Edição Nº 12 - São Paulo, 2008

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Literatura Comparada abralic REVISTA BRASILEIRA DE ISSN 0103-6963 associação brasileira de literatura comparada 12 12 Literatura Comparada REVISTA BRASILEIRA DE 2008 Arnaldo Franco Junior, Carlos Eduardo Japiassú de Queiroz, Conceição Aparecida Bento, Daniela Birman, Deise Q. Pereira, Denise Campos e Silva Kuhn, Diana Klinger, Elizabeth Gonzaga de Lima, Fernanda Maria A. Coutinho, Jean Pierre Chauvin, Leonardo P. de Almeida, Lilia Loman, Luciene A. de Azevedo, Maria das Graças G. Villa da Silva, Maria de Lourdes Netto Simões, Maria Lúcia D. Mendes, Níncia Cecília Ribas Borges Teixeira, Sandro Ornellas, Suely da Fonseca Quintana, Vera Lúcia A. de Moraes

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Revista Brasileira de Literatura Comparada

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ISSN 0103-6963

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Arnaldo Franco Junior, Carlos Eduardo Japiassú de Queiroz,

Conceição Aparecida Bento, Daniela Birman, Deise Q. Pereira,

Denise Campos e Silva Kuhn, Diana Klinger,

Elizabeth Gonzaga de Lima, Fernanda Maria A. Coutinho,

Jean Pierre Chauvin, Leonardo P. de Almeida, Lilia Loman,

Luciene A. de Azevedo, Maria das Graças G. Villa da Silva,

Maria de Lourdes Netto Simões, Maria Lúcia D. Mendes,

Níncia Cecília Ribas Borges Teixeira, Sandro Ornellas,

Suely da Fonseca Quintana, Vera Lúcia A. de Moraes

Literatura

Comparada

São Paulo2008

REVISTABRASILEIRA

DE

Diretoria A B R A L I C 2007/08

Presidente Sandra Margarida Nitrini (USP)

Vice-presidente Helena Bonito Couto Pereira (Mackenzie)

1º Secretária Maria Célia Leonel (Unesp)

2º Secretária Andrea Saad Hossne (USP)

1º Tesoureira Vera Bastazin (PUC-SP)

2º Tesoureira Orna Messer Levin (Unicamp)

Conselho Eduardo Coutinho (UFRJ)

Gilda Neves Bittencourt (UFGS)

José Luís Jobim (UERJ/UFF)

Lívia Reis (UFF)

Ívia Iracema Duarte Alves (UFBA)

Maria Cecília Queiroz de Moraes Pinto (USP)

Tânia Regina Oliveira Ramos (UFSC)

Rita Terezinha Schmidt (UFRGS)

Suplentes Márcia Abreu (UNICAMP)

Zênia de Faria (UFG)

Conselho editorial Benedito Nunes, Bóris Schnaidermann, Eneida Maria de Souza,

Jonathan Culler, Lisa Bloch de Behar, Luiz Costa Lima,

Marlyse Meyer, Raul Antelo, Silviano Santiago, Sonia Brayner,

Yves Chevrel.

A B R A L I C

CNPJ 04.901.271/0001-79

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E-mail: [email protected]

Literatura

Comparada

REVISTABRASILEIRA

DE

ISSN 0103-6963

Rev. Bras. Liter. Comp. São Paulo n.12 p.1-411 2008

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2008 Associação Brasileira de Literatura Comparada

A Revista Brasileira de Literatura Comparada (ISSN- 0103-6963)

é uma publicação semestral da Associação Brasileira de Literatura Com-

parada (Abralic), entidade civil de caráter cultural que congrega pro-

fessores universitários, pesquisadores e estudiosos de Literatura Compa-

rada, fundada em Porto Alegre, em 1986.

Todos os direitos reservados. Nenhuma parte desta revista poderá ser

reproduzida ou transmitida, sejam quais forem os meios empregados,

sem permissão por escrito.

Editores Orna Messer Levin

Pedro Brum

Comissão editorial Sandra Margarida Nitrini

Helena Bonito Couto Pereira

Andrea Saad Hossne

Vera Bastazin

Maria Célia Leonel

Preparação/Revisão Nelson Luís Barbosa

Revisão do inglês Lilia Loman

Diagramação Estela Mleetchol ME

Revista Brasileira de Literatura Comparada / AssociaçãoBrasileira de Literatura Comparada – v.1, n.1 (1991) –Rio de Janeiro: Abralic, 1991-v.1, n.12, 2008

ISSN 0103-6963

1. Literatura comparada – Periódicos. I. AssociaçãoBrasileira de Literatura Comparada.

CDD 809.005CDU 82.091 (05)

Sumário

Apresentação

Orna Messer Levin

Pedro Brum 7

Artigos

Escrita de si como performance

Diana Klinger 11

Autoficção e literatura contemporânea

Luciene Almeida de Azevedo 31

O espelho tem duas faces: a escrita de si e o sonho do outro

Deise Quintiliano Pereira 51

Subjetividade e o escrever, um ensaio sobre a experiência literária

Leonardo Pinto de Almeida 69

Al Berto, a escrita, o corpo a vida

Sandro Ornellas 91

Morrer é uma arte? Sylvia Plath e os suicídios do autor

Lilia Loman 121

Alexandre Dumas: faiseur de l´histoire?

Maria Lúcia Dias Mendes 133

Narrar o passado, recriar o presente: a escrita de si em Milton Hatoum

Daniela Birman 157

Graham Greene e Kazuo Ishiguro: suspense, trauma, orfandade e o jogo

da memória em The fallen idol e When we were orphans

Maria das Graças Gomes Villa da Silva 191

A prisão e a escrita: desagregação e agregação em Memórias do cárcere

Conceição Aparecida Bento 217

6 Revista Brasileira de Literatura Comparada, n.12, 2008 7

Experiência autoritária e construção da identidade em

A queda para o alto, de Herzer

Arnaldo Franco Junior 239

Poética da malandragem: Memórias de um gigolô, de Marcos Rey

Jean Pierre Chauvin 253

Cartografias da intimidade na literatura brasileira:

os diários de Lima Barreto

Elizabeth Gonzaga de Lima 271

Lúcio Cardoso: Diário completo, memórias incompletas

Suely da Fonseca Quintana 297

Minhas queridas: letras de amor e saudade

Vera Lúcia Albuquerque de Moraes e

Fernanda Maria Abreu Coutinho 313

Letras femininas: a escrita do eu no universo de Luci Collin

Níncia Cecília Ribas Borges Teixeira 329

Escrita do eu em tempos de comunicação e trânsitos:

a voz de Valdelice Pinheiro

Maria de Lourdes Netto Simões 353

A escrita da memória como fundamento identitário do eu

Carlos Eduardo Japiassú de Queiroz 365

Tennessee Williams’ Camino Real and August Strindberg’s

The Dream Play: expressionism in the Theatre

Denise Campos e Silva Kuhn 389

Pareceristas 405

Normas da revista 407

Apresentação

A Revista Brasileira de Literatura Comparada n.12 reú-

ne, sob o tema “Escritas do eu”, um conjunto bastante

diversificado de artigos que procuram abordar teórica e

analiticamente, sob uma óptica comparatista, as relações

entre a escrita literária e a expressão da subjetividade. A

grande quantidade de trabalhos submetidos à Comissão

Organizadora, dos quais foram selecionados dezenove ar-

tigos, parece-nos indicativa do interesse hoje existente

pelas pesquisas que tocam em questões relacionadas às

configurações da subjetividade moderna, às redefinições

do pacto ficcional, ao registro da memória pessoal e coleti-

va, aos delineamentos de identidade cultural, dentre tantas

outras aqui apresentadas.

O presente número da Revista oferece aos leitores a

oportunidade de entrar em contato com modos variados

de abordagem do tema proposto. Além do enfoque dado a

escritores nacionais ou estrangeiros, destaca-se a atenção

a diversos gêneros literários, passando pelos mais tradicio-

nais como a poesia, o teatro e a prosa ficcional, até os consi-

derados híbridos ou limítrofes ao literário propriamente dito,

tais como as memórias, os diários e as correspondências.

Tal diversidade mostra a riqueza do debate crítico, trazen-

do estímulos para novos questionamentos e avaliações.

O artigo de abertura da Revista, “Escrita de si como

performance”, de Diana Klinger, discute de que maneira a

noção de autoficção assumida pela literatura contempo-

rânea após a crise da representação consiste em uma forma

de encenação de si, estratégia que o segundo artigo, “Auto-

ficção e literatura contemporânea”, de Luciene Almeida

de Azevedo, também busca analisar, no intuito de avaliar

8 Revista Brasileira de Literatura Comparada, n.12, 2008 Apresentação 9

a hipótese de que o conceito de literário, definidor da fron-

teira entre o ficcional e o real, esteja sendo re-configurado

na noção de autor como aquele que encena uma imagem

de si. Em “O espelho tem duas faces: a escritura de si à

sombra do outro”, de Deise Quintiliano Pereira, retoma o

projeto autobiográfico de Sartre para analisar as questões

sobre alteridade e singularidade. Leonardo Pinto de

Almeida, no artigo “Subjetividade e o escrever, um ensaio

sobre a experiência literária”, examina a relação entre sub-

jetividade e experiência literária a partir das reflexões de

Michel Foucault e Maurice Blanchot, destacando os concei-

tos teóricos que diferenciam as funções de escritor e autor.

No estudo sobre o poeta português, “Al Berto, a escri-

ta, o corpo a vida”, de autoria de Sandro Ornellas, a escrita

é vista como metonímia do sujeito, materialidade de um

corpo que é ao mesmo tempo social, cultural e político, além

de elaboração da própria sexualidade, até a eliminação do

próprio corpo. A morte, ou ainda o suicídio da poetisa Sylvia

Plath serve de ponto de partida também para o artigo de

Lílian Loman, “Morrer é uma arte? Sylvia Plath e os suicí-

dios do autor”, que propõe uma leitura desconstrutivista

do seu efeito sobre a obra poética, buscando delinear as

tensões entre a crítica biográfica e a auto-representação.

Na perspectiva de escrita da memória, o artigo de

Maria Lucia Dias Mendes, “Alexandre Dumas: faiseur de

l´histoire?”, se debruça sobre as páginas do escritor para

mostrar de que modo as mudanças históricas são por ele

registradas, podendo seu testemunho ser lido também

como um romance de aprendizagem. O registro do pas-

sado dá sustentação ao ensaio de Daniela Birman, “Nar-

rar o passado, recriar o presente: a escrita de si em Milton

Hatoum”, no qual a memória e o esquecimento fazem par-

te de um processo de constituição da experiência da sub-

jetividade consolidada na voz narrativa. Já no artigo de

Maria das Graças Gomes Villa da Silva, “Graham Greene

e Kazuo Ishiguro: suspense, trauma, orfandade e o jogo da

memória em The fallen idol e When we were orphans”, é a

experiência individual da orfandade o que permite apro-

ximar as duas obras de ficção no exame detido das ima-

gens produzidas pelo trauma e pela memória.

A experiência do encarceramento em Memórias do

Cárcere é examinada por Conceição Aparecida Bento no

seu estudo sobre a escrita autobiográfica de Graciliano

Ramos, “A prisão e a escrita: desagregação e agregação em

Memórias do cárcere”. O espaço prisional no qual nasce a

prosa memorialística é assim analisado como um topos de

articulação de uma tradição literária brasileira. De manei-

ra similar, a experiência da reclusão permite que Arnaldo

Franco Junior, no artigo “Experiência autoritária e cons-

trução da identidade em A queda para o alto, de Herzer”,

observe a constituição da identidade de jovens marginali-

zados em um texto contemporâneo, que se apresenta como

um misto de depoimento autobiográfico e poesia. De ou-

tra parte, Jean Pierre Chauvin examina no artigo “Poética

da malandragem: Memórias de um gigolô, de Marcos Rey”

a noção de prosa memorialística pseudobiográfica, à luz

da tradição da malandragem na literatura brasileira.

A escrita pessoal nascida em situação de recolhimen-

to é tema igualmente do artigo de Elizabeth Gonzaga de

Lima, “Cartografias da intimidade na literatura brasileira:

os diários de Lima Barreto”, que analisa os diários do au-

tor em parte redigidos no Hospital Nacional de Aliena-

dos. Já o artigo de Suely Fonseca Quintana discorre sobre

a escrita íntima de Lúcio Cardoso no artigo “Lúcio Cardo-

so: Diário completo, memórias incompletas”. Ainda no

âmbito dos registros particulares e afetivos, o artigo “Mi-

nhas queridas, letras de amor e saudade”, de Vera Lúcia

Albuquerque de Moraes e Fernanda Maria Abreu Cou-

tinho, se debruça sobre a correspondência de Clarice

Lispector com suas irmãs em busca de confissões íntimas

reveladoras da sensibilidade da escritora. Em “Letra femi-

ninas: a escrita do ‘eu’ no universo de Luci Collin”, de

Níncia Cecília Ribas Borges Teixeira, a enunciação da iden-

tidade feminina é focalizada na obra em prosa de Luci

Colin, escritora paranaense contemporânea, na qual as re-

lações de gênero são questionadas a partir de revelações

10 Revista Brasileira de Literatura Comparada, n.12, 2008 11

íntimas e multipercepções que mostram um distanciamento

da escrita quanto às convenções narrativas. A voz femini-

na em suas múltiplas enunciações artísticas e críticas está

focalizada no artigo “Escrita do eu em tempos de comuni-

cação e trânsitos: a voz de Valdelice Pinheiro”, de Maria

de Lourdes Netto Simões, sobre a obra da poetisa de

Itabuna, e sua relação com a identidade cultural da Bahia.

Por fim, as reflexões filosóficas sobre a memória como

fundamento da identidade subjetiva é abordada no artigo

“A escritura da memória como fundamento identitário do

eu”, de Carlos Eduardo Japiassú de Queiroz, que contém

um relato memorial, enquanto Denise Campos e Silva

Kuhn, em “Tennessee Williams’ Camino Real and August

Strindberg’s The Dream Play: expressionism in the

Theatre”, elegem a dramaturgia de Tennessee Williams e

August Strindberg para estudar a criação teatral como

manifestação da visão subjetiva de seus autores.

Esse conjunto de artigos, como sugerimos, é uma mos-

tra instigante de enfoques possíveis de “escritas do eu”.

Agradecemos a todos que colaboraram com este número

da Revista Brasileira de Literatura Comparada e esperamos

que a diversidade aqui apresentada, além de confirmar a

riqueza do debate crítico em nosso âmbito de atuação, sir-

va de estímulo para novos questionamentos e avaliações.

Orna Messer Levin

Pedro Brum

Escrita de si como performance

Diana Klinger*

RESUMO: O texto se propõe discutir o conceito de autoficção

como um conceito específico da narrativa contemporânea. A

autoficção é pensada como um discurso ambivalente: ela faz

parte da cultura do narcisismo da sociedade midiática contem-

porânea, mas se coloca numa linha de continuidade com a crí-

tica estruturalista do sujeito e com a crítica filosófica da repre-

sentação. Assim, ela tem pontos de contato tanto com a teoria

da “performance de gênero” (por exemplo, na obra de Judith

Butler) em que a subjetividade é pensada como “desnatu-

ralização” do eu, quanto com a arte cênica da performance. Des-

sa perspectiva, a autoficção seria uma das formas que assumem

a literatura depois do fim do paradigma moderno das letras.

PALAVRAS-CHAVE: Autoficção, performance, representação, crí-

tica do sujeito.

ABSTRACT: This text aims to discuss autofiction as a concept

specific to contemporary literature. In it, I consider autofiction

as an ambivalent discourse: participating in the narcissistic cul-

ture of contemporary mass media, it simultaneously continues

the structuralist critique of the subject and twentieth-century

philosophy’s critique of representation. Thus, it shares aspects

of performance theory from within gender studies (for example,

in the work of Judith Butler), where the subject is thought as a

denaturalization of the self, as well as with performance art. From

this perspective, autofiction is one of the forms that literature

takes on after the paradigm of modern literature is in decline.

KEYWORDS: Autofiction, performance, representation, critique

of the subject.

Uma das questões que atravessam a prosa literária

atual na América Latina é a presença problemática da pri-

* Pesquisadora do Programa

Avançado de Cultura

Contemporânea (PACC) da

Universidade Federal do

Rio de Janeiro (UFRJ).

Bolsista de Faperj.

12 Revista Brasileira de Literatura Comparada, n.12, 2008 Escrita de si como performance 13

meira pessoa autobiográfica. Ela aparece, por exemplo, nosdois últimos romances de João Gilberto Noll (2002; 2004),Berkeley em Bellagio e Lord que narram a experiência doescritor na Europa, fazendo que seja difícil descolar a figu-ra do narrador da figura do autor. Também se coloca essaquestão na obra de Silviano Santiago (1985; 1995): emStella Manhattan e em Viagem ao México. Silviano cria –mediante a intromissão de um narrador em primeira pes-soa que expõe os bastidores da escrita – a ilusão de umacontemporaneidade entre escritura e experiência. A ques-tão da relação do eu ficci onal com o sujeito autoral jáestava em pauta, de maneira alegórica, no romance Em

liberdade (Santiago, 1981), e retornará nos contos de His-

tórias mal contadas (Santiago, 2005), e na forma de uma“autobiografia falsa” em O falso mentiroso (Santiago, 2004).Na literatura hispano-americana, a questão aparece sin-tomaticamente em inúmeras narrativas recentes: por exem-plo, na obra inteira do colombiano Fernando Vallejo, as-sim como na do cubano Pedro Juan Gutierrez, estruturadasem ambos como sagas autobiográficas, nas quais se man-tém, respectivamente, o mesmo narrador em todos os ro-mances que relatam uma e outra vez as mesmas históriaspessoais e familiares, sob diferentes pontos de vista. Essejogo com o autobiográfico aparece também nas novelasdo argentino Daniel Link (2004; 2006) La ansiedad eMontserrat, na novela Como me hice monja, de Cesar Aira(1993), em El juego del alfiler, do colombiano DaríoJaramillo Agudelo (2002), nos textos do mexicanoMario Bellatín (2005), por exemplo Lecciones para uma

liebre muerta, ou nos romances do uruguaio Mario Levrero(1996; 2005), El discurso vacío e La novela luminosa, ro-mance que inclui o diário de sua própria escrita. Trata-sede escritores, como apontou o crítico Reinaldo Laddaga(2007, p.14), que “têm publicado livros nos quais se ima-ginam [...] figuras de artistas que são menos os artífices deconstruções densas de linguagem ou os criadores de histó-rias extraordinárias, do que produtores de ‘espetáculos derealidade’, dos quais é difícil dizer”, continua Laddaga, “se

são naturais ou artificiais, simulados ou reais”. Essas obrasse situam além do paradigma moderno das letras, baseadoem narrativas autônomas em relação com a figura do autore em uma busca de uma linguagem literária claramente di-ferenciada da cultura de massas.

A autoficção abrange um amplo leque de possibilida-des: em alguns casos (como o de César Aira ou MarceloMirisola), o autor coloca o seu nome no protagonista deum relato disparatado ou inverossímil. Em outros casos,os relatos têm índices referenciais mais concretos, de maiorcarga biográfica (João Gilberto Noll, Silviano Santiago,Daniel Link). Por exemplo, Montserrat é uma novelaconstruída a partir de fragmentos, a maioria deles publi-cados primeiro no blog de Daniel Link. Na novela apare-cem muitos personagens conhecidos do entorno do escri-tor e, no entanto, o livro começa com uma aclaração deque “os fatos e personagens são ficcionais e qualquer se-melhança com a realidade é pura homonímia ou coinci-dência.” Já Fernando Vallejo faz precisamente o contrá-rio, quando afirma que nos seus livros ele só conta averdade, e nem sequer muda os nomes dos personagens.O narrador assume, cinicamente, todos os clichês do “po-liticamente incorreto” e, para tanto, a primeira pessoa im-prime ao texto uma carga política muito forte. Outro casointeressante, como “gesto literário”, é o de uma narrativaque “cria um personagem” que é o autor: por exemplo,“Cucurto”, personagem criado nos textos de Santiago Veja,ou Pedro Lemebel, em que os textos são parte da perfor-

mance do autor.Escrita de si como “sintoma” da época atual. O fato

de muitos romances contemporâneos se voltarem paraa própria experiência do autor não parece destoar de umasociedade marcada pela exaltação do sujeito. Uma socie-dade na qual a mídia tem insistido na visibilidade do pri-vado, na espetacularização da intimidade e na exploraçãoda lógica da celebridade. Uma cultura midiática que ma-nifesta uma ênfase tal do autobiográfico, que leva a pen-sar que a televisão se tornou um substituto secular do

14 Revista Brasileira de Literatura Comparada, n.12, 2008 Escrita de si como performance 15

confessionário eclesiástico e uma versão exibicionista doconfessionário psicanalítico.

Assistimos hoje a uma proliferação de narrativasvivenciais, ao grande sucesso mercadológico das memórias,das biografias, das autobiografias e dos testemunhos; aosinúmeros registros biográficos na mídia, retratos, perfis,entrevistas, confissões, reality shows; ao surto dos blogs nainternet, ao auge de autobiografias intelectuais, de relatospessoais nas ciências sociais (a chamada antropologia pós-moderna), a exercícios de “ego-história”, ao uso dos teste-munhos e dos “relatos de vida” na investigação social, e ànarração auto-referente nas discussões teóricas e episte-mológicas (Arfuch, 2005, p.51).

O que considero, porém, mais interessante da boanarrativa contemporânea é que ela não é apenas um refle-xo da cultura midiática, mas se situa também no contextodiscursivo da crítica filosófica do sujeito que se produziuao longo do século XX. Essa crítica começa com a descons-trução da categoria do sujeito cartesiano operada porNietzsche, que implica assumir os efeitos da morte de Deuse do homem, ou seja, da figura construída tanto pela tra-dição da filosofia moderna, fundada no cogito cartesiano,quanto pela tradição cristã na qual interioridade, renún-cia e consciência de si seriam seus eixos fundantes. A crí-tica nietzschiana do sujeito implica também a descons-trução da categoria a ele associada de verdade. Em A genealogia

da moral, Nietzsche (2004, p.36) argumenta que na ori-gem da moral se encontra o ressentimento contra a von-tade de força, de dominação. Mas seria um erro da razãoentender que o atuar é determinado por um atuante, um“sujeito”. “Não existe tal substrato; não existe ser por trásdo fazer, do atuar, do devir; ‘o agente’ é uma ficção acres-centada à ação – e a ação é tudo”. E mais adiante concluique, “o sujeito foi até o momento o mais sólido artigo de fésobre a terra, talvez por haver possibilitado à grande maioriados mortais, aos fracos e oprimidos de toda espécie, enga-nar a si mesmos com a sublime falácia de interpretar afraqueza como liberdade, e seu ser assim como mérito”.

Foi o estruturalismo que deu continuidade à críticado sujeito em meados do século XX. O estruturalismo es-tabeleceu um paradigma transdisciplinar cujo eixo seriauma concepção lógico-formal da linguagem. Assim, nasua reformulação do conceito de inconsciente freudiano,J. Lacan (1985) afirma que ele está estruturado como umalinguagem e que nele existem relações determinadas: é aestrutura que dá seu estatuto ao inconsciente. Seguindoo mesmo raciocínio de Lacan, também R. Barthes (1977,p.85) pensa o sujeito como signo vazio: “o sujeito é ape-nas um efeito da linguagem”. O Foucault dos anos 1960também toma esse caminho. Em As palavras e as coisas,

Foucault (1966, p.398) fala aliás do apagamento do ho-mem “como na beira do mar, um rosto de areia”.

Em seu texto “O que é um autor?”, Foucault (1994)faz uma análise do conceito de autor centrando-se narelação do texto com o sujeito da escrita; quer dizer, nomodo como o texto aponta para essa figura que – agorasó aparentemente – é exterior e anterior a ele. O ensaioé uma declaração da morte do autor que, como pontode partida toma as palavras do personagem de Beckettem Esperando Godot: “Que importa quem fala, alguémdisse que importa quem fala”. Nessa indiferença, Foucaultreconhece um dos princípios éticos fundamentais da es-crita contemporânea; éticos porque se trata de um princí-pio que não marca a escritura como resultado, mas que adomina como prática. Na escritura, diz Foucault (1994,p.793), “não se trata da sujeição de um sujeito a uma lin-guagem, trata-se da abertura de um espaço no qual o su-jeito que escreve não deixa de desaparecer”.

Foucault percebe uma passagem de uma relação daescrita com a imortalidade (por exemplo, a epopéia gregaestava destinada a perpetuar a imortalidade do herói, enas Mil e uma noite Sherazade conta uma história a cadanoite para não morrer) para uma relação da escrita com amorte. Diz Foucault (1994, p. 793): “a obra que tinha odever de conduzir à imortalidade do herói tem recebidoagora o direito de matar, de ser assassina do seu autor”.

16 Revista Brasileira de Literatura Comparada, n.12, 2008 Escrita de si como performance 17

Fala-se da “morte do autor”, porque têm desaparecido oscaracteres individuais do sujeito escritor, de maneira que“a marca do escritor já não é mais que a singularidade desua ausência”.

Esse é o espaço filosófico-filológico que Nietzsche abriuao se perguntar, não o que eram o bem e o mal em si mes-mos, mas o que era designado como tal e, então, quem éque sustenta esses conceitos. Segundo Foucault (1966,p.317), à pergunta de Nietzsche – “quem fala?” – Mallarméresponde que quem fala, “em sua solidão, em sua frágil vi-bração, em seu nada, fala a palavra mesma”, em seu “serenigmático e precário”. Mallarmé – diz Foucault – “não párade apagar-se a si mesmo de sua própria linguagem” (ibidem).

Adverte, porém, Foucault que não é tão simples des-cartar a categoria de autor, porque o próprio conceito deobra e a unidade que essa designa dependem daquela ca-tegoria. Por isso Foucault busca localizar o espaço que fi-cou vazio com o desaparecimento do autor (“um aconteci-mento que não cessa desde Mallarmé”), e rastrear asfunções que esse desaparecimento faz aparecer. De fato,para Foucault, o autor existe como função autor: um nomede autor não é simplesmente um elemento num discurso,mas ele exerce um certo papel em relação aos discursos,assegura uma função classificadora, manifesta o aconteci-mento de um certo conjunto de discursos e se refere aoestatuto desse discurso no interior de uma sociedade e nointerior de uma cultura. Nem todos os discursos possuemuma função autor, mas em nossos dias, essa função existeplenamente nas obras literárias. Para a crítica literáriamoderna, o autor é quem permite explicar tanto a presen-ça de certos acontecimentos numa obra como suas trans-formações, suas deformações, suas modificações diversas.O autor é também o princípio de uma certa unidade deescritura – é preciso que todas as diferenças se reduzam aomínimo graças a princípios de evolução, de amadureci-mento ou de influência. Finalmente, o autor é um certo“lar de expressão” que, sob formas mais ou menos acaba-das, se manifesta tanto e com o mesmo valor em obras, em

rascunhos, em cartas, em fragmentos etc. Quer dizer que,para Foucault, o vazio deixado pela “morte do autor” épreenchido pela categoria “função autor” que se constróiem diálogo com a obra.

Com o intuito de evitar a sacralização burguesa donome do autor, a teoria literária devedora do formalismorusso ou do estruturalismo “passa a conceber a literaturacomo um vasto empreendimento anônimo e como umapropriedade pública, em que escrever e ler são percursosindistintos, autor e leitor papéis intercambiáveis, nesseuniverso onde tudo é escrita” (Melo Miranda, 1992, p.93).A crítica que sustenta essa acepção da literatura descon-fia de qualquer relação exterior ao texto, marginalizandoe considerando “gêneros menores” por serem gêneros darealidade, ou seja, textos fronteiriços entre o literário e onão-literário, a toda uma série de discursos relacionadoscom o eu que escreve: crônicas, memórias, confissões, car-tas, diários, auto-retratos (Ludmer, 1984, p.47-54).1

No clássico ensaio “A morte do autor”, Roland Barthesse pergunta, a propósito de uma passagem de Sarrasine, deBalzac: “Quem fala assim? É o herói da novela, interessa-do em ignorar o castrado que se esconde sob a mulher? É oindivíduo Balzac, dotado por sua experiência pessoal deuma filosofia da mulher? É o autor Balzac, professandoidéias “literárias” sobre a mulher? É a sabedoria universal?A psicologia romântica?”. Barthes (1988, p.65) conclui queé impossível responder a essas perguntas porque “a escri-tura é a destruição de toda voz, de toda origem. A escritu-ra é esse neutro, esse composto, esse oblíquo, aonde fogenosso sujeito, o branco-e-preto aonde vem se perder todaidentidade, a começar pela do corpo que escreve”.

Será, no entanto, que a destruição “da identidade docorpo que escreve” não é menos um produto da “escritu-ra” do que de uma concepção modernista da escritura? Nãoserá que ela não depende de uma perspectiva da autono-mia da arte, segundo a qual “a realidade externa é irrele-vante, pois a arte cria sua própria realidade” (cf. Hutcheon,1988, p.146)? Sendo assim, a escritura como destruição

1 Segundo Josefina Ludmer,

esses gêneros costumam ser

associados pela crítica ao

feminino e, portanto, sofrem

uma dupla marginalização.

18 Revista Brasileira de Literatura Comparada, n.12, 2008 Escrita de si como performance 19

da voz e do corpo que escreve seria um conceito datado, etalvez historicamente ultrapassado. Por isso – como assi-nala Beatriz Sarlo (1995, p.11) –, se nós, os leitores, aindanos interessamos pelos escritores é porque “não fomos con-vencidos, nem pela teoria nem por nossa experiência, deque a ficção seja, sempre e antes de tudo, um apagamentocompleto da vida”.

A partir disso, uma pergunta se torna inevitável: comopensar o sujeito da escrita depois da crítica estruturalistado sujeito, de sua descentralização? O “retorno do autor” –a auto-referência da primeira pessoa autobiográfica na nar-rativa contemporânea – talvez seja uma forma de ques-tionamento do recalque modernista do sujeito. “Retorno”remeteria assim não apenas ao devir temporal, mas especial-mente ao sentido freudiano de Wiederkehr, de reapariçãodo recalcado.

Parto, então, da hipótese de que essas narrativascontemporâneas respondem ao mesmo tempo e para-doxalmente ao narcisismo midiático e à crítica do sujeito.Há dois anos, na pesquisa que concluiu no meu livro Es-

critas de si, escritas do outro. O retorno do autor e a viradaetnográfica (Klinger, 2007), considerava que o conceitode “autoficção” (posto em circulação em 1971 pelo escri-tor francês Serge Doubrovsky) podia dar conta desse pa-radoxo. No entanto, tenho percebido que em muitas dasdiscussões acadêmicas e jornalísticas esse conceito temadquirido uma amplitude tal que parece abranger desdeInfância¸ de Graciliano Ramos, até os blogs pessoais. Porisso, se acreditamos – como acredito – que alguma coisatem mudado na literatura recente, torna-se importanteespecificar a noção de autoficção como uma característicaprópria da narrativa contemporânea, que pode ter pontosde contatos, mas se diferencia de outras narrativas anterio-res. Para isso, é necessário chegar numa definição precisado que consideramos “autoficção”.

Parto da hipótese de que a autoficção se inscreve nocoração do paradoxo deste final de século XX: entre umdesejo narcisista de falar de si e o reconhecimento da im-

possibilidade de exprimir uma “verdade” na escrita. As-sim, a autoficção se aproxima do conceito de performance,que, como espero mostrar, também implica uma desna-turalização do sujeito.

O termo inglês “performance” significa “atuação”,-“desempenho”, “rendimento”, mas começou a assumir sig-nificados mais específicos nas artes e nas ciências huma-nas a partir dos anos 1950 como idéia capaz de superar adicotomia arte/vida. Do ponto de vista da antropologia,uma performance é “toda atividade feita por um indivíduoou grupo na presença de e para outro indivíduo ou grupo”(Schechner, 1988, p.30). Assim, para Victor Turner (apudTaylor, 2003, p.19), as performances revelam o caráter pro-fundo, genuíno e individual de uma cultura. Pelo contrá-rio, o performático significa, na teoria de gênero da críticanorte-americana Judith Butler, não o “real, genuíno”, masexatamente o oposto: a artificialidade, a encenação.

A argumentação de Butler (2003, p.197), ainda quevoltada para uma gender theory, pode ser muito provei-tosa para pensar o conceito de autoficção. Para Butler,o gênero é uma construção performática, quer dizer,uma construção cultural imitativa e contingente. O gêne-ro é “um estilo corporal, um ato, por assim dizer, que tantoé intencional como performativo, onde performativo su-gere uma construção dramática e contingente de senti-do”. Butler argumenta que a noção de gênero como essên-cia interior de um sujeito e como a garantia de identidadeé uma ilusão mantida para os propósitos da regulação dasexualidade dentro do marco obrigatório da heterossexua-lidade reprodutiva. Assim entendido, o gênero é conside-rado uma ficção regulatória e encarna uma performatividade

por meio da repetição de normas que dissimulam suas con-venções. A performance dramatiza o mecanismo culturalde sua unidade fabricada. Butler analisa o caso da paródiado gênero que realiza o travesti e diz que essa paródia nãopresume a existência de um original que essas identidadesparodísticas imitariam. “A paródia que se faz é da própriaidéia de um original” (ibidem, p.199).

20 Revista Brasileira de Literatura Comparada, n.12, 2008 Escrita de si como performance 21

A perspectiva de Butler interessa precisamente peladesconstrução do mito de original, pois ela argumenta quea performance de gênero é sempre cópia da cópia, sem ori-ginal. Da mesma maneira, a autoficção também nãopressupõe a existência de uma sujeito prévio, “um mode-lo”, que o texto pode copiar ou trair, como no caso daautobiografia. Não existe original e cópia, apenas cons-trução simultânea (no texto e na vida) de uma figura tea-tral – um personagem – que é o autor.

Para se compreender essa relação entre escrita e per-

formance é preciso levar em consideração a crítica à noçãode representação da episteme moderna, que se produz noscampos mais diversos, da estética à metafísica, passandopela política. Vou limitar minha argumentação à criticade Derrida, que considero bastante significativa. SegundoDerrida (1996, p.78ss.) apesar da força dessa corrente, aautoridade da representação se impõe ao nosso pensamentomediante uma história densa e fortemente estratificada.Com efeito, toda epistemologia moderna está fundada so-bre a noção de representação. O antropólogo Paul Rabinow(1986, p.234) define assim o conhecimento: “conhecer érepresentar adequadamente o que está fora da mente”.

A partir dessas premissas, Derrida se pergunta: o queé a representação em si mesma? Qual é o eidos da repre-sentação? E diz que, antes de saber como e o que traduzirpor representação, devemos nos perguntar pelos conceitosde tradução e de linguagem, conceitos dominados freqüen-temente pelo conceito de representação, seja interlin-güística, intralingüística ou inter-semiótica (entre lingua-gens discursivas e não-discursivas) na arte, por exemplo.Em cada caso nos encontramos com pressuposto, ou o de-sejo, de uma identidade de sentido invariável, que regulatodas as correspondências. Esse desejo seria o de uma lin-guagem representativa, linguagem que representaria umsentido, um objeto, um referente, que seriam anteriores eexteriores a essa linguagem. Sob a diversidade das pala-vras de línguas diferentes, sob a diversidade dos usos damesma palavra, e sob a diversidade dos contextos e dos

sistemas sintáticos, o mesmo sentido ou o mesmo referen-te, o mesmo conteúdo representativo conservaria sua iden-tidade irredutível. O representado seria uma presencia enão uma representação.

A crítica a essa noção de linguagem representativanão pode evadir o pensamento de Heidegger. Segundo ofilósofo alemão, diz Derrida, no mundo grego não haviauma relação com o ente como uma imagem concebidacomo representação (Bild): o mundo era pura presença(Anwesen). É com o platonismo que o mundo se anun-cia como Bild; o platonismo prepara, destina, envia o mun-do da representação. É na Modernidade que o ente se de-termina como objeto trazido perante o homem, disponívelpara o sujeito-homem que teria dele uma representação.A representação chegou a ser o modelo de todo pensa-mento do sujeito, de todo o que lhe sucede a esse e o mo-difica em sua relação com o objeto. O sujeito, diz Derrida,não se define apenas como o lugar e a localização de suasrepresentações: ele mesmo, como sujeito, fica aprendidocomo um representante. O homem, determinado em pri-meiro termo como sujeito, se interpreta ao mesmo tempona estrutura da representação. O sujeito, segundo Lacan,é aquilo que o significante representa para outro signi-ficante. Estruturado pela representação, como alguém quetem representações, é também sujeito representante, al-guém que representa alguma outra coisa. Quando o ho-mem determina tudo o que existe como representável, elemesmo se põe em cena, no círculo do representável, colo-cando-se a si mesmo como a cena da representação, cenana qual o ente deve se “re-apresentar”, ou seja apresentarnovamente. Assim se remete da representação em relaçãocom o objeto à representação como delegação, substitui-ção de sujeitos identificáveis uns com os outros.

Derrida formula a desconstrução da noção de repre-sentação a partir da noção de envio (Geschick). Um envionão constitui uma unidade, e não tem nada que o preceda.Não emite senão remetendo: “tudo começa no remeter,ou seja, não começa”. Essas pegadas, esses rastros, são re-

22 Revista Brasileira de Literatura Comparada, n.12, 2008 Escrita de si como performance 23

missões a um passado sem origem do sentido, remissõesque não têm estrutura de representantes nem de repre-sentações, de significantes, nem de signos, nem de metá-foras etc. As remissões do outro ao outro, as pegadas dedifférance, não são condições originárias e transcendentais.São um envio, um destino (Geschick) que “não está nuncaseguro de se juntar, de se identificar, de se determinar”(Derrida, 1996, p.78). Da mesma forma se pode pensar aautoficção como “envio”, remissão sem origem, semsubstrato transcendente.

Então, é a partir da crítica à noção de representação ede sujeito que se pode formular um conceito de autoficçãoque seja específico da literatura contemporânea. O sujeitoque “retorna” nessa nova prática de escritura em primeirapessoa não é mais aquele que sustenta a autobiografia: alinearidade da trajetória da vida estoura em benefício deuma rede de possíveis ficcionais. Não se trata de afirmarque o sujeito é uma ficção ou um efeito de linguagem, comosugere Barthes,2 mas que a ficção abre um espaço de ex-ploração que excede o sujeito biográfico. Na autoficção,pouco interessa a relação do relato com uma suposta “ver-dade” prévia a ele, que o texto viria saciar, pois como apontaCristopher Lasch (1983, p.42), “o autor hoje fala com suaprópria voz mas avisa ao leitor que não deve confiar emsua versão da verdade”.

Confundindo as noções de verdade e ilusão, o autordestrói a capacidade do leitor de “cessar de descrer”. As-sim, o que interessa na autoficção não é a relação do textocom a vida do autor, e sim a do texto como forma de cria-ção de um “mito do escritor”. É preciso dizer algumas pa-lavras do que entendemos aqui por mito. Em Mitologias,Roland Barthes (2003) oferece uma sagaz descrição domecanismo de criação do mito, partindo da estruturaternária do conceito de signo de Saussure. Significante,significado e signo são três termos formais, aos quais sepodem atribuir diferentes conteúdos. Por exemplo, paraFreud, o significante é constituído pelo conteúdo mani-festo de um comportamento, enquanto o significado é seu

sentido latente. O terceiro termo é a correlação entre osdois primeiros. Quer dizer que os sonhos e os atos falhossão signos, ou seja, eventos concebidos como economiasrealizadas graças à junção da forma (primeiro termo) e dafunção intencional (segundo termo).

Barthes concebe o mito em analogia com o signo saus-suriano e o inconsciente freudiano, pois ele reproduz o mes-mo esquema tridimensional. O mito se constrói a partir deuma idéia semiológica que lhe preexiste no sistema da lín-gua: o que é signo (junção de três termos) no primeiro sis-tema é significante (primeiro termo) no segundo. O signo,termo final do sistema da língua, ingressa como termo ini-cial no segundo sistema, mitológico. Barthes chama essesigno (significante no segundo sistema) de “forma”, e o sig-nificado, de “conceito”. O terceiro termo, no sistema domito, é a significação.

O mito porém se aproxima mais do inconsciente freu-diano do que do signo lingüístico, pois num sistema sim-ples como a língua o significante é vazio e arbitrário e,portanto, não oferece nenhuma resistência ao significado.Pelo contrário, “assim como para Freud, o sentido latentedo comportamento deforma seu sentido manifesto, assimno mito o conceito deforma o sentido” (Barthes, 2003,p.313). O mito, dirá Lévi-Strauss (1987, p.233), é lingua-gem, mas linguagem que opera num nível muito elevado ecujo sentido consegue decolar – cabe usar uma imagemaeronáutica – do fundamento lingüístico sobre o qual ti-nha começado a se deslizar.

A autoficção é uma máquina produtora de mitos doescritor, que funciona tanto nas passagens em que se rela-tam vivências do narrador quanto naqueles momentosda narrativa em que o autor introduz no relato uma refe-rência à própria escrita, ou seja, a pergunta pelo lugar dafala (O que é ser escritor? Como é o processo da escrita?Quem diz eu?). Reconhecer que a matéria da autoficçãonão é a biografia mesma e sim o mito do escritor nos per-mite chegar próximos da definição que interessa para nossaargumentação. Qual a relação do mito com a autoficção?

2 Também Philippe Sollers,

em seu texto “Logique de la

fiction”, in Logiques (Seuil,

1968, p.15-43. Coll. Tel Quel),

citado por Emilie Lucas-Leclin

(2005, p.3).

24 Revista Brasileira de Literatura Comparada, n.12, 2008 Escrita de si como performance 25

O mito, diz Barthes (2003, p.221), “não é uma mentira,nem uma confissão: é uma inflexão”. “O mito é um valor,não tem a verdade como sanção.” A autoficção participada criação do mito do escritor, uma figura que se situa nointerstício entre a “mentira” e a “confissão”. A noção dorelato como criação da subjetividade, a partir de uma ma-nifesta ambivalência a respeito de uma verdade préviaao texto, permite pensar a autoficção como uma per-

formance do autor.É no sentido de artifício, como “comportamentos

duplamente exercidos, comportamentos restaurados, açõesque as pessoas treinam para desempenhar, que têm querepetir e ensaiar” (Schechner, 2003, p.27), que pensamosa identidade autoral no caso das narrativas contemporâ-neas mencionadas no início. O conceito de performance

deixaria ver o caráter teatralizado da construção da ima-gem de autor. Estou propondo uma sutil diferença entre osujeito escritor e a figura do autor. Dessa perspectiva, nãohaveria um sujeito pleno, originário, que o texto refleteou mascara. Pelo contrário, tanto os textos ficcionais quan-to a atuação (a vida pública) do escritor são faces comple-mentares da mesma produção da figura do autor, instânciasde atuação do eu que se tencionam ou se reforçam, masque, em todo caso, já não podem ser pensadas isolada-mente. O autor é considerado como sujeito de uma per-

formance, de uma atuação, que “representa um papel” naprópria “vida real”, na sua exposição pública, em suas múl-tiplas falas de si, nas entrevistas, nas crônicas e auto-re-tratos, nas palestras. Portanto, o que interessa do autobio-gráfico no texto de autoficção não é uma certa adequaçãoà verdade dos fatos, mas sim “a ilusão da presença, do aces-so ao lugar de emanação da voz” (Arfuch, 2005, p.42).Assim, a autoficção adquire outra dimensão que não a fic-ção autobiográfica, considerando que o sujeito da escritanão é um “ser” pleno, cuja existência ontológica possa serprovada, senão que o autor, a figura do autor, é resultadode uma construção que opera tanto dentro do texto ficcio-nal quanto fora dele, na “vida mesma”.

Daí que o texto de autoficção se aproxime também daperformance como arte cênica. O texto autoficcional impli-ca uma dramatização de si que supõe, da mesma maneiraque ocorre no palco teatral, um sujeito duplo, ao mesmotempo real e fictício, pessoa (ator) e personagem. A dra-matização supõe a construção simultânea de ambos, autore narrador. Imaginando uma analogia entre a literatura eas artes cênicas, poder-se-ia traçar uma correspondênciaentre o teatro tradicional e a ficção, por um lado, e a arteda performance e a autoficção, por outro. Na cena teatralexiste um paradoxo, que Julian Olf (apud Cohen, 2002,p.95) chama de dialética da ambivalência, que pode serenunciado como a impossibilidade de “ser” e representarsimultaneamente. O ator não pode ser e construir um ou-tro ser ao mesmo tempo. Quando o ator entra na cena tea-tral, ele passa a “significar”, a virar signo, desdobrando-seem ator e personagem. O ator situa-se assim entre doispólos: o da atuação e o da representação. Essa ambivalênciaé insalvável: o ator nunca poderá estar somente “atuan-do”, mesmo que ele represente a si mesmo, nem poderáestar completamente possuído pelo personagem. Ora, esseparadoxo está em relação a um outro, que atinge tanto arepresentação teatral quanto o texto ficcional: como notexto de ficção, no espetáculo teatral espaço e tempo sãoilusórios, no teatro e no romance tudo remete ao imaginá-rio. Quanto mais o ator (ou o autor do texto) entra nopersonagem, e mais real tenta fazê-lo, mais reforça a ficção,e portanto, a ilusão. Por isso a arte da performance rejeita ailusão, ela é precisamente “o resultado final de uma longabatalha para liberar as artes do ilusionismo e do artifi-cialismo” (Glusberg, 2003, p.46).

A arte da performance supõe uma exposição radicalde si mesmo, do sujeito enunciador, assim como do localda enunciação, a exibição dos rituais íntimos, a encenaçãode situações autobiográficas, a representação das identi-dades como um trabalho de constante restauração sempreinacabado (Ravetti, 2002, p.47). Na arte da performance,a ambivalência do teatro persiste, mas ao contrário desse,

26 Revista Brasileira de Literatura Comparada, n.12, 2008 Escrita de si como performance 27

o performer está mais presente como pessoa e menos comopersonagem. Da mesma forma que na performance, naautoficção convivem o escritor-ator e o personagem-au-tor. E não se procura aumentar a verossimilhança, poisela, como vimos, aumentaria paradoxalmente o caráterficcional. No texto de autoficção, entendido nesse senti-do, quebra-se o caráter naturalizado da autobiografia numaforma discursiva que ao mesmo tempo exibe o sujeito e oquestiona, ou seja, que expõe a subjetividade e a escrituracomo processos em construção. Assim, a obra de autoficçãotambém é comparável à arte da performance na medidaem que ambos se apresentam como textos inacabados,improvisados, work in progress, como se o leitor assistisse“ao vivo” ao processo da escrita.

Literatura como performance, isto é, como uma práti-ca inserida num contexto sociocultural mais amplo, no quala figura do autor interfere na leitura do texto. ReinaldoLaddaga (2006, p.7) afirma que estamos perante uma pro-funda transformação da configuração da modernidade es-tética, na qual a literatura se destinava “a um espectadorou um leitor retraído e silencioso, que a obra devia subtrair[...] do seu entorno normal para confrontá-lo com a ma-nifestação da exterioridade do espírito ou do inconscien-te”. Isso ainda era válido para a literatura latino-america-na digamos até os anos 1980: da obra de Borges, Carpentier,Lezama Lima, Guimarães Rosa até Garcia Marquez, CarlosFuentes, Julio Cortázar ou Clarice Lispector, para citarapenas alguns exemplos. Os novos narradores, diz Ladagga(2006, p.10), sabem que suas operações se realizam numaépoca de superabundância informativa, na qual é impro-vável encontrar esse tipo de leitor que deseja se isolar doentorno de comunicações ordinárias para se confinar naconfrontação solitária com um artefato de linguagem.

Por isso, a escrita de si como performance também su-põe uma revisão na noção de valor literário: a autoficçãonão pode ser lida apenas a partir das qualidades estéticasdo texto. A autoficção só faz sentido se lida como show,

como espetáculo, ou como gesto. Isso é característico, tam-bém, de certa literatura que Josefina Ludmer (2007) cha-

ma de “pós-autônoma”. Estas obras performáticas podemser lidas junto com aquelas narrativas que, segundo Ludmer(2007), “aparecem como literatura mas não podem ser li-das com os critérios ou com as categorias literárias (espe-cíficas da literatura) como autor, obra, estilo, escrita, tex-to e sentido. E, portanto, é impossível lhes atribuir um‘valor literário’: já não tem, para essas escritas, literaturaboa ou ruim”. Sendo assim, a autoficção mostraria algo amais do que uma tendência da narrativa contemporânea.Talvez ela seja um dos signos de um esgotamento da cul-tura moderna das letras.

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Autoficção e literatura contemporânea

Luciene Almeida de Azevedo*

RESUMO: Sob a hipótese de que o conceito de literário está sen-

do reconfigurado, o objetivo principal do trabalho é o comentá-

rio teórico sobre o conceito de autoficção, entendido como uma

estratégia da literatura contemporânea capaz de eludir a pró-

pria incidência do autobiográfico na ficção e tornar híbridas as

fronteiras entre o real e o ficcional, colocando no centro das

discussões novamente a possibilidade do retorno do autor, não

mais como instância capaz de controlar o dito, mas como refe-

rência fundamental para performar a própria imagem de si au-

toral que surge nos textos. O foco investigativo se concentrará

na produção de alguns autores que se lançaram na rede, como

Clarah Averbuck, João Paulo Cuenca, Santiago Nazarian.

PALAVRAS-CHAVE: Autoria, autoficção, blog, literatura contem-

porânea.

ABSTRACT: Under the hypothesis of that the concept of liter-

ary is being reconfigured, the main objective of the essay is the

theoretical commentary about the concept of autoficção as a

strategy of contemporary literature, by setting in the center of

the arguments afresh the possibility from the recurrence author’s.

The focus will be concentrated in the production of some au-

thors whom if they had launched in the net, some names: Clarah

Averbuck, João Paulo Cuenca, Santiago Nazarian,

KEYWORDS: Authorship, autoficção, blog, contemporary

literature.

“A necessidade canônica, quando se vai trabalharcom o contemporâneo, de saída nos coloca diantedessa questão: O que é literatura?”

(Beatriz Resende)

* Professora doutora de

Teoria Literária da

Universidade Federal de

Uberlândia (UFU) –

Uberlândia (MG).

32 Revista Brasileira de Literatura Comparada, n.12, 2008 Autoficção e literatura contemporânea 33

Na cena-Matrix da contemporaneidade, há quem ain-da se incomode com a labilidade das fronteiras virtuaisfagocitando um já precário real, seja para reavivar a retó-rica-Baudrillard do “ai como era gostoso o meu Real”, sejapara demonizar a espetacularização à la Debord.

Para os que apostam nesse panorama desolador, a li-teratura estaria perdendo sua capacidade adorniana deresistência e se entregando facilmente aos prazeres da su-perficialidade, regozijando-se com o banal, chafurdandono ordinário e investindo em conteúdos ridículos. Assim,tendo invadido a cena literária contemporânea, o blog éentendido como o mais novo dispositivo propulsor deartificialismos que investe na espetacularização do sujeitoe se constitui como uma ferramenta a mais, prestes a cola-borar com a “tagarelice do personalismo e a banalidade daauto-expressão narcisista” (Jaguaribe, 2006, p.115). Naesteira do sucesso dos reality shows e das fórmulas de vidana lição auto-ajuda, a demanda pela autenticidade das ima-gens e narrativas da “vida real” contaminaria a escrita desi cultivada pelos escritores de blogs que, por sua vez, reafir-mariam o narcisismo de uma sociedade midiática.

Para aquele que aceite enfrentar o desafio de pensar ocontemporâneo é quase impossível escapar do fato de queos salões virtuais da web invadiram a cena literária con-temporânea e muitos dos novos autores escolhem os blogs1

para divulgar sua ficção.O novo suporte coloca em questão não apenas a dú-

vida pelo próprio estatuto da ficção (Isso é, ainda, litera-tura?), mas também a legitimação do jovem autor e as pró-prias estratégias de representação do que tem a dizer. Issofica claro quando os autores são cobrados por sua falta deexpertise literária (“os escritores de blog... não são artistas,leitores ou peritos [...] [são] autores que quase não leram”(ibidem, p.110)) ou pela falta de lastro biográficosignificante que os desautorizaria a contar uma vida tãoordinária. Lidos nessa clave, a ausência de uma aprendi-zagem artística e a idolatria da “pessoa comum” cultivadaspela imensa seara blogueira é um correlato do cotidiano

mergulhado na mediocridade e em subjetividades incapa-zes de singularidades diferenciadoras, pois, apesar da exa-cerbada presença do biográfico nos textos postados, con-vivemos com um paradoxal declínio da interioridadepsicológica (Sibilia, 2006), com subjetividades construídaspara serem apenas vitrines de exposição de um eu produ-zido artificialmente, uma identidade fake.

E se, porém, a contrapelo das análises apocalípticas,sem que tampouco tomemos a via da Poliana integrada,pudéssemos ler a produção dos blogs literários apostandoem uma relação com as marcas do nosso presente quenão se nega ao diálogo com a espetacularização? Se acei-tamos a hipótese, a aposta na exposição do eu, o exercí-cio da textualização de si podem ser lidos “em sintoniacom o narcisismo da sociedade midiática contemporânea,mas, ao mesmo tempo, produz[irem] uma reflexão sobreele” (Klinger, 2006).

Na falta das grandes narrativas, dos grandes roman-ces formativos do eu, das certezas de um cânone estávelno qual se apoiar, talvez valha a pena apostar que a cenaliterária do século XXI, precária e instável, já apresentanovas estratégias de representação, “elementos singularesque estão em trânsito, propensos a circunscreverem mo-dalidades inéditas de experiências” (Fatorelli, 2006, p.19).

Nesse sentido, talvez seja possível pensar a auto-ex-posição da intimidade também como estratégia para driblar,e brincar com, a superficialidade contemporânea.

Em vez do pacto pelo efeito de real que a narrativa dasexperiências pessoais persegue e da legitimação da autentici-dade do que é contado por quem, de fato, viveu o que con-ta, podemos considerar que a presença avassaladora doautobiográfico na ficção blogueira é uma estratégia auto-ficcional que investe na criação de “eus” de/no papel.

No universo da visibilidade total (“Sorria, você estásendo filmado”), estimulado aliás pela internet (Orkut,webcams e fotologs não nos deixam mentir), os blogs sãodispositivos que permitem a invenção de si. (Re)Inventar-se em outros é uma estratégia ficcional tão antiga que le-

1 Blogs são páginas pessoaisnas quais os autores podemexpor desde experimentaçõesliterárias até os mais banaiscomentários sobre o seucotidiano. À maneira de umdiário íntimo, o blog éconstruído cronologicamentemediante a possibilidade diáriade atualização (cf. Azevedo,2005).

34 Revista Brasileira de Literatura Comparada, n.12, 2008 Autoficção e literatura contemporânea 35

vou Platão a expulsar os poetas da Cidade Ideal, masmesmo um procedimento tão antigo pode ter renovadoseu estatuto uma vez consideradas as circunstâncias de seu(re)aparecimento. Assim, entendemos que a incorporaçãodo autobiográfico é uma estratégia para eludir a própriaautobiografia e tornar híbridas as fronteiras entre o real eo ficcional, colocando no centro das discussões novamen-te a possibilidade do retorno do autor, não mais como ins-tância capaz de controlar o dito, mas como referência fun-damental para performar a própria imagem de si.

Nesse sentido, a problemática principal que ronda osposts diários dos blogs e as narrativas dos autores que ga-rantiram publicação em papel depois que se lançaram narede dramatizando suas experiências cotidianas não estácalcada na garantia de veracidade, mas em um protocolode desaparecimento (“Como faremos para desaparecer?”,perguntava Blanchot). Um jogo de esconde-esconde quealude a uma visibilidade enganadora investindo na impos-sibilidade de confirmar se tudo (ou quase nada?), afinal, éverdade ou não. A figura do autor (eu que escreve ou ego

scriptor?) é ao mesmo tempo evocada como referente dotexto e ao mesmo tempo borrada pela indecidibilidade queinquieta o leitor chamado a participar de um pacto emque as regras não estão dadas de antemão.

Autoficção: um conceito esquizofrênico?

Partindo do pressuposto de que é possível ler tambémnos blogs um investimento na figuração de si que se apro-pria antropofagicamente da exacerbada auto-exposição daintimidade que está no “espírito do tempo”, de ambientevirtuais ou não, como uma forma de driblar a espetacu-larização do eu e a visibilidade transparente, acreditamosque é possível pensar a autoficção como uma estratégiarepresentacional possível exercitada pelos blogueiros emseus posts e nos livros publicados, como um dispositivo queresponde ao contexto contemporâneo.

O termo autoficção foi empregado pelo francês SergeDoubrovski para nomear um exercício ficcional criado

como resposta à análise de Philippe Lejeune (1996, p.31)sobre a autobiografia que, em seu conhecido livro sobre opacto autobiográfico, assim se manifestava:

Le héros d’un roman déclaré comme tal, peut-il avoir le

même nom que l’auteur? Rien n’empêcherait la chose d’exister,

et c’est peut-être une contradiction interne dont on pourrait tirer

quelques effets. Mais, dans la pratique, aucun exemple ne se

présent à l’esprit d’une telle recherche.2

Sentindo-se desafiado, Doubrovski escreve Fils (1977),romance em que faz coincidir herói e autor do romance(“La personnalité et l’existence en question ici sont les miennes,

et celles des personnes qui partagent ma vie”,3 citado porLaouyen, s. d.), lançando mão da estratégia autoficcionalbaseada na construção polifônica de vozes e nas diferen-tes perspectivas narrativas.

O conceito de autoficção, tal como entendido porDoubrovski (apud Laouyen, s. d.), inscreve-se na fenda aber-ta pela constatação de que todo contar de si, reminiscênciaou não, é ficcionalizante, e que todo desejo de ser sincero éum trompe-oeil: “Je me manque tout au long... de moi”.4

Bem próximo da estratégia adotada por Silviano San-tiago (2004; 2005) em O falso mentiroso e Histórias mal

contadas que, empregando o procedimento de embaralharas fronteiras entre vida e ficção, faz o narrador jogar comas margens do gênero e encenar um balanço de vida, mal-contando histórias cultivadas pela memória inquietantede uma intrincada rede de leituras, especialmente de nos-sos escritores modernistas, desaparecendo como referenteautoral do texto, para converter-se em “parasita literáriode si mesmo” (para falarmos como outro autoficcionista, oespanhol Enrique Vila-Matas).

A autoficção é entendida, então, como um apagamen-to do eu biográfico, capaz de constituir-se apenas nos des-lizamentos de seu próprio esforço por contar-se como umeu, por meio da experiência de produzir-se textualmente.Eu descentralizado, eu em falta que preenche os vazios dosemi-oculto com as sinceridades forjadas que escreve.

2 “O herói do romance, uma

vez declarado como tal, pode

ter o mesmo nome do autor

do romance? Nada impediria

tal fato, e talvez fosse uma

contradição interna da qual

se poderia tirar alguns efeitos.

Mas, na prática, nenhum

exemplo se apresenta a essa

pesquisa.” Todas as traduções

deste ensaio são minhas, salvo

indicação contrária.

3 “A personalidade e a

existência em questão são as

minhas, e a de pessoas que

compartilham minha vida.”

4 “eu me falto ao longo... de

mim”.

36 Revista Brasileira de Literatura Comparada, n.12, 2008 Autoficção e literatura contemporânea 37

Contestando, no entanto, o procedimento de utiliza-ção do termo por Doubrovski, Vincent Colonna (apudLaouyen, s. d.) investe no conceito, entendendo-o comouma estratégia representacional da literatura contem-porânea: “Une autofiction est une ouvre littéraire par laquelle

un écrivain s’invente une personnalité et une existence, tout

en conservant son identité réelle (son véritable nom)”5

(grifos meus).A sutil diferença em relação ao entendimento do ter-

mo por Doubrovski vem da permanência defendida porColonna da figura do escritor-autor como elemento de re-ferência fundamental ao jogo autoficcional. O que cla-ramente contraria a posição do autor de Fils uma vez queesse parece defender o esvaziamento ou a impossibilidadedo lugar autoral que é preenchido pelo trabalho com osignificante. Em síntese, todo valor à écriture, lema quepoderia ser adotado por boa parte das tendências teóricasdo século XX.

A reapropriação que Colonna faz do conceito tal comoé entendido por Doubrovski parece ir ao encontro do queafirma Puertas Moya (2003, p.586):

Derrida e De Man han llegado a poner en duda [...] la

existencia de una referencialidad concreta del texto autobiogra-

fico con respecto al yo, pero admiten que esta ilusión es un efecto

estético que no invalida [...] una literatura referencial del yo

existencial, asumido com mayor o menor nitidez, por el autor

de la escritura; frente a la literatura fictícia, en la que el yo, sin

referente específico no es asumido existencialmente por nadie

en concreto.6

Apesar, porém, da popularidade que parece ganharem muitas ficções contemporâneas, o conceito enfrentaresistências. Para Gerard Genette, ele não é nem mesmoinovador, já que é um dos mais básicos procedimentosficcionais o fato de o autor fingir sua entrada na ficção.

Assim, a postura de negação radical de Genette emrelação ao termo é sintomática de uma dificuldade de ca-racterizar teoricamente a autoficção como um gênero, uma

vez que o conceito parece se aproveitar da desestabilizaçãoempreendida pela própria autobiografia ao forçar as fron-teiras do literário para dar uma volta a mais no parafuso,embaralhando ainda mais a questão: “o que interessa naautoficção, não é a relação do texto com a vida do autor, esim a do texto como forma de criação de um ‘mito do es-critor’. A autoficção é uma máquina produtora de mitosdo escritor” (Klinger, 2006).

Insistindo-se, contudo, na tentativa de caracteriza-ção do termo, que diferença fundamental haveria, então,entre a estratégia da autoficção e a autobiografia comodesmascaramento?

Nous présupposons que la vie produit l’autobiographie

comme un acte produit des conséquences, mais ne pouvons-nous

pás suggérer, avec la même justice, que le projet autobiographique

puisse lui-même produire et déterminer la vie et que, quoique

fasse l’écrivain, il soit en fait gouverné par les exigences techniques

de l’autoportrait, et déterminé ainsi, de part en part, par les

ressources de son medium?7 (De Man, 1979, p.98)

Aqui, arriscaríamos a dizer que a instabilidade mesmado desmascaramento já provado pela autobiografia é des-dobrada na reconciliação com a figura do autor que supe-rou o paradigma da morte: do sujeito, do autor. Nesse sen-tido, se a desconstrução da ilusão referencial foi necessária,agora podemos fazer as pazes não para restabelecer qual-quer centro orientador, mas para investir no jogo de con-tinuar representando.

Para rebater a negatividade de Genette, diríamos queo que é realmente novidade na autoficção é a vontade cons-ciente, estrategicamente teatralizada nos textos, de jogarcom a multiplicidade das identidades autorais, os mitos doautor, e ainda que essa estratégia esteja referendada pelainstabilidade de constituição de um “eu”, é preciso que elaesteja calcada em uma referencialidade pragmática, exte-rior ao texto, uma figura do autor, claro, ele mesmo tam-bém conscientemente construído.

5 “Uma autoficção é uma obra

literária na qual um escritor

se inventa uma personalidade

e uma existência, conservando

sua identidade real (seu

verdadeiro nome).”

7 “Nós pressupomos que a

vida produz a autobiografia

como um ato produz

conseqüências, mas não

poderíamos sugerir com a

mesma justiça, que o projeto

autobiográfico possa ele

mesmo produzir e determinar a

vida e, o que quer que o

escritor faça, ele é governado

pelas exigências técnicas do

auto-retrato e determinado

dessa forma pelos recursos de

seu medium?”

6 “Derrida e De Man colocam

em dúvida [...] a existência de

uma referencialidade concreta

do texto autobiográfico com

respeito ao eu, mas suas

posições não parecem

suficientes para invalidar [...]

uma literatura referencial do

eu existencial, assumido, com

maior ou menor nitidez, pelo

autor da escritura frente à

literatura fictícia na qual o eu

sem referente específico, não é

assumido existencialmente por

ninguém concretamente.”

38 Revista Brasileira de Literatura Comparada, n.12, 2008 Autoficção e literatura contemporânea 39

Assim, a estratégia básica da autoficção é o equilíbrioprecário de um hibridismo entre o ficcional e o auto-referencial, um entre-lugar indecidível que bagunça o ho-rizonte de expectativa do leitor:

Le lecteur se trouve face à une assertion dont la véracité

reste indécidable. Devant cette categorie textuelle, on doit prendre

en compte deux injonctions antinomiques: lire le texte comme

une fiction et comme une autobiographie. Pourtant la synthèse

entre ses deux registres peut paraître impossible, car comment

distinguer le référentiel de l’imaginaire, le littéral du métapho-

rique?8 (Kouroupakis & Werli, s. d.)

Se concordamos, então, que autobiografia e ficçãocompartilham fronteiras discursivas e que o elemento deinterseção é o “eu”, diríamos que a autoficção atua combase na expectativa de representação de um “eu” semprecambiante em que as próprias fronteiras parecem rasuradas.Ao invés da relativa estabilidade “imagens ficcionais senaturalizam em nossa vivência do cotidiano e, em troca,experiências cotidianas se metamorfoseiam em manifes-tações ficcionais” (Costa Lima, 1986, p.300), a autoficçãodesestabiliza ainda mais a já precária condição desse “eu”,apresentando-se como uma escrita de si na qual o pactomimético se metamorfoseia ficcionalmente e a invençãode si se naturaliza como vivência cotidiana. O verdadeiro

eu é duplamente considerado uma ficção, não há um có-digo hermenêutico que oriente a leitura, o sentido vacilajustamente pela anfibologia do entre-lugar (Kouroupakis& Werli, s. d.): “É mentira, mas é tudo verdade. Qualquersemelhança com a realidade não terá sido mera coinci-dência” (Averbuck, 2002, p.79).9

A diferença é uma sutileza em relação à famosa afir-mação de Barthes (2003) em seu exercício autobiográfico:“tudo isto deve ser considerado como dito por um perso-nagem de romance”. Aqui, tudo é ficção. Mas a encena-ção do eu levada a cabo na autoficção necessita do subs-trato referencial, ainda que ele próprio seja um atoperformático configurado no texto. Assim, o eu de papel é

uma figuração entre outras. A ilusão referencial é, e aomesmo tempo não é, correlata à construção da figura queganha estatuto ficcional paradoxalmente por meio da pro-dutiva onipresença impotente da referência: “Quandoconto alguma coisa do meu dia-a-dia pode desconfiar queé invenção” (Cecília Gianetti, 2007-04-29, blog).10

Assim, o autor assume um duplo estatuto contraditó-rio: um lugar vazio impossível de garantir a veracidadereferencial e simultaneamente um intruso que se assumeinterlocutor de si, colocando-se abertamente na posiçãode autor, fingindo-se outros: “Aos poucos vou me largan-do por aí. Os pedaços soltos pelos lugares mais imprová-veis. Alguns servem para encher papel, viram palavras”(João Paulo Cuenca, 2003-10, blog).11

O si mesmo de uma invenção de outros

“Então agarra o que você tem mais próximo: fale

de si mesmo. E ao escrever sobre si mesmo comece

a se ver como se fosse outro, trate-se como se fosse

outro: afaste-se de si mesmo conforme se aproxima

de si mesmo.”

(Vila-Matas, 2005, p.145)

No ensaio “O paradoxo e a mimese”, o comentárioque Lacoue-Labarthe (2000, p.162) faz do texto de Diderot,Paradoxo sobre o comediante, coaduna-se ao dispositivoesquizofrênico que a autoficção faz disparar: “A apocrifiado autor é aqui mais temível ainda do que aquela que Platãotemia”. A impessoalização do poeta é um dos motivos apre-sentados pelo filósofo grego para condenar a mimese porprovocar uma decepção no espectador, que seria, dessa for-ma, enganado pela performance: “Quando profere um dis-curso como se fosse outra pessoa, acaso não diremos queele se assemelha o mais possível o seu estilo ao da pessoacuja fala enunciou?” (Platão, 1996, p.117).

Sendo o poeta um verdadeiro hypocrités, um ator damimese, sua impropriedade residiria em “não ser nada porsi mesmo, nada ter de próprio, a não ser uma ‘igual apti-

8 “O leitor encontra-sediante de uma asserção cujaveracidade é indecidível.Diante dessa categoriatextual, devem-se levar emconta duas injunçõesantinômicas: ler o texto comouma ficção e como umaautobiografia. No entanto,a síntese entre esses doisregistros pode parecerimpossível, pois como sehaveria de distinguir oreferencial do imaginário,o literal do metafórico?”

10 Cecília Gianetti nasceuno Rio de Janeiro, em 1976.É jornalista. Tem contospublicados em antologias eparticipa do projeto amoresexpressos.

11 João Paulo Cuenca nasceuno Rio de Janeiro, em 1978.Começou a publicar ficçãono blog. Co-autor de Parati

para mim (Planeta, 2003)e autor de Corpo presente

(2003). Também participado projeto amores expressos,viajando para Tóquio.

9 Algumas das auto-apresentações de ClarahAverbuck: “Nariz de pugilista,coração de moça e cabeçadura” (no blog adiós lounge).“Decidiu nunca mais trabalharpara passar o resto de sua vidaem casa, escrevendo comouma maluca e tentandoaprender a tocar direito...contenta-se em morar comseus três gatos na rua maisglam de São Paulo” (na orelhade Máquina de pinball).

40 Revista Brasileira de Literatura Comparada, n.12, 2008 Autoficção e literatura contemporânea 41

dão para todo tipo de papéis’” (Lacoue-Labarthe, 2000,p.170). O dispositivo autoficcional se configuraria, então,como uma dobra a mais dessa decepção, uma vez que aintrusão do eu referencial (O autor? Quem fala?) coloca aautenticidade na clave da ficção: eu sou outros, mas osoutros são um eu que, em vez de exigir a suspensão dadescrença, aponta sempre para um incompatível pacto comum impossível verossímil.

Todo o esforço pela caracterização de um conceitofugidio não seria, porém, vão, uma vez que sua definiçãoparece se tornar indistinguível da própria definição de au-tobiografia (“o mesmo em sua mesmidade, é ele mesmoum outro e, por sua vez, não se pode dizer ‘ele mesmo’, eassim por diante até o infinito” (ibidem, p.172)) e em últi-ma instância do estatuto da ficção como um todo?

Jean-Marie Schaeffer (1999), em seu livro Pourquoi la

fiction?, comenta o engano a que foram conduzidos os lei-tores de Marbot. Uma biografia, publicado por WolfgangHildesheimer. Apesar de o livro insistir na informação para-textual, agregando-a ao título, de que se tratava de umestudo biográfico de Marbot, o personagem nunca existiu,tratava-se de uma biografia imaginária, um texto ficcional.

A confusão parece estimulada pela publicação, algunsanos antes, de outra biografia publicada por Hildesheimer,dessa vez verdadeira, sobre Mozart. Além disso, o interes-se pela vida de Marbot justificava-se, pois significava oresgate de uma figura histórica que havia compartilhado ouniverso intelectual efervescente e as companhias deGoethe, Byron, Shelley e muitos outros artistas do iníciodo século XIX, apimentada pela suposição de que o ilustredesconhecido teria mantido uma relação incestuosa coma mãe, o que poderia ter motivado seu desaparecimentosúbito. A suspeita do suicídio e a propensão ao pessimis-mo são atribuídas à sua amizade com Schopenhauer.

A construção do personagem é cuidadosamente cons-truída com dados referenciais: algumas reproduções dequadros acompanham o texto e indiciam o retrato nãoapenas de Marbot, mas também de seus pais pintados por

Delacroix (claro, tratava-se de anônimos aos quais o (fal-so) biógrafo batizou com o nome de seus personagens),além de trechos da correspondência de Goethe comEckermann, do diário íntimo do próprio Delacroix aos quaisforam acrescidas devidamente, aproveitando-se as passa-gens reais, menções à existência de Marbot.

Embora, meses depois, o próprio Hildesheimer tenhase encarregado de lamentar a leitura equivocada, fez ques-tão de eximir-se da culpa por qualquer decepção e enga-no proporcionados aos leitores, ainda que admitisse o ca-ráter escondido e frágil das marcas ficcionais (o “falsobiógrafo” alega que bastaria uma consulta a quaisquer dasreferências do index que acompanhava o livro para que oleitor pudesse se certificar da construção de Marbot comopersona fictícia).

No entendimento de Schaeffer (1999, p.135), no en-tanto, o argumento é frágil, uma vez que os índices maci-ços do texto apontam para a “maximização do componen-te mimético”, o que induziria o leitor ao erro e faria fracassara ficção: “Alors, Marbot est-il une fiction ou un leurre? Ou

bien s’agit-il d’une fiction et d’un leurre? [...] Ou d’un leurre

quoique l’intention de l’auteur ait été de composer une fiction?”12

(ibidem, p.136).O interesse de Schaeffer no “caso Marbot” está fun-

damentado em seu esforço por caracterizar a própria con-dição de existência do ficcional. Seu pressuposto é o deque a ficção precisa ser “uma fantasia lúdica compartilha-da” (“feintise ludique partagée”) completando-se, portanto,na relação intersubjetiva que estabelece com seu leitor.Por isso, o crítico francês aposta na falha de Hildesheimer,já que o leitor não é suficientemente orientado a compar-tilhar da fantasia porque é bombardeado por informaçõesque, alocadas verossimilmente ao longo do texto, o desviamda ficção, induzindo-o ao erro.

Dessa forma, Schaeffer (1999, p.138) defende queé necessária a “estipulação explícita da ficcionalidade”, eHildesheimer teria violado todas as condições capazes degarantir um pacto: o contexto autorial (o fato de já ter se

12 “Então, Marbot é umaficção ou um engodo? Ouentão, trata-se de uma ficçãoe de um engodo? Ou de umengodo ainda que a intençãodo autor tenha sido comporuma ficção?”

42 Revista Brasileira de Literatura Comparada, n.12, 2008 Autoficção e literatura contemporânea 43

aventurado ao território da biografia, escrevendo a vidade Mozart não muito tempo antes), o paratexto (insistirna incorporação do gênero ao título), a mimese formal(imitando procedimentos enunciativos do gênero biográ-fico: fotos, documentos, cartas, a fim de garantir o estatu-to ontológico do personagem).

Assim, o grande imbroglio criado por Hildesheimerpara seu próprio texto é o fato de ter atravessado o limiteentre o universo histórico (referencial) e o universo fic-cional, expondo o último a uma excessiva contaminaçãopelo primeiro: “Le plus difficile n’est pas de faire prendre pour

réelle des entités fictives, mais de réduire au statut fictionnel

des entités qui ont été introduites comme réelles”13 (Schaeffer,1999, p.137).

É a esse mesmo impasse que o leitor da escrita de siumbiguista dos blogs e da ficção publicada em papel poresses autores está exposto. O narrador toma a consistên-cia espessa de um eu narrador-personagem que atua paraembaralhar uma suposta busca por autenticidade cujoparâmetro seria a figura do autor real.

A autoficção, se nos aproveitamos da reflexão deSchaeffer, investe mesmo no engodo para inscrever-seficcionalmente, uma vez que desrespeita as condições parao estabelecimento da ficção. Condições essas exploradastambém por Puertas Moya (2003) na tentativa de relacio-nar alguns traços que tornassem pertinente a distinçãoentre romance autobiográfico e autoficção. Segundo o crí-tico espanhol, o romance autobiográfico garante um fatortextual de identificação entre o personagem (o nome ouuma auto-alusão referencial) e o autor, indício que é re-forçado por fatores de identificação paratextual que ofe-recem ao leitor elementos de relação com o personagem(prólogos, resenhas, dedicatórias), o que corresponderia,na argumentação de Schaeffer, à importância atribuída aocontexto autorial e ao paratexto para garantia da ficção.Além de tudo, para Puertas Moya (2003), o leitor poderiaencontrar forte apoio no fator extratextual que revelariainformações sobre o autor (entrevistas, declarações, tes-

temunhos). Mas em tempos de JT Leroy,14 como acreditarque a verdade está lá fora?

Se consideramos a estratégia do dispositivo auto-ficcional, diríamos, então, que a sua condição de possibili-dade, sua inscrição no terreno ficcional, é mesmo o des-respeito que empreende às tais condições evocadas. Se não,vejamos. O contexto autorial não é requisito confiável,uma vez que a figura autoral é tão cuidadosamente cons-truída quanto cada um dos “eus” criados no papel. As fo-tos de divulgação que acompanham as publicações impres-sas estimulam um verdadeiro procedimento de mise-en-abyme:nas orelhas dos livros de Santiago Nazarian, flagramos oautor em performances de bodyart salpicado de sangue ouapenas, mais pueril, com um fiapo de baba de iogurte escor-rendo pelo queixo, no romance cujo título sugestivo é Mas-

tigando humanos. Um romance psicodélico (!!). Ato per-formático confirmado pelo autor: “eu achei que o moldeideal do personagem seria eu mesmo... Eu procuro forta-lecer esse conceito de universo nazariano não só no conteú-do do livro, mas também nas capas, nas fotos de divulga-ção” (Santiago Nazarian em entrevista).

E que dizer então da provocante foto que toma toda acontracapa de Máquina de pinball de Clarah Averbuck?Como descobrir quem é a Clarah e quem é Lady Averbuckou Camila Chirivino? As personas, que vão se substituin-do umas às outras com a velocidade da bolinha do jogo,como sugere o título do livro, não encontram nenhum re-pertório de referência. A espetacularização elude a possi-bilidade de qualquer autenticidade:

Aqui você poderá me ver usando “eu” quantas vezespor parágrafo bem entender, sendo macho pra caralho, sen-do “guei” pra caralho, abusando de piadas internas, nãodormindo, utilizando caps indiscriminadamente, prague-jando, me referindo a mim mesma na terceira pessoa, mor-rendo de dor, afogando o Sôo, rindo da minha própria des-graça e achando tudo ótimo. Três vivas para o umbiguismo.(Clarah Averbuck, 2007-01-23, no blog)

13 “O mais difícil não é tomarpor reais entidades fictícias,mas reduzir ao estatutoficcional entidades que foramintroduzidas como reais.”

14 Jeremiah “Terminator” LeRoy

é o pseudônimo usado pelaautora americana LauraAlbert. “LeRoy” teriasupostamente nascido em31 de outubro de 1980, naVirginia, e sofrido váriosabusos durante a infânciae adolescência. Baseadonisso, seus livros seriamautobiográficos, mas umanotícia divulgada em outubrode 2005 plantou o boato deque J.T. LeRoy era uma farsacriada pela frustrada escritoraLaura Albert com o objetivode alcançar o sucesso. Emjaneiro de 2006, o jornal The

New York Times revelou quea pessoa que se apresentavacomo LeRoy é, na verdade,uma atriz e modelo, e sechama Savannah Knoop.Savananh é meio-irmã deGeoffrey Knoop, marido deLaura Albert, que a criaramem São Francisco. GeoffreyKnoop confirmou ementrevista recente que LeRoyé mesmo um personagem, eLaura Albert é a verdadeiraautora dos livros. Consultadoem: <http://pt.wikipedia.org/wiki/JT_LeRoy>.

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Se considerarmos as informações paratextuais, tam-bém não teremos melhor resultado. Depois da leitura da(im)provável história costurada por alguns ganchos, qua-se sempre viagens entre Rio, São Paulo, Porto Alegre eLondres, e descabelados envolvimentos românticos, lemosnum texto à maneira de nota ao final do livro:

a autora vendeu o corpo para comprar um laptop carinho-samente apelidado notebuck. É mentira, mas é tudo ver-dade. Qualquer semelhança com a realidade não terá sidomera coincidência. Dúvidas, consulte um advogado.(Averbuck, 2002, p.79)

É mesmo pelo fato de serem autores jovens, que nãopodem contar ainda com cacife biobibliográfico, que as even-tuais informações extratextuais com as quais o leitor possacontar (o próprio blog em que escrevem, como suporte deautopromoção, e as entrevistas de divulgação de seus li-vros) se transformam em um jogo de espelhos indecidível;afinal, como acreditar na sinceridade da performance?

Ele é bastante autobiográfico. Aquele apartamento éexatamente o apartamento em que eu morei em Porto Ale-gre. Inclusive, minha janela dava para o pátio do Inmetro.A rotina do personagem é a rotina que tive em alguns perío-dos da minha vida. Ele come o que eu como, veste-se comoeu me visto, pensa como eu pensaria. (Santiago Nazarian)15

Talvez, porém, a consideração mais interessante paranossa argumentação resida no fato de que a condição maisimportante para garantir o pacto ficcional, a “fantasia lúdicacompartilhada”, na opinião de Schaeffer, seja a mimese for-mal, a ponto de o crítico asseverar que para evitar o enga-no da má-leitura e o fracasso da ficção em Marbot bastariaque Hildesheimer não insistisse em estampar na capa dolivro, à maneira de um subtítulo, a palavra biografia semque fosse necessário mudar uma vírgula do próprio texto.

Na autoficção, é a burla à forma da mimese que seconstitui na condição mesma de existência da ficciona-lidade, uma vez que os blogs em sua definição são diários

virtuais, construídos cronologicamente mediante a possi-bilidade diária de atualização, e sugerem uma auto-expo-sição íntima, um escancaramento da subjetividade: “Masvocê só fala de si mesma! – Bom, queria que eu falasse doquê? De você?” (Clarah Averbuck, 2003-08-26, no blog).É essa condição de burla à mimese formal que leva LuizaLobo (2007, p.29) a falar em “autofalsasbiografias”, umavez que não é possível nenhum estatuto ontológico, nemdas personas, tampouco do autor.

Nesse sentido, a “evasão de privacidade” ocupa aomesmo tempo dois lugares incompatíveis: os posts falam otempo todo em primeira pessoa, são verdadeiras válvulasde escape do umbiguismo, mas não garantem a transparên-cia do eu que desaparece por trás de suas performances, con-figurando o movimento simultâneo de evocação e evasãode uma intimidade que faz vacilar o horizonte de expecta-tiva de seu leitor. A extensão dessa superfície de interseçãoé proporcional ao seu grau de ficcionalidade: “se um diaencontrasse meu anti-eu e morresse mas nada de mortesenão a do meu eu que só pensa em si enquanto ajudo esteaqui a matar o dele próprio” (Campos, 2000, p.31).16

O que garante o dispositivo da autoficção e sua legiti-midade é a própria desconsideração pelas condições apon-tadas por Schaeffer para caracterizar o estatuto da ficcio-nalidade, burlando as obrigações, os códigos que a regem.Nesse sentido, a autoficção propõe um novo pacto a fimde que possa ser ludicamente compartilhada, inscreve-seno paradoxo de uma representação que investe em umahistória factual (afinal, como é possível saber?) em pri-meira pessoa, revelando-se um engano, um fingimento deenunciados de realidade: “o mistério de me abandonar.Posso dedilhar novas lorotas para parecer uma escrita, umaprosa, um qualquer subtítulo novo de literatura” (MaraCoradello, no blog).17

Se entendermos o gênero como a “camada de redun-dância necessária para que o receptor tenha condições dereceber e dar lugar a uma certa obra” (Costa Lima, 2002,p.268), como um dos filtros possíveis pelos quais podemos

15 Santiago Nazarian, arespeito do personagem deseu livro, Feriado de mim

mesmo, em entrevista. Naorelha de se livro Mastigando

humanos, lê-se: “SantiagoNazarian é o jovem autordos romances Feriado de mim

mesmo, A morte sem nome e

Olívio, além de ter contospublicados em diversasantologias. Mora em SãoPaulo, é tradutor, roteirista,carnívoro moderado eherpetólogo amador”.

16 Simone Campos, carioca,publicou seu primeiro romanceaos dezessete anos, comsucesso de crítica e público.A partir daí, foi convidada aescrever contos para diversascoletâneas. O segundoromance saiu em 2006, apóscinco anos de trabalho,quando Simone estava com23 anos (conforme o blog).

17 “Mara Coradello não teriaa menor paciência paratentar seduzir leitores em suaminibiografia. Publicou, em2003, O colecionador de

segundos. Em 2004, participoude algumas coletâneas, entreelas, Prosas cariocas, Paralelos:

17 contos da nova literatura e

25 mulheres que estão fazendo a

nova literatura brasileira. Podeser lida no blog CadernoBranco, e fazer dessa páginaseu diário não é intenção dela.Mara Coradello não seconsidera uma escritora deinternet, simplesmente porqueescrevia nos caderninhosdesde que se entende porgente, nessa afirmação não hánenhum juízo de valor. Nomomento escreve um romanceque considera na verdade umahistória comprida. Está semeditora. E procura” (conformeo blog escritorassuicidas).

46 Revista Brasileira de Literatura Comparada, n.12, 2008 Autoficção e literatura contemporânea 47

nos perguntar como determinado discurso é reconhecidocomo literário, chegaremos mais perto de compreenderporque a autoficcção parece criar para si própria uma in-definição: as fronteiras entre o biográfico e o ficcional apa-recem aqui mescladas no seu limite, a desarticulação damimese formal (um diário? Então, é tudo verdade? Ou fic-ção, e tudo passa a ser inventado?) força os limites do ficcio-nal, pondo-o em xeque (isso é literatura?) e violentando ohorizonte de expectativas do leitor a fim de proposital-mente provocar o engodo que instaura a ficção.

A autoficção trabalharia assim para aprofundar a des-confiança platônica sobre a ficção e para desestabilizar oargumento aristotélico da impossibilidade de contamina-ção entre mimese e realidade. A estratégia da autoficção émesmo a de parasitar, contaminar, conspurcar a ficção coma hibridização de seus procedimentos de atuação:

Uma pessoa está desde semana passada tentando es-crever algo e nada sai. Nem burilar, essa arte esquecida,essa pessoa consegue. Essa pessoa queria ir para outra pes-soa, como quem compra um bilhete para a Espanha, entrarem outra pessoa, ficar uns dias lá vendo tudo que vê e sen-te essa outra pessoa, de fora e de dentro ao mesmo tempo.Nesse dia essa pessoa escreveria como ninguém. Porqueessa pessoa está cheia de seus assuntinhos de sempre, seustemas recorrentes e tem saudades de se impessoalizar. Sever num papel, principalmente se ver em outra pessoa.(Mara Coradello, no blog)

Assim, embora para a argumentação de Schaeffer sejaimprescindível que a ficção não se constitua como meroengodo, uma vez que isso arriscaria a ficção ao limite dafantasia, arriscaríamo-nos a dizer que a autoficção inscre-ve-se no território do próprio engano (leurre), indiciadonão apenas no próprio hibridismo formal da uma intimi-dade evadida, mas também na postura desnorteada do lei-tor que não sabe a quem ou a que confiar sua competênciade leitura, sendo justamente esse precário equilíbrio que alegitima como ficção, cujo “estatuto pragmático é radical-mente instável” (Schaeffer, 1999, p.144).

Sem dúvida, a autoficção é um conceito controversoe ambíguo, mas para quem apostava no declínio das escri-tas de si a virtualidade dos blogs vem lançar o desafio denovos dilemas capazes de falar de outros processos de cons-trução narrativa encenando o texto e as próprias subjeti-vidades: “Ainda não tenho coragem para falar de mim – equem tem?... Preciso de alguém que faça isso por mim”(Campos, 2000, p.70).

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SANTIAGO NAZARIAN: <http://www.santiagonazarian.blogspot.com>.

SIMONE CAMPOS: <http://www.simonecampos.blogspot.com>.

51

O espelho tem duas faces: a escritura de si àsombra do outro

Deise Quintiliano Pereira*

* Professora doutora do

Departamento de Letras

Neolatinas da Universidade

do Estado do Rio de Janeiro

(UERJ) – Rio de Janeiro (RJ).

RESUMO: Por intermédio do projeto autobiográfico sartriano, cuja

produção literária nos propõe inúmeras maneiras de “escritura

de si”, este trabalho traz à luz as discussões sobre a singularidade

e a alteridade, o eu e o outro, o “bio” e o “gráfico”, inscrevendo

nossa proposta de abordagem na verificação de como o percurso

escritural desse projeto nos permite passar em revista nuanças

que balizam a problemática identidade do escritor.

PALAVRAS-CHAVE: Autobiografia, gênese, escritura de si.

ABSTRACT: This paper, by means of the Sartrian autobiographic

project, which literary production propose us several manners

of “self-writing”, highlights debates on singularity and alterity,

myself and other, “bio” and “graph”, inscribing our proposal of

approach in verifying how the scriptural trajectory of this project

allow us to revisit the nuances that mark out the problematic

identity of the writer.

KEYWORDS: Autobiography, genesis, self-writing.

A gênese autobiográfica: o “bios”

e o “graphein”

As biografias compõem uma parcela significativa daprodução literária sartriana, propondo-nos diferentes ma-neiras de “escritura de si”. Dentre essas, destaco a novelaL’enfance d’un chef; o “diário de guerra”, os Carnets de la

drôle de guerre; as entrevistas autobiográficas; as biografiasde escritores; a narrativa autobiográfica, Les mots – in-titulada ao longo do decênio da gênese autobiográfica deSartre (1953-1963) – João Sem Terra, irmão do rei RicardoCoração de Leão. Com a elaboração desses textos, Sartre

52 Revista Brasileira de Literatura Comparada, n.12, 2008 O espelho tem duas faces: a escritura de si à sombra do outro 53

tenta responder à pergunta obsessiva que o leva a produ-zir biografias: como a alteridade, a investigação do outro,conduz à ipseidade, ao conhecimento de si mesmo? A im-precisão dos limites que cindem o “auto” do “biográfico”,na obra sartriana, começa a delinear-se com base numrelato do escritor, em carta enviada a Simone Jolivet, umanamorada da juventude: “Só consigo me interessar pelanarrativa da vida de grandes homens. Vou tentar encon-trar nelas uma profecia da minha própria vida” (Sartre,1983, p.14).

Mediante um rastreamento minucioso de suas múlti-plas facetas, os personagens nos quais o escritor busca essaresposta são sempre um ser privilegiado. Isso pode ser ve-rificado nas suas biografias de Flaubert, Baudelaire, JeanGenet, bem como nos ensaios sobre Mallarmé, Tintorettoe Leconte de Lisle. Em sua crítica literária, Alain Buisine(1988, p.54) reconhece o caráter de busca identitária quenorteia o projeto (auto)biográfico sartriano: “seja roman-cista ou pintor, poeta ou escultor, Sartre passa de um paraoutro apenas na esperança, infinitamente deceptiva e adia-da, de compensar seu próprio enfraquecimento identitário,construindo uma imagem de si mesmo aos seus própriosolhos”. Isso ocorre porque, para Buisine (1985, p.117),“toda pintura remete à crucial questão do [meu] auto-

portrait: uma situação verdadeiramente aterrorizadora vis-to que ela torna possível o fato de toda imagem olhadapor mim interrogar-me simultaneamente sobre minha pró-pria imagem”.

Tal afirmação permite-nos vislumbrar nos fundamen-tos do projeto (auto)biográfico sartriano um diálogo com aproposta de Montaigne de constituir um autoportrait. Toda-via, enquanto Montaigne se considera objetivamente, comose fosse “outro”, visando atingir o autoconhecimento, Sartreparte de um conhecimento mais universal do homem, istoé, da “realidade humana”, na tentativa de promover umaconsideração objetiva de sua própria singularidade.

Tamanha é a absorção de Sartre pela escrita (auto)bio-gráfica que uma análise mais detida desse modo literário de

expressão possibilitaria inferir, na trilha de Gerd Bornheim,(1998, p.26), que “todas as suas pesquisas são como apres-tos necessários para a exploração do fato biográfico”. Tam-bém, segundo Bornheim (1998, p.36), na obra de Sartre, asucessão de fatos e episódios exteriores transformam-se nocaudal de uma história viva, onde não se verifica “nemexterioridade inaugural, nem interioridade viciosa, mas oesforço de síntese entre o indivíduo e o século, o homem eo mundo”, esse homem sempre visto em situação.

Assim, Sartre confere à (auto)biografia um carátermais racional e científico, o que permite a Philippe Lejeunereconhecer nele o primeiro escritor a fundar a técnica dabiografia baseada na adoção de um método verdadeiramen-te original. De acordo com Lejeune (1995, p.202), Sartrecria novas estruturas narrativas que implicam uma reno-vação geral da antropologia e dos modelos de descrição eexplicação do homem.

O ponto de partida da tarefa (auto)biográfica sartriananão é a nostalgia da infância: “o leitor já deve ter compreen-dido que detesto a minha infância e tudo o que lhe dizrespeito”1 (Sartre, 1964, p.135). O que importa é sobre-tudo a preocupação teórica, a ambição sistematizante deum escritor que já refletia, desde sua primeira obra filosó-fica, La transcendance de l’ego, sobre a questão do sujeito.

Apoiada no engajamento, a concepção literária sar-triana prima pela objetividade e pela transparência: “a fun-ção de um escritor é chamar um gato de gato. Se as palavrasestão doentes, cabe a nós curá-las” (Sartre, 1948, p.281).Essa perspectiva insinua-se igualmente nos escritos (auto)biográficos do autor, nos quais a linguagem representa uminstrumento de apreensão da realidade. Nesse sentido, osCarnets de la drôle de guerre permitem a compreensão doestatuto maior que Sartre (1995, p.329) atribui ao projeto(auto)biográfico: “engajei-me numa forma de existênciafulgurante e um tanto excessiva, sem vida interior e semsegredos”.

O fascínio pela objetividade seria ainda referido noseu “Autoportrait à soixante-dix ans”:

1 Sartre aqui faz eco à fórmula

malrauxciana expressa em

Antimémoires: “Quase todos

os escritores que conheço

adoram sua infância, eu

detesto a minha” (Malraux,

1967, p.10), e até mesmo a

Gide (1952, p.62), em Si le

grain ne meurt: “Em vão,

busquei nesse passado uma

luz que permitisse iluminar

algum aspecto da criança

obtusa que eu era”.

54 Revista Brasileira de Literatura Comparada, n.12, 2008 O espelho tem duas faces: a escritura de si à sombra do outro 55

Acho que a transparência deve substituir completa-

mente o segredo. Sonho com o dia em que dois homens

não guardarão mais segredos um do outro porque não guar-

darão de ninguém. […] Cada um de nós deveria poder di-

zer, diante de um entrevistador, o que há de mais profundo

em si. [...] Eu tento ser o mais translúcido possível. [...] Eu

tento ser o mais claro possível com vistas a revelar inteira-

mente minha subjetividade. (Sartre, 1976, p.141-3)

Sartre parece, então, evocar um retorno ao “biográfi-co”, contra as conquistas da modernidade, isto é, a um“biografismo”, tributário da autenticidade e da veracida-de dos fatos narrados. Assim sendo, o escritor refutariahibridismos, polifonias e polissemias que são a marca deuma retórica biográfica contemporânea. Limitando-se aoexercício de acumulação de documentos exatos e verifi-cados, ordenados numa narrativa que conduz univo-camente do nascimento à morte, essa proposta cria certailusão retrospectiva: “Eis a miragem: o futuro mais realque o presente. Não é de se admirar: numa vida terminada,é o fim que consideramos a verdade do começo” (Sartre,1964, p.168-9).

Alain Buisine (1991, p.10), todavia, bem observa queo ecletismo pós-moderno enfraquece as defesas da his-toriografia “científica” e que de todos os questionamentoslançados, o sujeito não saiu intacto, nem idêntico a elemesmo:

O biográfico, pelo menos nas suas mais interessantes

experimentações contemporâneas, não esqueceu as lições

de nossa modernidade. […] O que me parece hoje decisi-

vo é que a autobiografia não é mais o outro da ficção. Não

há mais de um lado a imaginação romanesca, que se auto-

riza todas as invenções e do outro a reconstituição biográ-

fica laboriosamente obrigada a submeter-se à exatidão

referencial dos documentos. A própria biografia é produ-

tora de ficções, começando mesmo a compreender que a

ficcionalização faz parte do gesto biográfico.

Não são mais dicotomizadas, então, as distinções en-tre imaginação literária e documento autêntico (ou au-tenticidade), ficção romanesca e “verdade” de uma vida,intuições pessoais do biógrafo e revelações dos seus maispróximos, projeções (auto)biográficas e existência efetiva-mente vivida. As (auto)biografias refletem, dessa sorte, aimpossibilidade de limitar-se à esfera de acumulação docu-mental verídica, que vise à “une aveuglante vérité”, capazde refletir uma “translucidité totale”.

Uma análise mais detida da elaboração (auto)bio-gráfica sartriana demonstra que, progressivamente, o es-critor dribla a aparente ingenuidade de retorno a um para-digma de confissão rousseauísta, formidavelmente definidopor J. Starobinski (1971) em Jean-Jacques Rousseau: la

transparence et l’obstacle, onde é o desejo de transparênciaque institui o obstáculo mais contundente a um “dizer ver-dadeiro”: “quero mostrar aos meus semelhantes um ho-mem em toda a verdade de sua natureza; e esse homemserei eu. Apenas eu. Sinto meu coração e conheço os ho-mens” (Rousseau, 1959, p.5).

Sartre (1976, p.143-4) parece perceber essa impossi-bilidade, admitindo, em determinado momento, a MichelContat: “Tudo ver, ser inteiramente visto, […] como qual-quer um, tenho um fundo escuro que se recusa a ser dito –O inconsciente? – Absolutamente. Falo de coisas que sei...a gente não pode dizer tudo, você bem sabe”. Contrarian-do sua proposta inicial de transparência, o escritor revela-ria ainda: “como todo escritor, eu me escondo” (ibidem,p.105). Tal constatação insinua-se ainda na ficção sar-triana. Personagem de l’Age de raison, Mathieu vê ruir oprojeto de transparência total, numa reflexão sobre seurelacionamento com Marcelle:

Nós nos dizíamos sempre tudo, ele pensa. Marcelle

me dizia tudo, ah! [...] Ele estava lá, sentado na banqueta

do café, os olhos fixos no chão como se alguma coisa tives-

se se quebrado. Aconteceu, a conversa aconteceu. Nem vis-

to, nem ouvido, eu não estava lá, eu não soube de nada,

56 Revista Brasileira de Literatura Comparada, n.12, 2008 O espelho tem duas faces: a escritura de si à sombra do outro 57

[...] as palavras foram ditas. Eu não soube de nada. (Sartre,

1982, p.655-6)

Desmascarando as estratégias sartrianas de elabora-ção de um discurso confessional, Philippe Lejeune (1975,p.197-243) demonstra de que modo, em Les mots, o desejoassumido pelo autor de domínio total dos sentidos inau-gura uma modalidade (auto)biográfica – a “fábula teóri-ca”, governada por uma ordem dialética.2

Lejeune esclarece, também, como o desejo de trans-parência de “soi à soi” e “aux autres” implica, em Sartre(1971-1972), o resultado de uma reconstrução teórica. Aindagação sartriana que figura no incipit de L’idiot de la

famille “o que se pode saber de um homem hoje?” não é,então, válida apenas para a compreensão de Flaubert e desua biografia, mas para a definição de todo o projeto(auto)biográfico sartriano. O modo de compreensão de sique Les mots propõe revela-se, assim, indissociável das in-vestigações teóricas enunciadas na Critique de la raison

dialectique. Por isso, em oposição à noção de autobiografia,num sentido clássico, Serge Doubrovsky elabora o concei-to de “autoficção”, visando dar conta da dimensão fluidaque reveste os “fatos biográficos”.

Essas constatações levam ainda Doubrovsky (1991,p.19) a considerar que “o que era na autobiografiatradicional história, torna-se sutilmente, em Sartre, de-

monstração, os dois registros confundindo-se numa uni-dade indissolúvel”. A originalidade da proposta sartrianareside no fato de essa fusão ideal dos dois discursos tra-duzir-se numa impossibilidade assumida por Sartre (1976,p.146): “Les mots é uma espécie de romance também, umromance no qual acredito, mas que apesar de tudo conti-nua a ser um romance”.

O recurso à forma romanesca para a exploração dofato (auto)biográfico impossibilita sua inscrição como lu-gar de uma evidência, de uma transparência, da verdade:“um romance é o lugar de um discurso problemático que odomínio de nenhum sentido a priori poderia governar.Desde o início, o texto propõe uma leitura plural, irredu-

tível àquela que o escritor, em nome de uma ideologia,poderia tentar impor-lhe” (Doubrovsky, 1991, p.20).

Apesar da aparente dissonância no plano teórico, arealização concreta do projeto sartriano conforma-se àsaspirações de tal perspectiva (auto)biográfica, uma vezque o caminho de acesso à subjetividade, em Sartre, éintermediado pela construção ficcional. Em Saint Genet

comédien et martyr (Sartre, 1952, p.83), o escritor admite:“Isso aconteceu assim ou de modo diferente, com todaverossimilhança. Pouco importa: o que conta é que Genetviveu e não cansa de reviver esse período de sua vida comose tivesse durado apenas um instante”. O ficcionismo bio-gráfico insinua-se, igualmente, no estudo dedicado aFlaubert: “Eu confesso: isto é uma fábula. Nada prova quetenha acontecido assim. E pior ainda, a ausência dessasprovas – que seriam necessariamente fatos singulares –remete-nos, apesar da fábula, à esquematização, à gene-ralidade, minha narrativa aplica-se, assim, aos neófitosem geral, não a Gustave em particular” (Sartre, 1971-1972, p.139).

Essa posição corrobora a hipótese de que o biógrafosempre reinventa o biografado, sendo ainda ratificada porKerbrat (1997, p.29-30), ao afirmar que a autobiografianão tem meios para realizar sua promessa de exatidão, pre-tendendo ser exata sem possuir as condições de sê-lo.

Em suas recordações de guerra, Sartre assume resolu-tamente a defesa da ficção. Ao ler no jornal a crítica deEmile Bouvier, professor e crítico literário: “Duvido que oSr. Sartre torne-se um grande romancista, pois ele parecerejeitar o artifício e no artifício há arte”, o escritor reageviolentamente: “que idéia esquisita ele faz de mim, se acre-dita que rejeito o artifício. Ora bolas, bem sei que numromance é preciso mentir para ser verdadeiro. Mas adoroesses artifícios, sou mentiroso por gosto, senão não escre-veria nada” (Sartre, 1995, p.374-5).

Uma reversão radical opera-se, pois Sartre admite quea obra é capaz de rivalizar com a vida, podendo até mesmoesclarecê-la: “A obra nunca revela os segredos da biogra-

2 Para uma compreensão mais

apurada da análise de Lejeune,

aplicada à autobiografia

sartriana, proponho a leitura

dos seguintes textos: Le pacte

autobiographique (Lejeune,

1975), “Je est un autre”

(Lejeune, 1980), Moi aussi

(Lejeune, 1986), Les brouillons

de soi (Lejeune, 1998).

58 Revista Brasileira de Literatura Comparada, n.12, 2008 O espelho tem duas faces: a escritura de si à sombra do outro 59

fia, podendo ser apenas o esquema ou o fio condutor quepermite descobri-los na própria vida” (ibidem, p.109).Como observa Vincent Coorebyter (1998, p.108), o para-doxo do “mentiroso” força-nos a desconfiar dos modoscomo Sartre tentava compreender-se, descrevendo-se emdiferentes momentos da sua existência, a ponto de não sesaber mais “se o texto é um produto da vida ou a própriavida um produto do texto autobiográfico”. Aliás, AlainBuisine (1990, p.51, 52, 66) já havia lançado essa hipóte-se em “Naissance d’un biographe: Soldat Sartre, Secteur108”. Pura coincidência ou antecipação de fatos, os per-sonagens de La nausée prefiguram, em boa parte, o percur-so do homem Sartre: engajamento, prisão na guerra, fra-ternidade entre os prisioneiros, biografias etc.

Referindo-se ao seu estudo sobre Flaubert, Sartre con-cede, finalmente, que as biografias são articuladas como“des fictions vraies”, “des vérités fictives”: “Gostaria que les-sem meu estudo como um romance porque, de fato, é ahistória de uma aprendizagem que conduz ao fracasso detoda uma vida. Gostaria, ao mesmo tempo, que o lessempensando que é a verdade, que é um romance verdadeiro”(Sartre, 1976, p.94).

Numa entrevista concedida por ocasião da estréia deSéquestrés d’Altona, Sartre (1995, p.279) já defendia essaposição ao afirmar: “é a partir de pequenos acontecimen-tos verdadeiros que são inventados pequenos aconteci-mentos falsos”.3 Nas recordações de guerra, o escritor pre-nunciara a perda definitiva da “ilusão biográfica”: “Fuipenetrado até as vísceras do que chamarei ilusão biográfi-ca, que consiste em acreditar que uma vida vivida possaassemelhar-se a uma vida contada”.

Estatuto de verdade que subjaz à proposta autobiográ-fica,4 a promessa de definir-se com exatidão, numa repre-sentação fiel da realidade, não se coaduna com as premis-sas de autonomia e liberdade criadora, inerentes ao pactoliterário/ficcional. Nesse sentido, os diários e a autobiogra-fias revelam-se uma impossível via de acesso à subjetividade,pois, como afirma Kerbrat (1997, p.103): “a autobiografia

designa-se pelo seu título, ela é auto-referencial, é uma‘écriture de soi’, isto é, um modo de expressão que prestaconta da sua própria dificuldade de elaboração”.

Os escritos autobiográficos de Sartre são acompanha-dos, ratificados e até mesmo desmentidos por um sem-nú-mero de entretiens recolhidos e registrados, às vezes filma-dos, por aqueles que lhe são mais próximos. Esse conjuntode textos é acrescido de manuscritos, fichas, dossiês, fo-lhas soltas, folhas esparsas datilografadas e fotocópias, pro-duzidas durante o que se convencionou denominar o de-cênio autobiográfico sartriano (1953-1963).

O resultado dessas elaborações surge num texto finalpublicado em capítulos, em 1963, na Revista Les Temps

Modernes, e compilado, no ano seguinte, no livro Les mots,pela editora Gallimard.5 As questões de método, com asquais Sartre se ocupava há muito tempo, são sintetizadas,de maneira original, em Les mots. O romance desenvolve-se num processo dialético que marca, paradoxalmente, adependência e a independência de Sartre com relação àhistória, o que ressalta a potência verdadeiramente originaldesse projeto. A gênese narrativa da história de Poulou –cognome do jovem Sartre – inscreve-se no âmago de umacerta burguesia e de suas representações sociais e cultu-rais. Como afirma Burgelin (1994, p.32), a história, sob apena de Sartre, não é nem rigorosa no detalhe, nem cro-nologicamente correta, mas o sentimento de viver na his-tória, de ter uma relação substancial e alimentadora comela, faz parte do húmus sartriano.

É preciso passar pela Alsácia de 1850 para se com-preender a história de Sartre, e a tistória oferece-lhe osrecursos da construção de um romance e de um mito. Essaé a extraordinária démarche sartriana, na elaboração deLes mots – fundar seu próprio mito –, um mito inexora-velmente ligado à narrativa das origens.

Assim sendo, em Les mots, Sartre faz-se mitólogo desua infância. É esse estatuto de mito que dá à narrativasua tonalidade, oscilando incessantemente entre a inge-nuidade de um discurso aparentemente infantil, forjado

3 Le Monde, 17 de setembro de

1959, entrevista concedida a

Claude Sarraute.

4 Inúmeras são as discussões

teóricas que envolvem a

ficcionalização das biografias e

os tênues limites que dissociam

(ou associam) ficção e

realidade no pacto literário.

A esse respeito, remeto aos já

referidos textos de Philippe

Lejeune (1975; 1980. 1986;

1998), bem como a Paul de

Man, “Autobiography as

De-facement” in The rhetoric

of romantism (1984); Linda

Hutcheon, A poetic of

postmodernism: history, theory,

fiction (1988) e ainda às

pertinentes análises sobre o

romance biográfico de M.

Bakhtin, Esthétique de la

création verbale (1984,

p.221ss.), e Esthétique et théorie

du roman (1978, p.237-398).

5 Existe uma gravação do

texto integral de Les mots,

interpretado por Michel

Bouquet, com uma introdução

falada de Arlette Elkaïm-

Sartre, filha adotiva do autor,

datada de 1988, distribuída

em cinco audiocassetes, com

duração de 6h e 30 min.,

distribuidora Auvidis.

60 Revista Brasileira de Literatura Comparada, n.12, 2008 O espelho tem duas faces: a escritura de si à sombra do outro 61

por um escritor adulto, e a astúcia de uma construçãomental fortemente articulada, perpassada, no seu eixo ver-tical, por uma gênese (auto)biográfica expressa pela análi-se do “retrato” de artistas mortos, no sentido lato e sartrianodo termo.

O lógos epitáphios na espectralidade escritural

A morte como idéia, como imagem, como discurso éum dos temas recorrentes no projeto (auto)biográficosartriano, incidindo particularmente em Les mots: “A mor-te era minha vertigem porque eu não amava viver: é o queexplica o terror que ela me inspirava. Identificando-a àglória, convertia-a em minha destinação. Quis morrer”(Sartre, 1964, p.157). Nas recordações do narrador, os li-mites que separam a vida da morte são tênues: “vive-se,morre-se, não se sabe quem vive ou quem morre; umahora antes da morte, ainda se está vivo” (ibidem, p.160).

Os traços, as marcas, as faces da morte são significantesengendrados de modo decisivo na urdidura dos escritossartrianos. Seria possível, então, identificar o aspecto emi-nentemente testamentário como elemento que fundamen-ta essa obra. O estudo de Alain Buisine (1986, p.17-37)reforça essa leitura ao demonstrar as relações metafóricasque podem ser estabelecidas entre o livro e o túmulo, abiblioteca e o cemitério, o literário e o funerário. No própriojulgamento do ato crítico, segundo Buisine, a dimensãotanatográfica da escritura sartriana pode ser vislumbrada:“a maioria dos críticos são homens que não tiveram muitasorte e que no momento em que iam se desesperar, encon-traram um lugarzinho tranqüilo de vigia de cemitério. Deussabe se os cemitérios são aprazíveis: não há nenhum maisdivertido do que uma biblioteca” (Sartre, 1948, p.77).

A narrativa (auto)biográfica deixa transparecer igual-mente o aspecto mortuário que repousa sob a face sagradados “objetos culturais”. Esses são reverenciados e manipu-lados por Karl com uma “destreza de oficiante”, na “biblio-teca-sarcófago”, assim descrita pelo narrador:

Eu ainda não sabia ler e já reverenciava essas pedraserigidas: em pé ou inclinadas, apertadas como tijolos nasprateleiras da biblioteca ou nobremente espacejadas em aléiasde menires, eu folgava num minúsculo santuário, circunda-do de monumentos atarracados, antigos, que me haviamvisto nascer, que me veriam morrer. (Sartre, 1964, p.35-6)

Ambas as referências convergem para a identificaçãodo livro e da biblioteca como símbolos funerários e do es-critor como uma voz que se eleva de um além-túmulo:

O livro, com efeito, não é absolutamente um objeto,muito menos um ato, nem mesmo um pensamento: escritopor um morto sobre coisas mortas, ele não tem mais ne-nhum lugar na face da terra, [...] restam apenas manchas detinta sobre o papel mofado e quando o crítico reanima essasmanchas, quando ele as transforma em cartas e palavras,elas lhe falam de paixões que ele não sente, de raivas semobjeto, de temores e esperanças fúnebres. (Sartre, 1948, p.78)

Essa hipótese é comprovada pela semiótica funeráriade Jean-Didier Urbain (1978, p.197-8): “da Holanda àEspanha, de Portugal à Itália, na França, na Áustria, naAlemanha, em bronze, em pedra, em mármore, em azule-jos multicoloridos, fechado ou aberto, o livro, como sím-bolo funerário, é muito difundido”. A voz do soldado Sartreincorpora-se a esse discurso: “para mim, um livro lido éum cadáver. Só resta jogá-lo fora” Sartre (1995, p.486)

A fusão do escritural com o sepulcral faz-se tambémnotar nos textos (auto)biográficos sartrianos. Na home-nagem a Baudelaire, Sartre (1947, p.237) anuncia inces-santemente como a trajetória do poeta reflete uma morteque não cansa de retornar: “lançando-se de uma únicavez e para sempre no plano reflexivo, Baudelaire escolheuo suicídio simbólico, ele se mata rapidamente”.

Recolhido sob o título Mallarmé – la lucidité et sa face

d’ombre, o esboço da biografia sartriana sobre Mallarméexalta no fazer poético desse “maníaco desesperado” asimbologia da “decadência” e da “queda”, que também re-mete à idéia da morte: “dir-se-ia que a poesia negativa do

62 Revista Brasileira de Literatura Comparada, n.12, 2008 O espelho tem duas faces: a escritura de si à sombra do outro 63

segundo Império escolheu esse extremista para realizar neleseu suicídio solene” (Sartre, 1986, p.83).

Pintor de uma cidade já morta, o canto dirigido aoTintoretto – “Le séquestré de Venise” – não é menos fu-nesto: “porque mais tarde, Veneza arranjou tudo paramarcar uma criança por sua velhice futura. Nada aconte-ce e nada permanece, o nascimento é o espelho da morte”(Sartre, 1964, p.293-4).

Os símbolos da morte disseminam-se, igualmente, emprofusão, no ensaio crítico sobre Jean Genet: “suas obrassão mediações da morte; a singularidade desses exercíciosespirituais é que eles quase nunca dizem respeito à sua mor-te futura, a seu ser-para-morrer, mas a seu ser-morte, à suamorte como acontecimento passado” (Sartre, 1952, p.10).Essas considerações levam Jean Cocteau a vislumbrar notexto sartriano a canonização precoce de Genet, sendo re-ferida por Annie Cohen-Solal (1985, p.413): “Só se cano-niza um ser póstumo. Genet foi embalsamado bem vivo”.

No resgate do “homem” Gustave, o aspecto mortuáriorevela sua face mais macabra: “A conseqüência disso, cu-riosamente, é que ele nunca teve muito medo de morrer.O que ele poderia temer se isso já tinha acontecido?”(Sartre, 1971-1972, p.476).

No prefácio do romance Aden Arabie (Nizan, 1932),de seu amigo Paul Nizan, o lugar do autor é definido porSartre em razão de sua identidade póstuma. Segundo essaidentificação, a vida apenas reedita todas as possibilidadesda morte: “ele tinha fogo, paixão e além disso aquele olharimplacável que petrificava tudo. Nizan para julgar-se nodia-a-dia havia se situado do outro lado de seu túmulo”(Sartre, 1964, p.106).

Não se limitando aos escritos (auto)biográficos, asimbologia da morte é um fio que se emaranha à tecelagemdos textos sartrianos, de maneira obsessiva, conforme per-mitem-nos concluir as leituras de Huis clos, Morts sans

sépulture, La mort dans l’âme, Le mur, Les mains sales, Les

mouches, além de uma peça de juventude, elaborada du-rante a “drôle de guerre”, com o sugestivo título J’aurai un bel

enterrement (“Terei um belo enterro”) (Cohen-Solal, 1985,p.119). Tantas convergências, e outras tantas que poderiamser ainda aqui evocadas, encontram sua melhor expressãonas palavras de Alain Buisine (1986, p.19), para quem:

Sartre faz de cada um de seus leitores um necrófilo empotencial. Nesse sentido, a multidão que se espreme noseu funeral assiste ao coroamento propriamente literárioda sua carreira: seu cadáver constituindo possivelmente suaobra mais explícita, a que menos exige comentários já queseu corpo identifica-se enfim com seu corpus. É precisocompreender o enterro de Sartre como uma leitura públi-ca na qual o escritor conseguiu fazer de sua morte sua últi-ma obra publicada.

Por isso é que, para Buisine, o emprego do termo “bio-grafias” é inadequado para definir o conjunto de estudossartrianos dedicado a escritores. Melhor seria defini-locomo “pseudobiografias”, porquanto os personagens bio-grafados revivem continuamente a sua própria morte.

O projeto (auto)biográfico sartriano, como as biogra-fias em geral, está, assim, intimamente associado ao elogiofúnebre e à retórica do epitáfio. Essa perspectiva encontraeco nas palavras de Derrida (1988, p.44), numa das con-ferências proferidas in memoriam a um amigo: “a palavra ea escritura funerárias não viriam após a morte, elas traba-lham a vida naquilo que chamamos autobiografia. E issoacontece entre ficção e realidade”. Dessas reflexões resul-ta que, em todo o projeto (auto)biográfico sartriano, a gran-de homenagem dirige-se fundamentalmente à morte, oumelhor, à glorificação da própria morte.

A idéia de glorificação mediante a própria morte e dasalvação pela lembrança póstuma insiste e persiste nos fiosnarrativos de Les mots: “ignorado, abandonado, que delí-cia em converter-me em Grisélidis, em vagar pelas ruas deParis sem duvidar um só minuto de que o Panthéon meespera” (Sartre, 1964, p.144).

Numa entrevista concedida a Madeleine Chapsal, oescritor explicita sobre que bases se fundava o projeto deimortalidade de Poulou:

64 Revista Brasileira de Literatura Comparada, n.12, 2008 O espelho tem duas faces: a escritura de si à sombra do outro 65

A vida terrestre é um período de provas para merecera glória celeste. Isso pressupõe obrigações precisas, ritos aobservar. [...] Eu pegava tudo isso e transpunha tudo emtemos de literatura: seria desconhecido toda a minha exis-tência, mas merecia a vida eterna por minha aplicação emescrever e por minha pureza profissional. Minha glória deescritor começaria no dia de minha morte. (Sartre, 1972,p.32-3)

Morto-vivo, pelo status de escritor e pelo “reconheci-mento” da posteridade, Poulou ultrapassaria a fantasma-goria maior que assombrava sua existência:

Essa vida que eu considerava fastidiosa e que eu sou-bera apenas tornar instrumento de minha morte, eu a re-montava em segredo para salvá-la ; eu a encarava atravésdos olhos futuros e ela me surgia como uma história tocan-te e maravilhosa, que eu vivera por todos, que ninguém,graças a mim, precisava mais reviver e que bastaria contar.(Sartre, 1964, p.162)

Vertiginosamente, morte e vida confundem-se nas re-cordações do narrador: “Fi-lo com verdadeiro frenesi: es-colhi como porvir um passado de grande morto e tenteiviver ao revés. Entre nove e dez anos, tornei-me completa-mente póstumo” (ibidem, p.162). Pela problemática da philía

desvelam-se, pois, sentidos que norteiam o projeto (auto)biográfico sartriano, os quais se inscrevem na tentativa defazer equivaler vida e morte, pelo elogio fúnebre – pelo(auto)epitáfio.

No texto Ecrire pour son époque, a metáfora do heróide Maratona é significativa para justificar a permanênciado escritor em vida, por intermédio de sua obra: “Disse-seque o mensageiro de Maratona estava morto uma horaantes de chegar a Atenas. Ele estava morto e ainda corria;ele corria morto, anunciando, morto, a vitória da Grécia.É um belo mito que mostra que os mortos agem, ainda umtempinho, como se vivessem”.6

Com efeito, como nos lembra Buisine (1986, p.21), sóhá para Sartre escritura póstuma, “saudades eternas”, pala-

vras que figuram freqüentemente nos livros de cemitério.Por isso é que “estar morto é a única maneira propriamen-te sartriana de viver” (ibidem, p.23). Para Sartre, nasci-mento e morte representam, assim, duas faces de uma mes-ma moeda, conforme o escritor esclarece no ensaioinacabado sobre Mallarmé: “A vida, só há uma para a fa-mília, repassada de geração para geração. O destino dorecém-nascido fixa-se nesse ponto, de maneira que não sesabe mais se se festeja um nascimento ou uma morte”(Sartre, 1986, p.85).

Suas reflexões filosóficas seguem essa mesma direção:“a morte é um puro fato, como o nascimento, ela vem anós pelo exterior e nos transforma em exterioridade. Nofundo, ela não se distingue absolutamente do nascimentoe é essa identidade do nascimento e da morte que denomi-namos facticidade” (Sartre, 1943, p.604). O relato do sol-dado Sartre liga-se a essa reflexão: “Essa vida era uma com-posição em forma de rosácea na qual o fim encontrava ocomeço” (Sartre, 1995, p.276). Essa interpretação seduz-me a insistir, uma vez mais, na relação entre o projeto (auto)biográfico sartriano e o título original de Les mots, fortale-cendo o seu significante acústico: “João Se Enterra”.

A glória literária de Sartre realiza-se, portanto, noprojeto da “criança imaginária”, da criança-defunto quevive somente sob o sursis da imaginação: “o estatuto ima-ginário dessa criança é que ela não existe, nunca existiu enão poderia nunca existir. A criança imaginária simbolizaa criação do imaginário. E o imaginário marca a transfor-mação do mundo em idéia” (Miething, 1989, p.159). Namaterialidade textual, o projeto (auto)biográfico sartrianocorporifica-se, teatralizando a presença da morte na con-tingência da vida, inscrevendo na morte de Narciso, onascimento de um escritor-póstumo, que reedita o jogosartriano do “quem perde ganha”.7

Glorificada pelo (auto)epitáfio e mediada pelo pro-cesso de leitura, essa vitória implicaria a ressurreição doautor, conforme demonstra a semiótica funerária de Jean-Didier Urbain (1978, p.199):

6 Cf. Temps Modernes, junhode 1948, compilado no artigo“Écrire pour son époque” inLes écrits de Sartre (Contat &Rybalka, 1970, p.676).

7 O tema do “quem perdeganha” é recorrente nosescritos de Sartre,explicitando-se, notadamente,no capítulo da análisesartriana de Flaubert,intitulado “Le qui perd gagnecomme attente du miracle”(cf. Sartre, 1971-1972,p.2070). Ainda jovem, oromancista-amador Sartre jáescrevia ao término de cadacapítulo: “No fundo, suaderrota era uma vitória”(Cohen-Solal, 1985, p.113).

66 Revista Brasileira de Literatura Comparada, n.12, 2008 O espelho tem duas faces: a escritura de si à sombra do outro 67

Somos apenas algumas frases no Livro da vida. […]Depositado sobre o túmulo, pequeno paralelepípedo, ele con-

tém a vida. O livro factício fechado […] é, incontestavel-mente, uma metáfora miniaturizada do ataúde. Com o li-vro factício aberto, chega-se à leitura, a leitura do nome, dosobrenome, dos elos de parentesco, do retrato. […] Pode-se dizer que o livro aberto é a expressão metafórica do caixão

ou do túmulo aberto: a leitura é “isomorfa à ressurreição”.

Em todo o projeto (auto)biográfico de Sartre, insi-nua-se, assim, uma representação teatral, em que a ence-nação da morte metaforiza o caráter funesto da vida, po-dendo ser sintetizada na cena final de Huis clos – na qualse identificam, finalmente, a morte sempre adiada daque-la já experimentada:

INES, debatendo-se e rindo.Que é que você está fazendo? Que é que você está fazen-do? Está louca? Não sabe que estou morta?ESTELLEMorta?(Deixa cair a faca de cortar papel. Um tempo. Inés apanha-a e

põe-se a golpear-se com raiva.)

INESMorta! Morta! Morta! Nem a faca, nem o veneno, nem aforca. Está tudo acabado, compreende? E estamos juntospara sempre. (Ri.)

ESTELLE (numa gargalhada)

Para sempre, meu Deus! Que engraçado! Para sempre!GARCIN (que ri, olhando as duas)

Para sempre.(Caem sentados cada qual sobre o seu sofá. Um longo silêncio.

Deixam de rir e entreolham-se. Garcin levanta-se.)

GARCINPois é, continuemos!CAI O PANO

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Subjetividade e o escrever, um ensaiosobre a experiência literária

Leonardo Pinto de Almeida*

RESUMO: Este artigo objetiva analisar a relação entre a subjeti-

vidade e a experiência literária em sua prática escrita. Para tan-

to, observamos as vicissitudes da escrita literária seguindo as

reflexões de Michel Foucault e Maurice Blanchot acerca do

tema. Com isso, indicamos duas figuras representativas dessa

prática: o escritor e o autor, para construir um modo de com-

preensão acerca da subjetividade literária. Concluímos que o

escritor é produzido com o seu encontro com o próprio escre-

ver, enquanto o autor seria um índice discursivo inventado pos-

teriormente à experiência para produzir o controle discursivo.

A experiência literária seria então um lugar privilegiado para

analisarmos a produção de subjetividade no seio da experiência.

PALAVRAS-CHAVE: Subjetividade, experiência literária, escrita.

ABSTRACT: This paper aims to analyze the relation between the

subjectivity and the literary experience in its written practical.

For in such a way, we observed the destins of the literary writing

following the Michel Foucault´s and Maurice Blanchot´s

thought concerning this subject. With this, we indicated two

representative figures of this practical: the writer and the au-

thor, to understand the literary subjectivity. We concluded that

the writer is produced with its meeting with the proper act to

write, while the author would be a discoursive index invented

later to the experience to produce the control. The literary ex-

perience would be then a privileged place to analyze the pro-

duction of subjectivity in the experience.

KEYWORDS: Subjectivity, literary experience, writing.

Introdução

A intuição foucaultiana sobre as questões da lingua-

gem se complexifica em textos que visam lidar com o pro-

* Doutor em Psicologia pela

Pontifícia Universidade

Católica (PUC) – Rio de

Janeiro (RJ).

70 Revista Brasileira de Literatura Comparada, n.12, 2008 Subjetividade e o escrever, um ensaio sobre a experiência literária 71

blema da subjetividade. Em “La pensée du dehors”, escri-to em que analisa algumas marcas do pensamento deMaurice Blanchot, Foucault (1966) argumenta que a re-flexão sobre o ser da linguagem aponta para o apagamentodo agente subjetivo. Questão bastante complicada paraum certo humanismo vigente até os dias de hoje!

Foucault (1966, p. 525) mostra como um exame apu-rado do ser da linguagem foi, ao longo da história, preteri-do, pelo fato de que “l’être du langage n’apparaît pour lui-même que dans la disparition du sujet”.1 O ser da linguagemé uma repetição que se manifesta de inúmeras maneiras apartir de reduplicações, de dobras do ser da linguagem so-bre si. O suposto agente da escrita seria atraído por essemovimento repetitivo e, nesse modo de experienciar a lin-guagem, teria sua existencialidade dissolvida, constituin-do-se como apenas mais uma das saliências dessas dobrasde linguagem. Saliência de dobras, ponto de interseção deforças reativas e ativas no seio do escrever.

Como, no entanto, poderíamos entender esse desapa-recimento do sujeito na manifestação do ser da linguagemque escolhemos como objeto de estudo: a literatura? Comopoderíamos entender a prática do escrever e suas figurasrepresentativas: o escritor e o autor?

A experiência literária

Quando somos levados pelo movimento derradeiro doescrever, as palavras se manifestam, tomam corpo em ex-pressões de linguagem. As palavras, de certa forma, fil-tram idéias, apuram os elementos impuros do pensamen-to. Elas transgridem os liames suaves impostos pelapresença viva e desconcertante da linguagem. No entanto,deixam marcas – representadas pelos tipos negros, impres-sos no papel em branco – que são como limites imanentesao ato de escrever. As idéias filtradas se ordenam sob acelulose inerte do papel. O escrever seria, então, uma ex-periência em que encontramos a transgressão e o limitecomo movimentos imanentes a esse ato. Com isso, como

poderíamos pensar a subjetividade, relacionando-a ao es-crever? Como entenderíamos essa busca constante – liga-da à literatura – e as relações tecidas com as figuras doescritor e do autor? Ou, dito em poucas palavras: Quaisseriam as vicissitudes que levam a emergência da subjeti-vidade literária na experiência escrita?

Consideramos que a literatura se caracterizaria poruma escrita abandonada a si mesma, em sua busca equestionamento constantes. Nela, podemos notar umaescrita que tem como fim ela mesma, não havendo ne-nhum objetivo prévio a ser seguido, nem uma tradição aser repetida. São belas as palavras, empregadas porMarguerite Duras (1993, p.65), em seu livro Écrire, quan-do mostra que:

Il y a une folie d’écrire qui est en soi-même, une folie d’écrirefurieuse mais ce n’est pas pour cela qu’on est dans la folie. Aucontraire. L’écriture c’est l’inconnu. Avant d’écrire on ne sait riende ce qu’on va écrire. [...] Si on savait quelque chose de ce qu’onva écrire, avant de le faire, avant d’écrire, on n’écrirait jamais.2

A loucura da escrita levaria o sujeito para uma zonadesconhecida. Como saber o que escrever, se não há ne-nhuma palavra antecedente a ser repetida no movimentoda criação literária? O escritor deve ser tomado pela escri-ta! Escrever junto ao vazio, escrever com o vazio, ou seja,descobrir a resposta à pergunta por que escrever?, escre-vendo. Paradoxo interminável que se nutre do próprio atoe de sua pesquisa incansável, como mostra Robbe-Grillet(1965, p.152), em Por um novo romance, quando afirmaque “o romance moderno, [...], é uma pesquisa, mas umapesquisa que sucessivamente cria ela mesma as suas pró-prias significações”.

Quando pensamos na busca literária, podemos refletirque, se a literatura tem sua essência no próprio escrever –negando assim toda idéia de estabilidade ligada às noçõesde tradição e fundamento –, aquele que escreve não podeser o índice de explicação da literatura, já que, muitas ve-zes, esse só escreve por não saber o que dizer.

1 “o ser da linguagem aparecepor ele-mesmo somente nodesaparecimento do sujeito”.

2 “Existe uma loucura deescrever que está em si mesma,uma loucura de escreverfuriosa, mas não é por isso queela estaria na loucura. Aocontrário, a escrita é odesconhecido. Antes deescrever, não sabemos nadadisto que vamos escrever. Sesoubéssemos alguma coisasobre isto que iremos escrever,antes de fazer, antes deescrever, nuncaescreveríamos.”

72 Revista Brasileira de Literatura Comparada, n.12, 2008 Subjetividade e o escrever, um ensaio sobre a experiência literária 73

Em relação a essa questão, vemos na obra blanchotianainúmeros indicativos que assinalam esse fato. Em “O pa-radoxo de Aytré” – texto contido em A parte do fogo –quando analisa a relação entre o desmoronamento da lin-guagem e a literatura, Blanchot (1997, p.73) afirma que:

O escritor nem sempre inicia com o horror de um cri-me que lhe faria sentir sua instabilidade no mundo, masele não pode sonhar em começar de outro modo senão porcerta incapacidade de falar e de escrever, por uma perda depalavras, pela própria ausência dos meios que tem em su-perabundância. Desse modo, lhe é indispensável sentir pri-meiro que ele não tem nada a dizer.

O desmoronamento é o índice de que o estereótipo esua linguagem rígida começam a falhar com a literatura.O escritor é levado a escrever sem saber o que dizer e,mais ainda, sem saber até onde isso o levará. Muitas vezes,pedimos que um autor comente seu texto e observamosque sua resposta soa derrisória ou até descabida. Robbe-Grillet (1965, p.14), com sua sutileza peculiar, salienta umfato que talvez possa ajudar-nos a entender por que umautor falando de sua obra soe tão mal:

Ante semelhantes questões, dir-se-ia que a sua [inte-ligência] já não lhe serve de nada. O que ele quis fazer foiapenas o próprio livro. Isto não quer dizer que se agradesempre dele; mas a obra continua a ser, em qualquer caso,a melhor e a única expressão possível do seu projecto. Setivesse sido capaz de lhe dar uma definição mais simples,ou reduzir as duzentas ou trezentas páginas a qualquermensagem em linguagem clara, explicar palavra por pala-vra o seu funcionamento, em suma, justificá-lo, não teriasentido necessidade de escrever o livro. Pois que a funçãoda arte nunca é ilustrar uma verdade – ou mesmo umainterrogação – previamente conhecida, mas formular aspróprias perguntas.

Por meio desse trecho de Por um novo romance, pode-mos ressaltar, então, que o mal-estar causado pelo comen-

tário do artista que explica sua obra é sentido, no caso,pelo simples fato de que, se ele realmente soubesse porque a escreveu, não haveria escrito, pois a literatura colo-ca tudo em questão: a existência do homem, das coisas eda própria linguagem.

Em O espaço literário, Blanchot (1987) mostra que aescrita literária e aquilo que chamou de a solidão da obraapontam para um desaparecimento. A solidão da obra ar-rastaria o “eu” para o fora – vazio de onde brotam as pro-duções linguageiras – e transforma o sujeito que ali mer-gulha. Pensando sobre a experiência literária, ele – ao longode sua obra – salienta ser ela uma experiência total.

O sujeito é atraído pela questão do escrever, defron-tando-se com o abismo da linguagem. Ela não se estabiliza-ria, pois a estabilidade aponta para uma captura – um me-canismo transcendente de apreensão – da criação. Blanchot(1987, p.31), ao se indagar sobre a experiência de Mallarmé,indica que o poeta se confronta com a morte – com o vazioda linguagem proporcionado pela morte de Deus – ao son-dar o verso:

Quem sonda o verso deve renunciar a todo e qualquerídolo, tem que romper com tudo, não ter a verdade porhorizonte nem o futuro por morada, porquanto não temdireito algum à esperança, deve, pelo contrário, desesperar.

Podemos ver nessa bonita passagem que o escritor élevado no momento da escrita para uma experiência radi-cal em que nada estaria garantido. O escritor atraído pelofora – pelo vazio da linguagem – encontra-se desesperado,ou, para usar as palavras de Marguerite Duras (1993, p.38),abandonado ante a tarefa de criar:

L’écriture a toujours été sans réferénce aucune ou bien elleest... Elle est encore comme au premier jour. […] Donc c’esttoujours la porte ouverte vers l’abandon. Il y a le suicide dans lasolitude d’un écrivain. On est seul jusque dans sa propre solitude.Toujours inconcevable. Toujours dangereux. Oui. Un prix àpayer pour avoir osé sortir et crier.3

3 “A escrita teria sido sempresem referência nenhuma, ouentão é... Ela é ainda como noprimeiro dia. Logo, ela ésempre a porta aberta aoabandono. Há o suicídio nasolidão do escritor. Estamossós até em nossa própriasolidão. Sempre inconcebível.Sempre perigosa. Sim. Umpreço a pagar por ter ousadosair e gritar.”

74 Revista Brasileira de Literatura Comparada, n.12, 2008 Subjetividade e o escrever, um ensaio sobre a experiência literária 75

Abandono inquestionável: o escritor se encontra dian-te de um mar aberto, pois tudo está em jogo: a linguagem,o homem e as coisas. A literatura abriria um espaço, noseio das dobras de linguagem, em que o escritor é levado aformular os pensamentos que darão luz à obra ao longo daexperiência total do escrever. Essa experiência coloca emquestão o próprio sujeito que escreve. Em uma entrevistacedida a Dominique de Roux, Gombrowicz (1996, p.50)exemplifica esse problema em poucas palavras:

À dire vrai l’artiste ne pense pas, si par le mot « penser »l’on entend l’élaboration d’un enchaînement de concepts. En luila pensée naît du contact avec la matière qu’il forme, commequelque chose d’auxiliaire, comme l’exigence de cette matièremême, comme l’exigence d’une forme en train de naître: il s’agitde réussir l’oeuvre, de la rendre apte à vivre, ce n’est pas devérité qu’il s’agit. Mes « pensées » se formaient en même tempsque mon oeuvre, dans une symbiose quotidienne avec son mon-de, qui, lentement, se révélait.4

A escrita e o escritor se formam conjuntamente nocontato, no encontro que se estabelece entre eles, na ex-periência total da escrita literária. A literatura, então, seformaria, ao longo do escrever, criando seus códigos, seuspensamentos, seus limites e seu suposto agente. Partindodessa idéia referente à experiência literária, como podería-mos pensar o encontro literário e sua relação com a subje-tividade? Existiria alguma diferença entre as figuras doescritor e do autor?

Morte do autor ou morte do escritor?

O espaço literário, aberto pela morte de Deus, nos co-loca uma questão importante: Já que a literatura não re-pete, não relata algo que a precederia, e sim ela é umaexperiência radical que se caracterizaria como um encon-tro com o abismo das palavras e das referências, qual seriao agente da escrita literária? Questão mais complicada doque aparenta ser!

Nietzsche (2002, p.156), em um belíssimo aforismo,coloca em evidência o problema relativo às categorias desujeito e agente:

O que nos dá a extraordinária firmeza da crença nacausalidade não é o grande hábito da seqüência de even-tos, porém a nossa incapacidade de conseguirmos inter-pretar um acontecimento de outro modo que não seja comoum acontecer a partir de intencionalidades. É a fé no vi-vente e pensante como o único agente atuante – na vonta-de, na intencionalidade –, de que todo acontecer seja umagir, de que todo agir pressuponha um agente atuante: é acrença no “sujeito”. Será que essa crença no conceito desujeito e de predicado não [é] uma grande b...?

Nutrindo-se dessa crença no sujeito que pressupõe umagente da ação, os estudos literários e psicológicos cons-truíram o conceito de autoria. Seguindo a lógica decor-rente desse pensamento, o autor seria a verdade da obra.Mas como se poderia conjeturar a verdade da obra literá-ria? E mais ainda: como intuir que, sabendo as vicissitudesda vida do sujeito escritor, desvelaríamos o que a obra querilustrar? Movimento complicado que rendeu inúmerosacontecimentos históricos até a figura autoral ser inven-tada e estabelecida!

Foucault (2001b), naquela conferência de 1969 sobreo autor, apresenta uma reflexão que se debruça sobre ascaracterísticas principais da autoria, passando pelas ques-tões relativas às noções de obra, escrita, referência, inven-ção, e assim por diante.

Neste artigo, aprofundar-nos-emos, na questão da di-ferenciação entre a figura autoral com sua mitologia de-corrente, e o escritor em sua dissolução existencial na ex-periência total do escrever com intuito de marcar doismodos de lidar com a escrita: uma maneira de afirmaçãototal da experiência literária – vista com o escritor –, eoutra de reatividade ao potencial transgressivo da escrita –associada à figura autoral.

Nesse ponto de sua obra, Foucault trata de três pro-blemas gerais relativos à autoria: no primeiro, analisa o

4 “Diríamos que o artista nãopensa, se, pela palavra‘pensar’, entendemos aelaboração de uma cadeia deconceitos. Nele, o pensamentonasce do contato com amatéria que ele forma, comoalguma coisa de auxiliar, comoa exigência de uma forma queestaria por nascer: trata-se deconceber a obra, de torná-laapta a viver; não é da verdadeque se trata. Meuspensamentos se formam aomesmo tempo que minha obra,em uma simbiose cotidianacom seu mundo que,lentamente, se revelaria.”

76 Revista Brasileira de Literatura Comparada, n.12, 2008 Subjetividade e o escrever, um ensaio sobre a experiência literária 77

desaparecimento do escritor ou autor; no segundo, observao papel que o nome do autor toma na trama discursiva esuas características funcionais; no terceiro, examina as figu-ras autorais que chamou de fundadores de discursividade.

A questão concernente à relação entre a escrita e amorte – analisada com muita propriedade em “A lingua-gem ao infinito” (Foucault, 2001a) – é retomada por elenessa conferência para analisar as idéias que giram em tor-no da noção de agente da escrita. Foucault (2001b, p.269)afirma, logo no inicio de sua exposição, que na experiên-cia da escrita, aquele que é levado a escrever tem suaexistencialidade apagada, dissolvida ao longo do ato decriar, como podemos ver no seguinte trecho: “Essa relaçãoda escrita com a morte também se manifesta no desapareci-mento das características individuais do sujeito que escre-ve”. Escrita e desaparecimento estariam intrinsecamenteligados à criação.

Usando a noção da experiência total do escrever – deBlanchot –, poderíamos observar que a escrita em sua re-lação com o vazio abismal da linguagem – o fora – leva oescritor a se perder em sua singularidade no momento der-radeiro da criação.

O desaparecimento do escritor ou autor, salientado porFoucault (2001b), cria uma ressonância com a expressãobarthesiana da morte do autor. No entanto, notemos queambos não distinguem as figuras do escritor e do autor,dificultando um pouco o entendimento para uma análiseapurada da questão da subjetividade no âmbito da escritaliterária.

Encontraremos essa distinção ao longo de toda obrade Blanchot, no texto de Brunn, mas será, tão-somente,Roger Chartier (1998, p.32), quando entrevistado porLebrun, que fará uma menção precisa a essa diferença, aoindicar que “o inglês evidencia bem esta noção e distingueo writer, aquele que escreveu alguma coisa, e o author, aque-le cujo nome próprio dá identidade e autoridade ao tex-to”. É por meio disso que podemos começar a apreenderessa diferença: o escritor seria aquele que, ao mergulhar

no abismo da linguagem, escreve; e o autor seria justamenteo nome que territorializa a criação no campo discursivo.

Quando Foucault (2001b) apresenta aquilo que cha-mou de desaparecimento do escritor ou autor, ele afirma queexistem noções que escondem esse desaparecimento, comoa noção de obra e de escrita. Pois tanto uma quanto outraremeter-se-ia à questão: Quem escreveu? Ao longo dessaanálise, Foucault (2001b, p.294) também aponta que afunção-autor seria o conjunto de características que to-mam o lugar desse desaparecimento:

[...] o autor deve se apagar ou ser apagado em proveito dasformas próprias ao discurso. Isto posto, a pergunta que eume fazia era a seguinte: o que essa regra do desaparecimen-to do escritor ou do autor permite descobrir? Ela permitedescobrir o jogo da função autor.

Nessas condições, o jogo da função autor seria revela-do pelo desaparecimento do escritor ou do autor. Pois bem,ao afirmar isso, Foucault, por falta da distinção sublinha-da, teve de cunhar a noção de função autor para sair dacomplicada tarefa de entender esse desaparecimento.5

Gostaríamos de salientar que aquele que escreve – oescritor – desaparece (como assinalado por Foucault). Noentanto, o autor é inventado depois, como uma próteseimaginária para dar conta da questão do agente da escri-ta. Por isso, não são somente as noções de escrita e deobra que obliteram o desaparecimento do escritor, pois anoção de autoria é uma das mais importantes e requinta-das invenções no âmbito discursivo que impede o enten-dimento da morte do sujeito que escreve. Poderíamos afir-mar que a tríade escrita-obra-autoria remete à questão doagente da escrita, fundamentando, desse modo, a mitolo-gia autoral.

Em “A morte do autor” – texto de 1968, contido em oRumor da língua –, Barthes (1984, p.65), em uma belíssimaremissão a um trecho de Sarrasine de Balzac, nos mostrabem, como o problema do desaparecimento do escritor secoloca:

5 Poderíamos dizer, noentanto, que isso não impediude maneira alguma queFoucault entendesse adinâmica relação entre o nomedo autor e o discurso. Aolongo desse texto de 1969,ele trata com propriedade dafunção que o nome do autorexerceria em relação à tramadiscursiva e da invençãodessa função.

78 Revista Brasileira de Literatura Comparada, n.12, 2008 Subjetividade e o escrever, um ensaio sobre a experiência literária 79

Na novela Sarrasine, falando de um castrado disfar-çado em mulher, Balzac escreve esta frase: “Era a mulher,com seus medos repentinos, seus caprichos sem razão, suasperturbações instintivas, suas audácias sem causa, suas bra-vatas e sua deliciosa finura de sentimentos”. Quem falaassim? É o herói da novela, interessado em ignorar o cas-trado que se esconde sob a mulher? É o indivíduo Balzac,dotado, por sua experiência pessoal, de uma filosofia damulher? É o autor Balzac, professando idéias “literárias”sobre a mulher? É a sabedoria universal? A psicologia ro-mântica? Jamais será possível saber, pela simples razão quea escritura é a destruição de toda voz, de toda origem. Aescritura é esse neutro, esse composto, esse oblíquo aondefoge o nosso sujeito, o branco-e-preto onde vem se perdertoda identidade, a começar pela do corpo que escreve.

Desaparecimento de quem escreve, destruição de todavoz, de toda origem: esse trecho indica como o escritor emseu ato de criar mundos, personagens, se perde e se dissol-ve, ao tingir a brancura do papel, com tipos negros escritospor sangue e lágrimas. Sua morte aponta para impossibili-dade de um entendimento da obra locando a verdade, navida daquele que a escreveu. Mas, como compreender aobra a partir de uma morte, de um vazio? Pergunta enig-mática que remete ao próprio enigma da criação!

Nesse célebre texto de 1968, Barthes tem uma boaintuição acerca da possível resistência que a leitura apre-sentaria ante as palavras a serviço do poder que estariamatreladas as noções de obra, autoria e crítica.

Ele, no entanto – como Foucault –, confunde ainda afigura mitológica do autor (a função-autor) com o escri-tor. E, ao longo de seu texto, fica meio duvidoso o lugarocupado pelo desaparecimento da autoria que ora apare-ce como dissolução da existencialidade desse que escreve,ora surge como destruição do autor como referência nateia dos discursos concernentes à literatura.

Essa louvável confusão, pois, tenta ser uma posiçãocombativa ao poderio do lugar tomado pelo nome do au-tor nos estudos literários, aponta para uma certa ingenui-dade. O autor está longe de morrer!

Em se tratando dessa proclamação de Barthes, expres-sada em 1968, Brunn (2001, p.32) – não fazendo umamenção direta ao escrito barthesiano – coaduna com nos-sa posição crítica em relação à suposta morte do autor aosalientar que:

La théorie littéraire, lorsqu’elle a proclame la mort de

l’auteur n’a pas condamné le nom d’auteur, mais a eclairé son

fonctionnement d’une nouvelle façon; le statut donné à l’auteur,

ici encore, semble inséparable du statut donné au texte, de la

définition même au texte.6

Para pensarmos a dissolução da existencialidade desteque escreve, gostaríamos de frisar que o escritor seria osujeito atraído pelo fora no momento da criação literária –ele e o escrever seriam componentes fugidios do aconteci-mento (encontro) da escrita literária –, enquanto o autorseria o nome que restringe, organiza, ordena o mundo doslivros e dos discursos.

Com isso, gostaríamos de indicar que com o surgi-mento da escrita moderna não haveria desaparecimentoda figura autoral – como Barthes (1984) pontua –, poisambas nascem na Modernidade, sendo a autoria uma rea-ção ao potencial transgressivo da literatura. Então, a es-crita literária aponta para o desaparecimento do escritor enão do autor, pois a literatura até os dias de hoje é assom-brada pela figura fantasmática e mitológica do autor. Obrae autor são dois conceitos fechados que restringem o fluxotransgressivo da literatura, sendo usados como meros ins-trumentos pelo movimento da cultura para apreender oobjeto literário.

Em se tratando do desaparecimento do escritor,Blanchot (1997) refina essa idéia ao longo de toda suaobra. No seu livro intitulado A parte do fogo, podemos ob-servar inúmeros pontos que assinalam para a essênciafugidia da literatura, ou mais ainda, para a ligação dessacom o desaparecimento do escritor na experiência da es-crita. Não é à toa que Foucault (1999, p.229), em “Loucu-ra, literatura, sociedade”, afirma que Maurice Blanchot

6 “A teoria literária, aoproclamar a morte do autor,não condenou o nome doautor, mas esclareceu seufuncionamento de uma novamaneira; o estatuto dado aoautor, aqui ainda, apareceinseparável do estatuto dadoao texto, da definição mesmade texto.”

80 Revista Brasileira de Literatura Comparada, n.12, 2008 Subjetividade e o escrever, um ensaio sobre a experiência literária 81

demarcou muito bem o que seria esse espaço aberto pelaescrita literária:

Não se sabe se o drama da escrita é um jogo ou umcombate, mas foi Blanchot quem delimitou com perfeiçãoesse “lugar sem lugar” no qual tudo se desenrola. Por outrolado, o fato de que um de seus livros se intitule L’espace

littéraire e um outro La part du feu parece-me a melhor de-finição da literatura. É isso. Deve-se ter isso na cabeça: oespaço literário é a parte do fogo. Em outros termos, o queuma civilização entrega ao fogo, o que ela reduz à destrui-ção, ao vazio e às cinzas, aquilo com que ela não poderiamais sobreviver, é o que ele chama de espaço literário.

Essa bonita homenagem a Maurice Blanchot apontapara um ponto importante em relação ao espaço literário.Ele é a parte do fogo, como diz Foucault. Em seu meio tudoé consumido, tudo é colocado em xeque: as coisas, o mun-do e o próprio sujeito que escreve.

Poderíamos fazer um jogo retórico para compreender-mos essa afirmação foucaultiana e associarmos ao problemada subjetividade no âmbito da escrita literária à questãorelativa ao fogo. Para Heráclito (cf. De Souza, 1996), pen-sador pré-socrático que dizia que tudo flui, o elementooriginário da phisis era o fogo. O fogo dissolve, destrói tudo!No entanto, em que consistiria o uso dessa imagem paranossa discussão? A literatura é a parte do fogo, pois median-te sua força de atração, ela produz um movimento estranhode desaparecimento-aparecimento das coisas, do mundoe do homem. Nela, a linguagem flui pela torrente desserio que desemboca no fora. Quando o sujeito entra aí,nunca sai o mesmo!

São inúmeras as passagens que discutem essa caracte-rística da literatura em A parte do fogo, como em “Kafka e aliteratura”, em que Blanchot (1997, p.21) afirma que o es-critor “no momento em que escreve, [...] está na literaturae está nela completamente”. Esse comprometimento com oespaço literário é, justamente, o que ele chamou de experiên-cia total do escrever, a qual nos referimos anteriormente.

Em “O paradoxo de Aytré”, ao comentar o texto dePaulhan, Aytré perde o hábito, apresenta uma belíssimaimagem dessa parte do fogo em que se dissolve o mundo eo sujeito que escreve, ao se indagar sobre o começo daliteratura. Para essa pergunta, ele assegura que a literaturacomeça pelo desmoronamento da linguagem. E com isso,mostra como o militar Aytré é levado a escrever belas passa-gens, em razão do desmoronamento de sua linguagem co-mum que era usada como mero instrumento de comuni-cação. Refletindo sobre isso, Blanchot (1997, p.75) afirma:

Se disséssemos, talvez para censurá-lo, que as pala-vras de Aytré, longe de ameaçar a ruína, se tornam, à me-dida que ele “perde o hábito”, mais escolhidas, mais re-quintadas, mais felizes, tratar-se-ia apenas de ingenuidade,pois para esse sargento o recurso a uma língua mais literá-ria ou mais bela significa apenas a perda irreparável da únicalíngua que lhe era segura, a que lhe bastava para escrever.

Aytré perde o hábito do uso de uma língua segura, eessa perda o leva a escrever com uma certa beleza literáriaos relatórios de campanha. Aytré encontra o abismo dalinguagem e, nesse encontro, perde também seu referencial,sua linguagem e também a si mesmo.

Não será à toa que, nesse mesmo livro de Blanchot,encontraremos, associadas ao escrever, as idéias de abismodas palavras, de salvação e perda de si, de direito à morte, eda essência fugidia da literatura, pois será por meio dessemodo de entendê-la que o autor francês construirá umaimagem clara do que seria essa parte do fogo que é o espa-ço literário.

Em “A palavra sagrada de Hölderlin”, ao comentar overso Das Heilige sei mein Wort (“O sagrado seria minhapalavra”), Blanchot (1997, p.119) traça algumas conside-rações sobre a relação do poeta com a poesia, entendendoo poeta como fruto do encontro que dá à luz o poema: “Opoeta só existe se presente o tempo do poema; ele é o segun-do em relação ao poema, do qual, no entanto, é o podercriador”. Esse comentário também tem a mesma ressonân-

82 Revista Brasileira de Literatura Comparada, n.12, 2008 Subjetividade e o escrever, um ensaio sobre a experiência literária 83

cia reflexiva em seu texto sobre a poesia de René Chair,Mas é discorrendo sobre Hölderlin, em uma das passagensmais belas de A parte do fogo, que Blanchot (1997, p.130)apresenta o desaparecimento e a morte no seio do escrever:

A morte foi a tentação de Empédocles. Mas para Höl-derlin, para o poeta, a morte é o poema. É na poesia queele deve atingir o momento extremo da oposição, o mo-mento em que ele é levado a desaparecer e, desaparecen-do, a elevar ao máximo o sentido daquilo que só pode serrealizado nesse desaparecimento. Impossível, a reconcilia-ção do Sagrado com a palavra exigiu da existência do poetaque ela se aproximasse ao máximo da inexistência.

Nota-se, portanto, que a poesia exige a morte desseque escreve para tomar corpo em expressões de linguagem.

Outra obra de um poeta que será comentada nesselivro, e que também dimensiona a questão da parte dofogo, é a de Baudelaire e sua expressão de que tudo é abismo.

Glosando o artigo de Sartre (1947) sobre Baudelairee seu suposto fracasso existencial, Blanchot apresenta umarelação estreita entre a produção literária e o abismo daspalavras. Ele afirma que Baudelaire almejava um ideal es-tético que o possibilitaria escrever como um verdadeirohomem das letras. No entanto, é justamente quando esseescritor encontra o abismo da linguagem que ele começaverdadeiramente a escrever. Desse bonito artigo sobreBaudelaire podemos pensar que, ao se defrontar com oabismo das palavras, o escritor se encontra com a lingua-gem literária, colocando sua própria existência em ques-tão, pois, afinal de contas, tudo é abismo.

No ultimo texto de A parte do fogo, deparamos commais afinco com certos problemas levantados ao longo detodo o livro. Nesse capitulo intitulado “A literatura e odireito à morte”, Blanchot (1997) retorna ao problemada contradição inerente ao escrever, que faz o escritorexistir apenas quando ele se encontra defronte à questãodo próprio escrever. Esse fato se coloca como um grandeproblema para entendermos as questões relativas ao ta-

lento e à inspiração. Sobre isso, Blanchot (1997, p.294)sublinha o seguinte:

Seus talentos, ele põe na obra, isto é, necessita da obraque produz para se conscientizar deles e de si mesmo. Oescritor só se encontra, só se realiza em sua obra; antes desua obra, não apenas ignora o que é, mas também não énada.

O escritor teria seu talento e sua inspiração reveladosno encontro com o escrever. Antes da obra, o sujeito comoescritor não existe. E ele só existe no momento do aconte-cimento da escrita; ele existe para, assim, morrer: grandecontradição do talento, da inspiração e da própria escritaliterária.

Essa questão já apareceria antes, em um texto de 1943,intitulado Faux pas, quando Blanchot (1943, p.155) ana-lisa a atividade poética e sua relação com a utilidade e apropriedade:

La paradoxe de la poésie consiste en ceci: le poéte fait ser-

vir à une activité – l’activité poétique – une disposition qui dénie

toute valeur à l’activité – quelles qu’en soient les formes – et qui

n’a plus de sens si elle sert à quelque chose. Il est avide de se

perdre pour se trouver comme rassembleur de mots et créateur

de mythes. [...] Une telle conséquence ne peut manquer de lui

être insupportable. Si la poésie est la mise à mort des formes et

des valeurs d’utilité, il n’est pas possible qu’un homme,

bénéficiaire du génie poétique, songe à l’ « utiliser », en fasse

son bien, l’exploite comme moyens de règne ou de conquète

personnels. Il est nécessaire d’obtenir de lui la reconnaissance

que ce génie ne lui appartient pas, n’est pas à lui; le don n’est

donné à personne, parce que personne n’en peut user comme

s’il en avait la propriété.7

O dom da escrita não é uma propriedade, pois ela sur-ge no encontro do sujeito com o fora, do sujeito com ovazio da morte. Atividade que mortifica as formas e o usoda escrita como utensílio útil, e com isso leva o escritorpara uma zona inexoravelmente vazia, onde ele não pode-

7 “O paradoxo da poesiaconsiste no seguinte: o poetacoloca a serviço de umaatividade – a atividade poética– uma disposição que negatodo valor à atividade –quaisquer que sejam suasformas – e que não tem maissentido quando serve paraalguma coisa. Ele anseia porse perder para se achar comocolecionador de palavras ecriador de mitos. [...] Uma talconseqüência não pode deixarde ser insuportável para ele.Se a poesia é a mortificaçãodas formas e dos valores deutilidade, não é possível queum homem, beneficiário dogênio poético, sonhe em‘utilizá-la’, em fazer dela umbem próprio, explorando-acomo um reino ou umaconquista pessoal. É necessárioobter dele o reconhecimentode que esse gênio não lhepertence; o dom não é dadoa ninguém porque ninguémpoderia usá-lo como seo tivesse como umapropriedade sua.”

84 Revista Brasileira de Literatura Comparada, n.12, 2008 Subjetividade e o escrever, um ensaio sobre a experiência literária 85

ria, de modo algum, se nutrir de um uso útil da obra parasi mesmo. Esse texto de 1943 apresenta com beleza esseparadoxo do escrever: o talento e a inspiração vêm com oescrever e também morrem no escrever, como então res-ponder a pergunta quem escreve?

Será, no entanto, no notável livro de 1955, chamadomuito propriamente de O espaço literário, que MauriceBlanchot (1987, p.227) tratará com contumácia do pro-blema da dissolução do escritor na experiência da escritaliterária:

Dizer que o poeta só existe após o poema quer dizerque ele recebe sua “realidade” do poema, mas que só dis-põe dessa realidade para tornar possível o poema. Nessesentido, ele não sobrevive à criação da obra. Vive ao mor-rer nela. Isso significa ainda que, após o poema, ele é o queo poema olha com indiferença, é ao que ele não remete eque a nenhum título é citado e glorificado pelo poema comosua origem. Pois o que é glorificado pela obra é a obra, e é aarte que nela se reúne.

Na escrita literária, há uma espécie de despossessão desi e da própria obra. O escritor não é senhor de si nem daobra na experiência da escrita, pois essa se caracteriza porseu desaparecimento.

Para discutir essa despossessão de si, Blanchot (1987)afirma que a escrita literária tem uma relação indissociávelcom aquilo que chamou de uma exigência da obra. Antesde refletirmos sobre essa exigência, gostaríamos de pon-tuar que a obra em questão no argumento blanchotianonão é de maneira alguma a noção de obra formulada porFoucault (2001b), em “O que é um autor”, quando eleindica que a obra é um conceito que oblitera o desapareci-mento do escritor. Muito pelo contrário, aqui a exigênciade obra estaria mais próxima das noções de désouvrementou de ausência do livro, cunhadas por Blanchot (1969) emum texto posterior, chamado L’entretien infini.

Após esse pequeno adendo, voltemos ao texto de 1955para comentar a relação da exigência da obra com o desa-

parecimento do escritor. Analisando esse problema,Blanchot (1987, p.50) afirma:

A obra exige do escritor que ele perca toda a “nature-za”, todo o caráter, e que, ao deixar de relacionar-se com osoutros e consigo mesmo pela decisão que o faz “eu”, conver-ta-se no lugar vazio onde se anuncia a afirmação impessoal.

Dissolução do eu e afirmação impessoal seriam caracte-rísticas da experiência radical do escrever suscitada pelaexigência da obra. Essa exigência arrasta o eu para umazona desconhecida que nada mais seria do que a própriasolidão constitutiva da obra. O eu é arrastado para o bura-co negro da linguagem, tornando o escritor um ninguém:espaço vazio de desaparecimento.

Detectando esse problema referente à solidão da obra,Blanchot (1987, p.19) aponta que justamente a prática dodiário – e poderíamos acrescentar que em alguns escrito-res a atividade de critica literária toma o mesmo lugar –serve para retomar de alguma forma esse eu perdido:

O Diário não é essencialmente confissão, relato naprimeira pessoa. É um Memorial. De que é que o escritordeve recordar-se? De si mesmo, daquele que ele é quandonão escreve, quando vive sua vida cotidiana, quando é umser vivente e verdadeiro, não agonizante e sem verdade.[...] O Diário – esse livro na aparência inteiramente solitá-rio – é escrito com freqüência por medo e angústia da soli-dão que atinge o escritor por intermédio da obra.

A radicalidade da experiência da escrita literária estágenuinamente ligada à solidão da obra que exige que a es-crita se coloque ela mesma em questão, arrastando tudopara uma zona de indiscernibilidade que chamamos de foraou de o abismo da linguagem.

Observemos que essa reflexão acerca da literatura esua relação com o escritor nos incita outro problema: seo escritor desaparece na experiência da escrita e, assim,se diferencia da figura autoral, como poderíamos enten-der a noção de autoria e sua mitologia decorrente?

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A noção de autoria e o espaço literário

Em O espaço literário e em Le livre à venir, Blanchot(1987; 1959) salienta que a figura autoral é justamente umíndice da degradação da obra de arte. Degradação da arte,pois essa preferência do artista à obra aponta para umacaptura que visa definir e – conseqüentemente – empo-brecer a experiência criativa. O autor serviria para explicara obra, quando não há mais experiência a ser vivenciada.Ele é um índice de degradação, porque o seu nome funcionacomo um elemento totalmente transcendente à experiênciada escrita, sendo usado, normalmente, como instrumentoexplicativo de algo sem explicação: a criação.

Não foi, no entanto, por acaso que a autoria tomouesse lugar no seio dos estudos literários. Ela foi inventadamediante inúmeros acontecimentos na história que a tor-naram uma figura indissociavelmente ligada à literatura.

Foucault, na conferência de 1969 na qual se indagasobre o problema concernente à autoria, reflete sobre a in-venção da função autor e acerca das suas característicasobserváveis no âmbito discursivo. Como já assinalado an-tes, o escritor morre no movimento criativo do escrever, eno lugar vazio de sua morte reina o jogo da função autor.Essa função nada mais seria do que o nome que territorializaa criação, tendo, assim, inúmeras repercussões para o pen-samento, pois limita a proliferação discursiva. A autoria temcomo função capturar, aprisionar o fluxo transgressivo. So-bre esse fato, Foucault (2001b, p.287), em uma nota de1979 – encontrada em “O que é um autor?” –, salienta que:

O autor torna possível uma limitação da proliferaçãocancerígena, perigosa das significações em um mundo ondese é parcimonioso não apenas em relação aos seus recursose riquezas, mas também aos seus próprios discursos e suassignificações. O autor é o princípio de economia na proli-feração do sentido.

A função autor é, portanto, um antídoto contra a pro-liferação cancerígena da linguagem. É curioso aproximar-

mos essa expressão foucaultiana ao argumento de Karl Kraus(1988), quando esse autor vienense afirma que a criação sedá por um câncer na linguagem. Realmente, o nome doautor seria o remédio para esse câncer, para a proliferaçãoincessante das palavras!

Em que, no entanto, consistiria esse princípio eco-nômico do discurso? Quais seriam as características queatravessam a funcionalidade do nome do autor na tramadiscursiva?

Como podemos observar, o autor não seria o agenteda escrita literária, e sim um nome que tem uma funçãobem especifica: a de delimitação discursiva. Em A ordemdo discurso, Foucault (1996), estudando os mecanismos quedelimitam o discurso, observa que o nome do autor seriaum procedimento interno ao discurso que o rarefaz. Onome do autor unifica diversos saberes por meio de suafuncionalidade, limitando, assim, o discurso.

Sobre a funcionalidade do nome do autor, tanto Brunn(2001) quanto Foucault (2001b) estão de acordo em rela-ção à peculiaridade que esse nome exerce na tramadiscursiva, já que ele tem uma função diferente daquelado nome próprio.

Foucault (2001b) assinala que o nome do autor temcaracterísticas comuns ao nome próprio: a designação, aindicação e a descrição. No entanto, esse nome não apon-ta para uma existencialidade como o nome próprio. Eletraça uma relação de unificação com uma multiplicidadede textos. Esse nome tem na classificação seu principiofundamental.

O nome do autor desempenha uma função de classi-ficação dos discursos. Ele é uma forma de poder não-indi-vidual na qual a assinatura – ou o nome do autor – indicauma retomada da linguagem do poder para fazer da literatu-ra aquilo que ela não é: uma escrita a serviço do poder. Aassinatura seria um sinônimo de poder, pois marca a parti-cularidade discursiva que esse nome tem em qualificar odiscurso, servindo, assim, de princípio de garantia, de iden-tificação e de autenticação do texto.

88 Revista Brasileira de Literatura Comparada, n.12, 2008 Subjetividade e o escrever, um ensaio sobre a experiência literária 89

Brunn (2001) coloca muito bem o problema da escri-ta e sua relação com o nascimento, posterior à experiên-cia, da figura mitológica do autor. Ele afirma que o nomedo autor seria um contrato genérico, porque poria em rela-ção um nome e uma representação, após a experiência doescrever terminada. Na verdade, esse contrato seria muitomais do que um elemento para datar as obras. Ele é utili-zado como meio para possibilitar o relacionamento entreinúmeros textos que o nome de seu autor consagra sob amesma égide.

Conclusão

Como podemos observar, o autor, longe de ser o agenteda escrita literária, é um efeito posterior – transcendenteà experiência – encarregado de impedir a proliferaçãodiscursiva, e, mais ainda, designado para servir de unidadegeral para os escritos literários. Enquanto a experiência daescrita literária vivenciada como uma experiência totalproporciona um encontro que produz concomitantementeo escritor e a obra. Ambos são fenômenos da produção daescrita.

A experiência literária seria então um lugar privilegia-do para analisarmos a produção de subjetividade no seioda experiência.

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91

Al Berto, a escrita, o corpo, a vida

Sandro Ornellas*

RESUMO: Leitura de textos do poeta português Al Berto, em

que a escrita aparece saturada de traços do próprio corpo, pen-

sado como metonímia do sujeito. Sua escrita vai da elaboração

de um “si mesmo” e de uma sexualidade abertamente homo-

erótica até a reflexão dos espaços ocupados pelo corpo e o flerte

com a própria morte desse corpo. Lê-se a escrita em sua

materialidade, naquilo, portanto, que ela também tem de

corpóreo, com desdobramentos no modo de se encarar a cultu-

ra e a sociedade, também consideradas como corpos, no caso,

corpos políticos. Assim, os textos de Al Berto, ao tratarem do

corpo e do sujeito próprios, também dialogam fortemente com

o corpo e o sujeito socioculturais com que interage.

PALAVRAS-CHAVE: Al Berto, escrita, corporeidade, poesia por-

tuguesa contemporânea.

ABSTRACT: Reading of Portuguese poet Al Berto’s texts in which

the writing shows itself steeped in his own body’s traces, such

body being thought as subject’s metonymy. His writing gains

outlines that go from the elaboration of a “own self” and of an

openly homoerotic sexuality up to a consideration concerning

the spaces taken up by the body and the flirtation with the very

death of such body. The writing in its materiality is read in what

the writing also has of corporeal, with consequential evolution

in the way that culture and society are viewed, also seen as bo-

dies, more specifically, as political bodies. Thus, Al Berto’s texts,

while they consider own body and subject, they also strongly

dialogue with the social-cultural body and social-cultural sub-

ject which they interact with.

KEYWORDS: Al Berto, writing, corporeity, contemporaneous

Portuguese poetry.

* Professor doutor da

Universidade Federal da Bahia

(UFBA) – Salvador (BA).

92 Revista Brasileira de Literatura Comparada, n.12, 2008 Al Berto, a escrita, o corpo, a vida 93

Vida e escrita

Portugal, anos 1970: emergência de contradições porvolta do final da ditadura. O salazarismo exilara, interna eexternamente, intelectuais e artistas, e o seu fim revelou atotal ausência de um projeto político-cultural unificado(cf. Ribeiro, 1997). A deriva tornar-se-ia mais vertiginosae a movimentação não mais conseguiria ser em bloco (tal-vez nunca tenha conseguido), senão efêmera, ágil, tática,por brechas e rompantes: mais próxima de uma radicalexperimentação das subjetividades do que da pedagogianeo-realista pelos espíritos e instituições – a ordem unidaacabava de ser estilhaçada em nome de um corpo aindainominável. É nesse tipo de delírio do corpo coletivo, quevoluntariamente tende à entropia, que encontramos AlBerto. A Revolução dos Cravos, no 25 de abril de 1974, sóvale por esse belo nome de delicada insubmissão graças agente como ele – deslocada de sua “nação”, deslocada dastradições de seu “povo”, mas encarnadas em uma escritade si, escritas da vida, dos corpos, das vontades, dos dese-jos. Eles formavam um outro povo, o povo que faltava.

Al Berto é contemporâneo da liberdade política e, si-multaneamente, da entrada do país para valer no proces-so de globalização da cultura, que leva os seus críticos a sevoltar contra os caminhos tomados pelas novas gerações.O “nomadismo aproblemático” – identificado à culturamusical que toma conta do Portugal pós-74 – reflete oquanto certos mitos culturais lusitanos ainda são reniten-tes para uma parcela mais intelectualizada e tradicionaldo país. Chega-se mesmo a afirmar que “a vertente da‘grande música’ cultivada pelas classes cultas nunca foi,entre nós, uma componente particularmente significativaem termos de imaginário cultural” (Lourenço, 2001, p.17).

Se concordarmos com essa afirmação de Eduardo Lou-renço, Al Berto imediatamente migra para fora das gran-des linhagens culturais do país (o povo que falta é sempreexcluído). E suas afinidades passam a ser com poetas-can-tores da música pop – como Jim Morrison, Nick Cave,

Lou Reed e Ian Curtis, para o qual escreveu um poemaque se inicia com um verso isolado e em itálico, traduzidoda canção “Decades”, do próprio Curtis: “presentes aqui osjovens, com a canga nos ombros”.1 No verso vemos esse con-flito entre uma velha e tradicional cultura portuguesa euma nova cultura jovem internacionalizada. Desse confli-to também sairá grande parte da dilemática homoeróticapresente nos textos de Al Berto, mesmo desde antes daque-les assumidamente soropositivos, como veremos adiante.

Al Berto pertence à estirpe dos poetas sangüíneos, da-queles que fazem questão de deixar claro escrever paraviver. Mesmo nos momentos de maior sensaboria dianteda vida, nos momentos mais difíceis da sua saúde, a escri-ta está presente, e registra, reelabora, inventa, seleciona,dispersa, reúne, pulsa. Com o poeta junto a ela – de corpopresente. O corpo, nesse caso, não é simplesmente índicedo que poderíamos chamar de “cotidiano”. O corpo é opróprio acontecimento. Para todos os sujeitos, para todasas escritas. Pois é pelo seu movimento que marcamos asingularidade dos acontecimentos nas brechas dos gran-des relatos e narrativas – o gesto, o ato, a postura, a ten-são, o deslocamento, o movimento das articulações docorpo produzem o que há de intempestivo nas brechas daatualidade, produzem acontecimentos. Não se trata aquide uma observação fenomenológica de um “mundo-em-si”. Queremos apenas afirmar que Alberto Raposo PidwellTavares grafa a assinatura “Al Berto” como sujeito (escri-to) de um discurso da sua própria vida. Essa, por sua vez,age contra toda sorte de aparelhagem de controle e vigi-lância sociais, buscando – na enunciação voluntária deuma vida desregrada, notívaga e deambulatória, na trans-gressão do uso de drogas, na sexualidade aberta e afirma-tivamente homoerótica e nas referências que mesclammodelos literários cultos a ídolos da cultura pop – formasdesviantes das leis morais, sociais e mesmo literárias. AlBerto é a linha de fuga de Alberto, tanto quanto esse seráa desterritorialização fatal do corpo daquele.

O mais reincidente escrito de Al Berto é um (pseudo)diário-íntimo, de nome O medo, escrito e publicado em

1 A canção original começa

com os versos “Here are the

young men, the weight on their

shoulders,/ Here are the young

men, well where have they

been?” e está no disco Closer,

de 1980.

94 Revista Brasileira de Literatura Comparada, n.12, 2008 Al Berto, a escrita, o corpo, a vida 95

três partes: 1982, 1984 e 1985. Texto que não é somenteseu, pois desenha a sensibilidade dos que rasgam leis, ex-põem o próprio corpo como matéria da vida, como cami-nho a percorrer, e por isso morrem – vitimados pelos ges-tos de transgressão.

Al Berto sabia o temor e o estranhamento que provo-cava, e ainda provoca, em um país como Portugal. Osmoralistas continuam a cobrir o mundo com os véus deuma escrita salvacionista, divinizada, teológica, mesmo quesob a capa da racionalidade, do saber lógico, linear – es-crita fonética que ecoa e traduz (autorizada) uma Voz, deDeus ou da Razão, pouco importa. Daí que Al Berto, en-tão, é mesmo perigoso. Pelejou incansavelmente contra odestino que não estivesse inscrito no próprio corpo – mes-mo nos seus momentos de maior debilidade, de maior fra-gilidade, de maior vacilação, esse foi o seu programa devida. Ele sabia bem demais que a hipergrafia não é tãosimplesmente uma disfunção neurológica, na qual a mãoescreve frenética e incontrolavelmente, sem que a “cons-ciência” atente, ou saiba, o que se escreve. O corpo, noentanto, sabe. O corpo sempre sabe o que escreve.

25 de fevereiro

caminhar no deserto, reencontrar a magia das palavras

e usá-la com maior ou menor inocência, como se a usásse-

mos pela primeira vez, como se acabássemos de as desen-

terrar das areias. as palavras, esses oásis envelhecidos que

me revestem o corpo como um trapo que sempre me tem

pertencido.

confesso que sou um superviciado de palavras, outros

são-no de heroína ou de barbitúricos. na verdade passei

bastante anos ingerindo speeds e escrevendo. alinhava pa-

lavras, rasgava-as, voltava a escrevê-las obsessivamente.

tudo o que possuía era uma resma de milhares de folhas de

papel escritas à queima-roupa noite após noite.

escrevia até romper o dia, até que os dedos me does-

sem e os tendões do pulso paralisassem. então, relia e ras-

gava. tinha a certeza de que não eram aquelas as palavras

que me reflectiam. sabia que ainda não conseguira chegar

às palavras que, mal as acabamos de escrever, se iluminam

por dentro. ainda não atingira a visão clara das coisas si-

lenciosas, o início, o outro imperecível.

ingeria cada dia mais drogas, e a dado momento tive a

visão do que deve ter sido o primeiro homem a alinhavar,

pela primeira vez, o seu nome. parei aterrorizado. ali esta-

va, enfim, a morte da inocência, e a revelação do destino

que me propunha cumprir: escrever, escrever sempre.

a partir desse momento acumulei infindáveis cader-

nos escritos; era esta a única maneira de remediar o medo

e de não possuir nada, e de ter possuído tudo. (Berto, 2000,

p.363)2

O que o corpo escreve, é isso que lhe tem valor. Semmedo das palavras que se repetem – é nos gestos que serepetem que se mede a força de um corpo, na repetição dosmovimentos, desde aqueles mais amplos até os de sintoniafina, delicados e preciosos. A contundência marca a vidade um corpo. O resto é fantasma que ronda, persegue, con-trola, oprime e culpa. Al Berto, portanto, sabe que a pala-vra se torna valor quando junto ao corpo, quando ela passaa ter um gosto, um sabor, um efeito, um pouco à maneirado que Roland Barthes (1978, p.139-40) chama de “pala-vra transicional”:

como os objetos transicionais, elas têm um estatuto incer-

to; é, no fundo, uma espécie de ausência do objeto, do sen-

tido, que elas colocam em cena: apesar da dureza de seus

contornos, da força de sua repetição, são palavras fluidas,

flutuantes; elas procuram tornar-se fetiches.

No fragmento do diário citado antes, uma semióticade sangue se desenha. A seleção e o adestramento, a to-mada de partido que Al Berto tão bem conhecia. “Cami-nhar no deserto”: o nomadismo criador versus a estérilanacorese. A ida do corpo ao deserto é, na verdade, umaida à ambivalência da própria escrita, pois aí reencontramosas palavras na sua mais franca mobilidade. Não há nenhu-ma busca de um significado e de um corpo limpos, virgense naturais nessa caminhada. Mesmo para os anacoretas, o

2 A partir de agora, todas as

citações de Al Berto serão

identificadas apenas pelo

número da página do livro de

poemas completos, O medo

(2000).

96 Revista Brasileira de Literatura Comparada, n.12, 2008 Al Berto, a escrita, o corpo, a vida 97

deserto é antinatural (cf. Tucherman, 1999, p.51-4), odeserto é um desejo que precisa ser preenchido e percorri-do pelos corpos em movimento. Alguns, entretanto, vão aele para ocupá-lo permanentemente, delimitá-lo, cercá-lo. Reorganizá-lo sob o ascetismo de uma escrita despóti-ca, lógica e linear. No fragmento, Al Berto sabe que aspalavras, mesmo quando usadas como “pela primeira vez”,são “trapo” que vicia ao cobrir o corpo, e, como drogas,encena o limite, o risco como método, como experimen-tação, como fabricação da própria vida pela arte das do-ses, sabendo haver sempre a overdose à espreita.

Nessa arte, há tanto o lado do prazer como o do peri-go – em toda arte, na verdade. Sempre que busca a artedas doses, Al Berto está ciente de que seu corpo multipli-cará as populações que se acumulam e lhe percorrem –das mais libertárias às mais fascistas. O corpo, então, é ogrande meio de parir a criação poética, a experiência esté-tica e a insubmissão política. Drogar seu corpo sempre foiuma opção determinante para alguns artistas. Não pelasdrogas em si, mas pela experiência que elas proporcionamao se optar por elas (cf. Moraes, 1984, p.36). Al Berto acu-mulou “infindáveis cadernos escritos”, escreveu, escreveue escreveu – palavra essa que em seus textos é o grandeobjeto usado para experimentar da vida. Autoficção.

No fim da escrita, o fim da vida. Mesmo nos instantesem que Al Berto afirma algo para além da escrita – e exis-tem os momentos em que faz afirmações como: “palavrassão perigosas máscaras fúnebres que se colam à cara e nãoprecisam de boca, de voz” (p.451) –, é incapaz de parar deescrever. Ele sabe que escrever é adestrar seu destino, é aforça que mantém seu corpo vivo, até contra qualqueroutra razão, pois a razão está no corpo-que-escreve.

11 de março

definha-se texto a texto, e nunca se consegue escre-

ver o livro desejado. morre-se com uma overdose de pala-

vras, e nunca se escreve a não ser que se esteja viciado,

morre-se, quando já não é necessário escrever seja o que

for, mas o vício de escrever é ainda tão forte que o fato de

já não escrever nos mantém vivos. morre-se de vez em

quando, sem que se conheça exactamente a razão, morre-

se sempre sozinho.

nunca fui um homem alegre. morro todos os dias, como

poderia estar alegre?

sento-me e medito na busca de novas palavras. tor-

nou-se quase inútil escrevê-las; chega-me saber que, por

vezes, as encontro, e nesses momentos readquiro a certeza

dalguma imortalidade. (p.365)

Como seu corpo sofre com a Lei que se lhe impõem.Todo o seu medo de se ver submetido à ordem dos Ho-mens, da Lei, de Deus, que se fez Verbo – e escrita fone-tizada. Todo o seu labor por romper com essa concepçãode escrita, por fazer o corpo falar na escrita, por tornarinteligível o ruído do corpo para além dos aparelhos disci-plinares presentes na escrita – para além da assepsia daprópria letra. Eis sua tarefa: remitificar a prática de escre-ver, elaborar uma outra escrita, um neografismo que seestenda do corpo e invista contra os civilizadores apare-lhos de repressão e culpabilização da vida, contra umapedagogia da escrita (cf. Certeau, 2001, p.224). Seu dese-jo é o de uma performance mágica e alegre – alegria que seadquire, no entanto, pelo conhecimento da servidão. AlBerto escreveu um diário valendo-se da prosaica escritalinear, mas a transgredindo na absoluta ausência de maiús-culas, na paixão aleatória da coordenação das orações, nasintaxe fragmentada, na incompletude dos movimentosfrasais, na ruptura dos limites entre o sujeito e objeto nosdiscursos. Mas o corpo sofre, ao forçar criar essa porta, eàs vezes quer parar de escrever – porém prossegue, assimcomo vive: “escrevo contra o medo” (p.227).

A forma de diário íntimo, dada ao livro O medo –também o nome que sublinha a reunião completa de seuspoemas –, faz pensar em quais “si mesmos” Al Berto (se)escreve, quais sujeitos se delineiam nos tracejados das li-nhas impressas, quais subjetividades se constroem na ma-terialidade das escolhas fonéticas, sintáticas e morfológi-

98 Revista Brasileira de Literatura Comparada, n.12, 2008 Al Berto, a escrita, o corpo, a vida 99

cas das frases. Muito da voz “confessional” que se lê emseus textos, ao uso desabusado do “eu”, está marcada pelaambivalência da sua escrita, quando o “si mesmo” con-funde-se com um “outro” que escreve e é escrito na verti-gem dessa multidão que deriva por intermináveis linhas.

eis a deriva pela insônia de quem se mantém num tú-

nel da noite. os corpos de Alberto e Al Berto vergados à

coincidência suicidaria das cidades.

eis a travessia desse coração de múltiplos nomes: ven-

to, fogo, areia, metamorfose, água, fúria, lucidez, cinzas.

(p.11)3

A intimidade que ele simula, bem como na maior fre-qüência com que retorna à fabricação do (pseudo-)diárioíntimo O medo, aproxima-o dos antigos hypomnemata –“cadernos pessoais [...], uma memória material das coisaslidas, ouvidas ou pensadas” –, mesmo sem possuir o papelde “guia de conduta”, oferecido, “qual tesouro acumula-do, à releitura e à meditação ulterior” (Foucault, 1992,p.135). Ao invés de se forjar pela releitura e pela repetiçãouma memória que se cola à escrita como repositório dotesouro da língua, ativa-se um corpo para a permanentemetamorfose de uma escrita simulada, desde a sua assina-tura até o pensamento que aí se produz. É na constituiçãodesse corpo que Al Berto investe quando da produção do(pseudo)diário-íntimo, dos seus “infindáveis cadernos es-critos”, cuja força está justamente na presença explícitade uma materialidade da escrita:

constituir, com tudo o que a leitura constituiu, um “corpo”

[...]. E, esse corpo, há que entendê-lo não como um corpo

de doutrina, mas sim [...] como o próprio corpo daquele

que, ao transcrever as suas leituras, se apossou delas e fez a

sua respectiva verdade. (Foucault, 1992, p.143)

Nos textos, as viagens se fazem, as leituras avultam,os amores de realizam, as notas se registram, os inventá-rios assomam, as cópias – implícitas ou explícitas – en-saiam formas diferentes e fabricam sua postura, o gesto, a

técnica, o corpo próprio – estrangeiro, híbrido, mestiço,andrógino, hermafrodita, monstruoso pela sua desmedi-da. O que há – de fato – é um movimento de ruptura comas fronteiras de todas as espécies, ruptura com a própriaidéia de que o texto poético seja sempre um comentário(crítico) sobre a vida – e não uma forma de experiência davida na sua dimensão mais concreta e real. Al Berto soubese forjar um especialista extremamente arguto e compe-tente na arte de elaborar formas de sensibilidades e for-mas sensíveis – seu texto é a realização, a formalizaçãodessas vontades do seu corpo; bem distante das modalida-des moralizantes de se pensar, se ler e se interpretar o ges-to da criação.

Homoerotismo

A escrita belamente homoerótica de Al Berto passapor caminhos importantes. A sua homotextualidade operao que outras grandes escritas outrora também operaram noque respeita ao corpo masculino, ajudando a repensar ocorpo-do-homem. Além disso, essa escrita funciona em umapoderosa interface com a especificidade do corpo gay – dassuas vontades, dos seus desejos, da sua constituição física,afetiva e, importante, estética –, na qual se cruzam diver-sos fluxos semióticos: sexualidade, gênero, drogas, aids,morte e vida. Há aí o agudo problema da homotextualidadee da publicização da sexualidade – que Al Berto assumiu,não sem conseqüências seriíssimas, porém exemplares.

A potência presente nos textos de Al Berto se disse-mina como um modo de politização do privado, fazendoda escrita de sentimentos, desejos e dramas pessoais meiopróprio para a interpretação de uma comunidade que seestabelece estrangeira às temporalidades das modernassociedades e instituições nacionais. Essa comunidade é,sobretudo, afetiva (cf. Lopes, 2002, p.34) – assentada nasingularidade mutante, que rivaliza com o gregarismo fixo,transformando os grupos – e investe contra a autoconser-vação, como perpetuação do poder e da forma. A singula-

3 Essa é parte da abertura –

“atrium” – do primeiro livro de

Al Berto, chamado À procurado vento num jardim d´agosto, e

não existia na primeira edição

do livro. Foi acrescentada nas

edições seguintes, um pouco

à maneira de um programa

formulado a posteriori. Essa

informação me foi fornecida

por Gustavo Cerqueira

Guimarães, pesquisador

brasileiro da obra de Al Berto,

a quem agradeço.

100 Revista Brasileira de Literatura Comparada, n.12, 2008 Al Berto, a escrita, o corpo, a vida 101

ridade é a irrupção de uma força eminentemente extem-porânea agindo por fora das instituições socioculturaiscontemporâneas. O caso singular existe pela sua inatua-lidade e acaba forçando as malhas conservadoras do pre-sente com sua aparência perigosa e seus gestos de risco. Apolítica de Al Berto, então, não funda nenhum corpoinstitucional, mas um corpo selvagem, intérprete experi-mental das pulsões que atravessam inúmeras formaçõesdiscursivas. Quando se diz que a estética homoerótica es-candaliza por publicizar a intimidade, deve-se ressaltar oquanto a sua “promiscuidade” tem de força política e trans-formadora e o quanto ela tem da repetição e conservaçãode um corpo político pelo discurso institucional do poder.

A poesia de Al Berto filia-se a toda uma linhagem deescritores que ativam uma orientação homoerótica em seustextos, carreando junto a si todo um espectro de formastemáticas. A marginalidade, a estrangeiridade, homensmaduros, jovens andrógenos e a condição da arte e do ar-tista passaram a ser formas temáticas onipresentes na lite-ratura homoerótica, e têm nos romances de Jean Genet eem Morte em Veneza, de Thomas Mann, alguns de seusprincipais modelizadores no século XX. A orientação ho-mossexual foi metaforizada incessantemente na literaturacomo doença, como alguma deformidade, como algumaforma de peste que se encontra em alguns, como alguminseto ou animal no interior do corpo, como veneno e,mais perto do presente, como uma inominável e misterio-sa doença. É por essas metáforas que a morte sempre ron-dou as formas de homotextualidade, como uma espécie designo de punição e de castigo, do qual parece não se esca-par. Adoecer sem esse signo de punição, sem o profundosentimento de culpa que colam ao corpo e ao desejohomoerótico foi o maior desafio ao longo de toda a vidaescrita de Al Berto. Em seus textos, estão presentes abso-lutamente todas essas metáforas – que vão se diluindo aolongo do tempo, ao longo da sua experiência soropositiva,ao longo da experiência de escrever vidas e de experienciarescritas. O primeiro poema de “Réstia de sangue”, no livro

A noite progride puxada à sirga, de 1985, colocado ao ladodo livro de Mann, figura o adoecimento logo à chegada “aqualquer cidade imaginada”.

mas adoecera repentinamente

era como se dali nunca tivesse saído

escrevia pouco diziam que estava louco

dormitava indefeso na melancolia da tarde

coleccionava postais ilustrados deslocava-se

ao olhar aquelas imagens dormia em Florença ou

visitava Veneza onde nunca conseguia entrar

no verão seguinte encolheu-se ao sol da janela

a febre estiolara-lhe os nervos e o peito

ardiam-lhe os olhos na ilusão de mais um dia

amava ainda mais Veneza e as borboletas que duram pouco

dizia-me que era sorte sua ter vivido tanto tempo (p.473).

A metaforização da doença é um discurso obscuran-tista e moralizante sobre a diferença, sobre o outro que sepossui no corpo e que ameaça a “normalidade” do corposocial – daí a noção de “grupos de risco” (Bessa, 1997,p.21 e 104). Na Antigüidade, contrair uma “doença” im-plicava o risco do julgamento moral de toda a comunida-de, do corpo manifestando seu “erro” ante os ditames e asvontades dos deuses. Daí as pestes e as pragas relatadasnos textos sagrados. Na Modernidade, um corpo “doente”revelaria um indivíduo “doente”, cujos sintomas poderiamser determinados pelas ciências médicas e sua auscultaçãodaquele corpo nas suas partes específicas, também indivi-dualizadas. Porém, por mais que se pense que a revoluçãomédica tenha operado uma troca do julgamento moral pelaavaliação da saúde, como afirma Richard Sennett (1997,p. 214), é certo que essa “troca” continuou sustentandoum julgamento de valor arbitrário e moralista (cf. Sontag,1984). Na política moderna, o sujeito é forjado e contro-lado por práticas individualizantes a partir da efetuaçãoda clivagem dos espaços em público e privado, com suasrespectivas regulamentações. O discurso político obscu-

102 Revista Brasileira de Literatura Comparada, n.12, 2008 Al Berto, a escrita, o corpo, a vida 103

rantista, mistificador e moralizante passa a ser o instrumen-to da “opinião pública” para fabricar o corpo individual,regular o corpo selvagem em um corpo social e legislar ocorpo político, em detrimento dos casos singulares que lhesescapam. No caso dos homossexuais, são incriminados epunidos por seus desejos mais legítimos e intransferíveis.Isso nos leva a pensar a melancolia que atravessa perma-nente os textos de Al Berto como um acerto de contaspolítico com a geração da segunda metade dos anos 1970e início dos anos 1980, nos quais a “suave força [da me-lancolia] nasce de uma percepção da passagem do tempo,das ruínas que se avolumam [...] O melancólico as sabeinfinitamente ínfimo e a morte está sempre próxima”(Lopes, 1998, p.15).

Ressaltando esse acerto de contas a partir de uma sen-sibilidade que não é apenas individual, o desejo homo-erótico – mesmo que melancólico – empreende uma críti-ca ao seu controle sociocultural e ao seu cerceamento moralvia privatização e reclusão à intimidade, reelaborando for-mações discursivas e redefinindo a política na passagempara o século XXI.

Al Berto é ainda em parte tributário das representa-ções do desejo homoerótico sob a forma de metáforasmistificadoras e moralizantes. Difícil ultrapassá-las, pois aliteratura, de resto, ainda é comumente lida como donaprivilegiada de “uma pesada carga de ‘conteúdo’, ao mes-mo tempo reportagem e julgamento moral” (Sontag, 1987,p.344), o que dificulta ser avaliada como um estado deintensidade experimental, como corpo na sua presençamaterial e exterior mais valiosa, repetindo leituras morali-zantes e interiores. O tipo de textualização da qual Al Bertotambém é devedor, por sua vez, sabe que o corpo não per-tence mais simplesmente à ordem do legível, das repre-sentações, do universo fechado, da escrita despótica, en-tregue ao olhar contemplativo. O corpo – e também adoença – passam a ser traço, inscrição, marca, materiali-dade gravada sobre o suporte que o sustenta, e a doença –que só difere da saúde em grau – é também a vontade de

uma escrita selvagem, pensante, polimorfa e erótica. A me-táfora nessa prática de escrita não é mais de tipo romântica,contemplativa e hermenêutica, que ainda embala a escri-ta de Thomas Mann, por exemplo. A metáfora passa a sero tipo de afecção de que um corpo é capaz, afecção estam-pada no trabalho do estilo.

arrumo meus papéis escritos para o último livro

com um tigre prodigioso cravado nos ombros

mantenho os dedos sujos de tinta há vários dias

e sempre que não consigo escrever fumo devagar

encontro tempo necessário para não fazer nada

de meu corpo corroído pela febre ergo-me

atravesso a sala

desligo a televisão que nunca vejo aberta

junto à janela aberta

a mãe tece

a camisola em lã mal cardada

um vestígio de dor envolve-me

que acontecerá à minha sombra?

terei tempo de assobiar à morte?

terei tempo

de levar comigo a roupa de que mais gosto?

que horas são? além

perto da mãe

talvez não seja só febre isso que me assola

pode ser um indício de peste

qualquer mal que alastra pela mansa noite

a contamina os dias fechados na desolação

não consigo imaginar que se morre sozinho

sem sombra sem doenças sem sangue

A sensação de um terrível mal-estar, de algum malfísico e, especialmente, psicológico, impede de discernirao certo que questões se colocam no e para o corpo noinício do texto. Isso é claro na sua primeira metade, nasquatro estrofes iniciais, que sustenta uma descrição de es-

104 Revista Brasileira de Literatura Comparada, n.12, 2008 Al Berto, a escrita, o corpo, a vida 105

tados enfermiços, um bloco de sensações absolutamenteservil pela debilidade diante das afecções ali inscritas. Aotentar manter uma falsa neutralidade descritiva, o corpoenveredou pelo conservadorismo e pela impotência. A belaimagem do segundo verso – “um tigre prodigioso cravadonos ombros” – dimensiona bem o tamanho do mal-estar etambém o tamanho do desconhecimento da “febre” quecorrói o corpo, ainda dependente da figura materna. Já asegunda metade do poema, nas três estrofes finais, efetuaum movimento mais potente no sentido de abrir algumafresta na rede metafórica desse mal-estar, desse “tigre pro-digioso”, dessa “febre”, dessa “camisola em lã mal cardada”.A “dor” toma (o) corpo crescentemente, o “mal” se “alas-tra” e “contamina”, a “morte” se aproxima e as dúvidas,maiores, desorganizam a rede metafórica do texto, que –de narrativo e descritivo – passa a mais incisivamente diretona série de interrogações da quinta estrofe, na substitui-ção da “febre” pela “peste” (compartilhada na sua insinuan-te singularidade), na sexta estrofe, e na proximidade damorte na última estrofe. A doença deixa de ser interpretadacomo imagem moral de uma má-consciência e passa a serexperimentada como crise para a renovação do corpo, esta-do de fortalecimento e multiplicação dos seus atos. A doen-ça é o signo da descontinuidade da vida, da transformaçãorumo à saúde e a recusa ao estado mórbido da hereditarie-dade e gregarismo (cf. Klossowski, 2000, p.218-95). A co-letividade é, no caso de Al Berto, polimorfa, formada porcombates que renovam seu colorido e esplendor. É o quese lê no final do poema: “não consigo imaginar que se morresozinho / sem sombras sem doenças sem sangue”.

Fuga e metamorfose

A experiência da morte para Al Berto se apresentoucomo a experiência da grande viagem para a qual se pre-parou durante toda a vida. A morte foi o ponto culminanteda sua vida, o laço final e confirmatório dos experimentosque produziu no seu corpo como território maior. Na ver-

dade, a melhor maneira de experimentar a morte comoponto alto da vida é lutando contra ela, o que Al Berto fezexemplarmente, com a paixão dos que guerreiam em campoaberto, sem dissimulações, só os ágeis movimentos dasbatalhas festivas, rituais onde se reafirma o desejo comomóvel da vida, como no poema “Tentativas para o regres-so à terra, 4”, do livro Trabalhos do olhar, de 1984.

a noite dilata a viagem

pressentimos a nervosa luta dos corpos contra a velhice

mas nada há a fazer

resta-nos descer com as raízes do castanheiro

até onde se ramificam as primeiras águas e se refaz o desejo.

(p.194)

O ritual do castanheiro – de fundo xamânico – é pre-paratório para a grande viagem que o envelhecimento in-dica. O corpo viaja pelas estradas como um corpo pere-grino, que abandona a culpa e se liberta dos pecados. Essaé a visão da estrada – o corpo viajante envereda por ca-minhos cuja libertação está no traço iniciático, de intro-dução à alteridade, a uma outra realidade e a uma outravida. O nome “Al Berto” já é traço derivado de outras einúmeras viagens de sua parte, sujeito residual. E, comotodo desenraizamento, a fuga é excessiva e sofrida. É si-multaneamente morte e renascimento, numa relação emque encontramos viagem, religiosidade neopagã e proces-sos sociais, muitos presentes na contemporaneidade (cf.Mafesolli, 2001).

Assim também se dá com a arte das doses, prática querecupera uma ênfase no corpo por parte de um munda-nismo voltado para o espaço sagrado no seu perigoso flertecom a morte – agora não mais a morte decorrente do en-velhecimento, mas da posse experimental do seu própriocorpo, da sua exposição às forças intensivas de drogas. Ocorpo drogado empreende uma viagem experimental porpaisagens que são pura artificialidade, simulacros da gran-de viagem da morte, performances contestatórias da ordemque submete o corpo, da escrita despótica que – abstrata –

106 Revista Brasileira de Literatura Comparada, n.12, 2008 Al Berto, a escrita, o corpo, a vida 107

o domestica. As drogas produzem uma viagem que rees-creve o corpo de Al Berto pelo princípio do nomadismo,da errância e da dispersão. E a viagem que Al Berto escre-ve não é metafórica. Ele viaja realmente quando se droga,viaja quando morre, viaja quando escreve – seu corpo élevado por uma vontade de geo-grafizar a existência e avida. E o corpo o faz precisamente à maneira dos grandesxamãs, como se lê na fala do “Curandeiro”, do primeirolivro, À procura do vento num jardim d’agosto.

/ deitado na serenidade dum gume sugando a veia enquan-

to não te defines / altura mais clara da noite / membrana

distendendo-se no vapor sulfúrico da noite que nos sitia /

ligeiras membranas / voluptuosamente flutuantes em fusão

umas com as outras / simulacro do sonho / gesto esquecido

na memória de ser hoje laranjapeixe / membrana de ar onde

se movimentam os dias numa hemorragia de cuneiformes

sementes / escrita tumular / delírio espesso e fragmentário

do infernal filmes da cidade / florido corpo esvaziando-se na

sépala dum fumo ou do marfim do olhar lento dos mortos /

espaço de um trabalho errante / ferida reaberta por baixo do

precário penso / [...] / fenda viva vulva por onde escapamos

/ tropeçando em nosso próprio excesso mudamos de cor e

de idade / mudamos de rosto e morremos / sumptuoso esper-

ma das estrelas / corpo sísmico na moela da viagem / trope-

çando resistindo num último alento rastejando com o sexo

dentro dos cinzeiros / Alice espera-te à sombra do maravi-

lhoso cogumelo / [...] / percorro-me mas raramente encon-

tro uma saída / tacteando paredes de labirinto escrevo / o

corpo pulsa num arrepio / as luzes apagam-se e a queda re-

começa / visto-me com penumbra e deixo que o vento me

arraste / disperso-me pela paisagem / (p.61-2)

As enumerações frasais imantam as palavras com umasacralidade rítmica que se tensiona com o extremo munda-nismo das seqüências de imagens. A grande viagem pro-porcionada pelo uso da droga – simulacro e suplementoda morte – materializa-se em uma sintaxe cuja linearidadeé rompida brutalmente pela descontinuidade visualmentemarcada nas barras. Impõe-se aí um tempo espiralado no

qual o corpo desenha grafismos que apontam, acima detudo, para uma experiência de choque sensorial muitocomum em festas populares de origem pagã e em rituais deiniciação. No texto de Al Berto – no qual a escrita se pro-cessa sempre flutuante e tática, no sentido de ser um gestopontual, que se esfarela ao piscar dos olhos – o corpo es-creve movido por uma permanente experiência de imper-manência, pulsão de deslocamento e fuga.

A potência do seu corpo aparece no texto quando es-crito precisamente na tactilidade dessa sua experiência dedeslocamento – walk writing em que a produção da expe-riência se inscreve como materialidade do texto (cf. Vas-concelos, 2000, p.56). Encontra-se essa escrita deambu-latória na sua elaboração mais exemplar com o preciosotexto “A morte de Rimbaud”, que fecha – em quatro par-tes – seu último livro Horto de incêndio. Nele, Al Bertorealiza a despersonalização fatal para a sua última viagem.Em primeira pessoa do singular, incorpora a assinatura“Rimbaud” como aquela pela qual se metamorfoseará nogrande fugitivo, no maldito, no eterno adolescente, maiorde todos os artistas rebeldes, ladrão do fogo olímpico, quese recusa a viver em culpa e pecado e entrega seu corpo àfuga sem fim das noites em movimento.

a verdade é que passei a vida a fugir, de cidade em

cidade, com um sussurro cortante nos lábios.

e atravessei cidades e ruas sem nome, estradas, pontes

que ligam uma treva a outra treva.

caminho como sempre caminhei, dentro de mim – ras-

gando paisagens, sulcando mares, devorando imagens.

o absinto, esse álcool que me permitiu medir o tempo

no movimento dos astros.

e vi a vida como um barco à deriva. vi esse barco ten-

tar regressar ao porto – mas os portos são olhos enormes

que vigiam os oceanos. sevem para levarmos o corpo até

um deles e morrer.

[...]

o regresso nunca foi possível.

o verdadeiro fugitivo não regressa, não sabe regressar.

reduz os continentes a distâncias mentais.

108 Revista Brasileira de Literatura Comparada, n.12, 2008 Al Berto, a escrita, o corpo, a vida 109

aprende a fala dos outros – e, por cima dele, as cons-

telações vão esboçando o tormentoso destino dos homens.

[...]

não semearei o meu desgosto, por onde passar.

nem as minhas traições. (p.609-10)

Diversamente de seus ancestrais portugueses, ao via-jar, Al Berto não quer mais mudar o outro, mas se mudarem outro – mudar a si próprio, experimentar um outro nopróprio corpo, submeter-se a si mesmo para não ser maissubmetido. Tornar-se senhor de si próprio. Na verdade, ofugitivo deseja, sobretudo, ser outro, mínimo, escuso, ocul-to, menor na sua falta como povo. E Al Berto tanto correu,tanto escapou, tanto fugiu que “fugir tornou-se uma ob-sessão, ou então é a melhor maneira de encenar o deses-pero” (p.613).

O movimento é o desejo mais premente em Al Ber-to – traçar linhas e mais linhas de fuga como estratégia devida, linhas escritas sobre o próprio corpo, não como Leispara o Caminho, a Verdade e a Vida. Senão como seu pró-prio caminho, sua própria verdade e sua própria vida. Nessaerótica, sua escrita recusa a sacralização monoteísta e alinearidade do pensamento único e escolhe o extravasa-mento das pulsões, o arrombamento da clausura pela po-tência da traição. Não qualquer traição, mas aquela aosgrandes impérios, às grandes religiões, às grandes institui-ções, aos grandes discursos salvacionistas e disciplinadores.Al Berto se sabe traidor. Sabe haver traído Pai, Pátria, Deus,Família, Estado, Sexo. Mas jamais traiu o seu desejo defugir, o seu desejo minoritário. Só foge quem é menor diantedos grandes poderes fixos (cf. Deleuze & Parnet, 1999,p.53-6). É contra a hiperidentidade da cultura portuguesa(cf. Lourenço, 1988) que Al Berto escreve. Seus cadernosescritos optam pela desidealização do corpo sociopolíticoe pela tomada de partido por uma escrita selvagem, con-tra a escrita tradicionalmente imperial, com que a me-mória cultural portuguesa é significada. Leiamos os frag-mentos abaixo, do longo poema “A seguir o deserto”:

[...]

a viagem devora-me

cega-me o brilho dos alicerces ainda sólidos da casa

ultrapasso-os por fim atinjo o lodo

as ardósias onde o cuspo dos deuses inscreveu a me-

mória daquele que foge

pressente-se já a pequenez do país submerso

quando atei a minha idade ao coração da terra era

porque a morte se aproximara

suicidei-me há muito se era isso que desejava saber

[...]

assim continuo a desejar países serenos lagos

suaves palavras gravadas no envelhecido estanho dos

gestos

e conheci o imutável bolor do rectangular país

a histeria peninsular

o buraco onde coalhou o pressagioso nevoeiro de

Quibir

que país é este? onde a espera definha noutra espera

[...]

eu tossia cada vez mais

a doença contaminava o corpo e tudo o que vivera

comigo esfacelava-se nas arestas dos dias

quando partiste comecei a gravar o que me evocava a

tua passagem

os nomes das plantas os meses

as funções dos objectos os perfumes o vestuário

e tossia sangue para que os meus actos adquirissem

transparência

a doença tinha a enormidade dum mar interior

mas apesar de tudo amava-te

e nunca vi coração tão forte como o teu

basta olhar o asfalto ferido das cidades

ou lamber-te para sentir a terra e o azedo que outros

corpos esqueceram no teu

[...]

grito: que se libertem as índias da memória

os arquipélagos de remoto ópio

os trópicos do meu sangue os líquenes inexplicáveis

a visão do início

110 Revista Brasileira de Literatura Comparada, n.12, 2008 Al Berto, a escrita, o corpo, a vida 111

as primitivas tribos de povos estelares as pragas de ga-

fanhotos e de sífilis

a peste

que se revele no fundo de mim a peste

[...]

procuro-te obsessivamente na melancolia das mãos

porque só o acto de morrer muitas vezes compensa

e foi necessário que fizéssemos uma serra para cortar

os pulsos

de uma espada e fizemos

e com uma cana-da-índia de rota fizemos uns foles

para atear o fogo

mas no fundo sabemos que não podemos continuar a

adiar a morte

pintei nos ombros umas asas de coral para me evadir

abandonei a casa e as notas rabiscadas rapidamente

as emendas as manchas de tinta azulada nos dedos

os manuscritos ilegíveis

a poeira dum olhar preso ao vício feliz das palavras

a escrita

a indelével respiração do poema

o fluxo do grito o eco lacustre dos dedos tamborilando

no sono

a casa vazia

e a janela onde debrucei o que me restava da vida

levei dez dias de viagem

até que a noite me recebeu como um ressurgido do

outro lado do corpo

e nada direi sobre o deserto

nem deixarei sequer um inédito (p.337-46)

Está tudo aí. O parti pris pela estrangeiridade, a fugacomo método, a vida produzida pelas linhas de fuga, a afir-mação da vida na crise impressa pela morte como transfor-mação maior, contra a lógica da repetição presente em casa,a recusa à memória nacional e a exposição que os malesda hiperidentidade causaram ao seu corpo, à sua saúde.Junto ao “imutável bolor do país rectangular”, a doença éminoritária, contra o gregarismo nacional, pela figura dointerlocutor, amado a quem basta lamber “para sentir a

terra e o azedo que outros corpos esqueceram no teu”;doença agora como parte do tratamento contra a mórbidasaúde do nacionalismo português, do passado monumen-tal, dos heróis e do Estado bélico. Enfim, de uma escritasumamente despótica a controlar os corpos.

Espaços

Para os grandes fugitivos, como Al Berto, a estrada ésempre flutuante, móvel e desestabilizadora da memória.

a estrada é talvez uma idéia que nunca acaba, nada

tem a ver com os kms a percorrer. a estrada é como o desejo

não realizado, não tem princípio nem fim, existe flutuante,

intensamente, até que esquecemos. (p.358)

Percursos são poucos, finitos. Donos de uma sintaxeclássica, de um léxico compartilhado, com pouca inven-tividade e transgressão. A língua é um percurso feito e re-feito, posto e imposto. Jamais desfeito. Desfazê-lo, trans-gredi-lo é se marginalizar, é se desencaminhar. Já as estradassão infinitas – aleatórias, por isso infinitas – atravessadaspor toda espécie de singularidades. A estrada é o principalsujeito do movimento. Ela se desloca junto com os passos,que exalam alegria na recolha dos resíduos e dos fragmentosque por ela encontram. Por elas são encontrados trechoscom estilos alheios, imprevistos movimentos frasais, bura-cos sem sinalização nem pontuação, tropeça-se em pala-vras, fragmentos de outros corpos, que se metamorfoseiampelo espaço, trocam de pele, de rosto, envelhecem ou reju-venescem, alimentando-se, suando, urinando, salivando,falando, olhando, ejaculando, sangrando, lagrimejando, es-crevendo, transformando a vida. Fazendo uma analogiaentre a estrada e o traçado da escrita, podemos afirmarcom Félix Guattari (1992, p.153) que

durante a leitura de um texto escrito, o traçado da articu-

lação fonemática libera, de modo descontínuo, suas seqüên-

cias significativas de articulação monemática. Ainda aí um

112 Revista Brasileira de Literatura Comparada, n.12, 2008 Al Berto, a escrita, o corpo, a vida 113

outro Agenciamento de enunciação desencadeia outras

modalidades de espacialização e de corporeidade. O espa-

ço da escritura é, sem dúvida, um dos mais misteriosos que

se nos oferece, e a postura do corpo, os ritmos respiratórios

e cardíacos, as descargas humorais nele interferem forte-

mente. Tantos espaços, então, quantos forem os modos de

semiotização e de subjetivação.

Na leitura dos grafismos dessa linha-estrada, recolhe-mos resíduos de todos os tipos, resíduos de outras escri-tas-corpos, em maior ou menor quantidade, deixado noespaço para que a ele o leitor possa se unir – revitalizá-lo,revitalizando-se.

Estar sempre em movimento trouxe conseqüênciaspara Al Berto. Seu corpo não habitará lugar algum, so-mente percorrerá espaços, atravessá-los-á noite e dia comoum projétil insone e voraz – objetivamente atrás do desejode movimento, de deslocamento por espaços que se mos-trarão sempre os mesmos. Na sua deambulação, permane-cer em algum lugar, construir um lugar permanente custariaa própria vida do corpo. E este só existe quando escreve,quando se move na escrita, no ato de escrever, concen-trando ossos, tendões e neurônios. Movimenta-se para lem-brar que se está vivo, para produzir vida no corpo, produzira vida do corpo, para fazê-lo escapar às identificaçõesgregárias fabricadas pelo lugar, identificações despóticasque subjugam o corpo do outro, seus desejos desterri-torializados e insubmissos às convenções sócio-culturais,às instituições e fundações que se lhe são impostas pelocorpo do Pai-Pátria-Patrão-Estado-Igreja-Rei-Escola-Deus.

Al Berto quer livrar-se do peso e da fixidez do lugarem prol da leveza e da mobilidade do espaço, da desterri-torialização singular, maleável, até mesmo violenta, masque anseia abdicar da lógica das representações. Não setrata de se pensar binariamente o lugar como antropológi-co e o espaço como utilitário (cf. Augé, 1994, p.76-7). Oaproveitamento do espaço é o da composição de singulari-dades que se forjam pela ordem dos afetos, dos desejos,das pulsões sempre mutáveis. Podemos dizer que a série

“espaço” – descontínua, aleatória e infinita – é uma linhade acontecimentos que se traça junto à série “corpo”.Ambas (inter)agem permanentemente como produtorasde subjetivação. Abandonar família, casa, cidade, país, ori-entar-se homossexualmente, recusar as instituições literá-rias e culturais é correr o risco por espaços de vida, decriação e transformação. Nesse risco, o corpo de Al Bertoé afetado dolorosamente pelas mega-máquinas da apare-lhagem de Estado. O que a aids significou para seu corpocomunitário é exemplo disso. A sua fragilidade diante dessarede centralizadora sempre foi enorme. Assim, como naopção pela viagem iniciatória radical – preparação da gran-de viagem da morte –, os espaços percorridos pelo corposão da mesma ordem de radicalidade e contundência: ca-sas, cidades, países anônimos, devastados como corposterminais, extensões de um corpo entrópico.

... há uma cidade a rebentar na humidade vertiginosa da

noite e um homem com olhar de açúcar encostado ao néon

melancólico das esquinas espera o próximo shoot de heroí-

na... há uma cidade por baixo da pele e uma casa de sangue

coagulado na memória atravessada por canos rotos e um

corpo pingando mágoas... há uma cidade de alarmes e

um tilt lancinante de flipper dentro do meu pulmão ado-

lescente e uma dor de chuva fustigando o sexo adormecido

no soalho do quarto de pensão... há uma cidade de visco e

de esperma ressequido e uma pastilha elástica presa ao fun-

do do copo... há um sorriso e um engate e um càmone e um

arrebenta e uma boca de lodo aberta sobre o rio... há uma

cidade de fome e lixo enquanto o ciúme escorre das mãos

do amantes... há um dedo de lâminas usadas e um beco

sem saída onde se enroscou um puto e um cão de febre...

há uma cidade crescendo no grito e na gasolina no fogo

nucturno da minha vertigem presa nas alturas de cimento

armado onde coabitam sexos mergulhados em naftalina...

há um osso branco que perfura a insônia e a madrugada e

esta cidade de nojo e de fascínio... há uma navalha cortando

o betão das avenidas e um pássaro de enxofre nas feridas

duras dos cabelos... há uma cidade de estátuas desmante-

ladas contra o espelho de um bordel e a luz do teu olhar

114 Revista Brasileira de Literatura Comparada, n.12, 2008 Al Berto, a escrita, o corpo, a vida 115

dentro duma janela antiga... há uma cidade que se escapa

para fora da noite espia avança e mata... há uma cidade de

trapos queimados e de vozes ardendo e uma toalha para

limpar o sono de poucos brinquedos... há uma alucinação

furiosa que me incendeia a veia e revela teu rosto lívido

que se suicida... há uma cidade de papel engordurado que

eu amachuco nos dentes e todo o meu corpo sangra... tre-

me... e tem medo... e morre... (p.147)

Cidade e corpo se plasmam. Entre propriedades ana-tômico-fisiológicas e sócio-espaciais, seu corpo e se fundeà cidade, intercambiam-se e se fazem extensões um dooutro. Sensações se condensam em uma escrita em espi-ral, que se movimenta entre reticências e enumeraçõesdescritivas, num percurso circular que aponta para o mo-tivo musical do texto (“há... há... há... há...”) – só leve-mente deslocado de um trecho para outro pela sutil per-muta entre propriedades entre cidade e corpo (“há umacidade crescendo no grito e na gasolina no fogo nucturnoda minha vertigem presa nas alturas de cimento armadoonde coabitam sexos mergulhados em naftalina...”). Aí, acontinuidade não se faz tão-somente pela espacializaçãovisual do texto. Ela está presente no espaçamentomarcadamente temporal das reticências. Temporal porqueprolonga o sentido do que está escrito em um tempo não-escrito, de que as reticências não são simplesmente índi-ce, mas o próprio sentido. O excesso de repetição conduzàs vias da desterritorialização do sentido do escrito. A im-pressão de um significado flutuante é resultado da pressãode se ler o “por debaixo de” ou “entre” as palavras, quan-do o que realmente flutua é o significante corpóreo, o seucorpo próprio, que é texto escrito, instável na visceralidadeda sua performance:

toda a cultura impõe aos seus membros não somente mo-

delos de comportamento, mas também espaços implícitos

onde se desenvolvem a inventividade e a expressão indivi-

duais Estas zonas ficam sujeitas ao significante flutuante:

não é ele o testemunho de toda arte, toda poesia, toda a

invenção mítica e estética? (Gil, 1997, p.48)

Isso, no entanto, só é viável porque Al Berto se esfor-ça ininterruptamente por desfazer-se da memória culturalque gravaram sobre seu corpo, memória despótica de ex-tração histórico-teológico-familiar. Sua memória é outra,parida pelo corpo, da sua força, da sua potência, da suaação, do seu gesto. E não uma memória criadora de formascentralizadoras, fantasmáticas e divinizantes de existên-cia, a domesticar o corpo. Sua memória também pulsa,vibra, sangra, treme, vive e morre, pois não é apenas re-presentação, mas uma memória feita de carne, feita dedor e prazer físicos. A memória para o poeta é principal-mente a sua espacialização, sua inscrição flutuante e ins-tável, por onde o corpo pode navegar à cata novos frag-mentos para a sua montagem, como no trecho abaixo, de“Quinta de Santa Catarina, 2”.

animais estrangulados, matérias plásticas, um tijolo

com os furos cheios de avencas, um cão atropelado, man-

chas de sangue seco. o fundo do tanque em cimento, o

perfume da roupa lavada. uma sombra debruça-se para o

tanque, em cima da mesa os óculos, a régua que pertenceu

ao avô, a resma de papel, a colher em prata lavrada, uma

lâmpada fundida, água. mais água, um envelope molhado,

as canetas, os lápis, a máquina de escrever. tornou-se difícil

prever até onde os olhos conseguem nomear, arquivar, ar-

rumar para sempre os pequenos resíduos da adolescência.

hoje, escrever é um ato nocturno. respiro dolorosamente.

escrevo sempre deitado ou encolhido sobre a mesa. o silên-

cio e as sombras deslizam à minha volta. espreitam por cima

do ombro para verem o que estou a escrever. ouço a músi-

ca que vem do fundo da minha solidão. música aquática,

arestas do sangue, medrosos dedos tamborilando nos vi-

dros poeirentos. teu nome, este som frio de árvores esface-

lando a cal das paredes. escrevo com o medo e o susto den-

tro de cada palavra. a vida atinge a espiral vertiginosa da

noite. é esta palavra que me serve para te nomear e não

outra: medo. os textos progridem com a desolação da casa,

latejam sobre o papel, doem-me os dedos e os olhos, os

órgãos do corpo que nunca vi. o peito desgasto pela doença.

por uma fenda nas madeiras cresce a alba. perfura, entra

116 Revista Brasileira de Literatura Comparada, n.12, 2008 Al Berto, a escrita, o corpo, a vida 117

pela janela, devassa a intimidade penumbrosa do quarto.

paro de escrever, estou muitíssimo cansado. na exaustão

da noite dei comigo a enumerar as coisas amadas. ponho-

as nos lugares onde sempre estiveram, dou-lhes uma idade,

uma utilização, e antes que a manhã se abata sobre a casa

recrio o mundo. depois, espero o sono. incham-me as pál-

pebras, adivinho os sonhos anteriores à minha idade. o

corpo escorrega pelo abismo florido das galáxias. nada sei

de mim durante essas horas. absolutamente nada. (p.132)

O espaço é tocado na sua intimidade. O olhar se es-tende até os objetos e as coisas que o habitam e compõemcom o sujeito um singular espaço de imanência. A unidadevai pouco a pouco se estabelecendo entre o corpo e o espaçoao redor. Todo corpo se move por um espaço. E o corpo éatento a isso, ao mundo ao redor, que o cerca, o desafia, omobiliza, o toca. A cada instante o espaço do corpo muda,assim como o corpo também muda. Os limites do corponão estão necessariamente na carne, mas se espraiam peloespaço que o envolve – e até mesmo pelos espaços que já oenvolveram, pois sempre resta algo de material, algum re-síduo da presença do corpo ali. Na água isso é visivelmen-te constatável: “o espaço do corpo é isso: você está imersanuma grande banheira tomando banho, cai uma aranhasobre a superfície da água perto de seus pés e você se arre-pia! Aquela aranha não lhe tocou, mas tocou” (Gil, 1993,p.254). Mas também na cidade, na casa, no quarto, nocarro, na máquina de escrever, no lápis, no papel, na escri-ta, no computador, no mundo virtual. A idéia de corpo danação, corpo da cidade, corpo docente, corpo familiar,corpo policial, etc. não é simplesmente metafórica. Há umaespacialização do corpo, cuja dimensão pode chegar a im-pressionantes distâncias. O “espírito de corpo” é uma me-táfora deformadora e despótica dessa relação. No texto,lista-se e descreve-se objetos presentes no espaço da casaaté se sentir também tocado pelo espaço enumerado noato de escrever. Depois de confirmar a casa conter tanto ocorpo quanto os textos, “espero o sono. incham-me as pál-pebras, adivinho os sonhos anteriores à minha idade. o

corpo escorrega pelo abismo florido das galáxias. nada seide mim durante essas horas. absolutamente nada”. É umaexperiência física, na qual a casa e os corpos mostram ta-manha coordenação, tamanha imediaticidade entre eles.

Observações finais

Al Berto é sempre listado em estudos dedicados à re-cente poesia portuguesa como ligado à geração de poetassurgidos nos anos 1970. Na mesma década, a Revoluçãodos Cravos se fez como canto do cisne dos anos 1960 e dassuas políticas de subjetividades utópicas e libertárias. As-sim também se deu com a independência das colônias afri-canas de Portugal, compondo o rol de eventos que encer-ram os aos 1960, segundo Fredric Jameson (1991, p.88-9).A imagem dos cravos exemplifica perfeitamente o pacifis-mo e a alegria primeira na mudança de regime, o que podevincular os acontecimentos de abril em Portugal nos anos1970 com o desfecho dos chamados sixties. Não é ociosolembrar que um dos emblemas contraculturais desses anosé o flower power – o poder das flores –, e que a utopiapacifista e o libertarismo político-sexual comandavam boaparte dos gestos políticos mais importantes. Mesmo nosmomentos mais violentos das revoltas de Paris em 68, asflores foram arremessadas pelos estudantes contra os poli-ciais, num gesto que traz a recusa ao sentido autoritárioda palavra poder, bem como elabora uma estetização dadenúncia, sua performance, muito de acordo com o espíri-to de festa do período (cf. Matos, 1981, p.15-6). Assimtambém se deu com os tanques e soldados nas ruas de Lis-boa, que foram enfeitados com os cravos que a populaçãotrazia às mãos.

Esse traços são os que se quis apontar nessa leitura deAl Berto, pois a recusa do poeta a um tipo de sociedadecujos laços comunitários são de base familiar, uma socie-dade que sempre teve o Estado como tutor do seu destino(cf. Santos, 1996, p.94-6), o posiciona à margem de umsistema cultural tradicional e por vezes autoritário. Al Berto

118 Revista Brasileira de Literatura Comparada, n.12, 2008 Al Berto, a escrita, o corpo, a vida 119

e sua produção poética estão plenamente amalgamados àspolíticas de subjetividade que percorrerão os anos 1970ainda no influxo dos anos 1960. A sua voz impõe pausas eagencia figuras que ainda sofrem com a recusa de algumacrítica, ou então tem tratamento demasiadamente “tradi-cional”, o que pouco condiz com a perspectiva libertária eautoficcional do poeta. A relação entre vida e texto é ge-ralmente recusada em nome da assepsia de misérias críti-cas que se colocam sob feições metodológicas das diversasleituras textuais – quando é justamente a tensão da escri-ta pela vida, e da vida pela escrita, que é caracteriza AlBerto. Por isso, as figuras discursivas que Al Berto mobilizana sua escrita são justamente figuras de vida, que se impõequase que como uma linha única, que se espicha e coletapossíveis “nós” na sua teia-vida: homoerotismo, drogas,fugas e viagens, morte, todos amarrados pela figura maiorda subjetividade (do) poeta.

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121

Morrer é uma arte?Silvia Plath e os suicídios do autor

Lilia Loman*

RESUMO: O suicídio do autor é comumente foco de interesse da

crítica estritamente biografista. Vida e obra tornam-se evidên-

cias de uma morte anunciada que é simultaneamente fim e início

de tudo. Embora exacerbe indubitavelmente o desejo por equi-

valências absolutas, o suicídio é, entretanto, em si ambivalência,

duplicada pela autodestruição, no texto, daquele cuja mão mata

e escreve. Nessa breve reflexão sobre a poética da morte de Sylvia

Plath, o suicídio será visto como fator desestruturador, catalisador

de um diálogo entre a morte (biológica) do autor e a Morte

(barthesiana) do Autor. Os poemas analisados serão, assim, pal-

co de suicídios plurais, encenados no texto em sua singularidade.

PALAVRAS-CHAVE: Sylvia Plath, suicídio, morte do autor.

ABSTRACT: The suicide of the author is commonly the focus of

interest of strict biographical criticism. Life and work become

pieces of evidence of a foretold death which is simultaneously

the beginning and the end of everything. Suicide undoubtedly

exacerbates the desire for absolute equivalences, it is, however,

an ambivalence that is duplicated by the movement of self-de-

struction in the text triggered by the hand that kills and writes. In

this brief reflection upon Sylvia Plath’s poetics of death, suicide is

seen as an element of disruption that catalyses the dialogue be-

tween the (biological) death of the author and the (Barthesian)

Death of the Author. The poems here analysed are, therefore, to

be seen, as the stage of plural suicides performed in the text in

their singularity;

KEYWORDS: Sylvia Plath, suicide, death of the author.

Introdução

Ainda pouco conhecida no Brasil, Sylvia Plath tor-

nou-se um mito nas décadas que seguiram ao seu suicídio.

* Professora doutora,

pó-doutoranda do Programa

de Literatura e Crítica

Literária da Pontifícia

Universidade Católica de

São Paulo (PUC-SP).

122 Revista Brasileira de Literatura Comparada, n.12, 2008 Morrer é uma arte? Silvia Plath e os suicídios do autor 123

A autora, que em 2008 completaria 75 anos, possui uma

vasta fortuna crítica, especialmente em países de língua

inglesa, e sua vida póstuma inclui profanação de lápides,

difamações e produções cinematográficas.1 Entretanto, na

época de sua morte, Plath era vista como uma poeta de

menor espectro cujo nome era indissociavelmente ligado

ao de Ted Hughes, seu marido.

Sendo inegável o impacto que seu suicídio exerce como

elemento de fascinação, questionamentos acerca da inter-

pretação e até mesmo da qualidade de sua obra inevita-

velmente surgiram. A presente reflexão não tem como

proposta responder a tais questionamentos, mas preten-

de, com efeito, examinar alguns aspectos individuais à

poética de Sylvia Plath que concernem, por sua vez, a temas

gerais do estudo da literatura, em particular o antagonis-

mo entre o apelo do referente e a anti-representação.

O “eu” deslocado: testemunhos póstumos

Biografias de suicidas pressupõem a morte como pró-

logo ou o primeiro capítulo. Em uma espécie de curto re-

verso da existência, The death and life of Sylvia Plath2 de

Ronald Hayman (1992) narra a vida da poeta entre o ca-

pítulo de sua morte (“The end of a short life”) e de sua

vida póstuma (“Posthumous life”).3 Na medida em que a

morte se torna o início e o fim, não só a cronologia é re-

vertida, mas, em casos como o de Plath, a obra também

se apresenta como “evidência” a ser decifrada, o trajeto

de um fim já anunciado. A morte como referente torna-

se, anterior a tudo e, portanto, perigosa. Essencialmente,

a morte (biológica) da autora como ato isolado, evento,

óbito só adquire importância para o teatro textual no

momento em que passa a estabelecer relações. O suicí-

dio como “fator externo” torna-se, assim, um elemento

problematizador na medida em que é visto como um tex-

to. Evocando Derrida (1999, p.194), “Il n’y a pas de hors

texte” [“Não há fora-texto”]. A noção de perigo é também

essencial e deve ser entendida com cuidado. O perigo pres-

supõe um risco, uma ameaça, uma iminência: trata-se de

um presságio, de um indício, não de um fim em si. O sui-

cídio torna-se um fator problematizador, pois apela não

somente à simplificação ou explicação do texto literário,

como “significado central, originário ou transcendental”

(ibidem, p.232), mas também surge como elemento de

desestruturação e ambivalência. O autor, “morto” no ad-

vento da escritura, assombra o leitor que tenta ludicamen-

te reordenar suas características perdidas. Cria-se, assim,

um jogo de dualidades a partir do desdobramento de um

duplo autor-suicida/matador-vítima que escreve/lê, mor-

re/mata levando o leitor às margens de seu objeto de de-

sejo maior (a apropriação do referente), e da perda total

(dissolução de significados).

Da mesma forma, em Plath, o jogo especular autobio-

gráfico – com seus reflexos e distorções – é exacerbado

pelo caráter reflexivo do suicídio. Seguindo o conceito de-

senvolvido por Paul de Man (1984, p.70), entendemos aqui

por autobiografia o movimento de leitura, baseado em di-

ferença e similitude, presente, em algum grau, em todos

os textos. A tentação por encontrar evidências de um fim

preconcebido pede pela legitimação pelo “indelével” elo

autobiográfico. Method and madness biografia publicada em

1976 por Edward Butscher, é um exemplo claro da busca

pela reflexibilidade absoluta, que, ao usar o poético como

evidência do real, acaba por criar uma supra-realidade, na

qual as identidades são extremas e, portanto, impossíveis.

Nesse universo de perfeitos retornos, Butscher (1976,

p.361) afirma, por exemplo, que a última estrofe do poe-

ma “Kindness”4 é dedicada a Ted Hughes e indica clara-

mente a mudança depressiva no estado mental de Plath.

Em outras palavras, reduzido a uma única realidade idên-

tica a um referente então desnudado no poema, a poesia

de Plath deixaria de ser poesia, perdendo o caráter literá-

rio, e o suicídio, nesse sentido, seria a morte da palavra

poética. Entretanto, a questão que se coloca é que a ten-

tação pelo retorno ao “eu”, pela apropriação do objeto de

desejo, ou seja, do referente, de fato, sabota suas próprias

1 O longa-metragem Sylvia

(2003) foi dirigido por

Christine Jeffs e estrelado por

Gwyneth Palthrow e Daniel

Craig, tendo recebido grandes

oposições da filha de Hughes

e Plath, Frieda Hughes. O

episódio da profanação

ocorreu no fim dos anos 1980,

quando um grupo contrário

a Hughes raspou o seu

sobrenome da lápide de Plath

em seu túmulo em Devon.

2 “A morte e a vida de Sylvia

Plath.” Note a inversão da

ordem natural das palavras.

Todas as traduções são de

minha responsabilidade,

exceto indicado.

3 “O fim de uma vida curta”

e “Vida póstuma”,

respectivamente.

4 Traduzido no Brasil como

“Bondade”, em Poemas, pela

Iluminuras (Plath, 1994).

124 Revista Brasileira de Literatura Comparada, n.12, 2008 Morrer é uma arte? Silvia Plath e os suicídios do autor 125

tentativas. Se, por um lado, há uma intensificação da bus-

ca pelo original entre “corpo” e “corpus”, “um” e “outro”,

por outro, multiplicam-se inevitavelmente as refrações e

digressões inerentes ao jogo especular autobiográfico, acar-

retando em diferença e como aponta Paul de Man (1984),

desfiguramento. Assim, imitando tal jogo especular, suicí-

dio e autobiografia assemelham-se em seu movimento de

desestruturação do “eu”.

Um dos poemas mais iconicamente associados à fan-

tasia suicida de Plath é “Lady Lazarus”. A imagem bíblica

de Lázaro, que teria levantado dos mortos, tem desdobra-

mentos por diversas literaturas em textos escritos por au-

tores vivos ou falecidos, suicidas ou não. Hilda Hilst (2001),

por exemplo, escreveu o conto “Lázaro”, assim como o

autor tcheco Karel Capek (1975). Em Plath, o jogo espe-

cular criado pelo texto, do “evento” da escritura à sua re-

novação contínua pela enunciação, cria uma identificação

suprema e, portanto, impossível, que, como uma miragem,

oferece a plenitude e a desfaz. No filme Sylvia (2003), traz

a afirmação de tal identidade de forma explícita, porém

deslocada e desfigurada por séries de personificações: “I

was dead”, diz a personagem, “Like Lazarus, Lady Lazarus,

that’s me”.5 Enquanto tal diálogo com o cinema não é per-

tinente para a presente reflexão, o sentido de apropriação

e identidade é central ao jogo especular autobiográfico. Ao

legitimar o nome próprio impresso no livro, já se inicia um

processo de personificação: um “vai-e-vem” de identida-

des entre este e o autor morto com o advento da escritura,

agora fragmentado por semelhança e diferença.

Como elemento de desestruturação, o suicídio do au-

tor permite que a coincidência entre o “eu” que escreve e o

“eu” que morre e mata ocorra, mas que o faça de maneira

múltipla. Além disso, a possibilidade de morrer novamen-

te, trazida pela imagem de Lázaro, implica também um re-

torno, ou ainda, numa digressão. O poema “Lady Lazarus”

começa com a finitude e satisfação de um ato realizado:

“Fiz outra vez./ A cada dez anos/ Eu consigo –”.6 O emer-

gir teatral da morte de Lady Lazarus pode ser visto como a

parábola do retorno e dissolução de todo autor. Por um

lado, “Lady Lazarus” apresenta-se em domínio da morte

da qual repetidamente retorna e se gaba:

MorrerÉ uma arte, como tudo o mais.Nisso sou excepcional.

Faço isso parecer infernal.Faço isso parecer real.Digamos que eu tenha vocação. (Plath, 1994, p.63)

Por outro, porém, a última conquista traz o descompas-

so do retorno de um corpo que, de volta à vida, carrega as

marcas da morte. Como a escritura, a morte é, ao mesmo

tempo, conquista e perda imediata, por meio da qual o

sujeito se desfaz repetidamente:

Um tipo de milagre ambulante, minha peleBrilha como um abajur nazista,Meu pé direito

Um peso de papel,Face sem feições, finoLinho judeu. [...] (ibidem, p.61)

Mediante um processo de “re-des-figuramento”, o “eu”

poético se faz e se desfaz entre “um” (sujeito/matador/ati-

vo) e “outro” (objeto/vítima/passivo) – um duplo que, ao

retornar da morte, encontra uma nova alteridade: os vivos.

Tal aspecto intersticial efetiva-se de forma especialmente

intensa no original em inglês em razão das particularidades

do tempo verbal present perfect, empregado no verso inau-

gural: “I have done it again”. Sem equivalente exato na lín-

gua portuguesa, o present perfect implica justamente uma

ligação entre o passado e o presente. Nesse caso, a figura

de Lady Lazarus e a própria escritura fazem essa ligação:

mais do que isso, elas são passado e presente, vida e mor-

te, ausência e presença.

Como a biografia de um suicida, o poema traça uma

trajetória a partir de um fim em direção ao mesmo fim

5 “Eu estava morta como

Lazaro. Lady Lazaro, sou eu.”

6 O poema encontra-se

traduzido em Poemas (Plath,

1994, p.60-5); entretanto,

nesta estrofe, optei

especificamente por uma

tradução minha que abarcasse

o sentido literal de “I have

done” (fiz) e “manage”

(conseguir), permitindo

melhor leitura do texto.

Os demais versos desse

poema seguirão a tradução

da edição citada.

126 Revista Brasileira de Literatura Comparada, n.12, 2008 Morrer é uma arte? Silvia Plath e os suicídios do autor 127

que, entretanto, não são jamais coincidentes. Há, dessa

forma, um crescente processo de fragmentação na medida

em que a imagem do que renasce é justaposta por aquela

do que havia morrido:

Livre-me dos panosOh, meu inimigo,Eu te aterrorizo? – (ibidem, p.61)

O aspecto teatral da volta de Lady Lazarus reforça a

noção de trajetória: ela parece desfilar para a “platéia co-

mendo amendoins” que “se aglomera para ver”. Sua mor-

te não é um evento isolado, mas um processo inacabado: “E

como um gato tenho nove vidas./ Esta é a terceira” (ibidem,

p.61). O poema encena simultaneamente uma exumação

e um strip-tease em um velar e desvelar da carne recém-

morta/renascida. A morte, antes voluntária, torna-se, en-

tão, um sacrifício coletivo:

Milhões de filamentos!A platéia comendo amendoinsSe aglomera para ver

Desenfaixarem minhas mãos e meus pés –O grande strip-tease. (ibidem, p.62)

O descompasso faz-se ainda maior diante de uma

alteridade ao mesmo tempo externa – “a platéia comendo

amendoins” – e interna: o “outro” que se opõe e coincide

com o “eu” – suicida e autor, matador e vítima, ativo e

passivo etc.

Da mesma forma, o jogo especular com o nome do

autor é problematizado pela semelhança ilusória que a

fantasia de Plath traz. Além de gerar desvios, digressões

inevitáveis, a simplificação sugerida pelo suicídio como

significado transcendental torna o teatro textual palco

de sacrifícios e renascimentos. Por um lado, o ato da

escritura faz-se autodestrutivo: o autor dissipa-se no tex-

to, despersonalizando-se; por outro, em um impulso con-

trário, seu nome próprio reafirma simultaneamente sua

ausência e sua presença, evocando-o. Assim, ao instituir

um diálogo entre a Morte do Autor e a morte do autor, o

suicídio intensifica o jogo especular, aumentando as pos-

sibilidades de significação.

Dentre as identidades refratárias da interface M/mor-

te do A/autor, o paralelo entre o fim da vida e a última

produção poética constitui uma espécie de leitmotif de au-

tores-suicidas. Fatos e conjecturas freqüentemente flertam

a partir de correlações quase inevitáveis: Esenin escreveu

o último poema em sangue, Mayakovsky incluiu um poe-

ma aos Briks em sua carta suicida, Mishima entregou o

último volume de Mar de fertilidade na manhã de sua mor-

te. “Edge” (“Auge”), provavelmente o último poema es-

crito por Plath, cerca de uma semana antes de sua morte,

é considerado um grand finale tanto da autora como da

suicida, ou, como Elizabeth Hardwick (apud Stevenson,

1989 p.298) sugere, a heroína trágica e a autora de seu

enredo, para o qual é sacrificada.

De fato, tendo em vista o conceito de autobiografia

de Paul de Man (1984) como prosopopéia ou um discurso

“epitáfico”, é possível afirmar que, ao legitimar o nome do

autor-suicida, o leitor resgata-o do/a morte/anonimato e

paradoxalmente assume, por meio da leitura, o papel de

executor. A redução absoluta da interface M/morte do A/

autor é perpetuamente resiliente, pois abre um universo

psicótico que pressuporia o fim de toda significação: a equi-

valência do “um” pelo “outro”. Em sua biografia, Butscher

(1976, p.162), por exemplo, incorpora “Edge” ao texto,

intercalando versos às suas palavras como um “testemunho

póstumo” da autora. Ao usar a palavra poética como evi-

dência irrefutável de seu relato, Butscher rompe com a

oposição entre as funções poética e referencial, colidin-

do-as, desencadeando dualidades irreconciliáveis que ao

caracterizar, desfiguram.

Legitimar o elo especular autobiográfico – ou ainda,

auto-tanato-biográfico – em “Edge” é dar a voz a um eu já

deslocado pela escritura e pela autodestruição. Porém, a

voz, de fato, provém da própria morte pela e na escritura.

128 Revista Brasileira de Literatura Comparada, n.12, 2008 Morrer é uma arte? Silvia Plath e os suicídios do autor 129

Filtrado por imagens de paralisia e suspensão, o poema

parte, como “Lady Lazarus”, de um ato terminal: “The

woman is perfected/ A mulher está perfeita”. O uso da ter-

ceira pessoa despersonaliza a voz; o corpo morto, entre-

tanto, mantém o “sorriso de satisfação” (Plath, 1994, p.95).

Apesar da prevalência da impressão de finitude, o diálogo

entre o ativo e o passivo segue subjacente a todo o poema.

Há uma fluidez e até mesmo uma palpitação quase imper-

ceptível que perpassa os versos por entre as dobras da toga,

os pés nus, as crianças enroladas, os odores noturnos que

sangram. Heroína trágica e testemunha de muitos fins, a

lua também sabe que a morte não é única:

A luz não tem nada que estar triste,Espiando de seu capuz de osso.

Ela já está acostumada a isso.Seu lado negro avança e draga. (ibidem, p.95)

Primeiros suicídios: Sexton e Plath

“Often, very often, Sylvia and I would talk at length

about our first suicides; at length, in detail and in depth

between the free potato chips. [...] We talked death with

burned-up intensity, both of us drawn to it like moths to

an electric bulb. Sucking on it!”7

(Sexton, 1970, p.175)

Na poética de Anne Sexton, contemporânea de Plath

que se suicidaria onze anos depois, a morte também não é

singular. Publicado originalmente em 1966, The barfly ought

to sing inclui relatos de encontros ocasionais em que suicí-

dios eram discutidos entre martínis e batatas fritas inter-

calados a dois poemas de Sexton. Um curioso processo de

des-figuramento autoral é tecido por todo o texto: poesia,

prosa, escrita e fala se confundem, pontuadas pelo diálogo

entre ação e passividade. Como se fosse assombrada pela

vida, a morte é iluminada, chamuscada, animada pelo dis-

curso até que se torna o próprio foco irresistível de atra-

ção: “both of us drawn to it like moths to an electric bulb.

Sucking on it!”.

Vale notar o papel duplo de Sexton como autora: ela,

afinal, escreve um epitáfio para Plath, assim como para si

própria. O primeiro poema, “Wanting to die” (“Querendo

morrer”) é incluído como resposta a vozes alheias que ques-

tionam o fascínio irresistível pela morte – a platéia que se

aglomera. Retornando a cada morte, a cada espera, como

uma quase-presença, o “eu” se trasveste também de “Lady

Lazarus”:

Since you ask, most days I cannot remember.

I walk in my clothing, unmarked by that voyage.

Then the almost unnameable lust returns. [...]

But suicides have a special language.

Like carpenters they want to know which tools.They never ask why build.

[...]Death’s a sad bone/ bruised, you’d say.

and yet she waits for me, year after year,

to so delicately undo an old wound,

to empty my breath from its bad prison. [...]8

(Sexton, 1970, p.176)

Deslocado, o “eu” que narra os encontros em Boston

obscurece-se com as “primeiras mortes” e, de sujeito enun-

ciador, passa a ser o objeto das memórias ao lado de Plath.

Ao contrário do Ritz, o espaço de tais encontros é na rea-

lidade o poema, onde se procuram apenas as melhores fer-

ramentas, sem jamais se discutir a razão de se construir.

Como a lua em “Edge”, “ela já está acostumada a isto”

(Plath, 1994, p.95).

O próximo poema, “Sylvia’s death” (“A morte de

Sylvia”) traz um “eu” presente que se faz ausente ao se

referir a morte do outro. Há aqui uma inversão do que

para Derrida (2001, p.25) é um desejo, característico do

luto, de se rasgar o tecido da linguagem que reduziria os

mortos pelos vivos, o outro pelo mesmo. Em vez de manter

7 “Freqüentemente, muito

freqüentemente, falávamos

longamente sobre os nossos

primeiros suicídios;

longamente, em detalhes e

com profundidade entre as

batatas fritas grátis [...]. Nós

falávamos com uma

intensidade ardente, ambas

atraídas ao assunto como

mariposas a uma lâmpada

elétrica. Sugando-o!”

8 “Já que você pergunta, a

maioria dos dias não consigo

me lembrar./ Eu caminho

vestido, imaculado por aquela

viagem./ E então, a quase

inominável ânsia retorna.”

“Mas suicidas têm uma

linguagem especial./ Como

carpinteiros eles querem saber

quais ferramentas./ Eles nunca

perguntam porque construir.”

“A morte é um osso triste,

machucado, você diria.” “mas

mesmo assim ela me espera,

ano após ano,/ para tão

delicadamente desfazer uma

velha ferida,/ para esvaziar

minha respiração de sua prisão

ruim.”

130 Revista Brasileira de Literatura Comparada, n.12, 2008 Morrer é uma arte? Silvia Plath e os suicídios do autor 131

o “outro” presente por meio da linguagem, essa é usada

para se apropriar de sua ausência. O poema é pontuado

por vocativos – “O Sylvia, Sylvia!” – que, ao evocar, dimi-

nuem a distância entre “eu” e “você”, “vida” e “morte”.

Thief!-

how did you crawl into,

crawl down alone

into the death I wanted so badly and for so long.

the death we said we both outgrew,

the one we wore on our skinny breasts,

the one we talked of so often each time

we downed three extra dry martinis in Boston9

(Sexton, 1970, p.179-80)

Nota-se que, na medida em que o “eu” se desfigura

como ausência, há, por sua vez, um apelo para que se legitime

não apenas o nome próprio da autora, mas também a sua

fragmentação em suicida e autor – assim como a de Plath.

Ao contrário da última estrofe de “Kindness” que,

segundo Butscher, se dirigiria a Hughes, “Sylvia’s death” é

dedicado por Sexton no texto a Plath. Enquanto o poema

mantém indubitavelmente sua autonomia a despeito de

qualquer conhecimento prévio sobre as autoras, a interface

M/morte do A/autor força a desconstrução de dualidades.

Desde o seu título e autor, o poema é em si uma miragem

que ilude e corrompe com identidades dissonantes, convi-

dando o leitor a aglomerar traços, “cicatrizes”, a “desen-

faixar” o autor “morto” no texto, recriando-o.

Conclusão

Em carta para Ted Hughes, em 1967, Sexton (1977,

p.308) satiriza a familiaridade inspirada por “Sylvia’s death”,

dizendo que, de fato, tinha pouco a acrescentar sobre a

morte de Plath. Alega que o poema havia feito todos acre-

ditarem que ela conhecia Plath bem, quando conhecia

apenas sua morte. Na realidade, dentro dos estudos literá-

rios, é senso comum que a extensão ou a verdade de tal

intimidade pouco importa para a leitura do poema. No

entanto, visto como texto, o efeito do suicídio de ambas

as autoras – aqui entrelaçados em intertextualidade – cons-

titui, como foi aqui brevemente demonstrado, um fator

problematizador.

A insistência da temática da morte em autores como

Plath e Sexton, que vieram a cometer o suicídio, traz ao

texto a fascinação pelo fim como significado transcendental.

O crítico Al Alvarez (1988, p.67) chega a considerar que

poesia e morte são inseparáveis nos últimos escritos de Plath,

fazendo que eles sejam lidos como se tivessem sido escritos

postumamente. Dois fins antagônicos atraem-nos para os

textos: o impulso de anti-representação com a Morte do

Autor e a morte do autor-suicida que escreve e morre no

texto. Partimos, assim, de um fim duplo e somos atraídos

para outros. A leitura ressuscita o “eu” ausente, desloca-o

tentando apropriá-lo, desnudar o corpo. O suicídio oferece

a miragem, mas o desafio de sua decodificação permanece:

E há um preço, um preço muito altoPara cada palavra ou um toqueOu uma gota de sangue. (Plath, 1994, p.65)

Referências

ALVAREZ, Al. Sylvia Plath. WAGNER, Linda W. (Ed.) Sylvia Plath:

the critical heritage. London: Routledge, 1988. p.56-67.

BUTSCHER, Edward. Method and madness. New York: Seabury,

1976.

CAPEK, Karel. Apocryphal stories. Harmondsworth: Penguin Books,

1975.

DE MAN, Paul. Autobiography as de-facement. In : . The

rhetoric of romanticism. New York: Columbia Univesity Press, 1984.

p.67-82.

DERRIDA, Jacques. A escritura e a diferença. São Paulo: Perspectiva,

1995.

9 “Ladra!-/ como pode

arrastar-se,! Arrastar-se

sozinha para/ dentro da morte

que eu queria tanto e há tanto

tempo, a morte que ambas

havíamos dito ter esquecido,/

aquela que vestíamos em

nossos peitos magros aquela da

qual conversávamos tão

freqüentemente cada vez/que

bebíamos martínis extra secos

em Boston.”

132 Revista Brasileira de Literatura Comparada, n.12, 2008 133

DERRIDA, Jacques. Gramatologia. São Paulo: Perspectiva, 1999.

. The work of mourning. Chicago; London: University of Chi-

cago Press, 2001.

HAYMAN, Ronald. The death and life of Sylvia Plath. London:

Minerva, 1992.

HILST, Hilda. Lázaro. In: ___. Fluxo-floema. São Paulo: Globo, 2001.

p.107-42.

PLATH, Sylvia. Poemas. São Paulo: Iluminuras, 1994.

SEXTON, Anne. The barfly ought to sing. In: NEWMAN, Charles.

The art of Sylvia Plath: a symposium. London: Faber, 1970.

. A self-portrait in letters. Ed. Linda Grey Sexton and Lois Ames.

Boston; New York: Houghton Mifflin, 1977.

STEVENSON, Anne. Bitter fame: a life of Sylvia Plath. London:

Penguin Books, 1989.

Alexandre Dumas: faiseur de l’histoire?

Maria Lúcia Dias Mendes*

RESUMO: Em Mes mémoires, Alexandre Dumas narra sua vida e

suas aventuras em um estilo que remete ao romanesco. Supe-

rando a definição tradicional das memórias, delineia a trajetó-

ria de seus companheiros de batalha: os românticos. A partir da

escrita das memórias, Dumas compreende as mudanças históri-

cas da qual sua geração foi protagonista e registra seu testemu-

nho da história.

PALAVRAS-CHAVE: Memórias, história, romantismo francês,

Alexandre Dumas.

ABSTRACT: In Mes mémoires, Alexander Dumas tells his life and

his adventures in a style that it sends to the romanesque style.

Surpassing the traditional definition of the memoirs, he deli-

neates the trajectory of his friends of battle: the romantic group.

From the writing of the memories, Dumas understands the his-

torical changes of which its generation was protagonist and he

writes like a witness of history.

KEYWORDS: Memoirs, history, French romanticism, Alexandre

Dumas.

“Au sein plus précis du terme, les livres de mémoires

seraient donc des livres de Histoire mis en perspective

personelle.”

(Georges Gusdorf, La découverte de soi)

Assim como Victor Hugo, que se coloca no rochedo

de Guernesey, no papel do proscrito, como a personifica-

ção da consciência de todos os tiranos do mundo, ou Alfred

de Vigny, que deseja ser a encarnação da nobreza melan-

cólica, Alexandre Dumas deseja criar uma imagem de si

para a posteridade. “Il semble qu’il y a dans les hommes repré-

* Doutora em Língua e

Literatura Francesas pelo

Departamento de Letras

Modernas da Faculdade de

Filosofia, Letras e Ciências

Humanas (FFLCH-USP) –

São Paulo (SP)

134 Revista Brasileira de Literatura Comparada, n.12, 2008 Alexandre Dumas: faiseur de l’histoire? 135

sentatifs, conscientemment ou nom, ce désir d’imposer une image

particulière de soi”1 (Gusdorf, 1948, p.246).A partir, contudo, das mudanças trazidas pelo roman-

tismo em relação à consciência de si mesmo, tornando-amais ligada a uma perspectiva histórica, a construção des-sa imagem tão desejada passa a ser cada vez mais fugidia.Se até então existia uma conduta de vida a ser seguida,uma linha que levava ao arrependimento e à conversão, oromantismo vai afirmar uma renúncia às determinaçõesfixas e temporais, reconhecendo que cada indivíduo estáem constante mudança, que “l’individu est pour lui-même

un enjeu, non pas un principe a priori, mais une exigence de vie

qui se cherche à travers les vicissitudes des temps”2 (Gusdorf,1991b, p.354). O auto-retrato pintado com traços firmese definitivos não será mais possível.

Até mesmo na literatura romanesca, anterior ao ro-mantismo, as personagens eram dotadas de uma naturezafixa e inabalável: os acontecimentos de que elas partici-pam não afetam seu caráter; as peripécias restringem-seao mundo exterior das personagens, não modificam emnada o seu interior.

O romantismo inventa o Bildungsroman, o romancede formação, que procura traçar o percurso do desenvol-vimento de uma personalidade, da infância à maturidade.Mostrando a maturação do caráter, para a qual contribuí-ram as provas e as vicissitudes que a vida impõe, esse tipode romance delineia a trajetória de uma personagem notempo. Uma das primeiras obras do gênero é Os anos de

aprendizagem de Wilhelm Meister (1795-1796), de JohannWolfgang von Goethe, depois vieram Le rouge et le noir

(1830), de Stendhal; Les illusions perdues (1836-1843), deBalzac; e L’éducation sentimentale (1869), de Flaubert, den-tre outras.

Mes mémoires é uma obra memorialística, escrita du-rante oitos anos (1847-1855), ao mesmo tempo que Du-mas escrevia romances folhetins, dramas românticos,causeries, artigos para jornais. Iniciada com o intuito nar-rar as memórias do autor, acaba se tornando uma grande

bricolage de narrativas diversas, escritas para a ocasião ouadaptadas, um mosaico do que teria sido a França de suaépoca. Dumas, apropriando-se de procedimentos que co-nhecia bem do folhetim e do teatro, como o uso do diálo-go do drama romântico, os enredos que tendem à peripécia,a construção das descrições e das personagens, cria umanarrativa que tem origem na sua biografia, mas distende-se à medida que passa a desejar abarcar a história.

A obra Mes mémoires também pode ser lida, até certoponto, como um romance de aprendizagem, que mostra atrajetória de um herói em busca do amadurecimento.

Há, segundo Gusdorf (1991b, p.355), uma estreitacorrespondência entre o romance de formação e a autobio-grafia, uma vez que, na autobiografia, mas aos moldes doromance de formação, o autor transpõe a sua própria ex-periência, delineando a sua trajetória e mostrando a for-mação de sua personalidade. Em alguns casos, o períodoretratado vai exatamente até a passagem para a maturida-de – como na obra de Goethe, Memórias: poesia e verdade –como se os anos de juventude fossem mais interessantes,mais reveladores do caráter da personagem (no caso doromance) ou do autor (nas autobiografias).

Em Mes mémoires, até o capítulo CXX, em que Du-mas narra o triunfo da apresentação de Henri III et sa cour,pode-se acompanhar todo o percurso percorrido pelo au-tor, como em um romance de formação.

Nessa primeira parte da obra, descreve-se como se deua transformação do rapaz despreparado, saído da pequenaVilliers-Cotterêts, em famoso autor de dramas românticos,a partir da mudança de Dumas para Paris, das dificulda-des para se estabelecer, do deslumbramento que a cidadelhe causou e, especialmente, da lenta maturação intelec-tual que propiciou ao herói vencer a sua ignorância.

O objetivo de Dumas é viver de sua pena. A literatu-ra, nesse final da Restauração, representa uma chance deascensão social:

Je n’ai pás reçu l’éducation de M.Casemir Delavigne, quia été élevé dans les meilleurs collèges de Paris. Non, j’ai vingt-

1 “Parece que há nos homens

representativos [de sua época],

conscientemente ou não, este

desejo de impor uma imagem

particular de si.” (As traduções

são de nossa autoria.)

2 “o indivíduo é para si mesmo

um desafio e não mais um

princípio a priori, mas uma

exigência de vida que se busca

mediante as vicissitudes do

tempo”.

136 Revista Brasileira de Literatura Comparada, n.12, 2008 Alexandre Dumas: faiseur de l’histoire? 137

deux ans; mon éducation, je la fais tous les jours, aux dépens dema santé peut-être, car tout ce que j’apprends – et j’apprendsbeaucoup des choses, je vous jure – je l’apprends aux heures oúles autres s’amusent ou dorment [...]. Écoutez bien ce que jevais vous dire, dût ce que je vais vous dire vous paraître bienétrange: si je croyais ne pas faire dans l’avenir autre chose quece que fait M.Casimir Delavigne, [...] à l’instant même, je vousoffrirais la promesse sacrée, le serment solennel de ne plus fairede littérature.3 (Dumas, 1989, t.I, p.834)

A excelente réplica ao seu diretor Oudart anuncia umaambição: associar integração social (desejo de ter a mes-ma educação de M. Casimir Delavigne) à busca de outraliteratura diferente da que faz Delavigne. O rompimentodo romance de formação se dá exatamente na noite deestréia de Henri III et sa cour, em que há o coroamento dasduas ambições: após a luta contra a sua própria ignorân-cia, o herói consegue ter, perante uma sociedade que difi-cilmente aceita o desconhecido, um nome. Alexandre tor-na-se Alexandre Dumas.

Peu d’hommes ont vu s’opérer dans leur vie un changementaussi rapide que celui qui s’était opéré dans la mienne, pendantles quatre heures que dura la représentation d’Henri III.

Complètement inconnu le soir, le lendemain, en bien ou enmal, je faisais l’occupation de tout Paris.

Il y a contre moi des haines de gens que je n’ai jamais vus,haines qui datent du bruit importun que fit mon nom à cetteépoque.

J’ai des amitiés aussi qui datent de là.4 (ibidem, p.945)

Esse momento caracterizado pela mudança significati-va na vida de Dumas, descrito nas memórias, completa-seno episódio em que o eu torna-se nós. O eu solitário, soltoem um mundo hostil, descobre que tem aliados. A aven-tura torna-se coletiva, o grupo – Victor Hugo, Alfred deVigny e Alexandre Dumas – passa a ser o motor das ações.

J’eus une petite loge placée sur le théâtre même, et danslaquelle on tenait deux personnes.

Ma soeur eut une première loge où elle donna l’hospitalitéà Boulanger, à de Vigny et à Victor Hugo.

Je ne connaissais ni Hugo ni de Vigny; ils s’étaient adressésà moi en désespoir de cause.

Je fis connaissance avec tous deux ce soir-là.5 (ibidem,

p.943)

Consciente ou não, Dumas retoma nesse momento anarração de Les trois mousquetaires: o jovem Alexandre(D’Artagnan), recém-chegado a Paris com a sua ignorância(o cavalo amarelado) e, após ser ridicularizado, encontra-secom os verdadeiros mosqueteiros (Hugo e Vigny), e é aceito.

O período seguinte – da apresentação de Henri III et

sa cour até as vésperas da Revolução de Julho – é relatadogloriosamente: a amizade e a fraternidade entre os jovensromânticos têm como símbolo maior o sarau de CharlesNodier, o Arsenal.

É o período das Batalhas Românticas, cujos frescor ejuventude são ressaltados no momento em que Dumas, játranscorrido um bom tempo, escreve. Ele constrói para sie para seus amigos uma imagem ligada à aventura, às mu-danças promovidas pelo romantismo. Movido por umaespécie de saudosismo, reencontra-se com a alegria e aleveza de sua infância e juventude, o deslumbramento deseus primeiros sucessos; afinal, escrever o passado é umaforma de esquecer o presente que assusta por sua incerte-za. O presente tumultuado por uma República que se dei-xou envolver por Louis Napoléon e o futuro imprevisíveltornam ainda mais fácil a mitificação das suas conquistase a criação de uma aura de felicidade.

Os inimigos são reconhecidos: os escritores clássicos(Arnault, Lemercier, Viennet, Jouy), o jornal Constitu-

tionnel, o liberalismo na política, a censura. As batalhassão muitas: as críticas a Henri III, a proibição da apresen-tação de More de Venise de Vigny (24 de outubro de 1829),a batalha de Hernani (25 de fevereiro de 1830) e a proibi-ção de Christine ou Stockholm, Fontainebleau et Rome deDumas (30 de março de 1830). Entretanto, os soldadosestão a postos:

3 “Eu não recebi a educação

de M. Casemir Delavigne, que

foi educado nos melhores

colégios de Paris. Não, eu

tenho vinte e dois anos; minha

educação eu a faço todos os

dias, talvez em detrimento de

minha saúde, pois tudo que eu

aprendo – e eu aprendo muitas

coisas, eu vos juro – eu

aprendo nas horas em que os

outros se divertem ou dormem

[...]. Escutais bem o que eu

vou vos dizer, o que eu vos

direi vos pareça bem estranho:

se eu não acreditasse que eu

posso fazer outra coisa no

futuro diferente do que o que

faz M. Delavigne, neste mesmo

instante, eu vos ofereceria a

promessa sagrada, o juramento

solene de nunca mais fazer

literatura.”

4 “Poucos indivíduos viram

acontecer uma mudança tão

rápida em suas vidas quanto

aquela que vi acontecer na

minha, durante as quatro

horas que durou a

representação de Henri III.

Completamente desconhecido

no início da noite, no dia

seguinte, bem ou mal, eu fazia

a ocupação de toda Paris. Há

contra mim rancores de gente

que eu nunca vi, ódios que

datam do ruído inoportuno

que fez o meu nome nesta

época. Tenho também

amizades que datam daí.”

5 “Eu tinha um pequeno

camarote localizado sobre o

palco e no qual havia duas

pessoas. Minha irmã tinha um

camarote na frente, onde ela

recebeu Boulanger, de Vigny e

Hugo. Eu não conhecia nem

Hugo e nem de Vigny, eles

apelaram para mim em

desespero de causa. Eu

conheci os dois nesta noite.”

138 Revista Brasileira de Literatura Comparada, n.12, 2008 Alexandre Dumas: faiseur de l’histoire? 139

On voit que tous ces grands démolisseurs étaient fort jeunes,

et que les poètes révolucionnaires ressemblent fort aux trois

généraux de la Révolution dont j’ai parlé, je crois, qui comman-

daient l’armée de Sambre et Meuse, et qui avaient soixante et

dix ans à eux trois: Hoeche, Marceau, mon père.6 (ibidem,

p.1069)

Essa geração empunha a pluma em defesa dos ideais,os mesmos que levaram seus pais a usar a espada. Hugo,Vigny e Dumas são guerreiros eternizados nas passagensem que Dumas comenta cada vitória como se fosse do gru-po todo. Quase ouvimos o lema dos mosqueteiros “tous

pour un, un pour tous!”:

A deux heures, le jour de la représentation, nous étions

dans la salle.

Nous comprenions bien que la victoire remportée par de

Vigny était une victoire sans portée. Ce n’était pas de Shakespeare,

de Goethe et de Schiller que les gens sensés doutaient, c’était de

nous.

Nous demandions un théâtre national, original, français,

et non pas grec, anglais ou allemand: c’était à nous de le faire.7

(ibidem, p.1099)

Para comandar as batalhas, Victor Hugo, reconheci-do por todos como o maior; as armas usadas saíram de“l’arsenal de notre maître à tous – Shakespeare”8 (ibidem,p.1069). O tom torna-se heróico, a amizade funda umarepública ideal cujos objetivos parecem ser os mesmos.

Na segunda parte, que é escrita em Bruxelas, no períodoem que Dumas se exila para fugir da ameaça de ser proces-sado por suas dívidas, o saudosismo é permeado de melan-colia. Longe da França, rodeado por republicanos proscri-tos pelo golpe de Estado, Dumas muda o tom de suasmemórias: o romance pessoal passa a refletir suas desilu-sões políticas, seu envolvimento nas “Trois Glorieuses” (Re-volução de 1830) e, no final, apesar de tratar de aconteci-mentos até 1833, a narrativa possui um tom nostálgico,citando os amigos que já não estão mais presentes e as crí-ticas à censura que imperava no momento em que escreve.

Seriam as dívidas e o exílio a causa da diferença mar-cante entre as duas partes das memórias? Ou seriam a to-mada de consciência e a perda de suas ilusões? O fato éque as memórias se transformam mais uma vez: o eu passaa ser o povo. A narração oscila entre o eu e o coletivo, odestino pessoal e a história. Agora o nós é político: englo-ba os companheiros de luta, os republicanos de todas astendências (Dumas, Arago, Lothon, Charras). O destinopessoal confunde-se com a construção da história.

A partir de então, as memórias adquirem um tom épi-co, em que se misturam intimamente os registros do pes-soal, do plural e do histórico. São as biografias, as conquistase os objetivos do grupo de revolucionários que sobressaemna narrativa, em detrimento do lado pessoal de Dumas.

Ao optar por escrever a sua vida de uma forma romanes-ca, Dumas põe em relevo a sua técnica de romancista: deci-de-se por preencher as lacunas da memória com elementosutilizados nos romances (incluindo diálogos). Ao contráriodo diário pessoal – que esmiúça as crises e atos cotidianosmuitas vezes de modo excessivamente retórico –, Dumas,em suas memórias, ao evitar um detalhamento maior, deixalacunas, o que produz mais eficazmente o efeito de realida-de, contribuindo para que a personagem pareça mais real,assim como faz em seus romances:

Les inconvénients de cette catégorie de documents [mémoi-

res et confessions] sont pourtant très importants. Danger d’abord

de la nature rétroactive d’un pareil examen de conscience: il se

produit après coup. [...]. Or, après coup, l’auteur des mémoires

sait comment vont tourner les événements qu’il raconte. Son

travail comporte le vice de toute oeuvre historique: c’est une

reconstituition beaucoup plus qu’une relation simplement fidéle

de l’existence telle qu’elle fut vécue au jour le jour, dans son

incertitude persistante et dans sa nouvauté. D’emblée, le récit

est orienté vers l’aboutissement, le dernier mot su par avance et

qui projette son ombre sur le travail tout entier du narrateur.

De là le caractére de stylisation des œuvres de ce genre, et non

seulement parce qu’elles constituent d’ordinaire un plaidoyer,

conscient ou non, une apologie, mais déjà par la inévitable et

6 “Vemos que todos essesgrandes demolidores erammuito jovens, e que os poetasrevolucionários pareciammuito com os três generais daRevolução da qual já falei, euacho, que comandavam aarmada de Sambre e Meuse eteriam setenta anos os três:Hoeche, Marceau, meu pai.”

7 “Às duas horas, no dia daapresentação, nós estávamosna sala. Nós compreendíamosbem que a vitória conquistadapor Vigny era uma vitóriasem alcance. Não era deShakespeare, Goethe oude Schiller que as pessoasduvidavam, era de nós. Nóspedíamos um teatro nacional,original, francês e não grego,inglês ou alemão. Cabia a nósfazê-lo.”

8 “o arsenal do mestre detodos nós – Shakespeare”.

140 Revista Brasileira de Literatura Comparada, n.12, 2008 Alexandre Dumas: faiseur de l’histoire? 141

excessive cohérence qu’elles introduisent dans l’image qu’elles

donnent de la vie personnelle. L’ensemble est trop centré, trop

voulu, le héros y domine sa carrière qu’il semble trop comprendre

et prévoir à mesure.9 (Gusdorf, 1948, p.34)

Assim, a vida de Dumas, do modo como é descrita emsuas memórias, possui uma linha clara e expressiva. Aopriorizar descrições heróicas e grandiosas, omitindo açõese reações mais cotidianas, o autor consegue dar corpo ro-manesco ao que seria, de início, apenas um relato de lem-branças individuais e pessoais.

Se, de fato, há pontos em comum entre o romance deformação e a autobiografia, entretanto é preciso aprofundarum pouco essa discussão, não esquecendo a profunda re-lação dessa obra de Dumas com a história.

As memórias têm como característica principal des-crever a trajetória de um indivíduo em sua época, mos-trando as relações que ele construiu com o seu tempo. EmMes mémoires, Alexandre Dumas (1989, t.I, p.834) pre-tende ir além:

Quand j’ai commencé ce livre, croyez-vous, vous qui me

lisez que ç’ait été dans le but égoïste de dire éternellement moi?

Non, je l’ai pris comme un cadre immense pour vous y faire

entrer tous, frères et soeurs en art, pères ou enfants du siècle,

grands esprits, corps charmants, dont j’ai touché les mains, les

joues, les lèvres, vous qui m’avez aimé, et que j’ai aimés; vous

qui avez été ou qui êtes encore la splendeur de nôtre époque;

vous-mêmes qui m’êtes restés innconnus; vous-mêmes qui m’avez

haï! Les mémoires d’Alexandre Dumas! Mais c’eût été ridicule!

Qu’ai-je donc été par moi-même, individu isolé, atome perdu,

grain de poussière emporté dans tous les tourbillons? Rien! Mais

en adjoignant à vous, en pressant de la main gauche la main

droite d’un artiste, de la main droite la main gauche d’un prince,

je deviens un des anneaux de la chaine d’or qui relie le passé à

l’avenir. Non, ce ne sont pas mes mémoires que j’écris; ce sont

les mémoires de tous ceux que j’ai connus, et comme j’ai connu

tout ce qui était grand, tout ce qui était illustre en France, ce

que j’écris, ce sont les mémoires de la France.10

Movido pelo desejo de abarcar toda a sua época, nãoapenas de narrar a sua vida e sua trajetória, Dumas abreespaço em suas memórias a todos aqueles com quem con-viveu. Nesse trecho (o melhor para definir a finalidade deseu projeto), Dumas toca em três questões cruciais para oromantismo: a individualidade, a integração com o grupoe a história. É a partir delas que Dumas criará um tríptico,que será completado no decorrer de sua narrativa.

As mudanças trazidas pelo romantismo descobrem ahistoricidade da existência humana. Nas épocas anterio-res, a identidade pessoal era definida à margem dos acon-tecimentos da história, sob a invocação de um julgamentoanterior, estabelecido em razão de uma predestinaçãoontológica ou teológica (Gusdorf, 1991b, p.357-8). O in-divíduo trazia desde o berço uma espécie de insígnia quedefinia a posição que ele deveria ocupar no mundo, o seustatus quo.

A existência individual é liberada das amarras dasquais ela sempre foi prisioneira, sugerindo que cada um secomporte à sua maneira, segundo as condutas ditadas porsuas necessidades profundas. Se o herói da tragédia deveseguir inexoravelmente a linha da vida fixada pelos deu-ses, que definiram o seu destino, o romantismo promove oromance e o drama, cujas peripécias sempre renovadas sig-nificam que nada é imutável no desenrolar da realidadehumana: “Chaque être humain est, dans une certaine mesure,

ou plutôt dans une mesure incertaine, l’artisan de sa vie, dont

il doit choisir le sens, et le mantenir à travers le nouvellement

des circonstances”11 (ibidem, p.358).Dumas constrói a sua história em paralelo com as mu-

danças na história da França, consciente de que a sua tra-jetória pode exemplificar as transformações pelas quais anação passou. A perspectiva assumida nessa obra está im-pregnada dos valores de sua época: individualismo (cons-ciência de que o indivíduo tem um papel crucial a cumprirdiante dos acontecimentos de seu tempo); nacionalismo(a França é tida como a maior nação, responsável por en-caminhar as outras para a modernidade) e o romantismo.

9 “Os inconvenientes dessa

categoria de documentos

[memórias e confissões] são,

entretanto, muito importantes.

Primeiro, o perigo natural da

natureza retroativa de tal

exame de consciência: ele se

produz posteriormente. Ora,

posteriormente, o autor das

memórias sabe como vão se

dar os acontecimentos que ele

narra. Seu trabalho carrega o

vício de toda obra histórica: é

muito mais uma reconstituição

do que uma relação

simplesmente fiel da existência

tal qual ela foi vivida no

quotidiano, em sua incerteza

persistente e em sua novidade.

De início, a narração é

orientada em direção ao

desfecho, a última palavra

sabida de antemão e que

projeta a sua sombra sobre o

trabalho inteiro do narrador.

Daí a característica de

estilização de obras desse

gênero, e não somente porque

elas constituem habitualmente

uma defesa consciente ou não,

uma apologia, mas jà pela

inevitável e excessiva

coerência que elas introduzem

na imagem que elas dão da

vida pessoal. O conjunto é por

demais centrado, intencional,

o herói domina a sua carreira,

a qual parece compreender

demais e prever seus atos na

medida certa.”

10 “Quando eu comecei este

livro, acreditais, vós que me

ledes que teria sido pelo

objetivo egoísta de falar

eternamente sobre mim

mesmo? Não, eu o tomei como

um painel imenso para vos

fazer entrar todos, irmãos e

irmãs na Arte, pais e filhos do

século, grandes espíritos,

corpos charmosos, dos quais

eu toquei as mãos, os rostos,

os lábios, vós que me haveis

amado e que amei; vós que

fostes ou que ainda sois ainda

o esplendor de nossa época;

vós mesmo, que ainda me

ficaram desconhecidos; vós

mesmo, que me odiou! As

memórias de Alexandre

Dumas! Mas teria sido

ridículo! Que teria sido eu

por mim mesmo, indivíduo

isolado, átomo perdido, grão

de poeira carregado em todos

os turbilhões? Nada! Mas me

associando à vós, apertando

com a mão esquerda a mão

direita de um artista, com a

mão direita a mão esquerda de

um príncipe, eu me tornarei

um dos anéis da corrente de

ouro que liga o passado ao

futuro. Não, não são as minhas

memórias que eu escrevo; são

as memórias de todos aqueles

que eu conheci, e como eu

conheci tudo que foi grande,

tudo que foi ilustre na França,

o que eu escrevo são as

memórias da França.”

11 “Cada ser humano é, em

certa medida, ou melhor, em

uma medida incerta, o artesão

de sua vida, cujo sentido ele

deve escolher e manter a

medida que as circunstâncias

se renovam.”

142 Revista Brasileira de Literatura Comparada, n.12, 2008 Alexandre Dumas: faiseur de l’histoire? 143

Dumas descreve sua trajetória como uma grande aven-tura movida pelos ideais do romantismo, dentre eles a exor-tação do talento individual que é a chave para o sucesso.Essa aventura da qual ele tomou parte nada mais é senãoo romantismo francês levado às últimas conseqüências:Dumas (1989, t.II, p.387) vivenciou os valores e as aspira-ções de seu grupo, sua vida é um reflexo disso – “Que voulez-

vous! C’est de l’histoire, comme Poitiers, comme Azicourt,

comme Malplaquet!”.12

Para um romântico, entretanto, a compreensão do seutempo vinha atrelada ao Zeitgeist, o espírito do tempo: ogénie pessoal chega à consciência de si apenas a partir doconfronto com o génie de sua época, esse pano de fundocomum a todos, do qual se destacam as individualidadesparticulares com o relevo que as constitui (Gusdorf, 1991b,p.352). E Dumas (1989, t.I, p.566) evocará todos aquelesque participaram da sua trajetória, de um modo ou de ou-tro, para compor o seu mosaico: “C’est là surtout ce qu’on

trouvera dans ces mémoires, en grande partie consacrés au

développement de l’Art en France pendant la première moitié

du XIXe siècle [...]”.13

Em Mes mémoires, os românticos aparecem quase namesma proporção que o próprio autor. Eles são citados emacontecimentos cruciais, têm suas vidas relatadas em biogra-fias, suas obras copiadas, elogiadas e muitas vezes defendidas.Enfim, têm sua genialidade e importância documentadas.

A partir de sua chegada a Paris, especialmente depoisda grande noite de estréia de Henri III et sa cour, Dumasmistura a sua vida à vida de seu grupo de amigos. Em Mes

mémoires, a narrativa reflete o desejo de incorporar asvivências e as glórias de seu grupo, a sua existência, enfim,como é explicitado por ele no trecho a seguir, escrito emUn dîner chez Rossini:

Je ne sais si après moi, il restera quelque chose de moi; mais,

en tout cas et à tout hasard, j’ai pris cette pieuse habitude, tout

en oubliant mes ennemis, de mêler le nom de mes amis, non

seulement à ma vie intime, mais encore à ma vie littéraire. De

cette façon, au fur et à mesure que j’avance vers l’avenir, j’entraîne

avec moi tout ce qui a eu part à mon passé, tout ce qui se mêle à

mon présent, comme ferait un fleuve qui ne se contenterait pas

de réfléchir les fleurs, les bois, les maisons de ses rives, mais encore

qui forcerait de le suivre jusqu’à l’Océan l’image de ces maisons,

de ces bois et de ces fleurs.14 (Dumas, 2007)

Podemos afirmar que Mes mémoires é uma obra emque Dumas se propõe a narrar a sua trajetória, ligando-acompletamente à sua época. Trata-se de um monumentoescrito para a reafirmação dos valores do romantismo, va-lores que foram a base de sua vida, dentre os mais impor-tantes: o talento individual, os ideais políticos e o senti-mento de estar inserido em sua geração.

São, portanto, várias as passagens em que Dumas re-afirma o seu compromisso com a sua geração. Por sentir-separte de uma comunidade, parte de um grupo, ele levaesse sentimento às últimas conseqüências: cede o espaçoque, por definição, deveria ser dedicado à narração de suavida, à manifestação de sua individualidade, para tornaras suas memórias as memórias dos românticos:

Nous l’avons dit, et nous ne saurions trop le répéter, ces

Mémoires ne sont pas nos Mémoires seulement: ce sont ceux de

la peinture, de la poésie, de la littérature et de la politique des

cinquante premières années du siècle.15 (Dumas, 1989, t.II,

p.521)

Henri Bergson (1959), em Matière et mémoire, escreveque o processo de localização de uma lembrança no passa-do não se dá de maneira imediata, apenas retirando dasprofundezas as lembranças de modo a chegar até aquelaque é desejada. O trabalho de localização consiste em umesforço crescente de expansão pelo qual a memória, queestá sempre inteira à disposição, distende o período a serpesquisado e acaba por distinguir, em um amontoado derecordações até então confusas, aquelas que deseja recu-perar. O acesso às lembranças torna-se possível graças aos“pontos de apoio”: um acontecimento ou um estado de

12 “O que quereis vós? É aHistória, como Poitiers, comoAzicourt, como Malplaquet!”.

13 “É sobretudo isso que seencontrará nestas memórias,em grande parte consagradasao desenvolvimento da Artena França durante a primeirametade do século XIX [...]”

14 “Eu não sei se depois demim restará alguma coisaminha; mas em todo caso e emtodo acaso, eu adquiri essehábito generoso de,esquecendo os meus inimigos,misturar meu nome aos dosmeus amigos, não somente aoque diz respeito à minha vidaíntima, mas sobretudo à minhavida literária. Dessa maneira,à medida que eu avanço emdireção ao futuro, eu carregocomigo tudo o que fez parte demeu passado, tudo o que semistura ao meu presente,como faria um rio que não secontentava em apenas refletiras flores, os bosques, as casasde suas margens, mas queobrigava a imagem dessascasas, desses bosques e dessasflores a segui-lo até o oceano.”

15 “Nós havíamos dito, enunca será demais repetir,essas memórias não são apenasnossas: são da pintura, dapoesia, da literatura e dapolítica dos cinqüentaprimeiros anos do século.”

144 Revista Brasileira de Literatura Comparada, n.12, 2008 Alexandre Dumas: faiseur de l’histoire? 145

consciência cuja posição no tempo é bem conhecida emrelação ao momento atual, e que por sua intensidade oucomplexidade aumenta a chance de relembrar outros acon-tecimentos e de mesurar-lhes sua importância.

Maurice Halbwachs (1994) vai além, ao afirmar queos indivíduos não alcançam a completude das suas lem-branças sozinhos, é necessário que sejam acionadas asmemórias do grupo social.

À medida que tentamos localizar uma lembrança uti-lizando os “pontos de apoio” de nossa memória, não ape-nas os localizamos, graças às nossas lembranças individuais,mas fazemos submergir, com essas, os cadres sociaux, a vi-são de mundo que serve de suporte à nossa consciênciapresente. Essa memória coletiva define o indivíduo, con-siderando que é apenas como membros de um grupo queos seres humanos podem se representar a si mesmos.

Não são todos os eventos que surgem das brumas denossa memória, nem se trata da série cronológica exatados antigos acontecimentos, mas as lembranças que vêmà tona correspondem àquelas que se ligam também às nos-sas preocupações atuais. E a razão dessa aparição não estánelas, mas na relação que propiciam com nossas idéias epercepções, no presente. Como conseqüência, nossas lem-branças são forçosamente reconstruções baseadas em nossaidentidade no presente (Halbwachs, 1994, p.35).

Em Les cadres sociaux de la mémoire, Halbwachs (1994)procura, por meios dos estudos dos sonhos, mostrar que opassado não se conserva verdadeiramente na memória in-dividual. Nela subsistem impressões, fragmentos, imagensque não constituem lembranças completas, pois apenas asmemórias coletivas permitem preencher as lacunas da me-mória individual. As lembranças pessoais não são auto-su-ficientes, o indivíduo não se lembra realmente do passado,ele o reconstitui a partir das necessidades do presente, me-diante a reflexão. O trabalho da consciência precede a evo-cação das lembranças e é por meio das referências dadaspela memória coletiva, pelos chamados “cadres sociaux de

la mémoire”, que o indivíduo compõe uma imagem do pas-sado, de sua existência dentro do grupo, de sua identidade:

Tout souvenir, si personnel soit-il, même ceux des événe-

ments dont nous seuls avons été les témoins, même ceux de pensées

et de sentiments inexprimés, est en rapport avec tout un ensemble

de notions que beaucoup d’autres que nous possèdent, avec des

personnes, des groupes, des lieux, des dates, des mots et formes

du langage, avec des raisonnements aussi et des idées, c’est-à-

dire avec toute la vie matérielle et morale des sociétés dont nous

faisons ou dont nous avons fait partie.16 (ibidem, p.34)

Em Mes mémoires emerge uma espécie de memória co-letiva da França dos românticos. Alexandre Dumas misturaas suas memórias individuais com outros registros da memó-ria coletiva, com os quais monta um mosaico de sua época.

À medida que a narrativa avança, Dumas insere cadavez mais biografias, trechos de obras, relatos de aconteci-mentos históricos, construindo um painel de seu tempo.Sua intenção é deixar um registro de sua época para asgerações futuras: “Ah! Si um homme nous eût laissé sur le

XVIe, le XVIIe et le XVIIIe siècle ce que j’essaye de faire pour le

XIXe, combien j’eusse bénni cet homme, et que de rudes travaux

il m’eût épargnés!”17 (Dumas, 1989, t.I, p.644).Com a pretensão de construir uma imagem prestigio-

sa de si e de sua obra, reafirma a importância de seu projeto:“Il va sans dire que, lié comme je l’ai été avec tous les grands

peintres et tous les grands statuaires de l’époque, chacun d’eux

passera à son tour dans ces Mémoires, gigantesque galerie où

chaque nom illustre laissera sa vivante statue”18 (ibidem, p.609).Desejando eternizar as conquistas dos românticos,

Dumas se detém, notadamente, nas mudanças que provo-caram nas artes:

Nous signalerons les autres changements, au fur et à mesure

qu’ils s’opéreront dans les arts. Constatons seulement que nous

sommes entrés dans l’ére des transitions. – Dès 1818, Scribe a

commencé pour le vaudeville; de 1818 à 1820, Hugo de

Lamartine jettent, au millieu du monde littéraire, l’un avec les

Odes et Ballades, l’autre avec les Méditations, les premiers

essais d’une poétique nouvelle; de 1820 à 1824, Nodier publie

des romans de genre qui ouvrent une voie nouvelle, celle du

pittoresque; de 1824 à 1835, s’accomplira le révolution drama-

16 “Toda lembrança, por mais

pessoal que seja, mesmo

aquelas dos acontecimentos

que apenas nós fomos

testemunhas, mesmo aquelas

dos pensamentos e

sentimentos que não foram

expressos, está em relação

com todo um conjunto de

noções diferentes das que

possuímos, com pessoas, com

grupos, com lugares, com

datas, com palavras e formas

de linguagem, também com

pensamentos e idéias, quer

dizer, com toda a vida

material e moral das

sociedades das quais nós

fazemos ou não parte.”

17 “Ah! Se um homem nos

tivesse deixado sobre os

séculos XVI, XVII, XVIII, o

que eu tento fazer pelo século

XIX, como eu teria bendito

esse homem, e que rudes

trabalhos ele me teria

poupado!”

18 “Nem é preciso comentar

que, ligado como eu estive a

todos os grandes pintores e

todos os grandes medalhões da

época, cada um deles passará

por sua vez nestas memórias,

gigantesca galeria em que cada

nome ilustre deixará sua

estátua viva.”

146 Revista Brasileira de Literatura Comparada, n.12, 2008 Alexandre Dumas: faiseur de l’histoire? 147

tique, que suivra presque immédiatement celle du roman histo-

rique et de fantaisie.

Alors, le XIXe siècle, sorti des langues paternelles, prendra

sa couleur et conquerra son originalité.19 (ibidem, p.608)

O autor sincretiza em suas memórias a narrativa dastrajetórias de personalidades que lhe parecem importantes:

Il est bon de marquer le point de départ des artistes éminents,

grands comédiens ou grands poètes; c’est là sourtout ce que Je

cherchais une occasion de passer en revue toute les hommes et

les œuvres littéraires de l’Empire, sont j’avais guère pu parler, à

cause de l’âge que j’avais quand florissaient ces hommes, quand

ces œuvres étaient jouées.20 (ibidem, p.667)

Talvez mesmo sem se crer essencialmente objetivo, oautor cria o efeito de isenção em consideração a seus lei-tores por meio da linguagem empregada:

J’écris l’histoire de l’art pendant la première moitié du XIXe

siècle; je parle de moi comme d’un étranger; je mettrai les pièces

sous les yeux de mon arbitre naturel, c’est-à-dire du public; il

jugera sur pièces, comme on dit au palais.21 (ibidem, t.II, p.727)

O interesse maior da narrativa dumasiana é delinearas trajetórias de seus contemporâneos, por serem impor-tantes para a compreensão de sua própria trajetória:

Ce sont les premières lignes de l’auteur de Mathilde et des

Mystères de Paris qui aient été imprimées; il nous semble curieux

de les consigner ici. Nos mémoires, nous l’avons dit, sont les

archives littéraires de la première moitié du XIXe siècle; d’ailleurs,

il est toujours intéressant pour les artistes d’étudier le point de

départ d’un homme arrivé au sommet élevé où est parvenu notre

illustre confrère.22 (ibidem, p.1009)

Narrando as conquistas de seu grupo, Dumas tem adimensão das transformações das quais todos foram pro-tagonistas. Por meio da biografia de outros escritores, deoutros artistas, recupera o sentido da sua existência, poiscompreende o seu papel naquele tempo. As memórias de

Alexandre Dumas passam a ser a voz das memórias de seutempo, a imagem que ele constrói dos seus contemporâ-neos colabora com a imagem que ele deseja fixar para si:

Quand nous évoquons un souvenir, et quand nous le pré-

cisons en le localisant, c’est-à-dire, en somme, quand nous le

complétons, on dit quelquefois que nous le rattachons à ceux

qui l’entourent: en réalité, c’est parce que d’autres souvenirs en

rapport avec celui-ci subsistent autour de nous, dans les objets,

dans les êtres au milieu desquels nous vivons, ou en nous mêmes:

points de repère dans l’espace et le temps, notions historiques,

géographiques, biographiques, politiques, données d’expérience

courante et façons de voir familières, que nous sommes en mesure

de déterminer avec une précision croissante ce qui n’était d’abord

que le schéma vide d’un événement d’autrefois. Mais, puisque

le souvenir doit ainsi être reconstruit, on ne peut pas dire, sinon

par métaphore, qu’à l’état de veille nous le revivons; il n’y a pas

non plus de raison d’admettre que tout ce que nous avons vécu,

vu et fait, subsiste tel quel, et que notre, présent traîne derrière

lui tout notre passé.23 (Halkbwachs, 1994, p.35)

Dumas também foi testemunha dos grandes aconteci-mentos históricos de seu tempo e, mesmo que a narrativade suas Memórias termine em 1833, a perspectiva que ad-quiriu com esses acontecimentos está, de certa forma, en-tranhada na visão que forjou de sua época. Durante suavida, viu a campanha da França e a queda de Napoleão(1814-1815); a queda dos Bourbon, dos dois ramos da fa-mília (1830 e 1848); a colonização da Argélia (1846); ogoverno de Napoleão III (1851), a abolição da servidão naRússia (1858); a unificação da Itália, com Garibaldi (1860-1861) e a vitória da Prússia (1866). Desses acontecimen-tos, Dumas teve participação efetiva nas “Trois Glorieuses”(Revolução de 1830) e nas manifestações republicanas quese seguiram à tomada de poder por Louis-Philippe (1830-1832). Lutou na Revolução de 1848 e participou da cam-panha eleitoral que sucederam a proclamação da repúblicaem 1848, ocasião em que se candidatou a deputado. Lutoutambém na campanha de Garibaldi na conquista da Sicíliae de Nápoles (1860).

19 “Nós assinalaremos outrasmudanças à medida que elasocorrem nas artes.Constatamos somente quenós entramos em uma erade transições. – Desde 1818,Scribe começou pelovaudeville; de 1818 a 1820,Hugo e Lamartine se lançamno mundo literário, um comOdes et Ballades, o outro comas Méditations, os primeirosensaios de uma poética nova;de 1818 a 1824, Nodierpublica romances de gêneroque abrem uma via nova, a dopitoresco; de 1824 a 1835, secompletará a revoluçãodramática, que será seguida,quase que imediatamente, pelado romance histórico e defantasia. Então, o século XIX,saído das línguas paternas,adquire sua cor e conquistarásua originalidade.”

20 “É necessário marcar oponto de partida dos artistaseminentes, grandes atores ougrandes poetas; é isso,sobretudo, o que eu procuro:uma ocasião de passar emrevista todos os homens e asobras literárias do Império,sobre as quais eu não haviafalado, por causa da idade queeu tinha quando floresciamesses homens, quando essasobras eram encenadas.”

21 “Eu escrevo a história daarte durante a primeira metadedo século XIX; falo de mimcomo de um estranho; colocoas peças sob os olhos de meuárbitro natural, quer dizer, dopúblico; ele julgará diante dosfatos, como se diz no palácio.”

22 “São as primeiras linhas doautor de Mathilde e dos

Mystères de Paris que tinhamsido impressas; parece-noscurioso relatá-las aqui. Nossasmemórias, nós dissemos, sãoos arquivos literários daprimeira metade do séculoXIX; além disso, é sempreinteressante para os artistasestudar o ponto de partida deum homem que chegou aocimo, onde chegou nossoilustre colega.”

23 “Quando localizamos umalembrança, e quando aprecisamos ao localizá-la, querdizer, em suma, quando nós acompletamos, dizemos às vezesque nós a ligamos àquelas[lembranças] que a rodeiam;na verdade, é porque outraslembranças relacionadas a elasubsistem em nossa volta, nosobjetos, nos seres entre osquais vivemos, ou em nósmesmos: pontos desustentação no espaço e notempo, noções históricas,geográficas, biográficas,políticas, dados de experiênciado senso comum e visões demundo familiares, que nósestamos procurandodeterminar com uma precisãocrescente o que até então eraapenas o esquema vazio de umacontecimento passado. Mas,visto que a lembrança deveassim ser reconstruída, não sepode dizer, senão por metáfora,que foi em estado de vigíliaque nós a revivemos; não hámais razão para admitir quetudo o que nós vivemos,vimos e fizemos, subsiste talqual, e que nosso presentenão arrasta atrás de si todoo nosso passado.”

148 Revista Brasileira de Literatura Comparada, n.12, 2008 Alexandre Dumas: faiseur de l’histoire? 149

É esse passado que Dumas deseja testemunhar. Parteatuante no grupo que era o motor das transformações, tes-temunha ocular e atuante dos acontecimentos que muda-ram o seu tempo, Dumas escreve suas memórias pensandoem deixar registrada sua versão da história, como se sen-tisse impelido ao registro:

Mais nous qui arrivons parmi les derniers, nous, spectateur

presque désintéressé de tous ces grands événements, nous que

notre caractère a fait sans haine privée, nous que notre position

a fait sans haines politiques, c’est à nous, éclaireur de la postérité,

placé sur la limite du monde aristocratique qui tombe, et du

monde démocratique qui s’élève, de chercher la vérité partout

où elle est ensevelie, et de la glorifier partout où nous la

trouverons.24 (Dumas, 1989, t.I, p.397)

Nesta época em que os limites entre escrever literatu-ra e escrever história estão indefinidos, Dumas acreditaser possível escrever história, assim como a sua geraçãoescreveu a história, promovendo mudanças cruciais nocurso dos acontecimentos. A história parecia estar sendoconstruída a cada momento, nesta época de revoluções,de transformações, na qual a historiografia ansiava porencontrar novas maneiras de expressão. Dumas sente quepode também, mediante seu testemunho, escrever a his-tória. Afinal, como ele mesmo escreve em outra obra:

[...] ce que j’ai de talent se substitue à ce que j’ai d’individualité,

ce que j’ai d’instruction à ce que j’ai de verve: je cesse d’être

acteur dans ce grand roman de ma propre vie, dans ce grand

drame de mes propres sensations; je deviens chroniqueur, anna-

liste, historien; j’apprends à mes contemporains les événements

des jours écoulés, les impressions que ces événements ont

produites sur les personnages qui ont vécu réellement ou que j’ai

créés avec ma fantaisie. Mais des impressions que les événements

de tous les jours, ces événements terribles qui secouent la terre

sous nos pieds, qui assombrissent le ciel sur nos têtes, des im-

pressions que ces événements ont produites sur moi, il m’est

défendu de rien dire.25 (Dumas, 2005)

Dumas vê-se como uma testemunha da história, quetem o compromisso de redigir a sua visão dos aconteci-mentos para as gerações futuras: “Il y a vingt ans, tout le

monde a su dans ses moindres détails ce que nous allons dire;

aujourd’hui, tout le monde l’a oublié. L’histoire passe si vite en

France!”26 (Dumas, 1989, t.II, p.780).Mais uma vez, o tênue limite que separa literatura e

história é ultrapassado: Dumas escreve um testemunho,uma visão pessoal dos acontecimentos a que teve acesso,mas acredita que o que escreve está à altura da histo-riografia. Como participou ativamente das transformaçõesde sua época, tanto políticas quanto artísticas, essa aproxi-mação entre vida e acontecimento lhe dá a sensação deque seu testemunho tem um peso tão grande quanto a obrade um historiador. Afinal, sente-se gabaritado para isso:“les poètes savaient aussi bien l’Histoire que les historiens, –

s’ils ne la savaient pas mieux”27 (Dumas, 2006).No período pós-revolucionário (tanto em 1815, com

a Restauração, quanto depois de 1830, com a Monarquiade Julho), a formulação de uma narrativa historiográficaque trate da Revolução Francesa e do Império é uma pre-ocupação essencial e leva o historiador a adquirir prestígio.Há uma urgência de escritos que propiciem a compreen-são das transformações recentes, mas, ao mesmo tempo,as dificuldades para a escrita de uma história contemporâ-nea parecem intransponíveis.

Nesse cenário, as memórias aparecem como um meiotermo, enquanto o “tempo da história” não chega. Essanoção se difunde tanto entre historiadores da época – umexemplo é o historiador François Guizot (1787-1874) queescreveu uma obra intitulada Mémoires pour servir à l’histoire

de mon temps, 1858-1867, em oito volumes – quanto paramemorialistas.

Entre o tempo do acontecimento e o tempo da histó-ria, no qual todos os fatos serão revelados e esclarecidos,instala-se o tempo da memória. Nesse momento, osmemorialistas legitimam os seus escritos e pretendem umaexclusividade no acesso ao passado recente. À espera do

24 “Mas nós que chegamos

entre os últimos, espectadores

quase desinteressados de todos

esses acontecimentos; nós,

que nossa personalidade nos

fez sem ódios pessoais, nós

que nossa posição fez sem

rancores políticos, cabe a nós,

arautos da posteridade,

situado no limite do mundo

aristocrático que desaba e do

mundo democrático que se

edifica, buscar a verdade onde

quer que ela se esconda e

glorificá-la onde quer que

a encontremos.”

25 “[...] o que eu tenho de

talento substitui o que eu

tenho de personalidade; a

minha instrução substitui o

que eu tenho de verve: eu

deixo de ser ator do grande

romance da minha própria

vida, nesse grande drama de

minhas sensações; eu me torno

cronista, analista, historiador;

eu ensino aos meus

contemporâneos os

acontecimentos dos dias

passados, as impressões que

esses acontecimentos

produziram sobre as

personagens que viveram

realmente ou que eu criei pela

minha imaginação. Mas as

impressões que os

acontecimentos do cotidiano,

esses acontecimentos terríveis

que balançam a terra sob os

nossos pés, que obscurecem o

céu sobre nossas cabeças, as

impressões que estes

acontecimentos produziram

em mim, me é proibido calar”.

26 “Há vinte anos, todo

mundo soube em seus mínimos

detalhes o que iremos dizer;

hoje, todo mundo esqueceu.

A história passa muito rápido

na França!”

27 “os poetas conheciam a

História tanto quanto os

historiadores – senão ainda

mais”.

150 Revista Brasileira de Literatura Comparada, n.12, 2008 Alexandre Dumas: faiseur de l’histoire? 151

historiador que virá, os memorialistas se apropriam do ter-reno da contemporaneidade:

Entre complémentarité affichée et rivalité réelle, la relation

entre mémorialistes et historiens, dans le discours des Mémoires,

est habituellement naturalisée sur l’axe temporel comme une

succession chronologique nécessaire. Cette succession déroulerait

les deux étapes d’une fable du savoir: il y aurait d’abord un

temps de la mémoire (et donc des mémorialistes), puis un temps

de l’histoire (et donc des historiens).28 (Zanone, 2002)

Para Dumas, as diferenças entre as duas maneiras denarrar o passado não são muito claras, assim como para asua época. Às vezes afirma que pretende escrever as me-mórias da França, outras a história da arte, da literatura edo teatro, como se memória e história tivessem o mesmosignificado.

Em outras passagens, diferencia o seu trabalho daqueledo historiador, ressaltando o descompromisso de sua nar-rativa e a necessidade de muitas vezes parar a narrativapara dar maiores explicações sobre o acontecimento:

Mais, une fois pour toutes, ce n’est point de l’histoire que

nous faisons, ce sont des souvenirs que nous jetons sur le papier,

et souvent nous nous apercevons qu’au moment où nous avons

pris le galop pour suivre les divagations de notre mémoire, nous

avons laissé derrière nous des événements de la première im-

portance. Alors, nous sommes forcé de revenir sur nos pas, de

faire nos excuses à ces événements, comme le roi à M. Casimir

Perier, de les prendre, pour ainsi dire, par la main, et de les

ramener à nos lecteurs, qui peut-être ne leur font pas toujours

un aussi gracieux accueil que celui que la cour du Palais-Royal

fit au président du Conseil dans la soirée du 14 mars 1831.29

(Dumas, 1989, t.II, p.458)

O autor ressalta também que, por estar escrevendomemórias, pode tratar de temas e personagens que nor-malmente seriam considerados inadequados à história:

Et puis attendez, une dernière chose: celle-là, je suis sûr de

la dire le premier; celle-là, je la tiens de son plus proche parent,

de son plus fidèle ami, de son dernier général, de celui qui n’a

pas désespéré, quand tout le monde désespérait; celle-là est in-

digne de figurer dans un récit d’historien, c’est vrai; mais je n’écris

pas une histoire, j’écris des mémoires.30 (ibidem, t.I, p.279)

Em outros momentos, ele parece acreditar que estáescrevendo historiografia: “Maintenant, n’allez pas croire que

ce soit du roman que nous faisions ici. C’est je ne dirai pas de

la belle et bonne histoire, mais de la laide et triste histoire”31

(ibidem, p.406).Em outro momento, demonstra a consciência de es-

tar escrevendo um testemunho, passível de ser comprova-do pela posteridade:

Pour quiconque tient une plume, et écrit en face de l’histoire,

c’est un devoir de dire la vérité: je crois l’avoir toujours dite.

Pour quiconque tient une plume, et écrit en face de l’histoire,

c’est une lâcheté de ne pas repousser la calomnie, et je la re-

pousse.32 (ibidem, t.II, p.270)

Dumas tem um compromisso com a história, procuracriar uma reprodução narrativa completa do que teriam sidoaqueles dias. Retoma os acontecimentos históricos e, me-diante recursos narrativos literários, recria e recompõe o queteria sido a época retratada, em seus aspectos bons e ruins:

Seulement, ces Mémoires manqueraient leur but si, en

traversant une époque, ils ne se montraient pas au public im-

prégnés de la couleur de cette époque-là. Tant pis quand l’époque

est fangeuse, la boue que j’ai eue aux pieds n’a jamais éclaboussé

ni mes mains ni mon visage.33 (ibidem, p.1009, nota 1)

As publicações de um grande volume de memórias,no início do século XIX, alimentaram o imaginário históricode uma geração e influenciaram a escrita das obras de histo-riografia da época, fornecendo elementos que contribuí-ram para a estruturação e para a criação da couleur locale:

Et que sont d’autre les grands ouvrages historiques qui mar-

quent époque, les quinze volumes de l’Histoire du Consulat et

de l’Empire, de Thiers, les dix volumes de l’Histoire des ducs

28 “Entre a complementaridadefixada e a rivalidade real, arelação entre memorialistas ehistoriadores, no discurso dasmemórias, é habitualmentenaturalizada sob o eixotemporal como uma sucessãocronológica necessária. Essasucessão desenvolve as duasetapas de uma fábula [crença]do saber: havia primeiroum tempo da memória (e,portanto, dos memorialistas),depois um tempo dahistória (e, portanto,dos historiadores).”

29 “Mas, de uma vez por todas,não é história o que fazemos,são lembranças que lançamossobre o papel, e muitas vezespercebemos que no momentoem que nos pomos a galopepara seguir as divagações denossa memória, nós deixamospara trás acontecimentos damaior importância. Então,somos forçados a voltar sobrenossos passos, de nos desculparcom estes acontecimentos,como o rei fez à M. CasimirPerier, de tomá-los, por assimdizer, pela mão, e conduzi-losaté nossos leitores, que talveznão nos façam sempre umarecepção tão graciosa comoaquela que a corte do Palais-Royal fez ao presidente doConselho na sessão do dia 14de março de 1831.”

30 “E depois, esperai, umaúltima coisa: esta, eu estoucerto de ser o primeiro a dizer,consegui de seu parente maispróximo, de seu amigo maisfiel, de seu último general,daquele que nunca sedesesperou, quando todos sedesesperavam; daquele queé indigno de figurar em umanarrativa de um historiador,é verdade; mas eu não escrevouma história, eu escrevomemórias.”

31 “Agora, não credes que éum romance que nós fazemosaqui. Eu não diria que é umabela e boa história, mas simuma feia e triste história.”

32 “Para qualquer um quepossui uma pluma e escrevediante da história, é um deverdizer a verdade: eu creio tê-lasempre dito. Para qualquerum que possui uma pluma eescreve diante da história,é uma covardia não repudiara calúnia, e eu a repudio.”

33 “Entretanto, estas memóriasfalhariam em seu objetivo se,atravessando uma época, nãose mostrassem ao públicoimpregnadas da cor destaépoca. Tanto pior se a épocaé enlameada, a lama que eutive em meus pés jamais sujei[também no sentido moral]nem minhas mãos e nemmeu rosto.”

152 Revista Brasileira de Literatura Comparada, n.12, 2008 Alexandre Dumas: faiseur de l’histoire? 153

de Bourgogne, de Barante, les trente et un volumes de l’Histoire

des Français, de Sismondi qu’une mosaïque habilement ficelée

d’extraits de chroniqueurs et de mémorialistes? Michelet pourra

se vanter d’être à la fois le premier à s’être plongé dans les archives

et le denier à travers qui l’on entend la voix des acteurs. Son

histoire, surtout celle de la Révolution, est encore dominée par

l’enchantement de la mémoire. Après lui, le charme est rompu.34

(Nora, 1997, p.1390)

Toda a novidade dessa escritura histórica repousa naexploração das memórias. Os testemunhos dos antigos me-morialistas e cronistas, isentos de reflexão filosófica, trans-mitiam os acontecimentos de sua época nas cores e noestilo originais, que pareciam trazer a mais imediata re-presentação do passado.

Essa avalancha de memórias que invade a França foisem dúvida o último momento em que as Memórias são amemória da França. Nessa primeira fase do desenvolvi-mento de uma historiografia crítica, sem consciência daespecificidade dos arquivos, as memórias são classificadascomo documentos e tratadas do mesmo modo que os ma-nuscritos e os outros documentos impressos.

Ao mesmo tempo, as pesquisas nos arquivos se vol-tam para as memórias. Há a preocupação em inserir asmemórias individuais na memória coletiva, a história bio-gráfica na história nacional, conforme escreve Michelet(1930, t.I, p.222):

La France agit et raisonne, decrete et combat; elle remue

le monde; elle fait l’histoire et la raconte. L’histoire est le compte

rendu de l’action. Nulle part ailleurs vous ne trouverez de

Mémoires, d’histoire individuelle, ni en Angleterre, ni en

Allemagne, ni en Italie [...] Le présent est tout pour la France.

Elle le saisit avec une singulière vivacité. Dès qu’un homme a

fait, vu quelque chose, vite il écrit. Souvent il exagère. Il faut

voir dans les vieilles chroniques tout ce que font nos gens [...].

La France est le pays de la prose [...] le génie de notre nation

n’apparaît nulle part mieux que dans son catactère éminemment

prosaïque.35

Segundo Nora, a relação estabelecida entre indiví-duo e História na França é muito particular. Uma relaçãode filiação e de identificação, crenças solidificadas, quecombinam a epopéia, a nação e o gosto pela prosa, retra-tados juntos no trecho escrito por Michelet. É por meiodas narrativas pessoais, dos testemunhos que a história sefaz presente e torna possível uma identificação imediatapara o leitor:

[...] les Mémoires, c’est l’Histoire incarnée, la France multiple

et multiforme. Et jamais ce sentiment n’est plus fort qu’aux lende-

mains des troubles de son histoire et des ébranlements de son

pouvoir, les guerres de religion, la Fronde, grandes productrices

de mémoires, jamais plus intense qu’après la plus grave crise de

son histoire, la grande césure de la Révolution et de l’Empire, en

cette période récapitulative tout l’héritage perdu de l’Ancien

Régime [...].36 (Nora, 1997, p.1394)

Alexandre Dumas, apesar de estar inserido nessa tra-dição memorialista, já escreve suas memórias tendo emvista outra perspectiva: a publicação. Suas memórias foramescritas em um momento de ruptura, segundo Nora (1997),em que os caminhos da escritura das memórias tomamoutros rumos. Deixam de ser escritas nos moldes das me-mórias de Chateaubriand (publicadas postumamente, es-critas como a última voz de uma aristocracia em extinção)e passam a ser escritas como as memórias de FrançoisGuizot (que explicita a vontade de publicar as memóriasenquanto está vivo, para poder responder às críticas, parapoder produzir uma narrativa que dispensa as referênciasà infância e à juventude, entrando logo na narração davida pública, demonstrando, assim, a ambição de escreverapenas para justificar suas ações e a causa pela qual lutou).

Dumas começa a escrever as suas memórias embala-do pelo sucesso da publicação das memórias de Chateau-briand, e segundo os moldes das memórias tradicionais,narrando a sua trajetória e o seu envolvimento com oromantismo. Posteriormente, o que vai se tornando maismarcante na sua produção memorialística é a memória co-

34 “E o que são as grandesobras históricas que marcamépoca, os quinze volumes daHistoire du Consulat et de

l’Empire, de Thiers, os dezvolumes da Histoire des ducs

de Bourgogne, de Barante,os trinta e um volumes daHistoire des Français, deSismondi, senão um mosaicohabilmente costurado deextratos de cronistas e dememorialistas? Micheletpoderá se vangloriar de sero primeiro a mergulhar nosarquivos e o último porintermédio do qual se ouvea voz dos atores. Sua história,sobretudo aquela daRevolução, é ainda dominadapelo encantamento damemória. Depois dele, amagia foi quebrada.”

35 “A França age e raciocina,decreta e combate; ela abala omundo; faz a história e a narra.A história é o resumo da ação.Em nenhuma outra parte nãoencontraríeis memórias,histórias individuais, nem naInglaterra, nem na Alemanha,nem na Itália [...]. O presenteestá inteiro na França. Ela otoma com uma vivacidadesingular. Desde que umhomem fez, viu qualquer coisa,ele escreve. Freqüentementeele exagera. É necessário vernas velhas crônicas tudo o quefizeram nossas gentes [...].A França é o país da prosa [...]o gênio da nossa nação nãoaparece melhor em outra parteque em seu caráter prosaico.”

36 “[...] as memórias são ahistória encarnada, a Françamúltipla e multiforme. Enunca esse sentimento foimais forte que nos dias que seseguiram as perturbações desua história e dos abalosde seu poder, as guerras dereligião, a Fronde, grandesprodutoras de memórias;nunca tão intenso do quedepois da mais grave crise desua história, a grande rupturada Revolução e do Império,nesse período sintetizador detoda a herança perdida doAntigo Regime [...]”.

154 Revista Brasileira de Literatura Comparada, n.12, 2008 Alexandre Dumas: faiseur de l’histoire? 155

letiva, que aparece sob a forma das biografias de seus ami-gos românticos e das respostas às críticas a eles dirigidas.

Mes mémoires repousa na tentativa de criar um acordoentre dois mundos: o primeiro é o do romanesco, e o outro,o da história. Alexandre Dumas procura conciliar a narrati-va romanesca que tem como tema sua própria vida (usandorecursos que são ficcionais, falando de si como uma perso-nagem), e a narrativa de testemunho, que insere a sua ex-periência na história uma vez que se trata de uma narrati-va que se alimenta do mesmo material que a historiografia).

O resultado dessa mistura improvável é que as me-mórias de Alexandre Dumas, por mais que possuam frag-mentos em que sobressaem os aspectos pessoais, estãomuito próximas da esfera de ação coletiva, reproduzindoos movimentos e as transformações de seu tempo, comose estivesse escrevendo memórias de todos aqueles comquem teve contato (ou que foram relevantes na sua épo-ca). Certamente, Dumas o faz com um estilo próprio, usan-do recursos de que dispõe, com o desejo de eternizar suaépoca, escrevendo realmente as memórias da França.

Por ser um testemunho, está sujeito às deformações,às dificuldades de se chegar a uma imagem imparcial tan-to de si mesmo quanto do seu tempo:

On pourrait croire l’autobiographie plus aisée à mener à

bien que la simple biographie, l’auteur étant le premier témoin de

ce qu’il raconte, la matière même et le héros de son récit. Mais

cette proximité même est un obstacle; regardée de trop près, une

image se brouille et perd ses proportions réelles, sa configuration.

L’historien, ayant dépouillé la totalité des documents disponibles,

se met à œuvre, la conscience tranquille; il lui faut rassembler les

fragments, reconstituer la mosaïque; en s’y prenant comme il

faut, il finira bien par mener son travail à bonne fin. Celui qui

entreprend d’écrire sa propre vie ne peut entretenir en lui cette

bonne espérance.37 (Gusdorf, 1991a, p.133)

A imagem que Dumas deseja fixar de si próprio passapela construção de um testemunho sobre a sua geração,na França de sua época:

L’auteur de mémoires, même lorsqu’il met en évidence les

iniciatives prises, les responsabilités assumées, les résultats

obtenus, ne parle pas de soi, il parle toujours d’autre chose; ce

qui intéresse, c’est le train du monde, le cours de choses et ses

vicissitudes, sous l’influence des forces à l’œuvre dans l’envi-

ronnement. En principe, la perspective est centrée sur la place

occupée par le témoin, alors que l’historien, lui, siège en un lieu

abstrait vers lequel sont censées converger toutes les prises de

vues.38 (ibidem, p.260)

Dumas escreve sua trajetória começando como umromance de aprendizagem, passando pelos momentos he-róicos da Revolução de 1830 e depois se afirma como umtestemunho da história. Dumas não confia na história,prefere deixar seu lugar na memória do futuro garantido,redigindo a sua visão dos acontecimentos.

Na época em que Dumas escreve, o eu é o mundo, omotor das transformações desse mundo. Depois do fim dautopia em 1848, pouco a pouco as memórias vão saindode cena, dando mais espaço às autobiografias, aos diários.A busca de si deixa de ser feita através do mundo e passaa ser feita pela interiorização do indivíduo.

O que Dumas testemunha é sobretudo um modo dever a história: uma história feita de revoluções, de idéias ede homens. Uma história possível de ser construída. A nar-rativa de Dumas reflete as aspirações da época, a sensaçãode que cada indivíduo carrega em si as aspirações do coletivo.

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37 “Podemos crer que a

autobiografia, mais hábil

em executar que a simples

biografia, o autor sendo o

primeiro testemunho da

matéria que narra, o herói

de sua narrativa. Mas essa

proximidade é em si um

obstáculo; vista de mais perto,

uma imagem se turva e perde

suas proporções reais, sua

configuração. O historiador,

contando com a totalidade

dos documentos disponíveis,

põe as mãos à obra, com a

consciência tranqüila; para

ele, é necessário juntar os

fragmentos, reconstituir o

mosaico e, se ele fizer da

maneira correta, terminará

por finalizar seu trabalho da

maneira correta. Aquele que

se põe a escrever a sua própria

vida não pode se manter com

essa esperança.”

38 “O autor de memórias,

mesmo quando põe em

evidência as iniciativas

tomadas, as responsabilidades

assumidas, os resultados

obtidos, não fala de si, fala

sempre de outra coisa; o que o

interessa, é o train du monde,

o curso das coisas e suas

vicissitudes, sob a influência

das forças, a obra em seu

desenvolvimento. Em

princípio, a perspectiva está

centrada no lugar ocupado

pelo testemunho, ao passo que

o historiador se coloca em um

lugar abstrato para o qual são

obrigados a convergir todos os

pontos de vista.”

156 Revista Brasileira de Literatura Comparada, n.12, 2008 157

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Narrar o passado, recriar o presente:a escrita de si em Milton Hatoum

Daniela Birman*

RESUMO: Examinaremos neste artigo as experiências de subje-

tivação atravessadas pelos narradores dos dois primeiros roman-

ces do escritor Milton Hatoum: Relato de um certo Oriente e Dois

irmãos. Segundo buscaremos sustentar, ao se dedicarem à escrita

do livro que lemos e a um trabalho com a memória e com o es-

quecimento, esses dois personagens passam por um processo de

erosão e constituição de si por meio do qual eles elaboram seu

passado e criam o eu que nos narra. Enquanto no Relato de um

certo Oriente o destaque é dado à dimensão negativa desse pro-

cesso, à erosão de si, em Dois irmãos o acento está naquela po-

sitiva, no acompanhamento de Nael em sua conquista e assun-

ção de um nome.

PALAVRAS-CHAVE: Hatoum, experiência de subjetivação,

memória.

ABSTRACT: This article examines the different forms of subjec-

tivation experienced by the narrators of the first two novels by

Brazilian author Milton Hatoum: Relato de um certo Oriente and

Dois irmãos. As I look to show, in dedicating themselves to wri-

ting the book we are reading and to the work of memory and

forgetting, these two characters undergo processes of self-ero-

sion and self-constitution through which they elaborate their

past and create the self that narrates to us. While in Relato de

um certo Oriente prominence is given to the negative aspect of

this process, the erosion of self, in Dois irmãos the emphasis is

positive, accompanying Nael as he acquires and assumes a name.

KEYWORDS: Hatoum, experience of subjectivation, memory.

Introdução

No final do Relato de um certo Oriente, romance de

estréia de Milton Hatoum (1989), a narradora anônima

* Doutorado em Letras

(Ciência da Literatura) pela

Universidade Federal do Rio

de Janeiro (UFRJ) – Rio de

Janeiro (RJ).

158 Revista Brasileira de Literatura Comparada, n.12, 2008 Narrar o passado, recriar o presente: a escrita de si em... 159

da trama nos descreve os obstáculos enfrentados para or-ganizar sua carta ao irmão, correspondência que constituio livro que lemos. Para contar a seu remetente a históriade formação e esfacelamento da família deles e a morte damulher que os criou, a personagem recolheu depoimentosde parentes e amigos, gravando fitas e fazendo anotaçõesem dezenas de cadernos. Ela se debateu, contudo, com aextrema dificuldade em ordenar os testemunhos reunidose as lembranças revividas. A narradora termina por arran-jar o relato recorrendo à própria voz, comparada àquelade um pássaro:

Quantas vezes recomecei a ordenação de episódios, equantas vezes me surpreendi ao esbarrar no mesmo início,ou no vaivém vertiginoso de capítulos entrelaçados, for-mados de páginas e páginas numeradas de forma caótica.Também me deparei com um outro problema: como trans-crever a fala engrolada de uns e o sotaque de outros? Tan-tas confidências de várias pessoas em tão poucos dias res-soavam como um coral de vozes dispersas. Restava entãorecorrer à minha própria voz, que planaria como um pássa-ro gigantesco e frágil sobre as outras vozes. Assim, os depo-imentos gravados, os incidentes, e tudo o que era audível evisível passou a ser norteado por uma única voz, que sedebatia entre a hesitação e os murmúrios do passado.(Hatoum, 1989, p.165-6)

Como pretendemos mostrar, essa comparação da nar-radora com a figura de um pássaro gigantesco e frágil, queplaina sobre as vozes do passado, sugere um processo decriação de si alcançado por meio da escrita e da elabora-ção dos sofrimentos da infância. Tal procedimento terácontinuidade na obra do autor. Com efeito, no segundoromance do escritor, Dois irmãos (Hatoum, 2000), o nar-rador também reinventa a si mesmo por meio da redaçãodo livro que lemos e do trabalho com a memória. Assim,ao chegar ao final de sua história, após ter interpretadocriticamente a ordem clientelística à qual era submetido esuperado a dúvida sobre a identidade de seu pai que o

corroia, ele parece ter rompido com a condição de extre-ma exclusão em que se encontrava no passado e constituí-do um novo eu. Nesse momento do livro, o narrador, quehavia permanecido anônimo ao longo de mais de 200 pá-ginas, nos revelará pela primeira vez chamar-se Nael.

Neste artigo, sustentaremos a hipótese de que essesdois narradores de Hatoum atravessaram uma experiência

de subjetivação1 criando, por meio da escrita, da escava-ção da memória (e do trabalho do esquecimento), um eupara relatar sua história e aquela da família na qual cres-ceram. Ao os acompanharmos nesse processo, buscare-mos ainda indicar diferenças de acento entre as dimen-sões negativa e positiva dessa experiência. No Relato de

um certo Oriente, o destaque maior é dado à ruptura de si,ao despedaçamento dos antigos limites faciais, aos deslo-camentos e às hesitações da personagem fantasmagórica.Esses movimentos, contudo, também implicarão uma di-mensão positiva, visto que a ordenação da carta da narra-dora a levará à invenção de uma voz inspirada no vôo deum pássaro, voz essa com a qual ela partilhará sua histórialibertando-se de parte do peso do passado. Já em Dois ir-

mãos, o relevo está na conquista e assunção de um nomena sociedade da qual o narrador era excluído. Essa con-quista, como veremos, também envolverá a recusa (e des-truição) de uma determinada máscara, aquela que o man-tinha invisível ou submisso.

O buraco no meio do rosto

A narradora do Relato de um certo Oriente é uma mu-lher que havia sido criada meio como filha, meio comoneta, por Emilie, matriarca da família de origem libanesaque ocupa o centro da trama. Recém-saída de uma clínicapsiquiátrica, ela retorna a Manaus, sua cidade natal, de-pois de quase duas décadas de ausência. A partir dos acon-tecimentos que se desenrolam com a sua chegada, ela vairelembrando e descobrindo histórias do seu passado e dafamília que a adotou.

1 Ao ressaltarmos a

experiência de subjetivação

dos personagens, chamamos a

atenção para a possibilidade

de constituição de um sujeito

que não seja nem, por um

lado, aquele soberano,

fundador e enraizado num

solo nem, por outro, aquele

definido unicamente pela

erosão de si, pela transgressão

dos limites e das normas do

seu meio. Esta “terceira

margem” foi indicada por

Michel Foucault (1985, 1994a,

1994b), acreditamos, quando

ele se dedicou ao estudo das

práticas de si e da estética

da existência na cultura

greco-romana da Antiguidade.

Com efeito, ao se debruçar

sobre os exercícios que

estóicos praticavam sobre si

mesmos, ele apontava para um

processo de elaboração de si

que podia ser entendido para

além da simples aplicação ou

interiorização de regras

universais. A estética da

existência é antes interpretada

pelo autor como um exercício

por meio do qual o sujeito se

constitui através de uma

prática de liberdade, que não

era uma obrigação imposta

a todos e se referia a um

determinado critério

estético (variável segundo

a época histórica).

160 Revista Brasileira de Literatura Comparada, n.12, 2008 Narrar o passado, recriar o presente: a escrita de si em... 161

Uma primeira característica que merece ser ressalta-da na narradora consiste na sua ausência de nome. Ela émarcada, com efeito, por um duplo movimento. Por umlado, constitui um personagem da trama em questão, quenos mostra, de diferentes formas, ser a principal fonte e ainstância organizadora do relato. Por outro, esconde-nosseu nome, dados fundamentais sobre sua história (ondemora, o que faz, de onde veio) e outros atributos das figu-ras romanescas clássicas, como sua descrição física e seuperfil “moral”. Sua caracterização acompanha, dessa for-ma, a deterioração dos personagens romanescos identi-ficada na passagem do século XIX para o XX, em que asantigas figuras, outrora pintadas como num retrato (cf.Rosenfeld, 1969), se transformaram em personagens des-centradas, sem a obrigação de obedecer a uma coerênciaditada por seu caráter ou meio social. Ao longo do Relato

de um certo Oriente, escutaremos, portanto, uma voz im-pessoal e anônima, destituída de características individuais,como o caráter, a personalidade, a profissão. Despojada,em suma, de sua “identidade mundana”.

Mais do que descrever o contexto histórico ou senti-do genérico no qual podemos inserir certas marcas carac-terísticas da narradora, interessa-nos indagar o que aocultação do nome indica no interior da trama em ques-tão. Esse anonimato, que dá ares enigmáticos à persona-gem e faz que sua presença se torne evanescente e porvezes espectral, parece apontar para a ausência de origem,entendida como um ilusório solo fundador, lugar primei-ro, que deteria a verdade e a essência dos que dali proce-deram (Foucault, 1979). Desse modo, ao entrar em cenasem rosto, a narradora enfatiza a inexistência dessa iden-tidade primeira e verdadeira, inexistência com a qual elase defronta em sua viagem de retorno a Manaus e em suaexploração identitária. A escolha do anonimato, nesse caso,constitui um modo de destacar a ausência de origem, emvez de optar pelo uso de uma máscara, assumindo-a comotal ou fazendo-a passar por uma imutável essência.

Além disso, ao optar pelo anonimato, a narradora re-pete o movimento de sua mãe biológica, que, como ela

mesma conta, “nunca pronunciou meu nome” (Hatoum,1989, p.163).2 Ela se coloca ao mesmo tempo no lugar damãe, calando-se, e no seu, aquele da filha que jamais es-cutou o próprio nome na voz da mulher que a abandonou.Ao repetir o movimento que constitui fonte de sofrimentopara ela, a personagem também enuncia que sua condi-ção, como filha, é daquela que não tem origem. Afirma,assim, que não pode ser vista numa relação de continui-dade com a família de onde vem seu nome – se conside-rarmos essa família a de sua mãe biológica ou aquela deEmilie.3 E, como não existe esse vínculo de continuidade,de integral pertencimento e imutável identidade, essa fa-mília não pode ser lida como uma origem.

Consideramos ainda pertinente relacionar o caráter eva-nescente e o anonimato da narradora à noção de Unheimlich,descrita por Freud (1985) em seu conhecido ensaio sobre Ohomem da areia, de E. T. A Hoffmann. Nesse texto, o psica-nalista define a especificidade da experiência de inquietante

estranheza4 como um pavor que procede daquilo que nos éhá muito familiar. Segundo nos indica Julia Kristeva (1988),embora essa experiência seja associada à angústia, ela nãose confundiria, contudo, com esta. A psicanalista destacaainda uma certa potência do afeto Unheimlich que nos inte-ressa em particular: sua condução a um processo de despo-jamento das características individuais:

[...] A inquietante estranheza preserva esta parte de mal-estar que conduz o eu, além da angústia, à desperso-nalização. [...] é uma desestruturação do eu que pode sejaperdurar como sintoma psicótico seja se inscrever como aber-

tura em direção ao novo, numa tentativa de adaptação aoincongruente. (Kristeva, 1988, p.277-8)5

O Unheimlich provoca, assim, um abalo no antigo eu,na máscara até então usada, que leva à despersonalização,à ruptura com os limites da antiga identidade. Certamen-te a narradora viveu esse tenso mal-estar, provocado peloestranhamento daquilo que lhe foi familiar. E o resultadodo abalo é evocado na descrição da colagem criada por ela

2 Maria da Luz Pinheiro de

Cristo (2000) foi quem nos

chamou a atenção para o

vínculo entre o anonimato

da narradora do Relato de um

certo Oriente e o fato de sua

mãe nunca ter lhe chamado

pelo nome.

3 Não sabemos com segurança

quem nomeou a narradora,

que parece ter chegado ainda

bebê na casa de Emilie.

4 A tradução do termo

Unheimlich por inquiétante

étrangeté é de Marie

Bonaparte, uma das primeiras

tradutoras de Freud para o

francês. Embora seja criticada,

visto que o potencial

inquietante do Unheimlich

provém de sua dimensão

familiar (e não estranha),

a tradução é empregada na

edição citada do ensaio de

Freud ao qual fazemos

referência, além de ser

utilizada, embora não

unicamente, por Julia Kristeva

(1988) em texto no qual nos

apoiaremos. Portanto,

mantemos o emprego do termo

“inquietante estranheza”, ao

lado de “insólito”, considerado

mais apropriado e também

usado por Kristeva.

5 As traduções dessa obra são

de nossa autoria.

162 Revista Brasileira de Literatura Comparada, n.12, 2008 Narrar o passado, recriar o presente: a escrita de si em... 163

na clínica psiquiátrica, que pode ser identificada a um rostodestruído: “O desenho acabado não representa nada, masquem o observa com atenção pode associá-lo vagamentea um rosto informe. Sim, um rosto informe ou estilhaçado”(Hatoum, 1989, p.163).

Ao realizarmos uma leitura do romance atenta a essaproblemática, localizamos diversos episódios que insinuamo surgimento do afeto da inquietante estranheza na trama.Boa parte do Relato de um certo Oriente, com efeito, podeser lida como um passeio por acontecimentos do passadoque têm a potência de despertar o Unheimlich. Entre osfatores, especificados por Freud, capazes de engendrar talretorno do recalcado (e o efeito do insólito), citamos aque-les explicitamente presentes nas experiências relatadas pelanarradora. São estes: a defrontação com as figuras da mor-te (da avó Emilie, da prima Soraya Ângela) e da loucura(a dela própria e a de outrem, na clínica psiquiátrica).

Lembramos, nesse contexto, que a personagem viu,quando criança, o corpo ensangüentado de Soraya Ângelaestendido no chão, coberto por um lençol. A cena consti-tuiu “uma das imagens mais dolorosas” (ibidem, p.21) dasua infância e foi relembrada em duas ou três cartas envia-das ao irmão, sugerindo-nos a existência de um traumainfantil que ela busca elaborar por meio da memória e danarrativa epistolar. O afeto Unheimlich se insinua aindaquando a narradora se defronta com a morte de Emilie.Ao saber, pois, que a matriarca foi encontrada quase semvida na guarita do telefone, ela se lembra ter escutado acampainha do aparelho, na manhã mesma da morte, quan-do estava na casa materna. O momento foi marcado poruma curiosa e assustadora sincronia de sons “entre as pan-cadas do relógio da copa e o trinado do telefone” (ibidem,p.12). Desse modo, ao relacionar a morte de Emilie naguarita e o trinado escutado de manhã cedo, a narradoranão evita o sobressalto:

Lembrei-me assustada de que, de manhãzinha, antesde sair de casa, havia escutado o telefone tocar duas outrês vezes. Talvez tenha sido o último apelo de Emilie, a

sua maneira de me encontrar e dizer adeus. (Hatoum, 1989,p.138, grifo nosso).

O insólito também surgirá no romance num episódioem que a narradora estranha sua cidade natal e a si mes-ma. O citado episódio é relatado no sexto capítulo, noqual a personagem nos conta a visita a um bairro cujo aces-so lhe fora proibido quando criança:

Atravessei a ponte metálica sobre o igarapé, e pene-trei nas ruelas de um bairro desconhecido. Um cheiro acree muito forte surgiu com as cores espalhafatosas das facha-das de madeira, com a voz cantada dos curumins, com osrostos recortados no vão das janelas, como se estivessemno limite do interior com o exterior, e que esse limite [...]nada significasse aos rostos que fitavam o vago, alheios aocurso das horas e ao transeunte que procurava observartudo, com cautela e rigor. Havia momentos, no entanto,em que me olhavam com insistência: sentia um pouco detemor e de estranheza, e embora um abismo me separassedaquele mundo, a estranheza era mútua, assim como aameaça e o medo. E eu não queria ser uma estranha, tendonascido e vivido aqui. (Hatoum, 1989, p.123)

Embora os sentimentos de ameaça e medo não tenhamemergido da visita a um local familiar, a narradora subli-nha o vínculo do mal-estar experimentado com o fato deter deparado com a diferença num mundo que julgava sero seu: aquele de sua própria cidade. Ela ressalta, com efei-to, seu desejo em não querer ser uma estrangeira ali, noespaço onde nasceu e cresceu. O estranhamento de si (eabalo nos limites do eu) vivido pela personagem se dá, por-tanto, mediante a defrontação com o Outro, por meio daqual ela não o exclui, mas vive a alteridade existente em simesma. E o afeto Unheimlich emerge, desse modo, dessaconfrontação com a diferença que desestabiliza as bases daidentidade, mostrando que essa não é fixa, essencial, nem,portanto, se enraíza num solo. Lembramos, nesse contex-to, a afirmação de Kristeva (1988, p.278), segundo a qual“o choque do outro, a identificação do eu com este bom ou

164 Revista Brasileira de Literatura Comparada, n.12, 2008 Narrar o passado, recriar o presente: a escrita de si em... 165

mau outro que viola os limites frágeis do eu indeterminadoestariam na fonte de uma inquietante estranheza”.

Ressaltamos ainda que a cidade natal não pode serentendida aqui como uma origem, fundamento de umaidentidade una e sólida, que a narradora reencontraria aoregressar. Pelo contrário. No lugar da noção de origem,temos a idéia de originário, aquela camada que, segundoFoucault (1987), indica-nos que não possuímos um solofundador nem somos contemporâneos do que nos faz ser,visto sermos constituídos por construções mais antigas doque nós, com historicidades próprias. Segundo Foucault(1987, p.347-8):

o originário no homem é aquilo que, desde o início, o arti-cula com outra coisa que não ele próprio; é aquilo que in-troduz na sua experiência conteúdos e formas mais antigasdo que ele e que ele não domina; é aquilo que, ligando-o acronologias múltiplas, entrecruzadas, freqüentemente ir-redutíveis umas às outras, o dispersa através do tempo eo expõe em meio à duração das coisas. Paradoxalmente, ooriginário no homem não anuncia o tempo de seu nasci-mento, nem o núcleo mais antigo de sua experiência: liga-o ao que não tem o mesmo tempo que ele; e nele liberatudo o que não lhe é contemporâneo [...].

No lugar da origem como fundamento temos, portan-to, o originário, indicando-nos que a cidade natal é atra-vessada por construções e ordens múltiplas, as quais nãodominamos e às quais às vezes nem temos acesso. Comefeito, apenas com a substituição da idéia de origem poraquela de originário, substituição que desvincula nossolugar de procedência das idéias de identidade e essência,nossa visão da cidade de onde viemos poderá abrangerespaços e indivíduos nos quais não reconhecemos e comos quais não nos identificamos. Será, portanto, a partir dadefrontação com a essa camada que a narradora poderáperceber Manaus como atravessada pela heterogeneidadee pela diferença – noções incompatíveis com idéias comu-mente aceitas de solo, raiz ou origem.

Consideramos essa problemática da defrontação coma ausência de origem e com o originário fundamental anossa leitura do romance – e à interpretação de Dois ir-

mãos, como veremos mais adiante. Pois, ao perceber, pormeio do estranhamento de sua cidade e da recusa de umatotal identidade com sua família, que seus vínculos de pa-rentesco e sua relação com o lugar de onde veio não sãonaturais, necessários nem absolutos, a narradora poderásentir que seus modos de ser e pensar também não o são,abrindo-se para novos possíveis. E sem o reencontro deuma identidade “natural” na sua viagem de retorno, eladeverá se dedicar à invenção de uma voz para nos narrarsua história. Essa fala artificial se deixará afetar pelas ou-tras que ela escutou, as quais reunirá num vocabulário hí-brido. A personagem também se debruçará sobre o passa-do de sua família e sobre sua infância, buscando transformaro que foi vivido como traumático ou aquilo que constituiufonte de sofrimento (e que pressiona e limita seu presen-te) em experiência. Por meio de seu trabalho de memória,ela articulará suas recordações àquelas de seus parentes eamigos, fará uso da imaginação, mergulhará em aconteci-mentos recalcados ou esquecidos e abrirá a leitura do pas-sado ao infinito da memória. A partir daí, ela criará o euque nos narra, inspirado na figura de um pássaro.

A paralisia do passado

Na abertura do Relato de um certo Oriente, a narrado-ra nos descreve seu despertar no dia seguinte ao de suachegada a Manaus, na casa que, descobriremos em seguida,é aquela de sua mãe biológica. A partir de sua conversacom a empregada da família, um dos temas principais doromance é evocado: a memória (e a paralisia do passado).Ou ainda: a necessidade de a narradora trazer à tona umadimensão temporal e espacial à qual não tem acesso direto,mas pode ser apropriada pelo presente. Desse modo, apósser remetida ao universo da sua infância, quando a empre-gada lembra-lhe hábitos singulares de Emilie, ela escreve:

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A conversa com os animais, os sonhos de Emilie, opasseio ao mercado na hora que o sol revela tantos matizesdo verde e ilumina a lâmina escura do rio. Na fala da mulherque permanecera diante de mim, havia uma parte da vidapassada, um inferno de lembranças, um mundo paralisado àespera de movimento. (Hatoum, 1989, p.11, grifos nossos)

O passado surge, portanto, inerte em sua fala, parali-sado. E a abertura do Relato de um certo Oriente sugereassim que a narradora vive uma situação semelhante à deSherazade e de diversos personagens das Mil e uma noites:o imperativo de narrar ou morrer. Pois, embora paralisado,o passado, como mostraremos, faz pressão sobre seu pre-sente, e não quer ser esquecido. Narrá-lo constitui, pois,um modo de ao mesmo tempo colocá-lo em movimento ede recriá-lo. Mais do que isso. Trata-se também de salvar opresente. Contudo, diferentemente de Sherazade, a mor-te, no caso da narradora, é representada simbolicamentepelo seu sofrimento psíquico.

É importante ressaltar que apenas depois de fazer refe-rência a esse mundo “à espera de movimento” a personageminiciará seu trabalho com a memória, passando à segundaparte do primeiro capítulo, na qual recorda cenas da infân-cia e a morte de Soraya Ângela. Mas ela não será a única aescavar o passado familiar. Segundo afirmamos, a narradoratambém recorrerá a depoimentos de parentes e amigos. Ese debaterá no final com a dificuldade de ordenar essestestemunhos. Ela optará por transformar tais personagensem narradores secundários do romance, encarregados dedeterminados trechos da história. A transmissão do relatoé partilhada, dessa forma, entre ela mesma, responsável pelaorganização de todos os depoimentos, e pelos narradoressecundários, cujos discursos são reproduzidos em discursodireto e numa dicção sóbria. Prossigamos.

O entorpecimento do passado da narradora merece serpensado a partir de uma preocupação identificada nas teses“Sobre o conceito da história”, de Walter Benjamin (1994b).Essas revelariam a influência da estética de Proust, escritorque não apenas se debruçou sobre suas lembranças, mas

explorou, como afirma Jeanne Marie Gagnebin (1994), abusca das semelhanças e das analogias entre o que se pas-sou e o tempo presente. A autora expõe a inquietação e oscuidados “semelhantes” entre o tradutor de Proust e o autor:

A mesma preocupação de salvar o passado no presen-te graças à percepção de uma semelhança que os transfor-ma os dois: transforma o passado porque este assume umaforma nova, que poderia ter desaparecido no esquecimen-to; transforma o presente porque este se revela como sendoa realização possível dessa promessa anterior, que poderiater-se perdido para sempre, que ainda pode se perder senão a descobrirmos, inscrita nas linhas do atual. (Gagnebin,1994, p.16)

A importância de Proust para o modelo de história ede narrativa defendido por Benjamin é crucial, visto que ofilósofo identificou na memória involuntária do escritor oesforço de construção da experiência (Benjamin, 1989).Com efeito, tal memória permite ao indivíduo – que viveem meio ao choque e só conhece fatos inacabados, quenão vieram nem foram incorporados à tradição, fazendoque esses lhes sirvam de ensinamento e se integrem a seucotidiano – tecer reminiscência e esquecimento; criar umaconstelação que reúna imagens do passado e do presente,rompendo com qualquer ideal de continuidade da narra-tiva e investindo na dimensão intensiva do tempo. É nes-se contexto que Benjamin afirma (1994b, p.229-30): “Ahistória é objeto de uma construção cujo lugar não é otempo homogêneo e vazio, mas um tempo saturado de‘agoras’. Assim, a Roma antiga era para Robespierre umpassado carregado de ‘agoras’ que ele fez explodir docontinuum da história”.

Dessa maneira, se o sujeito não possui uma memóriacoletiva por meio da qual os acontecimentos sobre os quaisnarra, ouve ou vê possam se inserir numa tradição ou serelacionar entre eles – o que faz que os fatos com os quaisdepara se encerrem na esfera do privado, levando-o a per-manecer preso ao sentimento de perplexidade, à incomuni-

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cabilidade e à pergunta sobre o sentido do mundo –, pormeio da memória involuntária ele poderá incorporar osacontecimentos e choques que viveu num exercício quenão os limita a um sentido uno (ou na eterna busca dessesentido), mas os abre para a dimensão infinita da memó-ria. Afinal, “um acontecimento vivido é finito, ou pelomenos encerrado na esfera do vivido, ao passo que o acon-tecimento lembrado é sem limites, porque é apenas umachave para tudo o que veio antes e depois” (Benjamin,1994a, p.37).

Desse modo, a singularidade e o incomensurável, des-critos e levados ao apogeu no romance, são penetradospelo infinito, que os abre a incontáveis leituras. E, numaconstelação que una presente e passado, esses poderãoganhar outras interpretações e sugestões de continuaçãopara a história que está sendo lembrada. O sentimento deperplexidade, a dimensão do indizível e a irredutibilidadedo que se passou poderão permanecer, mas sem dúvida asensação de incomunicabilidade e o isolamento serão en-frentados de outra forma, menos conformista. Não se pro-cura, pois, com essa abertura da narrativa para a dimen-são infinita da memória um único sentido para a vida e amorte, uma forma de concluir a história, mas produziroutras interpretações para ela e sugerir outras formas decontinuá-la. De acordo com essa perspectiva, o vínculoentre passado e presente que pode ser entendido comonecessário não é da ordem da continuidade nem obedecea um projeto de restituição da história ou de revelação daverdade oculta que guiaria sorrateiramente o tempo. Seucaráter necessário deve partir das exigências do presente ede suas apostas e esperanças para o futuro. Ele integra,portanto, a dimensão de interpretação e de apropriaçãoda história.

Assim, ao basear a exploração do passado de suafamília em atos de memória (dela e dos narradores secun-dários), a narradora não poderá “explicar”, encontrar umsentido único, a ordem correta e a finalidade dos aconte-cimentos. Ela deparará, ao contrário, com diferentes lei-

turas, esquecimentos, interpretações, e com a dimensãoafetiva e singular das lembranças de cada um. Portanto,ao organizar os relatos recolhidos, ela aprenderá que essesnão trazem em si uma finalidade, e que sua disposição de-verá ser criada por ela. Ao mesmo tempo, poderá perceberque as leituras das histórias são múltiplas, e que ela é capazde imaginar novas interpretações e continuações para oque viveu, inventando outros possíveis para o seu presente.

O mergulho da narradora no passado, contudo, nãoparte unicamente do desejo de se lembrar, mas tambémdaquele de se esquecer. A dificuldade em esquecer a dis-tingue, pois, do irmão, que abandonou Manaus para sem-pre, “como se a distância ajudasse [...] a exorcizar o hor-ror” (Hatoum, 1989, p.134). No extremo oposto dele, apersonagem não consegue fugir do mundo visível: “de tantome enfronhar na realidade, fui parar onde tu sabes: entreas quatro muralhas do inferno” (ibidem, p.135). Dessemodo, concluímos, seu distanciamento da terra natal nãofoi capaz de apagar seu “inferno de lembranças”. E o pas-sado pressiona e limita seu presente.

Esquecimento e memória são, portanto, consideradosnesta interpretação do romance como indissociáveis, doisprincípios que guiariam o movimento de retorno, o ato derecolhimento de relatos e a escrita da narradora. Podemosaproximar seu trabalho em conjunto daquele identificadono exame realizado por Benjamin da grande obra de Proust.Segundo essa análise, o esquecimento representa um pa-pel fundamental na memória involuntária do escritor fran-cês. Não se trata de uma presença negativa, das lacunasque não puderam ser preenchidas pela memória, mas deum trabalho produtivo e ativo. Benjamin pergunta-se, comefeito, se a memória involuntária do escritor não se apro-ximaria mais do esquecimento do que da chamada remi-niscência. Em tal rememoração, o trabalho é produzido ànoite, e destruído pelas forças diurnas:

Não seria esse trabalho de rememoração espontânea,em que a recordação é a trama e o esquecimento a urdidura,o oposto do trabalho de Penélope, mais que sua cópia? Pois

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aqui é o dia que desfaz o trabalho da noite. Cada manhã,ao acordarmos, em geral fracos e apenas semiconscientes,seguramos em nossas mãos apenas algumas franjas da ta-peçaria da existência vivida, tal como o esquecimento ateceu para nós. Cada dia, [...] com suas reminiscências in-tencionais, desfaz os fios, os ornamentos do olvido. (Benja-min, 1994a, p.37)

O trabalho do esquecimento seria assim destruído pe-las forças da racionalidade que predominam durante o dia,pela certeza das reminiscências intencionais e conforta-doras que ele arruína durante a noite, perfurando-as comlacunas, pelo posicionamento alerta da consciência, quecontrola a irrupção de imagens esquecidas ou recalcadase, portanto, o trabalho de cruzamento, constelações e as-sociações entre imagens do presente e do passado que nãoobedece à lógica e aos princípios racionais. Podemos, por-tanto, entender essa atividade do esquecimento citada porBenjamin como um princípio constitutivo da escrita prous-tiana. Outra interpretação dessa atividade seria com-preendê-la como um dos alvos da escrita e da memóriainvoluntária: o resgate do passado que, mediante a suareatualização, busca superá-lo e, portanto, esquecê-lo decerta forma. Tal papel, acreditamos, é inseparável da es-crita da memória desdobrada por nossa narradora.

Ao explorar a dimensão involuntária da memória,Proust também enfrentaria o envelhecimento, pois o escri-tor “está convencido da verdade de que não temos tempode viver os verdadeiros dramas da existência que nos é des-tinada. E é isso que nos faz envelhecer, e nada mais” (Ben-jamin, 1994a, p.46). Por intermédio da memória involun-tária o sujeito teria acesso a fatos deixados inacabados emseu passado, entendidos como responsáveis pelo seu enve-lhecimento. Por isso, podemos dizer que ela salva o passa-do, impedindo sua submersão no esquecimento (e, supo-mos, a pressão desse, que não foi inteiramente apagado, sobreo presente). É nesse sentido que Benjamin (1994a, p.45)fala da “obra da mémoire involontaire, da força rejuvenes-cedora capaz de enfrentar o implacável envelhecimento”.

Neste ponto, podemos já relacionar parte do que vemsendo dito à necessidade da narradora de colocar em mo-vimento seu passado paralisado e ao presente da persona-gem, marcado pela experiência-limite da loucura. Comopodemos concluir a partir de sua carta, o período de inter-nação numa instituição psiquiátrica será decisivo para aviagem de regresso da qual nascerá o Relato de um certo

Oriente – e, portanto, para o trabalho de recolhimento delembranças que será efetuado. O vínculo entre o que anarradora viveu na clínica e o retorno a Manaus é indica-do no diálogo entre ela e sua amiga Miriam:

Miriam estranhava o fato de eu não sair dali [da clíni-ca] o quanto antes; ela se incomodava quando lhe pediapara sentar no pátio, e estremecia ao ver as duas beatasque se acercavam com os olhos arregalados e se ajoelha-vam à nossa frente, segurando nas mãos um terço de con-tas transparentes. “O que te atrai para continuares aqui?”,me dizia. Quis responder perguntando o que me atraía láfora, mas preferi dizer que estava pensando numa viagem.(Hatoum, 1989, p.162)

A paralisia do passado surge como um impedimento,um obstáculo à vida da narradora, que foi internada, comoela imagina, “depois do meu último acesso de fúria e des-controle, quando nada ficou de pé nem inteiro no lugaronde morava” (ibidem, p.160). A partir dessa experiência,ela viajará em busca do passado ao mesmo tempo esqueci-do, paralisado e impossível de se esquecer. Por isso, afir-mamos que seu ato de memória e transmissão da históriaintegra o imperativo de narrar ou morrer. E isso implicaainda que a narradora se apropria do passado no momentoindicado por Benjamin (1994b, p.224-5) ao materialismohistórico, em sua sexta tese “Sobre o conceito da histó-ria”: aquele do perigo.

Após viver um período de torpor, “imersa na escuri-dão pacata de um sono contínuo e sem sonhos” (Hatoum,1989, p.159), a personagem ingressou “no espaço ordena-do, asséptico e sóbrio, golpeado sem cessar pelo estrépito

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alucinante das pessoas reconduzidas ao sono letárgico dosque haviam ingressado recentemente para passar dias edias alijados de qualquer gesto lúcido ou criativo” (ibidem,p.160). Antes de emergir da inércia, porém, ela terá umaespécie de sonho ou delírio com a visita de sua mãe (ape-sar de ter caracterizado seu torpor pela ausência de ima-gens oníricas). Nesse trecho do romance, identificamosuma breve desordem em seu relato, em razão de sua con-fusão mental ou do desejo de expô-la. Ela nos narra a res-peito de sua defesa à visita da mãe como se essa houvessede fato ocorrido, e apenas depois nos damos conta de seucaráter imaginário:

Era como se eu tivesse os olhos vendados, ou como seuma cegueira precoce e súbita fosse uma defesa à vinda denossa mãe, que chegou assim que foi informada do meuinternamento. Creio que não cheguei a vê-la, nem sequerde longe. Mas certa noite, ao olhar para a porta aberta doquarto, divisei um contorno indefinido, uma forma envol-ta de sombras, como se um corpo tivesse escapado da clari-dade da luz para refugiar-se numa região obscura situadaentre a soleira da porta e os confins do mundo. Talvez fosseela, porque escutei a mesma voz que nos abandonou hátanto tempo: uma voz dirigida à Emilie, sondando de umlugar distante, notícias da nossa vida. O corpo e a voz, tãopróximos de mim, já não eram mais que uma pálida lem-brança de um encontro quimérico, e esvaneceram por com-pleto quando emergi do estado de torpor [...]. (ibidem,p.159-60)

Não nos interessa construir aqui nenhuma cadeia decausa e efeito para os sentimentos vividos, mas somenteindicar o surgimento, na escuridão desse sono sem sonhos,da experiência radical do abandono materno e o rompi-mento passageiro com a linguagem ordenada do cotidianono relato do que se passou. A figura da mãe se faz aindapresente na fantasia da narradora sobre seu internamento.Pois, segundo ela nos conta, estava convencida de que essese deu “a mando da nossa mãe” (ibidem, p.160). Ao citar-

mos esses devaneios, não pretendemos desprezar os co-mentários da narradora nem relegá-los a uma desvaloriza-da dimensão, marcada pelo caráter imaginário ou pelaausência de lógica, mas frisar seu pertencimento à esferado inconsciente, da fantasia e do desejo, na qual se locali-zam os mais fortes traços mnemônicos (cf. Freud, 1981;Benjamin, 1989).

Com efeito, será durante a internação na clínica quea personagem iniciará diversas “viagens da memória”. Anarradora adentrará então uma esfera de produção da di-mensão inconsciente do sujeito, à qual é possível estabele-cer semelhanças com aquele instante do despertar prous-tiano, crucial para Benjamin: instante de abolição dossistemas de ordem, no qual os móveis, as paredes e os anosgiravam em torno daquele que acordava, que não sabianaquele momento em que moradia de sua vida se encon-trava. Podemos supor, pois, que ela terá acesso ao estadoque Benjamin, segundo Krista R. Greffrath (1983), cha-mava de “desordem produtiva”, tendo-a encontrado emProust, no colecionador e no alegorista. “As coisas giramumas em relação às outras sem formar série, ordem hierár-quica [...]; elas estão, pelo contrário, numa autonomia so-berana”, explica Greffrath (1983, p.126). A autora lembraainda que o que Benjamin chama de “memória incons-ciente”, numa tradução livre da memória involuntáriaproustiana e numa síntese do escritor com Freud, “é o lu-gar de tal desordem produtiva” (ibidem, p.126).

Podemos identificar o trabalho dessa “desordem pro-dutiva” no relato escrito pela personagem durante suainternação. Tal narrativa era marcada pela ausência deordem, pelo gênero indefinido, pela falta de tema e pelamistura de fontes. Em resumo, seu caráter desordenadotraz a marca da linguagem da loucura:

Nessa época, talvez durante a última semana que fi-quei naquele lugar, escrevi um relato: não saberia dizer seconto, novela ou fábula, apenas palavras e frases que nãobuscavam um gênero ou uma forma literária. Eu mesma

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procurei um tema que norteasse a narrativa, mas cada fra-se evocava um assunto diferente, uma imagem distinta daanterior, e numa única página tudo se mesclava: fragmen-tos das tuas cartas e do meu diário, a descrição da minhachegada a São Paulo, um sonho antigo resgatado pela me-mória, o assassinato de uma freira, o tumulto do centro dacidade, uma tempestade de granizos, uma flor esmigalhadapela mão de uma criança e a voz de uma mulher que nuncapronunciou meu nome. (Hatoum, 1989, p.163)

É possível identificar nesse relato temas e imagenspresentes no romance: o abandono da mãe; a flor vincula-da à figura da morte (a rara orquídea vermelha que o tioEmir segurava antes de se matar, as flores atiradas no ros-to de Hakim pela narradora, para acordá-lo e avisá-lo doacidente da prima, ou aquelas de organdi suíço que cobri-ram a cabeça de Soraya depois do acidente); o desejo dese dedicar à vida do claustro nutrido por Emilie; a migra-ção da narradora para a “cidade grande”. Fundamental,porém, é como eles se aglutinam e abolem a ordem à qualintegravam na memória voluntária de nossa narradora paraformar, na dimensão inconsciente, outra constelação, querompe com as linearidades temporais, espaciais, de gêneroou temática. Contudo, o relato da narradora não perma-necerá como uma narrativa disforme, pois ela o rasgará efará de seu papel picado uma colagem. Será a partir dessacolagem que ela evocará a imagem, citada mais acima, dorosto informe.

Desse modo, podemos concluir que ao romper e des-truir, com seu ataque de fúria e com seu relato desarranja-do, as ordens regentes na racionalidade cotidiana, no há-bito e na memória voluntária, a narradora despedaça oslimites e arranjos do seu eu e de sua história pregressa. Eserá em busca do recolhimento desses cacos, da escuta denovas confidências e recordações, que ela partirá em suaviagem a Manaus. Lá, como vimos, não encontrará umaidentidade essencial e fixa, fundada num ilusório solo fun-dador, mas deparará com a ausência de origem e estranha-rá a si mesma. A partir da reunião dos depoimentos de

amigos e parentes e da escrita de suas próprias rememo-rações, ela escreverá a carta a seu irmão, buscando inserirsua história naquela de sua família, criar outra leitura einventar uma nova continuação para os fatos traumáticose os sofrimentos de quando era criança. Em suma, ela pro-curará, por meio da reelaboração do passado, transformaros choques, as dores e os fatos inacabados da infância emexperiência.

A narradora se debruçará ainda sobre o trabalho deinvenção da voz artificial com a qual nos desdobrará seurelato. Pois, se ela deparou com a inexistência de uma iden-tidade essencial e verdadeira, deverá também enfrentar aausência de uma voz “natural” para nos contar sua histó-ria. E sem identidade e voz fixas (que lhe permitiriammanter a distância “certa” entre ela e mundo), os sota-ques, as dicções diversas, as mimeses alheias a afetam e alevam a se perguntar sobre como narrar. Reproduzimos,mais uma vez aqui, um dos questionamentos que atraves-sam sua escrita: “como transcrever a fala engrolada de unse o sotaque de outros?” (ibidem, p.165-6). A pergunta re-vela, pois, que a narradora percebe a barreira existenteentre oralidade e escrita. Ela parece ainda indicar suadefrontação com outra questão: a de que sua transcriçãodas vozes alheias consistirá sempre numa mediação, inter-pretação. Daí, pois, sua indagação a respeito de como trans-crever. E será esse papel de mediadora que ela assumirá aooptar por empregar sua própria voz para reproduzir, emdiscurso direto, as falas dos narradores secundários.

Essa voz que ela emprega para redigir toda sua carta –que não sendo essencial se deixa afetar pelas falas de ou-trem – parece ter sido trabalhada exaustivamente. Pois,embora não transcreva sotaques e dicções engroladas, apersonagem realiza um trabalho de pesquisa, seleção e reu-nião de termos de origens distintas para formar o vocabu-lário com o qual transmite seu relato, incorporando, dessemodo, as diversas falas singulares que escutou e a afetam.Com efeito, a narradora mescla em sua longa carta (e,portanto, não apenas em seu relato, mas também naque-

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les que reúne) termos originados do árabe (alforje, azáfa-ma, âmbar, almíscar, alfazema, mesquita), outros vindosdo tupi (caboclo, jaguatirica, pitomba), palavras típicas doAmazonas ou das regiões Norte e Nordeste, provenientesou não do tupi (jerimum, maracajá, chichuta), além deuma grande variedade de nomes próprios (de lugar, pes-soa, música etc.), e termos que designam guloseimas e fru-tos característicos (esfiha, tâmara, cupuaçu).6 Essa reu-nião de palavras de diferentes origens parece, pois, apontarpara a realização de um exercício da personagem sobre simesma, por meio do qual ela incorpora as falas que influen-ciam a sua própria. Nesse exercício, ela não transcreveessas falas, mas as peneira, seleciona, criando o rico e hí-brido vocabulário com o qual irá nos transmitir todos osrelatos recolhidos.

Segundo mencionamos, a personagem deverá aindarecorrer à imaginação, pois descobre que não há um modode restituir o passado e contar sua história sem nenhumalacuna, esse “espaço morto que minava a seqüência deidéias” (ibidem, p.165). Nesse contexto, ela relata ao ir-mão que começou a “imaginar com os olhos da memóriaas passagens da infância, as cantigas, os convívios, a falados outros, a nossa gargalhada ao escutar o idioma híbridoque Emilie inventava todos os dias” (ibidem, p.166). E, aoconcluir sua carta, ela conta que ritmo é esse que buscoucriar e acompanhar para resgatar sua infância, perdida nopassado, e lhe transmitir, a distância, uma terrível notícia:a morte de Emilie. Ela procurou, pois, reinventar um tomfamiliar e esquecido, incorporando nele, de modo ativo,as lacunas deixadas para trás: “Era como se eu tentassesussurrar no teu ouvido a melodia de uma canção seqües-trada, e que, pouco a pouco, notas esparsas e frases sin-copadas moldavam e modulavam a melodia perdida” (ibi-dem, p.166). O familiar e o passado são, nesse contexto,reinventados a partir do presente, postos em movimento(visto estarem paralisados) e libertos (ressaltamos o usodo verbo seqüestrar empregado) a partir do salto dado nummomento de sofrimento e perigo no qual a personagem se

encontrava. Desse modo, ao abandonar qualquer projetode busca de um solo firme no qual se apoiar (e de umaidentidade una e fixa), a narradora pôde se preparar paradecolar vôo. Seu personagem se aproximou, assim, da fi-gura do pássaro, que flutua sobre os outros com a levezadaquele que implodiu a carga do pesado passado que imo-bilizava seus passos, permitindo-lhe recolher e recompor,de uma diferente maneira, os cacos da sua história e desua subjetividade.

O filho de ninguém

O narrador de Dois irmãos, Nael, é filho bastardo deum dos três homens da família de origem libanesa nucleardo romance, na qual ele nasceu e cresceu na condição deagregado. A partir do que ouviu e presenciou, ele nos con-tará a história da discórdia entre os irmãos Yaqub e Omar,os gêmeos do casal Zana e Halim. Ao mesmo tempo, eleentrelaçará o relato de sua própria vida à trama que ocupao primeiro plano do livro.

Somente aos poucos, contudo, saberemos o estatutodo narrador na casa onde vive, quem é sua mãe, os senti-mentos e conflitos vividos por ele. De modo similar à nar-radora do Relato de um certo Oriente, Nael permanecerá amaior parte do livro sem nome. E ao nos enredar num cli-ma de mistério sobre sua identidade e história, ele nos atraipara o conflito central da sua vida, aquele vinculado à ig-norância sobre quem é seu pai. Mais do que isso. Ele noscoloca na mesma situação de ignorância vivida por ele.

Apenas no início do quarto capítulo o personagempassará ao centro da narrativa, partilhando conosco a do-lorosa dúvida a respeito de sua ascendência paterna:

Eu não sabia nada de mim, como vim ao mundo, deonde tinha vindo. A origem: as origens. Meu passado,de alguma forma palpitando na vida dos meus antepassa-dos, nada disso eu sabia. Minha infância, sem nenhum si-nal da origem. É como esquecer uma criança dentro de um

6 Evidentemente, seria

necessário um estudo

minucioso do vocabulário

empregado no Relato de um

certo Oriente para dar conta

da diversidade de origem

dos termos, além do uso de

palavras estrangeiras e

de nomes próprios. Não

pretendemos com esses

exemplos realizar nem muito

menos esgotar tal estudo, mas

apenas indicar a riqueza e

hibridez deste vocabulário e

vincular este trabalho de

seleção e reunião àquele de

criação de nossa narradora

de uma voz permeada pelas

falas daqueles que a cercam.

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barco num rio deserto, até que uma das margens a acolhe.Anos depois, desconfiei: um dos gêmeos era meu pai.(Hatoum, 2000, p.73)

Nael enuncia, dessa forma, a ânsia por um passadomisterioso, a aleatoriedade que marcou sua chegada aomundo e a dor do abandono: seu sentimento de ter sido“esquecido” dentro de um barco, até que, fortuitamente,uma das margens o acolheu. Ao que tudo indica, portan-to, ele deparou desde muito cedo com a impossibilidadede se fiar à ilusão de um solo fundador. Seu nascimento é,pois, atravessado (e ele assim o interpreta) pela idéia dacontingência, permitindo que seu vínculo com o lugar “deonde veio” (seja esse entendido como seus pais, seja comosua família, cidade natal ou pátria) não seja percebido comonatural ou necessário nem, portanto, lido como uma ori-gem. Nesse contexto, o narrador poderá desnaturalizar asordens às quais está submetido, que também não seriamcompreendidas como inquestionáveis ou inevitáveis. E, co-mo mostraremos ao nos debruçarmos sobre outros trechosdo livro, assim ele o fará.

A condição de agregado de Nael não lhe traz ilusãode igualdade ou de plena integração ao núcleo familiarlibanês. Embora seja filho de um dos homens da casa, te-nha enterrado sua mãe no jazigo da família e até recebidouma espécie de herança, Nael sacrificou seus estudos paraservir aos moradores “legítimos” do sobrado, sempre dor-miu num quarto no quintal e viu sua mãe, a índia Domin-gas, ser explorada e aviltada, esmorecendo ao longo davida. Domingas, ele nos conta, morreu “quase tão mirradacomo no dia em que chegou a casa, e, quem sabe, ao mun-do” (ibidem, p.65).

Não por acaso, o narrador menciona diversas vezes oideal de liberdade em seu relato, seja para fazer referênciaaos sonhos de Domingas, “louca para ser livre” (ibidem,p.67), ou ao alívio que ele experimentava ao mirar o rio emsuas tardes de folga, quando “a imensidão escura e leve-mente ondulada [...] me devolvia por um momento a liber-

dade tolhida” (ibidem, p.81). E é essa mesma idéia que estáem jogo quando Nael nos conta que conseguiria o diplomado Liceu Rui Barbosa: “minha alforria” (ibidem, p.37).

Enquanto, porém, Domingas tem medo de fugir dacidade e parece esperar que a liberdade seja concedida co-mo um favor, o narrador defende uma postura mais ativa eexigente. “Entregue ao feitiço da família” (ibidem, p.67),a mãe de Nael se limitou, pois, a sonhar com a liberdade,não seguindo ao impulso do filho, que se empenhava pelatomada de iniciativa: “ou a gente age, ou a morte de re-pente nos cutuca, e não há sonho na morte” (ibidem, p.67).E parte da inércia de Domingas vinha da dependênciaafetiva com a família libanesa: “[...] foi tomada pela ina-ção. Pela inação e também pelo envolvimento com os gê-meos, sobretudo com a criança Yaqub, e, quatro anos de-pois, com Rânia” (ibidem, p.67). Para completar o círculode aprisionamentos, a paralisia de Domingas acaba por atarNael à casa, de modo que os laços familiares prevalecempor um bom período de sua vida.

Bastardo, agregado e corroído por uma grande dúvi-da, o narrador precisará conquistar um lugar para si naterra em que vive, visto que seu nascimento não lhe garan-tiu por direito esse lugar. E do mesmo modo que sua posi-ção resultará de uma conquista, seus vínculos e laços comos integrantes da família na qual cresceu, e que é e não é asua, também não serão dados e aceitos passivamente, masconstituirão frutos de escolhas. Esse caminho, contudo,não será fácil. Para percorrê-lo, Nael contará com os favo-res recebidos (que lhe permitirão estudar e abrir-se a novaspossibilidades de ser), com o desenvolvimento de um olharcrítico e com seu ato de escrita e memória.

Ao iniciar seu relato, o narrador já havia se libertadoem parte da situação de sujeição extrema na qual viveu,tendo rompido com a dependência familiar, recusado cer-tos papéis sociais e conquistado uma profissão. Supomos,porém, que a experiência de escrita foi fundamental noprocesso de questionamento do seu próprio mundo, inter-pretação de sua história e criação de um eu que nos narre

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seu passado. Dessa maneira, quando estiver chegando aofinal do livro, tendo já reinventado sua trajetória, critica-do o universo que o constituiu e elaborado uma voz capazde tecer e desmanchar as tramas da sua infância, ele final-mente nos enunciará seu nome.

Assim como a narradora do Relato de um certo Oriente,o passado de Nael pressiona seu presente, exigindo ser sal-vo. Nesse sentido, o narrador nos conta: “até hoje me vejocorrendo da manhã à noite, louco para descansar, sentarno meu quarto, longe das vozes, das ameaças, das ordens”(ibidem, p.88). E do mesmo modo que a personagem ana-lisada anteriormente, Nael se caracteriza pelo desejo decapturar o tempo submerso. Ele sempre teve, pois, “sedede lembranças, de um passado desconhecido, jogado sei láem que praia do rio” (ibidem, p.91). O personagem aindapode ser visto como um indivíduo marcado pela dificulda-de de esquecer, assombrado por imagens de um outro tem-po que ameaçam envelhecê-lo. Dessa forma, para salvarseu passado, e especialmente seu presente, ele deverá mer-gulhar nestas imagens, buscando articular memória e es-quecimento; o tempo de hoje àquele que custa a passar.

Assim, muitos anos depois do embate entre Yaqub eOmar, após a morte de quase todos os personagens envol-vidos, Nael nos relata sua história e aquela dos dois ir-mãos. Ele parte, portanto, da necessidade do presente eda passagem do tempo (que contribuiu para o esqueci-mento dos acontecimentos), investindo na possibilidadede produzir outras leituras para o passado e transformá-loem experiência. Esses acontecimentos poderão, dessemodo, serem sedimentados num exercício de interpreta-ção de si mesmo, do outro e do mundo que ajudam Nael aelaborar e reinventar a si mesmo, o outro e o mundo. Opróprio narrador ressalta a importância do esquecimentoem seu relato ao nos revelar outra tentativa de escrita, naépoca em que sua mãe morreu:

Naquela época, tentei, em vão, escrever outras linhas.Mas as palavras parecem esperar a morte e o esquecimento;

permanecem soterradas, petrificadas, em estado latente,para depois, em lenta combustão, acenderem em nós odesejo de contar passagens que o tempo dissipou. E o tempo,que nos faz esquecer, também é cúmplice delas. (ibidem,p.244)

Sustentamos, portanto, a hipótese de que, ao se debru-çar sobre a história de sua família e explorar num ato derememoração a situação de extremo sofrimento da infân-cia e juventude, provocada pela ignorância a respeito daidentidade de seu pai e pela situação de exclusão em quese encontrava, Nael recriará seu passado e seu próprio eu.E de modo semelhante à narradora do Relato de um certo

Oriente, ele enfrentará a ausência de origem e a camadado originário, percebendo não ser contemporâneo do queo faz ser e desnaturalizando o próprio mundo. Com efeito,identificamos em Dois irmãos uma série de marcas indi-cativas da defrontação com o originário. Essa experiênciasurgirá, sobretudo, a partir da confrontação entre as ideo-logias liberal e clientelista, confrontação que supomos terauxiliado Nael a questionar a ordem que o regia: aquelado favor. Vamos a essas marcas.

Segundo afirmamos, Nael se distingue de sua mãe porapostar no alcance da liberdade pela via da conquista, enão esperá-la como um benefício. A diferença entre osdois parece se localizar no caráter fronteiriço do narrador,situado entre dois mundos: o de Domingas, marcado pelasua condição servil, pela extrema exploração de seu traba-lho, pela dependência afetiva e pela obediência à ordem eaos princípios do favor, e aquele marcado pela ideologialiberal, que valoriza a autonomia do indivíduo, a igualda-de entre os homens e o universalismo dos princípios. As-sim, ao mesmo tempo que também será submetido a umregime de exploração do seu trabalho e dependerá do fa-vor, Nael freqüentará a escola e ganhará livros, tendo aces-so a um “outro universo” que ainda não é o seu. Há, pois,em seu cotidiano uma brecha para que ele alcance a liber-tação afetiva e financeira, diferentemente de sua mãe, quenão conseguirá contrapor a ordem familiar a outras possi-

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bilidades de ser, permanecendo presa aos que abusam deseu trabalho e mesmo àquele que violou seu corpo (Omar).

Ao nos reconstruir sua história e reler seu passado, Naelconfrontará, portanto, os valores regidos pelos desejos,caprichos e favores dos donos da casa com aqueles do di-reito e da igualdade, experimentando-se como tendo sidoconstituído por ordens contingentes e particulares. Essaconfrontação é indicada, por exemplo, na hierarquia tra-çada por ele entre diferentes membros (“legítimos” e “ile-gítimos”) da família, graduação correspondente aos cômo-dos que eles ocupam na casa:

Rânia significava muito mais do que eu, porém menosdo que os gêmeos. Por exemplo: eu dormia num quartinhoconstruído no quintal, fora dos limites da casa. Rânia dor-mia num pequeno aposento, só que no andar superior. Osgêmeos dormiam em quartos semelhantes e contíguos, coma mesma mobília; recebiam a mesma mesada, as mesmasmoedas, e ambos estudavam no colégio dos padres. (ibidem,p.29-30)

Ao fazer essa comparação, Nael opõe a desigualdadevivida por Rânia (em menor grau) e por ele (mais intensa-mente) à igualdade entre os gêmeos. Dessa forma, apenasos filhos legítimos e homens têm “direito à igualdade”. Aoexaminar a hierarquia familiar, aceita com naturalidadeem outro contexto, com os olhos dos princípios da igual-dade iluminista, a primeira mostra-se não apenas injusta,mas, sobretudo, nada evidente. E, se ela não é evidente,por que aceitá-la?

Nael estará ainda sujeito a caprichos de Zana e de-penderá de favores dos membros da família, que lhe pro-porcionarão momentos de lazer, lhe permitirão se vestirmelhor e ter livros para estudar, caminho que o levará a seprofissionalizar e a se libertar dessa situação. Mas inde-pendentemente dos caprichos e favores que extrapolam odia-a-dia, variando segundo as circunstâncias e a boa von-tade de outrem, Nael tem “deveres” (serviços) e “direitos”(mais favores) na casa. Esses, evidentemente, também de-

pendem da (boa ou má) vontade dos donos do sobrado,mas obedecem a uma certa regularidade:

Podia freqüentar o interior da casa, sentar no sofá cin-zento e nas cadeiras de palha da sala. Era raro eu sentar àmesa com os donos da casa, mas podia comer a comidadeles, beber tudo, eles não se importavam. Quando nãoestava na escola, trabalhava em casa, ajudava na faxina,limpava o quintal, ensacava as folhas secas e consertava acerca dos fundos. Saía a qualquer hora para fazer compras,tentava poupar minha mãe, que também não parava umminuto. Era um corre-corre sem fim. Zana inventava miltarefas por dia, não podia ver um cisco, um inseto nas pa-redes, no assoalho, nos móveis. A estátua da santa nopequeno altar tinha que ser lustrada todos os dias, e umavez por semana eu subia à platibanda para limpar os azule-jos da fachada. (ibidem, p.82)

O estabelecimento dessas “regras” deriva em grandeparte das decisões e vontades de Zana, em negociação,supomos, com os outros membros da casa e até com vizi-nhos. Podemos imaginar ainda que elas estão em sintoniacom hábitos aceitos na Manaus da época. Contudo, em-bora correntes no mundo descrito e, portanto, capazes depassar por evidentes, tais determinações constituem, emgeral, frutos de arbítrios e costumes entendidos como in-justos segundo a óptica defensora dos chamados direitosdo homem (e daqueles da criança e do adolescente). Elasestão, portanto, em desacordo com os ideais dos princípiosliberais aos quais Nael terá acesso, permitindo que ele asdesnaturalize.

Esse distanciamento de si mesmo (e abertura para oOutro) aponta, segundo afirmamos, para a realização dachamada experiência originária. Essa parece ter se torna-do possível graças à distância existente no presente emrelação a ele mesmo: as ordens clientelista e liberal. Dis-tância, portanto, entre os discursos enunciados em nomedos direitos do indivíduo e da igualdade entre os homense a ordem autoritária que rege o cotidiano e a situação de

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exclusão na qual Nael vive. Por meio dessa experiência,em que o narrador percebe não ser contemporâneo do queo faz ser, não possuindo, pois, uma origem que o levaria aaceitar todas as influências e ordens que o constituem,Nael poderá romper com os limites que o definem – atoque, evidentemente, engendrará outros limites, invisíveis.

Ao se perceber constituído por contingências, o nar-rador poderá descrevê-las como tais, segundo podemosconstatar ao lermos o trecho destacado acima. Ele sabe,desse modo, que a permissão para beber e comer dependede uma vontade, assim como as ordens que obedece se su-bordinam a arbítrios. Em resumo, seus “direitos” e “deve-res” dependem de fatores como o incômodo gerado no ou-tro (“podia comer a comida deles, beber tudo, eles não seimportavam”) ou suas exigências do momento (“Zana in-ventava mil tarefas por dia”). A prestação de favores aosvizinhos, por meio dos serviços de Nael, também é enuncia-da explicitamente pelo narrador. Segundo seu relato, nãohá dúvidas que os favores prestados são entre Zana e osvizinhos, e não entre Nael e estes, que, segundo conta onarrador, “às vezes nem agradeciam” (ibidem, p.82).

Citemos um último exemplo: o aniversário de dezoitoanos de Nael, considerado por ele “inesquecível”. O epi-sódio será relatado a partir da correspondência e compa-ração estabelecida entre ele e Omar. Dessa vez, porém, onarrador receberá um tratamento capaz de fazer concor-rência e despertar ciúme e raiva no caçula da casa. Expli-quemo-nos: o aniversário foi pouco depois do assassinatodo professor de francês Antenor Laval, ocasião em quetanto Nael quanto Omar adoeceram. E a alegria donarrador derivará dos cuidados que recebeu de Halim,Yaqub e Domingas nos dias em que ficou de cama, aten-ção ainda mais valorizada quando comparada àquela dis-pensada ao caçula.

Passei alguns dias deitado, e me alegrou saber queHalim dera mais atenção ao neto bastardo que ao filho le-gítimo. Ele sequer pisou na soleira da porta do Caçula. No

meu quarto entrou várias vezes, e numa delas me deu umacaneta-tinteiro, toda prateada, presente dos meus dezoitoanos. [...] Foi um aniversário inesquecível, com minha mãe,Halim e Yaqub ao lado da minha cama, todos falando demim, da minha febre e do meu futuro. Lá em cima, o outroenfermo, enciumado, quis roubar a comemoração da mi-nha maioridade. Escutamos gemidos, gritos, pancadas, sonsde metal, uma zoada dos diabos. [...] Não, ele não deixariapor menos, não ia permitir que eu reinasse um só dia nacasa. [...] Zana não se despegava dele; ela se ressentiu comDomingas e Halim, que não tinham ido ver o Caçula. (ibi-dem, p.200-1)

Nesse trecho, o narrador parece já caminhar em dire-ção à autonomia e à realização como sujeito, incentivadapor parte dos membros da casa. Ao menos, ele já é reco-nhecido como tal por esses personagens, que lhe falaram“de mim, da minha febre e do meu futuro”. Chamamos aatenção para o fato de seu direito a um futuro ser mencio-nado no momento em que ele alcança a “maioridade”. Essapode, desse modo, ser interpretada metaforicamente: maio-ridade no sentido de rompimento com a dependência esubmissão. A mesma maioridade, portanto, que foi enten-dida como alcançada pela razão na era das Luzes. Lembra-mos a definição de Kant do Iluminismo, tal como esta foicomentada por Foucault (1994b, p.566):

Kant indica [...] que esta “saída” que caracteriza aAufklärung é um processo que nos liberta do estado de“menoridade”. E por “menoridade” ele compreende umcerto estado da nossa vontade que nos faz aceitar a autori-dade de alguém para nos conduzir nos domínios nos quaisconvém fazer uso da razão.

A maioridade de Nael, contudo, está ameaçada deroubo, não sendo aceita por Omar, que esbraveja diantede tamanha audácia. Pois, na terra em que ele vive, ela éentendida como pertencendo aos “reis”, como se podeconcluir a partir da insinuação de que a comemoração dosdezoito anos, com o simbolismo que esta carrega, implica

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um reinado (“ele não deixaria por menos, não ia permitirque eu reinasse um só dia na casa”). Para libertar-se doestado de menoridade, Nael ainda terá, desse modo, ou-tras conquistas pela frente. Parte delas ele as alcançaránum período de sua vida a respeito do qual não nos relatatão minuciosamente. O narrador nos fornece, porém, al-gumas informações importantes a respeito dessas conquis-tas: ele se distanciará dos dois gêmeos (e da irmã deles,Rânia), começará a dar aulas no antigo liceu em que estu-dou (passando a viver, portanto, de seu salário) e iniciaráa escrita do que, supomos, se transformará no romanceque lemos. Já quase no final desse, tendo recriado seu pas-sado – interpretado-o de forma crítica e completando assimseu rompimento e questionamento da ordem familiar queo sujeitava –, Nael nos narrará o episódio em que Domingaslhe revelou a identidade de seu pai. O narrador optará,porém, por se calar sobre esta identidade, deixando-noscom a dúvida que foi aquela de sua vida:

Murmurou que gostava tanto de Yaqub... Desde o tem-po em que brincavam, passeavam. Omar ficava enciumadoquando via os dois juntos, no quarto, logo que o irmão vol-tou do Líbano. “Com o Omar eu não queria... Uma noiteele entrou no meu quarto, fazendo aquela algazarra, bêba-do, abrutalhado... Ele me agarrou com força de homem.Nunca me pediu perdão”. (Hatoum, 2000, p.241)

Nesse mesmo trecho do seu relato, seu nome é pro-nunciado pela primeira vez, na voz de sua mãe, pouco an-tes da citação reproduzida acima. Nael, Domingas expli-ca, é uma homenagem ao pai de Halim: “Ele [Halim] foiao teu batismo, só ele me acompanhou. E ainda me pediupara escolher teu nome. Nael, ele me disse, o nome do paidele. Eu achava um nome estranho, mas ele queria muito,eu deixei...” (ibidem, p.241). Poderíamos daí deduzir queo narrador alcançou finalmente a condição de sujeito gra-ças à informação a respeito de sua ascendência. Nossa in-terpretação, entretanto, segue o sentido inverso.

Defendemos que Nael redige o próprio nome após terconseguido, por meio da escrita e da memória, criar um eupara falar que recusa qualquer fundamento originário, li-bertando-se assim não apenas da ausência de um “pai”,mas da necessidade de um solo fundador que garanta osentido da sua história e uma identidade una e estável parasi mesmo. Para elaborar este eu e reinterpretar sua infân-cia, Nael precisou enfrentar a ausência de origem, experiên-cia a partir da qual questionou seu passado, reinventandoa si mesmo. Nesse sentido, ele não considera necessáriopartilhar conosco a identidade deste “pai” (em sentidoestrito e amplo), do qual não mais depende. Mais do queisso. Ao mesmo tempo em que nos dá pistas ora de quepode ser filho de Yaqub, ora de Omar, conclui não ter ne-nhum dos dois como pai: “Meus sentimentos de perdapertencem aos mortos. Halim, minha mãe. [...] O queHalim havia desejado com tanto ardor, os dois irmãos rea-lizaram: nenhum teve filhos” (ibidem, p.264). Ao nos re-velar e assumir seu nome, Nael afirma, portanto, que suaexistência não mais depende do laço paterno ou do reco-nhecimento de seu nascimento.

Do mesmo modo que a personagem do Relato de um

certo Oriente, o narrador de Dois irmãos transformou amatéria da sua infância em experiência, e modificou a simesmo. Por isso, ao romper radicalmente com a sujeiçãoao passado, “um tempo que morria dentro de mim” (ibidem,p.265), ele poderá nos transmitir seu relato com uma vozindependente e crítica do universo que o constituiu. Aoassim fazê-lo, ele nos revela ter se libertado não apenas dasubmissão financeira à família nuclear do romance, mastambém daquela intelectual e afetiva.

Podemos também concluir que, ao despedaçar seuantigo eu e recompô-lo num exercício de escrita e reme-moração, os narradores dos dois primeiros romances deHatoum também criaram novos possíveis para o presente.Pois, como vimos, seu ato de mergulho no passado partiudo tempo em que eles vivem, atormentados pelo sofrimentoda infância. Nesse contexto, a narrativa desdobrada in-

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terpretou a história relembrada (e, portanto, penetradapelo infinito) a partir dessa visão perspectiva. E na medi-da em que a escrita buscava libertar o sujeito da pressão edo peso do passado, ela procurava também romper com acontinuidade da história e criar novas continuações paraessa, que não fossem repetições do sofrimento de outroranem conformadas com o peso carregado no presente. Aabertura de novos possíveis para o presente também podeser identificada na chamada experiência originária. Pois,ao atravessarem essa, os narradores desnaturalizaram a simesmos, seu lugar no mundo e as ordens e fronteiras queos constituíam. Neste caso, o presente deverá ser entendi-do como contingente, de forma que o sujeito poderá vivera espessura do tempo, abrindo-se para mudanças.

A criação de novos possíveis para o presente é, pois,uma das formas pelas quais podemos compreender a escri-ta literária – e um dos modos de entendermos a pesquisa ea escrita da história. Mas a experiência efetuada pelos nar-radores, para concluir sua transmissão, precisará contarainda com o leitor que, quem sabe, ao acompanhar as ca-dências de retorno, hesitação e ruptura dos dois persona-gens, sinta-se também convidado a imaginar novas for-mas de ser, pensar e viver.

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191

Graham Greene e Kazuo Ishiguro: suspense,trauma, orfandade e o jogo da memória em

The fallen idol e When we were orphans

Maria das Graças Gomes Villa da Silva*

RESUMO: O objetivo deste ensaio é examinar nas obras The fallen

idol, de Graham Greene, e When we were orphans, de Kazuo

Ishiguro, os motivos renitentes oriundos do trauma da orfanda-

de para expor o trabalho da memória representado na ficção,

seu enlace com dados históricos e culturais e seu relacionamento

com o simbólico para a criação das imagens apanhadas nos en-

trelaçamentos com a cultura e a experiência individual.

PALAVRAS-CHAVE: Memória, trauma, orfandade.

ABSTRACT: The objective of this essay is to exam in the works

The fallen idol, by Graham Greene, and When we were orphans,

by Kazuo Ishiguro, the insistent motives caused by the trauma

of being an orphan to expose the work of the memory repre-

sented in fiction, its link with historical and cultural data and,

its relantionship with the symbolic as a way to create the images

found in the interlace with culture and individual experience.

KEYWORDS: Memory, trauma, orphanhood.

Graham Greene (1904-1991) pertence à geração deescritores ligados ao modernismo e aos moldes tradicionaisda ficção, aliados aos aspectos dinâmicos do experimen-talismo de James Joyce. Influenciado nos primeiros traba-lhos por Joseph Conrad, o escritor inglês escreve para opúblico do pós-guerra que assistiu ao colapso do ImpérioBritânico e à decadência dos valores cristãos. Seu interes-se recai sobre as ambigüidades e complexidades presentesna luta espiritual do homem contemporâneo em confron-to com o materialismo e a espiritualidade. Os heróis deGreene, seres atormentados e solitários, vivem em confli-to com as forças sociais. A classe social dos protagonistas

* Professora doutoraassistente da UniversidadeEstadual Paulista Júlio deMesquita Filho (Unesp) –campus de Araraquara (SP).

192 Revista Brasileira de Literatura Comparada, n.12, 2008 Graham Greene e Kazuo Ishiguro: suspense, trauma, orfandade... 193

dá configuração ao contexto histórico e político, ao dilemamoral e à crise espiritual em que estão inseridos. O pontocentral é o embate entre o bem e o mal, o certo e o erradoque convivem no interior do homem.

Embora escolha preferencialmente como cenários desuas narrativas países pobres e degradados (América doSul, África), The fallen idol (Greene, 1973), foco deste es-tudo, tem por cenário a Inglaterra. Publicado pela primeiravez em 1935 com o título de The basement room, foi adap-tado para o cinema com o título de The fallen idol. O textoexaminado neste estudo não corresponde à versão fílmica,mas ao texto inicial, conforme afirma Greene no prefácioda nossa edição.

A narrativa trata do drama psicológico vivido peloprotagonista, Philip Lane, um garoto de sete anos que, en-quanto aguarda a chegada da babá, fica em sua mansãosob os cuidados do casal Baines, mordomo e governanta,porque os pais saem para uma viagem de quinze dias. Otexto se sustenta na solidão da criança e no trauma por elasofrido, motivado pela morte de Mrs. Baines após uma dis-cussão com o marido, que, na ausência da esposa, traz aamante, Emmy, para dormir com ele na mansão. Philipnão sabe lidar com os jogos e ardis do mundo dos adultose acaba por incriminar seu ídolo e amigo mais querido,Mr. Baines, passando o resto da vida a torturar-se com ascenas que levaram à incriminação do mordomo.

Trauma, “orfandade” e suspense constituem os núcleosnarrativos de The fallen idol e estão presentes também noromance de Kazuo Ishiguro (2000), When we were orphans.A história, construída em primeira pessoa, gira em tornodas recordações de um detetive inglês, Christopher Banks,que na infância mora com os pais em Xangai, em um bair-ro residencial para estrangeiros. Os jogos e astúcias dosadultos interferem na vida de Banks. Aos dez anos de ida-de, repentinamente, seus pais desaparecem e o garoto sevê obrigado a viver com uma tia na Inglaterra. O trauma oleva, quarenta anos depois, ao bairro dos estrangeiros emXangai. Reencontra a mãe, velha e desmemoriada, viven-do sob os auspícios da sociedade religiosa Rosedale Manor.

Kazuo Ishiguro (1954-), escritor japonês radicado naInglaterra desde 1960, por volta dos cinco anos de idade,parte com os pais de Nagasaki para Londres. Nos anos1980, produz seus dois primeiros romances, tendo porcenário o Japão. Escolhe outros lugares para as obras pos-teriores, o que amplia e internacionaliza seus temas, cor-roborando sua tentativa de não escrever apenas sobre suaexperiência como imigrante e seu país de nascimento.

Em The remains of the day (1989), retoma o mito deuma “mítica” Inglaterra com o objetivo de retrabalhar oudebilitar ideais ou mitologias que estruturam as nações, ascomunidades ou os indivíduos, a fim de analisar os efeitos,conforme ressalta Wong (2005, p.13). Além do internacio-nalismo, outra característica de Ishiguro é escrever semprena língua inglesa, o que lhe assegura um lugar na literatu-ra britânica. Como os escritores britânicos contempo-râneos, Ishiguro entende que a Grã-Bretanha não é maiso centro do universo, o que reforça seu interesse emenfatizar temas internacionais, que revelam a tensão pro-vocada pelo poder e controle exercido por países com ten-dências imperialistas.1

Trauma, orfandade e o jogo da memória –

motivos renitentes

O trauma sofrido pelos protagonistas parece surgir dasensação de se sentirem “abandonados” pelos pais quandocrianças, como mostra a cena inicial de The fallen idol: “His

parents were gone for a fortnight’s holiday; he was ‘between

nurses’, one dismissed and the other not arrived”2 (Greene,1973, p.153). Embora Philip sinta que começa a viver, por-que livre para circular de cômodo em cômodo de sua man-são e conversar com Baines de igual para igual, ficar “entrebabás” (“between nurses”), diante do quarto infantil e daporta de entrada, fechada após a partida dos pais, signifi-ca enfrentrar a solidão, experiência traumática que pa-ralisará sua vida.

De forma sutil, certos elementos contribuem para aexposição de aspectos da vida amorosa dos adultos que o

1 Rajagopalan (2007) destacao papel das novas gerações deescritores pós-coloniais queempregam a língua docolonizador com o objetivo detrazer para o primeiro planoquestões de poder e deidentidade que foram tratadasde forma marginal peloscolonizadores. Em When we

were orphans, Ishiguro expõesem sutilezas o drama vividopor chineses, japoneses eingleses sob o domínio inglês eligado ao comércio do ópio naChina e, suas conseqüênciasna guerra sino-japonesa e suarepercussão sobre a SegundaGuerra Mundial. Ao referir-sea obra do escritor sul-africanoJ. M. Coetzee, Foe, umarevisita ao trabalho de DanielDefoe Robinson Crusoe,Rajagopalan (2007, p.179)afirma: “There is, in other

words, something subtly

Derridean about such reversals

in that the tables are turned by

showing how the spotlight could

equally well be turned to what

had been sidelined to the

margins” [“Há, em outraspalavras, algo sutilmentederrideano sobre esses revesesem que mesas são viradaspara mostrar como o focopode igualmente voltar-separa o que tem sido deixadode lado, às margens”,(tradução nossa)].

2 “Seus pais saíram de fériaspor quinze dias; ele ficou‘entre babás’, uma dispensadae a outra que ainda nãochegara”. As traduções sãode nossa autoria.

194 Revista Brasileira de Literatura Comparada, n.12, 2008 Graham Greene e Kazuo Ishiguro: suspense, trauma, orfandade... 195

menino ainda não sabe como interpretar. Philip, quandovê Emmy pela primeira vez, não atina quanto ao lugar delaem seu mundo. É diferente dos homens e mulheres quevisitam os pais de Philip e tem seus gestos imitados pelomenino. É diferente também dos altos funcionários dascasas que Philip visita para tomar chá. Tenta ligar a moçacom sereias e ondinas, mas ela também não pertence aesse mundo. Deduz que deve ser a sobrinha de Baines.Assim, desconhece o drama vivido por Mrs. Baines que,velha, feia, sempre vestida de negro e coberta de pó, sofrecom a idéia de ser traída pelo marido.

O mundo de Baines o atrai, especialmente, quandolhe descreve a vida antes do enlace com Mrs. Baines. Viviana África e tinha quarenta negros sob seu comando e umaarma que nunca precisou usar. Apesar da felicidade de es-tar com Baines, é obrigado a enfrentar as rabugices de Mrs.Baines, uma verdadeira bruxa aos seus olhos. Algo no po-rão, onde vive o casal, deixa traços que Philip não sabeainda julgar: “a strange passion he couldn’t understand moving

in the basement room. He saw a small pile of broken glass swept

into a corner by a waste-paper basket”3 (ibidem, p.160).Esses traços indefiníveis ajudam a construir o estado

aflitivo e expor a cegueira em que vive o menino. Paulati-namente, o trauma vai tomando forma. Segundo Freud(1969b, p.165),

há um tipo especial de experiências da máxima importância,

para a qual lembrança alguma, via de regra, pode ser recu-

perada. Trata-se de experiências que ocorreram em infância

muito remota e não foram compreendidas na ocasião, mas

que subseqüentemente foram compreendidas e interpretadas.

Philip sente que há algo que não domina na vida docasal Baines, apesar de aos poucos ir adentrando às cegasesse mundo, o que o levará a viver sob o efeito das inter-pretações do dia em que ficou aos cuidados do casal. Ochoque assemelha-se à experiência infantil mencionadapor Freud (1969b), a cena primária. Como só será com-preendida posteriormente (nachträglich), não é traumática

em si mesma, o que só ocorrerá quando a criança for capazde atribuir-lhe significado. Segundo Garcia-Roza (2000,p.184), “o que acontece [na cena primária] é sua inscrição

inconsciente sem que, no entanto, lhe possa ser atribuídovalor traumático”. É só mais tarde, quando a criança podeinterpretar a experiência, que esse fator se revela comoalgo recalcado provocador de efeitos.

É o que ocorre com Philip Lane. Os jogos incompre-ensíveis dos adultos estão distantes de seu quarto infantile babás. Os pais parecem ausentar-se com freqüência, oque força o garoto a desviar para Baines seu afeto e amor,projetando-os na demonstração de horror a Mrs. Baines,figura assustadora que se mistura com os monstros de suashistórias infantis. Os pais são descritos por meio dos obje-tos de uso pessoal: “the rack of pipes in the smoking-room

beside the elephant tusks, the carved wood tobacco jar; in the

bedroom the pink hangings and pale perfumes…”4 (Greene,1973, p.153), imagens que Philip registra, enquanto vagapelos cômodos vazios. Os ecos da voz de Mrs. Baines oassombram.

Philip contrapõe o azedume de Mrs. Baines aos docesque a governanta gosta de fazer e devorar. No contraponto,a figura de Baines resplandece em desapontamento, o quePhilip pode compartilhar:

Baines was disappointed: everything was being spoilt. The

sensation of disappointment was one which Philip could share;

knowing nothing of love or jealousy or passion he could

understand better than anyone this grief, something hoped for

not happening, something promised not fulfilled, something

exciting turning dull.5 (ibidem, p.159).

O menino, que nada sabe sobre amor e paixão, com-partilha com seu ídolo o desencantamento com as espe-ranças perdidas. Certamente, no seu caso, voltadas às ex-pectativas frustradas relacionadas com o amor dos pais.Tudo fica confuso à sua volta, quando, através do vidro davitrine da confeitaria, vê Baines e Emmy coberta de lágri-mas diante dos potes de creme que Mrs. Baines pela ma-

3 “uma estranha paixão, queele não conseguia entender,movia-se no porão. Viu umapequena pilha de cacos de umcopo no canto ao lado da cestade lixo”.

4 “o porta cachimbos na salade fumar ao lado das presas deelefante, o porta tabaco demadeira entalhada; no quartode dormir as cortinas rosas e ospálidos perfumes...”

5 “Baines estava desapontado:tudo tinha sido estragado. Asensação de desapontamentoera algo que Philip podiacompartilhar; como nada sabiasobre amor ou inveja, oupaixão, ele podia compreender,melhor do que qualquer pessoaesse pesar, algo esperado quenão acontecia, algo prometidoque não se cumpria, algoexcitante que se tornavaenfadonho.”

196 Revista Brasileira de Literatura Comparada, n.12, 2008 Graham Greene e Kazuo Ishiguro: suspense, trauma, orfandade... 197

nhã tinha retirado do quarto da mãe e lançado na lixeira.Observa os dois e tenta entender por que Baines está tãofeliz e ao mesmo tempo com o desespero no rosto. Para omenino, os amantes vivem um conflito.

He was inquisitive and he did not understand and he

wanted to know. He went and stood in the doorway to see better;

he was less sheltered than he had ever been; other people’s lives

for the first time touched and pressed and moulded. He would

never escape that scene. In a week he had forgotten it; but it

conditioned his career, the long austerity of his life; when he was

dying he said: “Who is she”?6 (ibidem, p.163-4)

O foco narrativo, controlado por narrador em tercei-ra pessoa, talvez Philip adulto, volta-se para os fatos ocor-ridos no passado, jogo sutil que demonstra, no final danarrativa, que Philip recorda, revive e elabora o que lheocorreu na infância e lhe causa sobressalto até na hora damorte, marcado pela questão: “Quem é ela?” (Who is she?).Assim, embora a cena de Baines e Emmy se dissipe e pareçacair no esquecimento, condiciona a carreira do protago-nista pela austeridade experimentada que o deixa abismadoe parece corroborar a visão de Freud (1969b) sobre a ex-periência infantil compreendida posteriormente. Nessatrajetória, Mrs. Baines é figura importante: “She was

darkness when the night-light went out in a draught; she was

the frozen blocks of earth he had seen one winter in a graveyard

when someone said, “They need an electric drill”; she was the

flowers gone bad and smelling in the little closet room at

Penstanley”7 (Greene, 1973, p.164).A austera governanta contrasta com a mãe, cujo quar-

to tem cortinas rosa, potes de creme de beleza e pálidosperfumes, índices de sua feminilidade, sofisticação e re-quinte. O preferido de Philip, porém, é Mr. Baines, a quemdedica amor e lealdade. Quando, imitando a voz de Mrs.Baines, prega um susto no amigo na confeitaria, o mordomoo perdoa e murmura que os mais fortes sempre vencem.Baines coloca sobre a palma da mão o cabinho e as finasfolhas do chá que acabara de tomar e, batendo sobre eles,

nota que as folhas não descolam de sua pele, só o cabinho:“‘To-day’, and the stalk detached itself, ‘to-morrow, Wednesday,

Thursday, Friday, Saturday, Sunday’, but the flake wouldn’t

come, stayed where it was, drying under his blows, with a

resistance you wouldn’t believe it to posses. ‘The tough one

wins’, Baines said”8 (ibidem, p.165-6).Philip não tem idade para compreender o que diz

Baines nem o dia-a-dia monótono do mordomo, preso adestino inexorável. Quando esse lhe pede para não men-cionar nada sobre o encontro na confeitaria, o menino dizque compreende, mas nada entende. As razões que leva-ram Baines a ver Emmy tão perto da casa de Philip consti-tuem mistérios e segredos para o garoto: a velhice, o tempoque não pode ser perdido e o fato de Baines precisar saberque Emmy estava bem, tudo isso leva Baines a atribuir àesposa seus infortúnios.

Mrs. Baines logo descobre tudo: “‘And she’s his niece’.

‘So that’s what he said’, Mrs. Baines struck softly back at him

like the clock under the duster. She tried to be jocular. ‘The old

scoundrel. Don’t tell him I know, Master Philip’. […] ‘Promise

you won’t tell. I’ll give you that Meccano set, Master Philip…’”9

(ibidem, p.178-9). Tenta lhe dar de brinquedo o Meccano

set, suplicando que lhe seja fiel, o que o deixa alarmado,pois o brinquedo representa o vínculo que não desejaestabelecer com a governanta. O mundo dos adultos seestende como sombra negra sobre ele e exige cada vez maisparticipação e promessas difíceis de cumprir. Prometer fi-delidade a Mrs. Baines corresponde a trair Baines. A ima-gem do conflito aparece em sonhos: “It was enough that it

came at you in dreams: the witch at the corner, the man with a

knife”10 (ibidem, p.171).As figuras oníricas, como a bruxa acuada diante de umhomem que empunha uma faca, representam o drama emque Philip está envolvido, enquanto a voz narrativa vaidescerrando sua angústia e reforçando o jogo da memória.Mrs. Baines parte às pressas para ver a mãe adoentada eBaines acorda Philip logo cedo para um passeio. No retor-no de ônibus, Philip vê Emmy a caminho de sua casa e a

6 “Ele estava curioso, nãoentendia e queria entender.Chegou até à soleira da portapara ver melhor; estava menosabrigado que nunca; as vidasde outras pessoas estavampela primeira vez sendotocadas, pressionadas emoldadas. Jamais escapariadaquela cena. Em umasemana, já tinha esquecidotudo; mas ela condicionou suacarreira, a longa austeridadede sua vida; e quando à beirada morte disse: ‘Quem é ela’?”

7 “Ela era a escuridão, quandoa luz à noite era apagada porum golpe de ar; ela era osblocos de terra congelados queele tinha visto no inverno nocemitério, quando alguémdisse: ‘Eles precisam de umafuradeira elétrica’, ela era asflores mortas e mal-cheirosasno quartinho em Penstanley.”

8 “‘Hoje’, e o cabinho da folhade chá destacou-se, ‘amanhã,quarta-feira, quinta-feira,sexta-feira, sábado, domingo’,e a folha, fina como um floco,não saia, ficou onde estava,secando sob os sopros deBaines, com uma resistênciaque jamais se poderia crer queela possuísse. ‘Os durosvencem’. Disse Baines.”

9 “‘Então, ela é a prima dele’.‘É isso o que ele disse’,Mrs Baines tocou-lhesuavemente as costas comoum relógio coberto de poeira.Ela tentou ser jocosa. ‘Quepatife. Não diga a ele quesei, Master Philip’. [...]‘prometa-me que você nãocontará. Eu lhe darei oMeccano set, Master Philip...’.”

10 “Já bastava que viessem avocê em sonhos: a bruxa nocanto, o homem com umafaca.”

198 Revista Brasileira de Literatura Comparada, n.12, 2008 Graham Greene e Kazuo Ishiguro: suspense, trauma, orfandade... 199

considera um número que traz má sorte. A experiênciainfantil, mesclada e realçada pelo jogo da voz narrativa,constitui-se em contraponto revelador das inconsistênciasexperimentadas. Para o menino “abandonado”, a mentiraé uma das primeiras a anunciar algo funesto na carta cujoselo tem a figura de Sua Majestade: Mrs. Baines diz que sópoderá retornar no dia seguinte.

Emmy, como visita na casa, janta com o mordomo ePhilip. A carta, interrompendo os bons momentos, tira oapetite de Baines e Emmy. O empregado insiste com a moçapara que se alimente bem e finalmente “he made her drink

the Harvest Burgundy because he said she needed building up”11

(ibidem, p.176), detalhes que escapam à interpretação domenino. Os mistérios do mundo dos adultos e seus segre-dos alimentam sua imaginação que lhes dá outros rumos.Philip não pode nem imaginar o que acontecerá, se Mrs.Baines souber da visita e refeição a três.

A exigência da presença e amor dos pais, sob o domí-nio do medo, leva à substituição ou transferência, não demodo consciente e, por deslocamento, vai formando umacadeia de conexões particulares. Comparando o universode Baines com o do pai, Philip indaga sobre o mundo alémdas janelas do porão de onde enxerga tudo de forma frag-mentada, como as pernas que vão e vêm, sem que ele pos-sa ver o rosto das pessoas ou, mesmo, sentir a temperaturaexterna. Baines fala de um calor abrasante, úmido, cor-rompido e o menino indaga: “Why did father live out there?”12

(ibidem, p.155). Baines responde: é o trabalho dele, umtrabalho de homem como o que ele, Baines, tinha na Áfricae que foi interrompido com o casamento com Mrs. Baines.

As comparações e deduções de Philip são marcadaspela expressão this is life [isto é a vida], expressa em dife-rentes tempos verbais, repetida, sempre que o garoto pas-sa por nova experiência. Quando desce pela primeira vezao porão em busca de Baines, sente que aquela indepen-dência corresponde a viver de verdade. As boas-vindas domordomo o fazem crer que o empregado “was more genial

than Philip had ever known him, more at his ease, a man in his

own home”13 (ibidem, p.154), sentimento que Philip ja-mais experimentou junto ao pai, que não é como Baines.O mordomo lhe dá felicidade e bem-estar, pois, this is life.

Mrs. Baines, figura que perturba o momento ditoso,manda o menino subir para o quarto, o que o leva a ado-tar uma postura mais definida. Sentado “at the table with

his chin on his hands: this is life; and suddenly he felt

responsible for Baines”14 (ibidem, p.158, grifo nosso). De-siste de dar uma volta, cedendo aos caprichos da velhasenhora, pois “This was life; a strange passion he couldn’t

understand moving in the basement room”15 (ibidem, p.160,grifo nosso). A vida é insípida sem os pais e é um horrorviver como órfão com Baines na mansão. Ao deitar-se,após ter jantado com Baines e Emmy, avalia a experiên-cia como “had been life” (isso tinha sido a vida), entre-gando-se ao horror mesclado a resíduos diurnos e histó-rias infantis que a noite traz:

[…] before he slept and the inevitable terrors of sleep came

round him: a man with a tricolour hat beat at the door on His

Majesty’s service, a bleeding head lay on the kitchen table in a

basket, and the Siberian wolves crept closer. He was bound hand

and foot and couldn’t move; they leapt around him breathing

heavily; he opened his eyes and saw Mrs. Baines was there, her

grey untidy hair in threads over his face, her black hat askew. A

loose hairpin fell on the pillow and one musty thread brushed

his mouth. “Where are they?”.16 (ibidem p.178)

Para Freud (1999, p.51), o impulso instintivo “devidoà repressão de seu representante adequado, é forçado aligar-se a outra idéia, sendo então considerado pela cons-ciência como manifestação dessa idéia”, o que envolvetambém o relacionamento paterno, pois trata-se do casodo homem dos lobos estudado por Freud. Diz o psicanalista:

Após a repressão, esse impulso desaparece da consciên-

cia: o pai não aparece nela como um objeto da libido. Subs-

tituindo o pai, encontramos num lugar correspondente um

animal que se presta, de modo mais ou menos adequado, a

11 “ele a fez beber o vinhoBorgonha, dizendo-lhe queprecisa ficar forte”.

12 “Por que o papai vivialá fora?”

13 “era mais genial do quePhilip tinha imaginado, mais àvontade, um homem em suaprópria casa”.

14 “à mesa com o queixo entreas mãos: isto é a vida; erepentinamente sentiu-seresponsável por Baines”.

15 “Isto era a vida; umaestranha paixão que ele nãopodia compreender se moviano porão.”

16 “ [...] antes que o sono eseus inevitáveis terroresviessem rondá-lo: um homemcom um chapéu tricolor bateà porta em nome de SuaMajestade, uma cabeça sangradentro uma cesta sobre a mesada cozinha e, os lobossiberianos aproximam-se.Ele estava com a mão e péatados e não podia mover-se;eles saltavam à sua voltarespirando pesadamente;Philip abriu os olhos e viu queMrs. Baines ali estava, ocabelo grisalho desgrenhadocaia em fios sobre a face domenino, o chapéu preto deMrs. Baines estava inclinadopara o lado. Um grampo caiusobre o travesseiro e um fio decabelo bolorento roçou a bocade Philip. ‘Onde eles estão?’.”

200 Revista Brasileira de Literatura Comparada, n.12, 2008 Graham Greene e Kazuo Ishiguro: suspense, trauma, orfandade... 201

ser um objeto de ansiedade. [...] O resultado é o medo de

um lobo, em vez de uma exigência de amor feita aos pais.

(ibidem, p.37)

O tratamento aí empregado é o de condensação e des-locamento, conforme indica Freud (1988). O sonho dePhilip mostra seu desamparo e total impotência diante doshorrores que enfrenta, quando um imponente represen-tante de Sua Majestade bate à porta. O menino nada podefazer senão deixar-se farejar pelos lobos e, de mãos atadas,vê uma cabeça sangrando em uma cesta sobre a mesa dacozinha. Os deslocamentos no pesadelo atuam como “lem-branças encobridoras” que, segundo Freud (1969b), man-têm vínculo associativo entre seu conteúdo e o outro queé recalcado. A memória reproduz algo diverso que servede substituto. “As lembranças da infância dos indivíduosadquirem universalmente o significado de “lembrançasencobridoras”, e nisto oferecem uma notável analogia comas lembranças da infância dos povos, preservadas nas len-das e mitos” (ibidem, p.63).

No pesadelo, a figura dos lobos reforça a presença dacultura. Afinal, o lobo assombra os homens desde priscaseras com freqüência garantida nos contos de fadas, espe-cialmente quando o tema é abandono e solidão. O meni-no concentra seu horror nessa figura, que, ao despertar,logo toma a forma da imagem ofegante e desvairada deMrs. Baines. Não se pode afirmar quais as associações fei-tas por Philip, uma vez que se trata de um personagem deficção, mas analogicamente a cabeça na cesta talvez seja ade Baines e o representante de sua Majestade, a severaMrs. Baines, que representa o pai e a lei, fundindo-se coma imagem do carteiro que traz a carta de Mrs. Baines, cheiade mentiras, sob o selo de Sua Majestade.

Mrs. Baines sabe da presença de Emmy em um doscômodos e, após desvencilhar-se do marido, ainda sob oefeito de sua imagem projetada no espelho, em que a ida-de e a poeira são suas únicas esperanças, lança-se por sobrea balaustrada da escada, caindo como um saco de carvão

no hall de entrada diante do menino e de Emmy. Philipfoge, perambula pelas ruas e, ao retornar com um policial,não quer passar pelo hall onde está o corpo da governanta.Mais uma vez, avalia sua existência, retomando a expres-são “this is life”. Revê os momentos vividos e toma a deci-são de manter-se à margem da vida, do amor, de tudo,temendo os segredos em que está envolvido:

He loved Baines, but Baines had involved him in secrets,

in fears he didn’t understand. The glowing morning thought

“This is life” had become under Baines’s tuition the repugnant

memory, “That was life”: the musty hair across the mouth, the

breathless cruel tortured inquiry “Where are they?”, the heap of

black cotton tipped into the wall. That was what happened when

you loved: you got involved; and Philip extricated himself from

life, from love, from Baines with a merciless egotism.17 (Greene,

1973, p.192)

Surpreendentemente, como o corpo não está mais nohall, Philip incrimina o amigo, especialmente quando men-ciona o nome de Emmy. Quem é ela? Por que o corpo nãoestá mais no hall, quer saber o policial. A questão ecoaanos mais tarde de forma alarmante no momento da mor-te de Philip: “just as the old man sixty years later startled his

secretary, his only watcher, asking, ‘Who is she? Who is she?’

dropping lower and lower into death, passing on the way perhaps

the image of Baines: Baines hopeless, Baines letting his head

drop, Baines, ‘coming clean’”18 (ibidem, p.195).A confissão de Baines põe um ponto final na relação

do menino e do mordomo. O ídolo revela toda a sua fra-queza e derrotado, mergulha em sua tragicidade. De acor-do com Roy (1966), Graham Greene consegue marcar atrajetória de seus heróis de forma trágica, porque trabalhacom o conceito de orgulho. Seus personagens são força-dos a enfrentar catástrofes e classicamente assumem di-mensões trágicas e heróicas com conotações satânicas,quando comparadas à santidade de seus objetivos. Bainesé inocente, mas sua fraqueza foi trair a esposa e com isso oequívoco se instala, levando-o a ser punido cruelmente.

17 “Ele amava Baines, masBaines o tinha envolvido comsegredos, com medos que elenão entendia. Oresplandecente pensamentomatutino ‘Esta é a vida’ tinhase tornado sob a instrução deBaines uma lembrançarepugnante, ‘Isso era a vida’:o cabelo bolorento cruzandoa boca, a cruel curiosidade,torturante, ofegante ‘Ondeeles estão?’, o monte dealgodão negro encostado àparede. Isso era o queacontecia quando se amava:você se via envolvido; e Philipesquivou-se da vida, do amor,de Baines com um egoísmoimpiedoso.”

18 “da mesma forma como ovelho aos sessenta anossurpreendeu mais tarde suasecretária, sua única vigia,perguntando-lhe: ‘Quem é ela?Quem é ela?’ entregando-sepouco a pouco à morte,passando a caminho talvezpela imagem de Baines:Bainess desesperançoso,Baines deixando a cabeçatombar, Baines, ‘confessando’”.

202 Revista Brasileira de Literatura Comparada, n.12, 2008 Graham Greene e Kazuo Ishiguro: suspense, trauma, orfandade... 203

O que assombra Philip é ter assistido à queda e contribuí-do para a condenação do amigo.

O cenário, a mansão (a Belgravia house),19 tem papelimportante. É o espaço em que estão os subalternos, osque habitam o porão e, em especial, um ex-representantedo governo britânico na África, que no retorno não en-contra ambiente propício à felicidade. O Master Philip,sob os auspícios de Mrs. Baines, é ainda muito jovem paraassumir o papel que sua posição sugere e que Mrs. Bainesassinala de forma inequívoca. No porão, Baines não podeguardar seus segredos, o lugar é impessoal, não lhe perten-ce. Vive das lembranças de súdito do Império Britânico naÁfrica, destituído de representatividade e poder, um “heróide porão”, que comanda a casa sob o domínio da esposa,enquanto os patrões, legítimos representantes da classemais elevada, estão ausentes. O título original, The basement

room, aponta para essas relações. A queda na mansão podeser entendida como a do Império Britânico pela perda depoder no final da Segunda Grande Guerra. Master Philipé imaturo para atuar com sabedoria junto aos que ficaram,desempenhando o papel de “órfão”, o que pode tambémser aplicado a Baines, abandonado, sem reconhecimentopor parte de Sua Majestade e de seu país.

Sucessor dos pais na Belgravia house, Philip tem a vidaparalisada, como o Meccano set, brinquedo popular na épo-ca, do qual jamais se aproxima. O brinquedo formado porpartes de metal, como um quebra-cabeça, possibilita enten-der os princípios da engenharia mecânica, estabelecendoum contraponto entre o engenho, e a experiência pessoalregida pela memória produtora dos efeitos psíquicos, analo-gicamente representados na narrativa.

O pai é a peça que falta no quebra-cabeça, que é avida desarticulada de Philip. A emblemática mansão e asrelações de classe dos habitantes, que colocam sob ques-tão a fraqueza e imaturidade do mestre, assinalam o desa-pontamento que irá dominar os ingleses com a queda deseu império. Tais referências abarcam o destino de Philip,que se deixa contaminar por sonhos e medos que, distante

dos engendramentos “políticos”, revelam o caráter doMaster. Enfraquecido e desamparado, o “órfão” deixa-separalisar, abandona o quebra-cabeça e mergulha na lem-brança traumática e alienante do jogo da memória.

Orfandade, alienação, memória e trauma em

When we were orphans

O tema da “orfandade” e alienação com seus traumase implicações políticas, culturais e históricas, amplia-se emWhen we were orphans, romance de Kazuo Ishiguro Aosdez anos, o detetive inglês, Christopher Banks, protago-nista-narrador, sofre com o desaparecimento do pai e, maistarde, da mãe, levada de casa repentinamente. Mora coma tia na Inglaterra como “órfão”, condição que estendeaos colegas do St. Dustan’s, colégio interno. À semelhan-ça de Philip, a experiência de vida do menino Banks érestrita e, ainda na infância idílica em Xangai, substitui afigura paterna pela de tio Philip: “he had become over the

years a figure to idolise, so much so that in the first days after

my father’s disappearance, I remember contemplating the notion

that I need not mind so much since Uncle Philip could always

take my father’s place”20 (Ishiguro, 2000, p.126).Christopher Banks ama Miss Hemmings, cuja memó-

ria dos pais e, em especial, da mãe influencia sua vida adul-ta. Jennifer, menina que Banks adota, passa no internatogrande parte da infância e adolescência, vendo raramenteo pai adotivo. Todos os que têm contato mais próximocom o protagonista-narrador compartilham a orfandade.O tema “when we were orphans” remete sempre à infânciacom resultados conflituosos na vida adulta, acabando porenvolver a relação dos ingleses com a Inglaterra.

Em When we were orphans a narrativa inicial corres-ponde a julho de 1930, com Banks vivendo em Londresembalado por seu sucesso como detetive, e a derradeiratambém em Londres, em novembro de 1958. Uma sériede recordações leva o protagonista a rever a infância, cujosretornos são marcados historicamente, conforme destacaWong (2005, p.87):

19 Na introdução a The fallen

idol, Graham Greene (1973)comenta que, quando daprodução do filme, foinecessário mudar o cenáriopara uma embaixada, porquea imagem da ampla mansãomarcava sobremaneira umperíodo, o pós-guerra, e osprodutores do filme nãoestavam interessados em fazerum filme histórico.

20 “ao longo dos anos, eletinha se tornado um figura aser idolatrada e, já nosprimeiros dias, após odesaparecimento do meu pai,recordo-me de contemplar aidéia de que eu não precisavame preocupar muito, pois tioPhilip podia sempre ocupar olugar do meu pai”.

204 Revista Brasileira de Literatura Comparada, n.12, 2008 Graham Greene e Kazuo Ishiguro: suspense, trauma, orfandade... 205

The next three sections that take place in Banks’s childhood

geography agitate his complacency [about his life in London].

These sections document a two-month period (September to

October) in 1937, in the midst of the worst fighting in Shangai

during the second Sino-Japanese war. In the logic of his own

mind, Banks believes that he can solve both the disappearance

of his parents from the 1910s and resolve the historical atrocities

of war, both in China and the one looming around the world

that is precipitating another major world war.21

Tendo como pano de fundo um cenário de guerras (asino-japonesa e a guerra do ópio entre Inglaterra e China),a infância de Banks é preenchida com brincadeiras e sus-penses na vida familiar. Como cidadãos ingleses, ele e, espe-cialmente, a mãe parecem crer na honestidade do ImpérioBritânico, em suas promessas de grandeza, justiça e igual-dade, apesar das atrocidades ligadas ao comércio de ópiocom a China, às imposições humilhantes para obter o direi-to de explorar a droga e dominar algumas regiões e portoschineses. Vários acordos buscam encerrar de vez o comér-cio da droga e vício que atinge milhares de chineses, o queocorre por volta dos anos 1950.

A mãe de Banks, a bela Diana, é incansável em suacampanha contra o ópio, apesar de o marido trabalhar paraa Morganbrook and Byatt que negocia a droga. Diana con-sidera as ações da companhia “un-Christian and un-British”22

(Ishiguro, 2000, p.64). Tio Philip, hóspede dos pais deBanks, na época em que chegaram a Xangai, desliga-se daByatt e funda uma associação filantrópica, The Sacred Tree,dedicada a melhorar as condições de vida na cidade. Ami-go da família e muito respeitado por Banks, a quem chamapelo carinhoso apelido de Puffin, é presença constante nasreuniões de Diana Banks, cuja campanha considera umaforma ingênua de participação, algo que os políticos britâ-nicos e a Byatt toleram sob constante vigilância. Diana acre-dita ter voz ativa e boas intenções, o que acaba por trazerresultados catastróficos para si e seus familiares.

O ressentimento pela ausência dos pais aparece já nasprimeiras páginas, quando Banks revê, anos mais tarde,

um dos meninos do St. Dunstan’s, Osbourne, que lhe ob-serva que, na época escolar, era considerado “um pássaroestranho”. A expressão desagrada o protagonista-narrador,pois crê que a imitação que fazia dos gestos dos colegasjamais permitiria detectar sua angústia. No entanto, to-dos sabem de sua tristeza e sonho: ser detetive para en-contrar os pais. Para facilitar a tarefa, dão-lhe de presentede aniversário uma lupa, fabricada em Zurique em 1887,que o narrador utiliza por toda a vida.

A memória de Banks não lhe é tão fiel quanto pensa.Wong (2005, p.83) afirma que, à medida que os protago-nistas-narradores nas obras de Ishiguro vão recordando opassado, novos e surpreendentes sentidos são revelados.“The characters’ trauma is brought to light steadily, as if the

reader were encountering its revelation and implication along

with the narrators”.23 Banks está sempre avaliando o seutrauma, como um contraponto que propicia novos senti-dos e revelações:

Gazing at it [the magnifying glass] now, this thought occurs

to me: if my companions’ intention was indeed to tease me, well

then, the joke is now very much on them. But sadly, I have no

way now of ascertaining what they had in mind, nor indeed

how, for all my precautions, they had ever gleaned my secret

ambition.24 (Ishiguro, 2005, p.10)

A incerteza sobre o que os amigos pensam revela-seno emprego de but sadly e na contemplação da lupa, subli-nhando o modo enviesado de ver o mundo. A “vacilaçãocalculada”, estratégia narrativa de Ishiguro, que apóia oexercício de anamnese do narrador, permite ao leitor sus-peitar do relato e desvendar novos sentidos na vida doprotagonista. Tal estratégia de representação dá ênfase aotrabalho da memória. Segundo Freud (1974), a memóriaé composta de rastros em constante fluxo que, apagados eretidos no aparelho perceptivo, são sempre lidos a posteriori.

É, portanto, memória inconsciente, elemento constitutivodo aparato psíquico. Não se trata da memória-lembrança,memória de acontecimentos, nem memória-souvenir

21 “As próximas sessões, quedizem respeito à geografia dainfância de Banks, agitam suacomplacência [a respeito desua vida em Londres]. Essassessões cobrem o período dedois meses (de setembro aoutubro de 1937), em meio aopior período de luta em Xangaidurante a segunda guerra sino-japonesa.Em sua lógica, Banksacredita que pode resolvertanto o desaparecimento deseus pais, ocorrido nos anos1910, quanto as atrocidadeshistóricas da guerra, a queocorria na China e a queameaçava o mundo que seprecipitava em outra guerramundial.”

22 “não cristãs e nãobritânicas.”

23 “O trauma dos personagensé trazido à luz lentamente,como se o leitor fosseobservando sua revelação eimplicação juntamente comos narradores.”

24 “Contemplando-a [a lupa]agora, esse pensamento meocorre: se a intenção de meuscompanheiros era de fatochatear-me, bem, então, apiada agora recai sobre elesmesmos. Mas tristemente, nãotenho agora como mecertificar do que tinham emmente, nem mesmo como,apesar de todas as minhasprecauções, eles deram com aminha ambição secreta.”

206 Revista Brasileira de Literatura Comparada, n.12, 2008 Graham Greene e Kazuo Ishiguro: suspense, trauma, orfandade... 207

bergsoniana. A memória freudiana implica o sistema deneurônios, é memória de traços e de diferenças entre asBahnungen (inconscientes) [fenômeno relacionado à pas-sagem de um fluxo nervoso nos condutores, que se tornamais fácil pela repetição], conforme destaca Garcia-Roza(2004). Ishiguro trabalha com a representação desse fluxocontínuo, atualizador do passado em When we were orphans,que promove o jogo de instabilidade de sentidos pela hesi-tação do narrador.

Ao comentar sobre a vacilação calculada como estra-tégia adotada pelo analista na escuta de analisandos, Jor-ge Forbes (1996, p.19-20) recorda Lacan: “O analisandovai se defrontar aí com o gosto do Dasein, ou com o gostodo seu ser”. Experimentando “o gosto do seu ser” na dúvida,toda vez que volta os olhos ao passado, o narrador e, porextensão, o leitor têm novos insights; Banks se revela aospoucos, enquanto o trauma da perda dos pais toma formamais consistente e variada. Quando afirma que evitararevelar seus planos futuros para Osbourne, como fizera naépoca da escola, ocultando dos colegas o desejo de ser de-tetive, o leitor fica em dúvida sobre a firmeza do intento.

A lupa ser de certa forma ultrapassada metaforica-mente significa que Banks vê os fatos do século XX com“olhos” de final do século XIX, o que aponta a alienação edistanciamento, acoplados ao desejo de rever os pais per-didos. Embora seja um presente de aniversário, ligado,portanto, ao seu nascimento, o olhar desfocado para outraépoca o desloca historicamente, reforçando a desconfian-ça na capacidade de Banks reunir os fatos de sua vida dete-tivescamente como o faz com os casos policiais. A mençãoao colega Osbourne parece confirmar o desvio histórico.

O nome do amigo de Banks recorda o do dramaturgoinglês John Osborne, autor de Look back in Anger, dramade 1956, que realça o desencanto com a descoberta deque à Grã-Bretanha, idealizada no período eduardiano epela qual muitos se sacrificaram nas guerras, falta autenti-cidade. Para John Osborne, as crenças da infância, refor-çadas pelos jornais, o culto à realeza, à Westminster e ao

parlamento inglês, como o lugar de manutenção da demo-cracia, não passam, como afirma Innes (1995), de traiçõesfraudulentas. O mesmo ocorre em The fallen idol, deGreene, com a mansão e a imagem de Her Majesty no seloda carta de conteúdo mentiroso. Para Philip Lane, “letters

could lie all right, but they made the lie permanent: they lay as

evidence against you; they made you meaner than the spoken

word”25 (Greene, 1973, p.175). É, pois, a mentira o ele-mento desestabilizador das relações tanto na mansão dePhilip Lane quanto no lar de Christopher Banks. O pai deBanks abandona o lar por outra mulher, deixando filho eesposa entregues à própria sorte e à amizade de tio Philip.

A mesma idealização e descrença aparece no romancede Ishiguro. Em poder dos japoneses, Christopher Banks éescoltado até a embaixada inglesa pelo coronel Hasegawa,que lhe diz: “England is a splendid country”[...], “Calm,

dignified. Beautiful green fields. I still dream of it. And your

literature. Dickens, Thackeray, Wuthering Heights. I am

especially fond of your Dickens”26 (Ishiguro, 2000, p.206). Ocomentário soa irônico diante do horror da guerra sino-japo-nesa em que ambos estão mergulhados e cuja responsávelprincipal é a política britânica que vê a China como colônia.

Os escritores citados não tratam da verde, idílica edigna Inglaterra, mas dos ingleses pobres que levam umavida desolada e miserável, onde a hierarquia econômica esocial separa as classes, deixando que a fome impere e oamor jamais tenha lugar. Os órfãos têm papel de destaqueno enredo dos romances, sobretudo de Charles Dickens.

De modo sutil e irônico, a narrativa de Ishiguro é traba-lhada para revelar sentidos ocultos, coloridos de ironia. Bus-ca desmobilizar a narrativa criada para a nação inglesa,segundo a qual é bela, tranqüila e justa. Para Hall (2005), anarrativa da nação é contada e recontada nas histórias, nasliteraturas e meios de comunicação, envolvendo imagens,cenários, panoramas, eventos históricos e rituais que simbo-lizam as experiências e dão significado e encanto à vida.

Desde a imagem de uma verde e agradável terra in-

glesa, com seu doce e tranqüilo interior, com seus chalés

25 “as cartas podiam mentirsem problema algum, mastornavam a mentirapermanente: eram evidênciascontra você; o tornavammais mesquinho que apalavra falada”.

26 “A Inglaterra é um paísesplêndido” [...]. “Calma,dignificada. Belos camposverdes. Ainda sonho com ela.E a sua literatura. Dickens,Thacheray, WutheringHeights. Gosto em especialdo seu Dickens.”

208 Revista Brasileira de Literatura Comparada, n.12, 2008 Graham Greene e Kazuo Ishiguro: suspense, trauma, orfandade... 209

de treliças e jardins campestres – “a ilha coroada” de Sha-

kespeare – até às cerimônias públicas, o discurso da “in-

glesidade” (englishness) representa o que “a Inglaterra” é,

dá sentido à identidade de “ser inglês” e fixa a “Inglaterra”

como um foco de identificação nos corações ingleses (e

anglófilos). (Hall, 2005, p.52-3)

A narrativa, em When we were orphans, sobrepõe-se ànarrativa da nação, desentranhando os significados crista-lizados e revelando uma outra realidade. A imagem criadapara o Oriente é de controle imperial, corrupção e cruel-dade. A política imperialista e a submissão da China dian-te aos ingleses servem para mostrar a angústia existencialde seus personagens.

Para Said (2007), em Orientalismo, o Oriente é umdiscurso, uma invenção do Ocidente a partir da criaçãodos orientalistas, ou seja, aqueles que escrevem e pesqui-sam sobre o Oriente. Said (2007, p.465) busca “um novomodo de conceber as separações e os conflitos que haviamalimentado gerações de hostilidade, guerra e controle im-perial”. Esse novo modo tem se materializado na releiturade obras canônicas que reinvestigam e ultrapassam o con-trole “sufocante de alguma versão dialética binária do se-nhor-escravo” (ibidem). Autores, como Salman Rushdie,C. L. R. James, Aimé Césaire, Derek Walcott e outros, apartir da reapropriação da experiência histórica do colo-nialismo, criam uma “nova estética da apropriação e dareformulação transcendente” (ibidem), à qual se podeacrescentar Ishiguro.

A relação de Banks com Osbourne reforça a sensaçãode falsidade das instituições e a falta de visão ou alienaçãodo narrador. Christopher Banks se interessa pelos relacio-namentos do amigo com pessoas importantes. Osbournesabe como agem os líderes. Daí se surpreender e incomo-dar-se com a insistência de Banks em combater os crimese o mal, mas parecer só ter olhos para encontrar os pais navelha Xangai e relacionar-se com pessoas importantes.

As pessoas lhe cobram uma participação mais efetivanas grandes questões mundiais, especialmente políticas.

Afinal, Banks viveu em Xangai, tem experiência e conhe-ce de perto os motivos e desdobramentos da presença bri-tânica na China. Um exemplo é a sua passagem pela RoyalGeographical Society para ouvir a palestra “Does Nazism

pose a threat to Christianity?”.27 Para o palestrante, profes-sor H. L. Mortimer, o sufrágio universal enfraqueceu for-temente as decisões britânicas no âmbito das relações in-ternacionais. Ao término da palestra, o público demonstraoutras preocupações, como o avanço das tropas alemãsatravés das terras do Reno. Banks é interpelado pelo cléri-go Canon Moorly, surpreso com o silêncio de Banks:

But I must say, Mr. Banks, when I saw you there across the

room, I did rather hope you’d say something”. “I’m afraid I was

feeling rather tired this evening” […]. “To be quite truthful, I

was a little surprised you didn’t feel compelled to make an

intervention. All this talk of a crisis in Europe. You say you

were tired; perhaps you were being polite. All the same, I’m

surprised you let it go”. “Let it go?” “What I mean to say, forgive

me, is that it’s quite natural for some of these gentlemen here

tonight to regard Europe as the centre of the present maelstrom.

But you, Mr. Banks. Of course, you know the truth. You know

that the real heart of our present crisis lies further afield”. “I

looked at him carefully, then said: I’m sorry, sir. But I’m not

quite sure what you’re getting at.28 (Ishiguro, 2000, p.145-6)

Não admira que a mãe e Banks acabem se sentindo“traídos” por tio Philip. A ilusão em que vivem termina deforma insólita: Diana esbofeteia Wang Ku, rico negocian-te de ópio e figura altamente ligada aos interesses britâni-cos na China. Tudo isso sob o conhecimento e compla-cência de tio Philip, que não passa de um ídolo decaído (a

fallen idol) aos olhos de Banks e que relata o ocorrido, anosmais tarde, ao agora famoso detetive Christopher Banks:

“That day Wang Ku came to your house”, he said. “It’s

fitting you should remember that day. […] It was the day your

mother discovered that Wang Ku’s motives were far from pure.

Put simply, he planned to seize the opium shipments himself.

[…] Most of us already knew this, but your mother didn’t.

27 “O nazismo representa umaameaça à cristandade?”

28 “‘Mas devo dizer Mr Banks,que quando o vi, ali do outrolado da sala, eu de fatoesperava que você dissessealgo’. ‘Sinto muito, eu estavaum pouco cansado essa noite’.[...] ‘Para dizer a verdade,fiquei surpreso por você não sesentir compelido a intervir.Toda essa conversa sobre umacrise na Europa. Você diz queestava cansado; talvez vocêesteja sendo educado. Mesmoassim, estou surpreso quetenha deixado a oportunidadepassar’. ‘Deixado aoportunidade passar?’ ‘O quequero dizer, perdoe-me, é queé bem natural para algunsdesses cavalheiros, aqui nestanoite, considerar a Europacomo o centro do atualturbilhão. Mas você, Mr.Banks. Claro, você sabe averdade. Você sabe que overdadeiro coração da nossacrise atual está um pouco maisadiante, no exterior’. ‘Olheipara ele atentamente e, entãodisse: Sinto muito, senhor.Mas não estou bem certo ondequer chegar’.”

210 Revista Brasileira de Literatura Comparada, n.12, 2008 Graham Greene e Kazuo Ishiguro: suspense, trauma, orfandade... 211

We’d kept her in the dark […]. Yes, he’d sell the opium to the

same people the trading companies did […]. Unfortunately,

that day Wang Ku came to your house he said something that

for the first time made clear to your mother the reality of his

relationship with us”.29 (ibidem, p.310).

Mais tarde, Wang Ku retorna e acaba por levar à for-ça Diana para ser uma de suas concubinas e domesticá-la.

Analogamente a Mr. Baines, em The fallen idol, queexpia seus erros de forma angustiante e punitiva, cobrin-do-se do mal que involuntariamente abate-se sobre ele,tio Philip experimenta paradoxo semelhante: “All these

years, you’ve [Christopher] thought of me as a despicable

creature. Perhaps I am, but it’s what this world does to you. I

never meant to be like this. I meant to do good in this world. In

my way, I once made courageous decisions. And look at me

now. You despise me”30 (ibidem, p.314).Nesse enredo em que o bem e o mal habitam o interior

dos personagens, Diana é um cavalo selvagem a ser domes-ticado. Sua luta pelos oprimidos é menosprezada, restan-do apenas a atraente beleza física. Deusa aparentementeindomável cai nas mãos do opressor que, mediante impo-sições, ganha o direito de ser o seu proprietário sem sofrernenhuma penalidade. Ainda criança, Banks consideravaa mãe figura de peso na luta contra o ópio. Mais tarde, jádetetive, descobre que o grande inimigo do ópio em Xan-gai é, nada mais, nada menos, que tio Philip.

Já no final da narrativa, descobre que sua velha mãesobreviveu ao destino e, sem escolha, consentiu que seuopressor financiasse os estudos do filho. O inquietante en-trelaçamento entre o bem e o mal repercute na vida dosprotagonistas, que de forma semelhante ecoam os males quetambém recaem sobre os personagens de Graham Greene,órfãos do apoio que esperam receber da nação inglesa.

Graham Greene e Ishiguro registram o desencanta-mento com as instituições britânicas, como também, eagressivamente, Osborne (1975), em Look back in Anger.31

Em Greene, um ex-representante da coroa britânica naÁfrica, Mr. Baines, sente-se deslocado no retorno e não

passa de um herói de porão que atua como “pai” de umMaster imaturo para administrar a emblemática mansão.Ishiguro, em When we were orphans, não focaliza um repre-sentante da classe trabalhadora, como Osborne, nem su-balternos, como Graham Greene, mas representantes dacoroa britânica na China, que ignoram o envolvimento dogoverno britânico com o comércio torpe do ópio nesse país.Ishiguro, em The remais of the day, também aborda essa “ino-cência” ou alienação na vida do digno mordomo Stevens.Esses elementos, no relato de Banks, ampliam a sensaçãode orfandade, quando o protagonista os reelabora mesmosabendo que as memórias de sua infância lhe escapam.

Para Freud (1974), em O bloco mágico, a memória éuma máquina de escritura, um fluxo contínuo, cuja leitura,sempre a posteriori, é re-atualizada. O papel do protagonis-ta-narrador, em When we were orphans, é fundamental nareminiscência atualizadora do passado em que a mescla dedúvidas, incertezas e repressão levam à flutuação dos sen-tidos. O narrador, recuando no tempo, procura aliar suahistória pessoal à história e à cultura, obtendo mesclas deculturas e fatos históricos, no encontro entre Oriente e Oci-dente, angustiante para o menino Christopher que recorrea tio Philip para saber como é que pode se tornar inglês.

A história oficial jamais revela os reveses, incertezas edesacertos de seus heróis, como o fazem Ishiguro e Greeneem The fallen idol. Assim, no exercício de anamnese deChristopher, surgem outras vozes engendrando ficção ehistória, de forma fragmentada. When we were orphans, ci-tando Ivanhoe, de Walter Scott, sublinha a confluênciaOriente-Ocidente, misturando-se às narrativas de samu-rais. Outras vozes, mescladas na memória do narrador, pro-jetam, mais uma vez, o papel da cultura na formação daidentidade de Banks e ressaltam o enlace com a memóriae o jogo entre história e História, ampliando sobremaneiraa inter-relação entre a sociedade e a textualidade. Banks,folheando uma edição ilustrada da obra, depara com ocoronel Chamberlain que, na infância, o acompanhara naviagem à Inglaterra para encontrar a tia. Quando a me-

29 “‘Naquele dia em que WangKu veio à sua casa’, disse ele.‘Faz sentido você se recordardaquele dia. [...]. Foi nesse diaque sua mãe descobriu que osmotivos de Wang Ku estavamlonge de serem puros. Paraencurtar, ele planejouapoderar-se ele mesmo dosembarques de ópio [...]. Amaioria de nós já sabia disso,mas a sua mãe não. Nós amantivemos às cegas [...].Sim, ele venderia o ópio paraas mesmas pessoas quenegociavam com ascompanhias [...]. Infelizmente,naquele dia Wang Ku veio àsua casa e disse algo que, pelaprimeira vez, deixou claro parasua mãe a verdadeira relaçãoque mantinha conosco’.”

30 “Todos esses anos, você[Christopher] me considerouuma criatura desprezível.Talvez, eu seja, mas isso é oque o mundo faz para você.Jamais quis ser assim. Eupretendia fazer o bem nessemundo. Do meu jeito, eu umavez tomei decisões corajosas.E, olhe para mim agora. Vocême despreza.”

31 Na peça de Osborne,Colonel Redfern, recordandosua ida à Índia em nome doImpério Britânico, no períodode 1914 a 1947, registra queseu descontente e furiosogenro, Jimmy Porter, talveztenha razão: “Perhaps Jimmy is

right. Perhaps I am a – what was

it? an old plant left over from the

Edwardian Wilderness. And I

can’t understand why the sun

isn’t shining any more”(Osborne, 1975, p.67)[“Talvez, Jimmy esteja certo.Talvez eu seja um – o quemesmo? uma velha planta quesobrou da grandeza do períodoeduardiano. E eu não consigoentender por que o solnão brilha mais”]. Essemal-estar, essa sensação dedeslocamento reforçada porJohn Osborne, nessa peça de1956, torna explícito essedesconcerto, concentrandotoda a raiva no protagonista,Jimmy Porter, e nos seusataques à esposa e amigos.Universitário desempregado,Jimmy, que pertence à classetrabalhadora, não encontraapoio nas instituiçõesbritânicas para concretizarseus sonhos e deixa-sedominar por intensodesencanto e ilusões perdidas.

212 Revista Brasileira de Literatura Comparada, n.12, 2008 Graham Greene e Kazuo Ishiguro: suspense, trauma, orfandade... 213

mória o leva de volta à infância, a obra é mais uma vezcitada. Christopher brinca com Akira Yamashita, criandonarrativas dramáticas que crê serem inspiradas em cenasde Ivanhoe, que está lendo, ou, talvez, nas aventuras dossamurais japoneses de que o amigo gosta tanto.

O mundo de Christopher Banks vai sendo construídono fluxo constante da memória, na justaposição de narra-tivas de heróis guerreiros, em tempos e contextos diversi-ficados, sempre com o mesmo enredo: amor, corrupção emorte, o que suaviza sua dor pela ausência paterna.

É na mescla de Oriente e Ocidente, sustentada nasrelações textuais, políticas e históricas, que Banks tentadar sentido à vida, criando imagens jamais vivenciadas,que, nos entrelaçamentos da memória com a cultura e aexperiência, instituem o amálgama, em que Oriente e Oci-dente se complementam.

Em Ivanhoe, misto de romance histórico e de cavala-ria, os personagens, à semelhança dos de Ishiguro, são “ca-valeiros corruptos”. Scott retrata o mundo romântico dacavalaria que fenece sob a arrogância e ignorância do cor-rupto príncipe John, em contraponto à bondade e bravurade Ivanhoe e do rei Richard. Assim, surgem dois tipos deheróis da cavalaria em Ivanhoe: os corruptos protegidospelo príncipe John e os justos sob o comando do rei Richard.

Em Ishiguro (2000), a “donzela”, Sarah Hemings, acerta altura da narrativa, afirma que só conseguirá sair dasituação aflitiva em que se encontra em Xangai com omarido, se alguém lhe vier em socorro: “So then you’ve no

immediate plans to leave Shangai?” “Not unless someone comes

to the rescue, that is”32 (ibidem, p.174). Sarah e Christopherdeixam tudo e partem para Macau, mas, quando surge umanova pista dos pais de Banks, Christopher abandona Sarah,dizendo: “I say... Look, if we have to wait a few minutes, let

me just go and do something”. “Do something? What exactly?”

“Just... just something. Look really, I won’t be gone long, just a

few minutes. You see, I just have to ask someone something”33

(ibidem, p.238-9). Christopher mergulha nos horrores daguerra sino-japonesa. À procura de alguém que acredita

seja Akira, o amigo de infância, busca também os pais en-tre os destroços da guerra, afastando-se para sempre damulher amada.

Anos mais tarde, o encontro, em Rosedale Manor, coma velha mãe, desmemoriada pela perda de identidade, sen-tada diante de um jogo de cartas, cujas regras somente eladomina, tem como cenário um jardim murado, um mun-do à parte, esvaziado de sentido, em que ambos nada maistêm a dizer um ao outro. Resta-lhes apenas dar um novosentido ao que vivem. O memorial de Banks representa adinâmica das relações de poder que, de forma dramática,desestabilizaram sua vida e a de sua mãe. Como Said (2007)e Hall (2005) demonstram, o poder permanentementeestuda, arquiva, apaga, cria e recria o discurso do poderpara lhe dar a configuração desejada.

Assim, a partir de Freud (1974), é possível considerara memória e a história como textos que sofrem inúmerasrevisões decorrentes de repressões, negações, apagamentose censuras. No mundo psíquico, a criação das facilitações(Bahnungen) da passagem da força se dá pela repetiçãodessas facilitações como trajetos preferenciais da energia,formadoras do aparelho psíquico, viabilizando a vida psí-quica, que sempre é atualizada a posteriori diante da resis-tência oferecida pelos neurônios psíquicos já na primeiraimpressão. A repetição pode ser considerada como umaespécie de morte em constante tensão com a vida, um “malde arquivo”, instaurado no interior do mesmo processoque possibilita a atualização. Segundo Derrida (1995,p.187), “a vida já está ameaçada pela origem da memóriaque a constitui e pela exploração à qual resiste, pela efração(o arrombamento provocado pela inscrição do rastromnésico) que não pode conter senão repetindo-a”.

A última carta de Sarah Hemmings a Banks o leva aconsiderar que o destino de ambos era “to face the world as

orphans, chasing through long years the shadows of vanished

parents”34 (Ishiguro, 2000, p.335-6). A caça aos fantasmase sombras dos pais desaparecidos ocorre de forma difusa,ocultando dores e perdas à semelhança das trepadeiras e

32 “Então, você não templanos imediatos para deixarXangai?” “A não ser quealguém venha em meusocorro, é isso.”

33 “Bem... Olhe, se temos queesperar alguns minutos,deixe-me sair só por instantespara fazer algo”. “Fazer algo?O que exatamente?”“Apenas... apenas algo.Veja,de verdade, não vou medemorar, são só algunsminutos. Entenda, vou sópedir algo a alguém.”

34 “enfrentrar o mundo comoórfãos, em busca, ao longodesses intermináveis anos, dassombras dos paisdesaparecidos”.

214 Revista Brasileira de Literatura Comparada, n.12, 2008 Graham Greene e Kazuo Ishiguro: suspense, trauma, orfandade... 215

heras que, na Inglaterra, Christopher admira de ali esta-rem, em meio ao burburinho da cidade, recobrindo as pa-redes de finas residências inglesas, o que remete a experiên-cia de Philip Lane, incapaz de escapar do trauma provocadopela ausência paterna na Belgravia house. O jardim mura-do, local preferido para o encontro com Sarah Hemmingse Diana, é figura recorrente no relato de ChristopherBanks, ocultando segredos e desencontros revisitados nojogo da memória em que “the walls themselves were covered

with ivy, but somehow one could not avoid the impression of

having stepped into a roofless prison cell”35 (ibidem, p.33).

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35 “as próprias paredesestavam recobertas com hera,mas era impossível evitar aimpressão de se ter pisado emuma prisão sem teto”.

217

A prisão e a escrita: desagregação e agregaçãoem Memórias do cárcere

Conceição Aparecida Bento*

RESUMO: A escrita autobiográfica comumente é relacionada aotempo passado. Neste artigo, nós a pensaremos a partir de ou-tro elemento: o espaço. Faz-se necessária, então, uma breve in-vestigação sobre o conceito de espaço, que no texto deixa a suacaracterização de fixidez e passa ser tomado como relacional.Interessa-nos analisar como a prisão, espaço das Memórias do

cárcere de Graciliano Ramos, tensiona com as determinaçõesque o poder lhe impõe e, de espaço de desagregação, consti-tui-se em topos da articulação e inclusão não só de homens,mas também da tradição literária.

PALAVRAS-CHAVE: Memórias do cárcere, prisão, escrita.

ABSTRACT: Autobiographical writings are normally related topast events. Our thoughts, in this article, come from anotherpoint: the space. Thus, space concept, which is disconnectedfrom its fix character and is linked to a relational one, demandsa brief investigation. Our interest lies in analyzing how the prison,the space of Ramos’ Memórias do cárcere, deals with the deter-minations set by the power and the way that the disaggregationspace turns into the articulation topos that include not onlyman, but literary tradition also.

KEYWORDS: Memórias do cárcere, prison, writing.

Os estudos autobiográficos associam-se ao tempo.Comumente caracterizada como a escrita do vivido, essestextos colocam, de início, uma remissão ao tempo. A idéiadeixa de lado uma outra dimensão que, se as caracteriza-ções pouco trabalham, a leitura desses textos não permiteesquecer. O espaço, como o tempo, neles se apresenta.Poderíamos pensar o espaço a partir da escrita que “espa-cializa” a história de uma vida, que tenta linearizá-la; tensão

* Professora doutoraassistente da Universidade deMogi das Cruzes (UMC) –Mogi das Cruzes (SP).

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entre o passado vivido, o presente da escrita e da vida e ofuturo da leitura. Esse, entretanto, não será o nosso intui-to, embora a escrita, neste texto, seja um dos temas. Domesmo modo, ainda que a questão seja a do espaço, nãoentraremos na complexa relação dos textos autobiográfi-cos e dos espaços territoriais nacionais ou econômicos.Pensar as possíveis peculiaridades da escrita autobiográ-fica latino-americana, africana e européia, nos eixos Nor-te e Sul, sobretudo em tempos distantes das comunica-ções em rede ou em espaços em que elas sejam ainda poucoexpressivas, talvez não seja uma questão menos importan-te, mas também não é o nosso tema. Este texto dedica-sea espaço menor, mas não menos significativo, político oupoético: a relação entre o espaço da prisão e a escrita au-tobiográfica em Memórias do cárcere de Graciliano Ramos.

Memórias do Cárcere analisa os meses e os vários luga-res de encarceramento do prisioneiro-narrador. A tempora-lidade – os dez meses passados na prisão – eixo dos capítu-los na sucessão de episódios, dilui-se, entretanto, nas rarasreferências a datas e nas várias menções a um tempo vago,ainda que, por vezes, tais marcas sejam encadeadas: “De-correu uma semana. Certa manhã” (Ramos, 1969, v.1,p.288); “[...] passou-se o dia, outros dias se passaram, qua-tro ou cinco talvez mais” (Ramos, 1969, v.2, p.22); “Naverdade o tempo não era o que havia sido: tornara-se con-fuso e lento, cheio de soluções de continuidade, e nesseshiatos vertiginosos perdia-me, escorregava [...]” (Ramos,1969, v.1, p.38).

O espaço, no texto, sobrepõe-se à temporalidadedifusa. Exceto o primeiro volume – “Viagens”, que narra operíodo no quartel e o trajeto para o Rio –, os demais –“Pavilhão dos primários”, “Colônia correcional”, “Casa decorreção” – recebem denominações de espaços prisionais;cada livro incide sobre um cárcere, empareda um lugar e ofaz continuar no outro, problematizando a idéia de um es-paço fechado. E, aqui, poderíamos pensar a significativaausência do término, tensão com o fechamento dessa ma-terialidade; insinuação da abertura à leitura ou ainda daperpetuação das mazelas do interior da prisão no espaço

externo, nos homens anfíbios que, já na década de 1930,subiam e desciam os morros cariocas.

A prisão, em Graciliano, já nos disse Antonio Candido(2000), é metonímia do mundo. A concepção do homemencurralado e animalizado gera a idéia do mundo comoprisão; o seu encarceramento, por sua vez, leva-o à prisãocomo um mundo. Assim, no espaço externo às grades oudentro delas, mudam-se as barreiras, mas elas estariam emambos os espaços: da liberdade completa ninguém desfru-ta, adverte-nos o narrador logo no início do texto.

O primeiro espaço de cárcere é o quartel em Recife:

na verdade, me achava num mundo bem estranho. Umquartel. Não podia arrogar-me inteira ignorância dos quar-téis, mas até então eles me haviam surgido nas relaçõescom o exterior, esforçando-se para adotar os modos e alinguagem que usávamos lá fora. Aparecia-me de chofreinteriormente, indefinido, com seu rígido simbolismo, umquadro de valores que me era impossível recusar, aceitar,compreender ao menos. (Ramos, 1969, v.1, p.33)

As determinações espaciais, por vezes, entremeiam-se às manifestações cambiantes da memória que esqueceminúcias. Na apresentação do quartel, a precisão de al-guns detalhes mescla-se à imprecisão de outros:

A minha cama [...] ao fundo, ficava junto a uma jane-la aberta sobre um pátio cheio de sombras. Na parede ondeo meu companheiro se encostava, uma porta fechada; emfrente, uma janela, também fechada. Não sei se lavei asmãos e o rosto, esqueci pormenores, ignoro se havia águaencanada ou lavatório com jarro. Uma mesinha, duas ca-deiras, só. (ibidem, p.38)

A entrada no Porão de Manaus, imagem das mais im-pactantes na narrativa, apresenta, a partir do jogo entreluz/sombra, “escuridão branca” e “brumas leitosas”, o am-biente sórdido da imundície e prenuncia a animalizaçãodas personagens, tal qual um rebanho, aguilhoadas para ointerior da embarcação, instadas pelos guardas:

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alcançamos o porto, descemos, segurando maletas e paco-tes, alinhávamos entre filas e guardas, invadimos um navioatracado, percorremos o convés, chegamos ao escotilhãoda popa, mergulhamos na escadinha. (ibidem, p.88)

Erguendo a cabeça via-me no fundo de um poço, en-xergava estrelas altas, rostos curiosos, um plano inclinado,próximo onde se aglomeravam polícias e um negro continua-va a dirigir-me a pistola. Era como se fôssemos gado e nosempurrassem para dentro de um banheiro carrapaticida. [...]Simples rebanho, apenas, rebanho gafento, na opinião denossos proprietários, necessitando de creolina. Os vaquei-ros, armados e fardados, se impacientavam. (ibidem, p.91)

Do navio passa-se ao “Pavilhão dos primários”, espa-ço que, do mesmo modo, interessa menos pela caracteri-zação física – “salas à esquerda e à direita de vestíbuloespaçoso. Uma grade ocupava toda a largura do prédio” –do que pelas personagens que habitam o lugar. Já na apre-sentação inicial, vemos um desfile de personagens e os seuscaracteres, e serão esses os protagonistas da narrativa emespaço de multiplicidades:

Avançamos entre duas filas de homens que, de punhos er-guidos, se puseram a cantar [...] Ri-me interiormente, pen-sando no que me havia dito o guarda [...] “Vivem cantandoe berrando como doidos” [...] Eram trinta ou quarenta pes-soas. Notei um rapaz franzinho, quase nu [...]; um vigoroso,de blusa russa [...]; um negro reforçado e lento [...]. (ibidem,p.173-4)

O próximo espaço será a “Colônia correcional”, e nelecontinuam as imagens do curral e a importância das per-sonagens que o habitam:

Entramos num salão estreito e escuro. Pendiam lâmpa-das de teto baixo, vidros fuscos, fios incandescentes, a espa-lhar uma luzinha frouxa e curta: e alguns metros delas osobjetos mergulhavam na sombra. Distingui duas alas de mesascompridas; eram duas, se não me engano, ladeadas por ban-cos. Tombei num deles, cansado. (Ramos, 1969, v.2, p.55)

Saímos e, em linha, fomos levados ao casarão baixo.A alguns metros da porta uma grade se descerrou, e a filei-ra pouco a pouco mergulhou nela. O tempo se desperdiçaranas idas e vindas, nas buscas, no refeitório sombrio. Quantashoras? A falta de um relógio me desorientava. Supondohavermo-nos retardado ali, de pé, meio indiferentes, avan-çando um passo, outro passo como bichos miúdos a cami-nhar para uma goela de cobra; mas isso é reminiscênciaquase a apagar-se, neblina de sonho. (ibidem, p.55)

O último cárcere, a “Sala da capela”, secciona as per-sonagens: divide burgueses e intelectuais e nele se reen-contram vários companheiros do “Pavilhão dos primários”.O “salão muito comprido, onde se alinhavam camas e ja-nelas numerosas rasgavam as duas paredes externas”reenviará ao espaço anterior e, de novo, espaço e persona-gens se fundem, e reencontramos o caráter indeciso daslembranças:

A Colônia ia-se distanciando; a cama, a esteira, o len-çol ensangüentado, a tatuagem de Gaúcho e os olhos fero-zes de Alfeu confundiam-se. Teriam existido? Afligiu-mereconhecer lacunas em tão pouco tempo, vacilações namemória. Não me seria possível reconstituir o galpão, orefeitório, a generosidade estranha de Cubano, o estertordo vagabundo na imensa noite. (ibidem, p.184)

Os fragmentos mostram os diferentes espaços pri-sionais percorridos, mas igualmente revelam que, em Me-

mórias, o espaço não se limita ao físico. A sua caracteriza-ção se funde às personagens. Não se deve restringi-lo agrades e muros que o delimitam; ele admite caracteriza-ções mais amplas. No texto e em nossa leitura, ele não éapenas uma localização, área circunscrita por limites; masabre-se, “é esse ser-fora-de-si, essa natureza enquanto elanão se relaciona ainda com ela mesma, enquanto ela nãoé para si” (Derrida, 1991, p.76) e, assim, possui fisionomiadialética. Não se enclausura em si, isso seria a sua nega-ção: é no “espaçamento” que ele se constitui. É na relaçãoque se define.

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O espaçamento que os fragmentos nos apresentam éduplo. É o físico, que se prolonga na visão e na afirmaçãodo externo, e é também o da enunciação, em que o “eu”não se nega, revela-se pelo deslocamento para o outro, osprisioneiros que com ele dividem o espaço.

Salientem-se as peculiaridades do uso que aqui se fazdo termo “espaçamento”, que, nesse caso, não indica o hia-to, o intervalo entre dois objetos, a interrupção entre doistempos como, por vezes, os dicionários o definem. Tal comoaqui se emprega, indica a continuação, o prolongamentode um elemento em outro, de um ser noutro ser, imagemreforçada pela idéia de implicação. A distância do signifi-cado usual do termo justifica-se, pois a constituição da pa-lavra permite a atualização do sentido em que o tomamos.O jogo entre “es”, “ex” aponta o dado externo, o lançar-sefora de si, e o sufixo “mento”, que substantiva a ação, atorna não simplesmente um ato pontual, com início e tér-mino, mas ato em que a continuidade no outro se explicita.

Matizar a inserção da escrita autobiográfica no espa-ço é distanciar-se de solipsismos, por vezes, aliados a ela.O espaçamento do corpo e da escrita, formas de exterio-rização do freqüentemente concebido como interioridade,impedem o “sujet d’accéder à son ‘ipséité’ de coincider avec

lui-même, y compris, paradoxe suprême, avec son propre corps:

ils ‘espacent’ le corps par rapport à lui-même”1 (Regard, 2004,p.14). Nessa concepção, o sujeito assume também novoscontornos. Não é pensado como mônada ou o quid de umaidentidade, mas a partir do seu corpo aponta o mundo.

A idéia interessa-nos ao problematizar uma tradiçãocrítica que pensa os escritos autobiográficos, sobretudo,como realidades temporais: história de uma vida e de umapersonalidade. Se o espaço constitui e absorve o sujeito, oseu corpo e a sua escrita, o texto autobiográfico será tam-bém uma “geografia de si” ou uma “autotopobiografia”,em que o eu não é apenas um outro, como define Lejeune,a partir de Rimbaud, mas é também o outro; do mesmomodo, o espaço não é dado estático e a geografia não éapenas o espaço isolado, mas se definem na relação.

Foucault (2001, p.1572), em conferência na Tunísia,em 1967 – texto publicado apenas em 1984 – reconhece ahistoricidade dos espaços e alia a contemporaneidade aosespaços relacionais. Diz que a localização, “cette hiérarchie,

cette opposition, cet encroisement de lieux”2 que configuravao espaço medieval, foi substituída, com Galileu, pela ex-tensão, “le lieu d’une chose n’était plus q’un point dans son

mouvement”.3 No final do século XIX, identifica o iníciode uma nova concepção: o espaço passa a ser pensado comorelacional. Hoje, vivemos o “emplacement” definido “par

les relations de voisinage entre points ou éléments; formellement,

on peut les décrire comme des séries, des arbres, des treillis”4

(ibidem, p.1574). A despeito disso, habitamos ainda re-presentações de espaços em que a oposição se faz presen-te: a dessacralização teórica, proposta de Galileu, não al-cançou a prática. Há, ainda, entre nós, espaços excluídosou aqueles pretensamente aceitos, quando, na realidade,representam segregações. Foucault os explicitará como os“qui ont la curieuse propriété d´être en rapport avec tous les

autres emplacements, mais sur un mode tel qu’ils suspendent,

neutralisent ou inversent l´ensemble des rapports qui se

trouvent, par eux, désignés, réflétés ou réfléchis”5 (ibidem).Assim será com a utopia, esse não-lugar, e com as “hétéro-

topies”, essas utopias realizadas no interior do sistema.“Utopias”, porque são espaços considerados fora dos ou-tros espaços, alheios a estes últimos, quando a eles estãoatrelados. A prisão é um exemplo.6

A prisão representa local de segregação, de corte dasrelações. Em Memórias do cárcere, ela não foge à regra.Tira-se o prisioneiro de seu lugar habitual, ele é desvin-culado da família, dos seus afazeres, de uma lógica conhe-cida e esperada: “a minha vida se diluía, perdia-se alémdaquele imenso espaço de vinte e quatro horas. Um muroa separar-me dela, a alterar-se, a engrossar, e para cá domuro – nuvens, incongruências” (Ramos, 1969, v.1).

O julgamento, por exemplo, expectativa enunciadano terceiro capítulo do primeiro volume, só aconteceráem Memórias do cárcere, na inusitada comédia encenada

1 “de alcançar a sua ‘ipseidade’de coincidir consigo mesmo,inclusive, paradoxo supremo,com seu próprio corpo,espaçam o corpo em relação aele mesmo”.

2 “essa hierarquia, essaoposição, esse cruzamentode lugares”.

3 “O lugar de uma coisa nãoé senão um ponto em seumovimento.”

4 “lugar definido pelasrelações de vizinhança entrepontos ou elementos.Formalmente, pode-sedescrevê-los como séries,árvores, redes”.

5 “que têm a curiosapropriedade de ser em relaçãocom todos os outros lugares,mas de tal modo quesuspendem, neutralizam ouinvertem o conjunto derelações que se encontram, poreles designados, refletidos ouconsiderados”.

6 Um outro exemplo é ocemitério: topos com o qualtodos se relacionam, apesar datentativa freqüente dedistanciá-lo do campo devisão, de higienizá-lo dasmarcas da morte. Não só isso:mais ateus nos tornamos,menos acreditamos na vidapós-morte e mais necessidadetemos de garantir espaço apósela, diz Foucault.

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pelos prisioneiros cinco capítulos antes do fim do últimovolume:

[...] eu estava curioso de saber a argüição que armariamcontra mim. Bebendo aguardente, imaginava a cara de umjuiz, entretinha-me em longo diálogo, e saía-me perfeita-mente, como sucede em todas as conversas interiores quearquiteto. Uma compensação: nas exteriores sempre medou mal. (ibidem, p.14)

Nada afinal do que eu havia suposto: o interrogatório,o diálogo cheio de alçapões, alguma carta apreendida, umromance com riscos e anotações, testemunhas, sumiram-se. Não me acusavam, suprimiam-me. (Ramos, 1969, p.21)

A suposta cena, evocada no início da obra, no decor-rer da narrativa é ausente. O juiz não se mostra, o prisio-neiro não tem o direito a defesa, nem sabe qual a acusaçãoque pesa sobre ele. Nos capítulos finais, a aporia se resolvena ficção. Decorridos os dez meses de cárcere, a sua au-sência preenche-se na dramatização. Não é permitido sairda prisão sem o desenrolar da cena, ainda que como farsa.“Não é possível ser julgado sem defesa”, dirá um “ator”.

A ficção explícita denuncia a expectativa e aponta adimensão da lei e do humano que a prisão não acolhe.Nesse sentido, Memórias do cárcere apresenta os horroresdos porões do Estado Novo e também fabula as virtuali-dades do humano na cena do julgamento que transcendeos limites do cárcere e da escrita autobiográfica, ao apre-sentar a ficção como recurso para dizer o não ocorrido,mas desejado e esperado.

A ausência de julgamento isola ainda mais o prisionei-ro, desconecta-o da lei exterior e das suas expectativas. Asegregação, no entanto, reenvia-nos a uma tradição pas-sada e futura e, de novo, os espaçamentos e as redesexplicitam-se. A aproximação da escrita autobiográfica dacena judiciária não é arbitrária. Mathieu-Castellani (1996)afirma que ambas passam pela idéia da culpabilidade e dadefesa. O paralelismo pode estreitar-se quando pensamosos textos autobiográficos em que o cárcere se apresenta

como espaço. Podemos dividi-los naqueles realizados naprisão e nos que, produzidos fora dela, abordam períodosde encarceramento; na escrita dos prisioneiros comuns ena dos políticos, ou ainda, naqueles que se colocam forada racionalidade aceita, nas prisões-manicômios.

À primeira vista, poderíamos identificar uma objeção:a incompatibilidade entre a vigilância do espaço prisionale uma escrita que gira em torno da intimidade. A incom-patibilidade não impede a realização da escrita: ao contrá-rio, o ócio, a falta de liberdade parecem reforçar o desejode produzi-la. Há ainda a ausência ou a arbitrariedade dojulgamento; muitas vezes, elas incitam a escrita. Mathieu-Castellani (1996) refere-se à obra autobiográfica deAlthusser, buscando suprir a ausência do processo que nãopôde existir; no caso de Graciliano, a escrita, por razõesdiferentes, aponta o processo inexistente e a arbitrarie-dade da situação.7 Nos dois casos, no entanto, a escritatensiona com a heterotipia, com a suspensão proposta peloespaço carcerário, pois dá visibilidade à falácia do cortedas relações.

A escrita autobiográfica sobre períodos de encarcera-mentos possui uma tradição literária. Poderíamos citarDostoiévski, Camilo Castelo Branco, Gramsci. Não nosinteressa pensar quais obras teriam influenciado a escritade Graciliano. Sabemos, no entanto, da constância da pri-são na sua obra ficcional e do seu interesse pela leitura docriminalista Cesare Lombroso.

Conhece-se, no Brasil, obra anterior à de Gracilianosobre a prisão. Cinco anos de prisão. Memórias do cárcere,

de Santelmo Amador (s. d.), apresenta-nos, segundo oautor, os cinco anos que passou na Casa de Detenção. Per-cebe-se, na leitura, um tom anedótico, bem como um pen-dor para a fabulação, apesar da afirmação do caráter deverdade, no início do texto, e do tom categórico na apre-sentação do lugar:

A Casa de Detenção do Rio de Janeiro tem algumacousa de hospício, de hospital e de inferno, onde os presos,

7 Entre nós podemos citar ocaso de Austregésio CarranoBueno (2004), que redigiu assuas várias passagens peloshospitais psiquiátricos emCanto dos malditos, obrapublicada pela Rocco etransposta para o cinemacom o título de Bicho de

sete cabeças.

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doidos, doentes ou satânicos aguardam liberdade, conde-nação ou remoção penitenciária. (Amador, s. d., p.16)

Se Graciliano segue uma tradição, é resgatado em ou-tra. Após o período da ditadura militar, encontramos, noBrasil, extensa bibliografia sobre encarceramentos e inter-rogatórios brutais; e nos últimos anos do século XX, umanova leva de textos assume o espaço prisional, dessa vezcom uma diferença: serão os prisioneiros comuns que, cin-qüenta anos após Memórias do cárcere, tomam a escrita parainscrever-se na história. Nos três casos – em Graciliano, noperíodo pós-1964 e nos textos do final do século XX – háum ponto comum: os desmandos de Estados de exceção.Em Graciliano, os dos anos 1930; nos intelectuais que es-creveram sobre as torturas e os exílios, os dos anos pós-1964; e nos presos comuns – com os seus textos cheios damiséria e brutalidade de uma vida sem perspectiva – os dosanos do “Milagre econômico” dos quais resultam.

Muito dessa tradição se deve às Memórias do cárcere

de Graciliano. Em parte desses textos, sobretudo os de pre-sos políticos, a sua obra é intertexto:

[...] começaram a surgir rumores [...] de que alguns presosseriam transferidos do Dops, e as especulações foram inun-dando corredor e celas [...] Quantos seriam transferidos?Quais seriam selecionados? E transferidos para onde? [...]Para a Invernada de Olaria, onde presos eram tratados comobichos, qualquer um podendo virar presunto por dá cá aque-la palha? [...] E surgiam lembranças das leituras de Memó-

rias do Cárcere, do mestre Graciliano, o horror que eram osporões do Pedro I. (Lago, 2001, p.35)

Se a idéia da prisão é a ruptura, a escrita faz movimentocontrário. As memórias prisionais não apenas atualizam oarbítrio, mas criam, por meio de uma rede de textos, acartografia de uma exclusão. A segregação proposta peloespaço físico é contestada, assim, por outro espaço – o daescrita – que a ela responde ao apresentá-la àqueles forado cárcere e ao ligar-se a uma tradição que a antecede e acontinua. A continuidade é também a da crítica que toma

essa escrita como tema. Cito o trabalho de PhilippeWillemart (1983) a respeito de Albertine Sarrazin, as in-vestigações de Andrea Saad Hossne (2005) e de MarcioSeligmann-Silva (2003), a respeito da escrita produzidanas prisões a partir da década de 1980.

Na sua dimensão dialógica, a escrita prisional contes-ta a segregação que o espaço procura inscrever e expande asua presença para além dos limites da prisão. Mas oespaçamento constituído por meio da escrita tomará outrasdireções. Relendo o texto a partir da fala de Sobral Pinto,num dos capítulos finais de Memórias do cárcere, encontra-mos a possível explicação para o encarceramento do pri-sioneiro-narrador: o teor dos seus romances. A causa daprisão seria a escrita, e é ela que o espaço prisional visariacoibir. Não espanta a idéia. Subjaz a ela a concepção deque a letra é subversiva e deve ser minorada. No caso deMemórias do cárcere, outras idéias, atreladas à escrita e pos-síveis causas da prisão, parecem reforçá-la; seja a atuaçãode Graciliano na educação alagoana, suprimindo cantoriapatriótica e levando parte da população pobre para a esco-la, mas não sendo condescendente com ela, como atesta areprovação da sobrinha de um militar de patente inferior.

A tentativa de supressão reverte-se, no entanto, naonipresença da escrita na narrativa e no interior da pri-são. Ela atormentará o prisioneiro-narrador, que se debateentre o desejo e o não-desejo de realizá-la:

Sempre compusera lentamente: sucedia-me ficar dian-te da folha muitas horas, sem conseguir desvanecer a trevamental, buscando em vão agarrar algumas idéias, limpá-las, vesti-las; agora tudo piorava, findara até esse desejo detorturar-me para arrancar do interior nebuloso meia dúziade linhas; sentia-me indiferente e murcho, incapaz de ven-cer uma preguiça enorme subitamente aparecida, e consi-derar baldos todos os esforços. (Ramos, 1969, v.1, p.65)

Necessário escrever, narrar os acontecimentos em queme embaraçava. Certo não os conseguiria desenvolver: fal-tava-me calma, tudo em redor me parecia insensato Evi-

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dentemente a insensatez era minha: absurdo pretender re-latar coisas indefinidas, o fumo e as sombras que me cerca-vam. Não refleti nisso. Havia me imposto uma tarefa e dequalquer modo era-me preciso realizá-la. (ibidem, p.117)

A escrita inscreve-se, ainda, nas paredes, na remissãoaos comunistas que passaram por aquele espaço. O nar-rador observa as suas impossibilidades: está em local dedifícil acesso, pressupõe uma torre humana para realizá-lae dá visibilidade aos nomes dos membros do ilegal PartidoComunista:

As paredes estavam cobertas de inscrições e desenhos;no teto oscilavam penduricalhos feitos com essas lâminasfinas de metal usadas em carteiras de cigarros. No meiodos letreiros, alto, onde não chegava braço de homem, umalista de presos, em tinta azul. Em baixo, uma data e o mo-tivo da prisão. (Ramos, 1969, v.2, p.16)

Assim, a escrita não será apenas o corpo do texto queela realiza; será também matéria, conteúdo da narrativa.Entremeada às personagens, às dúvidas do prisioneiro-narrador, ela multiplica as suas manifestações. Uma delasserão anotações que ele espera usar para constituir umanarrativa futura. A escrita estará ainda, nas menções aoromance entregue ao editor, nos contos que intenta escre-ver, nas referências às obras dos amigos, lidas ou comenta-das pelo prisioneiro-narrador na prisão, como a conhecidareflexão sobre o memorialismo em José Lins do Rego. Ape-sar da tentativa de proibi-la, a escrita é uma personagem.

Para nós, a escrita de Graciliano configura a tensãoentre o banimento e o acolhimento no interior do cárcere.A escrita responde em Memórias do cárcere ao espaço quese almeja fora da relação: responde ao vazio do processocom a farsa “inventada”, responde à ruptura da vida ante-rior – “comecei a perceber que as minhas prerrogativasbestas de pequeno-burguês iam cessar, ou tinham cessa-do” – com a ligação implícita às memórias de prisão, res-ponde à tentativa de suprimi-la com a sua onipresença.

Do ponto de vista da tradição, no entanto, nem sem-pre a escrita de prisioneiros foi indicativo de resistência.Estudos sobre a produção dessa escrita, no século XIX, nosmostram a sua cooptação pelo viés positivista. Lacassagne,por exemplo, médico-criminalista, seguindo as idéias deLombroso, esse também leitura provável de Graciliano, in-citava os prisioneiros sob a sua responsabilidade a produ-zir textos autobiográficos. O intuito, no entanto, era claro:usar a escrita como forma de inspeção; acreditava-se queela poderia dar a conhecer e afirmar o lado patológico des-ses indivíduos. É um momento em que a escrita, não só noseu conteúdo, mas também na sua forma, é vista como umaortopedia, e não é arbitrário que a grafologia surja, comaspirações científicas, no período. Ela intentava ler, nos es-critos, os desvios dos sujeitos e corrigi-los com determina-ções sobre a forma correta de escrever. É nesse momentoque a pedagogia descreve o bom modo de escrever e sen-tar-se; é a criação de uma ortopedia da escrita e do escre-ver que, no seu nascimento, se apropria da escrita prisional.

A presença da escrita em Memórias do cárcere ocorreainda na alusão à escrita dos prisioneiros políticos. No“Pavilhão dos primários”, eles escrevem, lêem, estudam,cantam. Sérgio, na verdade Rafael Kamprad, russo, dáintrincadas aulas de matemática, e, por meio dele, o pri-sioneiro-narrador mapeia a imigração no Brasil.8 SérgioGhioldi, secretário do Partido Comunista Argentino, nas-cido no Cáucaso, resume a filosofia de Hegel e “embre-nhava-se em longas dissertações sobre arte grega e arteegípcia”. Tavares Bastos encarregava-se das aulas de fran-cês; Lacerdão, das de inglês. Em ambiente de intelectuais,a convivência com os operários e os pequenos burguesesera difícil, além da rotatividade dos presos. “As figuras nospareciam vagas, incompletas; só os caracteres mais fortesconseguiam definir-se. Comunicação difícil, quase impos-sível: operários e pequenos burgueses falavam línguas di-ferentes” (Ramos, 1969, v.1, p.213).

Se no “Pavilhão dos primários” a escrita é um dado damovimentação dos prisioneiros, na “Colônia correcional”

8 “Ainda criança, perdera afamília na Guerra Civil,conseguira chegar àAlemanha, onde estranhara osilêncio, a falta de tiros decanhão. Estudante de filosofiae matemática numauniversidade, fugira perseguidopelo nazismo, fora terminar ocurso na Estônia. Daí oexpulsaram. Tinha parentes naChina e no Brasil: uma avó noRio de Janeiro, um tio emCantão, rico em negócios depetróleo com os americanos.Optara pelo Brasil. E vivia deensinar quando rebentara abagunça de 1935. Previdente,desviara de casa objetosnocivos, confiara a um alunocartas de Trotski, mas comtanta infelicidade que numinstante haviam caído ospapéis nas mãos da polícia”(Ramos, 1969, v.1, p.175-6).

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ela escasseia, o que não se explica apenas pelo acirramentoda prisão.

Encontramos, na “Colônia”, o pedido feito por algunspresos para que o prisioneiro-narrador revise os rascunhosde um relatório, a ser enviado a um deputado, sobre ascondições dessa prisão. De início, o pedido é para que “boteas vírgulas e endireite os verbos”, mas o número de errosexige reescrita: “Isso não tem sentido. A correção é indis-pensável”, afirma o prisioneiro aos seus solicitadores. Háainda o pedido da elaboração do discurso em homenagemao aniversário do diretor da prisão. Os dois pedidos indi-cam afastamento dos prisioneiros da escrita, o que reapa-recerá no desejo dos prisioneiros comuns de figurarem emlivro. Sem a escrita, eles narram oralmente as suas histórias:

Gaúcho começou a procurar-me. À noite acocorava-se junto à minha esteira, ficava até a hora do silêncio aentreter-me com a narração de suas complicadas aventu-ras. Esforçava-me por entendê-lo, às vezes o interrompiabuscando compreender alguma expressão de gíria. Van-derlino trocava-me em linguagem comum a prosa obscura,e na ausência dele a conversa arrastava-se, cheia de equí-vocos e repetição. (Ramos, 1969, v2, p.87)

Desprovidos da escrita alfabética, eles a tangenciam coma ironia, como na conversa em que Gaúcho explica a suapredileção pelo Jornal do Brasil, e no desejo de apareceremretratados literalmente na publicação futura.9 A ironia in-dica o distanciamento desses prisioneiros em relação aosencontrados no “Pavilhão” e, penso, remete à enunciaçãoque evita nomear o narrador. Para Gaúcho, a firula do pseu-dônimo é risível, não há por que esconder-se por trás dalinguagem; ele quer ver-se retratado. Do mesmo modo, ouso do jornal como ferramenta de roubo faz rir, por deslocaro seu sentido usual. Há, nos dois episódios, a denúncia daausência da escrita, ironia diante dos volteios do narradorpara não nomear-se, e afirmação na agilidade dos que, semsaber ler, apropriam-se do suporte da leitura para outros fins,descobrindo “utilidade nova da imprensa” (ibidem, p.91).

Cria-se uma divisão entre os prisioneiros que se apro-priam da escrita como forma de posicionar-se e aquelesque, longe desse expediente, precisam recorrer ao outropara que esse lhe dê a palavra que falta, como é o caso dasnarrativas orais de Cubano, Paraíba e Gaúcho que aspi-ram a adentrar na palavra escrita. Atente-se para a justa-posição entre a carência da palavra e a anomia. Na ausênciade nomes, esses aparecem associados à geografia, partilhan-do de uma metonímia que os identifica com o todo, semos singularizar: “Chamava-se Cubano, tinha este apelido.Em geral, se usavam pseudônimos naquele meio: Gaúcho,Paulista, Paraíba, Moleque Quatro” (ibidem, p.71).

Observe-se que a escrita concebida como um dosmotivos do confinamento – a escrita que se queria dar aosmeninos dos becos de Pajuçara e a escrita dos romancesdo narrador-prisioneiro, seja a fala de Sobral Pinto – essaescrita, segregada pela prisão, fará frente a essa segregaçãoao inscrever-se de modo incisivo na narrativa, mas reali-zará também a denúncia da marginalização pela ausênciada escrita –, sejam os episódios citados em que aqueles, àmargem do poder político e econômico, aspiram chegar àletra. A subversão ocorre ao captar esses prisioneiros comopersonagens. A narrativa os insere não apenas como par-cela esquecida, que, de modo geral, conhecemos pelas es-tatísticas, mas lhes dá humanidade.

Se não fossem as Memórias do cárcere, dificilmenteconheceríamos as histórias dos presos comuns. Conhece-mos Ghioldi, Berger, Prestes, que a história preserva nosseus manuais, mas não figuras como José, Paraíba, Gaú-cho, Pai-João, Cubano e o menino de Infância. Esses sãopresas fáceis da truculência e, de novo, lemos Graciliano apartir de nós. Mário Lago (2001, p.60), em narrativa au-tobiográfica sobre um dos seus vários períodos de encarce-ramento, o dos anos 1960, cita a prisão, em meio aos agri-cultores de Capivari, do negro José Emídio de Jesus como“dos casos mais característicos da bestialidade vivida na-queles dias”. Não há justificativa para a prisão, exceto afalta de palavras para explicar-se, o desconhecimento do

9 “– Ó Gaúcho, perguntei,você sabe que eu tenhointeresse em ouvir as suashistórias?– Sei. Vossa mercê vai mebotar num livro.– Quer que mude seu nome?– Mudar? Por quê? Eu queriaque saísse o meu retrato”.(Ramos, 1969, v.2, p.88).

232 Revista Brasileira de Literatura Comparada, n.12, 2008 A prisão e a escrita: desagregação e agregação em Memorias... 233

seu nome e o dos filhos.10 Marilena Chauí (1986) aludeao caso de Galdino, caboclo paulista, acusado de incenti-vo à invasão de terras. Preso, foi enviado ao asilo psiquiá-trico; especialistas identificaram no seu riso tímido, no seuolhar fugidio, na pouca verbalização e no excesso de gesti-culação sinais de periculosidade e de retardamento men-tal. Não souberam ou não quiseram ler os sinais da culturacaipira em que o desvio do olhar é sinal de respeito, o cor-po é mais expressivo do que a fala e o riso é uma forma deironizar o saber científico: “A existência de um sujeito so-cial incompreensível e invisível para o conhecimento e o olharmédico foi suficiente para sua invalidação social” (Chauí,1986, p.36). Nos dois casos, o riso tenso, confundido coma insubordinação, é a forma de expressar-se; por escolhaou não, os gestos e o corpo buscam dizer. Fabiano é a per-sonagem da nossa literatura que melhor se aproxima deGaldino e José Emídio; como eles, preso por não dispordas palavras. Em Memórias do cárcere, o beato José Ináciomerecerá considerações análogas:

Homem de religião, homem de fanatismo, desejandoeliminar ateus, preso como inimigo da ordem. Contra-sen-so. Como diabo tinha ido ele parar ali? Vingança mesquinhade político da roça, denúncia absurda, provavelmente – eali estava embrulhado um eleitor recalcitrante, devoto bi-sonho de Padre Cícero. Com certeza havia outros inocen-tes, na multidão, de algumas centenas de pessoas. (Ramos,1969, v.1, p.101)

A atualidade da situação estará no esforço higienistade limpar o espaço urbano dos moradores indesejáveis ena ânsia de sanar a má-consciência ao encontrar catalo-gação rápida e espaços de confinamento nessas “utopiasrealizáveis pelo sistema”, no dizer de Foucault.11 Isso nosevidencia que os anos 1980 mudaram pouco o nosso en-torno, bem como a ideologia que o envolve. Nesse perío-do, tivemos a publicação dos diários de Carolina de Jesus(1976) e alguns poucos relatos operários, o que é poucopara configurar a aceitação da voz da maioria da popula-

ção que ainda está bem distante dos avanços editoriaisque se iniciaram na década de 1930.

O prisioneiro-narrador em Memórias do cárcere englo-ba, literariamente, os que lhe são diferentes, os Fabianosque chegaram à cidade e, assim, o estatuto político da pri-são se alarga. No espaço do desvio, na utopia que se deseja“a-topia”, lugar fora do espaço, o texto denuncia as rela-ções que se desejam suprimir, a resistência é sugerida: anarrativa engloba o desvio. Obra de um sistema que osengendra e os expulsa do seu espaço, os prisioneiros co-muns estarão presentes na narrativa. O espaço da prisãonão se circunscreve aos contestadores do regime de Vargas.Memórias do cárcere engloba aqueles que coabitam com asfiguras do “Pavilhão dos primários”: advogados, médicos,psiquiatras, intelectuais.

A narrativa, nesse sentido, reafirma a sua e a nossadimensão trágica. Na tragédia grega, o espaço da “polis”era o lugar sagrado que não poderia ser contaminado pelomiasma emanado do indivíduo. Esse devia expiar o seu errocom a morte ou o exílio. No espaço de Memórias do cárcere,na visão constante dos morros cariocas e dos seres anfíbios– ora no morro, ora na cadeia –, hoje ainda o nosso entor-no, achamos que aquele que concebe o erro é responsávelpela máquina que o gera e, ao mesmo tempo, constrói osespaços de exclusão. Nisso, desloca a responsabilidade, lan-ça-a ao indivíduo, transfere-a do espaço coletivo para oespaço individual, e, assim, para encobrir a lógica do seufuncionamento, busca encontrar o “trágos”, o bode expia-tório, e isolá-lo; mas, nesse caso, perversão suprema, ele é aconseqüência e não o culpado. A dimensão trágica de Me-

mórias do cárcere reforça o seu caráter metonímico e a suaatualidade: sem pretender fazer obra de tese, a escrita deGraciliano ainda revela as nossas mazelas.

A tensão entre a presença e a ausência da escrita, asua tentativa de supressão e a sua força como resposta nosparecem sugerir a visão da escrita como elemento diferen-ciador. Ao estabelecer o paralelo entre a história de José ea sua, o prisioneiro reforça a nossa hipótese. A contigüi-

10 Cito parte do texto de Lago(2001, p.60): “Era tão perigosoo nosso Emídio – e a prova éque mofou cinqüenta dias noFernando Viana – que um diaos companheiros, debrincadeira, mostraram-lheuma fotografia de CarlosLacerda, perguntando se sabiaquem era. Riu como faziadiante de tudo que lhemostravam. Não era bem umrir, mais um arreganhar degengivas, que dentes já nãotinha há muito tempo. E,depois de muito rir, veio apergunta-resposta do homemque a patrulha do Exército, naEstação Engenheiro Pedreira,concluiu que fosse talvez olíder dos camponeses, ohomem que conduziria areforma agrária, que só podiaestar na gare da estação àespera dos companheiros comque ia internar-se no mato einiciar a guerrilha rural:– O Bijoli, né?”.

praça Pereira Coutinho,conseguiram que o poderpúblico internasse, no Pinel,o morador de Rua ManoelMenezes da Silva. Vale a penacitar a fala do secretáriomunicipal de Assistência eDesenvolvimento Social queconversou com o morador derua: “Ele apresenta todas ascaracterísticas de uma pessoamentalmente enferma: nãotrabalha, nem comocarroceiro, não consegue selimpar, dorme no chão, érefratário ao uso de alberguese equipamentos municipaispara alimentação e higiene”.Não se pense, no entanto, queesse pendor higienista sejarecente, haja vista o processode constituição das favelas doRio e as remoções das favelasem São Paulo que selocalizavam nas proximidadesde bairros ditos nobres.

11 Faço remissão a casopublicado no jornal Folha de

S.Paulo, no dia 22 de maio de2005 (p.C10), em quemoradores do bairro Vila NovaConceição, espaço com ometro mais caro da cidade, naânsia de limpar e higienizar a

234 Revista Brasileira de Literatura Comparada, n.12, 2008 A prisão e a escrita: desagregação e agregação em Memorias... 235

dade entre elas, o desejo que José tem também de confes-sar, aqui, por meio da oralidade, de cruzar a história e aHistória é ainda, na perspectiva do narrador, denúncia dospercalços da ausência do alfabeto:

Era vadio e ladrão; no começo da vida a repulsa damãe e as sovas do padrasto haviam-lhe fechado os cami-nhos direitos. Fugia de casa, voltava morto de fome, agüen-tava surras, tornava a fugir. Nem escola, nem trabalho. Como intuito de prolongar as ausências, obtivera ganhos miú-dos pondo em prática as habilidades fáceis de pivete edescuidista. Não sei como José iniciou a história, e causa-me espanto haver-me escolhido para confidente. [...]

O vagabundo falava manso e baixo, como num con-fessionário e a precisão de responsabilizar a família, justifi-car-se a um desconhecido, trazia-me ao espírito uma dúvida.Haveria alguma semelhança entre nós? Na verdade, a mi-nha infância não tinha sido muito melhor que a dele. Meupai fora um violento padrasto, minha mãe parecia odiar-me, e a lembrança deles me instigava a fazer um livro arespeito da bárbara educação nordestina. [...] Débil, sub-misso à regra, à censura e ao castigo, acomodara-me a pro-fissões consideradas honestas. Sem essas fracas virtudes,livre do alfabeto, nascido noutra classe, talvez me houves-se rebelado como José. (Ramos, 1969, v.2, p.169-70)

Na leitura que realizo, a narrativa parece sugerir ointercruzamento do desconhecimento da letra com a pri-são. A postura ultrapassa Memórias do cárcere e faz-mepensar no todo da obra de Graciliano, em que a letra podese expandir para a palavra. Das suas personagens, Fabianoalia-se aos prisioneiros comuns, ele também preso por nãosaber se explicar, por não encontrar as palavras; PauloHonório situa-se no limite: possui algumas palavras, maselas não lhe bastam para dizer a sua dor, daí o recurso àhipótese do taylorismo escritural. No caso do menino deInfância, o aprendizado atrelou-se à dor, mas o seu conhe-cimento levou-o a identificar a arrogância e a parvoíce noepisódio da pronúncia da palavra “Smiles”.12

As reflexões a respeito de José enviam-nos ao iníciode Memórias do cárcere, à atuação na instrução pública deAlagoas: a supressão do hino, “estupidez com solecismo”e a introdução nas escolas dos meninos mais pobres, cho-cando o interventor: “– Convidam-me para assistir a umaexposição de misérias”.13 Na fala do interventor, na exclu-são da letra dos meninos de Pajuçara reafirma-se a divisãodo espaço social reproduzida no interior da prisão. A en-trada na escrita seria subverter o lugar daqueles “cujo as-sunto não é cuidar dos ‘logoi’” (Rancière, 1995, p.84).

Ademais, não devemos reduzir a importância da es-crita que lemos na obra de Graciliano a uma dimensãoinstrumental. Para mim, Memórias do cárcere, como Infân-

cia e a sua obra ficcional estrito senso, representam umadefesa da escrita. E não apenas uma defesa em que se pro-jeta a ascensão ao mercado de trabalho, possuir “profis-sões consideradas honestas”: Memórias do cárcere, quiçátoda obra de Graciliano, é uma defesa da escrita como umdado do humano, que nos pode levar a pensar sobre o eu,o outro, o mundo. Paulo Honório, Luís escrevem textosautobiográficos assim como o preso-narrador de Memórias

do cárcere.A crença na identificação letra/luz pode, no entanto,

ser questionada. Nela se pode ler um quê de iluminismoao aliar o esclarecimento ao alfabeto. Mas, em situaçõesde barbárie tão acirradas, como aquelas em que vivemos,há que matizar a desconfiança da razão. Se aceitamos acrítica de Candido a certo liberalismo que pensa que bastaconstruir escolas para diminuir prisões, parece que Memó-

rias do cárcere deixa entrever o alfabeto como uma dasmolas de um distanciamento da animalização e do encur-ralamento do homem. No interior do horror do cárcere, aescrita, ainda que atormentada, obsoleta e difícil, inscre-ve-se do lado da vida: “necessário escrever, narrar os acon-tecimentos em que me embaraçava”. O mesmo se podedizer do espaço externo, como nos faz supor a inserção dosmeninos dos becos de Pajuçara nas escolas, sob os cuida-dos de Dona Jeni e do prisioneiro-narrador.

12 O episódio “Samuel Smiles”é, a meu ver um, entre vários,primores de Infância. Inicia-secom a referência à professora,Dona Angelina, que não ocorrigia quando ele tossia oupronunciava o nome Smilesde várias formas, passa peloconhecimento que ela, comoele, pronuncia o nome semcoerência: “presumi que, pelomenos nesse ponto, a rudezada mulher coincidia com aminha”. Chega em seguida aoprofessor que o corrigiu e nãose contradisse nas pronúnciasseguintes: “o professor nãopodia comparar-se aosviventes comuns. Grave, odedo na página, articulara:Smailes. Nas lições seguintespercebi que ele não secontradizia”. O final doepisódio narra osfreqüentadores da venda dopai do menino a rir-se da suapronúncia. “Ora, um dia, naloja, achava-me remoendo umjornal em voz alta [...] Derepente o meu conhecidoavultou no papel. Temperei agoela e exclamei: SamuelSmailes. Um dos caixeiroscensurou-me a ignorância ecorrigiu: Samuel Símiles.Outro caixeiro hesitou entreSímiles e Simíles. Repeti queera Smailes, e isto produziuhilaridade. [...]Cobriram-me de motejos eresolveram adotar a opiniãodo mulato: Samuel Símiles.Arriei, vencido.Mas sosseguei. Aquela vaianão me alcançava: feria pessoasabida. Achei apoio, indagueise as bobagens que a trincamaliciosa me atribuía erambobagens. Cresci um pouco,esteado no homem que só meensinou o nome de Samuel

Smiles, e me ensinou muito.Sentado no caixão, [...] ri-medos três. Idiotas. [...]‘Samuel Smiles, escritorcacete, prestou-me serviçoimenso’”. (Ramos, 1975,p.219, 221, 223).

13 O episódio é citado quandoD. Irene vai visitá-lo porocasião da sua prisão.Rememora-se o esforço dadiretora de escola em Pajuçaraque em quinze dias emcampanha pelo município fez apopulação da escola crescer de200 para 800 crianças, 600delas arrebanhadas nos becosmais pobres do município eque, embora vestidas comdecência para a visita dointerventor, levou àobservação sobre a exposiçãodas misérias.

236 Revista Brasileira de Literatura Comparada, n.12, 2008 A prisão e a escrita: desagregação e agregação em Memorias... 237

Se, no entanto, a escrita é denunciada como dado quepoderia alterar a situação desses homens, como no para-lelo entre o prisioneiro-narrador e José, a narrativa possuicaráter disjuntivo; a escrita não se esgota nessa visão. Aposse dela é elemento de angústia. O narrador-prisioneirode Memórias do cárcere tem a escrita, mas isso não eliminao tormento da expressão; consegue escapar do rolo social,tem profissão considerada honesta, insere-se no mercadode trabalho, mas tomba em outras agonias, seja a dificul-dade de encontrar a palavra justa, seja a de acertar-se coma narrativa; a dificuldade de escrever em meio à barbárie.A tensão que perpassa essa escrita, ainda quando ela serealiza, segundo a perspectiva do prisioneiro-narrador, semmuita reflexão, reforça que se está dentro da literatura.14

Ao trabalhar essas questões do ponto de vista da nar-rativa, Memórias do cárcere difere de estudo sociológicosobre as prisões e antecipa discussões. Na França, no iní-cio da década de 1970, mais precisamente entre os anosde 1970-1972, surge o “Grupo de Informação sobre as Pri-sões” (GIP) cujo intuito era dar a conhecer a prisão vistapelos prisioneiros. Composto por Foucault, Deleuze, Vidal-Naquet, Sartre, entre outros, o grupo surge a partir da proi-bição da existência da agremiação proletária maoísta e daretomada, pelo governo francês, de um discurso conserva-dor. A prisão de intelectuais e estudantes traz à tona ascondições dos cárceres franceses; mas, indagado em en-trevista sobre o intuito do grupo, Foucault reitera: “donner

le droit à la parole à tous ces gens que l´on a en quelque sorte

exclus du discours, exclus de la parole”15 (in Artières, 2003,p.67). Ainda que a idéia de Foucault seja mais abrangentedo que aquela que vínhamos desenvolvendo: a “parole” eo “discours” ultrapassando a letra escrita e se insinuandopara aqueles imobilizados, pelo poder, de manifestar-se; aidéia fala também dos prisioneiros comuns presentes emMemórias do cárcere. A voz que possuem, seja a profusãode narrativas que relatam, raramente ultrapassou os cer-cos da prisão. A escrita que lhes permitiria isso, mas certa-mente não só ela, não chegou até eles.

A prisão, entendida como lugar de exclusão, de sepa-ração dos liames que a une a outros espaços, em Memórias

do cárcere, será literariamente reconstituída como localde ligação com outros textos e homens. O espaço textualidentifica-se com o intercruzamento que não se realizaapenas na perspectiva da escrita, mas também da leitura.O texto de Graciliano, como a prisão, não é ponto, é su-perfície, é continuação e gerador de outros textos. Assim,a escrita sobre a prisão faz frente às determinações do es-paço. Se a retenção do prisioneiro-narrador, por exem-plo, procurava inibir a escrita, essa se reafirmará no inte-rior do texto como personagem onipresente, como núcleode uma tradição – a escrita prisional – e como posiciona-mento sobre as exclusões que ela pode significar, no casodos prisioneiros comuns.

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JESUS, Carolina M. de. Quarto de despejo. São Paulo: Edibolso,1976.

14 “Avizinhei-me dos meus

troços, afastei a calça e o

paletó, dobrados,

cuidadosamente, abri a valise,

retirei o bloco de papel e um

lápis. Arrumei tudo de novo,

sentei-me num caixão, pus-me

a escrever à luz que vinha da

escotilha. Provavelmente

fiquei horas a trabalhar

desordenadamente. Queria

atordoar-me, sem dúvida. As

letras se acavalavam, miúdas,

para economizar espaço, e as

entrelinhas eram tão exíguas

que as emendas se tornavam

difíceis. Realmente nem me

lembrava de corrigir a prosa

capenga. Faltava-me certeza

de poder um dia aproveitá-la”

(Ramos, 1969, v.1, p.117).

15 “dar o direito à palavra a

todos que, de certa forma,

foram excluídos do discurso,

excluídos da palavra”.

238 Revista Brasileira de Literatura Comparada, n.12, 2008 239

LAGO, Mário. Reminiscência do sol quadrado. São Paulo: CosacNaif,2001.

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ções lacanianas de um texto literário). São Paulo: Ática, 1983.

Experiência autoritária e construção daidentidade em A queda para o alto, de Herzer

Arnaldo Franco Junior*

RESUMO: A queda para o alto, de Sandra Mara Herzer, suscita

uma reflexão sobre as complexas relações que se estabelecem

entre contexto e experiência autoritários, escrita autobiográfi-

ca e construção da identidade do indivíduo marginalizado. Neste

artigo, pretendemos analisar as interações que se dão entre tais

instâncias, e como marcam o discurso e a construção da identi-

dade da protagonista desse relato da vida vivida dos quatorze

aos dezessete anos em uma unidade da Fundação Estadual do

Bem-Estar do Menor (Febem/SP).

PALAVRAS-CHAVE: Autobiografia, ficção, autoritarismo, identi-

dade, Herzer.

ABSTRACT: A queda para o alto, by Sandra Mara Herzer, gives

raise to discussions on the relations between context and expe-

rience (both authoritarians), autobiographical writing and con-

struction of identity by marginalized subjects. In this paper, we

intend to analyze the interaction among such instances and how

they mark main character’s discourse and identity in this tale

about her life from fourteen to seventeen years old at State Foun-

dation for Minor’s Welfare of São Paulo (Febem/SP), Brazil.

KEYWORDS: Autobiography, fiction, authoritarism, identity,

Herzer.

Introdução

A queda para o alto, misto de depoimento autobiográ-

fico com antologia de poemas, foi um dos grandes aconte-

cimentos editoriais do ano de 1982 e mantém-se, ainda

hoje, como um sucesso de vendas, ultrapassando, atual-

mente, a casa da 30ª edição.

* Professor assistente doutor

na Universidade Estadual

Paulista Júlio de Mesquita

Filho (Unesp), campus de

São José do Rio Preto (SP).

240 Revista Brasileira de Literatura Comparada, n.12, 2008 Experiência autoritária e construção da identidade em... 241

Assinado por Herzer, ex-interna da Fundação para oBem-Estar do Menor (Febem), o livro expõe, por meio daexperiência dramática de seu protagonista, o caráter pri-sional, violento e inadequado à recuperação de jovens de-linqüentes, marginais e/ou marginalizados da (e pela) insti-tuição. Amparada pelo então deputado Eduardo MatarazzoSuplicy, a ex-interna da Febem apresentou-lhe poesias epeças de teatro. Suplicy apresentou-a a Rose-Marie Muraropara uma eventual publicação de seus poemas, mas “Rose-Marie percebeu que elas teriam muito mais sentido se pu-dessem estar acompanhadas da própria história de An-derson Bigode (Big) ou de Sandra Mara Herzer” (Herzer,1983, p.11). À época da produção do livro, Herzer estavasob a responsabilidade legal de Suplicy: “Convidei-a paratrabalhar no gabinete durante o primeiro semestre e, emagosto de 1980, indiquei-a para a função de oficiallegislativo. Embora apenas com um ginásio precário feitona FEBEM, Herzer sabia escrever bem e datilografar, o quea ajudaria em seu trabalho” (in Herzer, 1983, p.11).

No prefácio que abre A queda para o alto, Suplicy nosinforma que, em julho de 1982, Herzer fora reprovada numconcurso de efetivação na Assembléia Legislativa de SãoPaulo, mas oferece, também, um dado que nos interessadestacar e que singulariza a trajetória de Herzer no livro:“Mesmo à entrada do exame, os responsáveis duvidaramde sua identidade: Um rapaz com o nome de Sandra Mara?”(ibidem, p.12).

Já se põe nessa observação algo que reaparece no pre-fácio de Suplicy como tentativa de explicação ao fato deque Herzer rejeitava o seu nome e a sua condição biológicade mulher, preferindo identificar-se como homem e assu-mindo Anderson Herzer como nome. Vejamos os trechos:

Havia uma enorme barreira para Herzer conseguir umlugar numa pensão ou arrumar um emprego regular. Pessoadoce, que tratava muito bem aos que lhe respeitavam, ca-paz de se desdobrar em esforços para fazer um bem a quemnecessitasse de alguma ajuda, porém, com uma dificuldadede ser aceita normalmente por todos. Pois ao longo de seu

tempo na FEBEM, pouco a pouco, e cada vez mais forte-mente, Herzer passou a se sentir e a se portar como se fossehomem. Não sei exatamente as razões, a FEBEM nunca lheexplicou, mas ocorreu com Herzer uma transformação.//Segundo o testemunho da [...] médica ginecologista doHospital das Clínicas, [...] os seus caracteres sexuais femi-ninos sofreram uma parada em seu desenvolvimento. Odiagnóstico completo de seu balanço hormonal ainda nãohavia sido completado, embora iniciado, por causa de seureceio a respeito de sua própria condição.// Em seu corpocresceram pelos, seu cabelo foi cortado como o de um ra-paz. Passou a usar roupas exclusivamente masculinas. Emtodas as unidades femininas da FEBEM, principalmente naVila Maria em que passou mais tempo, Herzer se tornou,mais que líder, “chefe de família”, pessoa responsável pormuitas iniciativas. (ibidem, p.10)

Suplicy aventa, ainda, a possibilidade de que “o desa-parecimento de seu namorado, de apelido ‘Bigode’” (ibi-dem, p.10) tenha sido um dos fatores “que provavelmentecontribuiu para a transformação da personalidade da me-nina Sandra Mara em Anderson Bigode Herzer” (ibidem,p.10). Independentemente disso, o trânsito entre nomespróprios é um traço relevante no livro de Herzer, que pas-sa do Sandra Mara Peruzzo herdado de seus pais naturaispara Sandra Mara Herzer após a orfandade e a adoção pe-los tios. A mudança seguinte, produzida por vontade eamor próprio – no sentido de Nuttin Jr. (1994)1 –, se dá,na Febem, alternadamente para Bigode, Anderson Bigode eAnderson Bigode Herzer (Big). Note-se, ainda no sentidode Nuttin Jr., que, nesse processo, a vinculação ao que foiperdido se manifesta na relação anagramática estabelecidaentre os prenomes Sandra e Anderson. Acreditamos queesse vínculo seja índice da melancolia do narrador-autor.

Suspendamos aqui, por redutora, a possibilidade deSandra/Anderson Herzer se tratar de um caso clínicode transexualismo ou hermafroditismo. O que A queda para

o alto nos revela das relações entre contexto e experiênciaautoritários e construção da identidade numa instituição

1 Jozef M. Nuttin Jr. (1994),

investigando, no campo

da psicologia social, as

relações entre a eleição de

determinados objetos de

escolha e o sentimento de

pertencimento a si próprio,

chegou à conclusão de que,

em situação de livre-escolha

em relação ao alfabeto,

tendemos a escolher, dele,

por um critério afetivo, as

letras que fazem parte de nosso

nome próprio e/ou nome de

família. Tais letras de amor-

próprio evidenciariam, na

preferência afetiva, o

sentimento e a percepção

de pertencimento a si próprio

por oposição àquelas que,

rejeitadas, evidenciariam o

sentimento/percepção de que

algo é alheio, próprio da

alteridade.

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fechada de natureza prisional? Ele nos revela que, articu-lados, esses dois dados, com seus respectivos processos,são capazes de produzir uma experiência da impossibilida-de de ser e de existir para-além das relações autoritárias eviolentas nas quais, por desafio e/ou resistência, a identi-dade daquele que experimenta a marginalização se baseiapara constituir-se e afirmar-se. Isso ganha uma configura-ção específica no caso de uma orientação sexual de natu-reza homossexual.

Aspectos da constituição da identidade em

A queda para o alto

Há alguns aspectos de A queda para o alto que, singu-larizando o livro, se revelam perturbadores. Especialmentese os considerarmos no contexto de uma reflexão que sedisponha a abordar os laços que, de modo dramático,se estabelecem entre o exercício de um poder autoritárioe violento – identificado com os aspectos selvagens dopatriarcalismo e projetado como expressão da masculi-nidade no contexto de uma instituição prisional –, e aconstrução da identidade de crianças e adolescentes que,experimentando a marginalização e o confinamento su-postamente voltado para a correção de seus “desvios”, seconstitui em diálogo, apesar das desigualdades pressupos-tas na relação entre autoridades e internos, com os valo-res afirmados nas práticas cotidianas de arbitrariedade,autoritarismo, violência física e simbólica.

Um primeiro aspecto diz respeito ao nome e à identi-dade do narrador-autor. Herzer trata a si mesma no mas-culino, concedendo em tratar-se no feminino apenas noinício do livro e em pouquíssimos trechos, tratamento esseque é funcional para uma das finalidades do seu texto queé se afirmar, assumindo a posição de herói de seu relato,como homem. E, a partir daí, fazer-se reconhecer pelooutro, seu leitor, como homem. É, pois, Anderson Herzerquem se afirma no livro, tendo Sandra Mara Herzer comobase a partir da qual se constituiu, pois que essa primeira

identidade e essa primeira condição (de mulher) funcio-nam como contraponto que, alternadamente, presta-se –via negação – para a afirmação da supremacia da orienta-ção sexual sobre o corpo biológico e sobre a primeira baseidentitária à qual tanto a família como os representantesda Febem insistem em conformá-la e confiná-la. Ainda,de modo afirmativo, sublinha a singularidade de seu amorpor outras mulheres, identificando-se, nas relações amo-rosas, com o homem que defende e protege a amada ecumprindo, aí, também uma função heróica e ambigua-mente maternal em relação às protegidas e às amadas.

Ao sublinhar, no relato autobiográfico, uma identida-de masculina vinculada ao nome que constrói para si,Herzer nos oferece uma possível pista para que reconhe-çamos que, em sua experiência adolescente na Febem,caracterizada por práticas sistemáticas de violência físicae simbólica, a construção de uma identidade masculina éa saída que encontrou para, além de afirmar o seu desejopor mulheres, resistir e sobreviver tanto às surras regadasa murros, tapas na cara, golpes de cassetete, bem como atrabalhos físicos extenuantes e humilhantes quanto à con-tínua humilhação de ter a sua condição feminina subli-nhada como inferior e/ou anormal pelo exercício brutalda autoridade masculina do então diretor da unidade daFebem da Vila Maria – fato que, dada a natureza institu-cional da Febem, estendia-se também ao exercício dosdemais agentes da unidade.

Ao lermos A queda para o alto, não é difícil reconhecerque há uma polarização das identidades masculinas repre-sentadas pelo diretor da instituição e por Herzer. À identi-dade masculina negativa do diretor e de seus agentes con-trapõe-se, por meio da rebeldia, das transgressões e,também, da delicadeza e da doçura, a identidade masculi-na positiva de Anderson Bigode Herzer, nome e ser emque, segundo sugestão do relato, se encontram amalgama-das as qualidades da sensibilidade poética e da delicadezafeminina de Sandra Mara e da coragem, da liderança e dadisposição para a lutar pela dignidade, pelo amor, pelo di-reito ao prazer e pela liberdade de Anderson Bigode.

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O relato, entretanto, também nos sugere que a cons-trução dessa identidade masculina passou pela identifica-ção com a identidade masculina negativa em relação àqual se contrapõe. É preciso ser um “machão” e suportar aviolência e a arbitrariedade como tal para resistir à afir-mação masculina negativa de um homem que, sendo odiretor da unidade da Febem, encarna tanto a autoridadelegalmente constituída como, na prática, os desmandos,caprichos e crueldades de um poder quase absoluto sobreas vidas que lhe foram confiadas. Ser um “machão”, aí,implica portar e construir, para si, as qualidades masculi-nas a partir das quais se enfrentará o algoz mostrando-se,nesse enfrentamento, melhor do que ele por portar asmesmas qualidades, mas não exercitá-las de modo cruel,arbitrário ou gratuitamente violento. Dois dados do livrosão importantes para uma melhor compreensão desse as-pecto: a) a construção de um conflito dramático entre odiretor da Febem da Vila Maria e Anderson Bigode Herzer,conflito que se desenvolve por quase todo o relato, inten-sificando-se à medida que Herzer se afirma como Bigodetanto naquela instituição como, por meio de seus feitos ede sua liderança, estendendo para outras unidades a suafama e o reconhecimento de seu nome; b) a absoluta au-sência, no relato de Herzer, de referências a (prováveis)conflitos entre ela e outras líderes das unidades da Febempelas quais passou. “Ser homem” será necessário para, porum lado, afirmar-se para o outro como tão ou mais ho-mem do que ele e, por outro lado, para negar, em si, acondição fraca de mulher-objeto de violência, abuso ehumilhações naturalizadas pelas práticas institucionais daFebem e, na história pessoal de Herzer, uma espécie decontinuidade das violências sofridas na família: tentativade abuso sexual e marginalização por homossexualidade.

Um terrível paradoxo se instala no processo de cons-trução identitária masculina de Herzer pelo fato de que,segundo sugestão do relato, essa identidade reivindica umreconhecimento de sua representação masculina exata-mente por esses algozes machos. Isso, por meio de seus

feitos e de sua resistência heróica à violência, ao arbítrioe às contínuas humilhações por meio das quais é re-conduzida à sua condição de mulher por esses mesmosalgozes. O conflito de Herzer com o diretor da Febem daVila Maria é, disso, a mais gritante evidência, mas tal con-flito é estruturalmente reproduzido nos demais embatescom agentes das demais unidades da Febem pelas quais aautora também passou.

A identidade feminina de Sandra Mara Herzer, já sub-metida a um simulacro quando de sua assunção do nomeAnderson Bigode Herzer na Febem, sofre, nesse conflito,uma segunda negação. Afinal, é com murros e pontapésque nela batem. Autoridade, poder, sadismo e machezase mesclam, pois, nas práticas afirmadas pelo diretor eseus subordinados sobre os corpos de meninas e moçasque, encarceradas na instituição, se dividirão em dois gru-pos: as meninas e os “machões” – com estes últimos ocu-pando a posição de “chefes de família”, líderes protetorese, em razão disso, de machos que podem ter uma ou vá-rias mulheres.

Os desafios à autoridade do diretor, a liderança na rea-lização de ações de rebeldia e nas fugas, o suportar os casti-gos e humilhações, tudo isso se presta, nesse terrível para-doxo, também à afirmação da identidade masculina deAnderson Herzer. Embora nos embates regados a espanca-mentos e castigos, as palavras do diretor e dos agentes ins-titucionais a neguem, essa identidade é reconhecida pormeio das ações violentas e arbitrárias que, ultrapassandoos limites legais estabelecidos para o exercício da funçãoprofissional na instituição, se afirmam como ações de ma-cho sobre o corpo feminino de Herzer e sobre seu processode construção de uma identidade masculina como tam-bém sobre os demais “machões” da Febem.

A brutalização do corpo por meio da violência física,o arbítrio autoritário da instituição e, por fim, a violênciasimbólica reiterada no conflito em que a autoridade mas-culina se afirma sobre o corpo feminino, regozijando-se,na fala, de sua condição masculina concorrem, na experiên-

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cia relatada em A queda para o alto, para a afirmação daidentidade masculina de Anderson Bigode Herzer, o heróique, após fazer o seu relato autobiográfico e acrescentar aele uma seleta de seus poemas, encontra no suicídio si-multaneamente uma saída para o impasse de ter de existirfora dos muros e das relações institucionais da Febem eum meio de afirmação de sua (im)possível identidade mas-culina. Seu suicídio é cifradamente anunciado no poemaque, em 5 de agosto de 1982, entrega, assinalando a auto-ria de Anderson Herzer, a Eduardo Suplicy pouco depoisde sua exoneração da Assembléia Legislativa do Estadode São Paulo:

MINHA VIDA, MEU APLAUSO

Fiz de minha vida um enorme palco/ sem atores, paraa peça em cartaz/ sem ninguém para aplaudir este meu pran-to/ que vai pingando e uma poça no palco se faz./ Palcotriste é meu mundo desabitado/ solitário me apresenta comoastro/ astro que chora, ri e se curva à derrota/ e derrotadomuito mais astro me faço./ Todo mundo reparou no meuolhar triste/ mas todo mundo se esqueceu de minha es-tréia/ pois todo mundo tinha um outro compromisso./ Masum dia meu palco, escuro, continuou/ e muita gente curiosa

veio me ver/ viram no palco um corpo já estendido/ eram meus

fãs que vieram pra me ver morrer./ Esta noite foi a noite emque virei astro/ a multidão estava lá, atenta como eu que-ria/ suspirei eterna e vitoriosamente/ pois ali o personagem nas-

cia/ e eu, ator do mundo, com minha solidão.../ morria!

Anderson Herzer(Herzer, 1983, p.12, grifos nossos)

Esse poema antecipa a dificuldade posta para o futuroleitor e estudioso, “essa gente curiosa”, o que seria um se-gundo aspecto perturbador do texto do ponto de vista desua recepção. Fixemo-nos, no entanto, na relação entrehistória vivida, autobiografia e ficção.

O indiciamento do suicídio, metaforizado no espetá-culo descrito no poema entregue a Suplicy (ver grifos nacitação), aparecerá mais de uma vez no livro, particular-mente nos poemas da segunda parte. O suicídio, aí, fica

sob o signo de uma memória do futuro (Bakhtin, 1992,p.139), pois, fora da obra, já aparece nela indiciado comopasso a ser dado para completá-la. Diferenciando vida eobra de arte, João Wanderley Geraldi (2003, p.45) tem umainteressante observação vinculada ao conceito bakhtiniano:

Se, no mundo estético, o futuro da personagem e dosacontecimentos são desde já “conhecidos” do autor [...],no mundo ético, tempo dos acontecimentos, cada um tema responsabilidade pela ação concreta definida não a partirdo passado – que lhe dá condições de existência como umpré-dado –, mas a partir do futuro, cuja imagem construídano presente orienta as direções e os sentidos das ações. Édo futuro que tiramos os valores com que qualificamos aação do presente e com que estamos sempre revisitando erecompreendendo o passado.

Pode-se estabelecer uma vinculação do conceito dememória do futuro com os processos de elaboração do lutoe da melancolia. Segundo Freud (1981, p.2094), a elabo-ração do luto permite que o eu se liberte da dor da perda ese reintegre à vida e às novas perspectivas que nela seabrem, já a elaboração da melancolia barra a libertaçãoporque a libido permanece presa ao eu, “sirviendo para

establecer una identificación del yo com el objeto abandona-

do”.2 O autor de um relato autobiográfico e testemunhalque experimentou uma catástrofe recupera o que foi(re)constituindo-se, mas o faz porque uma memória dofuturo está inscrita nesse processo. No caso de Herzer, amemória do futuro se inscreve no processo melancólico,manifestando-se no indiciamento do suicídio – fato queela concretizará depois de o livro ficar pronto, mas antesde que ele seja efetivamente lançado.

Há, no processo de construção da obra de Herzer, pelomenos dois modos de aparecimento da memória do futu-ro: o ético e o estético. Do ponto de vista ético, já na bio-grafia de Herzer, pode-se notar um modo de antecipaçãoda tragédia que está por vir. Dos pais adotivos, o relatoregistra: “Meu pai tinha uma perfumaria. Minha mãe mui-

2 “Servindo para estabelecer

uma identificação do Eu (ego)

com o objeto abandonado”,

tradução minha.

248 Revista Brasileira de Literatura Comparada, n.12, 2008 Experiência autoritária e construção da identidade em... 249

tas vezes vendia esses produtos e ia até algumas casasentregá-los” (Herzer, 1983, p.38). Numa dessas saídas damãe adotiva, a menina a segue e, descobrindo que ela traíao padrasto, revela a ele a verdade, instalando uma crise nafamília. Tempos depois, trabalhando na perfumaria, dá-sea tentativa de sedução por parte do padrasto:

senti seu corpo tocar no meu corpo, e suas mãos me aper-taram, aquelas mãos que antes eram tão doces e tão pater-nas, tornaram-se imundas e nojentas. [...] Eu me virei con-tra ele, estupidamente, tentando afastá-lo de mim. Conseguime livrar de suas garras sujas, correndo em direção à porta:mas ele me alcançou e eu, tentando fugir, me debatia. Elese irritou e golpeou com toda a sua força o meu braço es-querdo. Depois, pelo visto, se arrependeu e me soltou.(ibidem, p.41)

A partir daí, Herzer passa a beber, a sair à noite e achegar tarde em casa – o que, segundo o relato, culminacom sua internação na Febem por ação dos pais adotivos.É curioso o fato de que a estrutura inicial do relato tenhaduas “etapas” ou “modos”: a) o início, até o capítulo VI,enfatiza a seqüência de fatos que vai da origem à internaçãona Febem; b) no capítulo VII, o narrador faz uma paradae, com certa hesitação e cuidados, passa ao relato dos fa-tos de uma perspectiva mais íntima, emocional. Esse per-curso de escrita como que emula o enfrentamento davivência traumática: o núcleo doloroso só emerge depoisde sitiado pela palavra, passando do circunstancial oufactual para a experiência subjetiva dos fatos que, mani-festa, atesta uma sensibilidade e uma existência únicas.

O suicídio de Herzer, antecipando o espetáculo dolançamento de seu livro, é, pois, o terceiro aspecto pertur-bador a ser considerado tanto no que se refere à singu-larização de A queda para o alto quanto para uma reflexãoque, como a que aqui esboçamos, pretenda abordar os la-ços dramaticamente estabelecidos entre o exercício de umpoder autoritário e violento, identificado com uma repre-sentação agressiva e autoritária da masculinidade, e a cons-

trução da identidade da menina que, desejando e amandomulheres e experimentando a marginalização e o con-finamento em instituição de caráter prisional, se vê obri-gada, de algum modo, a construir, para si, uma identidademasculina tanto para afirmar-se em seu direito ao amor eao prazer como para resistir e sobreviver a um processomortal de inferiorização, negação e aniquilamento sociale existencial.

Ao lançar mão da morte como instituição, o suicídiode Herzer autentica o seu relato e desficcionaliza a suamemória, conferindo-lhe o estatuto de uma verdade indi-vidual que exige ser ouvida e, também, afirma a sua iden-tidade como algo paradoxalmente impossível porque so-mente possível, após a escrita e a publicação do livro, nainterrupção da continuidade da existência. Ele é, de certaforma, o meio encontrado por Anderson Herzer para fixara sua identidade, tornando-a impermeável a questio-namentos, tentativas de “correção” ou de conformaçãosocial. Nesse sentido, ele é, também, resultado do reco-nhecimento de que, para a identidade de Anderson Herzer,não existe lugar fora dos muros e das relações de au-toritarismo e violência por ele conhecidas também dentroda Febem e, após algum tempo, por ele dominadas. A ins-tituição que concorre para a construção dessa identidadeé, pois, a mesma que a tornará inviável fora dos seus limi-tes – o que nos remete a uma das importantes lições deFoucault (1978) em seu História da loucura: a instituiçãocorrecional cria os tipos sociais e a idéia de anormalidade(doença, desvio ou crime) da qual os investe para legiti-mar-se a si mesma e às suas práticas.

Coincidência ou não, a estrutura do livro reforça aidéia de que o suicídio é o resultado inexorável do proces-so protagonizado por Sandra/Anderson Herzer. As duaspartes que constituem o livro remetem a dois grandes gê-neros de natureza e propósitos distintos, a saber: o épico eo lírico. No relato autobiográfico escrito em primeira pes-soa e no masculino, o narrador cumpre a função de heróiépico e tomamos contato tanto com a sua origem como,

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especialmente, com seus feitos. É ao seu bom combate,pois, que assistimos, instados a estabelecer, com ele, umvínculo catártico que o reconhece não apenas como víti-ma, mas também como líder cuja rebeldia porta os valorespositivos do amor, da delicadeza, da rejeição ao auto-ritarismo e à violência e, por fim, do anseio à liberdade e àdignidade. Construído o herói no relato autobiográfico,afirmada a sua coragem de denunciar a estrutura injustada Febem e as irregularidades ali vividas e presenciadas e,também, reconhecida a sua identidade masculina singu-lar, passa-se à expressão poética dessa identidade, que, pormeio da lírica, canta e expõe seus amores, medos, angústias,sonhos e frustrações.

Considerações finais

O que se projeta – para além dessa experiência regis-trada num livro em que o lembrar é, simultaneamente,testemunhar e reviver – como possibilidade de existênciapara a identidade ali afirmada? Para Anderson Herzer,pelo visto, nada além de uma sua afirmação pelo suicídio,meio paradoxal de, pelo aniquilamento, manter intacta aintegridade de seu ser e de sua identidade, reconhecidas,nesse ato extremo vinculado à elaboração da melancolia,como inviáveis:

Estado psicológico

E de chorar, já sou pranto;/ de relembrar, esquecido,/nas mãos, palmas calejadas/ cavando desejos, proibidos./ Ede pensar, já sou louco,/ não há encontro pra mim,/ nãotenho nome em tua lista,/ não iniciei, sou sem fim./ Comtantos erros passados,/ ganhei má fama sozinho,/ com tan-tos passos errados/ não encontrei meu caminho./ Tenteiabrir as mãos e não vi nada,/ nem mesmo aquele beijo damulher falada,/ nem aquele antigo abraço que ganhei,/ eulutei... perdi! Porque contigo errei./ E de pecados, sou ne-gro,/ de relutar, sou sem forças,/ de persistir, sou sem vista,/de agredir, comunista!/ Não tenho eira nem beira,/ não te-nho amor para amar,/ não posso amar quem não aceita/

lutar e ver fracassar./ E vou seguindo sem luzes,/ ninguémverá minha partida,/ não quero deixar saudades,/ nem pran-tos na despedida./ E se me quer na lembrança,/ guarde meu

nome contigo/ meu nome é nome, só nome/ é simples, mas deci-

sivo. Na flor das noites de sangue/ eu parto sem chorar dor,/ eu

parto, mas deixo contigo/ o que fui aqui,/ ... deixo amor. (Herzer,1983, p.158-9, grifos nossos)

O suicídio integra o livro autobiográfico, instituin-do-se como parte da obra escrita por Herzer. É, por assimdizer, o gran finale que enlaça indissoluvelmente obra evida, figura de complexa natureza e significação: a um sótempo metáfora, símbolo e alegoria – vazadas por doloro-sa e amarga ironia – da queda para o alto. Ao suicidar-se,o herói poeta eterniza o nome que, como signo de amorpróprio, construiu para si, tanto no mundo ético como nomundo estético, sem, contudo, deixar à vista o desli-zamento entre duas identidades: Sandra (San – dra)/Anderson (An – der – son).

Referências

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homem interior, da alma). In: . Estética da criação verbal. São

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FREUD, Sigmund. Duelo y melancolía. In: . Obras completas.

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GERALDI, João Wanderley. A diferença identifica. A desigualda-

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In: KRAMER, S.; FREITAS, M. T. (Org.) Ciências humanas e pes-

quisa – Leituras de Mikhail Bakhtin. São Paulo: Cortez, 2003. v.107,

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HERZER, Sandra Mara. A queda para o alto. 8.ed. Petrópolis: Vo-

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NUTTIN JUNIOR, Jozef M. Lettres d’amour-propre: conséquences

affectives de la pure appartenance à soi. In: MOSCOVICI, S. (Org.)

Psychologie sociale des relations à autrui. Paris: Nathan Université,

1994. p.11-39.

253

Poética da malandragem:Memórias de um gigolô, de Marcos Rey

Jean Pierre Chauvin*

RESUMO: Memórias de um gigolô, publicado em 1968, marca oinício do regime militar no Brasil, enquanto retoma a “literatu-ra urbana” de melhor qualidade. Protagonizado por um malan-dro que relembra o Leonardo (Memórias de um sargento de milí-

cias) de Manuel Antônio de Almeida, o romance de MarcosRey tem algo do sarcasmo machadiano e do deboche barretiano.Estilisticamente, está mais próximo dos malandros criados du-rante nosso romantismo e realismo que de Marques Rebelo,Rubem Fonseca ou Paulo Lins.

PALAVRAS-CHAVE: Marcos Rey, Memórias de um gigolô, ManuelAntônio de Almeida, Machado de Assis.

ABSTRACT: Memórias de um gigolô, published in 1968, marksthe beginning of the military regimen in Brazil, while it retakesa better quality “urban literature”. Leaded by one smart guythat remakes Leonardo (Memórias de um sargento de milícias) byManuel Antonio de Almeida, Marcos Rey’s novel has some-thing of the Machado de Assis’ sarcasm and Lima Barreto’sdebauch. In a stylistic point of view, it is closer to the figurecreated by our romantic or realistic writers and distant fromMarques Rebelo, Rubem Fonseca or Paulo Lins.

KEYWORDS: Marcos Rey, Memórias de um gigolô, Manuel Antôniode Almeida, Machado de Assis.

“O pior é isso, ter que justificar a miséria, explicá-

la, catalogá-la e depois pedir desculpas.”

(Memórias de um gigolô, p.140)

I

Marcos Rey estreou na literatura em 1953, aos 28anos, e só parou pouco antes de morrer (1999). Escritor

* Professor doutor

pesquisador na Faculdade

de Tecnologia (Fatec) –

São Paulo (SP).

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versátil – do romance de tipos paulistanos à literaturainfanto-juvenil, repleta de aventuras e mistérios –, a verveé um dos traços mais marcantes em seus livros. Polígrafocomo Machado, o autor

ganhou renome graças às suas crônicas semanais, que re-velavam meandros pouco visitados de S. Paulo [...]: o olharvoltado para a cidade e os seus mistérios, a acuidade napercepção e fixação dos tipos humanos mais representati-vos do jeito de ser paulistano, expressos numa linguagemdesataviada, colhida na fonte popular, repassada de senti-mento e empatia pelos humildes, como uma espécie deBalzac dos humilhados e ofendidos, dos marginais, dos boê-mios. (Moisés, 2001, p.357)

Publicado há quatro décadas (1968), Memórias de um

gigolô é obra cativante, produzida por um escritor reconhe-cidamente habilidoso em termos de invencionice, multi-plicidade de temas e enredo, verificados na notável arti-culação dessa trama.

Mariano é um dos grandes protagonistas da chamada“literatura urbana”, que teve início em nosso romantismo,com Manuel Antônio Almeida (Memórias de um sargento

de milícias, 1855), refinou-se com o realismo de Machadode Assis (Memórias póstumas de Brás Cubas, 1881) e o na-turalismo de Aluísio Azevedo (O cortiço, 1890). O tematambém foi cultivado por Lima Barreto (Numa e a ninfa,1915), Marques Rebelo (Marafa, 1935) e Cyro dos Anjos(O amanuense Belmiro, 1937).

É curioso que de tempos em tempos a ambígua figurado malandro (seja ele carioca, seja paulistano) ressurge –nítida e escorregadia –, em meio a enredos da melhor qua-lidade. É notória a identificação entre esse verdadeiro ar-quétipo nacional e seus variados tipos com o elementourbano. Em certos momentos, o narrador Mariano lembrao sexagenário Gonzaga de Sá, de Lima Barreto:

Gostava do mar, porém meu amor era pela cidade. Souum homem metropolitano, o maior inimigo, em todo o Bra-

sil, da moda de viola. Fosse eu ditador, o que pode aconte-cer de imprevisto a qualquer cidadão sul-americano, exila-ria os repentistas para a Austrália, trancafiaria nas masmor-ras todos os caipiras do rádio e proibiria definitivamente oculto ao boitatá. (Rey, 2001, p.72-3)

Mais recentemente, Cidade de Deus, de Paulo Lins,parece ter reavivado as narrativas que dão lugar de proe-minência à malandragem e à violência. Colocados sob essaóptica, e por isso mesmo, os livros mencionados não de-vem ser encarados como parte de um esquema simplista.As datas aqui lembradas – 1854/55 (Leonardo); 1881/82(Brás Cubas); 1935 (Teixeirinha); 1968 (Mariano) e 1997(Inferninho) – parecem indicar a existência de ciclos li-terários, protagonizados por sujeitos à margem das nor-mas de conduta.

As Memórias de um sargento de milícias ambientam-seno Rio de Janeiro, ao tempo da chegada da família real,fugida de Junot. Já Memórias póstumas de Brás Cubas re-trata, do ponto de vista de um malandro de classe, os anosque antecederam o fim da escravidão ao longo do Segun-do Império. Marafa revela o subúrbio do samba ao crime,que desponta em meio às obras de constante re-urbaniza-ção do Rio de Janeiro. Memórias de um gigolô nasce com aditadura. Cidade de Deus lembra ao leitor a violenta facedos excluídos e marginalizados em meio ao chamado “po-der paralelo” à autoridade oficial.

II

Certos elementos de nossa história permitiriam repa-rar que cada romance protagonizado por malandros retra-ta épocas marcantes, nodais da política brasileira. Convi-vendo com homens simpáticos à direita e à esquerda,Mariano ganha e perde ao sabor das ideologias, como seignorasse o alcance de sua própria experiência: “Minhacarreira de cantor sindical terminou coincidentemente coma queda do Estado Novo em 1945” (ibidem, p.131).

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Alternando doses de humor e ironia, graça ou tragé-dia, determinados autores tiram certos assuntos debaixodo denso tapete verde e amarelo. Os ingredientes a movertais composições são os indivíduos ignorados pelo sensocomum, com ou sem escola. Tais figuras parecem diluídasnas promessas de governantes conciliatórios. Não há dúvi-da de que, nesses casos, o papel do livro também é regis-trar o outro lado das farsas políticas que vigoram nestepaís desde a colônia.

No Brasil, Império ou República, diante dos suspeitosíndices que supõem medir o analfabetismo e o poder aqui-sitivo, abordar a marginalidade também propiciou uma li-teratura pouco ou nada romântica, bem afastada das atuaisestantes com livros de auto-ajuda.

O malandro algo ingênuo de Manuel Antônio deAlmeida; os cínicos de Machado de Assis; os oportunistasde Aluísio Azevedo e Lima Barreto; os sujeitos desajustadose remediados de Marques Rebelo, Cyro dos Anjos e Mar-cos Rey; os bandidos de Paulo Lins, todos sentem, fazemou ilustram os avanços e retrocessos de uma sociedadecarente, vitimada pela violência e corrupção ostensiva degovernantes omissos.

É bem verdade que os tempos e homens são outros,por isso o malandro esperto cedeu lugar à malandragemde ofício. Por esse motivo, João Cezar de Castro Rocha(2004) sentia necessidade de atualizar a dialética da ma-

landragem, proposta por Antonio Candido em 1970:

As teorias de Candido e de DaMatta esclarecem for-mas particulares de mediação social, com base sobretudono contato pessoal e no universo do favor, moedas corren-tes no idioma próprio da dialética da malandragem e daordem relacional. Mas em que medida essas abordagensainda constituem um modelo de interpretação válido parao Brasil contemporâneo? É indiscutível a permanência dalógica do favor como motor da vida social.

Paralelamente à evolução do malandro/marginal, noâmbito da representação literária, há o acompanhamento

à meia distância da crítica. O ponto alto foi demonstradopor Antonio Candido (2004, p.32), cujo ensaio, a despei-to da hipótese de Castro Rocha, continua sendo ponto departida obrigatório para uma segura e aproximação dessepoderoso arquétipo nacional, entre os “pólos da ordem eda desordem”.

Inegavelmente, o malandro evoluiu. E sua configura-ção também: basta ver a linguagem neo-realista do con-tista e romancista Rubem Fonseca e de Paulo Lins. A ques-tão é que as narrativas pouco sutis, pautadas pela cruezadas falas e gestos das personagens, podem ser vistas comocatalisadoras do grotesco e mesmo do bizarro. Determi-nadas obras parecem mais exercícios ideológicos que es-téticos. Estão marcadas por uma “narrativa brutalista”,de que fala Alfredo Bosi, ao comentar o conto brasileirocontemporâneo.

Não custa lembrar que se a classe média escorrega en-tre ideologias opostas, a figura de certos malandros oscilaem sua própria camada. O movimento não impede o seuacesso, ainda que artificial, aos demais grupos, graças aopânico que provoca em uns e o favor que obtém de outros.

Evidentemente, o tom de Marcos Rey está longe daopressão do “percor” (perfurar e cortar), decifrada peloadvogado Mandrake, de Rubem Fonseca (1983, p.66); edos gritos de ordem “– Fica aí, rapá!” de Paulo Lins (2002,p.169). Nas memórias nem tão a sério do gigolô e histriãoMariano, o que seria um drama vem abrandado pelo cará-ter lúdico. Em Memórias de um gigolô, portanto, a malan-dragem continuava no meio, não no extremo.

A auto-avaliação que faz o gigolô é contundente etambém nos leva de um pólo a outro, como se identifica-dos com o protagonista, em maior ou menor medida: “Fizo que pude, ora sem tostão, ora com dinheiro que caía docéu, mas passando à distância das fábricas e de todo lugaronde se trabalha no duro. Já pensaram no que seria demim se fosse obrigado a produzir rolimãs e esquadrias me-tálicas?” (Rey, 2001, p.5).

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A tese de Antonio Candido a respeito das Memórias

de um sargento de milícias ajuda a mostrar as diferenças entreLeonardo (Manuel Antônio de Almeida) e Mariano (Mar-cos Rey):

Mais coerente com a vocação de fantoche, Leonardonada conclui, nada aprende; e o fato de ser o livro narradona terceira pessoa facilita esta inconsistência, pois cabe aonarrador fazer as poucas reflexões morais, no geral leve-mente cínicas e em todo caso otimistas [...]. (Candido,2004, p.21)

Para o leitor, o acesso à consciência de Mariano podeser mais fácil. Memórias de um gigolô – diferentemente deMemórias de um sargento de milícias –, vem narrado em pri-meira pessoa e o protagonista é uma espécie de me-morialista. Um homem de relativa autocrítica que apreciatecer comentários sarcásticos sobre suas vítimas e relem-brar, saudoso, os amores e golpes que aplicou.

Fazendo a narrativa deslizar, o malandro – desconta-dos os diferentes comportamentos, graus de criminalidadee violência – lembra um ser ágil e sorrateiro, capaz de secamuflar socialmente, do terno ao samba-canção. Às ve-zes, ele nos assalta, escapando à condição de Homo fictus,proposta por Forster (2005, p.80). Sucessor à altura deLeonardo e Brás Cubas, Mariano retoma a tradição de pro-vocar quem o lê: “Lu era assim, gostava das pessoas. Mui-to diferente, leitor, de você, por exemplo, que só gosta dosfamiliares e pensa que já faz muito” (Rey, 2001, p.118).

De modo geral, o malandro é hábil no trato com la-drões, cafetinas, prostitutas, donos de escolas de samba,empresários, credores do aluguel, donos de bares, bichei-ros e políticos, como se percebe na trajetória instável doTeixeirinha (Marafa), de Marques Rebelo (2003, p.18):“Se a vida encrencava, o que acontecia freqüentemente,Teixeirinha não pestanejava – passava o calote bonito nosenhorio e mudava-se para outro quarto”.

Paradoxal por excelência, ficou dito que o malandroresponde por certo contato, ainda que à revelia, entre as

classes. Não se trata de integração, já que os contatos sãosuperficiais e instantâneos. Na medida de sua oscilaçãosocial, por sua vez, enquanto representa um canal entreseu grupo social com as classes intermediárias e a elite, éum dos principais desagregadores de sua própria camada,tornando-o duplamente ambíguo, sem fixidez.

De uma vista panorâmica de nossa literatura, cabeperguntar se tais figuras nascem espontaneamente. Seriamprotagonistas originais, concebidos de tempos em tempos?Ou resultariam de um projeto tácito dos autores de dife-rentes gerações, dispostos a perpetuar a sobrevida dos tipos?Cada malandro aparece emblematicamente, como uma vozalternativa ao poder instituído, em meio aos picos de criseinstitucional no Brasil.

De qualquer modo, não se deve desprezar o interessedo público leitor nas façanhas de Leonardo, publicadasquinzenalmente pelo satírico Manuel Antônio de Al-meida, em meados do século XIX. Afinal, o que leva umescritor canônico a fazer de seu protagonista o ocioso ecínico Brás Cubas? O que explica Marques Rebelo ter ven-cido o concurso Machado de Assis, em 1935, com umromance de dupla narrativa, entre um homem de bem(José) e o perverso Teixeirinha? Por que, afinal, Memórias

de um gigolô e Cidade de Deus – com tons absolutamentedíspares, do cinismo à brutalidade – tornaram-se filmesde grande sucesso?

O fato é que as representações do malandro, escritasou encenadas, têm leitura ou audiência garantida. Em certamedida, tais personagens fascinam, pois nos aproximamde nossas próprias inquietações. Recusando ou aceitandosuas atitudes (das mais infantis e inocentes às mais cruéise violentas), diante do malandro pode-se dizer, com umasúbita moral, cristã ou não, algo como: “não sou exata-

mente assim; eu não agiria desse modo”. Afora certo graude identificação/não-identificação (aceitação/recusa) como malandro dos livros ou das telas, leitores e telespectadoresparecem reconhecer em tais figuras escapadiças, traços tí-picos e espontâneos: brasileiros.

260 Revista Brasileira de Literatura Comparada, n.12, 2008 Poética da malandragem: Memórias de um gigolô, de Marcos Rey 261

No romance de Marcos Rey, Mariano aprende a en-cenar e trapacear desde cedo, pelos trabalhos fora-da-leida tia Antonieta, sua única referência familiar. “Se hou-vesse clientes, eu, com o dedo nos lábios, pedia que en-trassem no minúsculo quarto de empregada e lá permane-cessem com a respiração suspensa. E ainda soltava algumasgalinhas pela casa para dar à polícia uma atmosfera do-méstica e inocente” (Rey, 2001, p.6).

Talvez o que fascine, em sua figura, seja determinadapostura corajosa que não tomamos ou não publicamos, aomenos. O cinismo, a velhacaria e a negociata, por meio deuma poderosa lábia, no fim das contas, parecem justificá-veis. Ora, num país desses, só roubando. Quem nunca disseou escutou algo do gênero?

Um sintoma de que somos cativados pelo malandroestá no fato de torcermos para ele se dar bem, no final.Influência da indústria cultural maniqueísta, com sede emHollywood? Se assim for, o local da máxima subversão cul-tural continua sendo por aqui, antropofágicos que somos.

III

Marcos Rey é um habilidoso contador de histórias. Dasprimeiras enrascadas, como sobrinho de Antonieta, às re-galias na casa das meninas de Madame Iara, dá gosto ler asperipécias de Mariano. Memórias de um gigolô é um livroarquitetado por meio de narrativa coesa, sem furos, comose a história tivesse sido longamente planejada, emboraescrita para ser lida num só ritmo e golpe. Sua prosa estáalgo próxima, estilisticamente, da narrativa machadiana:

O mais curioso e excitante era um negócio chamadomotomania: andar sempre, sem parar, sem roteiro nem de-sejo de voltar para trás. Pareciam pernas alheias, postiçasou mecânicas que me levavam para os lugares mais distan-tes, mesmo estradas rodeadas de favelas. (ibidem, p.215)

É também como pseudo-autobiografia que o romancede Marcos Rey lembra Memórias póstumas de Brás Cubas.

São comuns a Brás e Mariano o cinismo imperioso, emol-durado por essas personalidades volúveis e narcisistas. Aoegoísmo supremo se liga a aversão ao trabalho e às demaisbalizas da convenção social, como o casamento. Acres-cente-se o tédio ante o cotidiano regrado e sem surpresase descaso frente aos demais. “Bem-apessoado, o homemque escolhemos como vítima” (ibidem, p.54).

Memórias de um gigolô também se liga a Memórias de

um sargento de milícias pela linguagem imediata, permeadade expressões da época, a agilidade da narrativa e a habi-lidade de ambos os escritores em criar uma atmosfera desuspense – típica e não exclusiva dos folhetins.

É certo que do único romance de Manuel Antônio deAlmeida só ficou o gênero. Como se sabe, as “memórias”correspondiam a um gênero ainda em voga no século XIX,voltado à narrativa de fundo histórico. Logo, os percalçosde Leonardo (filho de Leonardo Pataca, sem valor) foramcontados na terceira pessoa por um narrador que dialogaconstantemente com o leitor, antecipando o hábito ado-tado por seu sucessor Machado de Assis.

Acima de tudo, a primeira representação do malan-dro se liga a outra tradição, o nascimento do jornal brasi-leiro: “para compreender um livro como as Memórias con-vém lembrar a sua afinidade com a produção cômica esatírica da Regência e primeiros anos do Segundo Reina-do [...]” (Candido, 2004, p.25).

Outro traço comum e notável a esses romances, sepa-rados por mais de um século e dois impérios, é a habilidadede Manuel Antônio de Almeida e Marcos Rey em articu-lar numerosos episódios, envolvendo o vaivém de diversaspersonagens. Ambos são pontuados por peripécias hiláriascom que os protagonistas e coadjuvantes conquistam nos-sa cumplicidade, simpática aos fracos. Por serem os fracosde tal condição? Por que vencem, à sua maneira, os fortes,iguais ou ainda mais desonestos?

A meia-distância entre Marafa (1935) e Cidade de

Deus (1997), o livro de Marcos Rey afasta-se de um e ou-tro na proporção que se aproxima de Memórias de um

262 Revista Brasileira de Literatura Comparada, n.12, 2008 Poética da malandragem: Memórias de um gigolô, de Marcos Rey 263

sargento de milícias e Memórias póstumas de Brás Cubas, es-critos no século XIX.

Em Memórias de um gigolô não há tanta violência dire-ta e sangue frio, nem é tão palpável a miséria em que vi-vem as personagens. O que prevalece, na forma de seu dis-curso, é certa atmosfera animada, numa escrita que oradiverte com episódios cotidianos, ora alerta, sem aviso, parao caos nacional.

Além das peripécias de Mariano-personagem (que oaproxima ora de Leonardo, ora de Brás Cubas), há certogosto do Mariano-narrador pelos limites do texto: reescri-ta algo cerebral, já que ao registrar, reflete sobre o que jáviveu. Ao mesmo tempo, revela suas habilidades dramáti-cas e percebe o que também há de artificial e ridículo noshomens poderosos:

Ele saltou de pé, teatralmente. Também tinha os seustruques.

– Vou me casar com sua noiva.Levantei-me e corri para a janela aberta. Ia lançar-me

pelo espaço vazio e espatifar-me na rua. O velho (como erade se esperar) conseguiu deter meu tresloucado gesto.

– Quero matar-me – anunciei no peitoril.– Não faça isso, jovem.– Faço.– Quem vai morrer sou eu.– Sua vida é mais preciosa do que a minha. Sou um

joão-ninguém. Só tenho Lu, mais nada. Largue-me. Vouarrebentar-me lá embaixo.

Para refrear meu entusiasmo, ele usou de um forte ar-gumento.

– Estamos no térreo. (Rey, 2001, p.110)

A faceta cômica não impede ao narrador tecer obser-vações críticas a respeito de certos traços do paulistano,metonímia do brasileiro explorado e explorador. Justamenteo princípio dicotômico que parece mover o próprio Maria-no. Em alguns momentos, a própria narrativa parece con-tagiar-se por diversas acepções de algumas palavras, ver-sáteis como o próprio narrador: “Fomos seguindo as costas,

as maravilhosas costas brasileiras. Eu peguei uma onda detomar martíni, mas não perdia o senso da realidade” (ibi-dem, p.182, grifo meu).

Do protagonista, sabemos que dentre suas inúmerasatividades – de escriba (num país de analfabetos) a ven-dedor (na cidade que mais se expandia) –, muitas delasforam marcadas pelo acaso e o oportunismo deste eternogigolô multi-tarefas, amante e cúmplice da maruja “Lu”,que conhecera na casa de Madame Iara. Aliás, é lá que eleamadurece sexualmente:

Gostaria que alguma madre superiora assistisse à epo-péia hidráulica daquele banho para avaliar como está su-perado tudo o que se diz, inadvertidamente, sobre educa-ção e formação dos jovens. Urge uma revisão imediata emmatéria tão importante, o que talvez nos colocasse em po-sição de vantagem e inveja entre os países subdesenvolvi-dos. (ibidem, p.21)

Como a justificar ou reforçar a aura de mistério daenigmática tia Antonieta, com suas previsões a respeitodo perigoso triângulo envolvendo Lu, Mariano e Esmeral-do, nada conhecemos a respeito dos pais do gigolô. Tam-bém apenas assistimos seus sobrevôos pelos estudos e ins-tabilidade nos diversos empregos. Isso significa estarmosdiante de um bildungsroman às avessas, como já acontecerano romance de Manuel Antônio de Almeida, no séculoanterior. De acordo com Mariano:

Devo a ela [à tia Antonieta], ainda, minha iniciaçãocultural: foi nos seus almanaques que aprendi a ler e a in-teressar-me pelos mistérios da ciência ao lado dos versosdos poetas antigos. Aos doze anos, já sabia tudo sobre ba-lões, telégrafo sem fio, fonógrafos e pianolas. Também jásabia que Casimiro de Abreu e Álvares de Azevedo haviammorrido tuberculosos, provavelmente devido à mastur-bação. (ibidem, p.10)

Ainda quanto à sua formação, em certa altura, o pro-tagonista recorda-se do período em que foi escoteiro:

264 Revista Brasileira de Literatura Comparada, n.12, 2008 Poética da malandragem: Memórias de um gigolô, de Marcos Rey 265

“Quanto ao cantil, conservo-o até hoje em meu museuparticular, que espero seja um dia aberto à visitação públi-ca, sob a tutela do governo federal ou da Universidade Ca-tólica” (ibidem, p.27). O fato é que se trata das memóriasde um homem e seu principal ofício: gigolô. “Passei a ser oescriba oficial e definitivo do bordel. Redator de prostíbulosfoi com efeito meu primeiro emprego” (ibidem, p.22).

O nome (Mariano) nos é apresentado apenas nas li-nhas finais. Daí a pergunta inevitável: por que todos têmnome e paradeiro, enquanto a principal personagem não?Assim como o Leonardo sem sobrenome (Memórias de um

sargento de milícias), o Teixeirinha (Marafa) e várias figurasde Cidade de Deus (Inferninho, Cabeça de Nós Todo etc.),a ausência de nome ou sobrenome configura um semi-ano-nimato. Sabemos a respeito do homem, mas não podemosidentificá-lo ou classificá-lo socialmente. “Não sei quemme chamou primeiro de Mon Gigolo; quem ouviu foi umgarçom que o repetiu por brincadeira” (ibidem, p.147).

Essa condição favorece enxergar o gigolô numa esferaaquém ou além das convenções sociais. Ao mesmo tempo,sugere que seu tipo seja comum (por isso o nome de nadaajudaria) e suas peculiaridades ultrapassariam a fixidez doregistro civil. A falta de nome também justifica a absolutainstabilidade em que vive o protagonista. Anônimo por-que é um paulistano pobre, infenso aos padrões da burgue-sia nascente que estuda, trabalha, casa e deixa herdeiros?Sempre há os atalhos: “Tornei-me freqüentador de biblio-tecas e livrarias, convicto de que a cultura daria maior bri-lho aos meus bate-papos no clube” (ibidem, p.106). A seulado, está uma mulher igualmente à margem da sociedade:

Certo dia de 1937, ou não, madame Iara recebeu umanova afilhada, uma maruja que passou a estimar com todoo seu coração de mãe e caftina. Chamava-se Guadalupe, aVirgem de Guadalupe, ou simplesmente Lupe, ou aindaLu, para os preguiçosos. (ibidem, p.37)

Entre lances de algum azar e muita sorte, dois senti-mentos marcam a vida desse bon vivant despossuído: o amor

por Lu e o temor de Esmeraldo – respectivamente, a Damade Ouros e o Valete de Espadas, (pré)vistos pela tia Anto-nieta nas cartas, às vésperas de sua morte. O retrato deEsmeraldo, primeiro amor de Lu, talvez seja o melhor emais completo do romance:

O Valete de Espadas (só podia ser ele, sim, era ele, esta-va na cara, fugitivo de um baralho velho) foi entrando eretoe sem problemas. Vestia-se de branco, sapato de duas cores,colarinho engomado, gravata estreitinha, com prendedorostensivo, abotoaduras de ouro falso, cabelos empastadosde vaselina, nariz aquilino, magro e ágil, pisada enérgica.Quando se voltou, vi-o de frente: dentes amarelados, bigo-dinho bem-tratado, brilhante, costeletas, e a inconfundívelcabeleira a jaquetão dos gigolôs manjados. Seus sapatos no-vos rangiam no assoalho carunchado. (ibidem, p.38)

Irresponsável e inconseqüente, a trajetória de um pro-tagonista anônimo equivaleria, em parte, à vida alheia demuitos de nós, registrados ao nascer, empregados só funcio-nais, maridos por vezes hipócritas, ambiciosos, mas desco-nhecidos dentro dos limites de nosso bairro. “Realmenteeu não sabia o que queria ser. Aliás, sabia, sim. Não queriaser nada” (ibidem, p.35).

Ocasionalmente o nome resvala para certa abstração,fruto da ética de pedra dos homens, desejosos por seremreconhecidos em sua individualidade, com número do re-gistro geral, emprego, propriedade, bens, família e crença.Ao final das contas, objetivos similares aos de um gigolô,por meios naturalmente diversos: “Teve início a humilhan-te procura de emprego” (ibidem, p.75).

IV

A atmosfera alegre predomina nos 32 capítulos, masdiminui à medida que Mariano, com ou sem Lu, adentraos territórios da elite paulistana: clubes, navios e empre-sas de grande porte. As regalias vão e voltam: “O vice-presidente chamou-nos à diretoria e disse-nos que estáva-

266 Revista Brasileira de Literatura Comparada, n.12, 2008 Poética da malandragem: Memórias de um gigolô, de Marcos Rey 267

mos expulsos do clube, que se arrogava o direito de nosdevolver o dinheiro das jóias. [...] Isto posto, retiramo-nos” (ibidem, p.117).

De certa forma, nas relações que trava com Gumer-cindo (clube) e Franco (navio/empresa), percebe-se quenão há grandes diferenças de caráter entre o gigolô e seus“protetores”, providencialmente enfeitiçados por Lu, a an-tiga bailarina mascarada das boates de São Paulo. “Poracaso, esqueci-me de dizer que aquele advogado era cal-vo? Não é importante o detalhe, mas as estatísticas doGallup provam que a calvície torna os homens mais sensí-veis às artes, às benemerências e ao amor” (ibidem, p.62).

A instabilidade marca a trajetória desse malandro-gigolô, com sua cultura de almanaque e alguns livros, ocontato com diversos grupos sociais e o convívio artificialem estabelecimentos de luxo. “Diante de Gumercindo eume mostrava um rapaz distraído e sob qualquer pretextosaía da mesa para que ele pudesse conversar com Lu, semempecilhos” (ibidem, p.103).

A derrocada financeira e a instabilidade emocionalenvolvem a decadência a que chegou um homem experi-mentado e versátil, mas sem garantias. No ano em que secompletam o primeiro centenário da morte de Machadode Assis e os quarenta anos da publicação de Memórias de

um gigolô, a autobiografia de Mariano recende ao humor eegoísmo de um perdulário, ora abaixo, ora acima das leisque ninguém cumpre:

A vida não estava sopa e imaginei os apuros que pas-saríamos sem a pensão que o advogado nos concedia. Éra-mos jovens, inexperientes e não contávamos com nenhu-ma subvenção do governo. Sendo assim, premidos pelascircunstâncias, tínhamos que recorrer ao auxílio dos parti-culares. E não há quem não abençoe o generoso coraçãopaulistano, que há séculos organiza rifas e promove chásbeneficentes para o sustento dos menos afortunados.(ibidem, p.68)

Não bastasse o estilo de Marcos Rey lembrar o deMachado, o próprio narrador reforça a semelhança ao fi-

nal do romance, reafirmando uma pretensão, por sinal,digna de Brás Cubas:

Eu levava-lhe revistas e dava-lhe notícias do sr. Franco.Com a ausência da minha senhora, ele tornou-se o maiorcasmurro a bordo. E também o maior engolidor de uísque esours. A tal ponto que resolvi apelidá-lo de Dom Casmurro,em homenagem ao meu colega de letras Machado de Assis,escritor carioca, autor de vários e excelentes livros sobre aarte e prática da masturbação. (p.189)

Assim como no romance machadiano, as Memórias

de um gigolô, também narradas em primeira pessoa, fazemreferência a escritores canônicos. Sucessor de Brás, Maria-no é uma personagem avessa ao trabalho fixo e hábilarticulador de frases irônicas, com o humour refinado deum malandro que conhece a supremacia da embalagemsobre o caráter:

Dentro de uma roupa de tecido anglo-saxão, sofroimediata metamorfose em benefício inclusive do meu vo-cabulário. Torno-me mais seguro, independente, resoluto,arrojado e aristocrata. (ibidem, p.107)

Eu, com um terno novo, sou um perigo e venço qual-quer preconceito. Com um vinco perfeito, meto a cara, falogrosso, convenço, conquisto corações, conto mentiras, exi-bo a cultura dos almanaques e perco o medo do mundo.(ibidem, p.161)

Era homem que podia cruzar as pernas em qualquerambiente, sem fraturar aquela linha reta que marcava mi-nha personalidade. Até meus pijamas tinham friso, distin-tos, positivos, definidos. (ibidem, p.212)

Outros detalhes permitem aproximar a narrativa deMarcos Rey da prosa machadiana. Na estrutura de ambosos livros, os números romanos e títulos sintéticos dos capí-tulos. No conteúdo, o triângulo amoroso, envolvendoambos os protagonistas (Virgília e Lu); a corrupção de tudoe todos em função do dinheiro fácil; os elementos que fa-

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zem do romance um conjunto de crônicas sobre São Pauloe seus tipos bem marcados; os diálogos fingidos e as inter-venções azedas do narrador. “Tudo isso era bom, era óti-mo, principalmente por causa dos martínis com azeitona àbeira da piscina, mas juro-lhes que logo depois ficou aindamelhor – tão melhor, que vale abrir um capítulo novo” (ibidem,p.102, grifo meu).

Acima de tudo, é machadiano o breve e patético finaldeste interessante e muito bem escrito romance. Auge edecadência, amor e dinheiro, integridade e corrupção,“galhofa e melancolia”, perfazem uma trajetória paradoxal,tragicômica, escorregadia. Trata-se de outro belo exemplarsob a tutela de uma poética “malandra”, por assim dizer.

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271

Cartografias da intimidade na literaturabrasileira: os diários de Lima Barreto

Elizabeth Gonzaga de Lima*

RESUMO: Este trabalho investiga a escrita autobiográfica no con-

texto de fins de século XIX na literatura brasileira. A análise

propõe como base a escrita íntima de Lima Barreto em seus

diários. Essa tangência entre biografia e arte ilumina um de seus

pressupostos mais caros, o exercício de uma literatura compro-

metida com o social – contar a própria dor e marginalização é

também contar o sofrimento e a exclusão do outro.

PALAVRAS-CHAVE: Escrita autobiográfica, Lima Barreto, diários.

ABSTRACT: This paper researches autobiographical writing in

the context of the end of XIX century in Brazilian literature.

The analysis has in its base the intimate writing of Lima Barreto

in his diaries. This relation between biography and art enligh-

tens one of his dear presuppositions, a literature undertaken

with social – telling his own pain and marginalization is also a

way of articulating the pain and exclusion of the other.

KEYWORDS: Autobiographical writing, Lima Barreto, diaries.

A conjunção de uma série de fatores tornou-se deter-minante para que, no século XIX, o panorama literário-cultural da Europa fosse marcado pelo culto do autoconhe-cimento e pela expansão da literatura do eu. O pensamentorenascentista e humanista configurou-se como base da se-cularização e do individualismo consolidado pela Ilustra-ção. Quadro que preparou o espírito da intelectualidadeem diversos setores para a busca do conhecimento de si.

A organização política e social baseada na autonomiado indivíduo, somada ao avanço do protestantismo, in-fluiu para que os homens tomassem consciência de seuvalor pessoal, favorecendo, dessa maneira, as condições

* Professora doutora da área

de Literatura Portuguesa do

Departamento de Letras

Vernáculas da Universidade

Federal da Bahia (UFBA) –

Salvador (BA).

272 Revista Brasileira de Literatura Comparada, n.12, 2008 Cartografias da intimidade na literatura brasileira: os diários... 273

para os relatos íntimos. Além disso, o crescimento da alfa-betização na Europa, combinado às estratégias de distri-buição de livros, torna a ficção mais acessível à classe bur-guesa. Os romances de família e de costumes, encharcadosde subjetivismo e moralismo, lidos em casa, se convertemem substitutos da leitura bíblica e devocional converten-do-se em alimento para a vida interior dos leitores.

Visto desse ângulo, o procedimento da narrativa emprimeira pessoa transforma os leitores em outros possíveisnarradores da história, estabelecendo, entre autor e leitor,uma relação de cumplicidade:

Ao contrário do narrador anônimo e ubíquo que tudo

sabe, abrange integralmente o domínio do romance e pe-

netra com toda a liberdade nas idéias mais recônditas de

suas personagens, a voz na primeira pessoa tem algo de in-

timidade: ao relatar de sua perspectiva a história que se

desenrola, o narrador abre para compartilhar o tipo de con-

fidência que se espera de um amigo, numa atmosfera

confessional. (Gay, 1999, p.294)

É provável que a idéia de narrar a própria história te-nha sido animada pelas leituras desses romances em pri-meira pessoa, por ocorrer ao leitor a possibilidade de setornar narrador e personagem de seu enredo pessoal. Con-tudo, o marco para as denominadas escritas do eu, e mo-delo de introspecção para a literatura ocidental, é a publi-cação das Confissões de Santo Agostinho, como apontaAuerbach (1972, p.60): “Sua influência foi das maiores,não somente sobre toda a cultura européia; toda a tradi-ção européia da introspecção espontânea, da investigaçãodo eu, remonta a ele”.

Os Ensaios de Montaigne, no século XVI, e as Confis-sões de Rousseau no século XVIII são também obras dereferência. Se os Ensaios de Montaigne são consideradosmodelo para a autobiografia moderna, as Confissões deRousseau romperam a tradição de a escrita íntima ser prer-rogativa de personalidades militares, políticas, eclesiásti-cas ou nobres, como assinala Starobinski (1995, p.191):

[Rousseau] Concebe o projeto de contar sua vida, mas não

é nem bispo (como o era Santo Agostinho), nem fidalgo

(como Montaigne), e não teve participação nos aconteci-

mentos da corte ou do exército: não tem, portanto, nenhum

título para se expor aos olhos do público, pelo menos não

tem nenhum dos títulos que, até ele, foram requeridos para

justificar uma autobiografia. Além disso, é pobre, é obriga-

do a ganhar seu pão. Com que direito viria ele atrair a aten-

ção sobre sua existência? Mas, justamente, por que não se

apoderaria ele desse direito?

Ao expor a intimidade, derramando os sentimentos,revelando a alma de um homem do povo, destituído detítulos e capital, Rousseau termina por conquistar granderessonância junto aos românticos franceses, como apontaHauser (1995, p.561): “Para os poetas do pré-romantismoexiste uma relação direta entre o homem simples, hones-to, vivendo em modestas condições burguesas, que surgeagora pela primeira vez como um ideal de literatura”.

Influenciados pelo espírito da época, da investigaçãodo eu, associado ao encantamento com obras de lastro con-fessional, cidadãos comuns, artistas e escritores se senti-ram animados em escancarar suas experiências pessoais.Com isso, reivindicam sua diferença e singularidade emmeio a um intenso processo de despersonalização, em vir-tude das modificações sociais e econômicas pelas quais pas-sava a Europa. Razões que acabaram motivando uma largaprodução de literatura íntima: “autobiografias e os auto-retratos, as biografias, romances e obras históricas sobre ocaráter das pessoas adquiriam a força de consideráveis in-dústrias domésticas; em que os diários e a correspondên-cia íntima se tornaram mais comuns e mais reveladores doque nunca” (Gay, 1999, p.16).

Na galeria dos autobiógrafos mais conhecidos é possí-vel citar: William Worsworth, Chateaubriand, Sterne,Emerson, Goethe. O escritor alemão, apesar de ser umdos maiores representantes da literatura introspectiva, jáno século XVIII, com Werther e Wilhelm Meisters, julgava-a de subjetividade mórbida, tornando-se desconfiado nes-sa concentração no eu.

274 Revista Brasileira de Literatura Comparada, n.12, 2008 Cartografias da intimidade na literatura brasileira: os diários... 275

É provável que nessa inclinação pela literatura confes-sional residam alguns fenômenos sociais peculiares em finsdo século XIX: a crescente urbanização, o avanço doconsumismo e o advento da modernidade, os quais trou-xeram às ruas o fenômeno da multidão, que, por sua vez,nasce sob o signo do anonimato. A luta pela singularida-de, pela identidade, pela resistência à dissolução em meioà massa humana, é, por assim dizer, a sedução dessa escri-ta, que convida para seu jogo.

Enquanto nesse controvertido panorama literário eu-ropeu predominava o escrutínio da vida íntima e de gran-des temas históricos, no Brasil, a literatura buscava firmarseus pilares:

Quatro grandes temas presidem à formação da litera-

tura brasileira como sistema entre 1750 e 1880, em corre-

lação íntima com a elaboração de uma consciência nacio-

nal: o conhecimento da realidade local; a valorização das

populações aborígines; o desejo de contribuir para o pro-

gresso do país: a incorporação aos padrões europeus. No

interior desses limites os poetas contarão as suas mágoas,

os romancistas descreverão as situações dramáticas, os

ensaístas traçarão as suas fórmulas. No fundo do desabafo

mais pessoal ou da elucubração mais aérea, o escritor pre-

tende inscrever-se naquelas balizas, que dão à nossa litera-

tura, vista no conjunto, esse estranho caráter de nativismo

e estrangeirismo; pieguice e realidade; utilitarismo e gratui-

dade. (Candido, 1975, p.66-7)

É inegável que a curiosidade acerca da investigaçãodo eu, do individualismo, estava bem distante do horizon-te brasileiro, pois as intenções da literatura nacional eramprogramáticas. No entanto, Antonio Candido, em “Poe-sia e ficção na autobiografia” (1989b, p.52), observa a vo-cação dos poetas mineiros do século XVIII para a literatu-ra em primeira pessoa, em especial a autobiografia. Umadas primeiras obras de introspecção reconhecida pelo es-tudioso é Marília de Dirceu, confissão em verso, além deuma mini-autobiografia, Apontamentos para se unir ao ca-

tálogo dos acadêmicos da Academia Brasílica dos Renascidos,de Cláudio Manuel da Costa.

Segundo Candido, Minas Gerais produziu tanto au-tobiografias excelentes quanto medíocres. No primeirocaso, Minhas recordações, de Francisco de Paula Ferreirade Resende, “escritas de 1887 a (provavelmente) 1890 epublicadas apenas em 1944”, (ibidem, p.53) além de Mi-nha vida de menina, escrita por Helena Morley nos últimosanos do século XIX: “uma das obras-primas da literaturapessoal no Brasil” (ibidem, p.54). No segundo caso, Mi-nhas memórias, de Visconde de Nogueira Gama, “descosidasapesar de contar fatos curiosos e transcrever documentosimportantes” (ibidem, p.54).

Diante disso, quais seriam as motivações para a produ-ção de obras dessa natureza num espaço literário tão aca-nhado para o desenvolvimento da literatura autobiográfica?

Uma das características mais importantes da literatu-ra do eu, como sugere Georges Gusdorf, seria o papel detestemunho, ou de documento, e suas repercussões. Alémdisso, o teórico considera a autobiografia como uma cha-ve para entender a curva da história e todo tipo de mani-festação cultural:

A escrita em primeira pessoa constitui um domínio

imenso e solidário no seio do qual devem coexistir todos os

textos redigidos por um indivíduo exprimindo-se em seu

próprio nome para evocar incidentes, sentimentos e acon-

tecimentos que lhe dizem respeito pessoalmente. Tais do-

cumentos têm a característica de testemunho que levam o

autor a considerar fatos de sua vida particular, e mesmo

sua vida pública e social desde que relatados do ponto de

vista do protagonista da aventura. (Gusdorf, 1991, p.360,

apud Mutran, 2002, p.35)

Se a perspectiva básica da autobiografia parte do ân-gulo de visão do indivíduo, isso sinaliza que uma de suasmarcas reside no caráter pessoal e específico de cada tex-to. Dessa maneira, é provável que exista uma base comum,qual seja, o prazer em recordar o passado, quando os sen-

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timentos íntimos se misturam aos sentimentos de um tem-po vivido e de seu respectivo mundo. Nessa fusão de mo-mentos, o passado renasce junto às emoções revividas natentativa de segurar o tempo, substância fluida.

A relevância dessas obras nacionais não reside em seuvalor estético, sua importância primordial é de serem teste-munhos privilegiados de uma época e seus eventos, quandoa escrita íntima se torna coletiva: “A experiência pessoalse confunde com a observação do mundo e a autobiografiase torna heterobiografia, história simultânea dos outros eda sociedade” (Candido, 1989b, p.56). Para um país depassado colonial, onde muito pouco de sua memória é pre-servada, esses retalhos de vida terminam por (re)comporparte de sua história, recomposição na qual o indivíduo ea sociedade formam um elo indivisível.

É preciso compreender, no entanto, que não é qual-quer indivíduo em qualquer lugar ou momento que escre-ve sobre sua vida. Nesse sentido, Clara Rocha (1977, p.72)assinala:

é necessário que ele tenha consciência da singularidade de

sua existência, o que implica um certo grau de individua-

lismo; e, por outro lado que esta singularidade lhe pareça

suficientemente exemplar para poder interessar alguém,

depois de tal ter acontecido com ele próprio.

Partindo dessa prerrogativa, Minha formação, de Joa-quim Nabuco, publicada em 1900, é exemplar nesse senti-do. Autobiografia de intenção político-pedagógica na qualo autor narra o desenvolvimento de sua personalidade. Ainspiração de Nabuco, segundo se sabe, é decorrente deUm estadista do império, biografia histórico-política de To-más Nabuco de Araújo, pai do escritor. E é o próprio Joa-quim Nabuco (1979, p.117) quem explica o projeto deMinha formação:

A primeira idéia fora contar a minha formação mo-

nárquica, depois; alargando o assunto, minha formação polí-

tico-literária ou literário-política, por último, desenvol-

vendo-o sempre, minha formação humana, de modo que o

livro confinasse com outro, que eu já havia escrito antes

sobre minha reversão religiosa.

Considerando que o autobiógrafo é antes de tudo se-letivo, o que implica uma modelação da própria imagemao longo da escrita, Nabuco (1979, p.22) não foge dissoao esculpir um perfil cosmopolita bem ao gosto do fin-de-siècle: “Sou antes um espectador do meu século do que domeu país; a peça é para mim a civilização, e se está repre-sentando em todos os teatros da humanidade, ligados hojepelo telégrafo”. Esse cosmopolitismo de Nabuco não pos-sui caráter negativo, antes, descortina um mundo de li-berdade e cidadania que contrasta com a pátria brasileira.É possível que essas conquistas européias em relação aosdireitos do indivíduo tenham influenciado seu engajamentona causa abolicionista.

É compreensível, no entanto, que, ainda em fins doséculo XIX, Nabuco tenha sido motivado a relatar os even-tos públicos de sua vida e a expor sua personalidade, pois,como vimos, foi um século marcado pelo incansável temada busca de si. Em virtude disso, alguns escritores elege-ram o símbolo de Narciso como a imagem representativadessa autocontemplação. Não por acaso, o mito se con-verte em fonte de inspiração para poetas como Byron,Shelley e Valéry, além de diversos outros artistas, denun-ciando a ansiedade pela descoberta do eu.

O mito de Narciso, para Gérard Genette (1966, p.21),conjuga dois motivos – reflexo e fuga. A contemplação ouo reflexo é uma das marcas da escritura autobiográfica – odesdobramento do eu se manifesta na escrita; corpo e le-tra acabam possuindo a mesma relação. O interior da es-critura íntima abriga também o motivo da fuga, ao mesmotempo que o sujeito aspira à eternidade pela escrita, eleteme não se reconhecer nela.

Tal espelhamento e temor podem ser observados naspalavras de Joaquim Nabuco (1979, p.3-4) ao apresentarsua obra:

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Esta aí muito da minha vida... Será uma impressão de

volubilidade, de flutuação, de diletantismo, seguida de de-

salento, que elas comunicarão? Ou antes de consagração,

por voto perpétuo, a uma tarefa capaz de saciar a sede de

trabalho, de esforço e de dedicação da mocidade [...].

No todo, a impressão, eu receio, será misturada; as de-

ficiências da natureza aparecerão, cobertas pela clemência

da sorte; ver-se-á o efêmero e o fundamental... Em todo caso

não precisarei de pleitear minha própria causa, porque ela

será sempre julgada pela raça mais generosa entre todas...

Se no fundo de todo autobiógrafo existe um Narciso,como assinala Gérard Genette (1966), a imagem que oabolicionista molda ao longo de suas confidências, nessesentido, é duplamente paradigmática: primeiro porquedesfila erudição, escolhe episódios instigantes, relata via-gens sedutoras, conta a respeito de grandes decisões nocenário nacional; segundo, porque suas revelações deixamtransparecer sua estatura ética, o desejo de melhorar o país,e interpretá-lo a partir de seu lugar social. Um relato dessenível provoca no leitor o encantamento com a brilhantefigura do estadista. Assim, o tom reflexivo, com vistas aomeio político e social, marca suas memórias:

Quem me acompanha pode estar certo de que não

existe no que vou dizendo nenhuma sombra dessa admira-

ção pela própria imagem, a que Jules Lemaître deu o nome

de narcisismo moral.

[...]

O meu drama com ser francês, de procedência, de mo-

tivo sentimental, elevava-se, como composição literária,

acima do espírito de nacionalidade, visava à unidade da jus-

tiça, do direito do ideal entre as nações... (ibidem, p.52-3)

Além das razões reconhecidamente autobiográficasque movem um relato íntimo – testemunho de seu tempo,busca do conhecimento do eu, o prazer de recordar o pas-sado, a luta contra o escoar do tempo –, Nabuco demons-tra o desejo de fazer conhecer seu ideário, em particular asmotivações políticas e, especialmente, o envolvimento com

a causa abolicionista. No entanto, se essa exposição, porum lado, apresenta um traço de vaidade, por outro, con-tribui para a reconstituição de parte da história brasileira.Esse movimento, que desvela as minúcias da vida privadae alcança a vida pública capta uma indiscutível relação dereciprocidade entre privacidade e dimensão pública.

Se Minha formação representa o relato autobiográficobaseado na trajetória intelectual e política no cenário cul-tural do século XIX, Machado de Assis, um dos maioresexpoentes do período, lança mão de formas autobiográfi-cas para a experimentação estética e a observação social.

Machado de Assis não legou à posteridade uma auto-biografia ou mesmo um diário, tampouco deixou aberta umajanela indiscreta de sua vida íntima. No entanto, sua obrarealista representou de forma magistral a consciência de umapequena burguesia urbana instalada nos casarões flumi-nenses. E, para isso, o foco na primeira pessoa, concretizadonas memórias, confissões e diário, é desenvolvido por elesem que o leitor possa reconhecê-lo por trás das máscarasficcionais. Em decorrência disso, lhe cai bem o apelido de“bruxo”, que traduz sua capacidade em manipular uma alqui-mia perfeita, ao utilizar as variadas formas e estilos da litera-tura introspectiva, sem invadi-la com a própria subjetividade.

A dificuldade de se traçar limites rígidos para a diver-sidade dos gêneros literários, todavia, levou Lúcia MiguelPereira (1988, p.65) a considerar Helena, Iaiá Garcia e CasaVelha livros autobiográficos: “Com mil cautelas e rodeios,discutiu neles Machado de Assis uma questão que namocidade muito o preocupou: a luta entre a sociedade e oindivíduo que se quer elevar. O drama do ambicioso, dohomem superior vindo do meio humilde. O seu drama”.

Três romances da fase realista do escritor se destacamno desenvolvimento de uma narração baseada na interio-ridade: Memórias póstumas de Brás Cubas, Dom Casmurroe Memorial de Aires – o fio condutor da confissão literáriaperpassa esses textos. Em Memórias póstumas de Brás Cu-bas, na extravagância do narrador defunto, cujas memóriassão elaboradas no outro mundo:

280 Revista Brasileira de Literatura Comparada, n.12, 2008 Cartografias da intimidade na literatura brasileira: os diários... 281

Algum tempo hesitei se devia abrir estas memórias pelo

princípio ou pelo fim, isto é, se poria em primeiro lugar o

meu nascimento ou a minha morte. Suposto o uso vulgar

seja começar pelo nascimento, duas considerações me le-

varam a adotar diferente método: a primeira é que não sou

propriamente um autor defunto, mas um defunto autor, para

quem a campa foi outro berço, a segunda é que o escrito

ficaria assim mais galante e mais novo. (Assis, 1968, p.11)

Em Dom Casmurro, o advogado solitário reconstituisuas lembranças e admite:

Eu confessarei tudo o que importar à minha história.

Montaigne escreveu de si: ce ne sont pas gestes que j’écris;

c’est mon essence. Ora, há só um modo de escrever a pró-

pria essência, é contá-la toda, o bem e o mal. Tal faço eu, à

medida que me vai lembrando e convidando a construção

ou reconstrução de mim mesmo. (Assis, 1983, p.93)

Em Memorial de Aires, Machado aproveita a forma dodiário para mostrar o plácido cotidiano de um diplomataaposentado. Anotar os acontecimentos do dia para o con-selheiro Aires é uma maneira de driblar a solidão, a velhi-ce e o ócio:

Qual! Não posso interromper o Memorial; aqui me

tenho outra vez com a pena na mão. Em verdade, dá certo

gosto deitar ao papel cousas que querem sair da cabeça,

por via da memória ou da reflexão. Venhamos novamente

à notação dos dias. (Assis, 1938, p.127)

As extensas fronteiras da forma romanesca permiti-ram a Machado de Assis, por meio de uma escrita intros-pectiva, realizar a literatura em que se tornou mais notá-vel, da investigação e do desvelamento dos recônditos dasubjetividade de uma classe, que, entretanto, se pretendeuniversal. E nada se ajusta melhor a essa intenção do queo eu que se desnuda, revelando suas contradições, foco daconhecida ironia machadiana. A tonalidade irônica e anarração em primeira pessoa são alguns elementos respon-

sáveis por confundir críticos e leitores que, além de nãoencontrarem equivalência entre a obra e a vida íntima doescritor, tomam contato com a particularidade de um bra-sileiro endinheirado que, mediante a volubilidade íntimado descompromisso, aponta a generalidade da filosofia, dapolítica etc. Elementos empregados pelo narrador-per-sonagem, em proveito próprio, como assinala RobertoSchwarz (1997b, p.78) em relação a Memórias póstumas deBrás Cubas:

Trata-se, noutras palavras, de um livro escrito contra

seu pseudo-autor. A estrutura é a mesma de Dom Casmurro:

a denúncia de um protótipo e pró-homem das classes do-

minantes é empreendida na forma perversa da auto-expo-

sição “involuntária”, ou seja, da primeira pessoa do singu-

lar usada com intenção distanciada e inimiga.

Cabe, no entanto, a advertência aos curiosos – a ca-pacidade do “bruxo de Cosme velho” em manejar as cor-tinas da ficção –, e é Augusto Meyer (1964, p.160) quemnos conduz ao entendimento da representação desse euficcionalizado:

Como qualquer outro recurso de transposição fictícia,

a aparência autobiográfica serve de fator objetivo ao ro-

mancista na construção de um simulacro de vida confessa-

da. Dentro dessas fronteiras – o romance construído na

perspectiva da primeira pessoa – cabem graus diversos de

aproximação do tom subjetivo, desde as “cartas” e os “diá-

rios íntimos” até aquela aparente confidência continuada

e minuciosa de um eu romanesco a longo prazo. [...]

O Machado de Assis romancista da mesma família,

pelo menos em três dos seus romances, pertence ao grupo

dos que mais de perto imitam o perspectivismo arbitrário e

um tanto descosido de um eu a confessar-se diante da fo-

lha em branco.

Esses fragmentos recolhidos nas vidas íntimas, dentroou fora da ficção, refletem a vida coletiva brasileira da-quele período, compondo, dessa maneira, uma espécie de

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mosaico: de um lado, Joaquim Nabuco, o homem político,erudito, revela seu poder de intervenção no cenário socialao participar da causa abolicionista; de outro, Machadode Assis apresenta os artifícios autobiográficos para repre-sentar a intimidade de uma classe que vivia aparentementeno compasso dos discursos instituídos, mas que os atos coti-dianos a desmentiam, em uma espécie de “desconcerto”:

O nosso discurso impróprio era oco também quando

usado propriamente. Note-se, de passagem, que este pa-

drão irá repetir-se no século XX, quando por várias vezes

juramos, crentes de nossa modernidade, segundo as ideo-

logias mais rotas da cena mundial. Para a literatura, como

veremos, resulta daí num labirinto singular, uma espécie

de oco dentro do oco. Ainda aqui, Machado será o mestre.

(Schwarz, 2000, p.21)

Nos dois casos, a utilização da forma introspectiva cap-tou dois movimentos opostos que terminam por formaruma continuidade – é na escavação do mundo interiorque se encontram as estruturas do exterior.

Se Machado de Assis notabilizou-se por conseguirmanejar as formas introspectivas, protegendo sua intimi-dade de escritor, ao mesmo tempo que existia o íntimo dequem tem a palavra, isto é, a personagem, no pólo opostoencontra-se Lima Barreto, que desenvolveu uma literaturade aparência autobiográfica, mas, ao contrário do “bru-xo”, imprimiu sua subjetividade de forma intensa em quasetodo conjunto de sua obra. Certamente não faltam razõespara a opção de cada um deles, como nota Sérgio Buarquede Holanda (1956, p.12):

Enquanto os escritos de Lima Barreto, foram todos eles,

uma confissão mal disfarçada, [...] os de Machado foram antes

uma evasão e um refúgio. O mesmo tema que para o primei-

ro representa obsessivo tormento e tormento que não pode

calar, este o dissimula por todos os meios ao seu alcance.1

Se pensarmos, entretanto, na composição de uma me-mória nacional como uma espécie de mosaico, em que cada

fragmento de vida íntima é parte da composição da históriabrasileira, transfigurada ou não pela arte literária, LimaBarreto contribui com outro formato e outras cores. E énessa direção que caminha o objetivo de nosso trabalho,analisar a escrita autobiográfica que o romancista desenvol-veu nos seus diários Íntimo e do Hospício e suas projeçõesno exercício de uma literatura comprometida com o social.

A intimidade do escritor projetada em sua ficção revelao drama daqueles que se perderam em meio ao torvelinhodas transformações da virada do século XIX, dos que nun-ca conquistaram um lugar na sociedade, vivendo em suasfranjas, como os mulatos, os suburbanos, que não reco-nheciam sua raiz nem na raça, nem na classe: remendoshumanos, que, na ficção de Lima Barreto, confeccionamum sentido literário, social e histórico.

É provável que essa perspectiva aberta pelos textosintrospectivos tenha despertado o interesse de LimaBarreto (1956e, p.33), em particular porque a diluição dasformas vai ao encontro de suas concepções: “Parece-meque o nosso dever de escritores sinceros e honestos é dei-xar de lado todas as velhas regras, toda disciplina exteriordos gêneros e aproveitar de cada um deles o que puder eprocurar, conforme a inspiração própria, para tentar refor-mar certas usanças [...]”. Além disso, em sua rejeição aoartificialismo, ele entende que a presença do eu na lingua-gem é uma maneira de se opor às manipulações da retóri-ca. Pode-se mencionar, ainda, seu fascínio pela leitura debiografias, como demonstra em correspondência a Anto-nio Noronha: “O Carlos deu-me, isto é, emprestou-me oJean-Jacques, mas pedi-lhe a biografia de Baudelaire...”(Barreto, 1956f, p.33), na justificativa do narrador-biógrafoAugusto Machado para escrever Vida e morte de M. J.Gonzaga de Sá: “A idéia de escrever esta monografia nas-ceu-me da leitura diurna e noturna das biografias do dou-tor Pelino Guedes. São biografias de ministros, todas elas,e eu entendi fazer as dos escribas ministeriais” (Barreto,1956b, p.70) ou em uma das notas do Diário do hospício:“Hoje é segunda-feira. Passei-a mais entediado do que

1 Nota prévia ao romance

Clara dos Anjos.

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nunca. Li o Plutarco, mas não tive ânimo de acabar com aleitura da vida de Pelópidas” (Barreto, 1956d, p.71).

Lima Barreto não realizou uma autobiografia, propria-mente dita, ou seja, uma retrospectiva de vida desde ainfância, a juventude e a idade madura, levando em con-sideração o que Gusdorf (1991, p.317) define: “Une auto-biographie est un livre refermé; animée par un projet de totalité,qu’il s’agisse d’une vie entière ou d’une tranche de vie, elle pré-tend arrêter les comptes”.2 No entanto, até a morte do ro-mancista, em 1922, não se tem notícia de um escritorbrasileiro que reunisse uma produção literária de caráteríntimo tão profundo quanto a dele.

É preciso assinalar que a obra de Lima Barreto foidesenvolvida em um período de inúmeras contradiçõesestéticas. Naquele fim de século, parnasianismo, simbo-lismo, realismo continuavam em cena, e o modernismodespontava timidamente. Diante desse panorama, o es-critor posicionou-se do lado oposto da “arte pela arte” edas “transcendências inefáveis”, todavia sua escrita es-tampava com maior nitidez os pressupostos do realismo,por meio do desnudamento das mazelas sociais, da pintu-ra dos costumes da sociedade da época. Diga-se de passa-gem que esse realismo é tingido pelo tom crítico e pelatendência trágica. Essa inclinação realista é ainda conta-minada por resquícios românticos, que se pode localizarna escolha da auto-expressão – característica própria daestética romântica inclinada ao confessionalismo. Alémdisso, o romancista cultivou os sentimentos peculiares aoartista romântico: a melancolia, a solidão, o pessimismo,a insatisfação com o meio, a contradição em isolar-se eassumir as dores da sociedade (em seu caso, pelos humil-des). De todas as idéias românticas absorvidas por ele,em consonância com seu tempo e seus pressupostos lite-rários, a que mais revela seu fascínio por esse ideário é oisolamento social pela crença na grandeza de seus ideaise sentimentos, que o levam a se ver como um pária social.

Desse quadro contraditório decorre a dificuldade emdefinir a estética de sua prosa, em particular, pela opção

do romancista em lançar mão de todos os meios para de-senvolver uma literatura comprometida e de fácil acesso.Assim, a subjetividade apresentada no conjunto de suaprodução é igualmente diversificada, seguindo uma sériede modulações da voz autoral, que passam pela experiên-cia pessoal e pelas influências literárias.

Algumas pistas das diretrizes da obra de um autorpodem ser fornecidas, às vezes, pela leitura de um únicoromance; entretanto, quando é possível o acesso aos es-critos de intimidade, adquire-se um entendimento maisamplo, ou seja, dos fundamentos que sustentam sua escrita.No caso do romancista, os motivos pessoais se confundemcom os sociais e se concretizam numa literatura, movidaem um ritmo cíclico, a vida alimenta a obra, que, por suavez, alimenta a vida, mas acima de tudo comprometidacom o movimento da sociedade. Contudo, diversas vezestransparece em suas confissões que o ofício de escreverrealiza um duplo compasso: condenação e salvação: “Euabandonei tudo por elas [as letras]; e a minha esperança éque elas me vão dar muita coisa. É o que me faz vivermergulhado nos meus desgostos, nas minhas mágoas, nosmeus arrependimentos...” (Barreto, 1956c, p.184).

Graças ao empenho de Francisco de Assis Barbosa emreconstituir o patrimônio humano e literário de Lima Bar-reto, foi possível tornar público o conteúdo da intimidadedo escritor. Nesse acervo, a obra que mais se destaca, nessesentido, é o Diário íntimo, escrito por ele ao longo de 21anos. As primeiras notas3 são de 1900, quando ainda eraum jovem de dezenove anos, cheio de sonhos: “Quandocomecei a escrever este, uma ‘esperança’ pousou” (Barreto,1956c, p.27). Entretanto, com o passar dos anos, as notassão de um homem desencantado pelos fracassos de suasaspirações literárias e doente pelo alcoolismo: “Desgraça-do nascimento tive eu! Cheio de aptidões, de boas quali-dades, de grandes e poderosos defeitos, vou morrer semnada ter feito. Seria uma grande vida, se tivesse feito gran-des obras; mas nem isso fiz” (ibidem, p.172). Além do Diá-rio íntimo, o romancista escreveu o Diário do hospício, relato

2 “Uma autobiografia é um

livro fechado; animado por um

projeto totalitário, que trata de

uma vida inteira ou de um

fragmento de vida, ela

pretende concluir as contas”.

3 O diário, na forma que o

lemos hoje, faz parte do

projeto de publicação da obra

completa de 1956, sob

organização de Francisco de

Assis Barbosa. Os manuscritos

foram encontrados em

cadernetas e agendas

guardadas após a morte do

escritor pela irmã Evangelina.

286 Revista Brasileira de Literatura Comparada, n.12, 2008 Cartografias da intimidade na literatura brasileira: os diários... 287

de sua internação no Hospício Nacional de Alienados, entredezembro de 1919 e fevereiro de 1920. Nele o diarista tentaexpurgar suas frustrações do passado por meio da escrita:

Desde a minha entrada na Escola Politécnica que ve-

nho caindo de sonho em sonho e, agora estou que estou

com quase quarenta anos, embora a glória me tenha dado

beijos furtivos, eu sinto que a vida não tem mais sabor para

mim. Não quero, entretanto, morrer; queria outra vida,

queria esquecer a que vivi [...]. (Barreto, 1956d, p.67)

O diário íntimo, uma das formas da literatura autobio-gráfica, como vimos, floresceu com a literatura românticae, segundo Béatrice Didier (1976, p.47), decorre de trêsfatores: da tradição cristã, guarda a atitude confessional, odesejo de purificação e absolvição, o exame de consciência;do individualismo, retém a crença no indivíduo, o interessepelo particular; do capitalismo, a idéia do “balanço”, de li-vro de contas, que objetiva preservar um capital de recor-dações, vivências, lugares, pessoas, etc.

Francisco de Assis Barbosa relata que, três anos apósa morte de Lima Barreto, A. J. Pereira da Silva pretendeupublicar o diário com o consentimento da família do escri-tor, porém, considerando a obra pitoresca e de conteúdopessoal constrangedor, desistiu do projeto. O biógrafo re-bateu: “longe de ser ‘uma obra pitoresca’ é documento deprofundo interesse humano, repassado por vezes de lancesdramáticos, de consulta indispensável para o conhecimentodo homem e do escritor, que formavam em Lima Barretouma unidade perfeita e indivisível”.4 Entretanto, por maisinteressante e esclarecedor que pareça a publicação, acabapor ferir um dos estatutos dessa forma literária – a privaci-dade –, a experiência íntima, com toda a sua elegância edeselegância, vem a público, o que é pior, sem o consen-timento do autor. Mesmo sendo “documento de profundointeresse humano”, a vida e as confidências que eram pri-vadas passam a ser públicas, o que, para alguns críticos,não deixa de ser uma contradição, como aponta LéopoldFlam (1970, p.182):

Il n’y a pas seulement la parole qu’on dit aux autres, il y a

surtout la parole qu’on se dit à soi-même. Cette parole n’est

destinée qu’à soi même ou à ceux que l’individu identifie avec

soi-même. La publication d’un journal intime, vraiment destiné

à soi-même, ne peut être qu’une trahison.5

Os diários escritos por Lima Barreto, apesar de cumpriro mesmo objetivo de reconstituir o cotidiano ou seus frag-mentos, possuem diferenças na formulação. As condiçõesem que os textos foram redigidos são bastante diversas: nasnotas do Diário íntimo, o romancista contava com a privaci-dade de seu quarto, e de sua rotina cotidiana; enquanto asdo Diário do hospício foram escritas em situação adversa.Hospitalizado, Lima Barreto estava sempre procurando umlugar reservado para escapar dos delírios e dos incômodoscausados por outros pacientes. Circunstância que, de certamaneira, interfere na forma diarística, pois as anotações nãoobedecem ao estatuto do cotidiano, tanto assim que o ro-mancista deu entrada ali dia 25 de dezembro de 1919, e asprimeiras anotações são de 4 de janeiro de 1920, ou seja, osprimeiros episódios ocorridos se tornam recordações, as quaisse caracterizam pela seleção de acontecimentos.

O Diário íntimo é um texto mais fragmentado, as divi-sões seguem o calendário, abarcando 21 anos da existênciado escritor. A liberdade dessa forma literária permite ano-tações das mais diversas; nela encontramos comentáriossobre leituras de livros, jornais, orçamentos domésticos,aforismos, citações, esboços de projetos literários, confis-sões abafadas pela angústia, extravasamento de váriasemoções. A liberdade que o eu alcança nesse espaço tornapossível ao diarista promover exercícios de escrita, arquivode idéias, como Lima Barreto (1956c, p.99) revela em 20de fevereiro de 1905:

Há mais de dez dias que não tomo notas. Nada de

notável me há impressionado, de forma que me obrigue a

registrar. Mesmo nos jornais não tenho lido que me pro-

voque assinalar, mas como entretanto eu queria ter um

registro de pequenas, grandes, mínimas idéias, vou conti-

nuá-lo diariamente.

4 Nota prévia de Francisco de

Assis Barbosa ao Diário íntimo

de Lima Barreto, p.19-20.

5 Não há apenas o discurso

que alguém diz aos outros, há

sobretudo o discurso que se diz

a si mesmo. Este discurso não

é destinado a ninguém que

a si mesmo ou àqueles que o

indivíduo identifica consigo

mesmo. A publicação de um

diário íntimo, verdadeiramente

destinado, a si mesmo,

não pode ser menos que

uma traição.

288 Revista Brasileira de Literatura Comparada, n.12, 2008 Cartografias da intimidade na literatura brasileira: os diários... 289

O Diário do hospício, em dez capítulos, possui um tex-to mais compacto, os primeiros capítulos são divididos portemas e os últimos são fragmentos. As anotações foramrecolhidas no período de três meses, durante a passagemde Lima Barreto pelo manicômio. A forma diarística nas-ce de uma situação de isolamento, e o Diário do hospício seajusta a tal característica pela circunstância do confina-mento. Nele emerge um homem que se confessa em plenacrise: “Voltei do café entediado. Um vago desejo de mortede aniquilamento. Via minha vida esgotar-se, sem fulgor,e toda a minha canseira feita, às guinadas. Eu quisera aresplandecência da glória e vivia ameaçado de acabar numaturva, polar loucura” (Barreto, 1956d, p.83).

A elasticidade da forma do diário e a diluição das fron-teiras que ela promove fazem que o diarista mude o regis-tro do cotidiano e escorregue para a ficção, ou mesmoreproduza um instante de delírio, e quem assume as con-fissões é Tito Flamínio: “Estava deitado no dormitório queme tinham marcado e ele chegou à porta e perguntou: –Quem é aí Tito Flamínio? – Sou eu, apressei-me” (ibidem,p.66). A personagem que invade o relato do hospício setorna autor, recordando até mesmo o passado: “Não ameinunca, nem mesmo minha mulher que é morta e pela qualnão tenho amor, mas remorso de não tê-la compreendi-do” (ibidem). A circunstância de escrever um diário na-quele momento pode configurar-se também como um exer-cício literário para a elaboração da obra ficcional, pois osapontamentos do Diário do hospício deram origem aoinacabado romance autobiográfico O cemitério dos vivos.Nele, algumas passagens recebem tênues mediações, comose pode observar nos relatos de identificação dos internosnas duas obras:

No Diário do hospício:

Sem fazer monopólio, os loucos são da proveniência

mais diversa, originando-se em geral das camadas mais

pobres da nossa gente pobre. São de imigrantes italianos,

portugueses e outros mais exóticos, são os negros roceiros,

que teimam em dormir pelos desvãos das janelas sobre uma

esteira esmolambada e uma manta sórdida; são copeiros,

cocheiros, moços de cavalariça, trabalhadores braçais. No

meio disto, muitos com educação, mas que a falta de re-

cursos e proteção atira naquela geena social. (Barreto,

1956d, p.36)

Em O Cemitério dos vivos:

Os loucos são de proveniências as mais diversas; ori-

ginam-se, em geral, das camadas mais pobres da nossa gente

pobre. São pobres imigrantes italianos, portugueses, espa-

nhóis e outros mais exóticos; são negros roceiros, que levam

a sua humildade, teimando em dormir pelos desvãos das

janelas sobre uma esteira ensebada e uma manta sórdida;

são copeiros, são cocheiros, cozinheiros, operários, traba-

lhadores braçais e proletários mais finos: tipógrafos, mar-

ceneiros, etc. (ibidem, p.179)

No Diário íntimo, Lima Barreto desenvolvia os em-briões de personagens e enredos; com isso, às vezes as es-critas se confundem, ou melhor, se fundem, revelando suaimportância, como assinala Arnoni Prado (1989, p.6):

No fundo, a amargura da confissão modela as másca-

ras depois transformadas em personagens: o jornalista que

investe contra as mazelas do mundo que o exclui, ao recriá-

las no espaço literário, permanece no labirinto, enredado,

entre temores, preconceitos e miragens. As máscaras esfu-

madas do Diário tanto vincam o narrador dos artigos e das

crônicas quanto animam as personagens dos contos e dos

romances, ainda que o resultado seja mais caricatural do

que metafórico, montagem quase flagrante das circunstân-

cias mais do que transfiguração do real pela palavra.

Esse treinamento para a narrativa ficcional, desenvol-vido no diário, é comum entre escritores. Virgínia Woolf,por exemplo, segundo Munira Mutran (2000, p.43), con-siderava que escrever no diário todos os dias é um saltopara a obra de arte, pois solta os ligamentos e aumenta afacilidade na criação dos romances; enquanto Butler Yeatsvia essa forma como fonte de inspiração para os ensaios,

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porque nele registra idéias e pensamentos do dia-a-dia e,assim, compreender e descobrir para criar.

Desde que Lima Barreto se tornou conhecido nosmeios literários, ressoa um comentário já cristalizado pe-las diversas citações – que ele seria a maior personagem desua obra. Sem dúvida, a vida pessoal do romancista é car-regada de todas as tintas que compõem um enredo trági-co: solidão, vício, sonhos desfeitos, ausência de amor, se-xualidade reprimida, exclusão racial e social, a presençada loucura. Em outros termos, a própria existência se en-carregou de promover a fragmentação de sua subjetivida-de, que ele tentava recompor por meio dos escritos ínti-mos, levando-o a se questionar constantemente sobre osmotivos de sua melancolia e inadaptação: “Hoje (6 denovembro) fui à ilha, pagar dívidas de papai... na volta,estava triste; na estação de São Francisco (vim pela Pe-nha), ao embarcar, me invadiu tão grande melancolia, queresolvi descer à cidade” (Barreto, 1956c, p.46); e, em ou-tro momento: “Em mim, eu já agora tenho observado, háuma série chocante de incongruência de sentimentosdesacordes, de misteriosas repulsas. Não sei! Não sei! Ofuturo elucidará” (ibidem p.51).

Se a inclinação solitária e melancólica responde emparte pelo seu desajuste pessoal, por sua vez, o romancistaassistiu a uma série de transformações no Brasil: a aboli-ção da escravatura, a proclamação da República, o “bota-abaixo” da capital federal, o crescimento da urbanização,o avanço do tecnicismo. Essa avalancha de acontecimen-tos provoca um sentimento de despersonalização, o “eu”suburbano projeta-se no burburinho da cidade e conhecea solidão que o dilacera. O gesto diarístico, nesse contex-to, supre a necessidade de comunicação do “eu” consigomesmo e com os outros, além de reafirmar a identidade.

Na entrada de 1903, do Diário íntimo, deparamos comuma nota iluminadora quanto à necessidade de o roman-cista se afirmar nas instâncias pessoal, familiar, social eliterária – é a constante busca de si e da reafirmação deseus projetos diante do espelho de palavras:

Eu sou Afonso Henriques de Lima Barreto. Tenho vin-

te e dois anos. Sou filho legítimo de João Henriques de

Lima Barreto. Fui aluno da Escola Politécnica. No futuro,

escreverei a História da escravidão negra no Brasil e sua in-

fluência na nossa nacionalidade. (Barreto, 1956c, p.33)

Marcello Duarte Mathias (apud 1992, p.29) assinalaque “em todo diarista existe uma ferida secreta, um desa-certo com o mundo que o circunda e o diário mais não é,em última instância, do que esse frente-a-frente, a sós, semintrusos, forma íntima e salvadora afinal de convivência”.Nesse sentido, uma das revelações mais iluminadoras parase compreender Lima Barreto e suas transfigurações naficção é seu conflito na convivência doméstica, que impli-ca em sua inadaptação com o mundo:

Se essas notas forem algum dia lidas, o que não espe-

ro, há de ser difícil explicar esse sentimento doloroso que

eu tenho de minha casa, do desacordo profundo entre mim

e ela, é de tal forma nuançoso a razão de ser disso, que para

bem ser compreendido exigiria uma autobiografia que nun-

ca farei. (Barreto, 1956c, p.77)

No Diário do hospício, a confissão do mergulho no ví-cio sinaliza o mesmo descompasso interior: “Muitas cau-sas influíram para que viesse a beber; mas, de todas elas,foi um sentimento ou pressentimento, um medo, sem ra-zão nem explicação, de uma catástrofe doméstica semprepresente” (Barreto, 1956d, p.47).

Lima Barreto, o mulato “desorganizado”, suburbano,demonstra a consciência de seu direito de homem comume sem posses de dizer de si mesmo e interpretar o Brasil apartir de seu lugar social. Sem a intenção de realizar umacomparação desigual, mesmo porque Rousseau é um filó-sofo e não uma pária social, a defesa, nas Confissões, dodireito de dizer de si alcança, de certa maneira, a intençãode Lima Barreto:

Não se objete que, não sendo mais que um homem do

povo, não tenho nada a dizer que mereça a atenção dos

292 Revista Brasileira de Literatura Comparada, n.12, 2008 Cartografias da intimidade na literatura brasileira: os diários... 293

leitores. Isso pode ser verdade para os acontecimentos

de minha vida: mas escrevo menos a história desses acon-

tecimentos que a do estado de minha alma, à medida que

aconteceram. Ora, as almas são mais ou menos ilustres na

medida em que têm sentimentos mais ou menos grandes e

nobres, idéias mais ou menos vivas e numerosas. (Staro-

binski, 1995, p.192)

A transparência, que é idealizada nos diários, se trans-figura em seus narradores protagonistas, nada tímidos naexposição da subjetividade, em meio a uma nova e com-plexa realidade que se desenhava no horizonte do séculoXX. E a virtude dessa exposição íntima é assinalada porBernardo Carvalho (1993, p.10): “Num lugar onde tudose corrompe, só lhe resta ser fiel a si mesmo. Num lugartomado pela mesquinharia intelectual, essa integridade setorna subversão. É essa a radicalidade do que o escritorchama de ‘absoluta sinceridade’”.

A constituição melancólica, sonhadora e inadaptadade Lima Barreto e um certo narcisismo às avessas ditam omovimento nos dois diários, nos quais o mundo interior eas incursões ao mundo exterior provocam uma dialéticaconflituosa.

Nesta cartografia da intimidade de Lima Barreto po-dem-se perceber as linhas mestras de seus diários: a buscade si, ou seja, o autoconhecimento, a afirmação do ser, otreinamento literário, a fuga da solidão, o extravasamentode emoções, a terapêutica da confidência e do desabafo.Todavia, no Diário do hospício, além desses fatores, são per-cebidas, com maior nitidez, a conjugação entre testemunhoe documento e até uma espécie de crônica da exclusão:

As notas tomadas durante a permanência no Hospí-

cio Nacional de Alienados formam, pois, um corpus à par-

te, não são uma continuação de seu diário íntimo, mas um

diário de características especiais. Daí a decisão do organi-

zador de manter a independência desse texto, espécie de

crônica da exclusão, que pouca atenção já recebeu da fortu-

na crítica do autor, (Resende, 1993, p.172)

Essas diretrizes também podem ser vistas como frag-mentos do eu, que se projetam na ficção, desenhando ocontorno de sua literatura; nela, temas e personagensemergem das profundezas – em que ele mergulhou – seupróprio eu.

A escritura dos diários de Lima Barreto é uma espéciede espelho de Narciso às avessas, mirando a própria exis-tência mediante a nudez da alma, traduzida pela escrita.O escritor, a seu modo, coloca uma reflexão que atinge eultrapassa seu tempo – o culto da vida interior ou sua ex-posição, em diários, crônicas ou em romances autobiográ-ficos, não podem ser privilégio das classes superiores, assimcomo o direito de manifestar opiniões e de ter acesso auma “literatura inteligível”.

Os fragmentos do cotidiano recolhidos pela observa-ção do escritor são mimetizados no diário por meio doestilhaçamento do eu, e, como um prisma, refletem emsua obra, projetando uma literatura em forma de mosaicoque contribui para um painel da memória cultural e hu-mana brasileira na transição do século XIX.

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297

Lúcio Cardoso: Diário completo,memórias incompletas

Suely da Fonseca Quintana*

RESUMO: O objetivo deste trabalho é apresentar parte dos re-

sultados da pesquisa sobre os procedimentos narrativos dos tex-

tos memorialísticos e autobiográficos da obra de Lúcio Cardo-

so. Para este artigo, o recorte analisado pertence ao livro Diário

completo.

PALAVRAS-CHAVE: Memória, narrador, crítica cultural

ABSTRACT: The aim of this work is to present part of the results

obtained from the research on the narrative procedures of

memorialistic and autobiographic texts in the works of Lúcio

Cardoso. In this article the work we used as corpus for illustra-

tion was his novel Diário completo.

KEYWORDS: Memory, narrator, cultural criticism.

Jacques Derrida (2002, p.44), em seu livro O animal

que logo sou, após discutir a consciência do ser homemem contraste com o ser animal, lança algumas questõesque podem mediar a análise a que nos propomos a respei-to da escrita do Eu no Diário completo de Lúcio Cardoso:“Pode-se aproximar do animal e a partir do antes do male antes dos males?”.

Essas perguntas remetem a fala do homem para umtempo anterior à nomeação dele e dos animais. Tempoanterior às diferenças e à verdade e à consciência da ver-dade. O conhecimento revela ao homem sua nudez, amortalidade. Ele passa do ser natureza para o ser da técni-ca. Segundo Derrida, nunca ocorreu ao animal vestir-se,pois ele se desconhece fora da natureza. Perceber o que épróprio do homem seria perceber-se como homem. ParaDerrida (2002, p.41-2):

* Professora doutora da

Universidade Federal de São

João Del-Rei (UFSJ) – São

João Del-Rei (MG).

298 Revista Brasileira de Literatura Comparada, n.12, 2008 Lúcio Cardoso: Diário completo, memórias incompletas 299

Aquele que recebe um nome sente-se mortal ou mor-

rendo, justamente porque o nome quereria salvá-lo, chamá-

lo e assegurar sua sobrevivência. Ser chamado, escutar-se

nomear, receber um nome pela primeira vez, é talvez saber-

se mortal e mesmo sentir-se morrer.

Desse modo, o homem que nomeara todos os animais,ao receber um nome, se coloca diante da verdade do “ani-mal que logo sou”. Escrever é nomear. Escrever diários,memórias, biografias é dar-se o nome e a morte. A mortedessa vida que se escreve é encerrada por quem a domina –o narrador de si mesmo. Jacques Derrida esclarece que fa-lar de si mesmo cria um tempo “que separa, em princípio, ese fosse possível, a autobiografia da confissão” (ibidem,p.43). Esse tempo entre o Eu e a escrita de si retoma otempo da criação, do Gênese, no qual nomear era criar oinício e o fim do ser, era compartilhar com o divino. Por-tanto, a revelação sobre si mesmo, na autobiografia, se tor-naria uma confissão. A confissão é um discurso reveladorde uma dívida para com a verdade, isso porque existe aculpa pelos males, a falta cometida que impede o retornoao tempo sagrado, anterior à queda humana. Ainda de acor-do com Derrida, haveria uma possibilidade nesse discursoda confissão e mesmo na confissão, que se torna literatura,de falar de si de forma virgem; linguagem servindo comoforma de resgate e fonte de libertação.

A escrita de Lúcio Cardoso, em Diário completo, apre-senta em vários momentos a busca incessante da reden-ção pela linguagem. A escrita de si como resgate do per-dão, como expiação da culpa em um tempo visto comohorizonte redentor. Conforme se lê na questão formuladapor Jacques Derrida (2002, p.44):

Haveria, desde esse tempo, lugar e sentido para uma

anterior ao pecado original e a todas as religiões do livro?

Uma autobiografia e memórias anteriores ao cristianismo

sobretudo, anteriores às instituições cristãs da confissão?

O cristianismo, o catolicismo, a culpa e o castigo mar-cam de forma profunda o Eu narrador do Diário completo.

A própria maneira de escrever o diário já traduz o eu ator-mentado dessa escrita. O diário, além da forma regulardos registros diários, foi escrito também para ser publicado.Alguns amigos íntimos leram trechos e opinaram sobre olivro de Lúcio Cardoso. Chamo livro, pois o que se lê é umdiário no qual o Eu se transmuta da intimidade de umnarrador e leitor de si mesmo para uma personagem,construída pelo pudor e própria condição de se expor. É o“ver-se visto nu” (ibidem). Falar publicamente de si tor-na-se um momento de confissão. Confessar-se para o ou-tro e ver-se nu e expor sua nudez. É a possibilidade de sever a partir do olhar exterior. O perdão, o resgate dos ma-les só pode vir de fora, do outro olhar que julga e compar-tilha do humano: a consciência de si.

A primeira versão do diário de Lúcio foi publicadaquando ele ainda estava vivo. O texto passou pelas mes-mas revisões que qualquer livro para ser publicado e quenão fosse de foro íntimo. Eis o que escreve Lúcio Cardoso(1970, p.235) a esse respeito em dezembro de 1957: “Re-vendo o primeiro volume do Diário para publicação – quan-ta coisa me parece inútil; que se poderia ter deixado dedizer”. Essa forma de escrita de si busca, em verdade, re-produzir o poder do criador de nomear, alterar e construira verdade desejada.

O diário foi publicado novamente, depois da mortede Lúcio, acrescido da parte que o autor escreveu após aprimeira edição. Ao lermos o agora Diário completo, nota-se a diferença entre as duas partes, a que foi revista peloautor e a que foi publicada na íntegra, sem cortes e semsua própria censura.

A escrita-confissão de Lúcio Cardoso se apresenta,em várias partes do Diário completo, como uma reflexãofilosófica e religiosa sobre a grande falta do Bem sentidapelo ser humano, o elo perdido com o Paraíso, que não seencontra por não saber como é. Assim explica o autor essespensamentos, como se as vidraças fossem a metáfora damediação entre o homem e o mundo, o homem e o co-nhecimento, aquilo que se vive e vê não pode ser maisalterado apenas pelo ser:

300 Revista Brasileira de Literatura Comparada, n.12, 2008 Lúcio Cardoso: Diário completo, memórias incompletas 301

Viver assim não é viver – podemos sofrer da carência

de algumas coisas, mas não dos fatores vitais que nos ani-

mam. Falta-me tudo, a paz, a inspiração, a vontade de con-

tinuar... Alguma coisa está AUSENTE de mim. Sinto, ca-

minhando pelas ruas cheias de gente e densas de um

frenético fervor pela vida, que sou apenas um grande vazio

sem motivo. Para mim, a existência escorre como se eu

contemplasse seu espetáculo através de vidraças baixadas.

(ibidem, p.64)

O catolicismo, na versão introduzida desde a infânciana formação de Lúcio Cardoso, se mostra mais como for-ma de angústia que alento; é dessa maneira que o autorinterpreta sua relação com o sagrado enquanto instituição:

Sem a noção de pecado, não há fé possível.

A Igreja, em vez de acentuar esta verdade, transpor-

tando assim o homem ao seu seio, ajudando-o a se fortale-

cer na sua noção de culpa e de remorso, auxiliou-o apenas

a acreditar que Deus foi quem nos abandonou. Movimen-

to inverso e de terríveis conseqüências, pois à força de se

acreditar abandonado, o homem passou a acreditar que o

céu estivesse vazio. (ibidem, p.165)

Para Lúcio Cardoso, o amor de Deus transcendia otempo e as necessidades humanas, e o Cristo seria a for-ma de redenção e ligação com o sagrado. O homem comsuas fraquezas teria em Cristo o esteio para se firmar e secomunicar com Deus, uma vez que, se sentindo abando-nado por Ele, necessitava de amparo. O autor, em outrostrechos, critica a religião institucionalizada pelos homens,mas crê na transcendência de Deus, como naquele tem-po antes do Mal e da queda, dos quais nos falou Derrida(2002). Lúcio Cardoso (1970, p.165) por isso se refere aJesus de forma diferente:

O corpo de Cristo, sua presença, seu sangue e suas

chagas – Ele é o próprio centro do mistério e da razão da fé,

o que nos demonstra a insofismavelmente a unidade exis-

tente entre Deus e o homem, pois sendo Deus, é na forma

de homem que se apresenta aos nossos olhos.

Diante dessas reflexões sobre o ser, sobre o lugar dohomem diante do sagrado, sobre a culpa, Lúcio Cardosoaproxima essas questões do tom confessional da salvaçãopela escrita. Escrever sobre si, escrever o Eu transtornadopelo mundo, é rever para si e para o Outro os vários luga-res do trajeto humano, diante dos pecados e das dúvidasdurante a vida. A arte e a criação funcionam para o autorcomo um projeto obsessivo: “E é inútil repetir, tão velha éa verdade: só é possível a existência de uma obra de arte,através da obsessão” (ibidem, p.14). A posição do escritorno Diário completo sinaliza seu procedimento de criação dosromances, por exemplo. Ele faz observações no Diário so-bre o que e como escrevia em variados momentos. O livrosobre o qual há mais anotações é O viajante, que não che-gou a ser concluído porque, após sofrer um derrame cere-bral, Lúcio Cardoso não conseguiu mais escrever. Após suamorte, o amigo Octávio de Faria organizou os textos dolivro e deu uma ordenação semelhante à que Lúcio de cer-ta forma fizera em suas anotações nos originais, manuscri-tos, nos roteiros deixados para desenvolver depois e nasnotas em seu diário. Esse livro, bem como A crônica da casa

assassinada, A luz no subsolo e Os dias perdidos revelam sem-pre as grandes temáticas, que o autor buscava de formaobsessiva: culpa/ crime/ castigo/ salvação. No que se refereà salvação, é um tema sem concretização. As personagenssão construídas sem a transcendência da fé e do conheci-mento de si. Não têm a consciência da humanidade do Eu.

A escrita obsessiva de Lúcio Cardoso expõe a verda-de e a nudez do humano em seus conflitos. Ele coloca ohomem louco como a perspectiva mais límpida de exposi-ção do verdadeiro Eu, aquele que não pode ser dominadopela vivência em sociedade:

Dentro de mim, sombra – mas fria e calma. Fora, som-

bra onde cumpro os gestos que todos sabem. O que apren-

demos, é como nos ocultar de um modo banal, como toda

gente mais ou menos se oculta. O que ocultamos, é o que

mais importa, é o que somos. Os loucos, são os que não

ocultam mais nada – e em vez dos gestos aprendidos, tra-

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duzem no mundo exterior os signos do mundo secreto que

os conduz. (ibidem, p.20)

Essa vida secreta precisa de uma máscara para convivercom o Outro e com a própria possibilidade de sua escrita:

Enigmática máscara: que se cumpre por trás do que

sonhamos? Há uma construção de palpitações verdes por

trás dos personagens que se esfumam em nossa mente, se-

melhante a um cenário de ópera, através do qual escorre

incessantemente um rio de águas agitadas e perfeitas. [...]

Assim estou, pois, nesta curva do caminho. E posso dizer

que tudo me falta, se bem que tenha tudo. Os bens da Ter-

ra, ai de mim, não cumulam minhas ambições, e o que es-

pero é uma sinfonia de paz ouvida não sei onde. Algo me

atrai que não está em mim e me impede da identificação

com as coisas. Mas não são acaso as ausências que me cum-

prem? (ibidem, p.23)

A obsessão e o agitar permanente do interior de Lú-cio Cardoso são também elementos de propulsão, o existirna ausência de si; a forma paradoxal de ser o mesmo e oOutro: “Não existo no pleno, e sim no que carece. Assima melodia se concebe e vibra, ao longo de uma existênciaque jamais sacia o meu desejo de variedade” (ibidem, p.23).A variedade da vida precisa ser construída, o fora não existesem o Eu criador:

Nada que existe é aquilo por si apenas – tudo projeta

uma intenção oculta, uma aura que transforma a matéria

mais dura. Há projeções sem forma concreta, mas é impos-

sível haver formas sem projeções. Completo, o mundo da

poesia transfigura-se em sobrenatural – incompleto, o mun-

do aparente traduz apenas os emblemas de uma ordem mais

alta. (ibidem, p.24)

De acordo com Jacques Derrida (2002), o animal, porser dotado de linguagem, que é o homem, não significaque possa falar e responder a verdade para si mesmo. Poisfalar, usar a linguagem é o que permite a esse animal (ho-mem) apagar-se, apagar seus rastros como nenhum outro.Explicando melhor, vejamos a citação seguinte:

E essa possibilidade – traçar, apagar ou confundir sua

assinatura, deixá-la perder-se – seria então de grande al-

cance. Dispor ou não de seus rastros, para confundi-los para

apagá-los, tanto que, como já foi dito, alguns poderiam fazê-

lo (o homem, por exemplo) e outros não (O animal, por

exemplo, segundo Lacan), talvez não seja uma alternativa

fiável em torno de um limite indivisível. Será oportuno

retornar sobre estes passos e sobre estas pistas. Que um

rastro possa sempre se apagar, e para sempre, não significa

absolutamente, e isto é uma diferença crítica, que alguém,

homem ou animal, eu sublinho, possa por si mesmo apagar

seus rastros. (Derrida, 2002, p.63-4)

Usando a metáfora do animal, o filósofo desenvolveuma discussão sobre os diversos animais que existem noEu. Retornar sobre os próprios passos ou rastros é possívelporque o animal que logo sou permite a reconstituição pelalinguagem, a qual se torna presença do rastro ausente. É aconsciência do poder da linguagem que permite ao narra-dor Lúcio Cardoso (1970, p.216) recompor-se em seu diá-rio: “A força com que me sinto eu mesmo, dono de mimmesmo: para construir-me como quero, e é singular a for-ça com que me vejo a mim mesmo, como uma criação noespaço. Separação e elaboração”.

A escrita em primeira pessoa, típica do gênero diário,é pouco significativa no caso de Lúcio Cardoso. Essa pri-meira pessoa se esconde e se mostra de forma fictícia, talqual uma personagem de antemão construída comoficcional, com o detalhe de que, no caso de um diário, aassinatura do texto deveria coincidir com quem viveu enarra os acontecimentos. Sobre o cotidiano de Lúcio Car-doso pouco se sabe em seu diário. Os detalhes que, nor-malmente, deveriam aparecer ali, se dão a conhecer me-lhor nos dois textos memorialísticos da irmã de Lúcio,Maria Helena Cardoso, autora de Por onde andou meu co-

ração e Vida vidas.O que mais se revela por intermédio dessa primeira

pessoa são as reflexões de um Lúcio ao mesmo tempo es-critor-autor-testemunha e personagem de suas memórias.Assim se lê essa fusão no Diário:

304 Revista Brasileira de Literatura Comparada, n.12, 2008 Lúcio Cardoso: Diário completo, memórias incompletas 305

Divago, apenas divago sem encontrar motivo para tan-

tas horas difíceis – e sei apenas me lamentar, defendido

contra todo ataque da realidade, que não me é possível

suportar de modo algum. O amor para mim é uma alucina-

ção perfeita, um estado de transe e de obsessão. Nisto, o

movimento é idêntico ao que processa o romance no meu

íntimo: ambos me dão a sensação de que romper aquela

atmosfera mágica, é como destruir a força latente, os limi-

tes talvez de um mundo proibido, meu, somente meu. (Car-

doso, 1970, p.66)

Ao mesmo tempo que o espaço da escrita é o espaçodo criar e re-criar a si próprio, torna-se uma escrita que serevela para o outro antes de ser publicada. Obra que ocul-ta e revela o poder de ocultar e revelar os próprios rastros:

A opinião de J., a quem confiei este diário, paralisou-

me durante algum tempo. Volto agora, não com o objetivo

de realizar qualquer espécie de ideal literário, mas apenas

por uma... vamos dizer, uma disciplina do espírito, já que

carecemos de alguma, por mais leve que seja. Não quis, pelo

menos até agora, transformar este caderno numa exposição

de idéias. Nem sei se há nele, realmente, a intenção de apre-

sentar uma idéia nítida – fui escrevendo naturalmente, e é

possível que reflexos alheios (é disto, sobretudo, que ele me

acusa: não serem novas minhas idéias...) reminiscências de

conversas ou leituras, tenha aflorado com certa insistência

a estas páginas. [...] Impossível uma visão geral, um concei-

to definitivo sobre o todo, quando o autor é tão desconhe-

cido nosso e as qualidades que prezamos se ramificam em

tão sabidos e numerosos defeitos. (ibidem, p.122-3)

Com essa referência aos leitores de seu texto, LúcioCardoso revela as camadas que compõem as escritas doEu. No sentido derridiano dos animais que sou/somos, ficaevidente também, no trecho citado, que o si-mesmo, nabusca de sua verdade, se vê e se conhece também pela lei-tura do Outro. Essas questões teóricas também estão rela-cionadas ao processo de escrita dos textos memorialísticos.

Os estudos que tratam de memória e autobiografiasão numerosos e vastos, são os recortes feitos nesse uni-

verso da memória e suas associações com a história, a psi-cologia, a sociologia e, especialmente, no âmbito das dis-cussões dos estudos culturais.

Do ponto de vista de Jacques Le Goff (1996), o estudoda história, permeado por dados de outras ciências e dafilosofia, além das experiências individuais e coletivas, ten-de para uma ampliação do conceito de tempo. Segundo LeGoff (1996, p.13), “A oposição passado/presente é essencialna aquisição da consciência de tempo”, e a noção de tem-po hoje se mostra atravessada pelo cruzamento de tempossubjetivos ou simbólicos que atravessam o cronológico, re-velando a multiplicidade e a relatividade da noção de tem-po. Portanto, a memória, o individual, o coletivo atraves-sam o tempo histórico e têm um caráter de suplemento.

Também as histórias individuais, presentes no Diário

completo, adquirem um caráter próximo dos relatos oraisda história e da memória, analisados por Ecléa Bosi (1994;2003) em dois de seus livros: Memória e sociedade: lem-branças de velhos, e O tempo vivo da memória: ensaios depsicologia social.

Em Memória e sociedade, Ecléa Bosi (1994) realiza umestudo sobe a memória de velhos, estabelecendo comodado comum a idade superior a setenta anos e o espaço dacidade de São Paulo. Embora sua pesquisa tenha um re-corte bem específico, pode-se retirar dela contextos críti-cos e teóricos mais abrangentes, que não se restringem àanálise feita dos dados colhidos nos relatos da história oraldessas pessoas. A autora se utiliza das concepções de me-mória e percepção para afirmar, por exemplo, que:

O passado conserva-se e, além de conservar-se, atua

no presente, mas não de forma homogênea. De um lado, o

corpo guarda esquemas de comportamento de que se vale

muitas vezes automaticamente na sua ação sobre as coisas:

trata-se da memória-hábito, memória dos mecanismos mo-

tores. De outro lado, ocorrem lembranças independentes

de quaisquer hábitos: lembranças isoladas, singulares, que

constituíram autênticas ressurreições do passado. (Bosi,

1994, p.48)

306 Revista Brasileira de Literatura Comparada, n.12, 2008 Lúcio Cardoso: Diário completo, memórias incompletas 307

Essa consideração é importante, pois trata do aspectoplurissignificativo e heterogêneo da memória. Ao se abor-dar textos memorialísticos e/ou autobiográficos não é pos-sível esquecer que parte dessas lembranças individuais es-tão mescladas por lembranças coletivas. A visão parcialda percepção do autor das memórias também se ampliapara a sua percepção do real. Esse ponto nos permite lernas entrelinhas dos textos memorialísticos e autobiográfi-cos a suplementação do ponto de vista sobre uma época,sua sociedade, sua cultura.

Lúcio Cardoso, em sua peculiar escrita do Eu, acres-centa considerações que se fundem a uma história maior,tanto no sentido social e histórico quanto no existencial;como na seguinte citação:

Desconfiar, reagindo sempre. Não aceitar nunca. Todo

pacto com o tempo presente é uma forma de trair o futuro.

Os homens, as coisas, os sentimentos de hoje, são restos de

antiguidade, dos sentimentos, as coisas e dos homens que

já exprimiram, que já se manifestaram como elos de cresci-

mento. Não nos lançarmos à compreensão fácil e nem nos

situarmos nos terrenos de uma aceitação superficial: o que

é duradouro exige paixão, e paixão significa ao mesmo tem-

po repulsa e atração. Os homens de hoje nos compreen-

dem pelos lados que nos são mortos, sem resistência para o

futuro; aqueles que nos aceitam, são os que o fazem sem

compreender o que em nós é substância imatura, destina-

da a nos fazer perduráveis ao longo do tempo. O tempo

presente é o nosso túmulo – e a única coisa a que se pode

dar o nome de ressurreição é o futuro. (Cardoso, 1970, p.79)

De acordo com Philippe Lejeune (1975), cada histó-ria pessoal, escrita ou narrada oralmente, se constitui fon-te de memórias ou de autobiografias. A partir de suas pes-quisas, o autor afirma que os mesmos procedimentosnarrativos se encontram presentes nos textos memo-rialísticos ficcionais ou tidos com “verdadeiros”, no casode memórias individuais ou autobiografias. Dessa consta-tação ele reflete sobre o conceito de pacto autobiográficoentre autor e leitor, para que se compreenda o processo

seletivo e a interferência do imaginário criador na escritu-ra de memórias e autobiografias. A diferença reside no fatode se tomar esse gênero como obra de alguém elevado àcategoria de escritor no sentido lato ou de depreciar o gê-nero como um anônimo desabafo ou registro meramentepessoal, individual, sem ligações com os contextos de pro-dução ficcional. Portanto, pode-se deduzir que o grau dediferença entre um texto de memórias ou de autobiografianão é nítido, depende da ampliação das lembranças ex-postas no texto: mais voltadas para os envolvimentos so-ciais, mais voltadas para o âmbito pessoal e familiar. Essacategorização se torna inútil, porém, para definir os gêne-ros, uma vez que toda memória é uma construção plural,polifônica. O Diário completo de Lúcio Cardoso tem essacaracterística ambígua, que esclarece e confunde vida, fic-ção, presente, passado e futuro, um conhecimento de si,repleto de dúvidas:

(Pesquisas, buscas arqueológicas, cidades desenterra-

das da areia – por que é que isto tanto me fascina? Se somos

a exata imagem do mundo, por que não supor em nosso

íntimo, no grau de nossa inteligência e nossa sensibilidade,

uma superposição de datas, de memórias idas e esvaídas, de

seres que já fomos, e de que só temos consciência pelos res-

tos que vêm à tona, ou que surgem trazidos pelas escava-

deiras da nossa curiosidade?) (Cardoso, 1970, p.222, pa-

rênteses do original)

Considerando o livro de Maurice Halbwachs, A me-

mória coletiva (cujas citações aqui apresentadas foram ex-traídas de notas traduzidas na internet), observa-se que oautor reforça a idéia de que a memória tem na própriapessoa uma testemunha do passado, bem como a possibili-dade do apoio nas lembranças dos outros, que comparti-lharam tempo e espaço com os autores das narrativas.Buscar o apoio em outras lembranças permite uma segu-rança maior na evocação dos fatos. Entretanto, pelo pró-prio processo seletivo e simbólico das lembranças, não hánecessidade de que as pessoas nelas envolvidas estivessem

308 Revista Brasileira de Literatura Comparada, n.12, 2008 Lúcio Cardoso: Diário completo, memórias incompletas 309

presentes como testemunhas de fatos, que serão narrados.É como se, no tempo e no espaço das vivências, as lem-branças pudessem acontecer pelo fato de ouvir contar oque, necessariamente, não foi presenciado.

A questão da autoria, portanto, nas escritas do eu serevelam, também no Diário de Lúcio, como uma evocaçãode memórias e vivências compartilhadas, como se podeler no seguinte trecho:

Alguém, há tempos, achou esquisito que eu afirmasse

não ser um escritor, e sim uma atmosfera. Há dias em que

me sinto um personagem, e não eu mesmo. Alguém está

contando uma história em que sou um dos acessórios. Só

me reconheço, só encontro de autenticamente meu, a obs-

tinação com que levo esse ser imaginado a costear todas as

rampas do precipício. (Cardoso, 1970, p.90)

As memórias do passado são entrecruzadas pela repre-sentação simbólica dos acontecimentos. Halbwachs (s. d.,p.54) assim define dois tipos de memória, com diferentesgraus de complexidade para serem lembradas: a coletivae a individual. No caso da memória individual, o autorafirma que:

Ela {memória individual} não está inteiramente isola-

da e fechada. [...] Ela se reporta a pontos de referência que

existem fora dela, e que são fixados pela sociedade. [...] nossa

memória não se confunde com a dos outros. Ela é limitada

muito estreitamente no espaço e no tempo. A memória co-

letiva o é também; mas esses limites não são os mesmos.

Eles podem ser mais restritos, bem mais remotos também.

Michael Pollak (1989, p.4), no artigo “Memória, es-quecimento, silêncio”, ressalta que entre a memória cole-tiva e as memórias individuais ocorre, além da seleção,um processo de “negociação” para que a partir dessa trocase possa reconstruir a memória individual numa perspec-tiva comum. De acordo com o autor, ao se privilegiar “aanálise dos excluídos, dos marginalizados e das minorias, ahistória oral ressalta a importância de memórias subterrâ-

neas que [...] se opõem à ‘memória oficial’”. Com isso elediscorda de Halbwachs, porque essa memória oficial pos-suiria não um caráter construtivo na preservação na pre-servação da memória coletiva, mas sim destrutivo e uni-formizador, ao apagar as memórias subterrâneas. Assim, ocampo ideal de pesquisas sobre a memória seria o espaçodo conflito, onde as disputas pela supremacia de determi-nadas formas de memória estão presentes.

Nas referências que Pollak faz sobre o papel do silên-cio nas memórias, percebe-se que esse surge justamentepor impossibilidades diversas do poder de “negociação”entre a memória coletiva e/ou a oficial com relação àsmemórias subterrâneas e/ou individuais – quer seja pelasituação dos vencidos nas guerras ou o caso dos exilados,quer seja por recuperar as dores da memória individualque entrariam em choque coma as vivências compartilha-das entre os narradores e as pessoas mais próximas, comoo grupo social ou familiar. Esses aspectos são assim resu-midos por Pollak (1989, p.6-7): “Assim também, há umapermanente interação entre o vivido e o aprendido, o vi-vido e o transmitido. E essas constatações se aplicam atoda forma de memória, individual e coletiva, familiar,nacional e de pequenos grupos”.

Retomando as anotações do Diário completo de LúcioCardoso, observamos o cuidado do autor em manter cer-tos nomes de pessoas amigas marcadas apenas com a letrainicial. Também durante pesquisa realizada no acervo deLúcio Cardoso, sob a guarda da Fundação Casa de RuiBarbosa, observamos que algumas cartas, ali arquivadas,só poderão vir a público daqui a dez anos; outras, somentedaqui a vinte anos. Considerando que Lúcio Cardoso fa-leceu em 1968 e que só bem mais tarde sua irmã, MariaHelena, doou seu acervo, é revelador o cuidado tanto deLúcio quanto de sua família em preservar as histórias deoutras memórias que se cruzaram com as suas.

Mário Carelli (1988), estudioso da vida e da obra deLúcio Cardoso, escreveu em seu livro Corcel de fogo que oautor tinha consciência dos limites de sua própria forma

310 Revista Brasileira de Literatura Comparada, n.12, 2008 Lúcio Cardoso: Diário completo, memórias incompletas 311

de escrever nas fronteiras da ficção, do ensaio e do texto dememórias. Retomo a citação usada por Carelli para explicitaresse aspecto, agora retirada diretamente da fonte original:

Sem dúvida, o ideal como “diário” não é um processo

constante de auto-análise – convenhamos que nem sem-

pre há dentro de nós grandes novidades, já somos tão co-

nhecidos – e sim alguma coisa que participe da invenção.

Gênero híbrido, a ser tentado. (Cardoso, 1970, p.86)

Dessa forma, de tentativa em tentativa, o si-mesmo,o animal que tem consciência do ser humano, preenche oque não sabe ou não quer revelar a seu respeito com aarte, a criação. O conhecimento de si mesmo é um nãolugar de certezas, como lemos no Diário:

Sim, a saúde, a alegria, o belo existem para mim, mas

como destroços de um mundo incoerente. As tristezas que

tenho, se não parecem minhas, de tão arbitrárias e violen-

tas, são como as alegrias: vindas não sei de onde e que me

apanham de repente no caminho. Não há motivo persis-

tente, um estado definitivo, há vagas que me devoram.

(ibidem, p.86-7)

Não há como movimentar-se com segurança em umtexto que pertença às escritas do eu. Seria um labirintocuja saída não se encontra com o fio de Ariadne; é maisparecido com as vagas de que fala Lúcio Cardoso, que nosarrastam, juntamente com o narrador-autor-escritor-per-sonagem, pelas correntezas. Em algum momento é possí-vel até flutuar e reconhecer algum pedaço de caminho,um resto de céu, um pouco da praia, mas na maior partedo tempo somos tão desconhecidos de nós mesmos que,quando retomamos o título do livro de Jacques Derrida(2002), temos a dimensão do desconhecido O animal que

logo sou (A seguir).

Referências

BERGSON, Henri. Matéria e memória. Trad. Paulo Neves. São Pau-

lo: Martins Fontes, 1999.

BOSI. Ecléa. Memória e sociedade: lembranças de velhos. 3.ed. São

Paulo: Cia. das Letras, 1994.

. O tempo vivo da memória: ensaios de psicologia social. São

Paulo: Ateliê Editorial, 2003.

CARELLI, Mario. Corcel de fogo: vida e obra de Lúcio Cardoso

(1912-1968). Rio de Janeiro: Guanabara, 1988.

CARDOSO, Lúcio. Diário completo. Rio de Janeiro: José Olympio,

1970.

DERRIDA, Jacques. O animal que logo sou (A seguir). Trad. Fábio

Landa. São Paulo: Editora Unesp, 2002.

HALBWACHS, Maurice. A memória coletiva. Disponível em:

<http:/pedagogiaeetc.vilabol.uol.com.br/memoriacoletiva.htm>.

Acesso em 2006.

LE GOFF, Jaques. História e memória. 4.ed. Trad. Bernardo Leitão

et. al. Campinas: Editora da Unicamp, 1996.

LEJEUNE, Phippe. Le pacte autobiographique. Paris: Seuil, 1975.

POLLACK, Michael. Memória, esquecimento, silêncio. Estudos

Históricos, Rio de Janeiro, v.2, n.3, p.3-15, 1989.

313

Minhas queridas, letras de amor e saudade

Vera Lúcia Albuquerque de Moraes*

Fernanda Maria Abreu Coutinho* *

RESUMO: A seleção de 120 cartas inéditas, pinçadas dos arqui-vos das irmãs Lispector por Teresa Montero, trata da trajetóriados primeiros vinte anos da escritora Clarice Lispector, consti-tuindo valioso arquivo literário e histórico. Além de mostrar asinterfaces do “amor e da ternura” entre as irmãs Lispector, olivro é um importante depoimento de momentos que marca-ram o exílio geográfico e sentimental dessa singular escritora domodernismo brasileiro.

PALAVRAS-CHAVE: Cartas, arquivos, irmãs, amor e ternura,exílio.

ABSTRACT: The compilation of 120 unpublished letters, selectedby Teresa Montero (2007) from the Lispector sisters files, focusthe period of the first twenty years of Clarice Lispector´s writ-ings and becomes a valuable historic and literary document.Besides showing the interfaces of “love and tenderness” amongthe Lispector sisters, the book is an important testimony of thetimes spent in a geographic and sentimental exile by this distin-guished representative of

the Brazilian modernism.

KEYWORDS: Letters, files, sisters, love and tenderness, exile.

Os dezesseis anos que Clarice Lispector passou “exi-lada” de sua família e de seu público leitor renderam umaalentada correspondência a amigos, escritores e, especial-mente, às suas irmãs Elisa e Tânia. Entre as décadas de1940 e 1950, Clarice fixou residência em várias cidadesdo exterior e escreveu dois romances: A cidade sitiada

(1949) e A maçã no escuro (1961), e O Lustre estava ter-minado quando ela se mudou para Nápoles. Nesse meio-

* Professora doutora do

Departamento de Literatura

da Universidade Federal do

Ceará (UFC) – Fortaleza (CE).

** Professora doutora do

Departamento de Literatura

da Universidade Federal do

Ceará (UFC) – Fortaleza (CE).

314 Revista Brasileira de Literatura Comparada, n.12, 2008 Minhas queridas, letras de amor e saudade 315

tempo, publicou as coletâneas de contos Laços de família

(1960), A legião estrangeira (1964) e Alguns contos (1952).Parte de sua correspondência a amigos e escritores foi

publicada em Cartas perto do coração (2000), Correspon-

dências (2002) e Minhas queridas (2007), este último umaseleção de 120 cartas inéditas, pinçadas dos arquivos dasirmãs Lispector por Teresa Montero, que trata da trajetó-ria dos primeiros vinte anos da escritora Clarice Lispector,constituindo valioso arquivo literário e histórico. Além demostrar as interfaces do “amor e da ternura” entre as ir-mãs Lispector, o livro é um importante depoimento demomentos que marcaram o exílio geográfico e sentimen-tal dessa singular escritora do modernismo brasileiro: “Eusou uma pobre exilada. Você não imagina como longe doBrasil se tem saudade dele. Sou capaz de escrever um novoBrasil, país do futuro...” (Lispector, 2007, p.63); “Já meparece sinceramente não pertencer mais a nenhum lugar,tenho medo disso. Mas vamos deixar o futuro ao futuro”(ibidem, p.279).

Com a morte do pai de Clarice, em agosto de 1940,ela e a irmã Elisa passaram a morar com Tânia, então ca-sada com William Kaufmann. A paixão pelas letras eracompartilhada pelas três irmãs Lispector, tendo Elisa pu-blicado seu primeiro romance, Além da fronteira, sem oconhecimento das irmãs, evidenciando, desde logo, ummodo de ser muito reservado. Clarice, a caçula, sempreexerceu uma atitude extremamente maternal com suas ir-mãs mais velhas, fato que se mostra nas minúcias e nosdetalhes de questões levantadas pela escritora em cartastrocadas com o núcleo familiar, no período em que morouna Europa e nos Estados Unidos.

Era tempo de guerra e a temporada de Clarice é pon-tuada por importantes momentos da história política daEuropa que interferiram no cotidiano da escritora: “O quetem me perturbado intimamente é que as coisas do mun-do chegaram para mim a um certo ponto em que eu tenhoque saber como encará-las, quero dizer, a situação de guer-ra, a situação das pessoas, essas tragédias” (ibidem, p.12).

Seu primeiro filho, Pedro, nasceu em Berna. Lá, Clariceentrou em contato com o existencialismo de Sartre, es-creveu A cidade sitiada e iniciou-se na leitura de FrançoisMauriac, Tolstói e Simone de Beauvoir. Nesse lugar,vivenciou dolorosamente um sentimento de “desenraiza-mento”, provocado por anos de permanência no estran-geiro, com a especificidade de pertencer ao meio diplomá-tico em que, segundo ela própria, se está fora da realidadee não se entra em nenhum meio: “o meio diplomático écomposto de sombras e sombras” (ibidem, p.14). Mas nãoé só o meio diplomático que lhe deixou indesejadas recor-dações: sua trajetória em Berna tornou-se maçante e in-color, a ponto de afirmar: “só voltarei a Berna se Pedrinhoquiser ver o lugar onde nasceu” (ibidem, p.222).

Seu exílio será tema das muitas cartas que escreveu asuas irmãs:

Estamos espiritualmente cansados [...] imagina que daquia alguns anos estaremos exaustos. O corpo e cabeça ficamconstantemente procurando uma adaptação, a gente ficafora de foco, sem saber mais o que é e o que não é. Nemmeu anjo da guarda sabe mais onde moro. (ibidem, p.14)

O acervo que compõe Minhas queridas legitima-senuma época em que se acentua um crescente interessepela correspondência e pelo manuscrito literário, impor-tância essa que vem crescendo significativamente à medidaque a internet se instala como meio de dominação da pro-dução escrita, anulando cartas de papel escritas a mão ouem máquinas de escrever. Assim, esse maço de lembran-ças cuidadosamente cultivado oferece ao leitor a oportu-nidade de evocar tempos passados, tempos em que haviao uso do telégrafo, em que o carteiro era personagem des-tacada de tantas vidas, valendo como um istmo entre sau-dades apartadas pela distância. Ah! e as palmas no portãoou, na melhor das hipóteses, o triim da campainha deixa-va os corações em alvoroço, nesses longes em que tam-bém havia a comunicação pelo rádio entre localidades queos mapas se encarregavam de separar. Clarice confessa a

316 Revista Brasileira de Literatura Comparada, n.12, 2008 Minhas queridas, letras de amor e saudade 317

Tânia que “receber carta sua às vezes tem o sentido queteria abrir as janelas de um quarto onde eu estivesse fe-chada há semanas” (ibidem).

Lygia Fagundes Telles, no ensaio que escreveu para olivro História das mulheres no Brasil, organizado por MaryDel Priore (2006), pondera que a revolução da mulher foia mais importante do século XX. Não se trata da revolu-ção feminista, com tantas polêmicas e conotações ideoló-gicas, mas de uma revolução subterrânea – prudente epaciente – e, talvez, mais obscura. Teria o seu nascedourovisível no final do século XIX e viria a desenvolver-se ple-namente na Segunda Grande Guerra, quando os homenspartiram para as trincheiras e as mulheres ficaram na reta-guarda, dispostas a exercer o ofício desses homens nas fá-bricas, nos escritórios, nas universidades, entre outros lu-gares. Enfim, as mulheres foram à luta e se orgulharam desi próprias, reconhecendo-se nesse processo: tudo isso ex-plica em parte o veio narcíseo das representações femini-nas em suas diversas manifestações; explica também onascimento consciente de autoras engajadas às suas ver-dades: “Mas estou já cansada de minhas hesitações, que jáme trouxeram bastante aborrecimento. Tenho sempre queme lembrar que tudo que consegui na vida foi à custa deousadias, embora pequenas” (Lispector, 2007, p.206).

Lícia Manzo (1997), no instigante livro Era uma vez:

Eu – a não-ficção na obra de Clarice Lispector, afirma queessa escritora esboça, por meio de sua literatura, um per-curso irreversível em direção à primeira pessoa, ao textoconfessional, ao eu, acabando por converter-se na perso-nagem central de seus textos. Refletindo nessa direção,compreende a ficção clariciana como uma “autobiografianão planejada”, um exercício de ler a sua vida por inter-médio do que Clarice nos “contou” em sua literatura:

O ato criador é perigoso porque a gente pode ir e nãovoltar mais. Por isso que eu procuro me cercar na minhavida de pessoas sólidas, concretas: de meus filhos, de umaempregada, de uma moça que mora comigo e que é muito

equilibrada. Para eu poder ir e voltar dentro da literaturasem o perigo de ficar. Todo artista corre um grande risco.Até de loucura. Por isso precisa tomar cuidado. Eu tomocuidado. Eu gosto de comer, de comprar roupa, adoro meusfilhos, gosto de convidar a namorada de meu filho para virjantar. O cotidiano como fator de equilíbrio das incursõespelo desconhecido da criação. (Manzo, 1997, p.209)

A metamorfose de Clarice Lispector em Clarice GurgelValente, esposa devotada à vida doméstica e ao maridoMaury Gurgel Valente, acarretaria uma série de mudan-ças à vida da jovem escritora, das quais as mais expressi-vas foram os sucessivos e obrigatórios deslocamentos paraacompanhar o marido em missão diplomática, fixando re-sidência em Belém, Nápoles, Itália, Suíça, Inglaterra e, porúltimo, nos Estados Unidos.

Segundo Manzo (1997, p.29), “a intensa vida socialexigida pela atividade de seu marido também resultavaem mudança para Clarice: tímida, retraída e avessa a ba-dalações, ela viu-se subitamente impelida a freqüentar umasérie infindável de recepções, jantares e coquetéis”. Aimensa saudade do Brasil era aplacada pela intensa cor-respondência trocada com os amigos e a família. A distân-cia de sua terra acabou convertendo-se em irreparávelexílio de si própria, e os reflexos dessa penosa ausência sefariam sentir em suas crônicas, contos, romances, cartas,entrevistas, artigos para jornais, enfim, em tudo que es-creveu: “Em agosto teremos 5 anos de exterior. Não sãocinco dias. Cinco anos de não saber o que fazer, cinco anosdurante os quais, dia a dia, me perguntei como pergunta-va a vocês: que é que eu faço?” (Lispector, 2007, p.210).

O tom especialmente afetivo com que escreve à irmãTânia, que ela chama de “minha única filhinha”, “minhaúnica amiga”, constitui um comovente depoimento doisolamento emocional que acompanhava Clarice, enquan-to cumpria funções na alta sociedade, papel totalmenteem desacordo com buscas interiores que ela empreen-deu, incessantemente, durante toda a sua vida. Entre-tanto, em outros momentos, ela procurou transmitir para

318 Revista Brasileira de Literatura Comparada, n.12, 2008 Minhas queridas, letras de amor e saudade 319

as irmãs uma atmosfera mais leve e descontraída da vidaque levava, salientando o ambiente de sofisticação eglamour que inevitavelmente acompanhava a vida requin-tada de um casal de diplomatas no exterior, emboraClarice tentasse, com modéstia, minimizar a importânciadessas representações:

Como você sabe, a Sra. Roosevelt passou por aqui.Fomos convidados para recebê-la no aeroporto e para ir auma recepção dada a ela. Fui com meu vestido preto. Ela ésimpaticíssima, muito simples, vestida com bastante mo-déstia, bem mais bonita pessoalmente do que nas fotogra-fias e no cinema. No dia seguinte ela deu entrevista coletivaà imprensa e eu fui, mandei noticiário telegráfico para aNoite, mesmo estando de licença porque não queria perdera chance. (ibidem, p.31)

Hoje tenho que ir a um cocktail. Amanhã jantaremoscom o Presidente na casa do ministro, com vestido compri-do e balangandãs materiais e espirituais. Depois de amanhãalmoçarei na casa da embaixatriz de França, senhora queescolhe muito os convidados e que me honra com sua aten-ção freqüente (ela é aliás a única mulher inteligente do meiodiplomático). Depois de depois de amanhã, almoço com oministro do Exterior na nossa Legação... Não pense que ésempre assim, é uma semana rara. A você conto para daridéia do que pode acontecer por aqui... (ibidem, p.205)

Por vezes, reconheceu que “eu sou horrivelmente di-fícil de se viver com” (ibidem, p.37). Fragmentando-se emoutros textos, surgiram os argumentos: “Mas eu te digo:eu nasci para não me submeter; e se houver essa palavra,para submeter os outros. Não sei porque nasceu em mimdesde sempre a idéia profunda de que sem ser a única nadaé possível” (ibidem, p.36). Depois de conhecer os mais di-versos lugares, declarou: “O mundo todo é ligeiramentechato, parece. O que importa na vida é estar junto de quemse gosta” (ibidem, p.40). Por essas razões é que a travessiado deserto de Saara lhe causou uma impressão tão som-bria: “Atravessei parte do Saara. É uma coisa de meter

medo. Nunca vi tanta solidão. A areia não é branca, écreme. É maior que um mar” (ibidem, p.42).

Minhas queridas põe em destaque a insistência de ape-los e a recorrência de pedidos por cartas freqüentes quesimbolizavam a intensidade do amor ora exigido, ora hu-mildemente implorado por Clarice a suas irmãs. Os senti-mentos que emanam dessas cartas expõem certa dose deingenuidade quase infantil, escrita simplória que contras-ta com uma escrita outra – a de sua obra literária – dotadade singular complexidade em suas estratégias argumenta-tivas. Os textos das cartas põem em foco comovente ca-rência de Clarice em relação ao núcleo familiar, bem comosua constante atenção à saúde e bem-estar das irmãs, dasobrinha, do cunhado etc. De certa maneira, a ansiedadeaí revelada denota o sentimento descrito por Rubem Braga(1979, p.87) – grande amigo da autora – em uma de suascrônicas meditativas: “Sobre o amor, etc.”. Avaliando oimpacto dilacerante do estar longe na vida das pessoas,afirma: “Agora sabemos que jamais voltaremos a estar jun-tos; pois quando estivermos juntos perceberemos que jásomos outros e estamos separados pelo tempo perdido dadistância. Cada um de nós terá incorporado a si mesmo otempo da ausência”. Outro tema recorrente nas cartas é apreocupação com a edição de seus livros e com comentá-rios críticos recebidos, embora a escritora constatasse nãoviver uma fase produtiva, sendo acometida, com freqüên-cia, de certa inércia e indisposição para ler e escrever:

Roma, 8 novembro 1944(Carta velha...)

Elisa, queridinha:Você não é minha amiga? Por que você não me escre-

ve dizendo coisas suas, dizendo do apartamento, do traba-lho, de você mesma?

Estou escrevendo a última hora, antes de levarem ascartas, e mesmo depois de ter escrito a vocês duas. Masquis ainda fazer este apelo de última hora, na esperança decomover você. Me diga também sobre Tânia, se ela estámuito cansada. Por favor, se você me quer bem, escreva.

320 Revista Brasileira de Literatura Comparada, n.12, 2008 Minhas queridas, letras de amor e saudade 321

Cuide-se, divirta-se, cuide de Tânia, seja feliz. Nemsei mais o que dizer, tão aflita fico por convencer. Diga so-bretudo o motivo porque até agora não me escreveram.

Um abraço daSua Clarice. (ibidem, p.44)

Os momentos de pausa, em que não conseguia escre-ver, provocavam-lhe muita inquietação: “Não escrevi umalinha, o que me perturba o repouso. Eu vivo à espera deinspiração com uma avidez que não dá descanso. Chegueimesmo à conclusão de que escrever é a coisa que maisdesejo no mundo, mesmo mais que amor” (Lispector apudGotlib, 1995, p.223). Quanto mais a escrita lhe pareciadifícil, mais tinha certeza de ser ela a essência de sua vida.As críticas negativas sobre seus primeiros livros – talvezpela apresentação de uma linguagem literária tão deslocadaem relação à escrita vigente – também deixaram marcasna escritora, contribuindo para aumentar o grau de ansie-dade que sentia em períodos considerados difíceis. EmMinhas queridas, podemos observar suas constantes mu-danças de humor, oscilando, continuamente, entre esta-dos de leveza e alegria, passando por indiferença, chegan-do à mais completa apatia, momento em que grande sonopairava sobre a escritora.

Nilze Maria de A. Reguera (2006), em Clarice Lispector

e a encenação da escritura, observa que existe um princípiode organização de leitura que permite ao leitor enfrentar,logo de saída, uma das questões fundamentais que a obrade Clarice incita: a do fingimento poético. O pórtico dolivro encenado traduz bem o território em que serãoproblematizadas as questões levantadas pelo leitor – margensindefinidas entre o ficcional e o não-ficcional, já que umpode reverter-se no outro, e assim sucessivamente, uma vezque estamos no universo do jogo artístico e sabemos queClarice ficcionalizava o mundo que a rodeava e a si mesma:

Tânia, filhinha,

Minhas saudades têm estado agudas mas dentro deuma névoa – como uma sirene de noite no mar, como diria

Jeni Pimentel Borba ou eu mesma. Mas abrindo a caixa decorreio e vendo sua letra – de repente meu coração come-çou a bater de alegria e eu ouvi a sirene de perto, desfeitasas névoas, sirene de manhã. Fui lendo na rua mesmo, etodo carinho que você me fazia eu bebia rápido-rápido,porque já há muito tempo você não regava esta planta suíça.Dei logo flores e passei um dia de sol. [...] Querida, vocêestá linda? Tem cuidado dos cabelos? E o retrato com ca-belos curtos? E o vestido comprido? Eu cortei uma franjalisa, e fiz permanente no resto. Mudei tanto que certas pes-soas não me reconheceram. Vale apenas como transforma-ção momentânea. (Lispector, 2007, p.191)

O humanismo em Clarice Lispector – um estudo do sersocial em A hora da estrela, ensaio escrito por Ana Apare-cida Arguelho de Sousa (2006, p.23), procura explicar queas pesquisas sobre Clarice contêm elementos expressivosde uma possível identidade entre a autora e suas persona-gens. O projeto ideológico que perpassa sua obra dá a co-nhecer uma produção escrita direcionada à busca inces-sante da essência do ser humano, situando-o em seucontexto social e existencial. A crítica tem apontado gran-de proximidade entre a produção literária de Clarice coma de James Joyce e Virginia Woolf, especialmente quantoaos recursos discursivos utilizados pelos três escritores: ocaráter desconstrutivo da narrativa, o fluxo da consciên-cia, a epifania e a natureza poética, entre outros.

A idéia de que o ser humano, cerne do projeto ideoló-gico, é colocado como figura central da obra, ampara-se emopiniões de Nádia Battella Gotlib (1995, p.437) a partir deregistros de depoimentos de Clarice e sugere que o foco noindivíduo pode ser uma estratégia para fazer emergir o serno que existe de circunstancial em sua existência. E quan-do traz o outro, pode ser que esteja trazendo a si mesma.

Desde a infância, Clarice evidenciou tendência parasocorrer pessoas carentes, animais debilitados; enfim, sem-pre foi muito sensível às fraquezas e misérias do mundo. Efez questão de evidenciar esse sentimento de comoção emmuitos de seus textos. Quem não se lembra da passagem

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de A mulher que matou os peixes, em que uma narradora,factótum da autora, num rodopio sobre o lugar comum dasensibilidade, indaga: “Vocês têm pena de rato? Eu tenhoporque não é um bicho bom para a gente amar e fazercarinho. Vocês fariam carinho num rato? Vai ver vocêsnem têm medo e em muitas coisas são mais corajosos doque eu” (Lispector, 1999, p.5). Por isso, sofreu grande aba-lo quando passou a ser tachada de “alienada” por algunscríticos. Sem fazer literatura engajada a partidos políticosou causas panfletárias, no entanto, escreveu para engrande-cer o ser humano, levando-o a descobrir sua essencialidadee, em conseqüência, lutar por suas verdades, assumindoatitudes na vida. A hora da estrela é seu “livro vingador”,aquele que fecha o ciclo de trajetória da nordestina pobre(Macabéa/Clarice) que se desenraiza no exterior, mas que,ao morrer, volta às suas raízes, na transparência da perso-nagem cariada, inteligentemente urdida pela escritora.

Em tempos de guerra, Clarice se solidarizou com osofrimento da população, ajudando, como voluntária, sol-dados e feridos em hospitais de Nápoles. Por essa atitude,recebeu o seguinte ofício de agradecimento do chefe daSeção Brasileira de Hospitalização:

Ao deixar a Chefia da Seção Brasileira de Hospitali-zação em Nápoles, cumpro o grato dever de agradecer aV. Excia. todo o serviço que tão espontaneamente vem pres-tando à nossa organização, colaborando na sua Seção deServiço Social, trazendo ao nosso soldado ferido ou doenteo grande consolo do seu serviço e da sua graça. Nunca se-riam demais as palavras que eu poderia dirigir a V. Ex. paraexpressar a minha admiração pela contribuição que trouxea todos nós nestes momentos em que o Brasil precisa tantode seus filhos. Em nome destes homens, de todos os queaqui labutam e no meu próprio, beijo, agradecido, as vossasmãos dadivosas. Nápoles, 17-abril-1945– Dr. Sette Ra-malho, Tte. Coronel Médico. (Lispector, 2007, p.84)

Vilma Arêas (2005, p.15-16) faz uma sugestiva dis-tinção entre os textos de Clarice escritos “com as entra-

nhas” (consagrados pela tessitura bem urdida) e os textosescritos “com as pontas dos dedos” (textos menos elabora-dos e que a própria autora chamou de “lixo”, a exemplodos contos de A via crucis do corpo). Arêas defende a idéiade que os textos escritos “com a ponta dos dedos” possuemuma relação profunda com o restante da obra clariciana:

Estrategicamente me limitando à forma, percebi que asmatrizes poéticas de todos esses textos, nascendo entre ful-gurações fragmentadas, são submetidas à mesma técnicade desgaste, como se a escritora “desescrevesse” o texto,na expressão feliz de Benedito Nunes, ou como um lençode seda que continuamente de desatasse. É como se Claricetivesse escrito apenas um livro durante toda a vida, obede-cendo a modulações que às vezes quase o desfiguram, aosabor de dificuldades pessoais e profissionais experimenta-das, sobretudo, após seu regresso ao Brasil, em 1959.

A feitura de textos “com a ponta dos dedos” revelatambém uma Clarice muito preocupada com a beleza, amoda, os cuidados com os cabelos, a pele, o controle depeso e tudo que pudesse envolver a estética da aparência.Nesse ponto, a correspondência se encontra com a maté-ria de algumas colunas jornalísticas mantidas durante al-guns anos por Clarice, com a justificativa de que precisavasobreviver, uma vez que estava separada do marido e coma incumbência de criar dois filhos.

Na década de 1950, as leitoras de tablóides e jornaiscariocas liam Clarice Lispector sob pseudônimos e comoghost-writer para colunas femininas, a fim de evitar quedescobrissem a autoria da matéria, uma vez que ela já erauma escritora consagrada e muito visada pela crítica. Pro-tegida pelo nome de Helen Palmer, escreveu uma colunapara o segundo caderno do Correio da Manhã, nas quartase sextas-feiras, participando de 128 edições. Clarice atuou,também, como ghost-writer de Ilka Soares, da coluna “Sópara mulheres”, no Diário da Noite, com seis artigos porsemana, publicados entre 1960 e 1961. A primeira seção,“Um retrato de mulher”, compõe um verdadeiro manual

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de “ser mulher” naquele período, com dicas sobre moda,beleza, elegância, leitura e, mesmo, sobre como “fumarbem”. Essas mulheres eram o retrato da dona de casa exem-plar: tudo deveria estar de acordo com as etiquetas da so-ciedade, sempre mostrando mães e donas de casa felizes,bem vestidas e dispostas (Nunes, 2006, p.309-13).

O livro Minhas queridas traz essas questões, em varia-dos momentos:

Querida, você está linda? Tem cuidado dos cabelos? E oretrato com cabelos curtos? E o vestido comprido? Eu cor-tei uma franja lisa, e fiz permanente no resto. Mudei tantoque certas pessoas não me reconheceram. Vale apenas comotransformação momentânea. (Lispector, 2007, p.191)

Tem feito bastante frio. Não gosto nada. É detestável an-dar encolhida, com a pele toda franzida de vento. É porisso que às vezes se vêem moças de vinte anos com cara demuito mais. (ibidem, p.236)

Você passou alguma tintura nos cabelos? Que cor? Esperoque não tenha sido negro, que endurece muito os traços.Por uma fotografia recente de Marcinha tive a impressãode que os dentes estavam ligeiramente salientes. É verda-de? (ibidem, p.186)

Querida, você está com o cabelo curto? Mande um retratoassim. Eu estou com o cabelo enorme, pretendendo cortare ondular embora não saiba se me fica bem. Mas já estoumuito cansada de minhas hesitações, que já me trouxerambastante aborrecimento. (ibidem, p.206)

Em uma carta de Minhas queridas, Clarice comenta agênese do conto “O búfalo”, criação literária feita “com asentranhas”:

Um dia desses tive um ódio muito forte, coisa que eu nun-ca me permiti; era mais uma necessidade de ódio. Entãoescrevi um conto chamado “O Búfalo”, tão, tão forte, que,por experiência, fui ler para Mafalda, Armando Pires [...]e para Maury, e eles sentiram até um mal-estar. O rapaz

disse que o conto todo parece feito de entranhas... Maury,é claro, não gostou: assustou-se com a violência. (ibidem,p.269).

A evidência de que a obra literária gira ao redor detemas recorrentes, que surgem como variações de seusnúcleos basilares, não é uma novidade crítica. Uma escri-ta da ruminação e do rodear o mesmo ponto, mimetizandoseu objeto de análise pela reiteração, já foi afirmada pormuitos escritores. Machado de Assis freqüentemente de-clarava: “rumino muito mais do que falo”, observando asreiterações e os zigue-zagues de seus pensamentos e desua escrita.

As pulsações da escrita clariciana, na coletânea decartas Minhas queridas, são provocadas especialmente pordesafios contextuais resultantes do “desenraizamento geo-gráfico e emocional” da escritora, culminando por deses-truturar o seu texto familiar, que gagueja, balbucia, lacri-meja, bate o pé, aproximando-se da linguagem infantilem sua feição predominantemente tautológica. Entre-tanto, após muitos anos de exílio e com a perspectiva devolta iminente ao Brasil, vislumbramos o retorno do esti-lo clariciano em sua integridade, pleno de energia e deprofundas reflexões:

– Fiquei contente em Marcinha perguntar quando vol-to. Diga a ela que talvez no começo do ano que vem este-jamos lá. Diga a ela que esses anos todos pingaram gota agota e que eu por assim dizer contei uma por uma – masque ao mesmo tempo passaram incrivelmente depressaporque um só e único pensamento ligou-os: esse tempotodo foi como o desenvolvimento de uma idéia só: a volta.Diga a ela que não espere, por isso, me ver voltar aos pulosde alegria e aos risos: nunca se viu ninguém sair da prisão aos

risos: a alegria é muito mais profunda, e também o tempo de

contenção e a obrigação de paciência ensinam a calma. (ibidem,p.184, grifos nossos)

Em A poética do espaço, Bachelard (2000, p.215) pon-dera que o exterior e o interior formam uma dialética de

326 Revista Brasileira de Literatura Comparada, n.12, 2008 Minhas queridas, letras de amor e saudade 327

esquartejamento, e a geometria evidente dessa dialéticanos cega tão logo a introduzimos em âmbitos metafóricos.Ela tem a nitidez crucial da dialética do sim e do não, quetudo decide. Fazemos dela uma base de imagens que co-mandam todos os pensamentos do positivo e do negativo.Com o interior e o exterior, pensa-se o ser e o não-ser e,por isso, Bachelard considera que o ser do homem é umaespiral E nessa espiral os dinamismos freqüentemente seinvertem. Já não sabemos se corremos para o centro ou senos evadimos:

Assim, o ser espiralado, que se designa exteriormentecomo um centro bem revestido, nunca atingirá o seu cen-tro. O ser do homem é um ser desfixado. Toda expressão odesfixa. No reino da imaginação, mal uma expressão foienunciada o ser já tem necessidade de outra expressão, oser deve ser de outra expressão. [...] A fenomenologia daimaginação poética permite-nos explorar o ser do homemcomo o ser de uma superfície, da superfície que separa aregião do mesmo e a região do outro. Não esqueçamos que,nessa zona de superfície sensibilizada, antes de ser é preci-so dizer. Dizer, se não aos outros, pelo menos a si mesmo.[...] Pela linguagem poética, ondas de novidade corremsobre a superfície do ser. E a linguagem traz em si a dialéticado aberto e do fechado. Pelo sentido, ela se fecha; pelaexpressão poética, ela se abre. (ibidem, p.218)

Existe em Clarice toda uma gama de epifanias de be-leza e de visão, mas existe também uma gama de epifaniascríticas e corrosivas provocadas por percepções decepcio-nantes, como as registradas em várias cartas de Minhas

queridas. Pode-se vislumbrar, em sua ficção, uma poéticado instante, essencialmente ligada à imagem, que a auto-ra reconhece enquanto questiona o ato de nomear:

Eu te digo: estou tentando captar a quarta dimensãodo instante – já que de tão fugidio não é mais porque agoratornou-se um novo instante – já que também não é mais.Cada coisa tem um instante em que ela é. Quero apossar-me do é da coisa. (Lispector, 1980, p.9)

Segundo André Luís Gomes (2007, p.17), em seu texto“Entre Focos: Correspondências e Textos Literários”, pu-blicado na revista Cerrados, a correspondência enviada erecebida por Clarice Lispector é extremamente esclarece-dora para aqueles que se dispõem a decifrar seus textosliterários e tem sido fundamental para a organização e ela-boração das várias biografias da escritora. As cartas sãoreveladoras do universo pessoal e ficcional de Clarice, emseu esforço por apresentar-se como uma mulher comum,esposa e mãe de dois filhos, que escreve cartas e se lastimapor estar longe de seus parentes queridos e de si própria.Portanto, é quase impossível compreendê-la sem a leituradesse valioso material.

Nas considerações finais deste ensaio, avaliamos queMinhas queridas nos põe em contato com uma correspon-dência forte, questionadora, argumentativa, mas, acimade tudo, singela, terna, amorosa, cuja principal substânciaé o imaginário dos afetos familiares. Revela como a convi-vência com as irmãs, com a terra natal e com os amigosconstituía elemento vital para o equilíbrio emocional deClarice Lispector, e quanto seu desenraizamento, provoca-do por longo exílio em terras estrangeiras, abalou profun-damente a frágil e oscilante sensibilidade da escritora, dei-xando-a freqüentemente esgotada para viver/escrever – oque podemos conferir na intimidade das confissõesinseridas no valioso acervo de cartas fraternas Minhas que-

ridas, arquivo literário e histórico da maior importânciapara os estudos da literatura brasileira.

Referências

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BACHELARD, Gaston. A poética do espaço. Trad. Antônio de PáduaDanesi. São Paulo: Martins Fontes, 2000.

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NUNES, Maria Aparecida. Clarice Lispector jornalista: páginas fe-mininas e outras páginas. São Paulo: Senac, 2006.

PRIORE, Mary Del. (Org.) História das mulheres no Brasil. 8.ed.São Paulo: Contexto, 2006.

REGUERA, Nilze Maria de A. Clarice Lispector e a encenação daescritura. São Paulo: Editora Unesp, 2006.

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Letras femininas: a escrita do “eu”no universo de Luci Collin

Níncia Cecília Ribas Borges Teixeira*

RESUMO: A pesquisa analisa o discurso identitário feminino na

obra da escritora Luci Collin. O objetivo principal foi buscar a

enunciação feminina em contos produzidos por mulheres, par-

tindo da construção identitária feminina e passando pelos con-

ceitos de multiplicidade nas questões de identidade do sujeito.

O trabalho analisa, também, o lugar do qual o sujeito enunciador

constrói seu discurso, ou seja, lugar de repetição ou ruptura dos

discursos circulantes na sociedade, e ainda demonstra como o

sujeito histórico feminino formula seu discurso, trabalha a lin-

guagem para produzir sentido e constrói sua história. Desse

modo, o estudo se propõe a contribuir para a discussão sobre a

representação do papel da mulher na sociedade contemporâ-

nea, a partir do viés literário.

PALAVRAS-CHAVE: Identidade, sujeito feminino, literatura

contemporânea.

ABSTRACT: This study analyses the feminine identity discourse

in the works of contemporary writer from Parana, mainly Luci

Collin. The main objective of the study was to search for the

feminine enunciation in short stories produced by women, de-

parting from the construction of feminine identity and also based

on the concept of multiplicity of the subject’s identity.Moreover,

the study analyses the place from which the enunciatory sub-

ject constructs its discourse, that is, the place of repetition or

disruption of the common discourses in society. It also shows

how the historic feminine subject formulates its discourse, uses

language to produce meaning and to construct its history. In

this way, the study proposes a contribution to the discussion of

the representation of the female role in the modern society,

through the literary point of view.

KEYWORDS: Identity, feminine identity, modern literature.

* Professora doutora adjunta

do Departamento de Letras da

Universidade Estadual do

Centro-Oeste (Unicentro) –

Guarapuava (PR).

330 Revista Brasileira de Literatura Comparada, n.12, 2008 Letras femininas: a escrita do “eu” no universo de Luci Collin 331

“Um texto descoberto em um arquivo empoeiradonão será bom e interessante só porque foi escritopor uma mulher. É bom e interessante porque nospermite chegar a novas conclusões sobre a tradiçãoliterária das mulheres, saber mais sobre como asmulheres desde sempre enfrentaram seus temores,desejos e fantasias e também as estratégias que ado-taram para se expressarem publicamente apesar deseu confinamento ao pessoal e ao privado.”

(Sigrid Weigel)

Introdução

A disseminação de pesquisas acadêmicas sobre auto-ras femininas, particularmente, a partir dos anos 1970, temcontribuído para redimensionar a literatura escrita pormulheres. Assim, o estudo sobre essa literatura resultouem contribuições questionadoras sobre a construção dahistoriografia literária e sobre a noção canônica de gêneroliterário. Nesse contexto, inserem-se as redes de associaçãointelectual das mulheres que se encarregaram da maiorparte da escrita e da reflexão feminina, de onde resultou oresgate de tais gêneros.

A literatura de autoria feminina tem se revelado umcampo profícuo, porém dela ainda é requerida afirmaçãoplena no interior da literatura universal. A visibilidade detal produção tem se prestado a revelar aspectos de umaintimidade preservada ao longo dos séculos da história epropicia a insurgência de um vivido marcado pelo recato,pelo segredo, pela sutileza ou, mesmo, por um cotidianoenredado em obediência, submissão, acomodação, resis-tência e/ou afirmação.

Na natureza representativa da literatura está o seumodo de ser, de existir dependente de sua função tantoartística como psicossocial e do seu caráter documental.O fenômeno literário, tomado como conjunto de elemen-tos interdependentes, que agem em interação, desenvol-ve-se historicamente dentro de um outro sistema maior,

revelando todas as nuanças da cultura, recriando aspectosda realidade. Inquestionável, portanto, a contribuição detais vivências, cujos relatos, por meio da literatura, sãoconvertidos em documentos escritos e publicados, legadosaos vindouros.

Na tentativa de caracterizar o universo da literaturade autoria feminina, alguns atributos constitutivos devemser destacados de modo a revelar um processo de criaçãoexclusivo. Antes de tudo, emerge a questão da autoria danarrativa. Ela expressa uma posição diante do mundo ecarrega um caráter de exclusivo – a renomada experiên-cia feminina. Isso autoriza a presença do eu que escreve enarra, e que é portador de um ponto de vista próprio, querevela um olhar na perspectiva da mulher. Em segundolugar, reitera-se desse sujeito narrador uma posição cons-ciente acerca de seu papel social e do seu direito de expres-são. Denota-se daí uma função política na medida emque tais autoras assumem sua posição de mulher nos pro-cessos de alteridade.

A escritora selecionada para a pesquisa, Luci Collin,questiona o modelo patriarcal em suas obras, ao mesmotempo abandona as convenções narrativas para adotar acomplexidade da multipercepção. Em geral, essa temáticase concentra em contos que questionam as relações degênero, buscando sem encontrar soluções para impassescriados. O tom impresso nas narrativas concentra-se noíntimo, possibilitando a revelação dos segredos da identi-dade feminina que reside no cotidiano da mulher.

A escolha da escritora foi feita porque apresenta narra-tivas vividas e escritas por mulher. Além disso, buscou-se,por meio dessa pesquisa, aumentar o campo de visão que setem sobre a literatura paranaense, porque ao se falar nessaliteratura pensa-se na Curitiba de Paulo Leminski e deDalton Trevisan. Há, de fato, a Curitiba de Paulo Leminskie a de Dalton Trevisan, dois de seus filhotes mais célebres,que revolucionaram a poesia e a prosa, mas há, também, aCuritiba menos conhecida, porém tão revolucionária deLuci Collin.

332 Revista Brasileira de Literatura Comparada, n.12, 2008 Letras femininas: a escrita do “eu” no universo de Luci Collin 333

O discurso identitário na escrita

de autoria feminina

A inserção de personagens femininas em textos ficcio-nais masculinos revela-se, de acordo com Castello Branco& Brandão (2004), como a face feminina na qual Narcisose contempla, e no reflexo dessa face ele se vê inteiro epleno. Eco,1 ao se apaixonar por Narciso, consome-se poresse amor impossível, definha, perde seu corpo e torna-sepura voz condenada à maldição de só repetir. Eco torna-seo eu alienado que se engendra no enunciado, no qual in-verte a fala narcisística, tornando-a sua. Não há mais asua voz e o pensamento próprio. A sua permanência é deconstrução imaginária, Eco é sintoma e fantasma masculi-no. O “outro” é demasiadamente presente nela. O amorpor Narciso é o constante ecoar. É o “ecoar” permanenteque se torna elemento constituinte da sua identidade. Por-tanto, Eco não é mais conhecida por aquilo que ela pensaou sente, mas por aquilo que ela ecoa, por aquilo que elaexpressa do pensamento e do sentimento das outras pes-soas e de outras manifestações.

Essa miragem do feminino se dá pelo deslocamentode vozes e o masculino torna-se feminino. Os escritores,em quem se reconhece uma escrita feminina, parecem terperante o mundo uma atitude próxima das característicasque a vida das mulheres historicamente foi assumiu. Écomo se fosse Eco repetindo a voz de Narciso, alienando-se nas repetidas frases que continuam a ecoar.

Segundo Isabel Magalhães (1994, p.18):

A escrita de mulheres se compõe de um denominadorsimbólico comum ao grupo, é definido pela forma como asmulheres, condicionadas por elementos fisiológicos, antro-pológicos, socioeconômicos e culturais deixaram respostasaos problemas de produção e de reprodução material e sim-bólica. Assim, há afinidade natural e cultural historicamen-te construídas a ligar a mulheres entre si.

Nesses textos observam-se a denúncia da opressão nodomínio privado vivida no corpo das mulheres e a opressão

no domínio público palpável em sua inserção social. Ao sepensar na escrita de mulheres, devem-se levar em contapercepções e valores diferentes dos masculinos. A culturafeminina rompe com estruturas convencionais do pensa-mento androcêntrico. Sendo assim, é importante ressaltarque, ao se falar em valores femininos e de aspectos própriosda criação literária das mulheres, não se pode identificaruma especificidade restrita ao grupo de mulheres. É ne-cessário considerar características que possam ser reco-nhecidas como predominantemente femininas pela suasintonia com aspectos dominantes na vida das mulheres,a sua experiência corporal, interior, social e cultural im-pressa literariamente.

Com relação à escrita de mulheres, uma das perguntasque se pode esboçar é: “Como o imaginário feminino semanifesta na escrita das mulheres, ou como se constrói, apartir da escrita de mulheres, o imaginário feminino?”. Essemodo de perguntar retira a questão do essencialismo dofeminino, o qual possui uma visão totalizadora da mulher,e desloca o problema para as mulheres, para a diversidadede posições enunciativas do sujeito do feminino. Pelo poderque a palavra enunciada, anunciada e impressa possui, asmulheres têm podido dar nomes a seus mal-estares por meiode metonímias, metáforas ou mesmo corporalmente. Paratanto, elas têm buscado tanto as palavras como o silênciopara poder dizê-los, exercendo assim seu direito à voz.

Para Vera Queiroz (2004, p.45), “Femininos são os tex-tos que apresentam determinadas marcas, que percorrem ocampo semântico da falta, do silêncio, do indizível, do sub-jetivo confessional”. É possível identificar um olhar femini-no no texto literário, esse olhar que Beatriz Resende (s. d.)chama já não mais de “literatura feminina”, mas de “litera-tura pós-feminismo”. É comum as autoras de poesia e deprosa refutarem a inclusão de suas obras na categoria deescrita feminina. Segundo a autora Christiane Tassis (2006):

Não estou interessada, agora, em uma ação afirmativa.Lutaria por todas as “colegas” submetidas ao autoritarismode regimes políticos e/ou religiosos, ao machismo, à miso-

1 Eco era uma ninfa dos

bosques e das fontes, era de

uma tagarelice irrefreável. Ia

sempre ao Olimpo, a pedido

de Zeus, para distrair Hera

com sua conversa, enquanto o

rei dos deuses e dos homens

dava suas voltinhas entre os

mortais (ou melhor, entre as

mortais). Hera, porém, acabou

descobrindo o ardil e puniu a

pobre ninfa tirando-lhe o dom

da fala e condenando-a a

repetir apenas as palavras que

ouvia dos outros. Narciso,

filho do deus-rio Cefiso e da

ninfa Liríope, era um moço de

grande beleza, porém

insensível ao amor. Muitas

jovens e diversas ninfas se

apaixonaram por ele, mas não

tiveram nenhum sucesso. A

ninfa Eco, com alguma

dificuldade, declarou-lhe

também seu amor e ficou tão

desesperada ao ser repelida

que começou a definhar: o

belo corpo desapareceu por

fim restou apenas a sua voz.

As demais ninfas, revoltadas,

clamaram por vingança e

foram atendidas por Nêmesis.

Certo dia, durante uma

caçada, Narciso se debruçou

sobre a fonte de Téspias, perto

do Monte Hélicon; ao

contemplar a superfície da

água apaixonou-se pelo que

viu, isto é, por seu próprio

reflexo. Indiferente a tudo, o

moço não mais saiu dali e nem

mesmo conseguia tirar os olhos

de sua imagem. Acabou

morrendo de inanição e, no

local de sua morte, brotou a

flor chamada narciso.

334 Revista Brasileira de Literatura Comparada, n.12, 2008 Letras femininas: a escrita do “eu” no universo de Luci Collin 335

ginia, à castração dos séculos, mas não pelas mulheres es-critoras. Não que estejamos acima de nada, mas nossa lutaé com a gente mesma. Deus me livre de um “Dia Internacio-nal da Escritora”. A questão não é ser “minoria”. É escreverbem. Eu pelo menos, não escrevo pensando em meu sexo,nem no dos meus leitores. Não penso em obter aprovaçãomasculina, ou feminina. Escrever é o que eu sou. E eu souuma mulher. Uma mulher que escreve como uma pessoaque quer escrever bem.

O ano de 1970 é emblemático quando se fala em es-tudos sobre a mulher e a literatura. Duas correntes teóricasse estabelecem no que diz respeito aos Estados Unidos e àEuropa. A corrente anglo-saxônica busca, por meio daspremissas estabelecidas por Michel Foucault para o estu-do da desconstrução da história literária, rever os princí-pios que norteiam a inclusão/exclusão de autores e obrasno cânone literário. Esse questionamento do cânone literá-rio masculino se desdobra em uma investida na recuperaçãodos textos femininos excluídos. Na França, o pensamentoteórico de Derrida e Lacan sustenta as bases do feminismonaquele país. As feministas Hélène Cixous e Luce Irigaraysão representantes importantes da corrente teórica queinvestiga a ligação entre sexualidade e textualidade. NoBrasil, nessa mesma época, formam-se nas instituições aca-dêmicas pequenos grupos informais de estudo sobre o as-sunto, como bem salienta Heloísa Buarque de Hollanda(1993, p.27):

A partir do final dos anos 70, o tema “mulher” poucoa pouco passa a ser considerado objeto legítimo de pesquisaacadêmica, assim como assunto de jornais e revistas especia-lizados. Começava a delinear-se, entre nós, um novo campode trabalho crítico na maioria dos casos, identificado como desenvolvimento do pensamento teórico feminista queemerge, com força total, na Europa e nos Estados Unidos,a partir dos movimentos contestatórios da década de 1960.

A literatura feita por mulheres, juntamente com a dis-cussão sobre a negritude e a literatura homoerótica, é fe-

nômeno significativo dos últimos anos do século XX e seinsere na discussão do multiculturalismo. A produção deautoria de mulheres sempre foi excluída por várias razões,dentre elas pelo puro preconceito de uma sociedade atre-lada a valores patriarcais que reservava à mulher o papelde esposa e mãe. Assim, sua produção sempre foi avaliadacomo deficitária em relação à norma de realização estéti-ca vista do ponto de vista masculino. Para Peggy Sharpe(1997), é comum nas literaturas coloniais omitir ou sub-representar relatos advindos da voz feminina; somente eminiciativas mais atuais é que ocorrem discussões em tornoda identidade nacional advinda de várias vozes, incluindoa feminina.

Nas décadas de 70 e 80 do século XX, o pensamentofeminista desenvolveu a teoria dos gêneros como modelode interpretação das relações sociais e de sua história.Elaine Showalter (1994) propõe uma direção da escriturafeminina que se enquadra na estrutura da sociedade. Eladivide a escrita da mulher em: feminina, a que se adapta àtradição e aceita o papel da mulher como definem os ho-mens; feminista, a que se declara em rebeldia e polemiza,questionando o papel da mulher; de mulher, que se con-centra no autodescobrimento.

A classificação de Showalter pode ser observada naliteratura brasileira, e em especial na paranaense. Assim,pode-se afirmar que a escrita de mulheres paranaenses é,ao mesmo tempo, feminina, feminista e de mulher, pois,segundo Nadia Gotlib (1990), isso é possível encontrar naobra de uma mesma escritora.

“Figuração”:2 retratos da artista Luci Collin

“Todo o dia preparo comida, respiro sobre os lençóis

recuperando palpitações e às vezes enfeito o quarto

com flores que ele nunca terá olhos para ver. Leio o

vôo dos pássaros. Conspiro o silêncio das vertigens.

Aos que pensam algo sobre isto tudo, nada digo”.

(Luci Collin)

2 Título do conto inserido naobra Inescritos (Collin, 2004).

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Luci Collin3 se define como transgressora afirmandoque a literatura contemporânea tem regras determinadasa serem seguidas, e que ela, com o seu trabalho, infringe eviola essas regras. A própria escritora declara:

Eu vejo que os meus escritos, antes de representaremtransgressão, são apenas “regressão”, não no sentido de “re-gredir”, mas de “regressar”, regressar a um experimentalismoque foi explorado pela linguagem moderna e depois covar-demente abandonado por muitos pós-modernos conforta-velmente estacionados na linearidade e num realismo queem nada correspondem à realidade. (Collin, 2005, p.1)

Sobre a expressão “escrita feminina”, Collin (2005,p.1) argumenta:

é um termo impreciso para mim. Se você se refere a algu-ma ideologia do feminino que eu queira deliberadamenteapresentar nos meus livros, a resposta é não. Não vejo ne-cessidade de imposições das idéias de “feminino” e “mas-culino” como contendoras – são existências altamente com-plementares, são princípios indissociáveis. Quanto aoescritor e sua habilidade, Henry James criou maravilhosospersonagens femininos, Hilda Hilst, personagens masculi-nos muito complexos – assim a sensibilidade do artista pa-rece. (ibidem, p.1)

No livro Inescritos,4 obra selecionada para esta pes-quisa, a linguagem é aberta, experimental e difusa. A es-critora se propõe a exercitar sua capacidade de inovaçãopor meio de colagens textuais, que traduzem a agonia pelaprocura do indizível. De acordo com Collin, sua relaçãocom a linguagem é espontânea, rítmica e até liberal. Afir-ma que sua linguagem é desestabilizadora, a fim de des-pertar a reflexão.

Luci Collin é habilidosa no trabalho com o flagranteao surpreender suas personagens em ambientes ambíguos.Em seus textos há a presença de uma perspectiva sim-bólica aberta; dessa forma, o leitor é privilegiado, poispode imprimir sentidos múltiplos, à medida que a autora

lhe oferece um mundo particular sem censura. Há, as-sim, um diálogo direto entre personagem e leitor, enun-ciação que se constitui por meio de uma vasta expressãodo ser, que também manifesta sua intimidade.

Segundo a escritora,

O leitor não é nenhum desavisado e inepto e, por outrolado, o escritor, aliás artista nenhum, também não é essesemi-deus que vê coisas que só ele compreende. Pelo contrá-rio, os leitores são parte essencial na revelação dos elemen-tos do texto. Acho uma prepotência considerar o escritorum detentor de verdades superiores, o escrito é o visto aí, enão o genialmente forjado pelo escritor. Captar e codificaro estético, o artista como antena da raça, é uma parte es-sencial da nossa existência, mas que deve ser encarada comhumildade, porque pressupõe compartilhamento. A antenaestar no alto é meramente uma condição estratégica e as-sim a sua superioridade. (ibidem, p.2)

Os textos de Luci parecem evocar uma estranha fami-liaridade, como se estivessem sempre à espera da interpre-tação, reclamando leituras, expondo o leitor à direção deseus sentidos. Para Maria do Rosário Gregolin (2003, p.47):

Por ser objeto de reconhecimento/desconhecimento,a aparição de um texto só se completa quando um leitor oinsere na ordem da história, deslocando-o do lugar ondejaz reclamando sentidos. A interpretação não se limita àdecodificação dos signos, nem se restringe ao desvenda-mento de sentidos exteriores ao texto. Ela é as duas coisasao mesmo tempo: leitura dos vestígios que exibem a redede discursos que envolvem os sentidos, que leva a outrostextos. Por isso, os sentidos nunca se dão em definitivo;existem sempre em aberturas por onde é possível o movi-mento da contradição, do deslocamento e da polêmica.

Os fatos e acontecimentos, em seus contos, são des-conhecidos, até porque não há a intenção de se relatar umepisódio ou peripécias de um personagem, mas sim, o con-tato do leitor com a obra e os desdobramentos de sua sub-jetividade. Os fatos do enredo são raros, dando logo a

3 Luci Collin nasceu emCuritiba, Paraná, em 1964; égraduada no curso superior dePiano, em Letras Português/Inglês e no curso superior dePercussão Clássica. Em 1987,estudou na Wright StateUniversity (Ohio, EUA).É doutora em Letras.Atualmente, é professora docurso de Letras daUniversidade Federal doParaná. Luci Collin é umatípica representante doescritor oriundo da academia:alguém de atuar na crítica,criar e lecionar literatura.Obras: Estarrecer (1984),Espelhar (1991), Esvazio

(1991), Ondas e azuis (1992),Poesia reunida (1996), Todo

implícito (1997), Dialogismos,

(2000), Inescritos (2004).

4 Inescritos é o terceiro livro decontos da curitibana LuciCollin. A prosa de Luci nãosegue uma linha temática,tampouco estrutural. Pelocontrário, em Inescritos aexceção torna-se regra. Sãovinte narrativas feitas de vintediferentes formas, incluindo aparódia do ensaio acadêmico,da entrevista, do roteirocinematográfico, do comercialde televisão, da homenagempóstuma e do diário deadolescente.

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medida de que a autora/personagem está narrando muitomais um processo do que descrevendo acontecimentos. Nãose apresenta mais a narrativa mimética que “copiava” (ouacreditava copiar) a realidade empírica; trata-se, agora, deelevar o tema literário à construção psíquica que cada su-jeito faz de si mesmo. Não há, tampouco, um tempo passa-do a ser fielmente descrito pelo narrador e o que se contaestá repleto de dúvidas e hesitações. Assim, revela-se queespaço, tempo e causalidade configuram-se como merasaparências exteriores, que impõem uma ordem fictícia àrealidade. A verdade, dessa forma, é da ordem da ficção,ou seja, o que se crê verdadeiro participa do mundo imagi-nativo, processo construtivo inacabado por excelência.

A escrita da autora se configura por meio da fragmen-tação, de recorte, sobreposição, exploração de temas nãousuais, ironia, colagem, absurdo, manipulação sintáticae semântica. Torna-se, de certa forma, uma tentativa deaproximação da maravilhosa desordem da realidade quenão pode, por seu dinamismo, ser registrada tendo por baseregras artificiais. No conto “Desinências”, é possível ob-servar a sobreposição de cenas. A autora, para marcar aruptura, utiliza dois pontos entre os parágrafos da narrati-va, o que sugere uma forma de assinalar a descontinuidadeno enredo:

Das coisas, hábito e ofício, de todas as coisas precisa-va de registro. O ínfimo discurso sinfônico e silábico temdimensões espetaculares – é como um cântico. De todas ascoisas recebia o inapelável pedido: diga-me.

:É só. Sabe e lembra tudo sobre aquela eira. Con-

tudo precisa fixar aquela advertência, em letras bem escri-tas: encontra-se sem condições de uso: um bilhete que pregacom durex sobre a torneira em questão solicita: “Favor nãousar – a torneira...”.

:Diga meu nome, preencha os espaços inabitados com

o nome meu, preencha os pedaços abandonados com onome meu. Preencha os impronunciáveis com cores e sono-

ridades precisas com assumidas submissões com preteridosabandonos com ditos encantatórios com toques suavíssimose com o que a pele responde durante esses toques. (Collin,2004, p.63)

Em “Desinências”, conto inserido na obra Inescritos, aescritora demonstra que sua obra é composta de fragmen-tos aparentemente descontínuos, mas que são partes deum trabalho que demonstra sua percepção do mundo, dosseres e das coisas, por meio de uma operação de desmon-tar elemento por elemento. Essa fragmentação denota aprópria consciência de suas narradoras, apresentando-secomo algo livre para a construção do eu ficcional, marca-do pela interioridade do discurso. É perceptível que, noconto, a visualização das imagens se faça sem nenhumapreocupação com a totalidade, submergindo, de certa for-ma, a própria corrente psíquica da personagem. Deve-se aisso a marca dos dois pontos que a escritora insere natessitura da narrativa, assinalando o recorte no curso na-tural da escrita.

No conto “Essência”, a narradora muda de nome e detemperamento conforme o vestido que vai usar. Com ovestido verde, ela se chama Gisela Eloah e tem três filhosde pais diferentes; com o vestido rosa, seu nome éMargareth e ela é viúva de um eminente professor de His-tória Antiga; com o vestido amarelo, ela se chama Leo-degária e, à mesa, não sabe usar os talheres certos:

Que vestido afinal? Com o verde me chamarei “GiselaEloah”, serei uma mulher decidida, com três filhos, de paisdiferentes, claro. Serei escultora, ou melhor, administro osbens de papai. “Papai” é ótimo... ninguém mais fala “pa-pai”: filhas, será? Ainda mais três! Ah, muito cansativo...Não, o verde me obrigaria a ser decidida demais... O rosa!Direi que meu nome é “Margareth”, com acento na pri-meira sílaba. “Não, querida, jamais tive apelidos”: “Sou umencanto! Todas me invejam”. Pela voz suave saberão quesou viúva de um eminente professor de História Antiga.Jovem e viúva! Tem algo mais pungente? “Será que dá suas...

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escapadas? “O promotor, maldoso, perguntará. “Não! Aloira magérrima assegura, é castíssima!” Ah, não, castíssimanunca! Não serei viúva! Sou casada com um políticobrilhante, envolvido num desses escândalos da moda. Não,para ser esposa do político corrupto deverei usar o azulcobalto e mudar de nome. Como “Margareth” terei a ma-neira de sentar delicadamente ensaiada. (ibidem, p.133)

Na narrativa, há a construção de um sujeito à procu-ra de uma identidade perdida. Além de não haver a pre-sença de um enredo, há uma luta por atingir uma verdadeou totalidade sempre esquiva. Essa é a marca irônica daobra de Collin, que faz da linguagem fonte e alvo da pulsãocriativa em constante ebulição. A ironia está em nomearo inominável, que só se dá a ver na distração do ser. Ao serquestionada sobre o porquê de seus contos não terem en-redo, ela afirma:

O enredo, da forma tradicional, é um embuste. Se oleitor é hábil o suficiente para combinar, reagrupar, editarum enredo aparentemente disparatado, por que menospre-zar, ou desconsiderar toda esta agilidade do leitor enquantoeditor do texto? E por que determinar que enredo é apenaso que tem começo, meio e fim? Isto é fórmula de redaçãode vestibular, e quem segue fórmulas faz automaticamenteuma escolha que passa pela condenação dos elementos-surpresa. Se você usar como tema, por exemplo, a solidão,e transformá-la em personagem do seu conto – não umapessoa experimentando a solidão, mas a própria solidão,ou o medo, ou a saudade, ou a escuridão – não é injustolimitar estes personagens tão livres com um enredo pres-critivo e que não gerará as emoções do inusitado?

As imagens inusitadas que permeiam os contos indi-cam uma originalidade que se situa fora da lógica comum.A estratégia utilizada em Inescritos tem como finalidade oaprofundamento do “eu” marcado pela subjetividade, quesó existe na medida em que, na instância do discurso, falasua própria condição. A obra está repleta de mulheres dediferentes configurações. A diversidade de situações vivi-das por elas, carregadas de erotismo e auto-ironia, quase

sempre revela a real condição feminina, tal como se podeobservar no conto “Nostálgica Salvaguarda”:

Cadência: As fêmeas sangram. Nasceram para sangrar.Desde as suas finas cutículas de várias maneiras sangram.A cor das flores. Às vezes, moscas pousam sobre o verme-lho. Com o tempo o vermelho a vermelhidão evapora. Orio evapora. A intensidade. Queiram desculpar o discursoprimitivo. O silêncio é também uma facada lenta – gentil-mente instaurada”. (ibidem, p.139)

Grande parte dos textos de Collin tem em sua gênesereflexões filosóficas, como se nota em “Esse destino de ir”:

Não tinha noção das horas quando percebi, você indoembora. Ia. Acho que de madrugada, pela necessidade desilêncio, tácito denso vasto, pela seriedade com que se dis-se adeus; o frio. Fossem as noites maiores, houvesse umúnico momento sem porquê, ficaria. Detalhes não ajudan-do a resolver esta questão nem formulada e eu aqui, revisi-tando estilhaços, tentativas de engolir qualquer motivomuitos há nenhuma resposta às paredes subitamente vazias,o peso das cortinas cerradas, o seu sorriso de há tanto tem-po hoje nunca mais. O tempo em si: passado, o que enfimsozinha se constrói, severo e sobretudo veloz. (ibidem, p.99)

No corpo desse texto, as ações são interiorizadas, tema-tizam a solidão, a angústia, o medo. O instante é apreendi-do em tensão numa narrativa plena de subjetividade cujabusca é a do “eu” e sua intimidade. Há, também, uma preo-cupação com a mulher e sua realidade, mas essa realidade éinteriorizada, perfazendo um percurso intimista. Ao ques-tionar o ser e a existência, a autora faz que as palavras per-cam seu contorno material e atinjam sua corporeidade es-sencial. Assim, as palavras passam a comunicar pensamentosmais profundos, a partir da lucidez da aparente incoerência.Há, na autora, algo que resulta em estranhamento confron-tando com o cotidiano, atingindo sua transcendência.

Assim, Luci Collin não cria tipos, volta-se à mulher esuas dúvidas, expressando em ações interiorizadas em umnão-enredo. Em “Qualquer semelhança (relato autobio-

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fágico)”, o eu-narrador delimita a história por uma pers-pectiva memorialística e autobiográfica, ressignificando opassado. Esse, por sua vez, só existe como tomada de sen-tido no presente:

Do Nome

Tão triste aquele romance onde uma enfermeira seapaixona por um soldado que acaba morrendo na guerra!Minha bisavó gostou tanto do livro que resolveu dar à filhao nome da heroína da história. Que guerra terá sido? Onome da minha avó quer dizer luz em latim.

Casa

A escada que dava pro andar de baixo tinha as tábuasmuito gastas. Um dia escorreguei lá de cima segurando umamaçã-do-amor que alguém tinha trazido pra mim do Pas-seio Público. Quando dei de cara no cimento escutei umavoz retrucar da cozinha: Não vai me estragar esta maçã quecustou caro!

Fazendo anos

Terrível era aquilo de cumprimentar adulto! E nemdava pra fugir, que tinha sempre alguém perguntando: Jácumprimentou a Catita? E ainda tinha que beijar: Três pracasar! Quatro pra não morar com a sogra! Da Dona Donai-de eu morria de medo porque era vesga (ela é que era ves-ga, não eu). Vó, como é que ela conseguiu casar? Um sinalde beleza, o estrabismo! Teve muitos pretendentes, aDonaide! E aquele tio-avô Téio (Eleutério) esquisito? Ouvia mãe dizer que o tio Téio toma banho de Acqua Velva! Equando beijava deixava molhado o rosto da gente (e nãose podia limpar na hora, só disfarçando). Da Bebéia eu nãogostava porque ela tinha cheiro de giz de costura. E porque tanto adulto se era festa de criança?

Plágio, eu?

Escrever o quê naquela redaçãozinha do para casa?Copiei uns trechos da folhinha do Alziro Zarur que a vótinha pregado na copa. Claro que disfarcei! Não sei comoé que o professor descobriu que não era minha a frase “Éperdoando que se é perdoado”.

Mera coincidência

Começou com o nome da heroína do romance. Deuma guerra desconhecida. E depois as palavras foram desfi-lando na minha cabeça: chacrete, BNH, brim curinga, bolade capotão, Bidu cola, Toppo Gigio, pândega, radiola e ele-trola, alpargata, fatia-do-céu, crapô, lombeira, colubiazol,kichute, vultos da nossa história, docinho miúdo, berlinetae monareta, matelassê madrigal, boa-noite cinderela... Euse soubesse, ia escrever uma história com tudo isso. Quebobagem! A vida da gente não dá uma história! O que dápra fazer é só mesmo lembrar. E segurar mais forte aquelamaçã-do-amor. Que custou caro. (ibidem, p.60)

Desenvolve-se, no limite, uma teoria do memorialismoque mostra ser a realidade muito mais uma invenção dalinguagem do que suporia a ciência. No conto, a narradorarememora sua vida. O mergulho introspectivo se serve deuma estrutura composta por vários esquetes, fazendo coe-xistirem diversos planos ficcionais para um mesmo sujei-to. Há níveis de relatos (e, portanto, de verdades) nessetexto. Um conto em que se relata uma história na qual apersonagem reconta sua vida e escreve um conto sobreuma história narrada por outra personagem.

Na obra, é perceptível a criação de um universo noqual a mulher passa a limpo, em breves anotações, as ce-nas mais marcantes da sua infância, e faz ressurgir a famí-lia, os amigos e o glorioso passado recente em comentárioscarregados de nostalgia. Esses comentários são saturadosde nostalgia que aos poucos vai se transferindo tambémpara o leitor que, à simples menção de certos nomes pró-prios, como mandiopã, bolin-bolacho, Lanjal, Supra-Sumo,Almoço com as Estrelas, Sandra Passarinho, Grande Ho-tel, Gordine, Kharmann Ghia e Aero Willys reporta-se àsdécadas de 1970 e 1980.

Ler Luci Collin é emaranhar-se numa rede de lingua-gem, numa trama de signos, num embate no qual narrador,personagens e leitor se misturam num jogo em que pala-vras e imagens, sons e silêncios se combinam numa lógicacomplexa, criadora de subjetividade.

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As personagens de Collin vivem uma realidade inex-primível, o sentido surge do próprio ato da escrita. Deli-neia-se, aí, uma escritura que tem como tema a produçãode sentido pelo próprio ato de escrever, moldada sob a for-ma de contínuos exercícios da língua, como se pode obser-var em “Parto do nada”:

Parto do título. Nas fotos em preto e branco os olha-res profundos desafiam sombras. A caneta espera no ar: arima é um tudo de novo. Invento vôos. Configuro lobos,uivos. Abuso. O crítico comentou que eu preciso de enre-dos, não posso ficar patinando na invenção de cores ina-pagáveis, sabe mais o quê. E eu fico.

Reuni sonoridades para dizer aqui, frases que na ver-dade ventre e entranha. Frases que se acumulam com umaemergência impensável e a beatitude das flores cumprin-do-se degenerescência. Pretendia clareza, mas o vocabulá-rio é escasso e não chega até lá. Lá é a aurora, por falta depalavra melhor. Lá é onde nasce. É acontecido. Meus de-dos sujos de tinta e a tela vazia. A página. Repleta depredicados, de adjuntos, de agravamentos, mas vazia, fos-ca, miúda. Pesa. (Collin, 2004, p.23)

A metaliteratura de Luci vai criando um intertexto,uma realidade estética da linguagem cujo efeito é a produ-ção de um novo estatuto do sujeito. Ela apresenta seuspersonagens momentos antes de se transfigurarem nasmalhas da linguagem: “Reuni sonoridades para dizer aqui,frases que na verdade ventre e entranha. Frases que seacumulam com uma emergência impensável e a beatitudedas flores cumprindo-se degenerescência” (ibidem, p.23).

Nota-se que o sujeito que nasce da escritura de Collinapresenta-se sob forma de uma voz narrativa auto-reflexi-va, utilizando-se de recursos lingüísticos ousados, rupturasnarrativas que instauram o sujeito no âmbito do mundo.A autora busca a diversidade dos significados das pala-vras, procurando despertar na mente do leitor uma reali-dade que vá além da realidade costumeira.

O conto “No céu com diamantes”5 é uma composi-ção que apresenta, de forma simultânea, monólogo in-

terior, diálogo, discurso indireto, descrições breves termi-nadas em reflexões filosóficas ou existenciais, narrativa emetanarrativa:

TUDO ESTÁ ENTRE PARÊNTESES:6 Sim, tem ca-ráter autobiográfico. É um texto com mau caráter.7 A perso-nagem principal é severamente míope (CLOSE). A persona-gem principal sempre escreve atraso com “z”. A personagemprincipal pensa que é a protagonista e que, no correr dapena, um intrincado enredo se apresentará nesse parágrafo.Nem nos outros. A personagem principal de rinite crônicaque lhe confere um quê de irritabilidadade. A personagemprincipal sofre de insônia e ninguém sabe.

COMERCIAL, SIM, E DAÍ? Resolva já seu problema! Asolução que você procura este exatamente aqui (jingle: “stopsmiling right now!” 2x). Pare de agir como um idiota sempre sor-rindo. Compre já o creme anti-risinhos do Doutor Calipso. [...]

TUDO NOS CONFORMES: Sim, cheira a autobio-grafia. A personagem principal usa lente de contato e en-xerga relativamente bem, obrigado. A personagem princi-pal balança a perna quando está irrequieta (CLOSE. Apersonagem principal tem uma obturação antiga que inco-moda, mas, por falta de tempo/dinheiro/referência, não vainunca ao dentista. [...] A personagem principal exagera otempo todo, mas só por dentro. A personagem principal sóentra pela porta da frente do carro.

TAKE 126, CENA 1: “Peguei o carro”. Tem que pe-gar um carro para começar qualquer história decente. Car-ro conversível, claro. Depois ouvindo uma musiquinha es-túpida no rádio do carro( mas como é inglês, a gente achao máximo...) [...]

“TUDO DE BOM QUERIDA!”: Sim, está me chei-rando a autobiografia. A personagem principal tem umaspontadas do lado direito. Mas só às vezes (principalmenteao subir aquela maldita escada que dá para o laboratório).(ibidem, p.11-14)

A autora apresenta temas recorrentes, repetições, ex-plicações. Podem-se identificar várias vozes, em que há

5 A respeito do título, a autoraesclarece “Trata-se,obviamente, de deslavadoplágio do título de uma músicado grupo de rock’n roll inglêsque, na década de 1960, foimais conhecido de que JesusCristo. Por patente falta decriatividade, o autor operaaqui uma indecorosaapropriação de uma sentençade domínio universal a qual,mesmo sofrendo a (péssima,diga-se) tradução para a nossalíngua portuguesa, conformeargumenta Heloisa Seixasmantém, contudo, a condiçãode indisfarçabilidade autoral”.

6 A digitação do texto segueexatamente a forma como eleaparece na obra Inescritos.

7 A escritora escreve nessemomento em nota de rodapé:“Em 25 de maio, a críticaAnnamaria Polli-Sansonpublicou artigo (pequeno,quase uma notinha, alegando‘desnecessariedade em tomaro tempo dos leitores’) naTribuna de Curitiba atentandopara o ‘caráter degenerativoda produção pretensamenteliterária’ da autora desseconto”.

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temas secundários e temas principais; o que vai sendo re-velado por meio das inúmeras e variadas referências queemolduram as investidas filosóficas da personagem-narra-dora, e é a partir dessa situação que o indivíduo é colocadoà mercê da condição solitária de sua própria expressividade.Há um grande espaço para conexões e reflexões por partede quem lê, considerando-se a interpretação das referên-cias intertextuais e do jogo explicitamente polifônico.

Há a quase ausência de marcas formais no sentido deorganização do discurso, o que confere ao leitor o poder dedecidir por meio de suas considerações lógicas a quem ou aque determinadas informações são atribuídas. Na descons-trução da linha temporal da narrativa os fatos são apresen-tados por meio das reflexões das personagens em planosdiferenciados, numa interposição de imagens de fatos pas-sados ou informações desconexas que só serão amarradas àtrama no futuro.

O conto “No céu com diamantes”, por se apresentarcomo metanarrativa, revela uma forma textual de auto-consciência do processo do narrar que revela a ficção comoartefato, como um construto do autor. O texto, assim cons-truído, fornece em si mesmo um comentário acerca do seupróprio status como ficção e como linguagem, e de seuspróprios processos de produção e recepção, constituindoo que Linda Hutcheon http://sincronia.cucsh.udg.mx/amarv.htm - _ftn1 (2002) chama de “narrativa narcísica”.A metanarrativa é, portanto, a dialética do olhar, que sedireciona tanto para o universo ficcional quanto para foradele, construindo e desnudando simultaneamente a ficção.

Em suas obras a autora reflete, critica, questiona, reve-la, grita, desobstrui a bruma envolvente e deixa vir à tonadetalhes ocultos que formam a vida humana; especialmentevigilante acerca da realidade feminina, e a partir de fatoscotidianos, talentosamente expõe o amor, a arte, a dor, odesejo, a negação, os problemas sociais, a tradição, a rup-tura e tantos outros pontos, sempre com sensibilidade ím-par e olhar singular.

Conclusão

O texto de Collin dissemina a linguagem de tal formaque o problema da existência humana passa a ser o próprioobjeto da ficção. Torna-se, portanto, um problema nãoapenas existencial, mas também ficcional. A literaturacoliniana torna-se totalmente introspectiva, já que se vol-ta sobre si mesma. A ação narrada deixa de ser um eventoou acontecimento e passa a ser o problema vivido por suaspersonagens. Em conseqüência disso, as dimensões maisprofundas da mente, que muitas vezes aparecem mergu-lhadas em dúvidas e inquietações, fazem do texto de LuciCollin a própria narrativa do ser.

A idéia que permeia a leitura de Inescritos é a de quetudo não passa de obra do pensamento, de um emaranha-do de vozes que trazem à tona fatos aleatórios com saltostemporais e associações aparentemente desconexas. Háuma história a ser construída, as peças do quebra-cabeçadevem ser organizadas e montadas. Talvez essa seja a con-dição do sujeito contemporâneo, fragmentado, que concen-tra em si marcas do presente, do passado e – por que não –do futuro, num emaranhado desconexo e excessivo de in-formações que o caracterizam e o descaracterizam numciclo ininterrupto. Esse é um momento peculiar de liber-dade estética, de transformação de códigos e de alteraçãodos limites. E a autora, dessa forma, parte das questõesfilosóficas de seu tempo para compor uma literatura quequebra paradigmas e coloca nas mãos do leitor a respon-sabilidade imensa de recriar o seu próprio romance, me-diante a interpretação pessoal das referências apresenta-das e das pistas narrativas que permeiam sua construção.

Observa-se que a produção literária de Luci Collintem se voltado abertamente para a prática da indústriacultural com o propósito de daí extrair modelos para com-por sua multiplicidade e revitalizar sua técnica com novasconfigurações formais e temáticas. Longe de exercitar comexclusividade a revisitação e a reciclagem de seus própriosprodutos, a literatura atual se reabastece das energias das

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formas culturais consagradas pelos meios de comunicaçãode massa. Esse parece ser hoje um procedimento que mui-tas obras literárias bem-sucedidas não desejam ignorar, masproblematizar.

Ao se considerar a literatura como um discurso que,em maior ou menor medida, se volta (também) para simesmo, que é auto-reflexivo, pode-se afirmar que ela ésempre uma reflexão sobre si mesma. Quando um escritorcria, ele tenta fazer avançar, mudar, renovar a literatura.Quando o crítico se debruça sobre esse texto, sobre essacriação, ele o relaciona com outros textos, com o modocomo outras práticas tentaram fazer sentido, tentaram re-presentar o mundo. É em meio a outras obras que a acei-tação de uma delas como literária se constrói.

A revisão do mundo pelo olhar feminino possibilita oexame crítico da ordem nas relações de gênero (homem/mulher, mulher/mulher) e as várias representações que elesadmitem, trazendo para o texto literário as questões docotidiano, a angústia feminina, a sexualidade, as relaçõesentre ficção e realidade.

Ainda que esteja mais afinada com os princípios dapós-modernidade, não é difícil reconhecer que, em LuciCollin, os textos possuem vínculos com a tradição ociden-tal de escritura das mulheres. Pelas estratégias de encobri-mento ou de silêncio, ocultam-se variantes dos protótiposde anjo e de demônio, por meio de imagens desconstruídase reconstruídas, associando-se, não raro, à capacidade decriação de uma deformidade monstruosa que coloca a mu-lher à margem do normativo, como também os recursosparecidos de reinvenção dos tradicionais estereótipos fe-mininos (mãe, esposa, amante, prostituta).

Essa forma imagética de exercer a intertextualidadepropicia amplas travessias, abrindo à ficção a possibilida-de de viajar por territórios extraliterários (o cinema e oteatro, por exemplo,) em busca de constituintes discursivospassíveis de reutilização pelo romanesco. O empreendi-mento da travessia se desenvolve na forma de um parado-xo que pressupõe proximidade e distanciamento. Consi-

derando-se que tais incursões resultam em transcodi-ficações nas quais a escritura aparece como um corpocindido, que abarca fragmentariamente outros corpos tex-tuais, engendrando novas e múltiplas significações, é pos-sível reconhecer o expediente de apropriação utilizado,próximo do gestus de que fala Gilles Deleuze (1990, p.231):“o gestus é o desenvolvimento das atitudes nelas próprias,e, nessa qualidade, efetua uma teatralização direta doscorpos, freqüentemente bem discreta, já que se faz inde-pendente de qualquer papel”. Nessa perspectiva, os dis-cursos valem pela sua performance, são cênicos: eles po-sam e dão a ver, em espetáculo, os recortes discursivosapropriados. Engendram o que, em sentido dramático, sepode chamar de reapresentações, reaparições que acabampor funcionar como encenações da própria escritura.

Do cinema, do teatro e das artes plásticas, a ficção deCollin simula o gestus não o produto: forja efeitos de su-perfície, simulacros. Embora a escritura estabeleça certarelação com o universo cinematográfico e com o universoteatral, não se trata de uma relação de identidade, de imi-tação. Faz apenas alusões, monta artifícios, produz o que,numa perspectiva semiótica, se chama equivalências: re-petições criadoras que introduzem a diferença.

O olhar da escritora Luci Collin é lançado sobre aque-les que ocupam esse espaço urbano contemporâneo comsuas atribulações, opressões, contradições, alegrias e emo-ções. A escrita dessa paranaense surge exatamente semplanejamentos, num percurso diametralmente oposto aodos chamados autores profissionais. No entanto, dela emer-gem o vigor literário, a força de conteúdo e a riqueza delinguagem.

Uma das grandes qualidades estética da autora é ircontra a corrente predominante na literatura brasileira dehoje, na qual a estética do cotidiano passa obrigatoriamentepela violência e pelos espaços não habitáveis e devastados.

O trabalho de Luci Collin – ao contrário de váriosexercícios narrativos atuais, bastante presos ao esque-matismo da economia jornalística – insiste na elaboração

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de intrincados enredos que instalam fantasias inesperadasno interior dos ritos cotidianos e entrelaçam o plano daação prática ao da atividade psíquica. No contexto pós-moderno, em que se multiplicam as intrigas policiais ou asviagens sem rumo de tipos propositalmente planos e ocos,a obra da autora de Inescritos destaca-se quando instalasua trama, armada como um requintado jogo de monta-gem, na memória (imediata e remota) de seus personagens.Verifica-se que a escrita de Collin tem a ver com um rela-cionamento próprio com o mundo: com a natureza e osobjetos, com as pessoas e os acontecimentos.

A captação da realidade, na escrita de Collin, dá-sepor meio de uma visão dilatada aos diversos sentidos: têm-se, então, os sentidos revelando-se como antenas igual-mente importantes e nítidas para uma captação plural davida. E a linguagem é testemunha disso: adjetivos táteis,substantivos aromáticos, verbos sensitivos dão novos sa-bores ao texto. Outro aspecto da narrativa da autora é aauto-reflexão, que decorre da reflexão íntima em que hámomentos de mistura com a análise dos processos da es-crita e a sua gênese. Há união simbólica entre a escrita e avida, numa distância estética; na proporção que a própriavida é transfigurada pelo poder poético da palavra é que ocampo lexical do corpo se torna vital e se confunde com aprópria escrita. Observam-se, nos contos de Luci, cortesabruptos na história, como se fossem formas de distan-ciamento estético. A narradora insere, em meio a um pre-sente insatisfeito e sempre afetivamente habitado pelopassado, palavras com uma variada gama de sentidos.

A escrita de Collin oferece um discurso difuso. No en-redo, nada é muito claro, nem oferecido facilmente ao lei-tor – e isso não é problema, nem defeito. É opção estética.O enredo de suas narrativas dialoga com a vida, sem comisso dizer que se trata de um caso de realismo. A autora deInescritos capta o que é do espírito desse tempo: a simulta-neidade de situações. Por isso, cessa a linearidade e nenhumaspecto da narrativa é em linha reta. O enredo oferece re-tratos do passado, do presente e delineia futuros possíveis.

Assim, a narrativa da escritora Luci Collin desconstróiuma representação homogênea do lugar da mulher, seja nahistória, seja na literatura dos séculos XX e XXI. É eviden-te a contribuição da artista para a rearticulação de umasociedade na qual as diferenças possam ser respeitadas comoidentidades diversas e múltiplas, e de onde elas possamemergir como elemento contestador do discurso totalizante.

As histórias e os fatos narrados em seus enredos sãocompostos por meio de uma linguagem despojada; contudo,profunda, marcante e direta, fomentada pelo uso detalhadode metáforas, imagens, símbolos, invenções, sugestões, ousa-dias. Enfim, surge um universo inteiro de significados. Per-cebe-se, nas obras analisadas, uma ênfase no universo exis-tencial feminino e nas frestas da memória que o cercam.

Na obra de Collin, a transgressão torna-se o meio peloqual o sujeito feminino empreende a sua luta e conseguevencer a desigualdade. A escrita é o meio pelo qual essaescritora constrói/reconstrói a sua identidade. As diferen-ças sexuais não distinguem o tipo de escrita, apenas o su-jeito da escrita. Ler, portanto, um texto literário à luz dacrítica feminista implica investigar o modo pelo qual o textoestá marcado pela diferença de gênero, diferença essa quenão existe fora do contexto ideológico, mas como parte deum processo de construção social e cultural.

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Escrita do eu em tempos de comunicaçãoe trânsitos: a voz de Valdelice Pinheiro

Maria de Lourdes Netto Simões*

RESUMO: Focando a escrita de Valdelice Pinheiro, o texto é or-

ganizado em dois aspectos: da produção da fala, como lingua-

gens múltiplas; da rede de imagens, no processo da construção

identitária acrescentadora da cultura local. Os dois pontos evi-

denciam as formas de escrita do eu da intelectual itabunense e

as marcas da sua diferença no espaço do patrimônio cultural

sul-baiano. Conclui ressaltando a sua fala como diferenciadora

da cultura local e, pela diferença, suscitadora de um interesse

turístico global.

PALAVRAS-CHAVE: Diferença, linguagens múltiplas, imagens.

ABSTRACT: Focusing on Valdelice Pinheiro’s writing, the text is

organised into two aspects: the speaking process as multiple lan-

guages; the image net in the process of contructing an iden-

tity that adds to the local culture. The two aspects highlight

the ways of writing of this intelectual writer from Itabuna and

the marks of its difference in the space of the cultural patri-

mony of the south of Bahia. It concludes highlighting her spea-

king as the unique aspect of the local culture and, through diffe-

rence, aspects of cause of a global turistic interest.

KEYWORDS: Difference, multiple languages, images.

Introdução

No âmbito das discussões sobre a escrita literária, o

contexto globalizado exige, hoje, a necessidade de inten-

sificar discussões entre literaturas e saberes, também quan-

do se trata de escritas do eu. Em relação a essa forma de

comunicar, é acrescentada a proposta de pensar, ainda, o

texto literário como estratégia de resistência à espetacu-

larização da cultura, como agente provocador de fluxos.

* Professora doutora do

Departamento de Letras

e Artes da Universidade

Estadual de Santa Cruz

(UESC) – Ilhéus (BA).

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Se o intelectual é a obra, conforme afirma AdrianaPérsico (1998), quero observar o seu papel como media-dora, suscitadora de deslocamentos, de trânsitos entre di-ferentes esferas culturais, sociais e políticas. Busco refletirsobre a sua relação com o interesse de leitores, intelec-tuais de espaços outros, especialmente os dos grandes cen-tros urbanos (Simões, 2002). Para esse tipo de mediação,enfatizo a diferença como elemento de produção de valo-res identitários locais (Hall, 2001).

Com base nessa proposição, tomo como foco a escritarealizada por Valdelice Soares Pinheiro que, por sua sin-gularidade, contribui para a diferença cultural da regiãosul-baiana – rica em expressões literárias e potencializadorade trânsitos turísticos.

Para essas considerações, organizo o texto em dois fo-cos: da produção da fala, como linguagens múltiplas; darede de imagens, no processo de construção identitáriaacrescentadora da cultura local. Com isso, pretendo evi-denciar as formas de escrita do eu da escritora, e as marcasda sua diferença no espaço do patrimônio cultural sul-baiano. Concluo procurando apontar a possível ação dasua obra como agenciadora para um turismo cultural nareferida região, por meio de textos que se destacam e apon-tam diferença e, por isso mesmo, são provocadores de uminteresse turístico global. Quero com isso fazer aquele exer-cício que Beatriz Sarlo (1997, p.181) refere quando tratado intelectual: “incorporar a arte à reflexão sobre a cultura”.

Como se pode depreender de minhas palavras iniciais,trato a literatura como bem simbólico cultural, assinaladorade diferença e suscitadora de trânsitos. As escritas do eusão aqui representadas por tipo de linguagem poética, fi-losófica e pictórica.

A produção da fala

Começo questionando: em formas de escritas do eu,como ocorre a liberdade autoral na escolha dessa ou da-quela expressão, frase, versão? Podemos, nós leitores, pre-

cisar a intenção autoral? E quanto a manuscritos literá-rios: qual a intenção autoral se temos duas ou mais ver-sões de um mesmo texto? Por que a reescrita de um mesmotexto? A resposta seria: a busca da perfeição poética, aprocura da melhor palavra?

Procurando refletir sobre tal questionamento, repor-to-me à concepção de escrita de Valdelice Soares Pinhei-ro, itabunense, falecida em 1993, que deixou um espóliode manuscritos inéditos, sobre os quais tenho me debru-çado. Valdelice Pinheiro transitou em meios culturais vá-rios, como agricultora, poeta, filósofa e professora (Estéticae Ontologia). Realizou a sua escrita por meio de lingua-gem múltipla, reveladora de tantos papéis sociais da suaatuação, em temporalidades e espaços diversos, no cursodo acontecer da nação grapiúna. Pelas vivências queexperienciou e trânsitos de escrita que realizou, é aqui to-mada como um exemplo.

Em vida, a poetisa e filósofa chegou a publicar doislivros de poesia (De dentro de mim e Pacto), um filosófico(Ser e evolução), textos auto-reflexivos, incluindo seu pro-cesso artístico (Retomada) e muitos rabiscos e desenhos(exposição organizada por Nádia Fialho); além disso, tam-bém publicou crônicas, em jornais locais. Entretanto, osubstancial da sua produção ficou inédito, um legado queestá sendo resgatado.

A fala da intelectual Valdelice Pinheiro, como lin-guagens múltiplas, é produzida, indisciplinadamente, noespaço de textos poéticos (poemas, prosa poética), textosfilosóficos, textos auto-reflexivos e desenhos, rabiscos,fotografias.

A própria poetisa fala sobre a sua poesia: “é simples,toda nascida de uma linguagem cotidiana, sem rebuscos.Por isso o povo gosta dela, embora às vezes o sentido dealguns poemas seja até metafísico. Acho que se se enten-de a palavra, sente-se o conteúdo do poema” (Pinheiro,1984, p.135). Super-realistas, para ela, artistas são aque-les que vêem “a explosão de uma semente e ouvem umaflor se abrir”; “o poeta, como o filósofo, é esse micróbio

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que conhece as entranhas”; “Só pode haver criação sobreuma existência anterior”, diz ela.

Auto-reflexões sobre o processo criador denunciam afilósofa que existe em Valdelice Pinheiro. O texto “Reto-mada” (ibidem, p.131-5) é um exercício de reflexão sobreo processo criador. Entretanto, sobre esse assunto, há, alémdo publicado, farto material inédito. Em verdade, ela seocupa do processo simultaneamente ao seu fazer poético,em retro-reflexão, parece. Esses escritos de auto-interpre-tação são explicativos do seu fazer poético e podem sertomados como uma proposta de teoria da poesia. Para apoetisa-filósofa, escrever é libertar-se. Nesse instante, “avoz tira a lógica, o juízo, desregula o comportamento dovocabulário” (ibidem, p.134). Assim nasce o poema: “Se acarambola/ tivesse dedos/ tocaria Mozart,/ certamente”.

Já como resultado da recolha dos manuscritos inédi-tos, foi publicado o livro Expressão poética de Valdelice Pi-

nheiro, que contou com o apoio do CNPq (Simões, 2002).No trato dos manuscritos, rapidamente pode ser consta-tado o processo de reelaboração da poetisa.

Tal processo pode ser verificado, ainda, nas versõesencontradas de um mesmo texto, fato indicador de váriostempo-espaços enunciativos. Poemas há que chegam aapresentar nove versões. Simultâneas ao seu fazer poéti-co, os textos de auto-interpretação nascem do silêncio deuma voz interior impulsionadora, como ela afirma, não “asimples voz, um som emitido pela competência do apare-lho fonador, mas a Voz, a VOZ [...] silêncio que chegaaflito, precisando do grito, tem que inventar o som...” (Pi-nheiro, 1984, p.136). O processo de surgimento do poemapassa pela fase do que chama de “mundo das idéias”, faseessa expressada por meio de rabiscos, de desenhos.

Figura 1 – Rabisco e texto poético – Linguagens de Valdelice Pinheiro.

Fonte: Simões (2002, p.78).

Figura 2 – Rabiscos e texto poético – Linguagens de Valdelice Pinheiro.

Fonte: Simões (2002, p.64).

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São retas, curvas, espirais que dão surgimento a ines-peradas formas e, em seguida, ao poema. Por vezes, as lin-guagens são tão imbricadas que, mesmo querendo, é im-possível separá-las.

Texto filosófico:

No começo não era o caos, o nada, mas a Unidade, a Per-feição, a ordem absoluta no Todo, no Em Si (primordial),eterno.A Perfeição absoluta explode. E a explosão é do espírito,da consciência, para criar-se a si mesma.Deus, portanto, essa Existência Anterior, não criou donada, mas CRIA de si mesmo, explodido. Criar é explo-dir-se no Ser.

Texto poético: Poema da criação

Nada existia.Uno e só,o Em Sipulsa, pulsa...Como um infinitoÓvulo maduro.O Em Sinão se basta.E no milagrede seu próprioencontroalgo estremece e abalaa Eternidade:o Em Si fecunda-se.E por se fecundar,explode-se.E cria.Nasce a Existência,o átomo que se anima.E na Existênciao tempo.E no tempoo homem.O Em Sise expressa.E a Existênciao cria.Ou prosa poética:

Figura 3 – Rabisco e texto poético – Linguagens de Valdelice Pinheiro.

Fonte: Simões (2002, p.116).

Eminentemente filosófica desde o seu processo deenunciação até a concretude da sua formulação, muitasvezes, ao processo de produção antecede uma reflexãofilosófica.

As múltiplas linguagens são acrescentadas da reela-boração temática, quando um mesmo tema se reescreveem linguagens diversas: filosófica, prosa poética, poesia,desenho. Textos filosóficos são verdadeiras matrizes depoemas ou de prosas poéticas, como é fácil de ser observa-do nos exemplos que seguem (Simões, 2002, p.36-7):

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História da criação

O Em-Si era um solitário dorminhoco, prisioneiro do infi-nito, daEternidade. Chamava-se Ser. “Um dia”, em-si-triste, em-si-zangado,em-si-prenhe e amadurecido em seu próprio ovo e em seupróprio ventre, explode-se, rompe-se, pare. E cria! E emcriando-se, cria-se! Revela-se então amor e liberdade. Li-berta-se. Liberta-se nas asas do finito, na animação vitaldo tempo-espaço. E só então chama-se Deus.

A rede de imagens

No processo de construção identitária, a rede de ima-gens é acrescentadora da cultura sul-baiana. As vivênciasde Valdelice (ligada ao campo e às roças de cacau) subs-tanciam-na. O repertório que utiliza denuncia a sua obje-ção ao mando, às desigualdades sociais próprios do contex-to grapiúna, da conquista das terras do cacau, do desbravardas matas, do mando dos coronéis, do poder do mais forte.

Os campos semânticos são povoados por um repertó-rio denunciador de uma vivência ligada ao simples, ao cam-po, a uma época, um lugar: “Ah, minha infância tropical,brasileira, comendo jaca e mamão, chupando cajá e tange-rina, descobrindo o mel no favo, conhecendo as abelhas!”(in Simões, 2002, p.48).

Embora os seus escritos sejam, todos eles, perpassadospelo olhar voltado para o existencial, esse foco é nuançadoem blocos temáticos: tratam de liberdade, amor, desigual-dade social, inadaptação à vida; falam de natureza e exis-tência metafísica.

A angústia que a sufoca é forma de estar e sentir omundo. Ela lida com a realidade com sensibilidade e olharcrítico, próprios de quem redimensiona o vivido mediantea experiência poética. A referida postura reflexiva da suaobra – sobre o mundo, sobre a vida – não se limita a umolhar do imediato e objetivo, “mas o aí em relação ao aqui,ao cá dentro, sujeito modificador do mundo”, como elamesma afirma.

As suas imagens (em palavras ou desenhos) são trazi-das da memória de quem vivenciou o campo, o simples, aterra:

Os vaga-lumes desta noiteiluminam minha noitee me emprestamsua luz e suas asas.Então, feliz,a estrada clareada,eu vou te ver.

A sua fala anuncia e denuncia a riqueza da miscige-nação e da multiculturalidade regionais, como no poema“Canto brasileiro” (Pinheiro, 2000):

Pego-me aos pedaços. Quinhentos anosestranhos desfiguram minha face negra,meus dedos índios. Por que estes dedosgorduchos se eu nunca fui barroca? Por queesta lágrima de Pietá, se meucentro é a fecundidade de minha barriga, aligeireza de meus pés?

Restauro-me. Meus dedos de pontasAchatadas voltam ao rústico bambu deflautas indizíveis e batem, com a graça dobraço engajando o corpo, doces berimbaus.

Faço minha dança no momento do golpe –me defendo -e canto para espantar os mausespíritos. Se cantar vale por rezar duasvezes, isto fica por conta do próprio canto.

Restaurando-me, cresço.Crio detalhes que se liberam de minha mentee de minhas mãos.Sou da idade de meus príncipesnegros,jovem como meus guerreirostupiniquins.

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Conclusão

A relevância da literatura sul-baiana tem provocadoa sua exploração pelo turismo que, muitas vezes de formaequivocada, coloca a cultura a serviço do marketing, com-prometendo a identidade regional, corrompendo o bemsimbólico, o patrimônio cultural local.

É bem verdade a evidência hoje do mercado comoparadigma de múltiplas liberdades. Sobre isso, cabe aqui apergunta que faz Beatriz Sarlo (1997, p.152), quando falasobre a cultura na Argentina: “existe outro lugar, além domercado, onde se possa pensar a instituição de valores?”.E, no mesmo texto, Sarlo ainda observa que

a liberdade de fruição dos diferentes níveis culturais comopossibilidade aberta a todos (mas não escolhida por todos)depende de duas forças: estados que intervenham equili-brando o mercado, cuja estética denuncia um compromissocom o lucro; e uma crítica cultural que possa livrar-se doduplo isolamento da celebração neopopulista do existentee dos preconceitos elitistas que solapam a possibilidade dearticular uma perspectiva democrática. (ibidem, p.182)

Sabemos que as possibilidades de legitimação se mul-tiplicam. Concordo que as políticas culturais que orien-tam as ações de valorização, discussão, apoio à circulaçãodos bens culturais têm atenção à demanda do mercado,sim. No entanto, penso a ação intelectual, transitando acultura por meio da arte.

Creio que, assim, é possível admitir a possibilidade deuma ação intelectual contribuidora para o desenvolvimen-to cultural sustentável. Isso, por meio de discursos que searticulem, construindo o lugar, provocando outras refle-xões, promovendo trânsitos, realizando trocas culturais,promovendo o respeito ao/do outro.

Como visto, a escrita de Valdelice Pinheiro revela asua forma de comunicar, compondo um processo artísticoque ultrapassa a palavra para uma comunicabilidade, tam-bém, visual. A sua expressão é um exemplo de que, nesses

tempos, as escritas do eu não se limitam à palavra, massão expressas também por outras linguagens; reportam-sea toda uma concepção artística comunicadora, que faz odiferencial de uma produção e seduz o leitor. A singulari-dade da sua expressão certamente atrairá leitores curiososem re-conhecer, por exemplo, o Rio Cachoeira, ou a cul-tura do cacau.

As marcas da região sul-baiana, presentes na obra deValdelice Pinheiro, são referenciais. Porém, mais que serespaço de referências, ela própria, a sua obra, como cultu-ra, contribui para a diferença que faz a multiplicidade e ariqueza grapiúnas. O discurso que veicula é de resistência,na medida em que não se submete; é emancipatório, porsua capacidade de ação sobre o leitor. São escritas do eu,em várias linguagens que conversam entre si e traduzemas suas vozes: poética, filosófica, plástica. Contida nelas, évisualizado o espaço cultural, simbólico.

Se as marcas de uma cidade passam pelo olhar multi-focal (Canclini, 1977), os bens simbólicos de um espaço,por sua vez, ressaltam o cenário cultural. A divulgaçãodas expressões de escrita, por meio da sua literatura, semdúvida dá visibilidade e valoriza o estético. Mas também,parece-me uma forma possível de contribuição para refle-xão sobre saberes e fazeres locais, provocadores de trân-sitos turísticos. A ação da fala que transita junto aos lei-tores, intelectuais de alhures – que chegam de espaçosoutros –, além de evidenciar a nossa diferença, certamen-te será um dos meios de respeito à cultura local.

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A escritura da memória como fundamentoidentitário do eu

Carlos Eduardo Japiassú de Queiroz*

* Doutor em Letras pela

Universidade Federal de

Pernambuco (UFPE) – Recife

(PE).

RESUMO: Este trabalho divide-se em duas partes que se intercom-

plementam. Na primeira, de âmbito teórico-filosófico, enfoca-

se o tema da memória, abordando-a como fundamento da iden-

tidade do sujeito. O mergulho no “tempo passado” como doação

de sentido à subjetividade. A segunda parte tomará a forma de

um relato memorial, realizando no plano do discurso literário a

proposição teórica antes referida.

PALAVRAS-CHAVE: Tempo, memória, identidade.

ABSTRACT: This work is divided in two parts that if Inter-comple-

ment. In the first one, of theoretician-philosophical scope, the

subject of the memory is focused, approaching it while bedding

of the identity of the citizen. The diving in the “last time” as felt

donation of to the subjectivity. The second part will take the

form of a memorial story, carrying through in the plan of the

literary speech the theoretical proposal before related.

KEYWORDS: Time, memory, identity.

Iniciaremos este trabalho com uma assertiva axiomá-

tica: se há algo que na existência do homem pode ser con-

templado com a qualidade da permanência, esse algo é a

faculdade da memória. Porém, uma permanência não do

que é, e sim do que passa, do que fica e do que resta na

passagem do tempo.

Atribuiríamos, portanto, à memória o princípio da uni-

dade e continuidade do ser, base da personalidade indivi-

dual (assim como a tradição pode ser considerada a base

da personalidade coletiva), ou seja, o princípio integrador

por meio do qual o indivíduo se esforçaria em perseverar

em seu ser.

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A história passada e antepassada de cada um compor-tar-se-ia como lar-abrigo, refúgio do ser nos momentos emque o princípio inerentemente oposto ao do in(divíduo),o da fragmentação do ser, aparece teimosamente com suavocação dissociativa.

Não consideramos excessivo frisar que não aponta-mos para uma subjetividade inteiriça e transparente, fin-cada num sujeito idêntico a si mesmo, pois, como apostaMerleau-Ponty (1994, p.472), “a subjetividade arrasta seucorpo atrás de si”. Dessa maneira, pretendemos pensar aindivisibilidade do sujeito como princípio intrinsecamen-te identitário, mas sempre desfeito e refeito no curso dotempo. Dito isso, observaríamos que a primeira e talvezmais importante expressão concernente à memória seja asensação de proximidade que as lembranças passadas tra-zem ao ser. Queremos nos referir ao vital estado íntimoprovido pelo sentimento de pertença a uma história e decontigüidade a um território.

Como mostra a antropologia, os grupos sociais têmcomo fundamento de sua personalidade coletiva a conti-nuidade de uma tradição. No que concerne às sociedadesditas “primitivas”, essa seria mantida pela revisitação deseu mito fundador, consubstanciado numa narrativa pri-meva, ancestral, que imporá um sentido ético-organiza-cional à existência do grupo. Em relação a elas, podería-mos falar de uma memória coletiva perene e indefectível.Quando, porém, pensamos nas sociedades modernas e nointenso grau de individualização alcançado pelo homemcontemporâneo, vivendo numa linha divisória entre a tra-dição e a liberdade para o novo, atentamos para o cons-tante estado de contradição entre a continuidade mantene-dora das (não) escolhas costumeiras e a liberdade, digamos,catastrófica, da não-adoção delas. Nesse caso, em se tratan-do dessa espécie de esfacelamento que acomete a Moderni-dade, a revisitação memorial, especialmente nas fases deuma ruptura, surgiria como ato espontâneo do espírito.Esse, na impossibilidade de resolver o impulso contraditó-rio – contra a tradição –, por algum motivo impregnado à

personalidade, buscaria o passado como uma forma dedotar-se da graça de uma estabilidade. Tal percurso se con-solidaria como o movimento no qual o espírito viria a sipelo despertar das imagens que compõem a vida passada.Nesse sentido, conceder-se-ia uma identidade entre espí-rito e memória. Identidade que defenderíamos como for-ma mais plausível de se atribuir uma concreção de signifi-cado ao que vem a ser chamado de espírito. Como dizHenry Bergson (1999, p. 78) em Matéria e memória, “se,portanto, o espírito é uma realidade, é aqui, no fenômenoda memória, que devemos abordá-lo experimentalmente”.

É dessa espécie de reciprocidade significativa que nas-ceria o horizonte de uma consciência individual, comotambém, acrescentaríamos enfaticamente, a possibilidadede suplantar uma auto-identidade solidificada na identifi-cação com as ordenações socioculturais. Visaríamos, as-sim, a uma consciência que, no incurso da memória, de-senvolveria uma contundente sensação de domínio, comode pertencimento, a alteridade e/ou a diferença de sua his-tória própria – pois o que há de peremptório a distinguir aspessoas senão o senso unívoco de seus trajetos particula-res? Desse modo, pretendemos nos referir a uma consciên-cia “individualizante” que, ao descentrar a generalidadeobjetivada da espécie, perfará a medida e o alcance de suasubjetividade; para, então, (des)fechando o raciocínio, di-zer que essa só se assumiria como tal levando a efeito acontribuição do fenômeno da memória.

Nesse âmbito, a adoção da reflexão bergsoniana viriapela tentativa de unir ao problema da percepção uma teo-rização a respeito da memória. Dirá ele: “Na verdade, nãohá percepção que não esteja impregnada de lembranças”(Bergson, 1999, p.30). O princípio básico sugerido porBergson é que a percepção consistiria num conhecimentoútil que o corpo engendra em sua interação com o meio,de modo a fazer uma seleção das imagens percebidas deacordo com a vantagem que o corpo busca na luta peloprosseguir de sua consistência. Nesse processo, todos osdados da experiência passada viriam naturalmente em aju-

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da à consecução dessa meta instintiva; ou seja, ao enfren-tarmos um dilema objetivo, recorreremos, com maior oumenor consciência, à lembrança de ocorrências similarespara a escolha de uma determinada resolução.

Veremos adiante que Bergson classifica tipos de lem-branças conforme suas funções concernentes à percepção.Portanto, mesmo num modo de conhecimento mais espe-culativo, e até contemplativo – um conhecimento antifun-cional fundado numa imaginação à deriva –, ocorreria, nocerne da combinação das imagens providas à mente, umespontâneo chamamento à memória. Queremos assinalarque o processo memorial viria sempre como uma ajuda,um benemérito, emergindo à consciência por uma neces-sidade do espírito em se manter como existente; desde aativa intenção, mais ou menos reflexa, surgida no conflitocom o outro humano ou natural – característica geral dosseres vivos –, até a qualidade supérflua, talvez só inerenteao homem, de rememorar imagens à toa do passado. Seentre esses dois casos, como obsessivamente interessa aBergson, houve uma mudança de natureza na imagemmemorial, ou apenas um aumento no seu grau de comple-xidade, aqui nos parece irrelevante. O importante a se re-levar é que em tal necessidade se firmaria um movimentode reorganização do corpo em direção a um novo momen-to – lugar de equilíbrio do ser.

Quando falamos de um efeito da imagem memorialsobre o espírito, obrigatoriamente nos vêm à mente as obrasde Gaston Bachelard, nas quais esse poeta-epistemólogoressalta o poder benfazejo que o devaneio poético de ima-gens de potencias materiais teriam na alma. No entanto,é-nos dificultoso responder ou tratar acerca das repercus-sões tristes, doloridas ou no mínimo incômodas que insis-tentemente assombram a consciência – normalmente as-sociadas a pequenos pormenores de lembranças contíguasou afins. Será que o pesar trazido por elas não afetaria oespírito de maneira oposta às preconizadas antes? Será queo devaneio, primo-irmão da memória, também não teriasua carga obscura? Inegável é o peso da memória. E tão

forte às vezes ele se faz sentir, que uma das estratégias paraum bem-estar da alma consiste na seleção consciente daslembranças advindas, de modo a, na medida do possível,livrarmo-nos de seu constrangimento. Contudo, ao espí-rito também cabe o alimento dessas lembranças, digamos,ruins. E é justamente da ruminação consciente da dor sen-tida pela lembrança delas, como da bem-temperançaprovocada pelas de bom auspício, que o ser-identidade po-derá a cada passo se tornar mais senhor de si.

É nesse momento que encontramos a postulaçãobergsoniana de que se de alguma maneira é possível abor-dar experimentalmente o diáfano espiritual, isso se dá pelofenômeno da memória. Fará ele uma estranha dissociaçãoentre o que denominará de percepção pura, ou matéria, elembrança pura, ou espírito. Para nós, essa divisão con-ceitual serviria para um melhor parâmetro de compreen-são dos termos, visto que não existiria um exato limitedemarcatório das funções de cada um. Assim, a funçãoatribuída por Bergson à percepção ao separá-la – nesseprimeiro momento como veremos – da memória, engloba-ria os mecanismos sensório-motores responsáveis pelaação-reação do corpo aos estímulos externos. Dessa ma-neira, ela atuaria sempre numa dimensão presentificadado tempo correspondente à relação imediata entre os cor-pos-matéria. Porém, para que esse automatismo se tornecada vez mais eficiente no alcance de seus objetivos, faz-se necessário um mecanismo de seleção daquelas açõesque no tempo se mostraram mais eficientes, retendo-se osacontecimentos ocorridos, permitindo-se assim uma pro-jeção otimizada do caminho a ser seguido.

É como se, no aceite da teoria evolutiva, as deficiên-cias sensório-motoras da espécie humana fossem supridaspela eficácia lógica de sua atuação, cujo passo fundamen-tal teria vindo com o aprimoramento das tecnologias deexploração dos recursos da natureza. Quiçá, é nessa esferaevolutiva que se complexificou a função simbólico-meta-fórica humana, pois, para o resguardo e a posterior seleçãodas imagens percebidas, seria necessário o transporte des-

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sas do espaço limítrofe entre corpo e ambiente externopara uma zona “profunda” onde elas seriam representa-das. É, portanto, nesse não-lugar pertencente à dimensãodo espírito, o qual denominamos memória, que a infinitudedo conjunto de imagens que nos compõem se posiciona demodo tal a permitir a mistura, a substituição e a combina-ção entre uma e outras. Disso se poderia explicar, por exem-plo, a promiscuidade imagética característica do onírico,como também o próprio fundo intuitivo que engendra asidéias. Sendo a partir da multiplicação combinatória dasimagens que o indivíduo projetaria universos inexistentes,porém sempre tendo como base o que já existiu, ou seja, amedida de sua experiência perceptiva. O futuro abrindo-se para nós como a invenção de caminhos insuspeitos apartir de caminhos antes trilhados.

Desenvolvendo-se, então, as noções de percepção ememória puras, encontraríamos dois perfis psicológicos,ou duas diferentes disposições de espírito. A do homemvoltado para a ação presente, indisposto com o tempo, le-vado por uma atenção sempre temente ao solucionar dosobstáculos insurgentes, sempre a dispensar sua catexia pre-sente na direção de uma certeza objetiva. Não pretendendosentir a duração do tempo, sua elasticidade, só concebe omundo como instrumento ou alavanca para a construçãode um futuro. De sorte que para esse sujeito o melhor é sevir livre do passado, e o recurso às lembranças só aconte-cerá na exata medida de sua serventia. Já o outro tipo,o do sujeito entregue ou tragado pela memória, no qual ohábito do relembrar-se acontece de maneira quase pato-lógica,1 conviveria com o passado no presente mesmo emque vive, devotando sua energia psíquica ao mundo qui-mérico das “imagens irreais”. Substitui, assim, o imedia-tismo de um presente inconsolado e desagradável por umuniverso abstrato no qual priva de seu maior bem: a inti-midade. É o espírito voltado à substância incompreensíveldos sonhos,2 e que, mesmo no estado de vigília, se pegaamiúde em devaneios considerados pela vida prática comovãos. Como bem diz Bergson (1999, p.90), “para evocar o

passado em forma de imagem, é preciso dar valor ao inú-til, é preciso querer sonhar”. E acrescenta: “Talvez apenaso homem seja capaz de um esforço desse tipo”.

Enfim, retomando a reflexão de Bergson acerca dosignificado das relações entre memória e percepção, con-cluímos ser do desequilíbrio entre a reciprocidade das duasfunções o aparecimento dos vários níveis de “cegueira psí-quica”. O obnubilar-se da consciência se dando no movi-mento pendular entre a alienação do sujeito quanto à suasubjetividade, por um lado, e a negação do mundo exte-rior, por outro; o que levaria à diminuição dissolutória dasíntese identitária-existencial, efetivada tanto no poderconsciente sobre as circunstâncias quanto em sua inerêncianelas. Ora, tal “domínio consciente”, reforçamos aqui, nadamais significaria que a atenção, ou mesmo, o notar, da vida,pela iluminação dos acontecimentos passados. Uma velairradiando-se sobre um horizonte cuja circunscrição de-nominaríamos “Minha Vida”. E isso corresponde ao con-junto das lembranças-imagens que, em mim eclodindo,constituem o “Meu Nome”. A essas lembranças-imagensBergson associará a definição de memória espontânea, “quetem por objeto os acontecimentos e detalhes de nossa vida,cuja essência é ter uma data e, conseqüentemente, não sereproduzir jamais” (ibidem, p.90). Essa seria para ele amemória por excelência, e não aquela adquirida como re-sultado de um trabalho repetitivo da atenção, a qual ter-minará se fixando por uma condição de hábito. O casoextremo desse modo de memória constata-se, por exemplo,no didatismo antiquado que ainda impera nas pedagogiasescolares, as quais associam a aprendizagem à assimilaçãorepetitiva de um crescente acúmulo de informações. To-davia, essas lembranças-hábitos, operadas pelos mecanis-mos sensório-motores, comporiam a ferramenta impres-cindível, guardadas as diferenças de grau, a todos os seresvivos em suas reações adaptativas ao meio ambiente.

Estamos, assim, de volta ao terreno da utilidade, noqual o passado é registrado sob a forma de hábitos moto-res. Se, no entanto, acreditamos que ao menos no homem

1 Em seu conto “Funes, o

memorioso”, Jorge Luis Borges

descreve-nos o personagem

Irineu Funes, um sujeito que,

acidentalmente, adquiriu a

faculdade de dilatar o espaço-

tempo, discernindo, naquilo

que não pode ser destacado ou

isolado, uma total

singularidade. Percebia, assim,

nas infindáveis linhas da crina

de um cavalo, nas diferentes

faces de um morto num

demorado velório, a mesma

nitidez linear que observamos

no claro desenho de um

círculo sobre o quadro-negro.

2 Inspirados na clássica

afirmação encontrada na

Tempestade, de William

Shakespeare, de que somos

feitos da mesma matéria dos

sonhos, indagaríamos então:

de que substâncias são feitos

os sonhos?

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existe uma capacidade natural de reter as imagens concer-nentes às situações passadas, deveremos acompanharBergson na indagação acerca da finalidade das lembranças-imagens: “Para que servirão essas imagens-lembranças?Ao se conservarem na memória, ao se reproduzirem naconsciência, não irão elas desnaturar o caráter prático davida, misturando o sonho à realidade?” (ibidem, p.92). Orase não seria essa a natureza da arte?! A de impregnar desonho a realidade para torná-la um pouco mais suportá-vel; ou, como se a realidade mesma, da única forma emque pelo humano pode ser apreendida, não passasse senãode um grande sonho coletivo. A questão é que o pensa-mento criador é da mesma estirpe do sonhar, com a mag-nânima capacidade de nutrir o sonho de uma substância“(real)izável”. Portanto, o desprovimento dessa profundi-dade onírica sobre a qual flutua nosso existir pensado-per-cebido da vida resultará naquele sujeito automatizado pelarepetição útil de seus hábitos, o qual “encenaria sem ces-sar sua existência em vez de representá-la” (ibidem, p.182).

Nesse momento, o ato de reconhecimento das ima-gens-lembranças surgiria como a maneira pela qual passadoe presente, memória e percepção, se uniriam numa mes-ma dimensão, a qual, na falta de uma terminologia, cabe-ria a nós chamar de “tempo do viver”. Emergiria, assim,dessa dimensão, a figura do “leitor do tempo”, o qual secaracterizaria pela intensa sensação advinda no momentodo reconhecimento dos significados propostos pelas “pa-lavras-imagens” percorridas por seus olhos. Nesse âmbito,Bergson traz à tona o chamado sentimento de déjà vu. Essese processaria pela similaridade-contigüidade das percep-ções presentes às percepções passadas consolidadas namemória. O fato é que, mesmo com toda a energia despen-dida nas tensões motoras com o enfrentamento do “tem-po sempre a vir”, as lembranças-imagens de um “tempoido” estão, a cada momento, sedimentando-se no espaço-tempo do espírito. E, para que elas não venham a usurparo domínio da atenção sensório-motora, caso do sujeitointeiramente devotado aos sonhos, faz-se necessária uma

constante seleção de seu “aparecer à consciência”, rele-gando-as a um ostracismo em relação à psique alerta. Ha-veria assim um filtro pelo qual a percepção presente sóreconheceria as lembranças-imagens direcionadas à açãomotora quando guiada por um movimento em direção aotempo útil do futuro. O ponto fulcral a que chegamos é quepor algum escuso motivo tal seleção não ocorre com aqualidade de uma “perfeição-máquina”; assim, por obramesma do espírito humano, às impressões atuais condensar-se-ia a memória espontânea do tempo supérfluo do passado.

Um tempo “inútil”, caracterizado pelo movimento nãovisível do sujeito, por uma exótica ocupação do espaçoestabelecida por um silenciar das manifestações exterioresdo corpo. Porém, é justamente essa disposição do tempopara o espírito, um tempo distendido, que levará à recon-dução ao objeto percebido, a uma detenção do corpo-es-pírito sobre ele. Como bem observa Bergson, “se no reco-nhecimento automático nossos movimentos prolongamnossa percepção para obter efeitos úteis, nos afastando as-sim do objeto percebido, aqui, ao contrário, eles nos recon-duzem ao objeto para sublinhar seus contornos” (ibidem,p.111). É como se a fé perceptiva com a qual nos agrega-mos ao “espaço real” fosse, nas palavras de Bergson, “forta-lecida” e “enriquecida” pela memória. Essa, no parentescodas imagens percebidas com as lembradas, agudizaria apercepção pelo valor resultante da coincidência entre su-jeito percipiente e sujeito percebido. Coincidência que ne-cessariamente ocorreria na detenção de um tempo sincro-nicamente recíproco, o qual se deixaria ser notado à medidaque a contração da memória projetasse nele suas lembran-ças. Nesse sentido, o projetar-se da memória poderia sedar tanto pelo esforço da atenção concentrada como pelaespontaneidade de uma atenção distraída; ou seja, umamemória que ora atenderia ao chamado das percepções,ora, por capricho, se escoaria sobre elas, recobrindo-as como invólucro de nossa existência passada.

Só essa coalescência entre o fundo lugar da memóriae o espaço superfície da percepção, unidos como contínua

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ponte, poderia explicar o sujeito que se sente sempre nafronteira da nostalgia do que passou e da curiosidade doque está a passar, perpassados ambos os lugares pelo am-plo espectro de suas possibilidades interpretativas. Deve-mos observar, no entanto, que se Bergson estabelece nesseencontro a passagem de um estado de virtual consciência,ao qual corresponde à lembrança-imagem, para o de umaatuação sensório-motora que tem seu ímpeto na assimila-ção perceptiva daquela, nossa intenção diretriz se mante-ria no foco da percepção imaginativa. Permanecendo nes-se foco, teríamos que propor, em vez de uma transfiguraçãoda lembrança-imagem em imagem percebida, em decor-rência do que a lembrança se enfraqueceria em troca deum fortalecimento da percepção, a idéia de uma justapo-sição pela qual memória e percepção permaneceriam porum determinado segmento do tempo em suspensão cons-ciente. Instante suficiente para uma intuição (clara-evi-dente) tanto do presente observado quanto do passadorememorado. Preponderando nos dois estados o trabalhoimaginativo: no primeiro podemos imaginar a existênciadecorrida, visto que já conhecida pela memória; no se-gundo imaginamos o tempo que decorre diante de nós,pois já conhecido por nossos sentidos perceptivos. Esseposicionamento irá conflitar-se com a afirmação de Bergsonde que “imaginar não é lembrar-se” (ibidem, p.58). Ele,contudo, nos permite essa visada, já que, ao longo da obra,não se interessa em discorrer acerca do ato imaginativo.Como também a postulação de que o presente seja essen-cialmente sensório-motor, e portanto extensivo e localiza-do, não possibilitará o vôo do espírito sobre o horizontecontemplado pela percepção. Pois, para nós, é nesse mo-mento que vemos realizar-se o instante exato em que o serse compreende no que percebe, pela consciência imagina-tiva predisposta ao e no percebido.

Outrossim, acreditamos impor-se o problema da ima-ginação na pertinência lógica da interrogação do própriofilósofo (ibidem, p.175): “Mas como o passado, que, porhipótese, cessou de ser, poderia por si mesmo conservar-se?

Não existe aí uma contradição verdadeira”. Ora, mas nãofoi ele próprio que cunhou o termo composto “lembrança-imagem”? A subsistência do passado, portanto, dar-se-iapela conservação das imagens do que ele foi. Porém, se-guindo-se a dúvida, de inspiração shakespeariana, que in-daga a respeito da substância dos sonhos, admitiremos ainextensão delas, ou seja, a qualidade de uma ausência desubstância. Não localizáveis, nem como vácuo, a únicacircunscrição que podemos ater às imagens é a que coincidecom o alcance do nosso ser. E, deveras curioso, em sendoo que não é, elas têm o estranho poder da afetividade. Se,então, elas têm a vitalidade de nos afetar, o passado afe-tando o presente, em contrapartida, já que o conjunto deimagens passadas consiste num meu pertencimento aooutrora, tenho em mim o poder de agir sobre elas pelafaculdade da imaginação, a saber, imaginando as lembran-ças-imagens a partir das relações afetivo-perceptivas comas quais atravesso o presente existir. Desse modo, a cons-ciência possui a ferramenta – não material – que permitetrabalhar as lembranças-imagens composta da mesmaincorpórea substância delas, dando-nos assim o direito detransfigurarmos o poder afetivo que atribuímos a essas lem-branças-imagens, pois, ao rememorá-las imaginativamente,podemos dispô-las mediante um certo controle. Ou man-tendo a disposição espaço-temporal das representações,ou recombinando-as de acordo com algum impulso estéti-co, estaremos ficcionalizando nossa vida passada, porémsempre com a sensação de mantermos os pés no presente.

Discordamos, pois, da afirmação de que “nós só perce-bemos, praticamente, o passado, o presente puro sendo oinapreensível avançar do passado a roer o futuro” (ibidem,p.176), visto que existiria um quase inapreensível instan-tâneo evento onde nossa atenção, ao distinguir sua figura-sobre-fundo, seu grau de diferenciação em relação aosdemais eventos, conseguiria vislumbrar a individualidadede sua apresentação; ou seja, sua aparição única em sin-cronia com o sujeito vidente (ibidem, p.188). Nesse mo-mento, Bergson nos permite uma interessante interlocução

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ao dizer que a “distinção nítida dos objetos individuais”requereria uma memória das imagens e que, para “umaconcepção perfeita dos gêneros” como esforço reflexivo,exigir-se-ia justamente o elidir das “particularidades detempo e lugar” de uma dada representação. Essa conside-ração nos é importante na medida em que admite doismomentos de compreensão dos seres, o da individuação eo da generalização, os quais podem se distinguir respecti-vamente como percepção e conceito. Façamos então nos-sas as palavras do filósofo quando afirma que “a idéia geralterá sido sentida e experimentada antes de ser representa-da” (ibidem, p.188). O significado dessa frase de certo modoencampa e norteia a segunda parte deste trabalho como“veia interpretativa” por nós escolhida e definida. O mo-mento da tradução representacional, concretizado pelo atoda escritura, é concebido como ato segundo do espírito. Asemelhança da qual o espírito parte no processo de toma-da de conhecimento é a semelhança sentida e/ou vividaque nos dispõe ao aparecimento singular de um fenôme-no. Só então se fará possível a idealização de cunho geral,como uma “semelhança inteligentemente percebida oupensada”. E acrescentamos diante disso que o trabalhoescritural das imagens tanto rememoradas quanto obser-vadas transitará entre a descritividade do singular e a con-ceituação geral, porém sempre a partir da memória do jáexperienciado, do reconhecimento da semelhança.

É nesse contexto teórico, e, talvez, como um modo deexemplificá-lo, que propomos, como parte intercomple-mentar ao discorrido até agora, a experiência de uma escri-tura da memória. Essa assumiu o título de Folias na fazenda.

Folias na fazenda

A casa não era tão antiga. Tinha seus trinta anos. Seuespecial interesse estava na extrema simpatia com a qualnos acolhia quando solicitávamos sua presença: algumastemporadas no ano, fora da normalidade circular da cida-de grande.

A estrada

O trajeto até ela consumava-se num grande percorrerépico. Saíamos do apartamento muito cedo na manhã úmi-da, o dia anterior passado numa embriagante ansiedadepré-viagem. Percorreríamos enfadonhos quilômetros deasfalto, com suas inclinadas perspectivas e seus fios emmovimento, antes de chegarmos às espetaculares três ho-ras transitadas sobre a poeirenta estrada de barro. Esseponto era delimitado por uma parada na última cidadeligada pelo asfalto, o último baluarte urbano. Após umbreve lanche na casa de parentes, onde encontrávamosnossos primos – não tão “urbanoídes’ como nós –, partía-mos restabelecidos ao encontro do incomensurável. Atra-vessávamos quatro vilas perdidas no deserto de barro epedra antes de chegarmos à última, distante duas léguasda propriedade do meu avô. O mais marcante nessa estra-da, singrando um território quase fantasma, esquecido porDeus e pelos homens, era a paisagem brilhantemente novaentrevista no percorrer uniforme e saltitante do veículo.Imagens irreconhecíveis feriam-me os olhos concentrados.Formas inéditas eram encontradas sob o verde, o cinza e oamarelo predominante; criando, para mim, um glamoursurpreendente de imagens, acostumado que estava ao té-dio repetitivo da perfeita geometria urbana. Avenida deavelozes, com seu verde escuro tenebroso, desfilavam anossa passagem; seguida da observação preocupante: – sepegar nos olhos, cega! Pequenos açudes, resplandecentesde uma água prateada, onde lavadeiras esfregavam as rou-pas no dorso das rochas, davam-nos gana de “flechei-rarmos” em suas águas.3 Óbvio que nossos desejos eramreprimidos pelo pragmatismo adulto de se chegar ao desti-no na hora prevista.

As cidadezinhas eram-nos nomeadas à medida que ascruzávamos: São João do Cariri, Serra Branca, Santa Lu-zia dos Grudes, – dos Grudes?! Risos, a dissipar a serieda-de da viagem. Enfim, quando as energias infantis já se tor-navam sôfregas, o aviso reconfortante: – chegamos a Sumé.

3 O verbo “flecheirar”, um

neologismo criado na região,

quer dizer mergulhar de

cabeça na água.

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Sumé era o nome da cidadezinha onde realizávamos umaparada antes de se pegar uma estrada menor, da qual, per-corridos 12 quilômetros, chegaríamos à porteira principalda fazenda, local convenientemente denominado de “oDoze”. Pequeno pouso para abastecimento no posto debolão, como para se fazer algumas compras na merceariasoturna e pouco movimentada de Pedro Odon, velho amigoda família. – Ah! Que notável diferença dos supermerca-dos da capital, ao qual acompanhava minha mãe nas fei-ras de sábado –.

Refeitas as energias, na real constatação do início denossas aventuras selvagens, retornamos a estrada, confun-dida agora com a rua principal da cidade; pois a antiga eoriginária, desaguando na igreja e na praça do coreto, comsuas pequenas casas e cadeiras na calçada, havia perdidosua importância com a construção da estrada nova. Aosair da cidade, tomávamos a esquerda uma estrada secun-dária que interliga os municípios de Sumé e do Congo.Adentrava-se, nesta, o território do bravio. Se antes a rela-ção com a natureza dava-se principalmente intermediadapelo olhar, agora ela fazia-se mais física, num contato qua-se direto, tornando o último trecho do périplo um verda-deiro desafio para nossos pequenos corpos, os quais enca-ravam o mundo como um gigante, visto sempre de baixopara cima. A vegetação adensava-se, invadindo o arreme-do de estrada, que, devido às chuvas– era julho –, era car-comida pelos buracos e catabis. Ah! Quase esqueci, nossavariant branca 73 havia sido, apesar de seu temperamen-to arrojado, substituída por uma valorosa perua rural, úni-co veículo que, pelo seu vigor físico, seria capaz de superaros fantásticos obstáculos impostos pelos deuses daquelaregião. E o maior deles, sem dúvida, eram os riachões, pe-quenos afluentes do lendário rio Paraíba, que, se comple-tamente vazios durante a estação seca, só reconhecidospelo seu areal branco e fino, assumiam proporções assus-tadoras na medida em que desabavam as chuvas. O tre-cho seco transformava-se num riacho caudaloso, de forçae velocidade invencíveis. Eram quatro os riachos a serem

superados; e o maior deles era conhecido como riacho dosEspinhões. Numa ocasião, quando tentávamos sobrepujá-lo sob uma tempestade noturna, a perua rural rendeu-seàs suas águas perversas e tivemos que sair às pressas pelatraseira do veículo, sendo carregados até a margem. Nestanoite, nos albergamos numa pequena propriedade próxi-ma, a fazenda firmeza, onde fomos recebidos por um velhosenhor de modos afetuosos e sorriso simpático, e, logo de-pois de secos e de ter comido pamonhas, dormimos à luzdos candeeiros. No dia seguinte, passada a tempestade, osespinhões se apresentavam em seu esplendor tormentoso:águas barrentas, de um marrom-terra, cruzavam a estreitaestrada com feroz velocidade. Neste dia só pudemosatravessá-lo num Jeep Willys – tração quatro rodas, quefez várias viagens levando as pessoas de um lado a outrode seu leito.

Chegando-se, enfim, a entrada da fazenda, o carroera retido pela porteira principal. Descíamos serelepes paracompor nossa função de abridores de porteiras. Estas, nor-malmente, possuíam um sistema de trancamento feito demadeira que após puxado com esforço destravava-se, bas-tando-se assim empurrá-la para que pudéssemos, ao passoque se abria, pegarmos carona num de seus degraus. En-tão, o carro lentamente adentrava a fazenda e a porteiraera encostada e devidamente trancada. Era realmente sin-gular a alegria que este simples processo nos provocava.Até chegarmos a casa-sede da fazenda enfrentávamos maisquatro porteiras, que existiam para dividir áreas de pasto,e em todas elas conservávamos a mesma vitalidade no fa-zer manual de um ato inédito às nossas mesquinhas ativi-dades rotineiras.

Penetramos assim no nosso território tão ansiado. Logoao lado da cerca de arame farpado demarcadora das terrasda fazenda, encontrava-se a primeira “casa de morador”.Não recordo seu nome, o do pai da família; crianças lam-buzadas de barro vêm nos fazer festa: – gente estranha dacidade que chega. Algumas têm a barriga inchada “módos verme”. A fazenda é grande. Percorrem-se uns três

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quilômetros por um caminho esburacado até se chegar nacasa-sede. A propriedade é grande, uns dois mil hectares.Como é julho, a Caatinga está verde, de um verde florido.Aqui e ali vemos a vegetação rasteira salpicada de florzi-nhas silvestres. Contrariamente ao nome, a Caatinga exalaum perfume agradável, sutil, o ar invadindo nossos pulmõescom seu odor benfazejo. Sente-se logo o cheiro de bostade boi, por incrível que pareça um cheiro bom. O Caatin-gueiro fechado marca todo caminho; separado por pastosde capim-elefante. A jurema, que dá nome à fazenda, comseus espinhos cortantes de fundos arranhões, é predomi-nante; assim como o inofensivo mameleiro, de folhas gros-sas – de grande serventia quando se vai obrar no mato –.Aproximamos-nos da casa de Zé Galo, uma espécie de sededa parte norte da fazenda. No passado, ele fora acusado,talvez com razão, de ter matado dois cabras por causa deuma rixa de terras. É estranho, pessoalmente Zé Galo erarisonho e simpático conosco, e dado a brincadeiras.

São fabulosas as nominações atribuídas aos lugares,assim como as alcunhas pelas quais as pessoas desta re-gião são conhecidas: Pitôco, Lavanca, João Vermelho – por-que era inteiramente vermelho –, Mané Borracha, Mané

Azul – o Pescador –, Ná, Pena; nomes inusitados, de umacriatividade peculiar, imprimiam-nos um encantamentosonoro que nos marcava mais que as próprias pessoas oulugares aos quais se referiam. Alguns desses “filhos da ter-ra” carregavam histórias que exacerbavam ainda mais suasimpressionantes figuras. João Vermelho, por exemplo, erainteiramente tomado pela diabete, de longe se podia sen-tir o odor de sua urina, atraindo pelo rastro deixado naterra uma legião de formigas saúvas. Tinha se casado emtempos imemoriais com Minervina, uma negra forte a qualchamávamos zombeteiramente de Minerva. Já Pitôco eraum ex-cabo da polícia; alcoólatra inveterado, fora trazi-do pelo meu avô para permanecer isolado na fazenda, an-tes que a cachaça, que já tinha levado sua alma, levassede vez sua vida. Era proibido de ir a feira da cidade nassegundas-feiras. Quando, por fuga, isto ocorria, era en-

contrado jogado na rua, desgraçado de bêbado. Todavia,na fazenda aparentava uma passividade tranqüila, sendovisto sempre só, a realizar pequenas tarefas domésticas,plantando fruteiras, pescando; tentando esquecer-se.Havia também os vaqueiros, homens guerreiros, com seusgibões e calças de coro. Embrenhavam-se cedo no Caatin-gueiro fechado, atrás de reses perdidas, retornando, mui-tas vezes, só no dia seguinte. Quem conhece a Caatingasabe da dificuldade de se abrir caminho por entre os espi-nhos dilacerantes das juremas e dos mandacarus. Imagi-ne-se, por vez, montar a galope solto, sem caminho oupercurso certo, atrás de bois desgovernados. Via-se nosrostos destes bravos sertanejos as cicatrizes fundas deixa-das por seu ofício.

Passada a casa de Zé Galo, após uma longa subida àdireita, avista-se uma linda paisagem, uma longa superfí-cie platinada expressando reflexos cristalinos de lumino-sidade do fim de tarde: são as águas do grande açude daJurema. Da beira da estradinha já podemos ver os marre-cos a nadar em suas margens. Passamos pelo balde4 e pelosangradouro de cimento. Quando o tempo é de muita chu-va, o açude sangra por sobre um paredão de cimento –formando um véu de água, tal qual uma cachoeira –. Pos-tando-se em baixo, ao pé do sangradouro, podíamos to-mar banho, recebendo uma pesada carga d’água. Depois,acompanhávamos o correr das águas por uma descida depedras até dois poços situados na vazante do açude; o pri-meiro e maior dos dois era circulado por um chão liso feitode rocha natural e sombreado por pés de algarobas. Erauma grande festa, pois além de se mergulhar no poço, po-dia-se, sentado na sombra, pescar piabas vindas do açudegrande. Aqueles que dominavam a difícil técnica arvora-vam-se em jogar a tarrafa, chegando mesmo a pegar traí-ras grandes. Quando o sangramento parava, escalávamosas pedras de volta ao paredão donde, “flecheirando” naágua doce, dávamos intensas nadadas até o meio do açu-de, para voltar rapidamente com medo dos peixes grandesou de cobras d’água.

4 O balde do açude é uma

estrutura alta de areia e barro

que serve para conter e limitar

suas águas.

382 Revista Brasileira de Literatura Comparada, n.12, 2008 A escritura da memória como fundamento identitário do eu 383

Passado o açude entramos na longa reta final, que,findando na última porteira, dava acesso à querida casada fazenda.

A Casa

A casa era térrea e retangular. Devia medir uns trintametros de frente por dez de fundo. Era toda avarandadapor um terraço largo onde se penduravam inúmeras redes.E este era cercado por um tipo de flor violeta que lhe im-primia um típico perfume agreste. Largadas as malas e cum-primentada a velha Sá Rosa, nascida ainda nos tempos daescravidão, mãe de 18 filhos e com toda uma descendên-cia espalhada pela região, partíamos logo para as corridase brincadeiras em volta do terraço. A casa fora construídade modo que seu lado maior e frontal como que abraçassequem chegava à porteira de entrada, a qual distava uns 50metros da casa. Seu lado menor, à direita, limitava-se comuma outra construção onde estava instalada a cozinha,com seu forno de carvão, e uma espécie de sala de esperacomposta de bancos de madeira sem pregos. Contígua aesta se achava, o que chamaríamos de sala de jantar, umaúnica e enorme mesa – com espaço para 20 pessoas, poisfamiliares e trabalhadores comiam juntos sentados em doiscompridos bancos –, onde, na cabeceira, estabelecia-se opatriarca, o avô. Duas mulheres de moradores – emprega-das na casa – ficavam durante toda a refeição a espantar oenxame de moscas que tentava pousar na comida, alémde deixarem uma bacia de espuma de sabão num cantocomo armadilha para as mesmas. O interior da casa eracomposto por três quartos de casais, para os pais; duas sa-las espaçosas, nas quais todos se reuniam à noite, depoisda janta, para se assistir televisão – o problema é que aimagem em preto e branco era péssima e só aparecia a seubel prazer, em intervalos nada regulares; era melhor desis-tir, acostumados que estávamos com a boa imagem da TVda cidade, entretanto, os moradores, em pé, encostados auma janela grande que dava para o terraço, insistiam,

extasiados, em ver os flashes da programação noturna con-cedidos pelo aparelho antigo. Um quarto grande e largo,composto por quatro beliches era onde dormiam as “crian-ças”. Existiam três janelas que se abriam para um terrenocercado por algarobeiras e mangueiras onde se improvisa-va um campo de futebol. Mais ali, um pouco para a es-querda, avistava-se o cata-vento,5 para o qual nos dirigía-mos nos fins de tarde a fim de tomar o terrível banhogelado, pois o único banheiro da casa, por conta da arrai-gada falta d’água, era de uso exclusivo dos adultos. Porém,antes do banho nos refestelávamos colhendo e comendoas inúmeras frutas existentes no sítio em volta do cata-vento: goiabas, laranjas-cravo, mangas, pinhas, corações-da-índia, azeitonas pretas, e a mais típica das frutas da re-gião: o umbu. O umbuzeiro é uma árvore alta, galhenta,que dá um sombreado fechado, só se alcançando o frutocom o auxílio de uma vara, com a qual, cutucando-o, se oderruba no chão. É uma fruta verde, do tamanho de umasirigüela, com um gosto doce-azedo, mas delicioso em suapeculiaridade; se verde, solta um ácido que deixa os den-tes, como se diz, “travados”; com uma bacia de umbus épossível se fazer a tradicional umbuzada: fervida no leite.

O teto da casa não tinha forro, assim não havia o iso-lamento sonoro encontrado nos prédios modernos. Os ruí-dos e as conversas podiam ser ouvidos em qualquer partedela. As falas de alcova, portanto, tinham que ser sussur-radas ao pé do ouvido. Se quisesse ser escutado por todosbastava-se elevar a voz. O boa-noite era dado coletiva-mente. Dormíamos olhando para o interior do telhadodevassado, vendo as traves de madeira, e acordávamos comas frestas de luz que passavam por entre as telhas quebra-das. Estas eram nosso maior terror. Ali, morcegos escon-diam-se de dia, para, à noite, voar livremente pela casa –lembrávamos das amedrontadoras histórias dos moradoresacerca dos morcegos-vampiros, ou das cobras que caíamdo telhado em cima das pobres criancinhas. Os móveiseram todos antigos, da época da construção da casa. Nasparedes, retratos de antepassados desejosos de vida, po-

5 O cata-vento, como o

próprio nome indica, tem a

função de captar a energia

eólica e assim movimentar

uma engrenagem de sucção da

água vinda de um poço

artesiano.

384 Revista Brasileira de Literatura Comparada, n.12, 2008 A escritura da memória como fundamento identitário do eu 385

rém presos ao limite da moldura oval: rostos estranhos,desconhecidos, atentavam-me a curiosidade para conhe-cer suas histórias, que, afinal, era a minha própria.

Nossos dias apresentavam uma rotina quase ritualís-tica. Éramos acordados as 05:00h da matina, por uma sirenenos intimando a ir ao curral tomar leite de vaca tirado nahora; pegávamos um copo de alumínio, colocávamos trêsdedos de açúcar e íamos correndo para o curral, a uns du-zentos metros da casa. Lá, nos compenetrávamos vendo ovaqueiro, sentado num tamborete – o bezerrinho amarra-do e babando aos pés da mãe –, fazer jorrar com movi-mentos precisos da mão o leite original, do qual, variandode gosto de acordo com a vaca, sempre bebíamos dois outrês copos grandes. Ouvíamos concentrados os comentá-rios sobre as reses: o touro holandês que quebrava umacerca, e entrava a brigar com o dócil touro zebu, apelida-do de ”violino”; a febre aftosa que havia atacado duas va-cas; e observávamos largamente os movimentos instinti-vos do rebanho no rebuliço do curral. Um fato sempre meprovocava indignação: não se sabe o motivo, uma das va-cas recusava a maternidade do bezerrinho, negando-lhe oleite. Este, coitado, atônito, insistia em suas tetas, mas eramisteriosamente rejeitado. Uma anomalia da natureza? Vaisaber. De volta a casa, por volta das 07:00h, esperávamoso café reclinando-nos nas cadeiras de balanço, a contem-plar o sereno da manhã, sentindo os raios mornos do solreconfortar-nos do derradeiro frio noturno – pois, comono deserto, se de dia o calor era forte, à noite a temperatu-ra despencava e tínhamos de dormir com cobertores. Mes-mo de estômagos já cheios de leite, comíamos o indefectívelcuscuz com leite acompanhado de algumas bolachas re-cheadas com manteiga de garrafa; raramente comia-se pão.Com o sol a subir, era hora de uma reunião de cúpula a fimde se decidir a programação matinal. A decisão, peremp-tória, sempre ficava a cargo dos adultos. A escolha feliz-mente corroborava nossas expectativas: vamos tomar ba-nho de açude! gritávamos em feliz algazarra. Restava saberem qual deles, pois eram quatro os açudes, e cada um re-

servava um projeto aventureiro específico, já que possuíamuma singularidade extraordinária, a começar pelos dife-rentes trajetos geográficos que percorríamos para alcançá-los. Assim, vejamos: tínhamos o mais tradicional, o já re-ferido açude velho da jurema; era também o mais próximo,após uma caminhada de meia hora chegávamos ao seulargo e acolhedor paredão. Só no trecho final encontráva-mos dificuldades, tinha-se que se superar um riacho equi-librando-se num caminho de pedras que servia como ponte.O que não consistia num risco mortal, pois se nos dese-quilibrávamos o dano maior era ficar-se sujo de lama até ojoelho. O segundo açude não se definia como tal, era co-nhecido simplesmente como a barragem. Sendo o maisrecente, possuía um ar moderno, com requintes tecno-lógicos em sua engenharia. Também tinha um paredão,mas de enorme risco, visto que um de seus lados limitavaum fatal precipício de vinte metros. Seu maior atrativo,no entanto, estava neste fundo, pois foram construídas duasgrandes torneiras que, abertas, provocavam uma pesadaqueda d’água. Existia uma escada de marinheiro por ondedescíamos e, segurando-nos para não sermos levados pelaforça da água, recebíamos aquela pesada carga sobre nos-sos corpos. O terceiro era o que eu mais gostava, fora do-tado de um nome feminino composto por um diminutivo,o açude da cachoeirinha, o qual representava perfeitamentesua índole. Perpassava nele uma suave mansidão na passi-vidade de suas águas paradas. Seu nome provinha do fatode que quando sangrava, seguia por um declive de rochasformando uma pequena cachoeira. Esta desaguava numvale premiado por coqueiros, melancias e pés de cana-de-açúcar. Sugávamos o mel da cana e a água encarnada dasmelancias, enquanto um ágil morador subia nos coqueirosarremessando-nos lá de cima os cocos mais verdes. Con-cluíamos a nossa festa de líquidos sabores, entornando naboca a água dos cocos a nos sujar com seu mel nossa carae nossos corpos. Sem problema, logo depois “marcávamoscarreira’, atirando-nos impetuosos na água gelada do açu-de. Por ser o mais longínquo, a ida a cachoeirinha tinha de

386 Revista Brasileira de Literatura Comparada, n.12, 2008 A escritura da memória como fundamento identitário do eu 387

ser planejada com antecedência. Aguardávamos ansiososa confirmação do passeio. Uma vez lá, a fabulosa paisagemcomungava com nossos espíritos, nutrindo-os com o jorrode sua sensorialidade brilhante e benéfica. O último, e omaior deles, era o famigerado açude do capa. Ainda hojenão encontro explicação para o nome. Só sei que ele nosinfundia um certo temor, e uma estranheza. Muito rara-mente íamos nele, pois de difícil acesso e não muito dadoa receptividades infantis. Em sua grandeza, era um territó-rio para os maiores. Mané Azul, o pescador, todos os diasantes do amanhecer o navegava em seu pequeno bote,resgatando sua rede coalhada de curimatãs, pacus e traí-ras. Tinha tamanha capacidade de guardar a água que sóchegou a sangrar uma vez, na histórica chuva de 67, quan-do seu paredão estourou causando um desastre nas diver-sas plantações que irrigava.

Após as aventuras da manhã, ao meio-dia em ponto,estávamos todos preparados para o almoço. Era uma lautarefeição: iniciava-se com um prato servido unicamente defeijão, cobria-se este com farinha e amassava-se a misturaaté se formar uma pasta grossa. O feijão era servido comouma introdução, uma entrada, após ele é que começavarealmente o almoço. Não havia salada, as carnes predo-minavam: a tradicional carne de sol com macaxeira, car-ne de bode, de carneiro, guisado de galinha, peixes de açu-de; o arroz geralmente substituído por macarrão, e poucotempero. Não havia geladeira, os animais eram mortos pelamanhã e destripados diante de todos, no terreiro grandeem frente da cozinha. Durante o almoço, comentários so-bre a fazenda, discussões políticas e alguns “causos” engra-çados. Por fim, o cafezinho, um leve descanso na varandapara se tomar uma fresca, e a retirada geral para os quar-tos: era o momento da sesta. Até as quatro horas quandoo sol relaxava, não se saía de casa; aperreados com as mos-cas, partíamos para o lanche: um grosso pedaço de queijode coalho com uma talagada de goiabada cascão; novasbrincadeiras, ou um banho de açude com o sol a se porsobre o sertão majestoso. No jantar, logo após o tempo

escurecer, um prato de coalhada com açúcar, o xerémamassado, e um pouco de arroz com paçoca. Às nove, de-pois de alguma conversa e um jogo de sueca no alpendre,os olhos quase a fechar espontaneamente, nos entregáva-mos ao sono dos Deuses.

Bem a história é demasiada longa, e como não há umdesfecho espetacular vamos ficando por aqui, não semantes esquecermos da resposta de Pitôco quando pergun-tado onde ficava aquela região: – É lá, no meio do mundo.

Referências

BERGSON, Henry. Matéria e memória. São Paulo: Martins Fontes,

1999.

MERLEAU-PONTY, Maurice. Fenomenologia da percepção. São

Paulo: Martins Fontes, 1994.

389

Tennessee Williams’ Camino Real andAugust Strindberg’s The Dream Play:

expressionism in the Theatre

Denise Campos e Silva Kuhn*

ABSTRACT: The Swedish playwright August Strindberg, in The

Dream Play, and the American Tennessee Williams, in Camino

Real, presented metaphysical questionings and used expressio-

nistic techniques to convey their meanings. Strindberg lived in

a pemanent search for the meaning of life, and in this pursuit

he created theories and a new artistic technique: he was the

father of expressionism. The Dream Play is considered the first

expressionistic drama. In Camino Real, Tennessee Williams used

expressionistic techniques, and the play is similar to Strindberg’s

The Dream Play in various aspects. This paper presents a com-

parative analysis of the plays, considering expressionitic tech-

niques and views on mankind.

KEYWORDS: Theatre, expressionism, expressionistic play, com-

parative literature.

RESUMO: O dramaturgo sueco August Strindberg, em The Dream

Play, e o americano Tennessee Williams, em Camino Real, apre-

sentaram questionamentos metafísicos e usaram técnicas expres-

sionistas para transmitir suas idéias. Strindberg vivia em perma-

nente busca pelo sentido da existência, e nessa procura, elaborou

teorias e uma nova técnica artística: foi o criador do expressionis-

mo. The Dream Play é considerada a primeira peça expressionista.

Em Camino Real, Tennessee Williams usou técnicas expressio-

nistas, e a peça é similar a The Dream Play sob vários aspectos.

Este artigo apresenta uma análise comparativa das peças, consi-

derando técnicas expressionistas bem como visão de mundo.

PALAVRAS-CHAVE: Teatro, expressionismo, peça expressionista,

literatura comparada.

August Strindberg (1849-1912) is considered one of

the most revolutionary playwrights, not only of Sweden,

* Professora doutora titular

da Universidade de Ribeirão

Preto (Unaerp) – Ribeirão

Preto (SP).

390 Revista Brasileira de Literatura Comparada, n.12, 2008 Tennessee Williams’ Camino Real and August Strindberg’s... 391

his own country, but of the universal theatre. Each work

was a starting point to him: he experimented with several

types of plays and aesthetic styles in his quest for the most

suitable way of conveying his ideas, and there was hardly

a field of human thought to which he did not give some

attention. He lived in a permanent search for the mea-

ning of life, and in this pursuit he created very interesting

theories and a new technique: he was the father of Ex-

pressionism. The Dream Play is considered the first expres-

sionistic drama.

The American dramatist Tennessee Williams (1911-

1983) was certainly indebted to his Swedish colleague: in

his Camino Real he used expressionistic techniques, and

the play is similar to Strindberg’s The Dream Play in vari-

ous and important aspects. The very title of Williams’s play

indicates that he was influenced by Strindberg, because

among the Swedish plawright’s expressionistic plays there

is one called Stora landsvägen, which was translated into

Spanish as Camino Real. This was Strindberg’s last play.

Williams’s Camino Real and Strindberg’s The Dream

Play were written under completely different circum-

stances. The Dream Play is the result of an entire life of

experiments: it is the creative outburst of a genius’s mind,

near the end of his career. Strindberg already had some of

the answers which he had pusued during all his life when

he wrote this play. Camino Real is one of Tennessee

Williams’s first works. He wrote it in Mexico, while seri-

ously ill and alone: Williams said (1960) that it was writ-

ten to fight despair, and that it served as a spiritual purga-

tion of confusion and lost sense of reality.

Nevertheless, the two plays have sufficient similari-

ties to make a comparative analysis of them worthwhile.

Expressionistic techniques

Expressionism represents an effort to portray what lies

underneath the surface meaning. Its purpose is to show

our inner selves – representational projections of mental

realities – as well as our external reality, because certainly

our inner part is a truer “reality” than the outer one. In

expressionistic plays the dramatist tries to find a means to

expose the minds of people – according to Wright (1972),

unlike the realistic theatre, expressionism attempts to sug-

gest far more of life than it portrays.

Martin Esslin (2001) affirms that it is a significant fact

that the development of the psychological subjectivism that

manifested itself in Strindberg’s expressionistic dream plays

was the direct development of the movement that had led

to naturalism. It is the desire to represent reality, all of rea-

lity, that leads to the ruthlessly truthful description of sur-

faces, and then, one realizes that objective reality, surfaces,

are only part, and a relatively unimportant part, of the real

world. In Strindberg’s dream plays, the shift from the ob-

jective reality of the world of outside, surface appearance

to the subjective reality of inner states of consciousness – a

shift that marks a passage from the traditional to the mo-

dern – is finally and triumphantly accomplished.

Strindberg says in the introductory note to The Dream

Play:

In this dream play, as in his former dream play To Dam-

ascus, the author has sought to reproduce the disconnected

but apparently logical form of a dream. Anything can hap-

pen; everything is possible and probable. Time and space

do not exist. On a slight groundwork of reality, imagina-

tion spins and weaves new patterns made up of memories,

experiences, unfettered fancies, absurdities, and improvi-

sations. The characters are split, double, and multiply; they

evaporate, crystallize, scatter, and converge. But a single

consciousness holds sway over them all – that of the

dreamer. For him there are no secrets, no incongruities, no

scruples and no law... (apud Esslin, 2001, p.352-3)

In the Production Notes to his play The Glass Me-

nagerie, Tennessee Williams (1981, p.229) gives us his

explanation about the purpose of using unconventional

techniques:

392 Revista Brasileira de Literatura Comparada, n.12, 2008 Tennessee Williams’ Camino Real and August Strindberg’s... 393

Expressionism and all other unconventional tech-

niques in drama have only one valid aim, and that is a

closer approach to truth. (...)The straight realistic play with

its genuine frigidaire and authentic ice-cubes, its charac-

ters that speak exactly as its audience speaks, corresponds

to the academic landscape and has the same virtue of a

photographic likeness. Everyone should know nowadays

the unimportance of the photographic in art: that truth,

life, or reality is an organic thing which the poetic imagi-

nation can represent or suggest, in essence, only through

transformation, through changing into other forms than

those which were merely present in appearance.

Williams (1981) further explained that when a play

employs unconventional techniques, it is not trying to es-

cape its responsibility of dealing with reality, or interpre-

ting experience, but is actually attempting to find a closer

approach, a more penetrating and vivid expression of things

as they are.

In The Dream Play and Camino Real the playwrights

used expressionistic techniques to expose their views on

human society. Both were pessimistic, as the image of hell

dominates their plays.

The two plays share their most stricking feature: they

have the fluid form of a dream. Time and space do not

exist or are not specified, and anything may happen. Both

works contain a great number of symbols and, as in a dream,

some characters have allegoric names.

In his search for the meaning of existence, Strindberg,

who had been a materialistic sceptic, became a believing

mystic. The Dream Play belongs to this later phase of his

life. And as he had always believed in the vital significance

of dreams, in The Dream Play this conviction became a

new and wonderful dramatic technique, through which he

could expose his mystic theories about life on earth.

Tennessee Williams was so ill when he wrote Camino

Real that he thought he was going to die. Perhaps this feel-

ing made him reflect profoundly about our condition, and

he utilized Strindberg’s technique to convey his feelings to

the audience because expressionism is very suitable to ex-

press feelings. Williams (1966) explained that he intended

in Camino Real to give an idea of something wild and unre-

stricted that ran like water in the mountains, or the con-

tinually dissolving and transforming images of a dream.

Using expressionistic techniques, both playwrights

were able to speak more personally and with a greater de-

gree of self-revelation than they could have done in a “well-

made” (realistic) play.

The two plays discard straight story lines. Before the

Prologue of The Dream Play there is a little note called “A

Reminder”, in which Strindberg (1913) explains this play

as an effort to imitate the form of a dream. The dreamer is

mentioned in this note, and his dream unfolds before us;

but we do not see his physical body – only his subconscious

is presented to the audience. In the beginning of Camino

Real, D. Quixote (one of the several legendary characters

that appear in the play) says that he is going to sleep and

dream; and he specifies that his dream will be a pageant.

When he wakes up (at the end of the play), another char-

acter makes the following remark: “It would be in bad form

if I didn’t take some final part in the pageant” (Williams,

1966, p.226). Throughout the play, the audience sees D.

Quixote sleeping against a wall on the stage. So we can

interpret the whole play as being a dream of D. Quixote’s.

As there is no plot in either play, the dramatists used

devices to hold the scenes together. Williams divided his

play into sixteen “blocks” on the Camino Real – as the

characters go through this road their lives are spent. In

doing this, Williams mixed the concepts of time and space.

There is also a character who is present in all “blocks” –

Mr. Gutman – and he announces the beginning of each

“block”. This is enough to link the scenes: a frail connec-

tion in accordance with the mood of the play. In The Dream

Play, the link is the Daughter of Indra. In the Prologue,

Strindberg (1913) lets us know that she, as the daughter

of a god, has descended to Earth to see whether human

complaints are justifiable. The Daughter is present in al-

394 Revista Brasileira de Literatura Comparada, n.12, 2008 Tennessee Williams’ Camino Real and August Strindberg’s... 395

most all the scenes, and exclaims the refrain “Men are to

be pitied” at intervals, thus helping to maintain the unity

of the play. There is a character in Camino Real with the

same role as the Daughter: Kilroy. This character is present

in eleven of the sixteen “blocks”; like the Daughter, he

“falls” into hell (the dramatist’s personal view of existence)

and has to endure several hardships.

In The Dream Play, the dreamer is presented as being

several characters. The first one is the Officer. He is im-

prisoned in a castle that grows towards the sun, having

stable litter scattered on the ground around it. According

to Brustein (1970), this castle is an image of life: the hu-

man spirit wants to ascend to the sky to free himself of his

dirty body. In this scene, the Daughter asks why flowers

grow out of the dirt, and obtains the answer: “Because

they do not feel at home in the dirt, and so they make

haste to get up into the light in order to blossom and die”

(Strindberg, 1913, p.29).

As the Officer is imprisoned in the castle, so are the

characters in Camino Real imprisoned in this unreal coun-

try. The idea of “no way out” is present throughout both

plays. What we see of the Camino Real is a square that

belongs to some tropical seaport. There is a luxury hotel

on the left side of the square called “Siete Mares”; oppo-

site this hotel is the poor side (the “Skid Row”) which

contains the “Gypsy’s Gaudy Stall”, the “Loan Shark’s es-

tablishment” and the “Ritz Men Only”. There are three

possible exits from this place: escape in an airplane named

“Fugitivo”, going out through the desert of the “Terra In-

cognita”, and death – in this case falling in the hands of

the sinister Streetcleaners.

Kilroy, a young American vagrant in his late twen-

ties, got off a ship that came from Rio and found himself

in the Camino Real. He does not know where he is, and

nobody answers his questions.

Both the Daughter and Kilroy make horrible trips:

along the way they see the worst side of human nature

and are themselves victims of it. In Camino Real, Gutman

(a symbol of repression, authoritative power, and whose

name may well mean “the man who has the guts” because

of the nasty acts he performs) obliges Kilroy (this name

sounds like “kill” and “royal” – death to the king?) to wear

the uniform of a patsy, thus humiliating him. The loss of

dignity of all men is concentrated in his character. In The

Dream Play, The Daughter of Indra witnesses the agony of

the Officer who waits for a bride that never comes, and

asks a portress to wear her shawl – the portress says that in

this shawl thirty years of agonies lie hidden, because she

listens to the complaints of people. “It is heavy, and it burns

like nettles” remarks the Daughter (Strindberg, 1913, p.40).

In this scene of The Dream Play there is a door that

has an air-hole shaped like a four-leaved clover. The solu-

tion to the enigma of existence is supposed to be behind

this door. Like the “Terra Incognita” in Camino Real, this

door is a mystery: nobody is able to open it, as well as

nobody knows what happens to the people who escape

through the “Terra Incognita”.

Both Kilroy and the Daughter have frustrating roman-

tic experiences. The Daughter marries the Lawyer and suf-

fers terribly because they have different needs. She is im-

prisoned in their marriage because they have a son, and she

feels suffocated by the situation. This feeling is represented

in a metaphor: another character is pasting up all the cracks

on the walls and makes the Daughter exclaim: “Air, air – I

cannot breathe!” and “Oh, it feels as if my lips were being

glued together” (Strindberg, 1913, p.52). In Camino Real,

Kilroy is chosen by the Gypsy’s daughter to spend the night

with her, but they do not understand each other.

At the end of the plays both Kilroy and the Daughter

die. But the playwrights wanted to give some hope to the

audience before the curtain fell: Kilroy resurrects and es-

capes with D. Quixote through the “Terra Incognita”, while

a fountain that had been dry throughout the play begins to

flow and a couple of lovers become reconciled to each other.

The Daughter, before dying and going to where her father

is, gives a mystic explanation about the origin of our suffer-

396 Revista Brasileira de Literatura Comparada, n.12, 2008 Tennessee Williams’ Camino Real and August Strindberg’s... 397

ings, and promises that we will be recompensated for our

pains: “And in thy name their grievance shall be placed

before the throne. Farewell!” (Strindberg, 1913, p.104). The

Daughter, then, goes into the castle of the first scene. The

castle breaks into flames, while a bud on the roof opens

into a gigantic chrysanthemum flower. Strindberg seems to

mean that dying, we will achieve peace and happiness.

Williams (1966, p.227) also uses the image of a flower

to convey an optimistic feeling at the end of Camino Real:

D. Quixote, noticing that the couple of lovers are recon-

ciled to each other, exclaims: “The violets in the moun-

tains have broken the rocks!”. Love is the solution to our

problems, according to this dramatist.

The Dream Play, as well as Camino Real, is a quest play.

The characters strive to answer the basic questions: “Who

am I?” and “What am I doing here?”. In both plays, each

character represents an aspect of human personality; by

putting their separate quests together we realize what our

needs are. The playwrights exaggerate and distort the hu-

man characteristic portrayed in each character: the gro-

tesque is often present when the dramatist uses expres-

sionistic techniques. This is done to emphasize the meaning

that is to be conveyed to the audience.

Kilroy and the Daughter represent the common man

and what he has to suffer and endure in life. There are

other characters in The Dream Play who have a correspon-

dent in Camino Real: Gutman, who represents the mon-

etary power in Camino Real, is similar to the blind man in

The Dream Play. Both lack sensibility and a more real sense.

Byron in Williams’s play, and the poet in Strindberg’s, share

the need of hard experiences for their spiritual develop-

ment, and share their idealism, too. Byron says: “The luxu-

ries of this place have made me soft. The metal point’s

gone from my pen, there’s nothing left but the feather”

(Williams, 1966, p.178). In Strindberg’s (1913, p.61) play

a character says, about the poet: “he is roaming about the

higher regions so much that he gets homesick for the mud;

and wallowing in the mire makes the skin callous like that

of a pig. Then he cannot feel the stings of the wasps”. Both

Jacques Casanova in Williams’s play and D. Juan in Strind-

berg’s are in love with faithless women, what is unexpected

and makes us think of how weak and fool mankind really

is. Williams’s La Madrecita and Strindberg’s Mother rep-

resent, obviously, maternal love.

The characters in The Dream Play are not called by

proper names: their profession or their position in a family

is mostly what names them. This is an expressionistic devi-

ce similar to the existence of legendary characters in Camino

Real – that is, characters are not full human personalities,

but archetypes of certain basic attitudes and qualities.

Brustein (1970) affirms that the lack of an answer to

the enigma of existence is the cause of a series of contrasts

and paradoxes that are presented in The Dream Play and

in Camino Real. In Strindberg’s play we have the Body

versus the Spirit, Fairhaven (a place similar to Paradise)

versus Foulstrand (a picture of Hell), Winter versus Sum-

mer, North versus South, Beauty versus Ugliness, Happi-

ness versus Unhappiness, Love versus Hate. In Camino

Real, there is the Royal Way versus the Real Road; the

rich side of the square versus the poor one; paradoxes such

as Kilroy, who had been a box champion, dressed in the

uniform of a patsy; Jacques Casanova, the eternal lover,

crowned “The King of Cuckolds”; and the Gypsy’s daugh-

ter, who sleeps with a man whenever a “fiesta” is needed

to distract the people from the injustices they suffer, is sup-

posed to be a virgin each time.

Tennessee Williams used a device which was not imag-

ined by Strindberg. He makes the audience take part in

his play: the actors frequently speak directly to the specta-

tors and sometimes go through the aisles of the theatre.

As Williams is exposing the narrator’s subconscious mind,

a dream of his, he may have wanted a greater proximity

with the spectator.

The setting of the two plays is expressionistic. Both

Williams and Strindberg use, with great creativity, lights,

music, visual symbols and other effects to convey exactly

398 Revista Brasileira de Literatura Comparada, n.12, 2008 Tennessee Williams’ Camino Real and August Strindberg’s... 399

the mood of a scene; they also exaggerate or distort the

lines of the scenery to express the mental or emotional

distortion of the characters. Two good examples of these

devices are the following: in Camino Real, Marguerite

Gautier fails to escape in the “Fugitivo”. As it is taking off,

her figure is caught in the dazzling glacial light of the fol-

low-spot. It blinds her. She makes violent, crazed gestures,

clinging to the railing of the steps; her breath is loud and

hoarse as a dying person’s [...] There is a prolonged, gradu-

ally fading, rocketlike roar as the “Fugitivo” takes off. Shrill

cries of joy from departing passengers; something radiant

passes above the stage and streams of confetti and tinsel

fall into the plaza. (Williams, 1966, p.189)

All this gives the impression of a terrible nightmare.

In The Dream Play, the setting for “Foulstrand” is

hills stripped of their trees by fire, and red heather growing

between the blackened tree stumps. Red-painted pig-sties

and outhouses. Beyond these, in the open, apparatus for

mechanical gymnastics, where sick persons are being treated

on machines resembling instruments of torture. To the left,

in the foreground, the quarantine station, consisting of open

sheds, with ovens, furnaces, and pipe coils. (Strindberg,

1913, p.58)

This is the place where the rich are, and it is as hor-

rible as their moral imperfections.

Both dramatists managed to create dream-like plays:

according to Lewis (1962), as in a dream, moments of rec-

ognizable objectivity vanish, converge, disappear; the

scenes are short, rapidly shifting, with little regard for fixed

positions; intensity is not on psychological depth but on

images in motion.

Views on mankind

Concerning the dramatists’ views on human society

and the fate of mankind, both plays express their author’s

subjective views.

The lack of an answer for the enigma of existence is

their central point. But while in The Dream Play Strindberg

explores this theme further and tries to express his per-

sonal views on all the important aspects of society, Will-

iams restricted the meaning of his play. He said:

Camino Real is merely a picture of the state of the ro-

mantic nonconformist in modern society. It stresses honor

and man’s own sense of inner dignity which the Bohemian

must reachieve after each period of degradation he is bound

to run into. The romantic should have the spirit of anar-

chy and not let the world drag him down to its level...

(Williams, 1966, p.5)

This “romantic nonconformist” is usually an outcast,

and all outcasts are treated with extreme sympathy by

Williams. Strindberg also dedicates an immense love to

mankind: he has declared it through the characters of The

Great Highway and it can be felt in The Dream Play.

The solution Camino Real offers may be achieved in

this life – while the final message of The Dream Play is that

only after death we can be peaceful and happy. Strindberg

gives a mystical treatment to his subject; William’s ap-

proach is more realistic and practical.

In both plays the rich and the powerful are severely

criticized, and are presented as responsible for the main

flaws of society. In Camino Real, Gutman, who represents

this class, orders the killing of a man and does not even

give an explanation of why he has done this. He tries to

destroy whatever is decent in Camino Real. Gutman wants

to forbid the use of the word “hermano”: this symbolizes

the dominating classes’ desire to extinguish solidarity

among people. Gutman states that ideals and feelings (spe-

cifically love) are harmful: acting like this he tries to bru-

talize the people of Camino Real.

In The Dream Play, there is also a strong criticism of

the rich. Some of them are in “Foulstrand” (a horrible place

already mentioned). One has eaten so much “paté de foie

gras” and truffles that his feet have grown knotted. An-

400 Revista Brasileira de Literatura Comparada, n.12, 2008 Tennessee Williams’ Camino Real and August Strindberg’s... 401

other one has drunk too much brandy: his backbone has

to be put through a mangle. These physical deformations

stand for their moral ones.

The rich and repression are inseparable in Camino Real

(as they are symbolized in one person) and in The Dream

Play: the scene of the coalheavers demonstrates this. The

coalheavers’ expressions show intense despair: they are suf-

fering a heat of one hundred and twenty degrees Fahren-

heit and cannot have a bath in the sea, because the police

would not let them. Neither can they pick any fruit off the

trees, because the police would get after them. One of the

coalheavers, then, says to the Daughter: “We, who work

hardest, get least food; and the rich, who do nothing, get

most. Might one not – without disregard of truth – assert

that this is injustice?” (Strindberg, 1913, p.78). The Daugh-

ter cannot answer this question; the coalheavers tell her

that “those who are well off” think that everything is all

right as it is.

This is a strong enough social criticism; but Strindberg

goes further. The Lawyer tells the Daughter that all im-

provers end in prison or in the madhouse – sent to the

first by the “right-minded” and “respectable”, and to the

second by their own despair when they realize the hope-

lessness of their efforts. The Lawyer himself has suffered

the consequences of trying to help people: his degree of

Doctor of Laws is not conferred on him because, in the

Daughter’s words, he “defended the poor, put in a good

word for the wrong-doing, made the burden easier for the

guilty, obtained a respite for the condemned” (Strindberg,

1913, p.48). There is here the same criticism made by

Williams when Gutman forbids the word “hermano”: soli-

darity is feared by the dominating classes.

But not only solidarity is feared: people’s thinking is

also a dangerous thing for the class that has the power, for

obvious reasons. Both playwrights expressed this idea: in

Camino Real Jacques Casanova tells Kilroy: “The exchange

of serious questions and ideas, especially between persons

from opposite sides of the plaza, is regarded unfavourably

here” (Williams, 1966, p.158). In The Dream Play, a po-

liceman forbids the opening of the door behind which the

solution for the enigma of existence is – what is meaning-

ful enough – and a character exclaims: “Oh, Lord! What

a fuss there is as soon as anybody wants to do anything

new or great” (Strindberg, 1913, p.44).

Man’s loss of dignity is represented several times in

Camino Real. We see, for example, Kilroy dressed as a patsy,

and the Streetcleaners: not even dying, man achieves a

little dignity, because his corpse is pulled away like gar-

bage by laughing streetcleaners.

Obviously in a world where solidarity, thinking and

dignity are not encouraged, a serious inversion of values

occurs. The Daughter says that the world is upside down,

and in the other play, the Gyspsy tells Kilroy: “The Camino

Real is a funny paper read backwards!” (Williams, 1966,

p.202). D. Quixote (Camino Real) says that Truth, Valor,

and Devoir mean nothing nowadays; the Daughter (The

Dream Play) says that Justice, Friendship, Golden Peace,

and Hope, are sunken ships.

But Strindberg attacks more aspects of human socie-

ty: the Daughter declares that Theology, Philosophy, Medi-

cine and Jurisprudence do not understand each other: one

says the other is nonsense, and that is making man insane.

Marriage is also bitterly criticized in The Dream Play. It is

described as a life of common suffering, in which one’s plea-

sure is the other one’s pain. Life is a series of repetitions

that annul all efforts in the direction of progress, change or

development. Several aspects of human personality are criti-

cally shown: envy is seen as a highly destructive feeling

that is present in the minds of all men. Logic is seen as silly,

the world is seen as silly. Men’s short memory is criticized,

as well as the way old people are treated.

All this justifies the Daughter’s refrain: “Men are to

be pitied!” as well as Kilroy’s remark: “I pity the world

[...]” (Williams, 1966, p.211).

Although earth is considered a transitory place by the

two dramatists, the solution for man’s problems suggested

402 Revista Brasileira de Literatura Comparada, n.12, 2008 Tennessee Williams’ Camino Real and August Strindberg’s... 403

is each play is not the same. William’s final message is that

solidarity is what is needed to improve life’s conditions. If

it existed, people would not try to take advantage of oth-

ers, and nobody would suffer. On “Block Ten”, the charac-

ter Marguerite Gautier compares love to violets, and says

that the violets cannot break the rocks. Jacques Casanova

replies that “The violets in the mountains can break the

rocks if you believe in them and allow them to grow!”

(Williams, 1966, p.192). Though at this time Marguerite

does not believe him, in the last scene of the play she of-

fers him her love and asks for his, what makes D. Quixote

exclaim: “The violets in the mountains have broken the

rocks!” Gutman says: “The Curtain Line has been spo-

ken! Bring it down!” (Williams, 1966, p.227). So, there

seems to be no doubt about Williams final message. D.

Quixote and Kilroy go through the arch of “Terra Incog-

nita”, and thus escape from Camino Real. Clearly, Will-

iams intends triumph for the “romantic nonconformist”

that these two characters represent.

Strindberg’s “dreamer” shows an ambiguous attitude

towards romantic feelings.When the Daughter marries the

Lawyer, she believes that loving each other, they will be

able to face all difficulties – what proves to be wrong. In

another scene, the immense love that unites a young couple

does not help them escape their fate: to be thrown into a

stove. The Poet, on the other hand, believes in the power

of love: he declares that “love overcomes all, even sul-

phur fumes and carbolic acid” (Strindberg, 1913, p.65).

Although there is nothing behind the door that was

supposed to hide the enigma of existence, in Strindberg’s

play there is a mystical explanation (through the Daugh-

ter) of how man’s sufferings began. It is based on images of

Buddhistic and Indian philosophies: Brahma, the “divine

primal force”, was seduced by Maya, the “world-mother”.

The result was Earth – and as it is the consequence of the

meeting of the divine primal matter with the earth-mat-

ter, it is composed of physical and spiritual elements, sa-

cred and profane things, men and women. In order to free

themselves from the earth-matter, the offspring of Brahma

seek privation and suffering (the idea of suffering as a

liberator has been expressed earlier in the play). But this

craving for suffering comes into conflict with the craving

for love – and sex. So man is the victim of a conflict be-

tween his body and his spirit (his spirit wants to ascend to

the sky, but his body is imprisoned in Earth because of

lust). This is the origin of man’s sufferings, and also of all

the other contradictions that transform man’s existence

into hell.

In the end of The Dream Play, the Daughter dies in

the flames of the castle, while a bud on its roof opens into

a gigantic chrysanthemum flower. According to Brustein

(1970), this means that through death man can achieve

peace and happiness; because then, the spirit is free from

the needs of the body.

August Strindberg and Tennessee Williams share, in

spite of the distance in time and space that separates them,

a great love for mankind, a deep anguish because of man’s

sufferings and lack of meaning in life, and a desire to ex-

press their feelings through an unconventional dramatic

form which was coherent with their ideas and permitted a

more personal approach.

The plays prove that both dramatists reached their

goals: they convey both their love and their anguish

through the use of expressionistic techniques. Strindberg

and Williams viewed the world as an illogical disorder,

so not only the subject-matter of the plays, but their form

also, being dream-like, conveys this feeling. Ultimately,

they try to find explanations and solutions for the world’s

paradoxes.

Being both great plays, The Dream Play is reacher in

meaning than Camino Real. Strindberg analyses more

aspects of human society and shows the results of deeper

thinking about man’s condition. This may be due to t

he fact that The Dream Play was written at the end of

Strindberg’s career, and thus reflects a whole life of search

for the final truth. But the impact of the powerful images

404 Revista Brasileira de Literatura Comparada, n.12, 2008 405

present in both plays is a lasting one. They give rise to

metaphysical questionings in the audience, what is a genui-

ne purpose of the theatrical arts.

As a last consideration, both plays possess universali-

ty of appeal. We seem to be very far from answering those

basic questions: “Who am I?” and “What is the meaning of

my life?”.

References

BRUSTEIN, Robert. De Ibsen a Genet: la rebelión en el teatro. Buenos

Aires: Troquel, 1970.

ESSLIN, Martin. The Theatre of the Absurd. 3.ed. New York: Vintage

Books, 2001.

LEWIS, Allan. The contemporary theatre. New York: Crown

Publishers, 1962.

STRINDBERG, August. The Dream Play. In: . Plays by August

Strindberg. New York: Charles Scribner’s Sons, 1913.

WILLIAMS, Tennessee. Camino Real. In: . Famous american

plays of the 1950’s. New York: Dell, 1966.

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WRIGHT, Edward A. Understanding today’s theatre. 2.ed. Englewood

Cliffs: Prentice Hall, 1972.

Pareceristas

Alberto Pucheu (UFRJ)

Ana Maria Domingues de Oliveira (Unesp)

Antonio Arnoni Prado (Unicamp)

Antonio Donizete Pires (Unesp)

Audemaro Taranto (PUC-MG)

Berta Waldman (USP)

Betina Bischof (USP)

Biagio D’Angelo (PUC-SP)

Carlos Alberto Baumgarten (UFRG)

Cilaine Alves Cunha (USP)

Dóris Nátia Cavallari (USP)

Eduardo Vieira Martins (USP)

Eric Sabinson (Unicamp)

Fabio Akcelrud Durão (Unicamp)

Fernando Segolin (PUC-SP)

Gilda Neves da Silva Bittencourt (UFRGS)

Glória Carneiro do Amaral (USP)

Guacira M. Machado Leite (Unesp)

Helder Garmes (USP)

Helio Seixas Guimarães (USP)

Ivete Valty (PUCMinas)

Ivone Daré Rabello (USP)

Jaime Guinsburg (USP)

406 Revista Brasileira de Literatura Comparada, n.12, 2008 407

Jefferson Cano (Unicamp)

Jorge Mattos Brito de Almeida (USP)

José Luis Jobim (UERJ)

Juliana Loyola (PUC-SP)

Laura Janina Hosiasson (USP)

Lúcia Granja (Unesp)

Luiz Gonzaga Marchezan (Unesp)

Luiz Roberto V. Cairo (Unesp)

Márcia Abreu (Unicamp)

Márcia Valéria. Zamboni Gobbi (Unesp)

Marcio Seligmann-Silva (Unicamp)

Marcos Antonio de Moraes (USP)

Marcos Pison Natali (USP)

Maria Aparecida Junqueira (PUC-SP)

Maria Betânia Amoroso (Unicamp)

Maria do Carmo Alves de Campos (UFRGS)

Maria Eunice Moreira (PUC-RGS)

Maria José Palo (PUC-SP)

Maria Lúcia O. Fernandez (Unesp)

Maria Rosa Duarte de Oliveira (PUC-SP)

Miriam Gárate (Unicamp)

Olga de Sá (PUC-SP)

Orna Messer Levin (Unicamp)

Pedro Brum Santos (UFSM)

Regina Zilberman (UFRGS)

Rita Terezinha Schmidt (UFRGS)

Salete de Almeida Cara (USP)

Silvia H. T. de Almeida Leite (Unesp)

Vagner Camilo (USP)

Yara Frateschi Vieira (Unicamp)

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– Título – centralizado, em maiúsculas e negrito (semgrifos).

– Nome(s) do(s) autor(es), à direita da página (semnegrito ou grifo), duas linhas abaixo do título, com

408 Revista Brasileira de Literatura Comparada, n.12, 2008 Normas da revista 409

maiúscula só para as letras iniciais. Usar asteriscopara nota de rodapé, indicando a instituição à qualestá vinculado(a). O nome da instituição deve es-tar por extenso, seguido da sigla.

– Resumo – a palavra Resumo em corpo 10, negrito,maiúsculas, duas linhas abaixo do nome do autor,seguida de dois pontos. O texto-resumo deverá serapresentado em corpo 10, com recuo de dois centí-metros de margem direita e esquerda. O resumo deveter no mínimo 3 linhas e no máximo 10;

– Palavras-chave – dar um espaço em branco após oresumo e alinhar com as mesmas margens. Corpode texto 10. A expressão palavras-chave deverá es-tar em negrito e maiúsculas, seguida de dois-pon-tos. Máximo: 5 palavras-chave.

– Abstract – mesmas observações sobre o Resumo.

– Keywords – mesmas observações sobre as palavras-chave.

– Texto – em Times New Roman, corpo 12. Espaça-mento simples entre linhas e parágrafos. Usar espa-çamento duplo entre o corpo do texto e subitens,ilustrações e tabelas, quando houver.

� Parágrafos: usar adentramento 1 (um).

� Subtítulos: sem adentramento, em negrito, só coma primeira letra em maiúscula, sem numeração.

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� Notas – devem aparecer ao pé da página, nume-radas de acordo com a ordem de aparecimento.Corpo 10.

� Ênfase ou destaque no corpo do texto – negrito.Palavras em língua estrangeira – itálico.

� Citações de até três linhas vêm entre aspas (semitálico), seguidas das seguintes informações entre

parênteses: sobrenome do autor (só a primeiraletra em maiúscula), ano de publicação e pá-gina(s). Com mais de 3 linhas, vêm com recuode 4 cm na margem esquerda, corpo menor (fon-te 11), sem aspas, sem itálico e também seguidasdo sobrenome do autor (só a primeira letra emmaiúscula), ano de publicação e página(s). Ascitações em língua estrangeira devem vir em itá-lico e traduzidas em nota de rodapé.

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� Referências: devem ser apenas aquelas relativasaos textos citados no trabalho. A palavra Refe-rências deve estar em negrito, sem adentramento,duas linhas antes da primeira entrada.

Alguns exemplos de citações

• Citação direta com três linhas ou menos

[...] conforme Octavio Paz (1982, p.37), “As fronteirasentre objeto e sujeito mostram-se particularmente indeci-sas. A palavra é o próprio homem. Somos feitos de pala-vras. Elas são nossa única realidade, ou pelo menos, o úni-co testemunho de nossa realidade.”

• Citação indireta

[...] entre as advertências de Haroldo de Campos (1992),não há qualquer reivindicação de possíveis influências oucontágio, ao contrário, foi antes a poesia concreta que as-sumiu as conseqüências.

410 Revista Brasileira de Literatura Comparada, n.12, 2008 Normas da revista 411

• Citação de vários autores

Sobre a questão, pode-se recorrer a vários poetas, teóricose críticos da literatura (Pound, 1977; Eliot, 1991; Valéry,1991; Borges, 1998; Campos, 1969).

• Citação de várias obras do mesmo autor

As construções metafóricas da linguagem; as indefinições;a presença da ironia e da sátira, evidenciando um con-fronto entre o sagrado e o profano; o enfoque das persona-gens em diálogo dúbio entre seus papéis principais e se-cundários são todos componentes de um caleidoscópio quepõe em destaque o valor estético da obra de Saramago(1980, 1988, 1991, 1992).

• Citação de citação e citação com mais de três linhas

Para servir de fundamento ao que se afirma, veja-se umtrecho do capítulo XV da Arte Poética de Freire (1759,p.87 apud Teixeira, 1999, p.148):

Vê, [...] o nosso entendimento que a fantasia apren-dera e formara em si muitas imagens de homens; quefaz? Ajunta-as e, de tantas imagens particulares querecolhera a apreensiva inferior [fantasia], tira ele eforma uma imagem que antes não havia, concebendoque todo o homem tem potência de rir [...]

Alguns exemplos de Referências

• Livro

FABRIS, A. Futurismo: uma poética da modernidade. SãoPaulo: Perspectiva/ Edusp, 1987.

• Capítulo de livro

PALO, M. J. A crônica da vida: Memorial de Aires, Ma-chado de Assis. In: OLIVEIRA, M. R. D. de. (Org.) Recortes

machadianos. São Paulo: Educ/ Fapesp, 2003. p.257-73.

• Dissertação e tese

MACHADO, M. V. P. Confluências entre João Cabral de Melo

Neto e Sophia de Mello Breyner Andersen: poesia das coisas eespaços. São Paulo, 2006. Dissertação (Mestrado) – Pro-grama de Estudos Pós-Graduados em Literatura e CríticaLiterária, Pontifícia Universidade Católica.

• Artigo de periódico

GOBBI, M. V. Z. Relações entre ficção e história: umabreve revisão teórica. Itinerários, Araraquara, n.22, p.37-57, 2004.

• Artigo de jornal

TEIXEIRA, I. Gramática do louvor. Folha de S.Paulo, SãoPaulo, 8 abr. 2000. Jornal de Resenhas, p.4.

• Trabalho publicado em anais

CARVALHAL, T. F. A intermediação da memória: OttoMaria Carpeaux. In: II CONGRESSO ABRALIC – Lite-ratura e Memória Cultural, 1990. Anais..., Belo Horizonte.p.85-95.

• Publicação on-line – Internet

MARTINHO, F. Depois do modernismo, o quê? O casoda poesia portuguesa. Rio de Janeiro: Revista Semear 4.Disponível em: <http://www.letras.puc-rio.br>. Acessoem: 22 jun. 2006.

OBSERVAÇÃO FINAL: A desconsideração das normasimplica a não-aceitação do trabalho. Os artigos recusadosnão serão devolvidos ao(s) autor(es).