sua narratividade, o historicismo expulsa a contingncia do devir em

    detrimento dos impulsos vitais do presente.

    Digamos, ento, que o historicismo sobre o qual Nietzsche

    se debrua

    se

    caracteriza pela eliminao da contingncia

    (e,

    por

    tanto, do que justifica a f na resistncia e na criatividade da vida

    frente s condies que a determinam), pela aspirao do discurso

    totalidade (e, portanto, a supresso dos elementos que denunciam a

    sua origem num contexto existencial e poltico determinado), e, por

    fim, pela extenso ilimi tada do interesse historiogrfico (e, portanto,

    pela negao - pela proliferao ilimitada de dados histricos - da

    ao, da criao e do pensamento em geral).

    Todavia, o historicismo no se limita a inscrever-se na

    ordem dos discursos, mas se desdobra numa srie de efeitos sobre a

    sociedade e a cultura da poca, do mesmo modo que se reconhece

    na apropriao de certos acontecimentos contemporneos, dos quais

    parecera extrair a sua fora,

    ao

    mesmo tempo em que lhes oferece

    uma justificao.

    Por um lado, vemos que a Alemanha do sculo

    XIX

    est

    saturada dessa cultura historicista: o nacionalismo nascente apela

    histria para justificar a sua viso do mundo , a arquitetura toma os

    seus modelos da histria para defini r o estilo dos seus edifcios, qual

    quer bom alemo pretende, por fim, possuir uma educao histrica

    (o que

    lhe

    facilitado por uma srie de obras populares, e, em ltima

    instncia, pela mera leitura dos jornais). A Alemanha o pas da edu

    cao, o pas das pessoas cultivadas (um lugar no qual tudo se v e

    se interpreta atravs do filtro da histria), mas tambm, e na mesma

    medida, como dir Nietzsche, dos amateurs da arte ou dos filisteus

    da cultura (isto , daqueles que no vm na arte, no pensamento ou

    na filosofia, seno

    uma

    distrao para a existncia).

    10

    I , II

    II l l l ,

    I , .11, 1

    1

    ,

    \

    k,

    I

    do 111.1

    1.

    ..

    . N il ll:;lhc constata que a hipertrofia da

    conscilH.:ia iI

    a

    1( (11

    lugar no contexto de

    um

    certo triunfa

    lismo,

    moI

    ivado ptb recente vitria militar alem sobre a Frana.

    Mas tambm, em grande medida, esse desenvolvimento inusitado

    da conscincia histrica coincide com a sensao, de travO hege

    liano, de que a histria est prestes a realizar-se, de que o devir da

    humanidade alcanou a sua meta. E, nesse sentido, o triunfalismo

    duplo, porque se

    d na

    certeza de que a histria terminou.

    O

    orgu

    lho despertado pelos progressos na unificao alem (promulgao

    da constituio em 1867, institucionalizao do Reich em 1871) e

    as recentes vitrias militares (na guerra franco-prussiana, de 1870-

    1871) se traduzem nas academias pelo avano glorioso do processo

    histrico mundial. E isso tambm o historicismo.

    Voluntariosamente provocador, Nietzsche escreve:

    Forma de considerao anloga acostumou os alemes a falar

    do processo do mundo e a justificar a sua prpria poca

    como o resultado necessrio desse processo [ ..

    Com

    escrnio,

    chamou-se a essa histria, compreendida hegelianamente, o

    caminhar

    de

    Deus sobre a terra; mas

    um

    Deus criado,

    por

    sua

    vez, atravs da histria. Todavia, esse Deus tornou-se trans

    parente e compreensvel para

    si mesmo no interior da caixa

    craniana de Hegel e saltou todos os degraus dialeticamente

    possveis

    do

    seu vir a ser, at

    sua autorrevelao: de modo

    que, para Hegel, o ponto culminante e o ponto final do pro

    cesso

    do

    mundo confundir-se-iam

    com

    a sua prpria existncia

    berlinense

    (NIETZSCHE,

    2003 , 8).

    Nietzsche compreende que, de certo modo, a divinizao

    da

    histria e a declarao hegeliana

    da

    sua finalizao encontram a

    sua sano nos fatos (em certos fatos particulares: vitrias militares,

    avanos

    na

    unificao nacional), mas compreende tambm que essa

    mesma histria promulga a dignidade dos fatos (legitimidade das

    vitrias, fundamento da unidade). E tudo isso de forma tal que o

    consentimento dado dialtica historicista parece implicar o con

    sentimento perante os fatos em geral, como se a potncia

    da

    hist

    ria fosse o melhor aliado dos poderes de turno.

    Contra

    o arrivismo

    generalizado e a impostura do orgulho nacional, que se traduzem

    11

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    7/16

    Mil r

    I I

    I III

    \ ,

    ou

    se

    escondem sob a sobrevalorizao

    da

    conscincia histrica, as

    Consideraes

    inatuais denunciam a estupidez dos fatos, assim como

    a impossibilidade de extrair

    um

    saber,

    uma

    arte ou

    uma

    tica do

    mero processo histrico.

    A ideia de inatualidade implica um vnculo estreito - a

    partir do seu contexto de criao

    - , com

    a crtica do historicismo.

    Na

    medida

    em que as

    Consideraes

    passam muito especialmente

    por uma

    revalorizao ou transvalorao de

    tudo

    aquilo

    em

    que a

    Alemanha

    do sculo

    XIX

    se

    compraz (comeando pela sua pretensa

    cultura histrica), essa posio crtica constitui o sentido mais ime

    diato

    da

    noo de inatualidade. Nietzsche (2003, Prefiicio escreve:

    Esta considerao

    tambm

    inatual porque procuro compre

    ender aqui, pela primeira vez, como um mal, como um preju

    zo, como uma deficincia, algo de que a poca se ufana a justo

    ttulo, a saber, a sua cultura histrica, porque creio que todos

    padecemos de uma ardente febre histrica.

    A aposta de Nietzsche de natureza difcil, no s por

    que implica um desafio aberto a

    um

    estado de fato

    empenhado

    na

    sua reproduo, mas

    tambm

    porque o prprio Nietzsche

    se

    formou

    na

    filologia e

    na

    tradio clssica humanista. A sua no

    uma

    luta

    contra a sua poca sem ser

    tambm

    uma

    luta contra

    si

    prprio e

    sua prpria formao. Crtica imanente, portanto, que no apela a

    um distanciamento ideal, e

    na

    qual se confunde a transvalorao do

    objeto

    da

    crtica com a transmutao do sujeito que a realiza.

    Ou,

    melhor, a inadequao essencial do sujeito

    da

    crtica, que no difere

    da

    identidade de seu tempo sem diferir, por sua vez, de sua prpria

    identidade. Ponto de vista a partir do qual, renegando o seu nome ("o

    pretenso filho de seu tempo no seno

    um

    bastardo"), Nietzsche

    denuncia a pretensa solidez do presente histrico ("a falsa soldadura

    do atual"). Relao no dialtica entre o prprio e o alheio, entre

    o adquirido e o espontneo, que implica de

    alguma

    maneira um

    sujeito

    atravessado

    por uma

    diferena irredutvel

    sua fundao

    na

    histria, e que constitui o segundo sentido da inatualidade.

    12

    I I II

    II

    ( L , I di Il II>

    l'\Iil'll lh ' 01, n lama assim um herosmo que no seja

    mais

    t

    t

    ( I ( do t

    'mpu. essa vontade de contrariar a tendncia

    hegemnica da cllltura alem

    da

    sua poca,

    em

    todo o caso -

    cultura

    da

    qual, em princpio, faz parte

    - ,

    que estimula e motiva a vocao

    mais

    profunda

    das Consideraes. Vontade crtica que concorre com

    o desejo, absolutamente positivo,

    de

    redefinir a filosofia dum

    ponto

    de vista problemtico, "capaz de elevar algum acima das carncias

    do

    tempo presente e ensinar de novo a ser

    simples

    e

    honesto

    no pen

    samento e

    na

    vida, e ento inatual no sentido mais profundo

    da

    palavra" (NIETZSCHE, 1990b, 2).

    Terceiro sentido

    da

    inatualidade (elevar-se acima do

    tempo

    presente, a busca de uma honestidade superior), cujo corolrio nos

    abre a

    uma quarta

    determinao do inatual enquanto coragem de

    dizer o que

    ningum

    se atreve a dizer, de dizer a verdade,

    ou

    de

    comprometer-se

    na

    sua (re)criao: "Faz

    muito

    tempo que

    inatualo

    que sempre pertenceu

    atualidade, aquilo do qual, hoje mais

    do

    que

    nunca

    , temos necessidade: que

    se

    diga a verdade"

    (NIETZSCHE,

    1990, I 12).

    Nietzsche sonha nas

    Consideraes com

    biografias exem

    plares que,

    em

    lugar de

    se

    intitularem "Fulano de tal e sua poca",

    levem na capa

    uma

    inscrio mais belicosa, do tipo um guerreiro

    contra o seu tempo", e n o desconheam que a "ptria dos inatuais"

    se encontra alm

    do

    tempo

    presente. Esperana de

    uma

    Bayreuth

    que, para alm

    da ruptura

    com

    Wagner, Nietzsche manter viva

    como estrutura ideal de resistncia ao presente.

    Ao menos assim falar

    Zaratustra

    .

    certo que Nietzsche

    ainda

    no

    se

    interna

    no

    deserto

    quando

    publica

    as Consideraes

    (ainda ocupa a sua ctedra universitria

    em

    Basel, vem da filologia e

    formou-se em

    cultura

    clssica), mas no menos certo que j invoca

    para

    si

    essa atitude crtica, poltica e vital, que define o essencial

    de todo o pensamento que

    se

    queira intempestivo, extemporneo,

    inatual. Isto

    ,

    na acepo de maior alcance

    e

    de maior fama) do

    conceito, "atuar contra o tempo,

    e, com

    isso, no tempo, e oxal, a

    favor de um tempo

    por

    vir" (NIETZSCHE, 2003).

    13

  • 7/24/2019 Eduardo Pellejero, Mil Cenrios - Deleuze e a Inatualidade Da Filosofia(Introduo)

    8/16

    Mil cenrios

    O carter polmico da inatualidade no deve ocultar-nos

    a dimenso temporal ou metafsica que

    comporta

    o conceito nos

    textos nietzschianos. Para alm de estabelecer claramente uma posi

    o poltica a respeito desse movimento que o historicismo alemo

    do sculo

    XIX,

    Nietzsche procura, ain da que mais no seja progra

    maticamente, assentar

    as

    bases de

    uma

    teoria alternativa do tempo,

    do passado e da histria. E ainda que Nietzsche no aprofunde a

    questo nos textos, ou seja, ainda que no desenvolva os conceitos

    temporais de forma satisfatria, nem tematize com sistematicidade

    uma filosofia da histria, podemos afirmar que h nas Consideraes

    (especialmente na segunda) uma espcie de assentamento das bases

    ou das exigncias que uma metafsica do intempestivo deveria ter

    em conta.

    A filosofia

    da

    histria prpria do historicismo caracteriza

    -se pela ideia de que o fim ou o sentido

    da

    existncia se encontram

    inscritos na histria, com tudo o que isso tem de conformista e de

    conservador. Variante de um cristianismo secularizado, tende a pen

    sar o devir histrico co mo realizao de um fim, como a progressiva

    realizao de um ideal (em princpio, no caso do historicismo alemo

    do sculo

    XIX,

    a revelao do esprito na nao alem, mas tambm,

    como

    aponta Maresca, maior felicidde para o maior nmero, paz

    perptua, reconciliao universal, sociedade sem classes). Como assi

    nala Nietzsche, o historicismo tem o olhar posto no passado, mas

    essa contemplao

    impele para o futuro, acende a coragem para manter-se por

    mais tempo

    com

    vida,

    inflama

    a esperana de que a justia

    ainda est por vir, de que a felicidade se encontra detrs da

    montanha

    para a qual se dirige. Esses homens histricos acre

    ditam

    que o sentido

    da ex

    istncia se iluminar no decorrer de

    um

    processo. Assim, s olham para trs com o fim de compre

    ender o presente e aprender a desejar o futuro impetuosamente

    NIETZSCHE,

    2003,

    1).

    Nietzsche chama aos partidrios desta filosofia

    da

    histria

    os fanticos do processo , na medida em que o historicismo ava

    lia de tal

    modo

    o devir histrico,

    na

    promessa de uma significao

    I ,

    II I > , I, 11

    :1

    I

    da eXIstencia, que acaba, como

    as

    religies fundamentalistas, por

    alienar o pensamento individual e coletivo num estado de fato san

    cionado pela histria (ou,

    se se

    prefere,

    numa

    histria promovida

    por um

    estado de fato). O homem do historicismo deixa tudo his

    tria; toda a responsabilidade, toda a iniciativa

    e

    isso com todas as

    submisses ao poder que uma abstrao semelhante tende a ocul

    tar): no precisa de fazer na da para alm d e continuar a viver como

    viveu, continuar a amar o que amou e a

    odiar

    o que odiou, a ler os

    jornais que leu, porque

    para

    ele,

    s h

    um nico pecado - viver de

    maneira diferente da que sempre viveu

    NIETZSCHE,

    2003, 9).

    Convertida

    em

    palavra hegemnica,

    em

    cincia pura e sobe

    rana, a histria aparece como concluso

    da

    vida e conta da existn

    cia. Balano final,

    em

    todo o caso, que projeta, como uma sombra,

    a crena de que chegamos atrasados histria, de que constitumos

    algo assim como a

    coda

    do rond histrico-mundial,

    [ .. ]

    ltima

    prole empalidecida de geraes mais poderosas

    e mais felizes [ ..) que deve ser interpretada pela profecia de

    Hesodo segundo a qual

    os

    homens

    um

    dia nasceriam j

    com

    cabelos brancos e Zeus exterminaria essa gerao assim que

    esse sinal se tornasse visvel. A cultura histrica tambm,

    realmente,

    uma

    espcie de encanecimento inato e aqueles

    que trazem consigo o seu sinal desde a infncia precisam de

    chegar, certamente, crena instintiva no

    envelhecimento da

    humanidade,

    mas por esse envelhecimento paga-se agora com

    uma

    ocupao senil, a saber,

    olhar

    para ([s, acertar contas,

    encerrar-se, procurar um consolo no que foi , nas lembranas,

    em suma, na cultura histrica NIETZSCHE, 2003, 8).

    Uma alternativa a essa considerao historicista da histria,

    que, no obstante, talvez no constitua propriamente

    uma

    filosofia

    da histria, o que Nietzsche denomina de ponto de vista supra-his

    trico, que, apesar de ser tratado

    com

    certo apuro nas Consideraes

    sinalizava j O nascimento da tragdia. Para alm

    da

    histria, o

    ponto

    de vista supra-histrico faz um apelo s realizaes individuais, que

    parecem escapar ao domnio do fluxo temporal, atravs de

    uma

    fora extraordinria, do gnio, ou

    da f:

    15

  • 7/24/2019 Eduardo Pellejero, Mil Cenrios - Deleuze e a Inatualidade Da Filosofia(Introduo)

    9/16

    Mil

    cenrios

    Se algum estivesse em condies de inalar e respirar em in

    meros casos essa atmosfera a-hisrrica na qual surgiram rodos

    os grandes acontecimentos histricos, ento talvez lhe fosse

    possvel, enquanto ser cognoscente, elevar-se a um ponto de

    visra

    supra histrico NIETZSCHE,

    2003, 1).

    Nietzsche cita Niebuhr, que redescobre, nesse modo de

    considerar a histria, a presena fundamental da contingncia, cuja

    ao pe a lgica do processo hisroricista em questo. Nesse sen

    tido, o ponto de vista supra-histrico parece constituir um verda

    deiro antdoto contra o veneno do historicismo a expresso de

    Nietzsche), na medida em que desvia o olhar do devir, dirigindo-o

    ao que d existncia

    s

    maiores realizaes da histria, e isso, justa

    mente, na medida em que essas realizaes a superam e parecem ter

    algo de eterno. Nietzsche (2003, 1) diz que

    algum que assumisse tal pOnto de vista no poderia mais

    sentir-se seduzido a conrinuar vivendo e colaborando com o

    rrabalho da histria, uma vez que reconhec e

    ri

    a a condio de

    rodo o acontecimento, aquela cegueira e injusria na alma

    do

    agente; esse esta ria curado, a partir de ento, do risco de levar

    a histria exage rada mente a srio.

    Esse deslocamento da perspectiva, portanto, desperta no

    homem a conscincia de que a salvao no se encontra no processo,

    ao mesmo tempo em que abre uma possibilidade de transcendncia

    nos grandes exemplos

    da

    histria, na medida em que so alcanveis

    em intensidade, em cada instante, sem considerao da sua posi

    o na histria - do ponto de vista supra-histrico, o passado e o

    presente so

    um

    e o mesmo, isto , em toda a sua multiplicidade,

    tipicamente iguais: enquanto omnipresena de tipos imperecveis,

    d-se inerte a composio de

    um

    valor igualmente imperecvel e eter

    namente igual na sua significao NIETZSCHE, 2003,

    1).

    Se o Nietzsche das onsideraes pe de lado o supra-hist

    rico - com o seu fastio e a sua sabedoria - porque, numa medida

    anloga necessidade da lgica do processo historicista, a conscin

    cia da contingncia radical em qualquer grande realizao, conduz

    inao. O que no significa que no lhe reconhea algum valor.

    16

    duardo Pellcjf IC

    Porque o ponto de vista supra-histrico serve a Nietzsche para recu

    perar, contra o historicismo, um discurso sobre uma dimenso no

    histrica da existncia.

    Essa dimenso no histrica, contudo, pode adotar uma

    forma diferente da adotada pela perspectiva supra-histrica, guar

    dando

    assim um lugar para o pensamento, para a arte, para a ao.

    No

    fundo, a perspectiva das

    onsideraes

    no nem a do histrico

    nem a do a-histrico, mas a do inatual, do intempestivo, do extem

    porneo. Perspectiva metafsica que dobra problematicamente o pro

    grama poltico nietzschiano. Ponto de vista onde a filosofia encontra

    um espao de pensamento

    por

    conquistar, contra a poca, certo,

    mas sempre a partir da poca (de que outro lugar podi a ser?), espera

    de outra poca, se possvel (mas ser por acaso possvel?), por vir.

    A inatualidade como programa

    Quando

    falamos de

    uma

    aproximao obra de Deleuze

    a partir de uma redefinio da filosofia da perspectiva da inatuali

    dade, procuramos certamente deslocar a ateno para um conceito

    secundarizado pela crtica na reconstruo do sistema deleuziano.

    Pretendemos, assim, escapar sobredeterminao da sua obra pela

    proliferao imoderada de comentrios de que foi vtima nos ltimos

    dez anos. Mas no desconhecemos que a perspectiva da inatuali

    dade j foi instrumentalizada por outros projetos contemporneos,

    na hora de inscrever um determinado exerccio da filosofia para alm

    das tradies institudas, ou simplesmente disponveis, no momento

    da sua emergncia.

    Apesar dos elementos comuns que oportunamente teremos

    oportunidade de assinalar, a recepo deleuziana das onsideraes

    implica um tom idiossincrtico nico. Se por um lado, como acre

    ditamos, toda a sua obra pode ler-se como uma das recepes mais

    ajustadas e mais produtivas da ideia de inatualidade, deparamo-nos,

    por outro, e

    s

    para comear, com uma secundarizao do trabalho

    especfico sobre os textos propriamente ditos. Essa secundarizao

    1/

  • 7/24/2019 Eduardo Pellejero, Mil Cenrios - Deleuze e a Inatualidade Da Filosofia(Introduo)

    10/16

    Mil cenrios

    tanto ou mais significativa tendo

    em

    conta que Deleuze dedicou

    um

    dos seus principais estudos monogrficos

    leitura da obra niet

    zschiana. O que encontramos, contudo, em Nietzsche et l philoso

    phie?

    No pode deixar de chamar a nossa ateno constatar que

    se

    registam apenas quatro referncias explcitas

    Segunda Considerao

    Inatual.

    Em

    primeiro lugar, no pargrafo

    10

    da segunda parte - La

    hirarchie - abordando a crtica nietzschiana da adorao dos fatos

    pelo positivismo, no contexto da Genealogia da moral, Deleuze cita,

    para reforar a ideia, um pequeno fragmento do pargrafo 8 que,

    em Da utilidade e dos inconvenientes dos estudos histricos para a

    vida , aponta na mesma direo: o fato sempre estpido, e sempre

    se pareceu mais a

    um

    boi que a

    um

    deus (NIETZSCHE, 2003,

    8).

    Em seguida, no pargrafo 15 da terceira parte - Nouvelle

    image du pense

    -,

    onde o texto de referncia a

    Terceira Considerao

    Inatual

    (sem dvida a mais presente

    no

    livro

    de

    Deleuze), faz-se alu

    so ao prefcio

    da

    Segunda, em razo

    da

    caracterizao da tempora

    lidade propriamente filosfica como inatualidade.

    Em terceiro lugar, na quarta seo, no pargrafo 5 - Est-il

    bon? Est-il mchant? - Deleuze regressa ao tema do esquecimento

    como faculdade vital, positiva, criativa, combinando o texto do pri

    meiro pargrafo

    da

    Segunda Inatua l com alguns textos

    da

    Genealogia

    da moral.

    O esquecimento no aparece ento como

    um

    vis

    iner

    tiae,

    mas como uma faculdade de entorpecimento, um aparato de

    amortecimento,

    uma

    fora plstica regenerativa e curativa, sem o

    qual

    nenhuma

    felicidade,

    nenhuma

    esperana,

    nenhum

    orgulho,

    nenhum

    gozo do estado presente poderia existir o homem

    em

    quem

    essa faculdade de esquecimento est deteriorada comparado a um

    dispptico: no consegue acabar nada) .

    .-

    inalmente, ainda na quarta seo, no pargrafo 13 - La

    culture envisage

    du

    point de vue historique - , analisando a relao

    aparentemente essencial que liga o homem histria, Deleuze assi

    nala a possibilidade de uma linha de fuga nos elementos a-histricos

    J8

    , Lili, II ) u ' , I

    e supra-histricos, fazendo referncia aos pargrafos 8 e 10 (quando

    seria muito mais razovel apontar o pargrafo

    1)

    .

    Isso tudo? Digamos que, no que respeita

    referncia

    direta ao texto, no muito mais. Haver que procurar noutros

    textos para encontrar ecos da leitura efetiva de Deleuze. Ainda de

    um modo explcito, por exemplo, encontraremos alguns livros que

    retomam a imagem de

    uma

    atmosfera no histrica na ausncia

    da

    qual seria impossvel a vida, a arte e o pensamento. Rapidamente,

    podemos assinalar:

    1) uma

    entrevista de 1990,

    na

    qual Deleuze traz memria

    que Nietzsche dizia que nada importa nte se faz sem

    uma

    'nuvem

    no histrica' (DELEUZE, 1990, p. 231);

    2) a citao textual do primeiro pargrafo da

    Segunda

    Inatual, onde Nietzsche compara o no histrico com uma espcie

    de atmosfera ambiente ,

    na

    dcima variao de Mille Plateaux, enri

    quecendo a discusso do conceito de devir (por oposio

    histria)

    (DELEUZE; GUATTARI, 1980, p. 362-364);

    3)

    a repetio quase literal

    da

    citao desse mesmo frag

    mento em Qu'est-ce que

    l

    philosophie?, onde podemos ler: O ele

    mento no histrico , diz Nietzsche, assemelha-se a uma atmosfera

    ambiente na qual s

    p o ~

    engendrar-se a vida, que desaparece de

    novo quando esta atmosfera se aniquila . como um momento

    de graa, e onde existem atos que o homem te nha realizado sem

    que

    se

    tenha abrigado previamente nessa nebulosa no. histrica?

    (DELEUZE;

    GUATTARI,

    1991,

    p,

    92);

    4) por fim, chega-nos uma referncia verdadeiramente

    i mportante, to explcita como inesperada, sobre uma das ques

    tcs

    da

    Segunda Inatual que, central

    na

    leitura de Foucault, no

    ('Ilcontrava lugar

    na

    monografia dedicada por Deleuze a Nietzsche.

    ( :oncretamente, refiro-me a L mage-mouvement, onde, no final do

    pri lIleiro pargrafo do captulo nove - T mage-action: la grande

    lunlle - , abordando

    os

    filmes histricos (sobretudo no que respeita

    19

  • 7/24/2019 Eduardo Pellejero, Mil Cenrios - Deleuze e a Inatualidade Da Filosofia(Introduo)

    11/16

    Mil

    cenrios

    a Griffith e Cecil B. de Mille), Deleuze equipara essas concepes

    hol1ywoodianas

    da

    histria aos mais srios pontos de vista do sculo

    XIX. Pontos de vista como

    os

    que Nietzsche cunha na Segunda

    Inatual atravs da tripla tipologia da histria monumental, a his

    tria antiquria e a histria crtica: Esse texto - comenta Deleuze

    em

    nota

    - sobre a histria na

    Alemanha

    no sculo XIX, parece-nos

    guardar

    plenamente o seu valor na atualidade, e aplicar-se notavel

    mente a toda

    uma

    categoria de filmes histricos, do

    peplum

    italiano

    ao cinema americano (DELEUZE, 1983, p. 206). A meno no

    se limita simples referncia ilustrativa, mas antes, associao dos

    tipos nietzschianos aos diversos tipos de filmes histricos; comporta

    elementos de uma anlise concreta (sobre o texto propriamente dito:

    pargrafos segundo e terceiro), que abarca quase quatro pginas.

    Deleuze aproxima-se

    da

    tematizao

    da

    histria no cinema, efetiva

    mente, segundo um esquema que segue,

    ponto

    por ponto, a tipolo

    gia das Consideraes. Assim, enquanto que a histria

    monumental

    favorece

    os

    grandes momentos (cumes) da humanidade, fazendo-os

    comunicar, por distantes que sejam, atravs de paralelos e analogias

    no esprito do espetador, a histria antiquria ocupa-se dos indiv

    duos, do incomparvel, do singular, substituindo em certo sentido

    o monumental, e conservando, para alm da sua universalidade,

    os

    pequenos detalhes que fazem os grandes momentos. A histria cr

    tica, por fim, vem a constituir, segundo Deleuze, uma espcie de

    imagem tica que determ ina as tarefas dos outros dois modo s da

    histria a

    partir

    de uma avaliao necessria e fundamental, que pre

    cede todo o exerccio histrico.

    Isso no que respeita a

    uma

    leitura estritamente analtica

    das Consideraes. O que no significa que esteja

    tudo

    dito. Porque

    ao reflexo explcito, literal dessa leitura, vem somar-se muito parti

    cularmente a apropriao criativa do conceito de inatualidade por

    parte

    de Deleuze, assim como um uso liberal

    da

    definio progra

    mtica da inatualidade na redefinio da filosofia que atravessa

    toda a sua obra.

    20

    I

    r

    II

    I li I I

    ) I

    I

    ,

    IJ' 1

    Recurso figura do intempestivo, portanto, que volta con

    tinuamente, como

    um

    leitmotiv ao iongo de to da a obra de Deleuze.

    Desde Diffrence et rptition ( Seguindo Nietzsche, descobrimos o

    intempestivo como algo mais profundo que o tempo e que a eter

    nidade: a filosofia no nem filosofia da histria,

    nem

    filosofia do

    eterno, mas intempestividade, simples e

    contnua

    intempestividade,

    ou seja, contra o tempo, e a favor, espero, de

    um

    tempo

    por

    vir

    (DELEUZE,

    1968, p.

    3

    at

    Mille Plateaux

    ( Nietzsche ope a

    histria, no ao eterno, mas ao sub-histrico ou ao supra-histrico:

    o Intempestivo

    (DELEUZE;

    GUATTARI, 1980, p. 502)), pas

    sando

    por uma

    srie de conferncias sobre Nietzsche ( Conclusions

    sur la volont de puissance et l'eternel retour , Teclat de rire de

    Nietzsche ), a associao pontual a

    um

    tema especfico (redefinio

    da temporalidade, por exemplo, nos Dialogues e o repertrio de arti

    gos dedicados a Foucault ( Sur

    les

    principaux concepts de Michel

    Foucault , Qu'est-ce

    qu un

    dispositif? ), onde a inatualidade se

    denomina atualidade ( A atualidade o que interessa a Foucault,

    tambm o que Nietzsche chamava o inatual ou o intempestivo

    (DELEUZE, 1990, p. 130).

    Como veremos, Da utilidade e dos inconvenientes dos

    estudos histricos para a vida marca muito mais

    profundamente

    o

    pensamento de Deleuze d o q ue a escassa preocupao pelo com en-

    trio do texto deixar supor. E, mesmo que no contemos - como

    no caso de Foucault - com uma leitura estratgica do texto para

    pr a sua empresa sob o signo das Consideraes, no nos resultar

    difcil provar que o essencial

    da

    redefinio deleuzianada filosofia

    pode ser produtivamente lido como

    uma

    reformulao dos princi

    pais problemas e conceitos das Consideraes, isto

    ,

    como uma ela

    borao

    da

    perspectiva metafsica e histrica, filosfica e poltica,

    da

    inatualidade.

    A importncia da inatualidade na obra de Deleuze no

    passou de todo desp9tcebida

    crtica. E, se no provocou uma lei

    tura sistemtica a partir desta particular perspectiva nietzschiana,

    21

    Mil . . 1 l l u ~

    I r li < II I ) I , J

    I

    ( I r

  • 7/24/2019 Eduardo Pellejero, Mil Cenrios - Deleuze e a Inatualidade Da Filosofia(Introduo)

    12/16

    certamente no deixou de ser tida em conta nas principais aproxi

    maes sua obra.

    Sem pretender ser exaustivo, assinalaria algumas das

    alternativas mais importantes para a nossa tentativa de leitura.

    Respeitando uma ordem vagamente cronolgica, ento, deveramos

    ter em conta:

    1)

    O reconhecimento de

    um

    denominador

    comum

    na

    redefinio do pensamento como experimentao ou produo do

    novo, do qual, em 1990, d conta Jean Lacoste, na ocasio da publi

    cao de Pourparlers: pensar experimentar, falar em nome prprio,

    tomar o nascente, o novo, o atual, isso mesmo a que Nietzsche cha

    mava, ao contrrio, de inat ual' (LACOSTE, 1997, p. 216).

    2) A sugesto - a primeira sugesto - de extrapolar a ideia

    de inatualidade totalidade da obra de Deleuze, que a partir de um

    horizonte de leitura diferente faz Roberto Machado, em cujo livro

    Deleuze e a filosofia

    publicado ainda durante 1990, podia ler-se:

    Essa referncia ao intempestivo nietzschiano [ ..] aparece em vrios

    livros. Nietzsche t la philosophie defende que o filsofo forma con

    ceitos que no so nem eternos nem histricos, mas intempestivos e

    inatuais.

    Diffrence

    t

    rptition

    desclassifica a alternativa temporal

    -intemporal, histrico-eterno, particular-universal, considerando

    o intempestivo mais profundo que o tempo e a eternidade. Mille

    Plateaux identifica claramente o geogrfico ao intempestivo, procu

    rando dar a

    partir

    deste termo

    um

    sentido oposio da geografia

    histria

    (MACHADO,

    1990, p. 13).

    3)

    A postulao anloga de

    um

    princpio de sistematiza

    o que, quatro anos mais tarde, em 1994, praticada por Philippe

    Mengue, quem assinala o carcter intempestivo da obra de Deleuze.

    Provavelmente Mengue leva a apropriao deleuziana da inatuali

    dade mais longe que ningum. Em princpio, vendo na inatualidade

    uma linha de fuga com respeito aos problemas que

    as

    filosofias da

    histria ainda faziam pesar sobre o pensamento francs: Inovadora,

    [a

    filosofia] intempestiva, inatual, dirigida contra este tempo com

    22

    v iSI a :1

    11111 l l l p

    n

    P '

    v

    II.

    {

    :0

    111 1

    kkuze,

    essa inocncia criadora,

    juvenil,

    Ill'rt ada dl'

    Nielzsche, escapa-se, em todo o caso, ao tema

    da morte (begcliau:l, heideggeriana etc.) da filosofia

    (MENGUE,

    1994,

    p. 9).

    Em seguida, explicando apoiado na inatualidade

    as

    incurses de Deleuze na histria da filosofia, como transvalora

    o dos critrios a partir do ponto de vista da criao: Deleuze, que

    comentou tambm

    os

    grandes filsofos (Plato,

    Hume,

    Nietzsche,

    Kant, Leibniz, Bergson .. ), deve ser considerado

    um

    grande filsofo

    porque

    se

    serviu da histria em proveito de outra coisa. E,

    por

    fim,

    o que ainda mais significativo para ns, reconhecendo na inatu

    alidade o princpio da politizao deleuziana da filosofia

    2

    , mesmo

    quando deixe j entrever que essa filiao constitui o calcanhar de

    Aquiles

    da

    mesma, tese que retomar quase dez anos depois, com

    propsitos assumidamente crticos, ora referindo a filosofia poltica

    deleuziana a uma modernidade superada, ora remetendo-a tica,

    ora reduzindo-a inefetividade

    3

    4) O pequeno artigo sobre a especificidade

    da

    historio

    grafia deleuziana que,

    um

    ano mais tarde, publica Pierre Zaoui no

    nmero 47 de Philosophie - '''La grande identit' Nietzsche-Spinoza.

    Quelle identit? - ,

    no

    qual a inatualidade aparece j caracterizada

    seguindo

    as

    trs linhas da segunda das Consideraes que, em diversa

    medida, vo ser retomadas por Deleuze. Em primeiro lugar, como

    conceito metafisico alternativo s filosofias do histrico e do eterno.

    Em segundo lugar, como

    ponto de vista historiogrfico an-histrico

    oposto ao da cincia histrica. E, em terceiro lugar, enquanto atitude

    crtica radical

    a respeito da poca

    (ZAOUI,

    1995,

    p.

    43).

    2 Intempestiva, a filosofia dirige-se

    contra tudo

    o que poderia

    fundar um

    acordo,

    um

    repouso,

    uma

    paz conceptual. O modelo nietzschiano do

    fil

    sofo aventureiro e guerreiro, que rejeita a inrcia do 'verdadeiro', ento, est

    sempre vivo (MENGUE, 1994,

    p.

    9).

    3 O intempestivo, ora est condenado ao i s o l m e n t o ~ o trabalho de reflexo

    [ ..] e perde qualquer lao direto com a prtica poltica, ora sai do campo

    intel ectual [ .. ] e resolve ligar-se aos grup os que efetivamente travam uma

    luta

    (MENGUE,

    2003, p. 153).

    23

  • 7/24/2019 Eduardo Pellejero, Mil Cenrios - Deleuze e a Inatualidade Da Filosofia(Introduo)

    13/16

    il

    enrios

    5)

    A assimilao da filosofia deleuziana ao programa bsico

    da inatualidade, que pratica, em 1988, Alberto Gualandi: h algo

    que faz a filosofia de Deleuze quase intempestiva e inatual, compro

    metida num desafio com um tempo que est fora do tempo, e tudo

    se passa como

    se,

    imerso no nosso tempo, tentasse arrancar-lhe um

    fragmento de eternidade (GUALAN DI, 1998, p. 12).

    6) A reavaliao

    da

    importncia

    da

    inatualidade

    na

    elabo

    rao

    da

    filosofia deleuziana que, entre 1998 e 1999, novamente no

    Brasil, Peter Pl Pelbart

    faz

    jogar marginalmente em O tempo no

    reconciliado e, j em lugar central, numa comunicao que se inti

    tulava Deleuze, um pensador intempestivo . Pelbart inscreve, por

    uma parte, a lgica do acontecimento como alternativa ao temporal

    e ao intemporal, na linha do Nietzsche das Consideraes: dois polos

    temporais ganham destaque: o instante (que afirma) e o futuro (que

    afirmado). A interface entre ambos o Intempestivo (PELBART,

    1998, p. 173). E, por ourra,

    num

    desenvolvimento interessantssimo

    da

    sugesto que Machado fazia anos antes, estende a recepo deleu

    ziana da inatualidade a certos conceitos que no deixavam prev-lo.

    O inatual, o intempestivo, aparece ento, para alm da sua dimenso

    rigorosamente metafsica, associado a uma redefinio

    da

    filosofia

    que passa pela repetio dos temas nietzschianos: ficamos surpre

    endidos ao constatar at que ponto a presena [das

    Consideraes]

    marcante

    na

    obra de Deleuze. Tudo o que se nomeou aqui foi

    retomado por Deleuze, de uma maneira ou de outra, ao longo do

    seu percurso: a tarefa da filosofia, a relao entre pensamento e vida,

    a funo vital

    da

    interpretao, o paradigma esttico ( criador ),

    a insistncia em desprender-se do crculo

    da

    memria, o privilgio

    do instante, a injustia e a impiedade do novo, a tica do futuro, a

    raa do porvir, a crtica ao efeito esterilizante do balano histrico

    daquilo que apenas est em vias de nascer, a diferena entre Histria

    e Acontecimento (ou Histria e Devir), a suspeita com relao

    Histria, ou dialtica que pressupe,

    ou

    prioridade

    da

    Histria

    sobre a vida etc. (PELBART,

    1999,

    p. 69).

    24

    7) Tendo em conta a importncia

    dada

    inatualidade

    nessas duas leituras, h que lamentar o lugar secundrio que lhe

    concedido

    na

    crtica posterior. o que acontece muito especial

    mente quand o confrontamos o livro que, em

    1999,

    publica Manola

    Antonioli, de cujo ttulo - eleuze et

    la

    histoire da philosophie

    -

    se

    esperava, ao menos, uma considerao da influncia que a Segunda

    Inatual poderia ter exercido sobre a historiografia deleuziana. Nada

    disso temos. Apenas a recursividade do

    leitmotiv

    das

    Consideraes

    (sem referncias concretas aos textos de Deleuze) e uma vaga assimi

    lao do m smo na descrio do exerccio da filosofia: A estupidez

    e a baixeza tm uma histria e a filosofia que as combate tem

    uma

    relao essencial com o tempo:

    o

    filsofo forma conceitos que no

    so nem eternos nem histricos, mas intempestivos e inatuais . A

    atualidade da filosofia sempre intempestiva, esfora-se por criar,

    por inventar verdades que superem as verdades histricas, sem ser

    eternas. por isso que a histria da filosofia no uma cadeia inin

    terrupta nem uma cadeia eterna, mas

    uma

    linha quebrada, descon

    tnua, inscrita

    numa

    temporalidade atpica: a filosofia no

    nem

    eterna, nem histrica, mas sempre por vir, intempestiva e inatual

    (ANTONIOLI,

    1999,

    p. 47).

    8) Tambm no muito o que somam os comentrios em

    lngua inglesa. Destaquemos, contudo, o reconhecimento do tema

    por Keith Ansell Pearson, enquanto tonalidade essencial do momento

    crtico, na linha da dialtica negativa de Adorno (PEARS ON, 1999,

    p. 19); a referncia de John Rajchman apropriao do conceito em

    iffrence et rptition como crena que no se preocupa com as

    regularidades do presente

    ou

    as

    indeterminaes do passado, mas

    antes com o futuro ou o que est por vir (RAJCHMAN, 2002,

    p. 148); e, muito especialmente, a nfase posta por Paul Panon no

    carter inatual da redefinio deleuziana

    da

    filosofia como ativi

    dade inerentemente poltica - Deleuze e Guattari dividem com

    Marx, Nietzsche e muitos outros a convico de que a tarefa dos

    filsofos a de ajudar a fazer o futuro diferente do passado. Por

    (ssa

    razo, abordam a filosofia com uma explcita vocao poltica,

    25

    Mil cenrios

    I

    l 1 ) I , l q 1 /11

    IL IC'

  • 7/24/2019 Eduardo Pellejero, Mil Cenrios - Deleuze e a Inatualidade Da Filosofia(Introduo)

    14/16

    definindo-a como criao "intempestiva" de conceitos" PATTON,

    2000,

    p.

    132).

    Em todo o caso, digamos, antes de seguir, que para alm

    do assinalado, a presena de Nietzsche em geral, e da perspectiva da

    inatualidade em particular, sem lugar para dvidas imediatamente

    sensvel ao longo de toda a obra de Deleuze (incluindo, muito espe

    cialmente, a paJ1ite da mesma que tem a sua origem na colaborao

    com Guattari).

    Como

    assina laya ,Fou-cauIt

    numa

    entrevista de 1983,

    o assombroso no caso de Deleuze a seriedade com a qual toma

    Nietzsche. Mesmo se, para alm da notria ausncia de referncias

    explcitas, no estamos to convencidos de que Deleuze no levante

    a bandeira do seu nome programaticamente, para efeitos de retrica,

    de sano terica ou poltica, na hora de legitimar o exerccio efetivo

    da

    sua filosofia (FOUCAULT, 1994, v.

    IV, p.

    444).

    inatualidade e a redefinio da filosofia

    Na

    introduo a Qu est-ce que la philosophie?, Deleuze e

    Guattari escrevem que provavelmente no possvel colocar a per

    gunta sobre a essncia da filosofia seno quando j no resta nada

    mais por perguntar. "Momento de graa", "quando todos os gatos

    so pardos", e no qual o pensador encontra a "liberdade soberana" e

    a necessria "sobriedade" para questionar o que significa fazer filo

    sofia - "Simplesmente nos chegou a hora de perguntar o que a

    filosofia" (DELEUZE; GUATTARI, 1991,

    p. 8 .

    o que no significa, certamente, que a pergunta no atra

    vesse a obra conjunta de Deleuze e Guattar i, nem que desconhea um

    lugar - e um lugar de excepo - na obra "individual" de Deleuze.

    O problema da definio da filosofia praticamente

    uma

    obsesso

    do pensamento deleuziano, ao mesmo tempo que

    um

    territrio de

    variaes, de filtraes e de fugas, onde

    as

    figuras da historiografia

    propriamente filosfica aparecem continuamente transbordadas e

    26

    r 'coI1juga

    das

    a pa

    J

    t i dos l '1I

    'olllros

    com a psicanlise, a lit eratura, a

    poltica c a cillcia .

    Nesse sentido, se no certo que Deleuze tenha esperado a

    velhice para formular a pergunta, ainda menos certo que a resposta

    no varie ao longo da sua obra. Sempre se poder dizer que a inven

    'to ou construo de conceitos faz o essencial da obra deleuziana

    (conceito de diferena, conceito de repetio, conceito de agencia

    mento, conceito de dobra), mesmo quando tal no parece claro do

    ponto de vista programtico. Mas a verdade que nisso se esconde

    uma espcie de iluso retrospectiva.

    Evidentemente, j em Nietzsche et la philosophie, sob a

    forma de um estudo monogrfico, Deleuze abordava explicitamente

    a questo da filosofia, mas ento a redefinio passava menos pela

    revalorizao do conceito que pela in troduo das noes de sentido

    e de valor. E ainda, se em Diffrence et rptition e em Logique du

    sem a crtica da imagem do pensamento e a pergunta pelo sentido

    da

    filosofia encontravam certa complementaridade, a resposta pare

    cia implicar um deslocamento do trabalho filosfico da elaborao

    de conceitos determinao de problemas (ou da representao de

    conceitos dramatizao de ideias). Por fim, nos Dialogues, Deleuze

    chega a abordar a questo da filosofia a partir de uma perspectiva

    radical, enquanto disciplina sem especificidade alguma, isto

    ,

    sem

    necessidade intrnseca, da qual necessrio fugir, sair, se que se

    quer produzir qualquer coisa. O projeto de redefinio atravessa a

    obra de Deleuze de uma ponta outra, mas no um pOnto de vista

    to especfico

    ou

    estreito, como o de

    Qu est-ce que la philosophie?

    que

    vai permitir-nos a aproximao empresa no seu conjunto, isto

    ,

    na sua continuidade superficial e nas suas variaes profundas. A

    crtica das filosofias da histria, o exerccio de certa historiografia

    no convencional, o distanciamento a respeito das concepes meto

    dolgicas tradicionais, o posicionamento no seio da atualidade e a

    politizao do pensamento, do conta de

    uma

    viso mais alargada

    da atividade filosfica que,

    se

    nas suas diversas dimenses d conta

    27

    M '

    I I

    duardo Pellejero

  • 7/24/2019 Eduardo Pellejero, Mil Cenrios - Deleuze e a Inatualidade Da Filosofia(Introduo)

    15/16

    Je uma relao mais

    ou

    menos estreita com o conceito, no se reduz

    ao conceito sem mais.

    Da mesma forma, no nos parece que uma noo genrica

    como

    a de criao baste

    para

    dar conta

    da

    peculiaridade da empresa

    deleuziana. Porque se a ideia de criao parece capaz de abarcar a

    totalidade das tentativas de Deleuze no que respeita a determinar

    a natureza do exerccio

    da

    filosofia criao de valores, criao de

    modos de existncia, criao de problemas, criao de linhas de fuga,

    criao -

    por

    fim - de conceitos), a amplitude do seu

    campo

    semn

    tico torna difcil, se no impossvel, a determinao da sua especi

    ficidade, no que

    se

    distingue de outras prticas criativas, como a

    arte, a cincia, a poltica (e o mesmo haveria que dizer, certamente,

    da

    noo

    de

    crtica; porque

    se

    a filosofia diz o melhor

    de

    si como

    crtica , no diz tudo).

    A especificidade da filosofia, a problematizao das suas

    prticas na obra de Deleuze, em todo o caso, tem que conjugar todas

    estas coisas numa perspectiva consistente. o que parece fazer o

    prprio Deleuze, por uma vez explicitamente, numa carta de 1984

    dirigida a Arnaud Villani, na qual sujeita a existncia de um livro a

    trs requisitos fundamentai s ou condies sine qu non

    1)

    a crtica

    ou o combate do institudo;

    2)

    a redeterminao do que impor

    tante como reparao de

    um

    esquecimento; e 3) a criao de con

    ceitos DELEUZE pud VILLANI, 1999, p. 56). Trs elementos

    bsicos, mas essenciais, que com diferentes matizes e diversas fun

    es parecem concorrer sempre na procura deleuziana da definio

    de

    um

    exerccio efetivo

    da

    filosofia. Trs elementos,

    por

    outra parte,

    que Deleuze encontra na ideia nietzschiana de inatualidade, onde a

    reavaliao crtica) e a transvalorao problematizao) concorrem

    com a inveno do novo criao).

    Praticar uma aproximao redefinio

    da

    filosofia que

    atravessa a obra de Deleuze a partir da perspectiva da inatualidade,

    portan to, significa privilegiar a recorrncia de certas estruturas , cer

    tos motivos e certo

    tom

    na crtica,

    na

    problematizao e na cria

    o de conceitos, sobre a elevao a critrio de leitura de alguma

    28

    definio particular.

    No

    implica a destituio total do valor dessas

    definies, mas desloca o princpio de sistematizao para um

    ponto

    de

    vista que permite a sntese no necessariamente convergente) das

    mesmas. A inatualidade, nesse sentido, desempenha o papel de um

    plano privilegiado, sobre o qual se situa Deleuze na hora de proble

    matizar a natureza, o objeto, a funo e os fins

    da

    filosofia. Plano

    de variao, sobre o qual se conjugam diversamente

    os

    diferentes

    pontos de vista, mas

    tambm

    plano de consistncia, sobre o qual se

    articulam as diferentes linh as do pensamento deleuziano na expec

    tativa, claro est, de que no diste demasiado do desejado plano de

    imanncia sobre o qual seria possvel pensar tudo

    isso de um

    modo

    absoluto).

    Vimos como essa perspectiva no s no arbitrria, mas

    inclusive slida e fatvel, a partir do triplo ponto de vista da pro-

    venincia relao da inatualidade nietzschiana com o problema da

    redefinio da filosofia), do surgimento presena dos motivos da ina

    tualidade nietzschiana

    na

    problematizao deleuziana

    da

    filosofia), e

    da sedimentao importncia concedid a filiao e ao conceito pela

    crtica especializada). Fica,

    para

    ns, o desafio de levar a mesma

    para

    alm da sua sobredeterminao por

    um

    exerccio demasiado restrito

    da histria da filosofia. Isto , no nos limitarmos simplesmente a

    procurar uma correspondncia entre as determinaes nietzschianas

    da inatu alida de historiogrfica, metafsica e poltica) e a

    sua

    apro

    priao deleuziana, mas valermo-nos do que de novo e revolucion

    rio tem o ponto de vista de Nietzsche ruptura com as filosofias

    da

    histria, proposio de um certo perspectivismo, politizao do p en

    samento)

    em

    ordem a propiciar

    uma

    abertura

    de certos problemas e

    conceitos da filosofia de Deleuze.

    De

    certo modo, ento, a

    pergunta

    de antes, agora e sempre:

    o que a filosofia? vem a ser: o que a inatualidade? Ou melhor: 1)

    de que modo constitui a inatualidade

    uma

    alternativa s filosofias

    da

    histria?;

    2)

    em que medida e segundo que princpios implica

    uma

    revisitao dos critrios historiogrficos?; 3) quais so as suas conse

    quncias metodolgicas do ponto d e vista

    da

    forma, mas tambm do

    M l ;e

    nurim

    duardo Pellejero

  • 7/24/2019 Eduardo Pellejero, Mil Cenrios - Deleuze e a Inatualidade Da Filosofia(Introduo)

    16/16

    da potncia?; 4) como se inscreve na ordem da atualidade?; 5 que

    concepo da ao poltica tem por resultado?, e 6) em que sentido,

    um programa filosfico, histrico e poltico semelhante,

    fundado

    sobre a inatualidade, pode produzir efeitos, j no

    s

    sobre o pensa

    mento, mas diret amente sobre a sociedade?

    Questes que, por fim, repetindo o gesto subversivo da

    apropriao foucaultiana das perguntas crticas fundamentais, bem

    poderamos r eformular da seguinte forma: 1 que posso conhecer,

    ou

    de que invenes somos capazes?; 2 que devo fazer,

    ou

    por qu e para

    quem escrever?; e 3 que me da do esperar, ou, mais claramente, de

    que ordem so

    as

    mudanas

    s

    quais ainda podemos aspirar?

    No estou convencido de que uma obra como a de Deleuze,

    que sistematicamente prope conceitos contra todas

    as

    formas de

    totalizao, possa ser totalizvel

    alguma

    vez, de

    alguma

    maneira.

    e

    todos os modos, procurei trabalhar os conceitos e os temas do seu

    pensamento dando-lhes o mx imo de consistncia possvel. E se no

    posso afirmar taxativamente que os diversos problemas e

    as

    diver

    sas linhas de desenvolvimento que pus em jogo sejam por completo

    compatveis isto , no s no contraditrias, mas tambm compos

    sveis), a verdade que tentei dar

    conta

    das divergncias intrnsecas

    obra cada vez que me pareceram de alguma importncia quer

    remetendo-as ao contexto de criao, quer pondo de relevo as suas

    variantes valorativas ou conceituais).

    Ao mesmo tempo, procurei ocasionalmente expor os con

    ceitos deleuzianos a encontros com figuras literrias, polticas, arts

    ticas e filosficas, que a inscrio histrica do seu pensamento coibia

    ou, pelo menos, no deixava prever. Pretendi somar assim, ao tra

    tamento crtico da obra avaliao das suas pretenses e determi

    nao do seu alcance), a abertura problemtica dos seus conceitos

    variao).

    o resultado menos

    uma

    determinao completa d ideia

    deleuziana da filosofia a partir do conceito nietzschiano de inatu

    alidade, que a abertura

    ou

    a recapitulao de alguns conceitos que

    30

    parecem prolongar essa perspectiva, e cuja fecundidade poderia levar

    mais longe que nunca a determinao

    da

    filosofia como exerccio

    efetivo de um pensament o ativo.

    Um

    conjunto, po r fim, pa ra retomar a frmula de

    Mallarm

    popularizada por Derrida, sem outra novidade que

    um

    espaamento

    da

    leitura.

    II