Quatro, edição 2, de 2008

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Apenas 5% das crianças em abrigos são, de fato, órfãs, o resto delas está nesta situação por maus-tratos ou negligência por parte dos pais. Para estas crianças, a situação de abrigamento deveria ser apenas transitória, até a restituição na família ser autorizada pelo conselho tu- telar, ou serem adotadas. “Toda criança ou adolescente tem di- reito a ser criado e educado no seio da sua família e, excepcionalmente, em fa- mília substituta, assegurada a convivên- cia familiar e comunitária.” Este é o ar- tigo 19 da lei nº 8.069, de 13 de julho de 1990. Ainda hoje, 18 anos depois, ainda não há condições de respeitá-la. A vara da infância e da juventude de Florianópolis conta com apenas duas assistentes sociais, cada uma delas, no momento, acompanha em média 50 pro- cessos. Sobrecarregadas, dão preferên- cia para as crianças em situação de ris- co. É por este motivo que os processos de destituição familiar, que liberariam as crianças à adoção, ou reintegração à família, arrastam-se por meses, ou até mesmo anos, o que faz com que as crianças vivam por período indetermi- nado nas instituições. Os menores vão para a escola e a partir dos 16 anos são estimulados, além disso, a fazerem cursos profissio- nalizantes. Segundo Munique, psicólo- ga da Casa Lar Pai Herói. Incentivar os menores é essencial, pois é rara a ado- ção de crianças maiores de seis anos. Algumas destas permanecem nas insti- tuições até completarem 18, depois dis- so são obrigadas por lei a desligarem-se das instituições. As crianças têm teto, alimentação, recebem carinho, acesso a saúde e edu- cação. Mas perdem uma grande refe- rência para a formação: a convivência com a família. QUATRO Universidade Federal de Santa Catarina Curso de Jornalismo Jornal Laboratório da disciplina de REDAÇÃO IV Florianópolis, dezembro de 2008 DISTRIBUIÇÃO GRATUITA Supervisão: Jorge K. Ijuim Menores em situação de risco esperam definição de seus futuros INFÂNCIA: Das 80 mil crianças que vivem em abrigos no Brasil, 87% não estão disponíveis para adoção e a maioria não volta à sua família por já ter sofrido maus tratos pelos pais Páginas 10 e 11 >> Transporte Prostituição Contrastes Cemitérios Mulher Nosso controverso espetáculo diário Trabalho que rende debate e história Enquanto a mãe natureza se encarregou de separar as belezas naturais de Floria- nópolis em ilha e continente, a popula- ção criou padrões para os que moram “do outro lado da ponte”. Os morros e seus moradores também são alvos de discriminação, problema maquiado em meio à folia do carnaval. Cruzamos a ponte e subimos o morro. L á se vão os preconceitos. 6 a 8>> Com os cemitérios de Florianópolis lotados, famílias em luto possuem menos opções para enterrar seus parentes. Quem pode paga até R$ 8 mil por um terreno no cemitério par- ticular Jardim da Paz. A população de baixa renda conta com o auxílio da Prefeitura, que fornece caixão, velório e uma vaga por quatro anos nas gave- tas do São Francisco de Assis. 16>> Preconceito que cega e exclui Especulação cresce por falta de espaço Faz três anos que Roseli não liga para o marido e nove meses que Ana Paula não vê a mãe. Elas estão ilhadas no Presídio Feminino de Florianópolis assim como a adolescente grávida Suzi e mais 159 mulheres. Todas perderam a liberdade de ir e vir, mas suas expectativas e preo- cupações não se mantêm imóveis. Elas amam, riem e sofrem enquanto esperam o tempo passar. 21>> Muros e grades por todos os lados A prostituição narrada a partir do perfil de duas mulheres que trabalham na capital. Detalhes de suas histórias e da rotina que levam em casa e nos locais de trabalho, uma luxuosa casa de shows e uma whiske- ria no centro da cidade. Um outro olhar sobre essa profissão que, ainda não legali- zada no Brasil, gera polêmica, projetos de lei e divide opiniões entre a sociedade, legisladores e trabalhadoras da classe. 12>> Com quantos ônibus se atravessa Floria- nópolis? Nos cinco anos do Sistema Inte- grado de Transporte Coletivo, o Quatro visita os seis terminais da cidade, conhe- cendo mais de perto este personagem que, entre mocinho e vilão, participa do nosso cotidiano. Confira a viagem de seis horas, nove ônibus e 167 km do nosso repórter, assim como as propostas dos órgãos pú- blicos para a melhoria do sistema. 4>> Fernanda Espíndola

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Quatro, Jornalismo, UFSC, Journalism

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Apenas 5% das crianças em abrigos são, de fato, órfãs, o resto delas está nesta situação por maus-tratos ou negligência por parte dos pais. Para estas crianças, a situação de abrigamento deveria ser apenas transitória, até a restituição na família ser autorizada pelo conselho tu-telar, ou serem adotadas.

“Toda criança ou adolescente tem di-

reito a ser criado e educado no seio da sua família e, excepcionalmente, em fa-mília substituta, assegurada a convivên-cia familiar e comunitária.” Este é o ar-tigo 19 da lei nº 8.069, de 13 de julho de 1990. Ainda hoje, 18 anos depois, ainda não há condições de respeitá-la.

A vara da infância e da juventude de Florianópolis conta com apenas duas

assistentes sociais, cada uma delas, no momento, acompanha em média 50 pro-cessos. Sobrecarregadas, dão preferên-cia para as crianças em situação de ris-co. É por este motivo que os processos de destituição familiar, que liberariam as crianças à adoção, ou reintegração à família, arrastam-se por meses, ou até mesmo anos, o que faz com que as

crianças vivam por período indetermi-nado nas instituições.

Os menores vão para a escola e a partir dos 16 anos são estimulados, além disso, a fazerem cursos profissio-nalizantes. Segundo Munique, psicólo-ga da Casa Lar Pai Herói. Incentivar os menores é essencial, pois é rara a ado-ção de crianças maiores de seis anos.

Algumas destas permanecem nas insti-tuições até completarem 18, depois dis-so são obrigadas por lei a desligarem-se das instituições.

As crianças têm teto, alimentação, recebem carinho, acesso a saúde e edu-cação. Mas perdem uma grande refe-rência para a formação: a convivência com a família.

QUATROUniversidade Federal de Santa Catarina

Curso de JornalismoJornal Laboratório da disciplina de REDAÇÃO IV

Florianópolis, dezembro de 2008 DISTRIBUIÇÃO GRATUITA

Supervisão: Jorge K. Ijuim

Menores em situação de risco esperam definição de seus futuros

INFÂNCIA: Das 80 mil crianças que vivem em abrigos no Brasil, 87% não estão disponíveis para adoção e a maioria não volta à sua família por já ter sofrido maus tratos pelos pais

Páginas 10 e 11 >>

Transporte Prostituição Contrastes Cemitérios Mulher

Nosso controverso espetáculo diário

Trabalho que rende debate e história

Enquanto a mãe natureza se encarregou de separar as belezas naturais de Floria-nópolis em ilha e continente, a popula-ção criou padrões para os que moram “do outro lado da ponte”. Os morros e seus moradores também são alvos de discriminação, problema maquiado em meio à folia do carnaval. Cruzamos a ponte e subimos o morro. L á se vão os preconceitos.

6 a 8>>

Com os cemitérios de Florianópolis lotados, famílias em luto possuem menos opções para enterrar seus parentes. Quem pode paga até R$ 8 mil por um terreno no cemitério par-ticular Jardim da Paz. A população de baixa renda conta com o auxílio da Prefeitura, que fornece caixão, velório e uma vaga por quatro anos nas gave-tas do São Francisco de Assis.

16>>

Preconceito que cega e exclui

Especulação crescepor falta de espaço

Faz três anos que Roseli não liga para o marido e nove meses que Ana Paula não vê a mãe. Elas estão ilhadas no Presídio Feminino de Florianópolis assim como a adolescente grávida Suzi e mais 159 mulheres. Todas perderam a liberdade de ir e vir, mas suas expectativas e preo-cupações não se mantêm imóveis. Elas amam, riem e sofrem enquanto esperam o tempo passar.

21>>

Muros e grades por todos os lados

A prostituição narrada a partir do perfil de duas mulheres que trabalham na capital. Detalhes de suas histórias e da rotina que levam em casa e nos locais de trabalho, uma luxuosa casa de shows e uma whiske-ria no centro da cidade. Um outro olhar sobre essa profissão que, ainda não legali-zada no Brasil, gera polêmica, projetos de lei e divide opiniões entre a sociedade, legisladores e trabalhadoras da classe.

12>>

Com quantos ônibus se atravessa Floria-nópolis? Nos cinco anos do Sistema Inte-grado de Transporte Coletivo, o Quatro visita os seis terminais da cidade, conhe-cendo mais de perto este personagem que, entre mocinho e vilão, participa do nosso cotidiano. Confira a viagem de seis horas, nove ônibus e 167 km do nosso repórter, assim como as propostas dos órgãos pú-blicos para a melhoria do sistema.

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Fernanda Espíndola

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2 QUATRO Florianópolis, dezembro de 2008

Mais gente. Mais pes-soas. Mais seres humanos. O Quatro nasceu dessa premis-sa, relembrada a cada

reunião de pauta desta edição. A busca de um jornalismo mais humanizado, sem preconceitos e com responsabilidade guiou a produção do jornal. Nos dedica-mos a romper as fronteiras do jornalismo objetivo e dono de uma única verdade.

Temos consciência de que o tratamen-to que damos às matérias pode mudar as concepções de mundo, noções do senso-comum, visões de cultura. Ou consolidá-las. E aqui nos preocupamos não apenas em mostar a versão mais próxima do real, mas também a versão mais palpável e compreensível dos fatos. Para isso, o sis-tema de ônibus de Florianópolis vira uma peça teatral; uma crônica-reportagem, cenas de filme e a realidade de um pre-

sídio feminino é descrita com antíteses e figuras de linguagem.

Mais que um bom texto, nossos esfor-ços focaram-se em eleger bons temas e fazer boas apurações. Reconhecemos que se despir do “pré-conceito” não é tarefa fácil. Falar sobre tabus como pros-tituição, morte, ou mesmo classes so-ciais requer muita maturidade pesso-al e jornalística, as quais fomos incen-tivados a desenvol-ver nesse desafio de fazer um jornal-laboratório.

É claro que não chegamos lá ainda. Sabemos que temos muito a aprender. É possível e prová-vel que muitos de nossos textos ainda

carreguem uma visão preconceituosa e talvez até provinciana. Que na escolha de palavras cometamos algum deslize. Ainda assim, é reconfortante perceber o quanto melhoramos como repórteres e pessoas durante essa caminhada na busca da humanização do jornalismo e de nós mesmos. Sempre com incentivo de nosso sensei - o mestre japa - Jorge Kanehide Ijuim.

Incentivados também por nossa von-tade de escrever mais. Produzir matérias mais longas, mais textos autorais, mais

reportagens, com mais profundida-de. Não queremos ser os “especialis-tas-em-nada”. Não queremos apenas produzir cápsulas de informação. Quere-mos contextualizar, entender os aconte-cimentos não como fatos isolados, mas encadeados em uma

conjuntura social.Queremos nos inserir no cenário de

reportagens que narram e não apenas

descrevem ou simplesmente noticiam. Queremos ser contadores de histórias. Queremos fazer simbiose entre o jorna-lismo e a arte.

Não temos a pretensão de que os lei-tores vejam o mundo com nossos olhos. Só queremos despertar algum sentimen-to. Estamos conscientes das diversas in-

terpretações que um texto pode ter. São essas as possibilidades que nós procu-ramos. Queremos fugir das versões ide-alizadas da dicotomia do bem e do mal. Viver é mais complexo que isso. O jorna-lismo também deveria ser.

OPINIÃO & DEBATEEditorial

Manifesto da redação porjornalismo mais humano

Da redação UFSC alagada

Comemos barrigaJorge Kanehide Ijuim

“Comer barriga” no jornalis-mo significa perder a opor-tunidade de

cobrir um fato relevante. Nesse sentido, temos que admitir que o Quatro comeu barriga ao não trazer nessa edição qual-quer matéria sobre a tragédia que asso-lou o Estado no final de novembro.

Mas foi algo consciente. O jornal estava em fase de fechamento quando as fortes chuvas estavam caindo (no ge-rúndio, mesmo!).

Somos um jornal laboratório, de 4ª fase de um curso de Jornalismo. Como tal, àquela altura não tínhamos mais tempo hábil, infra-estrutura, mobilidade e agilida-de para deslocar uma equipe e realizar um trabalho minimamen-te satisfatório. Se essa não é uma boa justi-ficativa, ao menos expõe nossa decisão, baseada na consciên-cia de nossas limita-ções.

E, apesar dessas limitações enquanto jornal laboratório, a equipe do Quatro é solidária à população catarinense e – in-dividualmente e a sua maneira – está fazendo tudo que pode para minimizar o desconforto dos seres humanos atin-gidos por essa catástrofe.

***Mesmo “comendo barriga”, vale aqui

fazer alguns comentários sobre certos movimentos ligados ao fato principal. Os governos, em suas várias esferas, corresponderam com certa rapidez às si-nalizações da calamidade. Mobilizaram gente e recursos para o atendimento das vítimas. A instituição imprensa também respondeu ao socorro do Vale do Ita-jaí. Empresas jornalísticas deslocaram equipes para a cobertura – repórteres especiais, correspondentes, até âncoras. Alguns fizeram o que se pode conside-rar um bom trabalho. Outros nem tan-to. Vale refletir se a mobilização desses

órgãos de imprensa (e seus jornalistas) teve por motivação a solidariedade às dores universais, ou simplesmente por-que “tragédias são sempre notícia”.

A discussão sobre o que chamamos de “valores-notícia” é pertinente porque as abordagens de alguns jornais e seus jornalistas denunciam a falta de uma perspectiva humanista. Pelas imagens de TV ou pelas fotos de jornais – e até capa de revistas – houve quem privile-giou a máxima: “- Quanto mais gente chorando, melhor!”. Nesses casos, o apelo às dores do outro, beirou ao sen-

sacional. A falta de compreensão do quanto é com-plexa a questão dos fenômenos – físicos e sociais – levou alguns jornais e jornalis-tas a adotarem a postura de “profe-ta do acontecido”, apresentando ver-sões simplistas e reducionistas. Tal postura trouxe a público matérias com o discurso:

“todos sabiam do que poderia aconte-cer, mas ninguém fez nada”.

Cabe à imprensa investigar, criticar, elucidar. Mais que apontar a irresponsa-bilidade deste ou daquele, é fundamen-tal ter como ponto de partida a com-preensão de que tragédias como a que vivenciamos é conseqüência da ação minha, sua, de todos. Portanto, talvez a culpa não seja só da “autoridade” que descumpriu seu dever de antever, nem tampouco do “irresponsável e turrão” que construiu sua morada em área de risco. A responsabilidade é de todos os filhos desta “Terra-Pátria”.

Estas linhas não são críticas à im-prensa, mas autocrítica, pois também sou jornalista. Como tal, tenho que aprender com erros e acertos, para po-der compartilhar as experiências com meus alunos – jornalistas em formação. É meu dever mais que ensinar técnicas, suscitar o debate sobre a profissão e so-bre as ações humanas.

Santa Catarina ainda não estava na primeira página dos jor-nais do Brasil quando esta foto foi tirada, em 13 de novem-bro, mas Florianópolis já estava cercada de água. Após dias seguidos de chuva forte, eis que aparece o sol. E andava tão sumido que era possível ver outros fotógrafos perambulando pela universidade para registrar o fim da chuvarada daquele dia. Teve até arco-íris.

Sobre o fotógrafo:Felipe Machado cursa o quinto semestre

de Jornalismo na UFSC. Mais do trabalho dele em www.flickr.com/felipemachado ou

escreva para [email protected]

4Expediente

Reportagem, edição e diagramação: Andressa Dreher, Angieli Maros, Bibiana Beck, Camila Chiodi, Cecília Cussioli, Felipe Machado, Fernanda Espíndola, Flávia Schiochet, Gabriel Esteves, Gabriel Luís Rosa, Gabriela Bazzo, Gabriela Cabral, Gustavo Naspolini, Isis Martins, Jessé Torres, Jéssica Camargo, José Monteiro Jr, Júlio Ettore, Larissa Cabral, Letícia Arcoverde, Luísa Konescki, Marcelo Andreguetti, Marina Rocha, Mayara Schmidt Vieira, Michel Siqueira, Paulo Rocha, Pedro Dellagnelo, Rogério Moreira, Sarah Westphal, Sofia Franco.

Projeto gráfico: Flávia SchiochetMarcelo Andreguetti

Colaboração: Clóvis Geyer, Matheus Nolli, Manuela Soares, Samuel Casal

Supervisão: Jorge Kanehide Ijuim

Impressão: Imprensa Universitária - UFSC

Tiragem: 1500 exemplares

Ano 1 Número 2dezembro 2008

Jornal da Disciplina de Redação IV

Curso de Jornalismo

Universidade Federal de Santa Catarina

TrindadeFlorianópolis - SC

O apelo às dores do outro beirou ao sensacional. Alguns adotaram a postura do “profeta do acontecido”

Queremos contar histórias. Romperas fronteiras daobjetividade e daverdade única

Equipe de Redação

Florianópolis foi o cenário para a apuração dos 30 repórteres do Quatro

Felip

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Felip

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Page 3: Quatro, edição 2, de 2008

�QUATROFlorianópolis, dezembro de 2008 ESPAÇO GONZO

E sse camarote é meu!- Isso é um cama-

rote?- Eu sou aniversa-

riante e meu pai pa-gou esse camarote pra mim!

- E qual é seu nome?- Gabriela Bo...Não que eu não queira identificar

a menina, mas ela estava tão bêbada que não conseguiu falar o próprio sobrenome.

- Como? Não entendi seu nome.- Saaaaaai do meu sofá que eu

quero deitar! – grita histérica a me-nina com um agudo mais irritante que Mariah Carey.

Eu levanto. Ela desaba no sofá. Sua calcinha é branca. Mas ela pa-rece ter vindo pronta para mostrá-la, com sua cinta liga aparecendo com a meia branca, logo após o vestidi-nho xadrez que só cobre a bunda. Bunda? Ela é tão nova que ainda não desenvolveu bunda nem peitos. Nem juízo.

Mas estou aqui a trabalho... Cadê a Bia? Por isso a música estava tão diferente. Onde que ela se meteu? Já foi um parto chegar aqui. Tenho que conseguir essa entrevista de qual-quer jeito.

Prefácio- Você está bem longe.

- Ah é? Mas é pra lá ou pra lá? Eu me perdi nas ladeiras.

Sim, eu estava perdida no centro de Floripa, às onze da noite de um sábado chuvoso. A chuva já não é mais novidade depois de 12 finais de semana sem sol.

Chego à boate onde vou encon-trar a minha entrevistada: Bia Wen-dhausen, DJ aos sábado e hostess nas quintas. Combinei com ela por um depoimento no site de relacio-namentos Orkut. “Adorarei fazer a entrevista”. Essa foi a resposta, se-guida de MSN e telefone.

- Tem nome na lista?- Tenho. Andressa. Está na lista

VIP. Eu falei com a Bia.- Não. A Bia não me passou nada.

Está na “lista amiga”.Muy amiga, pensei. Vim até aqui

sozinha nesse sábado à noite só pra entrevistar a mulher. E ainda ter que pagar quinze reais por uma festa com estilo musical da qual não sou fã?

É possível ouvir a música que toca lá dentro. É boa. É uma mulher cantando em português numa levada mixada estilo Vanessa da Mata.

- É a Bia que tá tocando? Tudo bem, vou entrar do mesmo jeito.

O hall é pequeno e a moça que cobra as comandas no caixa parece entediada. Sigo o som da música escada acima. O bar é grande. Na verdade é pequeno. Mas comparado à pista, parece gigante. Dedos tocam ritmicamente os botões da mesa de som ao lado do telão onde passam clips de música black. Não condiz com as baladinhas que a loira está tocando.

O ambiente é luxuosamente de-corado: além do estêncil dourado nas paredes, dois sofás gigantescos de couro e cortinas de veludo no janelão. Tudo vermelho. Na fren-te do janelão – quase uma parede

transparente – está um grupo de adoles-centes. Parecem ter 16 anos. Eles tiram fotos, fazem poses, dão beijos na boca. Meninas e meninos. Mas o que chama mais a atenção são seus berrinhos e risi-nhos de hiena. Prin-cipalmente quando chega mais uma be-bida colorida. Fico perto de uma colu-na, para observar Bia, a DJ que vim entrevistar. Ao meu lado há uma mesa, e nela uma morena. Meus pés estão me matando.

- Posso sentar?- Claro, eu ia mes-

mo te convidar. Es-tou esperando uma amiga que está no banheiro. Que coi-sa horrível aquilo ali, menina! Mulher com mulher até vai, agora homem com homem não dá, né? – a morena aponta os adolescentes no canto da boate.

- Aqui tem sempre essa pirralhada?

- Não sei. É a se-gunda vez que venho aqui. Hoje é noite “Candy”. É pro público feminino mesmo. Só vem a mulherada. Mas começa a encher só à meia-noite.A morena é mui-to risonha. E cla-ro, simpática por me agregar à sua mesa.

- Ai, menina. A gente tá bebendo champagne desde o almoço.

Sai uma loira da porta do banheiro. Ela parece estar em uma passarela, pé ante pé até a mesa. Mas ela não é tão simpática quanto a morena. Lembra minha an-tiga chefe. Senta, cumprimenta. Não sorri. Fala mal do lugar, do almoço, do marido, de si mesma. Tudo com um sotaque estranhíssimo de que-ro-ser-carioca-chique-dos-anos-90. Bréeega. A cidade, as boates, as pes-soas. Tudo pra ela é Bréega. Não um “brega” qualquer. Um “brega” com um “B” fortemente pronunciado, que sai acompanhando um movi-mento discreto de cima para baixo com a cabeça e com o abrir e fechar dos olhos.

Daqui eu não consigo mais ver Bia. Há uma divisória entre esse ambiente com mesas e sofás e a pis-ta. Mas adoro o repertório. Sixpence None the Richer, Amy Winehouse, Blondie.

Aline, a garota da porta e amiga da Bia, da morena e da loira, apre-

senta um cara que é prontamente agregado à mesa pela morena. Ele cumprimenta todas e me olha com dúvida:

- Você é...?- Andressa. - Mas você não é gay não, né?- Hmm, não. Porquê?- É porque hoje é noite das mu-

lheres. A Aline é. Ela tenta me con-vencer de que sou também, enquan-to eu tento convencer ela de que é hetero como eu. Mas você já pegou menina, né?

- É, mais ou menos.- Todo mundo já beijou uma ami-

ga e todo cara já co-meu um colega de es-cola. – brada a morena com voz rouca em tom escrachado.

- Que horror! – fico escandalizada ao ima-ginar criancinhas da pré-escola fazendo sexo. Mas acho que não era a esses cole-gas de escola que ela se referia.

- Todo mundo já ex-perimentou. Vai dizer que não? – continua a morena – Mas os ho-mens ficam com ver-gonha de admitir.

- Eu nunca experi-mentei coisa nenhuma – se antecipa o agre-gado.

Ouve-se Britney Spears e gritinhos ain-da mais irritantes de adolescentes deban-dando para a pista.

Enquanto a loira atende o marido no celular, a morena e o agregado conversam ao pé do ouvido. A loi-ra avisa que o marido está vindo.

- Sério que vocês duas transam? Mas porque você trai seu marido? Falta alguma coisa na relação?

- Falta muita coisa na relação!

- Nada! É porque aqui o sexo é bom mesmo! – reponde a morena com sua voz rouca.

Todos riem.- Que tipo de ba-

ladas tu freqüenta? Pergunta-me a loira.

- Eu prefiro bar-zinho, tipo o Blues. Em balada, eu vou mais na Devassa. En-graçado, acabo fre-qüentando as baladas ditas “alternativas”,

mesmo sendo hetero.- Pois eu prefiro que

não venham. Os hete-rossexuais comentam.

Eles vêm só pra fi-car olhando, repa-rando pra depois comentar. Em São Paulo não é assim.

Lá ninguém fica fa-lando da tua vida. Aqui

eu tenho que ir em puteiro. E mesmo assim tem que ser dos bons. Teve um onde o dono me falou “seu marido tem nome na cidade. Você não tem medo de ficar falada?” Eu faço o que eu quero! – diz indigna-da a loira – Não são eles que pagam minhas contas. Aliás não sou eu também. Não tô trabalhando.

- Passa a tarde toda vendo TV com a empregada – debocha a mo-rena.

- Sim. Assistindo Márcia Golds-chimdt com a faxineira. Uma gorda desse tamanho. Vamos ali no sofá?

- Acho que tá reservado pros pir-ralhos – fala o agregado.

- Como se ela se importasse – re-truca a morena que já está atrás da loira, em direção ao “camarote”.

PosfácioReencontro os três na pista lotada, depois de ser enxotada do sofá e de uma entrevistada que parecia um tú-mulo.

- Você já tomou bala? – pergunta o agregado.

- Não.- E doce?- Nunca.- Vamos tomar? Um amigo meu tá

trazendo. É 35 o doce.A morena tenta me convencer,

mas não há jeito. Duas doses de Smirnoff já me deixaram aérea, imagine coisa mais forte. E com ninguém em quem confio por perto pra me salvar se eu precisar?

- Uma vez tomei nove balas em uma balada só. – ri freneticamente o agregado junto com a morena. Os dois parecem ter bebido muito na minha ausência.

- Que risada é essa? – pergunta a morena – tu é viado sim!

- Não sou não. Já falei que gosto de mulher.

Só agora percebo que a loira está com um homem mais velho, ao nos-so lado, perto do bar. Deve ser o marido. Continuo dançando. Chega a bala. Morena e agregado vão para o banheiro. O marido da loira segue os dois com um olhar indecifrável. Quando voltam ela pára ao meu lado, bate quadril com quadril, en-laça minha cintura e dispara para o agregado:

- Adoro mulher grande!- Já começou a pegar a bala? –

pergunta o agregado para a morena, enquanto a loira me fuzila com os olhos e o marido sorri.

- Ele sabe? – pergunto à morena.- É claro que sabe. Ele só quer

ficar olhando.- Já volto.O banheiro está lotado. Entra um

guri - deve ter entre 17 e 18 anos –, maquiado, junto com uma amiga

- Ai, eu vou aqui. Eles não me querem no outro mesmo. Afinal, eu sou menina.

Lembrei de uma professora da faculdade, antropóloga, falando so-bre gêneros: “Quando vão acabar com essa palhaçada de banheiro masculino e feminino? Até parece que as pessoas não sabem se com-portar”.

Volto para a pista para me despe-dir dos amigos desta noite. São duas da manhã.

- Tchau menina, vou indo – falo para a morena.

- Não! Fica com a gente. A gente te leva.

- Não posso. Meu pé está me ma-tando – essa desculpa sempre fun-ciona.

- Então me passa teu telefone.Eu passo, ela anota. Eu peço o

perfil do Orkut dela, ela me passa. Digo tchau pra loira, pro marido.

Na saída, passo pelo sofá onde a garota continua desmaiada. Ela per-deu a própria festa de aniversário.

Andressa Dreher

A noite é de sexo, algemas e cinta-ligaOu, do sábado em que uma repórter em busca de uma entrevista caiu de pára-quedas em uma noite Candy

Manu

ela S

oare

s

Page 4: Quatro, edição 2, de 2008

4 QUATRO Florianópolis, dezembro de 2008

(Des)integração há cinco anosQuatro vai de ônibus do sul ao norte de Florianópolis para sentir as virtudes e limites do transporte urbano

uinze para as seis da ma-nhã. A cortina da noite ainda está fechada no Trevo do Erasmo, que dá acesso aos bairros do

Morro das Pedras e do Ribeirão da Ilha. Lentamente, alguns faróis co-meçam a aparecer no horizonte, rompendo a escuridão. São os pri-meiros ônibus que saem do Terminal do Rio Tavares em direção aos bair-ros do Sul da ilha para depois retor-narem cheios de passageiros. Agora, porém, eles estão vazios, e cami-nham silenciosamente como atores indo ocupar seus lugares no palco.

Seis minutos depois, o ônibus Caieira da Barra do Sul passa pelo tal trevo. Dentro dele estão apenas o cobrador (sentado num banco dos passageiros, dormindo) e o motoris-ta. Faço sinal para que o motorista pare e subo no veículo. O cobrador até abre os olhos quando passo o cartão na catraca, como se surpreso por alguém estar ali a esta hora da manhã. Mas logo volta a dormir.

O Caieira da Barra do Sul é uma das linhas mais longas do Sul da Ilha, cobrindo aproximadamente 26km – 21 deles na Rodovia Bal-dicero Filomeno, via que cruza os bairros do Ribeirão da Ilha, Fregue-sia, Caiacanga-Açu e a Caieira da Barra do Sul, por fim. No final da rodovia ainda há um caminho para a praia dos Naufragados – uma co-munidade pesqueira. É próximo do início desta trilha que fica o ponto final da linha, aonde o ônibus chega às 6h28, ainda antes do sol nascer por completo. Ali o veículo aguarda desligado, ao som de pássaros e do mar batendo nas rochas até as 6h30. Já é hora de voltar às estradas.

A viagem de volta é mais anima-da. Os primeiros passageiros são mulheres que entram dizendo “bom dia” ao motorista. Depois crianças com mochila nas costas e homens começam a entrar, e o veículo, que era um ator silencioso passa a ser um pequeno palco cheio de ruídos, enquanto o motorista dirige a peça e o cobrador (já acordado) recepciona os astros do cotidiano.

Seu nome é Michel Ferreira. Ele trabalha há seis anos como cobrador, mas prefere andar de carro ou moto quando não está em serviço. “É mais confortável, não depende de horá-rios. É melhor, principalmente nos finais de semana”, comenta. E esta não é a única reclamação dele, natu-ral de Florianópolis. Michel também acha que o sistema viário precisa ser melhorado antes do transporte pú-blico, e dá uma razão para isto. No dia anterior, ele ficou uma hora na fila para chegar até o Terminal Inte-grado do Rio Tavares.

Às 7h20, enfrentando pouca fila, o Caieira da Barra do Sul chega no Tirio, um dos seis terminais urbanos da cidade. Estes edifícios são recen-tes, e foram inaugurados junto com o sistema Integrado de Transporte de Floranópolis, em 2003. Eram nove terminais no início, entretanto três (dois no continente e um no Saco

dos Limões) foram desativados. Os que ainda funcionam são os da La-goa da Conceição (Tilag), Trindade (Titri), Canasvieiras (Tican), Santo Antônio de Lisboa (Tisan) e do Cen-tro (Ticen). A não ser o Ticen, todos os outros servem seus respectivos bairros e levam as pessoas ao cen-tro. Dentro deles, é possível tomar outra linha sem pagar nada a mais. Este é a principal vantagem atribuí-da ao sistema integrado – ir para vá-rios lugares pagando uma única pas-sagem, num valor único. Para testar o quanto isto é verdade e conhecer os outros terminais, termino um café rápido numa das lanchonetes do Ti-rio e, às 7h40, entro no ônibus azul que vai para o terminal da lagoa.

IdeaisAo contrário do Caieira da Barra do Sul, o Lagoa-Rio Tavares já sai dos terminal com pessoas em pé. Ali dentro, jovens com jaqueta de cou-ro e fone nos ouvidos se misturam com homens calvos de camisa so-cial e pasta na mão, não muito longe de um senhor com roupas simples e uma mala cheia de ferramentas aos pés. De certo modo, o ônibus acaba sendo um local democrático. O que determina quem vai em pé ou sen-tado não é o dinheiro, mas apenas a ordem de chegada ou a pressa.

Eliane Golçalvez participa desta rotina há três anos. Todos os dias, ela pega o Lagoa-Rio Tavares, que sai do Tirio às 7h33 ou às 7h40. Sua princi-pal reclamação são os horários des-regulados e a condição dos veículos. Neste dia, entretanto, o ônibus tem ar-condicionado – embora o clima

de floripa em outubro de 2008 se as-semelhe muito ao do inverno. O sol mesmo só aparece entre as nuvens depois das 8h06, quando o Tirio-Ti-lag chega no Terminal da Lagoa.

Conforme as horas vão avançando, o número de passageiros também au-menta. O Lagoa-Rio Tavares, que vai até o Terminal Integrado da Trindade, já sai da Lagoa da Conceição às 8h19 lotado. Um dos motivos é porque ele passa perto das duas principais uni-versidades da cidade. Isto logo se

percebe pelo número de pessoas len-do textos em fotocópias – mas o ve-ículo parece que pertence a outra re-alidade. É um “ônibus do Surf”, que tem suportes para pranchas no lugar dos bancos traseiros. Combina bem com o verão de Florianópolis. Agora, porém, os suportes azuis com man-chas de ferrugem servem apenas de apoio para quem vai em pé.

Depois de subir o Morro da Lagoa com dificuldade (sendo ultrapassado por carros, motos e até mesmo por outros ônibus), o Titri-Tilag chega ao Terminal da Trindade às 8h45 – três horas depois do início da via-gem. Pergunto para alguns cobra-dores qual linha posso pegar para ir

até o terminal de Canasvieiras. Um deles aponta para um veículo quase saindo. “É aquele ali”, ele diz, antes de eu correr na direção do ônibus.

“Às vezes a gente chega no ponto e reclama dos poucos horários – mas não sabe que acabou de passar um ônibus por ali”. É isto o que fala Jelson Luiz Prado, 34 anos – 10 de-les trabalhando como cobrador. Ele acha que a solução para o sistema integrado começa com a organiza-ção das pessoas, com tabela de ho-rários das linhas.

Este planejamento é o que o Setuf (Sindicato das empresas de transpor-te coletivo de Florianópolis) chama de “conexão ideal”. Neste transporte hipotético, cada passageiro sairia de sua casa sabendo que horas o ônibus passa no ponto, quanto tempo ele leva para ir até o terminal próximo e a que horas ele pode voltar para casa. Infelizmente, a hipótese não sai do papel por causa da falta de informa-ções. No site das empresas, o tempo estimado do trajeto não leva em con-sideração o tempo gasto nas filas, por exemplo. Além disso, são sites nor-malmente confusos e desatualizados.

Outro problema é que muitos mo-toristas não respeitam o horário de saídas. “Freqüentemente saem antes do horário”, desabafa Adiel Mitt-mann, 24 anos, bacharel em Ciências da Computação e estudante de mes-trado na UFSC. “Será que não passa pela cabeça deles que alguém pode estar contando que aquele ônibus vai estar lá até em determinado momen-to?”. Deste modo, a conexão ideal não funcionana por falta de uma or-ganização ideal.

No limite9h08. O ônibus chega no Terminal Integrado de Canasvieiras e, mais pelo acaso do que por planejamento, entro na linha Ingleses. Assim como o Caieira da Barra do Sul vai até o extremo sul da Ilha, o Ingleses che-ga perto do extremo norte, passando por praias que ficam movimentadas no verão, até chegar no bairro Santi-nho, aonde faz a volta para retornar ao Terminal. No ponto final, entre-tanto, todos os passageiros devem sair do ônibus, e pela primeira vez, desde o Trevo do Erasmo, piso fora de um terminal.

Espero por alguns instantes até que o ônibus volte, e quando passo o cartão pela catraca, pago mais R$ 1,98. Até aqui, a máxima de “ir por toda a cidade com apenas uma pas-sagem” estava funcionando – pelo menos em parte. Gastei apenas uma passagem em todo o trajeto de cin-co ônibus e quatro terminais – mas se saísse dos terminais e tivesse que passar novamente pelas catracas, pagaria outros R$ 1,98 - isto se pa-gasse no cartão. Com o dinheiro, R$ 2,50. Se tivesse que pagar uma pas-sagem em dinheiro para cada ônibus do trajeto, pagara R$ 12,50.

Voltando dos Ingleses, chego no Tican e as 10h19 entro no Canas-vieiras Semi-direto, linha que vai até o Centro da cidade, parando nos pontos e no Terminal de Santo Antônio do Lisboa. Com a meta de passar por todos os terminais, desço no Tisan onze minutos depois de ter saído de Canasvieiras, e preciso es-perar 20 minutos até que outro ôni-bus passem em direção ao centro.

Embora seja possível ir de uma ponta a outra da ilha sem passar pelo Terminal Integrado do Centro, ele ocupa uma posição central no cená-rio do transporte público. É dele que saem ônibus para todos os outros terminais e regiões da Ilha e também para outras cidades da região metro-politana de Florianópolis, embora elas não estejam dentro do sistema integrado – pelo menos não oficial-mente. O ônibus vindo do Tisan che-ga no Ticen próximo das 11h30.

A última linha do trajeto é o Ca-poeiras. Este é o ônibus do sistema integrado que chega mais perto dos limites de Florianópolis – mas ele não se contenta em apenas se apro-ximar. Ele sai da cidade, atravessan-do o portal que dá as boas vindas aos visitantes de São José, dá a volta num quarteirão, pára num ponto e retorna à capital, como um ator que precisa voltar rapidamente para o palco. Este é o mais próximo que Florianópolis chega do transporte intermunicipal integrado.

Por volta do meio-dia volto ao Terminal Integrado do Centro, seis horas, oito ônibus, seis terminais e 167km desde o início da viagem. Embora a reportagem tenha termi-nado, continuo com os ônibus, na minha rotina. Termino então minha posição de espectador e crítico tea-tral diante do Sistema Integrado de Transporte Público de Florianópo-lis, e volto a ser mais um dos figu-rantes desta peça cotidiana, entre a tragédia e a comédia.

Trevo do Erasmo

Ponto finaldo Ingleses

Ponto final doCaieira da Barra do Sul

Ponto finaldoem São José

Capoeiras

Tilag

Tisan

Tican

Tirio

Ticen

Titri

José Monteiro Júnior Rogério Moreira Do sul ao norte

Planejamento dos horários pode ser a solução para os problemas dos passageiros

Infográfico: Rogério Moreira Júnior

88,4 km é a distância entre o ponto final do Caeira

da Barra do Sul e o ponto final do Ingleses, no Norte da Ilha,

que pode ser feita com uma passagem. São três quilômetros

a menos que o trajeto entre a capital e Balneário Camburiú

A integração funciona por

30 minutos- metade do percurso da linha Madrugadão Norte, que dura

mais de uma hora

224 mil é o número médio de vezes que as catracas dos terminais da capital giram

todos os dias - quase

duas vezes a população de Palhoça

Se um passageiro pagar duas passagens por dia, 20 dias por

mês, vai ter um gasto mensal de cem reais, equivalente a

um quarto do salário mínimo

CIDADE

Page 5: Quatro, edição 2, de 2008

�QUATROFlorianópolis, dezembro de 2008

Mais de duas décadas guardando carrosFlanelinha há 22 anos, homem faz sociedade com irmãos e ainda espera uma chance para mudar de vida

Tornar o transporte ur-bano cada vez mais atraente e reduzir o uso de veículos parti-culares nas principais

vias. Este é o principal objetivo da Contrans (Comissão especial con-sultiva permanente para o planeja-mento e apresentação de sugestões para o transporte público da Capital) que está formada desde outubro de 2008. No primeiro encontro da co-missão, que contou com a presença dos principais agentes ligados à vida da cidade, seus membros apresenta-ram as novas propostas e discutiram questões como a mobilidade urbana, de quem é a responsabilidade para a solução dos problemas, as alter-nativas ao uso do carro e do ônibus e formas de transporte não motori-zado – principalmente a bicicleta como meio de locomoção.

O presidente da Contrans, Carlos Guilherme Rocha dos Santos, ex-plicou que medidas já estão sendo tomadas para tornar o trânsito mais ágil em alguns pontos. As primei-ras mudanças estão ocorrendo nas avenidas Mauro Ramos, Beira-mar Norte, Paulo Fontes e Gama D´Éça. Nestas vias, que possuem um grande fluxo de veículos, começarão a fun-cionar corredores - pistas exclusivas para os ônibus - como acontece em

Criciúma e Curtiba.Outra alternativa é o transporte

marítimo – o que já funciona mo-destamente na Barra da Lagoa – que pode ser explorado comercialmente com vantagens tanto para usuários como para empresários e poder pú-blico. A dimensão do movimento no transporte urbano em Florianópo-lis aparece perante a quantidade de usuários do sistema. Segundo dados do Instituto de Planejamento Urba-

no de Florianópolis (Ipuf), aconte-cem, em média, 224 mil viradas de catraca por dia.

As ciclovias merecem atenção, uma vez que a experiência em Florianópolis ainda é pequena. A arquiteta do Ipuf Vera Lúcia Gon-çalves lembra que a ilha tem 41 km de ciclovias e que a prefeitu-ra tem intenções de aumentar este número para dez rotas cicloviárias. “O Plano Diretor Participativo é

um instrumento fundamental a ser utilizado para assegurar a implan-tação destas rotas inteligentes, com a inclusão das obras no orçamento municipal”.

O Ipuf está estudando proposta de uma empresa francesa para implan-tar em Florianópolis o modelo pari-siense de aluguel de bicicletas. No Brasil o melhor exemplo de cidade que aproveita seu potencial ciclovi-ário é o Rio de Janeiro, que possui

78,8 Km de ciclovias. O carioca há anos utiliza este meio de transporte saudável, não poluente e econômi-co, com uma infra-estrutura capaz de dar conforto ao ciclista.

Enquanto o modelo carioca não faz parte da vida do ilhéu, a cida-de vai crescendo e se adaptando às urgências para seu funcionamento. “Estamos entrando num movimento que depende de mudança de cultu-ra. Precisamos enfrentar juntos essa predominância do transporte indivi-dual, senão no futuro viveremos o caos” explicou Ildo Rosa, presidente do Ipuf.

Entretanto, para alguns passagei-ros o caos futuro já é bem presente. Adiel Mittmann, 24 anos, bacharel em Ciências da Computação e es-tudante de mestrado na UFSC, é um dos usuários descontentes. Sua principal reclamação é a falta de organização. Os problemas apon-tados por ele vão desde os horários de partida das linhas que saem todas ao mesmo tempo para os mesmos destinos, até os painéis informativos de horários que passaram a veicular propagandas ao invés de informar. “Os ônibus urbanos de Florianópo-lis são uma piada. Aqui, quanto me-nos você anda de ônibus, menos se incomoda.”

José Monteiro Júnior

Comitê propõe mudanças no transporteEntre as propostas estão vias exclusivas para ônibus, construção de ciclovias e desafogamento do trânsito

TERMINAL DO CENTRO: proposta afetará os 224 mil passageiros que passam pelo Ticen todos os dias

Em 2007, o número de trabalhadores por con-ta própria - como ca-melôs e prostitutas sem vínculo empregatício

- aumentou 1,5%, de pouco mais de 18,9 milhões para 19,2 milhões de pessoas, segundo o Instituto Brasilei-ro de Geografia e Estatística (IBGE). O relatório da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios, divulgado em setembro, apontou também que a proporção deste tipo de ocupação, em relação a todos os trabalhadores, continua nos mesmos 21,2% da pes-quisa de 2006, o que indica que a for-malização não avançou.

Embora o índice tenha diminuí-do em SC - de 20,4% para 20% -, esta modalidade de trabalho infor-mal, ainda é encontrada em larga escala nos grandes centros urbanos. Um dos exemplos são os guarda-dores de carros - os populares “fla-nelinhas”. Em Florianópolis, uma pequena rua perto da Universidade Federal de Santa Catarina serve de estacionamento para quem vai à instituição de ensino ou procura o comércio do bairro Trindade. Há 22 anos um homem trabalha ali, por conta própria, guardando carros.

Carlos Roberto Benitez da Rocha, 38 anos, não lembra em que ano veio para a capital catarinense. Só que era jovem, e com 20 anos largou a oitava série no colégio estadual Simão José

Hess, na Trindade. Natural de Santia-go, interior do Rio Grande do Sul e escolheu Florianópolis porque gosta-va das praias. Com 16 anos, já sentiu os efeitos da falta de oportunidades e começou a trabalhar guardando carros. “A gente nasceu pobre”, la-menta. Mas ele também admite sua parcela de culpa: “Nós éramos vaga-bundos, né maninho?”

Era perto das 14h30 quando Rober-to dava esta entrevista, é claro, enquan-to carros entravam e saíam e ele corria

atrás dos clientes: “daê, irmão!”, “dar uma olhada aí, senhora?”. Até o mo-mento ele não havia conseguido nada, mas diz que a última vez em que foi trabalhar, três dias antes, faturou R$ 40 somando os trocos de 50 centavos ou um real. O máximo que fez em um dia foi R$ 150. “Onde é que é o tribu-nal de pequenas causas?”, quer saber um motorista, que agradece depois da resposta: “Aquele prédio verde com branco, é só tocar reto!”

Roberto trabalha durante a tar-

de, mas não está só. Depois da sua mudança vieram os pais e seis dos sete irmãos, dois deles completan-do a espécie de ‘sociedade’. Deise Kelly, 22 anos, trabalha às manhãs e Gilson, 29, que estava junto durante a entrevista, não tem hora fixa. “Os calouros dão uma grana boa”, diz se referindo ao período dos trotes, quando os alunos da universidade lotam o bar da praça Santos Du-mont. Ambos concordam, com um resquício de sotaque dos pampas, que o movimento praticamente es-tanca quando acabam as aulas, prin-cipalmente durante o verão. Cada um dos irmãos fica com o que ganha e, mesmo com tanto tempo, eles não se lembram de ter havido disputa pelo ponto com outros guardadores.

Além de se exporem a um empre-go sem garantias como previdência ou férias, os irmãos Benitez e seus colegas Brasil afora estão vulneráveis ao código penal. Quando imposta, a transação financeira entre motorista e flanelinha pode ser caracterizada como extorsão, sendo denunciada à Polícia Militar ou às guardas mu-nicipais. Segundo Ivan Couto, co-mandante da Guarda Municipal de Florianópolis, casos como este de-pendem da queixa de alguém, mas a incidência é baixa na capital. Fora das estatísticas, Roberto e Gilson são do tipo que prefere construir uma re-lação de confiança com os clientes.

“Já enjoei de cuidar de carro”, diz o irmão mais velho, que usa um colete azul escrito ‘estaciona-mento’ em amarelo, para, embo-

ra informal, dar um quê de oficial à atividade. Quando questionado sobre o que pretende fazer para mu-dar de vida, Roberto revela que está pensando em abrir uma firma, mas ainda não sabe em que ramo irá atu-ar, apenas que “tem que fazer, falar não adianta”. Ele ainda conta que o candidato reeleito para a prefei-tura de Florianópolis, Dário Berger (PMDB), passou por ali durante a campanha e prometeu pessoalmen-te que iria transformar o ponto em Zona Azul - estacionamento pago de vagas rotativas da prefeitura -, con-tratando Roberto e seus irmãos para trabalharem na fiscalização.

A suposta promessa, porém, pode encontrar obstáculos. Os auxiliares de trânsito são cedidos à Zona Azul pela Associação Florianopolitana de Voluntários (Aflov) - entidade tam-bém vinculada à prefeitura e que de-senvolve projetos sociais - por meio do Programa Trabalha Juventude. Segundo Cristiane Kretzer, assesso-ra da Aflov, os candidatos às vagas do programa passam por uma sele-ção que inclui análise de currículos e entrevistas. Mas, para quem já esperou 22 anos por uma chance de consertar os erros do passado, uma promessa é só mais uma.

Casado há dez anos com Ivanilda, empregada doméstica, Roberto tem três filhas com idades de 10, 9 e 3 anos, todas na escola. O que espera para o futuro delas? “Só estudo”. Ironicamen-te, ao que não deu tanta importância quando jovem, mas pelo menos esta lição ele parece ter aprendido bem.

Júlio Ettore Suriano

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Juntando trocados, Roberto ajuda a sustentar a mulher e três filhas

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CIDADE

Page 6: Quatro, edição 2, de 2008

6 QUATRO Florianópolis, dezembro de 2008SOCIEDADE

“Pode subir! Não tem pe-rigo, não”, disse um morador do

Morro da Caixa, no Centro de Flo-rianópolis. Não é exatamente o que a maioria das pessoas espera ouvir ao se aproximar de um morro, mas foi o que ouvi ao procurar a Sede Social da Embaixada Copa Lord, escola de samba tradicional da Ilha.

A Grande Florianópolis tem 56 morros espalhados pela Ilha inteira. Morro do Horácio, da Mariquinha, do Céu, Monte Serrat e Morro do Atanásio estão entre os mais lembra-dos. Os morros, muitas vezes, são confundidos com favelas - ambien-tes considerados de baixa qualidade de vida, onde os moradores têm li-mitado poder aquisitivo, grande par-te das ruas não possui calçamento e a iluminação pública é deficiente em vários pontos. A palavra ‘favela’ tem uma conotação negativa muito forte em todo o Brasil. O senso comum associa ‘favela’ à idéia de pobreza, desorganização, violência, ou má educação. O uso dessa palavra in-dica, geralmente, um julgamento de valor. Muitas favelas se localizam nos morros, mas nem todo morro é favela.

Originalmente, o conceito de “fa-vela” era aplicado somente a locais sem apoio estatal, ou seja, sem ener-gia elétrica, abastecimento de água e esgoto. Oficialmente, porém, define-se uma favela como qualquer região cujas construções tenham sido reali-zadas em terrenos invadidos e sem regularização fundiária. “Como as primeiras favelas foram localizadas nos morros do Rio de Janeiro, ficou uma associação entre favela e mor-ro”, explica a professora Carmen Rial, do departamento de Antropo-logia da UFSC. O preconceito em relação ao morro e aos seus mora-dores existe e ex-pressa a distância social entre ele e o restante da ci-dade. Mas, se há um momento em que essa distância é encurtada brus-camente, é duran-te o carnaval.

O carnaval de Florianópolis conta com cinco escolas de sam-ba. A mais antiga é a Protegidos da Princesa, seguida da Embaixada Copa Lord. As outras são União da Ilha, Unidos da Coloninha e Con-sulado do Samba. Todas elas, com exceção de uma, têm raízes no morro, nasceram através da vonta-de da comunidade do morro. Mas as festas de carnaval são famosas pela integração, tanto durante a organização dos eventos, como na celebração. Nelas, não é possível distinguir quem é ‘do morro’, quem é ‘da Beira-Mar’, quem é branco e quem é negro. “O samba une todo mundo. É que nem praia, bem de-mocrático”, comenta Cláudio Fer-

raz, diretor de arte da Copa Lord há cinco anos.

Cláudio, que também é artista plástico, demonstra muito orgulho em trabalhar para a escola. Com seu chapéu de abas curtas e uma fita métrica enrolada no pescoço fala de toda a beleza e brilho do carnaval e da comunidade, apesar de não morar ali. “Mas quando a preparação está na reta final, eu quase me mudo para cá. Já tive que descer o morro várias vezes às 3h, 4h da manhã com as me-ninas e nunca me aconteceu nada”.

O samba tem origens africanas, mas assim como o carnaval, se tornou símbolo de iden-tidade nacional e é também uma lu-crativa atração tu-rística. “Do nosso desfile participam pessoas de vários lugares da cidade e de todo o mun-do. Já vi italianos,

espanhóis e japoneses sambando aqui”, afirma Antônio José Leopol-do, atual presidente da Copa Lord. Ele calcula que a escola deva ter 2.700 componentes, mas que apenas 30% deles são do morro, o que mos-tra a participação em massa de pes-soas de fora desse círculo social.

Outro aspecto que evidencia o prestígio desse carnaval que envol-ve gente de todos os cantos é a fal-ta de procura por outras opções de festa. “O baile de salão era muito festejado e hoje quase não aconte-ce mais. O carnaval de rua também está em decadência”, conta o presi-dente da escola de samba. Nota-se, então, que nem as festas elitizadas dos salões e nem as que aconteciam

nas ruas têm tanta procura. No meio dessa festa, o precon-

ceito é deixado de lado. As mesmas pessoas que torcem o nariz para quem diz que mora no morro, que evitam ir até lá e fazem comentários preconceituosos, no carnaval estão lado a lado com as “pessoas da fave-la”, cantando e dançando o mesmo enredo.

O que a grande maioria ignora é que cenas de violência não têm lo-cal exato para acontecer. Constan-temente vemos casos em escolas, festas, universidades, na rua de um conhecido ou ali, na esquina da nos-sa casa. Não há critérios regionais, sociais, financeiros ou da cor de pele. “Geralmente, no morro, os cri-mes mais cometidos são homicídios, sempre ligados ao tráfico de drogas, mas bandido é bandido em qualquer lugar”, comenta Edson Volpato, ins-petor de polícia e coordenador ad-junto do COP-Central de Operações Policiais.

Como qualquer bairro, no morro há famílias, donas de casa, crianças indo à escola, senhoras varrendo a calçada, jovens jogando bola e tudo mais que você vê aí pela sua jane-la também. “Nos morros existem pessoas boas, pais de família que acordam cedo para trabalhar. Muitas vezes, os marginais moram ali, mas não atuam”, acrescenta Volpato.Antônio Leopoldo, da Copa Lord, viveu no Morro da Caixa durante dez anos e afirma nunca ter presenciado nenhum caso de violência. “Isso não existe. Não vejo problema qualquer em morar aqui”. No morro ele co-nheceu e se casou com a esposa e, hoje, mora em São José. “Me mudei porque pude mudar. Encontrei uma casa boa e acredito que quem tiver

condições de se mudar sempre vai fazer isso”.

Rosilene Cardoso, a Naninha de 22 anos, também nega o preconcei-to em relação à violência no morro. Ela trabalha na Sede Social da Copa Lord e, assim como vários outros membros da comunidade, ajuda a confeccionar e, principalmente, ‘dar brilho’ e enfeitar roupas e acessórios. Entre uma lantejoula e outra, Nani-nha contou que desde que nasceu mora no Morro da Caixa e também “não vê nada disso”. Ela confessa que encontra dificuldades em con-seguir alguns serviços, exatamente por morar no morro. “O pessoal que entrega lanche, principalmente, tem

muito medo de subir. Sempre per-guntam onde, exatamente, moramos e se não encontram, descem e vão embora”.

O diretor de arte Cláudio, além de negar a imagem negativa do mor-ro, que é construída e consumida por muitos, faz questão de falar das pessoas. “Elas são muito artísticas, solidárias. A comunidade é maravi-lhosa. Sinto-me em casa”. “O mor-ro, às vezes, é a única oportunidade de algumas famílias que não têm condições de morar em um bairro. Lá, criam seus filhos e levam uma vida normal, como qualquer outra que mora no bairro”, acrescenta o Inspetor da polícia, Edson Volpato.

O morro que se vê sem preconceitoUm bairro como o que você mora e que ainda prepara uma das festas mais celebradas de todo o ano

RAÍZ NO MORRO: Naninha nasceu no Morro da Caixa e agora, com 22 anos, participa da produção de arte da Embaixada Copa Lord

“Nos morros existem pessoasboas, pais de família que acordam cedo”

Laris

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Cláudio Ferraz sobe o morro há cinco anos para colorir o carnaval

Larissa Cabral Gabriel Esteves

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�QUATROFlorianópolis, dezembro de 2008 SOCIEDADE

Samba no pé não é quesito obri-gatório para passar pela “Nego Quirido”, a não ser que você seja uma das belas passistas da escola ou outro personagem de muito destaque. Aliás, para des-filar não existem muitas obriga-ções e restrições. Geralmente, quem tem vontade participa da festa.

Grande interessada na folia é Eneida Santos, psicóloga de 46 anos. Ela é uma das muitas pessoas que não é da comunida-de do morro e também não tem uma escola de samba definida. Eneida mora no centro e já des-filou três vezes no carnaval. Na primeira vez, na década de 90, cantou o enredo da Unidos da Coloninha. “Fui convidada por amigos. Não achei que fosse gostar tanto, mas amei”, con-fessa. Nos outros dois desfiles, a escola de samba escolhida foi a Embaixada Copa Lord. “A úl-tima vez foi em 2006 e em to-das elas desfilei no chão, com as pessoas que são de fora e não sabem as coreografias”.

Eneida procurou a escola de samba em novembro para o des-file que acontece em fevereiro, mas conta que não participou

dos ensaios. “Subi o morro só para pegar a fantasia. O clima é bem legal, é uma festa!”. Sobre o sentimento na hora de percor-rer a passarela ela afirma que é muito saudável e impolgante. “É uma sensação muito intensa. Ficamos lá cerca de uma hora, mas parecem dez minutos”.

Apesar de não ser de nenhu-ma delas, a foliã diz se empe-nhar muito para cantar o enre-do, “desempenhar bem e ajudar a escola”. “Na hora do desfile as diferenças entre quem é do mor-ro e quem vem de fora acabam, mas dá para perceber sim quem é da escola porque são bem mais preparados. Eles são superiores na avenida. Eles mandam e nós obedecemos”.

Antigamente, Eneida gosta-va de participar do carnaval de clube, mas afirma que a escola de samba é seu clube de hoje. “Quero muito levar minha filha para desfilar. Ela e meu marido estavam me assistindo na última vez, mas ele detesta”. Sobre o carnaval de 2009, afirma sem conseguir esconder a empolga-ção que “se algum amigo meu chamar, eu vou”.

Larissa Cabral

O preconceito por morar em morros e favelas traz inúmeras dificuldades, desde conseguir um remédio pelo tele-entrega da farmácia até conven-cer um taxista de que não há perigo em fazer uma corrida até sua casa. Mas nenhuma delas é pior do que a de conseguir emprego. Além da mo-radia, sempre considerada área de risco, o estigma de favelado perse-gue os habitantes dessas comunida-des que pleiteiam um lugar no mer-cado de trabalho.

Justamente para dar essas opor-tunidades a jovens excluídos so-cialmente, foi criado o Programa Antonieta de Barros, da Assembléia Legislativa de Santa Catarina. For-mulado politicamente pelo Fórum de Mulheres Negras da Grande Flo-rianópolis, a idéia virou projeto atra-vés do deputado Volnei Morastoni em sua gestão como presidente da Casa, em 2004. Hoje, é lei 13.075, de julho de 2004, o primeiro passo para uma política social já dado por uma assembléia legislativa no país, informa, com orgulho, a coordena-dora do programa, Marilu Lima de Oliveira.

“Oferecemos estágios como ou-tra empresa qualquer. A diferença está na seleção. Lidamos com jo-vens estudantes de 16 a 24 anos cujas famílias possuam renda de até 2,5 salários mínimos, tenham vul-nerabilidade no local de moradia e sejam preferencialmente negros e/

ou mulheres, isto é, grupos excluí-dos socialmente. ONGs, escolas de samba, e outros grupos que atuam em comunidades nos mandam listas com nomes de jovens interessados. Os pré-selecionados são entrevista-dos por assistentes sociais e só então decidimos os que tem mais necessi-dade”, explica.

Negra, ex-moradora de comu-nidades e funcionária de carreira

do Legislativo há 25 anos, Marilu expõe o programa como se fosse um filho: “O estágio dá uma condi-ção financeira a essas pessoas. Nós acompanhamos a trajetória escolar, mesmo na faculdade, e trabalhamos para aumentar a auto-estima desses jovens. Assim, eles começam a se sentir aceitos e abandonam a noção de inferioridade. Nós os instrumen-talizamos e os transformamos em protagonistas de suas próprias histó-rias”, discursa.

A cada ano, o programa seleciona

40 jovens, que assinam contrato com dois anos de duração. Os estagiários trabalham 4 horas diárias e recebem uma bolsa de R$ 450,00. Uma ajuda financeira muito bem vinda, segundo a auxiliar administrativa da Assem-bléia Ariana Barbosa, de 19 anos. “Com o dinheiro, posso pagar minha faculdade, que tem mensalidade de R$ 273. E ainda sobra pra mim”.

Estudante da 2ª fase do curso de Administração da Faculdade Borges de Mendonça, Ariana revela que os benefícios do estágio vão além da ajuda material. “É experiência para o mercado de trabalho, entra para o currículo. E o ambiente de trabalho ajuda bastante também no relaciona-mento com as pessoas. Antigamente eu tinha muita dificuldade de falar e me relacionar com os outros e esse estágio me ajudou muito”, conta.

Visitado pelo Ministro da Secreta-ria de Promoção da Igualdade Racial (Sepir), Edson Costa, em novembro, o programa pode se expandir para outras instituições brasileiras, um so-nho de Marilu. “A sociedade é uma engrenagem, como você é pobre, não tem acesso à educação de qualidade e, portanto, fica fora do mercado de trabalho. A jovem entra no programa quando decide que não quer pegar na vassoura como a mãe. Então a gente modifica essa trajetória familiar e dá a chance de a pessoa vencer a pobre-za e o preconceito”.

Gabriel Esteves

Lei de oferta de estágios aumenta auto-estima de jovens moradores de morro e favela

Alesc age contra o preconceito É cantando o samba que a Beira-Mar sobe o morro

DE ONDE VEM O SAMBA: é no Morro da Caixa, no Centro, que se localiza a Sede Social da Copa Lord. No galpão, a comunidade prepara a festa que ocorre em fevereiro

Larissa Cabral

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8 QUATRO Florianópolis, dezembro de 2008SOCIEDADE

Ponte de ligações ou exclusões? LIMITES MUITO ALÉM DA GEOGRAFIA: ponte Hercílio Luz, o cart�o��ostal ma�s �amoso de �lor�an��ol�s, �� usado �ara �lustrar con���to entre os moradores da �lha e do �ont�nente�o��ostal ma�s �amoso de �lor�an��ol�s, �� usado �ara �lustrar con���to entre os moradores da �lha e do �ont�nente

Marina Rocha

Na capital catarinense, morar no continente vira sinônimo de constrangimento

Ilha e continente marcam a divisão geográfica de Florianópolis. No entanto, a ponte, que deveria ser apenas uma construção, é na verda-

de o símbolo de um problema social que a cidade enfrenta: o preconceito que os moradores da ilha têm com os que vivem no continente.

O assunto ainda é um tabu. Uns negam. Outros desconhecem. Muitos confirmam. Cristina Wolff, profes-sora de História da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), nega as acusações. “Sempre morei na ilha e nunca tinha ouvido falar sobre isso”. Já Luísa Bonetti, floria-nopolitana e moradora do bairro de Coqueiros (continente), apresenta um argumento diferente. “Nunca so-fri preconceito, até porque o bairro onde moro apresenta um certo sta-tus, mas ele existe sim”.

A cidade conta com uma popu-lação de cerca de 397 mil habitan-tes, segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Destes, quase 95 mil são moradores do continente. Palhoça e São José são considerados parte da Grande Florianópolis (que engloba 21 muni-cípios). De acordo com levantamento recente da Federação das Indústrias do Estado de Santa Catarina (Fiesc), São José é a segunda cidade mais di-nâmica do estado, perdendo apenas para Balneário Camboriú. Palhoça é a quinta e Florianópolis a décima. O índice de dinamismo é medido atra-vés do potencial de consumo, que reúne a renda de abertura de em-presas, licenciamento de veículos,

operações bancárias por habitantes e gastos com saúde, educação, ha-bitação, ciência, tecnologia e sane-amento.

Andrei Longen, morador de Barreiros (São José), conta que as pessoas pensam que Florianópolis é independente e melhor em tudo. “Não é bem assim. Se não fossem as cidades da região da Grande Florianópolis, a capital estaria iso-lada de tudo, já que é uma ilha”, completa.

Em 2007, Florianópolis, São José e Palhoça foram os maiores impor-tadores do sudeste do estado (região de 22 municípios), registrando 771 milhões de dólares. Em exportações, a capital catarinense aparece como a vigésima mais importante do setor. A capital é, também, responsável por 52% do Produto Interno Bruto (PIB) do sudeste do estado.

A construção civil participa de quase 5% do PIB estadual e é um setor de grande geração de mão-de-obra. Dados do Ministério do Trabalho e Emprego mostram que

São José tem mais de oito mil tra-balhadores no ramo, enquanto Florianópolis tem pouco mais de sete mil.

Mesmo assim, é possível encon-trar comunidades na internet, em sites como o Orkut, intituladas: pas-sou da ponte é Palhoça e passou da ponte é tudo São José. Andrei Longen enfatiza que “na, maioria das vezes, é brincadeira, mas essa centralização de lugares incomo-da”. Mesmo não falando sério, as pessoas dão um jeito de acentuar a discriminação, como conta Luísa. “Tenho um tio que fala que a so-brinha dele não mora em São José, mora em Coqueiros”. Para ela, a ci-dade sofreu uma “mudança de foco” que propiciou o surgimento da dis-cussão. “Antes era status morar no continente, as praias mais badaladas ficavam lá. Como o aeroporto é na Ilha, a Universidade, então as pesso-as acham que não têm nada de bom do outro lado”, explica.

Andrea Zanella, psicóloga, alerta que o preconceito não é in-

dividual. “Ele vem da cultura e é socialmente produzido”. Ela acre-dita que uma cidade, sozinha, não é responsável pela construção de estereótipos. “Você vê os mes-mos apelos em qualquer lugar. Florianópolis não é diferente. A mídia cria e exige as mesmas coi-sas das pessoas. E é ela quem vem impondo padrões culturais”.

Mesmo diante das evidências, a antropóloga Miriam Hartung, diz desconhecer essa “rixa” entre continente e ilha. Longen explica que só tomou conhecimento da si-tuação ao entrar em contato com pessoas de outras cidades que vêm morar na capital “e acham que tudo se resume a Florianópolis”.

A hostilidade em relação aos não-nativos é outra questão preocu-pante. Um projeto de pesquisa que trabalha com o tema é o Nós e os outros, um estudo sobre as relações entre nativos e de fora na Ilha de Santa Catarina. Organizado pela professora aposentada da UFSC, Louise Lhullier, o estudo de pós-

graduação discute assuntos como a xenofobia e o etnocentrismo de acordo com uma abordagem antro-pológica. Tanto Andrei Longen quanto Luísa Bonetti afir-mam gostar do lugar onde vivem. “Coqueiros é perto de tudo”, com-pleta Luísa. Longen é mais dramá-tico: “estou bem ciente de que pelo menos não entro na minha cidade com aquele cheiro de esgoto in-suportável, com uma visão de um grande lixão ou de várias favelas”.

A psicóloga Andrea explica que pré-conceitos são opiniões prévias que você tem sobre algum assunto desconhecido e, com a informação, podem ser modificadas. Os precon-ceitos, porém, não estão suscetíveis a mudanças. Segundo ela, o cami-nho para acabar com as discrimina-ções é estar aberto às diferenças. “E isso não é um trabalho só da área da educação, todas as instituições de-vem colaborar para essa abertura: família, igrejas, políticas públicas... Todos nós somos responsáveis por uma ética à vida”, finaliza.

Marina Rocha

COMENTÁRIOS COMO ESSE SÃO ENCONTRADOS FACILMENTE NA INTERNET: para os membros das comunidades virtuais, isso é só brincadeira

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�QUATROFlorianópolis, dezembro de 2008 VIDAS GUARDADAS

Presídio feminino da capital detém mulheres,angústias e sonhos

Há unhas pintadas e descascadas no Presídio Femi-nino de Floria- nópolis. Há so-

lidariedade, tristeza e sobretudo espera. Mulheres diferentes, unidas pelo reduzido espaço – beliches contíguos, um mesmo tanque de roupa – e pela pausa que frea a interação com o mundo que ficou de fora, mas não o próprio mundo em si.

A preocupação de RoseliA presidiária Roseli, 44 anos, tinha lágrimas nos olhos quando começamos a conversar. Havia acabado de saber que o filho fugiu do presídio onde estava há dois anos e oito meses, em outro estado:– Ele tinha ganhado permissão para terminar a faculdade, está no último semestre de Jornalismo. O problema é que como ele só recebeu a autorização para ir às aulas há um mês e meio, já estava rodado por faltas. Daí a juíza entendeu que ele deveria parar de ir, voltar para a prisão e ficar em regime fechado até março. Ele pegou uma semana livre (que é um direito dos presos com bom comportamento a cada três meses) e não voltou. Hoje meu advogado veio aqui para me contar. Nem sei porque eles contam essas coisas para gente. Eu tô aqui dentro, não tem nada, nada que eu possa fazer. E o pior é que eu entendo meu filho. Ele não agüentou – conta em tom grave, enquanto formata as fichas de atendimento das presas no computador.

Roseli trabalha na farmácia da penitenciária há dois anos. A possibilidade de emprego é uma regalia: permite que o mês tenha 40 dias na contagem do tempo legal. Outros trabalhos possíveis são cozinhar, lavar louça e limpar. Roseli já recebeu 480 dias de remissão devido às suas atividades na farmácia. Mas ainda é pouco para sua pena de 26 anos. Ela foi presa com mais 11 pessoas por tráfico internacional. No esquema, estavam envolvidos ela e o marido, que foi condenado a 56 anos de prisão.

Atualmente, o tráfico de drogas é o crime que mais leva mulheres à cadeia. Conforme um levantamento feito pelo Ministério da Justiça, das 27 mil mulheres presas em todo o Brasil cerca de 7.800 foram detidas por este motivo. Isso equivale dizer que a cada dez presidiárias, três são por tráfico. No Presídio Feminino de Florianópolis, a média é maior: a diretora Maria Conceição Orihuela

“Comecei a fumar crack aos dez anos. Saí de casa porque meu pai me batia”

Sarah Westphal

GALERIA: amizade em meio a superlotação e noites no banheiro

Um filho foragido, a surpresa de uma gestação e a ausência da infância compõem as histórias do lado de dentro das grades

estima que seja a causa de 80% das prisões. O número de presas por tráfico em SC cresceu quase 40% em menos de três anos: em dezembro de 2005 eram 330; em julho de 2008, elas já somavam 452. A entrega e o transporte dos entorpecentes são práticas designadas ao sexo feminino por serem funções não violentas, lucrativas e que permitem estar em contato com os filhos.

Em relação à família, Roseli acredita que a estrutura familiar é determinante na formação do caráter. Para ela, a sociedade devia pedir desculpas quando alguém que nunca teve nada vai preso e ela mesmo reconhece que este não é o seu caso. Roseli se julga responsável pelo crime que cometeu embora considere incoerente a punição do filho. De acordo com Roseli, o filho acabou detido devido a uma acu- sação de lavagemde dinheiro e por um pedaço de ma-conha encontrado dentro do freezer. – Meu filho pegou quatro anos por lavagem de dinhei-de um Ômega de R$ 8 mil. E mais quatro anos pela maconha. Em uma audiência eu expliquei para o juiz que quando meu filho começou a fumar, tinha uma música do Marcelo D2 que dizia “Uma erva natural não pode te prejudicar”. Eu não consegui competir com isso. O mundo é muito hipócrita. Hoje, o Marcelo D2 ganha o Prêmio Tim de Música. Meu filho está na prisão. Ou melhor, não está - reconsidera preocupada com a notícia da fuga. – Eu tenho medo porque para sobreviver na prisão é preciso se filiar a alguma organização. Ele se filiou a uma delas, mas só para proteção. Se bem que faz tanto tempo que a gente não se fala que eu nem sei mais como ele está. Me preocupa se ele estiver escondido pela organização. Se ele aceitou isso, ele estará com uma dívida eterna. Nunca mais vai conseguir sair dessa vida.

Roseli não vê o filho desde o dia de sua prisão, em outubro de 2005. Mesmo período em que não encontra o marido, que vive no Presídio de Segurança Máxima de São Pedro de Alcântara. Normalmente, ela teria direito a visitas íntimas uma vez por mês, mas a polícia alega que o marido dela está muito longe e inviabiliza os encontros. A ex-comerciante entende que, apesar de nunca ter dito que desejava a separação, foi divorciada pelo sistema. Essa é sua única queixa. Segundo ela, a recente avaliação da CPI do sistema

carcerário que classificou o Presídio Feminino de Florianópolis como o oitavo pior do Brasil não levou em conta um aspecto essencial: – Mais importante que a infra-estrutura é o modo como você é visto. Aqui todo mundo me trata bem, os agentes são simpáticos, a comida é boa, eu convivo bem com as outras. A maioria das mulheres está aqui por causa do marido. Foi envolvida de alguma maneira.

O bebê de SuziA constatação de Roseli se aplica à adolescente Suzi, 19 anos. Grávida, ela aguarda uma audiência há cinco meses. A razão de sua prisão foram 120 kg de maconha encontrados na oficina de seu companheiro. Suzi diz que a droga pertence a um

funcionário do estabelecimento mas reconhece que já tinha co- nhecimento das atividades ilegais do namorado:– Eu tinha espe-rança de que ele iaparar com isso. Eu me arrisquei por ele, eu me deixei levar pelo amor.

Agora eu já falei “Ou você escolhe eu ter esse filho ou essa vida”.

Suzi está convicta de que o companheiro escolheu a primeira opção, pois ele tem ajudado bastante desde que ela foi presa. As cunhadas levam compras uma vez por mês e foi uma das irmãs dele quem confortou a moça na Galeria, local onde ficam as mulheres que ainda não foram julgadas. Segundo a diretora, atualmente o Presídio Feminino de Florianópolis abriga 162 pessoas, 96 a mais que sua capacidade. Devido à superlotação, algumas presas provisórias têm que dormir no chão, no corredor ou em frente ao banheiro. Como a irmã do namorado de Suzi já estava lá, elas dividiam a cama. Até então, a moça ainda não sabia que estava grávida. A descoberta veio com um teste de farmácia e foi comemorada com palmas pelas detentas. – Eu sempre sonhava em ser mãe. Eu pensava que ia ser uma menina. Mas quando eu soube que era um menino, fiquei bem contente. Meu marido já tem duas meninas e vou dar o primeiro filho homem para ele. E a médica ainda disse que vai ser bem pintudo! Que orgulho! – brinca.

Por estar esperando um bebê, Suzi foi transferida para o quarto berçário. Um berçário sem berços, ali dormem 11 mulheres e quatro crianças. As paredes preenchidas por adesivos coloridos amenizam

o clima tenso da prisão e o único contato com o mundo exterior se dá através de uma televisão 14 polegadas em frente a qual elas se aglomeram para assistir à novela “A Favorita”. – A gente torce para a Donatella se dar bem. Ela já sofreu tanto, coitadinha – conta Suzi, sorrindo com seus grandes olhos verdes.

A infância de Ana PaulaDo outro lado da grade, Ana Paula Regina também assiste à novela, mas por motivos distintos:– Eu gosto dos artistas, eu gosto daquela que faz a Flora e também daquele jornalista, como é mesmo o nome dele?

A história de Ana Paula, 22 anos, também se diferencia das demais. Ela já acumula 18 passagens pela polícia, por furto de celulares e roupas:– Eu roubo para sustentar meu vício, né? Eu comecei a fumar crack aos 10 anos. Foi com essa idade que eu perdi a virgindade. Foi com um senhor de 52 anos. Eu casei com ele. Eu saí de casa porque apanhava muito do meu pai. Meu pai estava sempre bêbado, batia em mim, nos meus irmãos.

O corpo de Ana Paula confirma sua versão. Ela tem marcas no rosto e nas pernas. Seu olhar, ora desconfiado, ora apenas tímido, também remetem a uma vida difícil. Ana Paula faz questão de ressaltar que sua primeira relação sexual não foi forçada:– Eu queria. Eu tinha dez anos mas ninguém dizia, meu corpo nunca foi de criança. Assim como a minha mãe, ele nem desconfiava que eu fumava, e ficou bem desesperado quando soube. Ajudou bastante a minha família. Meu casamento durou um ano e sete meses.

Depois de sair da sua segunda casa, Ana Paula foi para a rua, onde

se prostituia para conseguir dinheiro para ela e para seus nove irmãos. Atualmente, seu irmão de 12 anos fuma maconha; e a de 13, crack. Uma das preocupações de Ana Paula é tirar a irmã de enrascadas, já que a menina sempre compra fiado. Para ela, a televisão exagera ao tratar os traficantes como pessoas ruins:– Eu nunca fui maltratada pelos traficantes. Muito pelo contrário: às vezes eles é que dão conselhos: “Olha o que tu vai fazer com a tua vida...”. A gente é que vai atrás.

Em sua última busca, Ana Paula foi pega em flagrante segurando uma bandeja de iogurte e roupinhas de bebê. O episódio aconteceu faz nove meses. Desde então, ela já esteve em quatro audiências e ainda não decidiram qual será sua punição. Ela confessa que a falta da droga às vezes a deixa irritada e, a fim de se ocupar, lava as panelas depois das refeições. De tudo que ficou para fora, o que mais a entristece é a saudade da mãe:– A primeira coisa que eu vou fazer quando sair é falar com a minha mãe. Ela ainda não veio me ver porque tá muito longe. Ela mora em Tijucas. Quero falar com ela e pedir desculpa por tudo que eu fiz – responde sem hesitar, enquanto olha para os três sabonetes em sua mão. Ana Paula os levavapara uma senhora que estava sem.

Assim como os sabonetes, elas dividem a lavação das roupas, o papel das cartas, os absorventes, a televisão. Compartilham segredos e esmaltes. Repartem a angústia das audiências, a expectativa do alvará. Sentem unidas a saudade da família e do secador de cabelo. Roseli diz que elas vivem em simbiose. A com-paração é válida: a cumplicidade sustenta a vida até que as portas do mundo se abram de novo. * Os sobrenomes foram retirados para preservar a identidade das entrevistadas.

Sofia

Fra

nco

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10 QUATRO Florianópolis, dezembro de 2008

Por todo o tempo que mandarem

A casa, que antes era azul e cujo portão era manual, está rosa e com portão eletrônico, que não permite ver

a frente da construção. Entre o novo portão e a porta – que continua a mes-ma – há um espaço a céu aberto com chão de cimento. À esquerda da casa, uma passagem que dá acesso aos fun-dos, onde ficam a casinha de bonecas e o gramado em que os meninos jo-gam bola. Na fachada, uma janela e a porta principal. Entramos e fomos conduzidas até a sala, que tem um sofá de couro marrom, com 14 lugares, em formato de U e com o estofamento rasgado em alguns pontos. De frente para a perna menor do U, a escada que conduz ao segundo andar. E de frente para a parte côncava, uma televisão de 29 polegadas. Sentamos no sofá me-nor e imediatamente nos fizeram com-panhia. R., de cinco anos, sentou-se ao nosso lado. Com os pés sem encostar o chão e com as mãos sobre as pernas, nos cumprimentou com um oi tímido.

- Oi. Onde estão as outras crianças? - perguntamos.

- Na escola.- E não era para você estar na escola

também?- Não, né. Eu sou pequeno. Só os

grandes vão pra escola.Eram dez horas da manhã, e metade

das crianças realmente estava no co-légio – ou na creche, como é o caso das mais novas. A outra metade estava

Bibiana BeckFernanda Espíndola

Crianças e adolescentes em instituições de caráter provisório aguardam, por tempo indeterminado, retornarem à sua família de origem ou ganharem uma substituta

entretida com algum brinquedo, as-sistindo desenho na TV ou na aula de reforço, ministrada na Casa. Fabi, mo-nitora da casa, não sabe explicar por-que, mas fala que é melhor assim. “Já imaginou ter 28 correndo, berrando e querendo atenção? Não, não. Melhor que metade estude de manhã e a outra metade de tarde.”

Enquanto esperamos ser atendidas, continuamos conversando com R. O menino é receptivo, esperto e carente, como a maioria das crianças mais no-vas, que se aproxi-mam dos visitantes com mais facilidade, pedem colo, fazem carinho e brincam com os cabelos com-pridos das mulheres. Perguntamos há quanto tempo R. es-tava na casa. “Ahhh, nem me lembro mais. Acho que faz umas duas semanas.” Ele fica distante e pensativo quando se lembra dos pais e do lar de origem. Tem saudades de casa e quer voltar ao convívio familiar. “Eu vou sair daqui logo, meu pai tá comprando uma casa e vai vir buscar eu e meu irmão”, fala contente. Mas isso não significa que ele não goste de onde está agora. Gosta, e gosta muito. “Aqui tem um monte de amigos pra brincar, e a Fê, e a Dani, e a Fabi e as outras moças são bem legais com a gente.” Enfim, somos chamadas para o nosso atendimento. “Tchau, R. Da-qui a pouco a gente conversa mais.” Nos despedimos assim e entramos na sala da Fê.

O cômodo, apesar de pequeno, é aconchegante. A mesa fica de frente para a porta, encostada na parede di-reita, e pendurado na parede fica um mural, com desenhos coloridos que as crianças deram para Fê.

- Há quanto tempo R. está aqui?, perguntamos.

- Há quatro meses.- Ele nos disse que faz duas sema-

nas. - É que ele é muito novo, ainda não

consegue mensurar o tempo.Fê é a assistente

social que traba-lha há três anos na Casa Lar Pai Herói, abrigo para crianças e adolescentes que tiveram seus direi-tos violados (aban-dono, maus tratos, violência física ou moral) e foram afas-tadas do convívio

familiar por determinação da justiça. “Os abrigos são lugares transitórios, existem porque as crianças que são afastadas da família de origem não são, obrigatoriamente, encaminhadas para adoção. Seguimos o que manda o Estatuto (da Criança e do Adolescen-te): tentamos garantir que a criança, mesmo afastada do lar, continue com o vínculo e referência familiar”, expli-ca ela.

Segundo o art. 98 da Lei n. 8069/90, do Estatuto da Criança e do Adoles-cente (ECA), as medidas de proteção à criança e ao adolescente são aplicá-veis sempre que os direitos (educação, saúde, dignidade, etc) forem ameaça-

dos ou violados por ação ou omissão da sociedade ou do Estado, por falta, omissão ou abuso dos pais ou respon-sáveis ou em razão da sua conduta. Quando isto acontece, a autoridade competente (Conselho Tutelar, Vara da Infância e da Juventude, Ministério Público, etc) determina medidas como o encaminhamento do menor ao res-ponsável, orientação e apoio tempo-rário e matrícula em estabelecimentos de ensino.

O abrigo é medida excepcional. Primeiro buscam-se alternativas para a criança ou adolescente permaneça com sua família. Não sendo possível, o jovem é encaminhado a um abrigo e este deve assegurar pela manuten-ção e pelo fortalecimento dos víncu-los familiares. “Antes de a criança ser encaminhada para adoção, tenta-se o reingresso dela ao lar de origem. O abrigo é temporário, é a transição para que a criança seja colocada em famí-lia substituta (adoção) ou retorne ao lar. As pessoas precisam entender que abrigo e orfanato são diferentes. Aqui as crianças estão em um caráter pro-visório, até que a Justiça determine o futuro delas”, salienta Fê.

Cerca de 240 crianças em Floria-nópolis e São José estão em abrigos como a Casa Lar, e 80 mil em todo o país. Destas, 87% não estão disponí-veis para adoção. Segundo o estudo O direito à convivência familiar e co-munitária: os abrigos para crianças e adolescentes no Brasil, feito pelo Ins-tituto de Pesquisa Econômica Aplica-da (Ipea), em parceria com o Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente (Conanda), em 2005, o

maior motivo que acarreta no afasta-mento do menor do convívio familiar é a carência de recursos materiais da família (24,1% dos casos pesquisa-dos). Munique, psicóloga da Casa Lar, aponta outro fator. “Durante mui-to tempo esse foi o principal motivo porque quem fazia a vistoria olhava a casa e dizia ‘este não é ambiente para se criar uma criança’, por mais que fosse o melhor que os pais pudessem oferecer. Hoje, o que mais vemos aqui é a negligência por parte dos pais e a dificuldade que estes têm de dar limi-tes às crianças.”

J. 11 anos, é um exemplo de falta de disciplina. Seus pais procuraram o Conselho Tutelar há três meses alegando que não conseguiam impor limites à criança, que não tinham con-dições de ficar com ele no momento. Ansioso e agitado, passa o tempo todo mexendo em tudo que vê, pega coisas sem pedir, tira os pertences das outras crianças do lugar. “Ele até sabe se comportar, mas quando tira vantagem disso. Mês passado foi aniversário dele, e a mãe de J. quis fazer uma fes-ta aqui para comemorar. Ele passou o mês todo como um santo. Foi só aca-bar a festa que voltou a se comportar mal”, conta Munique.

Para o ECA, o motivo pelo qual J. está abrigado não é válido. Segundo o artigo 23 do estatuto, a falta ou carên-cia de recursos materiais não constitui motivo de suspensão do poder fami-liar. Angelita Machado, assistente so-cial da Vara da Infância e da Juventude de São José, afirma que crianças em situações como a de J. são abrigadas por medida profilática. “Se os pais

APEGO: As crianças vão à escola da comunidade, mas é no abrigo que lidam com pessoas de mesma vivência e formam vínculos; processo traumático principalmente para os mais velhos

No Brasil, 87% dos abrigados não estão disponíveis para adoção

Fernanda EspíndolaINFÂNCIA

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11QUATROFlorianópolis, dezembro de 2008

acreditam que não podem ficar com a criança opta-se pelo abrigamento para evitar que ela entre em situação de ris-co. É muito provável que isso venha a acontecer quando os pais não que-rem ficar com os filhos.” Para Luiz, coordenador geral da Casa e filho dos fundadores, isso ocorre porque falta no município uma casa de passagem. “Nós não temos aqui em São José este tipo de estrutura. Muitos casos nem precisavam de abrigamento. O estatu-to é claro: o abrigo é medida extrema e excepcional. Na prática isto não acon-tece. E uma vez que o menor é abriga-do, nós temos 48h para avisar a juíza e é aberto o processo. Daí complica a saída da criança, porque o processo é moroso.”

Angelita explica que este processo é demorado por se tratar de uma situação delicada. “A partir do momento que é aberto, o juiz vai investigar os motivos que levaram ao abrigamento. Ele pas-sa pelo fórum e chega ao Ministério Público. Em alguns casos o promotor sugere um estudo social daquela famí-lia. Essa solicitação vai para o juiz que autoriza ou não. E assim o processo se alonga.” Em casos de consumo de drogas por parte dos responsáveis, por exemplo, além há ainda o tempo tra-tamento para desintoxicação, que dura nove meses. “Depois desse período, os responsáveis pelo menor precisam se estruturar, mostrar o esforço que fa-zem para ter a criança de volta, o que faz com que a criança fique ainda mais tempo no abrigo”, salienta Munique.

Durante o perí-odo de abrigamen-to, as instituições incentivam que os responsáveis visitem as crianças e os ado-lescentes. A pesqui-sa do Ipea, realizada em 584 abrigos de todo o país, aponta que 58,2% mantêm vínculo familiar. Na Casa Lar Pai Herói, as visitas são monitoradas por Fê e por Munique e acontecem todas as quar-tas-feiras. “É uma forma de acompa-nharmos o desenvolvimento do caso”, ratifica Munique.

A maioria dos menores recebe visi-ta, mas não todos. K., 14 anos, está na Casa há dois anos, não se lembra mais da última vez que recebeu a visita da mãe. Tímida, a garota dá indícios de que tem consciência que provavel-mente ficará na casa até completar a maioridade. “Toda vez que sai uma criança da casa, ela se sente como se ficasse para trás. Esses dias eu estava brincando com eles e falei ‘deixa eu ver quais de vocês faltam ir embora daqui’ e discretamente ela levantou a mão. É um trauma para ela saber que o abrigo é transitório para a maioria, mas para ela não”, conta Munique. K. chegou à casa com mais quatro ir-mãos, e já viu três saírem de lá: os dois mais novos foram adotados e a mais velha, C. ainda que continuasse abri-gada após os 18 anos, fugiu do abrigo para se casar.

Não é raro encontrar maiores de idade abrigados. Cerca de 2,3% dos jo-vens em abrigos já atingiram a maiori-dade. “Não é porque eles completaram 18 anos que nós vamos dizer ‘agora você tem que sair daqui’”, afirma Fê. Em três anos trabalhando na casa, ela já teve duas meninas que atingiram a maioridade durante o período de abri-gamento e continuaram lá. “Quando isso acontece, nós escrevemos um relatório minucioso, e encaminhamos

para a juíza um pedido para que esse adolescente permaneça aqui. Até hoje ela sempre aceitou.” Atualmente está na casa uma adolescente de 18 anos. F. foi abrigada aos 17 anos, junto com sua filha de nove meses, porque o pa-drasto não admitia que a enteada grá-vida ficasse em casa.

Munique explica que quando estão próximos de completar a maioridade, os jovens são incentivados a fazer um curso de capacitação. “F. faz curso de telemarketing e K., apesar de ainda ter 14, fala que gostaria de trabalhar como babá. Já começamos a procurar algum curso desse tipo.” Para ela, é importante que este jovem saiba que, por mais que ele não possa mais morar na casa, o vínculo não é desfeito. “Eles sempre podem vir aqui pedir orienta-ção, estaremos aqui para ajudá-los. E os padrinhos também podem ser refe-rência para eles”, ressalta.

Os padrinhos a que Munique se re-fere são pessoas que fazem parte do projeto Padrinhos do Sorriso. Um fi-nal de semana no mês (normalmente o último), as crianças passam com os padrinhos. Para isso é preciso ter boas notas na escola e bom comportamen-to. “É uma forma de discipliná-los. Eles precisam saber que para se ter al-gumas coisas é preciso dar outras em troca”, explica Fê. Este projeto tem o objetivo de oferecer à criança abriga-da a oportunidade de viver dentro de uma família por dois dias. Segundo a assistente social, devido ao tempo que algumas crianças permanecem na

casa, elas esquecem como é o ambiente de uma família, como é ter a atenção voltada só para ela. “Por mais que tentemos apro-ximar o ambiente do abrigo do ambiente familiar, isto é im-possível. São muitas crianças, e tudo aqui é divido. É bom para eles saber que existe

outra forma de lar.” Para evitar que as crianças confun-

dam os padrinhos com uma possível família substituta, Fê opta por não autorizar que um mesmo padrinho fi-que com a mesma criança dois meses seguidos. “É uma decisão nossa. Tem abrigos que permitem um padrinho fixo para a criança. Achamos que isto cria um vínculo muito forte, que quan-do desfeito pode ser mais um trauma para esta criança.” Apesar da precau-ção, vínculos acontecem.

Goreti, funcionária pública federal, participou do projeto Padrinhos do Sorriso por quase um ano. Afastou-se da Casa Lar porque se afeiçoou de-mais a uma criança. Quando a entre-vistamos, a pergunta que ela nos fez foi se Y. ainda estava lá. “Foi adotado no começo do ano”, respondemos. Seus olhos se encheram de lágrimas. “Eu queria adotá-lo. Quando soube que não seria possível, quase entrei em depressão. Por isso me afastei da casa. Apesar de Fernanda (Fê) tentar de tudo para que isso não aconteça, crianças são crianças. Não tem como não se envolver com elas”.

Apesar do sofrimento que passou, Goreti diz que nunca conseguiu se desvincular completamente da Casa e quer voltar a ser voluntária. “Eles estão com poucos padrinhos. Eu te-nho amor pra dar e essas crianças precisam receber amor. Chega a ser incoerente não ajudá-los. Até porque é uma experiência enriquecedora e inesquecível.”

Das Casas de Misericórdia aos abrigosAté 1900, as necessidades so-

ciais da população brasileira eram de responsabilidade da igreja, através das Casas de Misericórdia. Não havia qualquer atuação do Estado neste sentido. Somente em 1922 surgiu, no Rio de Janeiro, o primeiro estabelecimento público para o atendimento de crianças e adolescentes. Na década de 40, foi criado o Serviço de Assistência ao Menor (SAM), ligado ao Ministé-rio da Justiça, que era equivalente ao Sistema Penitenciário para a população de menores.

As instituições mantiveram um caráter correcional-repressivo até 1964, quando foi estabelecida a Política Nacional de Bem-Estar do Menor (PNBEM). O Código de Menores, que abrangia crian-ças em situação irregular, ou seja, menores infratores, carentes e abandonados, foi aprovado em 1979. Um ano antes, nascia a Casa Lar Pai Herói. O abrigo é fruto da dedicação de Jandira, mãe de seis filhos naturais, que cuidava das crianças filhas das profissionais do sexo que atuavam na região. “Naquela época, aqui tinha uma zona de meretrício, e minha mãe cuidava das crianças enquanto as mulheres trabalhavam”, relembra

Luiz. Em menos de cinco anos, Jan-dira e o marido, Luiz, já cuidavam de mais 32 crianças. “Nessa época chamamos a atenção da mídia, que veio aqui fazer uma reportagem. Foi daí que veio o nosso nome, pois es-tava passando, na TV Globo, a no-vela Pai Herói, e o jornal colocou este nome na matéria.”

A Casa foi regularizada como abri-go na segunda metade da década de 80, quando a discussão em torno dos meninos de rua culminou na criação da Comissão Nacional Criança e Constituinte, em 1986, no governo Sarney. Mas foi só com a constitui-ção cidadã, de 1988, que a proteção integral a criança e adolescentes foi contemplada nos artigos 227 e 228. Em 1990 esta doutrina da proteção integral foi coroada com o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA).

Segundo o Estatuto, a instituição deve escolher o perfil de atendimen-to. Em Florianópolis, o Lar Recan-to do Carinho, por exemplo, atende crianças com HIV. A Casa Lar Pai Herói foca seu atendimento em grupos de irmãos, por mais que na prática isto nem sempre se aplique. “Temos aqui crianças que vieram sozinhas, pois não havia vagas em outros abrigos. Não é porque o nos-so perfil seja outro que não vamos

receber este menor”, explica Fê. P., 28, tem deficiência mental foi a primeira criança recebida pelo abrigo. Foi abandonada na porta da Casa no ano de sua fundação e está lá até hoje. V., 12, tem pa-ralisia cerebral e está abrigado há dois anos.

Cuidar dele está cada vez mais difícil. V., já está grande e as mo-nitoras têm dificuldades de trocá-lo e colocá-lo na cadeira de rodas devido ao seu peso. Ele também precisaria de um acompanha-mento mais específico, oferecido pela Fundação Catarinense de Educação Especial, em um bairro vizinho. Fê diz que o problema é estrutural. “Não temos um carro para levá-lo até lá. Estamos ten-tando conseguir com a prefeitu-ra, mas está difícil”. Ambos es-peram uma vaga na Orionópolis, instituição especializada no aten-dimento de pessoas com defici-ência. Para P., a vaga não abre há 28 anos. Enquanto aguardam, os dois contam com a boa vontade e dedicação daqueles que os aco-lheram no melhor lar que podem oferecer.

Quem quiser conhecer ou ajudar a Casa Lar Pai Herói, o telefone é (48) 3246 3233

SOLIDÁRIA: Para algumas crianças, uma vantagem de estar na Casa Lar Pai Herói é que “tem comida todo dia”, e ainda assim, M., de três anos, abrigada há quatro meses, oferece bolinhos para as repórteres

Cerca de 2,3% dos jovens em abrigos já atingiram a maioridade.

Fern

anda

Esp

índola

INFÂNCIA

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12 QUATRO Florianópolis, dezembro de 2008COMPORTAMENTO

As profissionais do código 5198No movimentado centro da capital catarinense, existem diversas whiskerias abertas o dia inteiro, onde trabalham mulheres de várias idades, a maioria de origem mais humilde

Embora já tenha ganha-do um código na Clas-sificação Brasileira de Ocupações (CBO) há seis anos, a profissão

de prostituta ainda é vista com mui-to preconceito em vários segmentos sociais e levanta polêmicas de âm-bito trabalhista. Por pressões do Mi-nistério Público, em outubro de 2008 o Ministério do Trabalho decidiu re-formular a cartilha de profissionais do sexo, que dava orientações de cuidado com a saúde, planejamento financeiro e ações educativas, além de apresentar o passo-a-passo da prostituição. O MP alega que o do-cumento faz apologia à exploração das mulheres, mas representantes da categoria desaprovam a polêmica e dizem que lutaram muito para serem reconhecidas como profissionais.

Bem ou mal vistas pela sociedade, as mulheres do código 5198 da CBO não levam uma vida muito diferente das demais. Têm paixões por livros, música e culinária, praticam espor-tes, guardam dinheiro para o futuro e trazem consigo algumas frustra-ções, pessoais ou no trabalho, além de ter uma personalidade carregada de virtudes, defeitos e manias.

Em uma quarta-feira de chuva, encontramos Natália* no meio da tarde em frente a uma floricultura no centro de Florianópolis. Vestindo calças pretas de ginástica e a blusa da academia de artes marciais que freqüenta, a menina de 19 anos nos acompanhou até uma lanchonete. Em alguns minutos de conversa, a

entrevista mais parecia um encontro de amigas, todas da mesma idade.

Fluminense, filha do meio de cin-co irmãos, com pai militar e mãe professora, Natália conta que saiu de casa aos 16 anos tomada pelo espírito aventureiro que diz ter her-dado do pai. Depois de concluir um curso técnico de administração e marketing no Senac de São Paulo, começou uma carreira de modelo a convite de Ana Pimenta, responsá-vel pelos eventos da Harley David-son no Brasil, onde trabalhou dos 17 aos 18 anos. “Adorava estar no meio do pessoal da mídia, conheci gente bem relacionada do mundo inteiro”. Nessa época ganhava em média 5 mil reais por mês e teve a oportuni-dade de visitar todos os estados do país, além de viajar para Inglaterra, Austrália e Argentina.

Há seis meses se mudou para a capital catarinense, mais próxima da atual residência de sua família em Im-bituba, para substituir no Senac uma professora de espanhol, língua que já domina desde os sete anos de idade. Entretanto a professora não se afastou do cargo e Natália ficou sem o empre-go. Entre os gostos da menina de fala doce e cabelos cacheados, estão os li-vros. Ela lê e ficha cerca de oito obras por mês, entre história, psicologia e auto-ajuda. Sua coleção beira os 300 exemplares, minuciosamente organi-zados por datas em seu escritório.

Não muito longe dali, outra afi-cionada por livros nos recebe pela manhã em seu quarto na whiskeria onde trabalha. Depois de subir dois lances de uma escadaria estreita, ilu-minada por uma forte luz azul, che-gamos a um grande salão com me-sas, sofás, um pequeno palco e uma

máquina caça-níqueis, além de um bar de frente para a porta. Não tivemos que pa-gar os dez reais cobrados de noite para a entrada. Dei-tada em sua cama, de robe bordô, a mineira Mariana* fica bem a vontade para dar a entrevista. “Meu filho mais velho quer ser jornalista. Sei que um dia ele também vai precisar fazer isso”. Natural de Alfenas, sul de Minas Ge-rais, depois de 15 anos longe de casa, ela ainda não perdeu o sotaque. A cada seis meses ela viaja para visitar a famí-lia, o pai auxiliar de produ-ção, a mãe dona de casa e os quatro irmãos. Os três filhos, 16, 14 e 9 anos, moram com os avós paternos em Curi-tiba, onde também mora o ex-companheiro, com quem conviveu por sete anos e que conheceu em São Paulo. Ela também os visita duas vezes por ano. Depois que saiu de casa trabalhou em vários restaurantes; seu prato preferido é arroz com feijão, frango e polenta.

Natália nunca trabalhou nessa área, mas adora cozinhar. Sua es-pecialidade são os frutos do mar, e diz que largaria tudo pelo chocolate. Entre os planos para o futuro, está o de abrir um bistrô ou uma adega, em alguma cidade pequena, tranquila e afastada. Ela também tem vontade de cursar faculdade de administra-ção ou engenharia química. Mas es-ses projetos ficam para daqui a dois anos, tempo em que pretende juntar dinheiro trabalhando cinco dias por semana em uma das maiores casas de show da cidade. Ela faz cerca de

três programas por semana, que cus-tam de 400 a 2 mil reais. “A maioria dos homens que freqüentam a casa são casados, muito bem relaciona-dos e educados. Vem também muita gente de fora, falam do português ao mandarim. Políticos, jogadores de futebol, artistas e grandes empresá-rios”. Segundo ela, os “pés de chine-lo” são os policias, juízes e promo-tores, que não pagam os 110 reais para entrar na boate. O perfil de seus clientes reflete seu estilo de vida.

No guarda-roupa apenas peças caras e de grife, que segundo ela são investimento na profissão em que está há três meses. De noite, cabelos sempre escovados, perfu-me Victoria’s Secret e unhas impe-cáveis. Durante a entrevista, com as mãos sobre a mesa diz que suas

unhas estão terríveis. Entre-olhamos-nos, e automatica-mente escondemos as nossas unhas, bem piores que as dela. Além do cuidado com a apa-rência, Natália se preocupa muito com o corpo. Todos os dias, depois de acordar e to-mar um farto café da manhã, ela vai à academia, onde fica por no mínimo quatro horas. É faixa roxa no caratê, esporte que começou a praticar ainda criança obrigada pelo pai. Seu soco, com força de 90 kg, já brigou com muito homem, nunca no trabalho.

Mariana, adepta do espiri-tismo há 17 anos, se diz cada vez mais “zen”, mas nos conta que na semana anterior acertou um cliente com uma garrafa de cerveja após ele mandá-la calar a boca. “Sou calma, mas tenho sangue na veia. Procuro

ser totalmente relax, pois um dos pecados capitais é a ira”. Ela come-çou na prostituição há oito anos a convite de uma amiga. Desde então trabalha na mesma boate, de onde já foi gerente, ganhando, além dos programas, dois salários mínimos por mês.

Hoje a casa lhe rende cerca de R$ 2 mil, atendendo de oito a dez clien-tes por semana. “Aqui não dá para escolher homem, tem todo tipo de gente, dos mais feios aos mais boni-tos. Se bem que perante Deus somos todos iguais”. Além disso, faz faxi-nas a 60 reais durante a tarde. Seus gastos são menores que os de Natá-lia; 550 reais vão para os filhos, 175 para o aluguel de seu aparta seu apartamento, sendo a outra metade paga por umoutra metade paga por um

Gabriela Bazzo Sofia Franco

A rotina de duas garotas entre livros, programas, quartos e planos para o futuro

SEMPRE: Camisinha e unhas muito bem feitas

Sofia

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Felipe Machado

Page 13: Quatro, edição 2, de 2008

1�QUATROFlorianópolis, dezembro de 2008 COMPORTAMENTO

Regulamentação ainda gera polêmicacliente. Por ano, desembolsa R$ 150 pelo convênio com uma clínica par-ticular e a cada dois meses compra roupas no centro da cidade.

Diferente de Natália, que se diz elegante, ela se diz criativa e está sempre inventando moda para agradar os clientes. Seu quarto na whiskeria é tão colorido como suas roupas; uma parede verde limão, outra laranja, uma televisão, DVD, dois aparelhos de som e uma gela-deira. Um coração de pelúcia ver-melha com os escritos “Eu te amo” fica pendurado em uma prateleira e abaixo dele uma camisinha, que nunca falta. Ela passa lá a maior parte da semana.

Natália paga de aluguel mil reais, e divide seu apar-tamento com duas tarântulas, duas cobras Surucucu de Patioca e um linguado. “Con-vivo bem com as cobras, todos nós somos venenosos”. Aos 17 anos morou com um namorado, mas hoje diz que não dividiria seu ambiente com mais ninguém. “Não penso em me casar. Não agüentaria ter que escutar alguém roncando”. Só ela mexe no espaço, metodica-mente organizado e, por isso, se de-fine louca, maluca, chata e cheia de manias. Ainda assim gostaria de ter um filho, que criaria para ser como ela e lhe faria companhia.

Além de exigente com a ordem da casa, a carioca é muito cuidadosa com a saúde. Só transa com camisi-nha e, a cada 90 dias faz uma bate-ria de exames pelo convênio de seu plano de saúde. Há dois meses ela parou de beber quando trabalha, se permitindo apenas chope ou vinho nos finais de semana. “Já bebi muito e deveria beber mais para agüentar aquele ambiente desprezível. Isso é jogar dinheiro fora, porque o álcool

me deixa mais desinibida, mas eu ganho anos de vida”. Também não fuma e é totalmente anti-drogas. Mariana admite que além de fumar desde os 14 anos, muitas vezes na boate bebe além da conta, mas não se considera alcoólatra. Na noite anterior à entrevista havia bebido 18 latas de cerveja e já chegou ao número de 28. Uma vez por ano faz exames preventivos pelo SUS e os leva à clínica com que tem convê-nio. Ela também recebe apoio de uma ONG que distribui preservati-vos para profissionais do sexo e pro-move campanhas de vacinação.

Embora a prostituição represente a maior parte de suas rendas, as duas já estipularam datas para parar. Elas

não se colocam como vítimas, mas não hesitam em falar o quanto o trabalho é di-fícil. “Não é um dinheiro fácil, é um dinheiro rápi-do. O ambiente é podre, as pessoas são podres e eu em parte me acho podre também.

Mas todo mundo tem um lado po-dre.”, diz Natália, que marcou para 2010 a mudança de vida.

Mariana acredita que a vida que leva é errada. “O que eu faço é pe-cado, estou vendendo algo que Deus me deu de graça”. Para a mineira, a saída da whiskeria, programada para janeiro de 2009, representa seu maior envolvimento nas ativi-dades do centro espírita que fre-qüenta, pois para desenvolver sua mediunidade precisa se afastar de um ambiente carregado de energias negativas. Seus planos são terminar o segundo grau e prestar concurso para os correios. “Meu sonho é ser funcionária pública, para não ter que trabalhar tanto”.

Diferente de países como a Ale-manha e a Holanda, no Brasil as prostitutas não têm amparo de leis trabalhistas, pois a profissão não é legalizada. Não é possível que essas mulheres tenham car-teira assinada, já que são proibi-dos vínculos empregatícios com agenciadores ou casas noturnas que, segundo nosso código pe-nal, configuram práticas ilegais de exploração sexual e cafetina-gem. Elas seguem sem 13º sa-lário, licença-maternidade ou a segurança do salário mínimo. O código da Classificação Brasilei-ra de Ocupações (CBO) consiste apenas na descrição do ofício que permite que as prostitutas paguem o INSS não como autô-nomas, mas como profissionais do sexo.

A presidente da ONG Estrela Guia - associação em defesa das profissionais do sexo, Ana Pau-la Litwisnki afirma que conhece poucos casos de mulheres que utilizam o código 5198. “As me-ninas preferem se declarar pro-fissionais autônomas. Hoje usar ou não o código não muda nos-sos direitos, apenas faz crescer o preconceito”. Mas ainda assim ela reconhece que o registro na CBO é um passo importante para a legalização da profissão e diz que se mais pessoas se decla-rarem profissionais do sexo, o projeto de lei do deputado fede-ral Fernando Gabeira terá mais chances de ser aprovado.

Ela refere-se ao PL 98/2003, que prevê a anulação dos artigos 228, 229 e 231 do código penal; deixariam de ser crime o favore-cimento da prostituição, a manu-tenção de casas de prostituição e

o tráfico de mulheres que venham a se dedicar à atividade.

O projeto divide opiniões entre a sociedade e entre a própria classe das prostitutas. Para Fernando Ki-noshita, especialista em direito e cidadania, o projeto é controverso, pois sua lógica é garantir direitos às mulheres que escolheram seguir essa profissão e não incentivá-las a se prostituir. Por outro lado, a maio-ria da população não tem acesso a uma educação que possibilite fazer essa escolha de maneira consciente.

Ana Paula faz uma análise ponde-rada da situação: “Embora os bene-fícios não estejam muito claros no projeto do Gabeira, o fato de ganhar-mos direitos trabalhistas seria uma boa idéia e a alteração do código pe-nal nos traria mais segurança. Mas sabemos que muitas coisas continu-ariam clandestinas”. Ela diz que sua classe não quer ser vitimizada, quer apenas respeito. “Quero poder abrir um crediário nas Casas Bahia dizen-do que sou profissional do sexo sem ser olhada de cara feia”.

Alguns profissionais da área da saúde afirmam que legalizar o ofí-cio facilitaria a implementação de

políticas públicas de assistência médica e controle de doenças voltadas passa essas mulheres. No Brasil a atenção dispensada às prostitutas já foi motivo de entraves diplomáticos com os Estados Unidos.

Em 2005 o Ministério da Saú-de recusou uma ajuda financeira de 48 milhões de dólares do go-verno norte-americano para o programa de prevenção a DST/ AIDS. A Agência do Estados Unidos para o Desenvolvimento Internacional (USAID) impôs que a verba não poderia ser uti-lizada em programas voltados a prostitutas. Na mesma época, o Brasil também recusou 40 mil-hões de dólares de um fundo pelo mesmo motivo.

As autoridades brasileiras afirmaram que as condições para o uso do dinheiro iam contra a política de saúde estabelecida pelo país. Os Estados Unidos condenam a prostituição moral e legalmente em todos os seus es-tados, exceto Nevada.

Gabriela BazzoSofia Franco

Pessoal da ONG Estrela Guia faz trabalho educativo e prevenção

“Não é um dinheiro fácil, é um dinheiro rápido. É um ambiente podre”

* Os nomes foram trocados para preservar a identidade das entrevistadas.

Em Florianópolis, casas de show freqüentadas por prostitutas de luxo chegam a cobrar mais de cem reais de entrada. Nesses estabelecimentos, fala-se do inglês ao mandarim

Felipe Machado

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14 QUATRO Florianópolis, dezembro de 2008LUXO

Sol, champagne e incomodação Os moradores se dividem em relação às festas em casas noturnas do bairro: alguns se incomodam com o barulho; outros acham que a badalação anima a vizinhança

Os prazeres e os problemas do dia-a-dia dos moradores de Jurerê Internacional

uando o bairro estiver no auge da badalação, recebendo o maior flu-xo de turistas da tempo-rada na semana entre o

Natal e o Réveillon, o médico João Francisco Mussnich, 63, estará ter-minando de arrumar as malas para viajar, como tem feito nos últimos anos. Morador de Jurerê há 14 anos e dono de um sobrado de frente para o mar a 30 metros do Restaurante Taikô, ele diz que é impossível ficar ali nos dias de agito, e prefere sair de casa para não se aborrecer.

É tarde de sexta-feira, e João Francisco revolve com cuidado a terra do jardim de seu terraço. Do alto de sua casa, observa outras mãos cuidadosas, que preparam o Taikô para mais uma noite de festa. Cortinas alaranja-das são recoloca-das, bebida e co-mida preparadas e um caminhão che-ga trazendo várias caixas de som que estarão a toda dali a algumas horas. Ele assiste a tudo resignado. Avisado pela repor-tagem que acontecerá um show ali logo mais, ele conta que acompa-nha a programação do restaurante e que à noite vai ao cinema fugir da badalação do seu quintal.

O médico é um dos muitos mora-dores que escolheram Jurerê Inter-nacional pela tranqüilidade e quali-

dade de vida e que hoje se vêem, em algumas épocas do ano, dentro do beach point mais badalado do litoral catarinense, talvez até do li-toral brasileiro.

Florianópolis deve receber quase 800 mil turistas em 2008, segundo projeção da Santa Catarina Turis-mo S/A (Santur), empresa ligada à Secretaria de Estado do Turismo, Cultura e Esporte. Desses turistas, quem tiver disposição – e dinheiro – para pagar pelo glamour de uma das praias mais requintadas do Bra-sil, irá se hospedar em Jurerê Inter-nacional, no norte da Ilha de Santa Catarina, distante 30 km do centro.

O aluguel de um apartamento simples a 150 metros da praia para até três pessoas sai por R$ 300 a di-ária na alta temporada. Para quem prefere o luxo, uma casa de frente

para o mar com cinco suítes e capacidade para dez pessoas cus-ta R$ 10 mil por dia, com o mí-nimo de 15 dias de aluguel. Para alugar um imó-vel no período de maior procura – depois do Na-

tal e antes do Réveillon – é preciso planejamento, pois as locações são esgotadas com antecedência.

A transformação de Jurerê Inter-nacional no “destino mais valoriza-do do Brasil” aconteceu, sobretudo, a partir da instalação de bares e restaurantes sofisticados na orla. O primeiro foi o restaurante Taikô em 2002, que anuncia em seu site ser “hoje um dos pontos de praia mais

badalados do litoral brasileiro, sen-do comparado aos melhores para-douros de Punta Del Este e Ibiza”. Mas foi com a instalação do El Di-vino Beach em dezembro de 2004, com grande trabalho de marketing, que a praia se consagrou. Mais re-centemente, abriram as portas o Café de La Musique, o Parador P12 – também do grupo El Divino Bra-sil – e a recém inaugurada Pacha Floripa.

Nesses bares e restaurantes da praia há quem beba cerveja ou cho-pe, mas a bebida oficial é a cham-pagne. A garrafa mais barata não sai por menos de R$ 70, e a mais cara quase R$ 2.500. O gerente de um dos bares conta, em tom de con-fissão, que já viu um cliente pagar uma conta de 25 mil reais sozinho com seu cartão de crédito. Tinha comprado várias garrafas de cham-pagne, mas não as tomava – prefe-ria estourar a rolha e jogar a bebida nos amigos, por brincadeira.

A maioria das casas em Jurerê não tem muros nem portões. Às ve-zes, uma cerca faz a separação do terreno com a calçada para evitar que animais entrem na proprieda-de. Nas garagens, todos os modelos de carros importados, de minivans a Ferraris. A segurança patrimo-nial é feita por uma empresa priva-da contratada pela Associação de Proprietários e Moradores de Ju-rerê Internacional (AJIN). Os 550 associados – mais da metade do número de imóveis – contribuem mensalmente com uma taxa para a segurança no valor de R$ 142, e uma para a manutenção das áreas pública s de R$ 65. Os gastos da associação também estão embuti-

dos nesses valores.

AssociaçãoA fundação da AJIN, incentiva-

da pela empreendedora de Jurerê Internacional, a Habitasul, se deu em 1986, quatro anos após o lança-mento das vendas de lotes no bair-ro. Sua função é fazer a mediação entre os associados e as instituições econômicas, sociais, políticas e culturais que compõem a socieda-de para resolver os problemas, vi-

sando melhorar a qualidade de vida do bairro. Um dos mecanismos de divulgação das ações da AJIN é o informativo bimestral chamado Fo-lha de Jurerê, editado pela própria associação. Publicado desde 2000, o informativo tem tiragem média de três mil exemplares, é distribuído gratuitamente e também pode ser lido no site www.ajin.org.br.

A insatisfação dos moradores com a badalação do bairro é um dos temas recorrentes no informativo

Na praia há quem beba cerveja ou chope, mas a bebida oficial é a champagne CONTAS ALTAS: bares e restaurantes do bairro são dos mais caros da ilha

Jéssica Camargo

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Jéssica CamargoMichel Siqueira

Page 15: Quatro, edição 2, de 2008

1�QUATROFlorianópolis, dezembro de 2008 LUXO

da AJIN. O bancário aposentado Antonio Carlos Dainez, gerente da Associação, aponta que esta é uma das questões mais importantes em pauta. Ele ressalta que o crescimen-to do bairro trouxe alguns proble-mas, e que casas noturnas, festa e barulho “não são de interesse da comunidade”. É na mesma direção que aponta a pesquisa encomenda-da pela Habitasul ao Instituto Mapa em 2007 sobre o perfil dos mora-dores do local. De acordo com es-ses dados, dentre as causas que os motivaram a escolher o residencial estão a tranqüilidade (37%), morar na praia (20%), segurança (10%) e organização (9%). Badalação e o agito não parecem ser um fator de atração de moradores.

Existem, no entanto, os que de-fendem esse novo aspecto do bair-ro. A aposentada Maria Goreti, 58, moradora do residencial há nove anos, conta que de sua casa não ouve nenhum barulho e acha que deveria ter mais baladas pelas re-dondezas para “harmonizar os jo-vens e os mais velhos”. Sua amiga, a empresária Cândida Maria, 69, concorda, e diz que acha graça dos jovens enchendo o bairro no verão. “É bom para animar, porque no res-to do tempo é tudo muito sossegado por aqui”, afirma.

Compartilham da mesma opinião aqueles que vêem o potencial lucra-tivo dessa badalação; pessoas que moram no bairro durante a baixa temporada e alugam seus imóveis no verão, e também os que adqui-riram suas propriedades há pouco tempo, já depois do boom de Jure-rê. Na opinião de Antonio Carlos Dainez, “quem é a favor não vive o problema”. Segundo ele, as maiores reclamações vêm dos vizinhos dos estabelecimentos.

A casa de João Francisco fica a pouco mais de 30 metros do Taikô, mas há casas que distam menos de dez metros. O gerente Dainez con-ta ainda que duas casas vizinhas ao El Divino Beach foram postas à venda, porque seus proprietários não suportaram a convivência. “É muito comum o pessoal sair três, quatro horas da manhã, embriagado e acabar fazendo sexo no jardim do cara”, relata.

Entre as principais queixas dos moradores estão perturbação à lei do silêncio, bloqueio do acesso à praia pelos bares, ocupação de es-paço público para fins comerciais, engarrafamentos e outras questões, como bloqueio de garagens, sujeira nas praias e ruas, depredação, des-truição de áreas preservadas como as restingas e o aumento da crimi-nalidade.

Conflito de gerações“Os pais reclamam, os filhos ado-

ram”. A frase é da hostess do Res-taurante Taikô, Ângela Montegui-lhott, 29. O local é um dos points mais agitados do verão. Segundo Ângela, as principais reclamações acontecem no ano-novo e no car-naval quando o Taikô organiza grandes festas, com bebida libera-da e convites para lá de salgados. No réveillon 2008, por exemplo, o convite masculino chegou a ser vendido na hora por R$ 1.300. Em festas como essas, são fechados os acessos à praia ao lado do restau-rante e parte da praia fica de uso restrito dos convidados. Para tanto,

o estabelecimento consegue licen-ças dos órgãos competentes, como a Fundação Municipal do Meio Ambiente (Floram). Para esse ano, a chegada de 2009 no Taikô vai ser ainda mais seletiva. O número de convites deve cair de R$ 1500 para R$ 800. De acordo com Ângela, essa diminuição não tem a ver com as reclamações dos moradores de Jurerê, mas visa a um melhor aten-dimento aos clientes. Os seletos que curtirão a festa regada a champagne Veuve Clicquot devem desembolsar de R$ 550 a R$ 850 pelo convite antecipado.

A casa, que diz receber nos três meses de temporada quase 200 mil pessoas, tem tomado alguns cui-dados em virtude das reclamações dos moradores do bairro. “A gente está mantendo a política da boa vi-zinhança”, reforça a hostess. Para evitar pôr mais lenha na fogueira, o restaurante tem deixado de fazer shows com bandas e privilegiado a contratação de DJs: “A gente já passa para o cliente a questão do problema do som”, explica. Porém nem todos os clientes aceitam essa condição. Alguns deixam de fechar negócio com o restaurante, outros insistem e recebem um convidado indesejado: a polícia mandando baixar o volume. Mesmo em festas com som mecânico, ainda é preci-so saber lidar com a situação. Além de buscar um bom relacionamento com os vizinhos, há outras estra-tégias: “à medida que a hora vai passando, a gente observa, avalia o vento, vai fechando uma janela aqui, outra ali...”.

Barulho na JustiçaTramita na Justiça uma Ação

Civil Pública (ACP) proposta pela AJIN buscando garantia do acesso público e irrestrito ao bal-neário de Jurerê Internacional. Tem sido prática corriqueira dos restaurantes, além do desrespeito à lei do silêncio, o bloqueio das passagens que dão acesso à orla, o fechamento de parte da praia em algumas festas e a colocação de mesas e cadeiras na areia, sendo que essas não podem ser utiliza-das sem consumação.

Na ACP contra a Prefeitura de Florianópolis, União e órgãos go-vernamentais de fiscalização e proteção ambiental – como a Flo-ram e o Instituto de Planejamento Urbano de Florianópolis (IPUF) – a AJIN pede a demolição dos bares e restaurantes que ocupam áreas de uso comum e também a anulação das licenças concedidas para es-ses empreendimentos. A opção por uma ação mais ampla vem depois de algumas tentativas com ações privadas contra alguns dos estabe-lecimentos, mas que não surtiram efeito.

Curiosamente, alguns dos imó-veis que abrigam as baladas de Ju-rerê, como por exemplo, o Taikô, são de propriedade da Habitasul, a empresa que criou Jurerê Interna-cional, a mesma empresa que ven-deu caro o conceito de qualidade de vida a Antonio Carlos, a João Francisco, a Maria Goreti, a Cândi-da Maria...

Procurada diversas vezes pela reportagem, a empresa não se dis-pôs a conceder entrevista antes do fechamento desta edição.

Colaborou Paulo Rocha

“Jurerê é propaganda enganosa”Alheio às baladas e ao sossego

de Jurerê Internacional, Alexsan-dro Barbosa, 33, um dos vigilantes da empresa que faz a segurança do bairro, concorda que no verão as coisas devem piorar. Casado e pai de dois filhos, mora no Ribeirão da Ilha e acorda às 5h da manhã para pegar o primeiro dos três ônibus que toma para chegar ao trabalho, num percurso que dura duas horas. Sob um sol escaldante, ele está de calças compridas, camisa e grava-ta, sentado num toco de madeira embaixo de uma árvore. “A empre-sa quer que eu fique aqui em pé e vestido como um boneco, mas não dá”, reclama Alexsandro, afrou-xando o nó da gravata. Perguntado sobre os riscos do trabalho em Ju-rerê Internacional, responde com bom humor, dizendo que todos os dias quando está indo para debai-xo da árvore, um bando de gaivo-tas tenta atacá-lo. Na volta para a casa, mais duas horas de ônibus, enquanto não começa a tempora-da: “Se agora já não dá tempo nem de ver a novela, no verão eu vou chegar em casa depois da meia-noite, por causa do trânsito”.

Recebe R$ 1 mil por mês, sa-lário que acha justo por não ter feito faculdade. Recém efetivado na empresa, espera ser transfe-rido para um local mais próximo de sua casa: “pode ser no centro,

mas se fosse no sul da Ilha seria melhor, né...”. Nos dois meses em que trabalha em Jurerê atendendo as construções do Il Campanario – polêmico empreendimento da Habitasul – Alexsandro viu ape-nas uma tentativa de furto num automóvel, no estacionamento em frente à árvore em que costuma fi-car. Não saiu dali, só se mostrou para o ladrão com um assobio e chamou a polícia pelo rádio. “Eu não sou doido de ir lá brigar com o bandido. Meu trabalho é proteger a construção”, se explica. O ladrão foi embora depois que viu o vigia.

Outro trabalhador do bairro, Nelson Portes, 48, é zelador do Edifício San Blas, um dos prédios do Jurerê Open Shopping – um centro de compras a céu aberto instalado no bairro – além de tam-bém ser caseiro de uma residên-cia de veraneio a duas quadras do trabalho. Os donos do imóvel são de Curitiba, e costumam vir para o litoral algumas vezes por ano, além de alugar a casa na alta tem-porada.

Ex-mecânico de carros, Nelson morava em Jurerê Tradicional e trabalhava em São José numa ofi-cina autorizada de uma montadora. Tinha que sair às 5h da manhã de casa para chegar a tempo no traba-lho. Com o tempo, cansou de tan-tos ônibus e há quase oito anos foi

trabalhar como zelador, recebendo metade do que ganhava quando era mecânico. Hoje, ganha R$ 1.100 por mês somando os salários de caseiro e zelador. Na temporada, deixa tudo pronto para os patrões da casa onde mora e se muda para Canasvieiras, bairro vizinho a Ju-rerê, onde uma irmã tem um apar-tamento em que fica hospedado. É nesse tempo também que trabalha de domingo a domingo no edifício, pois o fluxo de pessoas aumenta: “Fim do ano isso aqui vira uma bagunça. Tem gente que não vem para descansar, vem para bagunçar mesmo”, desabafa.

Janete Piran, 41, garante que não vai estar lá na temporada. Tra-balha há apenas dois meses como faxineira do Open Shopping, mas fica lá só até o começo de dezem-bro. Mora na Daniela, outro bairro vizinho, e antes trabalhava como empregada doméstica no centro. Recebia mais do que hoje, e tam-bém acha que era mais feliz. “O pessoal aqui é muito mal-educado, e não respeita ninguém. O povo é porco mesmo”, reclama. Ainda não sabe o que vai fazer quando largar o emprego, mas quer sair, nem que seja para ficar em casa, sem fazer nada. “Jurerê Internacional é pro-paganda enganosa”, finaliza.

Jéssica CamargoMichel Siqueira

O aluguel diário de um apartamento simples sai R$ 300; de uma casa de frente para o mar custa R$ 10 mil

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Page 16: Quatro, edição 2, de 2008

16 QUATRO Florianópolis, dezembro de 2008MERCADO DA MORTE

Faz um ano e meio que Andréia perdeu o filho, Dininho. O jovem de 18 anos estava, segundo a mãe, no lugar errado, na

hora errada. Foi assassinado no bair-ro Monte Cristo e hoje está no cemi-tério São Francisco de Assis, o maior de Florianópolis. No dia de Finados, a data de maior movimento do ano, que traz até 10 mil visitantes aos cer-ca de 28 mil túmulos, Andréia levou três velas para Dininho. Protegeu-as da chuva debaixo de um abrigo im-provisado com três tijolos. E ao re-lembrar a morte do filho, fez questão de contar que pretende levá-lo para um lugar melhor.

A primeira opção era enterrar Di-ninho no cemitério São Cristóvão, em Coqueiros, por ser mais perto de sua casa, no bairro vizi-nho Vila Aparecida. Não havia espaço e ela recorreu ao São Francisco de Assis, no Itacorubi, a três ônibus de distância. “Eu queria comprar um terreno aqui, mas também não tinha”, explica a mãe de 34 anos. Já que a família de Andréia não possui um jazigo onde poderia enterrar o fi-lho, Dininho foi para uma gaveta.

Criadas em 1998, as gavetas, ou carneiras, são a principal estratégia para a falta de espaço nos cemitérios de Florianópolis. “Hoje elas são o

nosso carro-chefe”, declara Anízio Fritzen, chefe do Departamento de Serviços Públicos da Prefeitura de Florianópolis. Apenas dois dos 11 cemitérios públicos da cidade ain-da possuem espaço para túmulos. O maior, do Itacorubi, abriga 58.890 pessoas enterradas em 100 mil m² e está saturado há 10 anos. De acordo com o secretário de Urbanismo e Ser-viços Públicos, José Carlos Rauen, a lotação póstuma de Florianópolis está esgotada. “Se não construirmos outro cemitério urgentemente, vamos ter problemas”, admite.

No meio do cemitério, longe da vista de quem passa na rua, estão os seis blocos que enumeram quase 800 gavetas de cimento bruto, sepa-radas em três fileiras. Algumas rece-beram um segundo andar com mais três. Em um dos andares de baixo, rente ao chão de terra, descansa Di-

ninho. Andréia con-

ta que espera o aniversário de quatro anos da morte do filho para tirá-lo de lá. Nem teria outra escolha. As gavetas são destinadas a pessoas caren-

tes, que recebem o auxílio funeral da Prefeitura. Para conseguir a ajuda econômica nos momentos incertos, as famílias devem residir em Floria-nópolis e passar por uma entrevista com assistentes sociais. O auxílio dá direito a translado, velório, urna e uma vaga por quatro anos nas gave-tas cimentadas doadas pela prefei-

tura. O serviço é pago pelas funerá-rias que atendem nos cemitérios da cidade e tem um custo de R$ 560. Quatro anos depois, o cemitério tem o direito de exumar o corpo e de-socupar a gaveta. Se a família não entrar em contato ou não tiver onde colocar os restos mortais, esses vão para o ossuário comum, um espaço subterrâneo sinalizado pela grande cruz amarela vista logo na entrada do cemitério. Segundo o administra-dor, Osmar Ferreira, lá devem estar “umas cinco, seis mil pessoas”, reu-nidas desde a criação do cemitério, em 1925.

Quatro funerárias atuam no mer-cado de Florianópolis, licitadas pela prefeitura até pelo menos 2011. São Jorge, São Pedro, São Joaquim e Santa Catarina trabalham através de um sistema de rodízio e plantão, coordenado pela Central de Óbitos. Criada pela prefeitura em maio de 2008, a central surgiu para atender as famílias em luto. Segundo funcioná-rios do ramo, antes era comum que empresas de municípios próximos como São José ou Biguaçu viessem até a ilha “roubar” os corpos assim que as famílias saíam dos hospitais. As quatro empresas trabalham no mesmo prédio da Central de Óbitos, em frente à entrada do cemitério do Itacorubi, e possuem preços de ur-nas tabelados que variam entre R$ 290 (a sextavada, madeira pinus e interior revestido em samilon) e R$ 3.980 (uma extra-luxo, madeira nobre envernizada e interior de ce-tim almofadado com babado). Cada uma atende uma média de 60 a 80 óbitos por mês. Além desses casos, uma funerária geralmente custeia 15

Cemitérios sem espaçofazem descanso eterno tornar-se artigo de luxo

Cecília CussioliLetícia Arcoverde

Se a família não contatar o cemitério, o corpo vai para o ossuário comum

O maior cemitério da cidade esgotou sua lotação há uma década

Nas gavetas pagas pela prefeitura o corpo é tirado depois de quatro anos. Quem pode garante um terreno em até 25 vezes

“Todo mundo ganha com a tanatopraxia”, a arte de operar mortosO escritório de Marcus Vinícius é grande e decorado com símbolos religiosos. Beirando os 30 anos, sentado atrás de uma mesa com papéis, calculadora e tabela de pre-ços, cumpria plantão na tarde de uma sexta-feira de outubro. De ca-misa social escura, calça azul e sa-pato preto, não tem problemas em explicar como funciona o negócio em que trabalha.

Marcus não é o chefe, mas sua função tem nome pomposo. Ele se apresenta como técnico em tanato-praxia, ou tanatopraxista. É isso o que faz sempre que sai de trás dos papéis e vai até o laboratório nos fundos do escritório. Segundo o próprio, seu trabalho não é muito diferente do que um médico faz em um paciente. “Só que o paciente já está morto”, completa.

Ele é um dos quatro funcioná-rios da funerária Santa Catarina, onde divide a sede com 20 urnas de todos os tamanhos, modelos e preços. A loja fica na frente do Ce-mitério São Francisco de Assis, no Itacorubi, mas Marcus diz que só subiu lá uma vez.

“Para mim é um serviço co-mum”, responde, quando pergun-tado sobre como é lidar com a mor-te em horário comercial. “Tirando criança”, ele acrescenta. Por ser um momento difícil, Marcus ex-plica que eles tentam deixar tudo o mais simples possível para a famí-lia, o que pode acabar em prejuízo na forma de constantes cheques sem fundo. “São cerca de três a dez por mês”, conta. “E sempre os mais caros.”

Na rotina de um tanatopraxista,

a capacidade de prolongar o veló-rio de cinco para até 72 horas com o processo de higienização que, segundo Marcus, evita vazamento de líquidos. Vai desde a aspiração simples (R$ 400) até o embalsa-mento, que pode chegar a R$ 1.800 e é obrigatório se o morto for trans-portado de avião. “O mais difícil e caro é corpo necropsiado”, explica Marcus, falando sobre aqueles que vêm do Instituto Médico Legal, ge-ralmente óbitos causados por vio-lência. “Eles entregam aberto, nós que temos que fechar.”

Se ele explica com cuidado o funcionamento da empresa, sua animação surge mesmo é na hora de contar sobre sua formação. Mar-cus se orgulha de ter feito o melhor curso de tanatopraxia do Brasil, em Belo Horizonte (MG). Segun-

do ele, o curso oferecido em São Paulo só serve para você sair com o certificado na mão. O de Curiti-ba tem pouco movimento e quase nenhum morto para mexer. “Já no de BH dá muito óbito”, recomen-da. “São uns 20, 30 por dia, dá para aprender muito.”

Oferecido pelo Sindicato das Empresas Funerárias de MG e com certificado emitido pela Faculdade de Ciências Médicas do estado, o curso tem duração de uma sema-na, com 20 horas de teoria e 60 de prática. A descrição do curso indi-ca que o investimento vale a pena e “todo mundo ganha com a tana-topraxia”. A funerária se destaca da concorrência e “o corpo fica limpo, bonito e com a cor natural, dignifi-cando a imagem do ente falecido”.

Letícia Arcoverde

enterros de beneficiados pelo auxí-lio funeral, condição listada na lei que garante a licitação. Quem não consegue o benefício da prefeitu-ra mas não pode pagar muito – ou não encontra espaço para um novo túmulo -, pode comprar o mesmo pacote recebido por carentes, mas ir para uma das 75 gavetas constru-ídas pelas funerárias em um terreno doado pela prefeitura. As três filei-ras de 25 gavetas, que mudam de nome para “carneiras”, são pintadas de amarelo e possuem acabamento em granito. Criadas no ano passado, na última semana de outubro elas ainda tinham 15 vagas, e uma nova construção com 75 novos espaços está prevista ainda para este ano. De acordo com Anízio, antes dos próximos quatro anos será instituído um decreto oferecendo às famílias compradoras das carneiras a oportu-

nidade de evitar o ossuário comum e alugar o espaço, com uma taxa de R$ 60 a cada cinco anos.

A gaveta que Andréia visita não poderá ser alugada nem possui aca-bamento. O nome de Dininho, Aldo-íno, e a data de sua morte estão es-critos a dedo, no cimento que lacrou a tampa. As três velas não demoram para apagar na chuva forte de Fina-dos, apesar da proteção. Mas An-dréia deixou um isqueiro para que a boa vontade de outros visitantes às gavetas mantenham as chamas ace-sas. Ela espera a construção de um novo cemitério para trocar o lugar de Dininho. “Estamos esperando dar quatro anos para arranjar um outro lugar para ele”, conta a mãe, espe-rançosa. “Aí vamos comprar um es-paço para ele no cemitério novo que vão fazer no Cacupé.”

Elaborado há cinco anos, o proje-

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Marcus em seu local de trabalho

Page 17: Quatro, edição 2, de 2008

1�QUATROFlorianópolis, dezembro de 2008 MERCADO DA MORTE

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Único em Santa Catarina, o Crema-tório Vaticano, em Balneário Cam-boriú, oferece uma opção menos convencional às famílias em luto. Por R$ 3.400 – apenas pelo processo de cremação – os parentes não precisam se preocupar em encontrar um espaço nos cemitérios da cidade. Aberto em 2007, o crematório atende de 10 a 15 casos por mês e verifica que, apesar do serviço ser mais caro que um se-pultamento comum, a procura vem aumentando. “Em longo prazo, é um investimento com menos gastos do que manter um jazigo”, avalia Ronal-do Souza, supervisor de atendimento, referindo-se às taxas de manutenção dos cemitérios particulares.

Além do serviço de pronto atendi-mento, a empresa oferece um plano preventivo que o cliente adquire ainda em vida, em até 36 parcelas de R$ 122. O pacote inclui, além da cremação, uma homenagem de despedida com música, vídeos, revoada de pombas brancas e chuvas de pétalas de rosa. “Tudo o que uma grande celebração tem direito”, garante Ronaldo. Caso a família deseje deixar o evento “ainda mais inesquecível”, o Vaticano tem a disposição dois serviços especiais: transformar as cinzas em diamantes ou mandá-las para o espaço. No pri-meiro caso, cobra-se até 9 mil reais

por meio quilate produzidos na Suíça; o segundo – que nunca foi adquirido – é preciso esperar por carregamentos espaciais da Nasa.

Caso o pacote tradicional seja o suficiente, o ritual será o mesmo que um funeral comum. A diferença é que após o velório, o morto é levado até o crematório e não ao cemitério. A inci-neração é feita em 24 horas e as cin-zas são devolvidas aos parentes em pequenas urnas. Diferente de outros crematórios no país, Ronaldo garante que cada corpo é queimado separa-damente com o caixão e os pertences do falecido - com exceção de metais pesados.

Apesar de poucos casos em Santa Catarina, o número de cremações está em ascensão no Brasil. Em dez anos houve um acréscimo de 48% dos fu-nerais e, em algumas cidades, chega a representar metade deles. O Crema-tório Vaticano espera, nos próximos dois anos, alcançar 30 cremações por mês – média alcançada pela sede de Curitiba. Ronaldo acredita que a prin-cipal barreira para isso são os aspec-tos culturais e religiosos. “As crenças, principalmente a católica, ainda são muito apegadas ao material, ao se-pultamento. Mas as questões práticas tendem a falar mais alto”.

Cecília Cussioli

As velas de Andréia e túmulos do Jardim da Paz

to da Necrópole Florianó-polis prevê um cemitério vertical de quatro prédios com espaço para 70 mil corpos, construído numa parceria da prefeitura com a iniciativa privada. Apro-vado pela Câmara de Ve-readores, o projeto ainda não tem orçamento nem data para o processo de licitação, mas o secretário José Carlos Rauen espe-ra iniciar os trabalhos em agosto do ano que vem. Até lá, as famílias em luto precisam pensar com ante-cedência e ter dinheiro no bolso.

Descanso em paz Há 13 km dos túmulos apertados do Itacorubi, 50 mil m² de grama apa-rada hospedam entes fa-lecidos de alguns poucos habitantes de Florianópo-lis. Criado há 38 anos, o Cemitério Parque Jardim da Paz é, de acordo com o versículo da Bíblia que decora a placa de boas vindas, uma espécie de “paraíso na terra”. Poucos minutos de ônibus o separam do vizinho lotado, mas como o acesso foi projetado para carros, pedestres precisam se arris-car no acostamento para chegar ao ambiente agradável, espaçoso e pa-dronizado. Longe do centro urbano, no caminho para as praias, o condo-mínio é mantido a taxas anuais que equivalem a um salário mínimo. Todo o verde, ar limpo, e silêncio do local causam um sentimento híbrido de paz e solidão.

A média de 15 sepultamentos rea-lizados por mês segue uma ordem es-tética: sepulturas subterrâneas, ape-nas com a placa de mármore branco aparente e uma pequena floreira re-tangular. À escolha da família ficam as flores, as letras e o acabamento da lápide – que pode ser de placa de aço ou vidro. Um enterro aqui não é

atrapalhado pela chuva, já que a ad-ministração monta um toldo próximo ao túmulo e fornece sombrinhas pre-tas com a marca do lugar.

O maior cemitério particular da cidade é também o que mais oferece vagas. Dos dez mil terrenos, ape-nas metade está vendida. O restan-te pode ser adquirido em formas de pagamento variadas, que Ivo Fontes Filho, gerente operacional do Jar-dim da Paz, garante adequar às con-dições de cada cliente. “Oferecemos dois tipos de jazigo com espaço para dois sepultamentos; ou lateral, como uma cama de casal (R$ 8.500), ou sobreposto (R$ 5.700)”, algo como um beliche. Os valores podem ser parcelados em até seis vezes, com juros. Mas o cliente só poderá usu-fruir do terreno quando todas as par-celas estiverem quitadas.

No pacote oferecido pela funerária exclusiva do Jardim da Paz inclui-se translado, urna – que podem chegar a

R$ 6.600 – taxas de velório e sepultamento. Ao todo, um espaço de paz no “paraíso” custa no mínimo R$ 9 mil, além do custo de manutenção anual - que caso a família atrase mais de três parcelas, o cemitério retoma o terre-no e transfere o corpo para um ossuário recém-constru-ído, com pequenas gavetas individuais cobertas pelo mesmo mármore branco do gramado. “Fazemos de tudo para não chegar ao extremo: renegociamos ao máximo ou oferecemos as gavetas identi-ficadas do ossuário sob uma taxa de 40% do salário míni-mo”, garante Ivo.

A solução encontrada pelo Jardim da Paz para am-pliar a clientela já trouxe re-torno com 10% dos terrenos vendidos. O outdoor visto por quem passa na frente do cemitério, na rodovia SC-401, anuncia: um plano pre-vidente de 25 leves parcelas

de R$ 228. Assim, caso alguém tenha receio de ficar desalojado quando a hora chegar, já pode pensar com an-tecedência. Foi o que fez Maria Lui-za há 26 anos. Com o pai doente no hospital, a psicóloga, até então com 29 anos, preferiu adquirir um terre-no antes que “tivéssemos que resol-ver em cima da hora, e não saísse do jeito que a família gostaria”. Pouco tempo depois, quando o pai faleceu, a mãe de Maria Luiza resolveu fazer o mesmo. Hoje a família possui dois jazigos vizinhos com espaço para quatro pessoas, onde está enterrado apenas o patriarca da família. Soma-das todas as taxas anuais pagas para manter o jazigo vazio no cemitério desde a morte de seu pai, a psicóloga já desembolsou mais de R$ 10 mil – quantia que lhe permitiria adquirir um novo espaço. Mas disso Maria Luiza não se arrepende. “Pago pelo único espaço que tenho certeza que um dia irei usar”.

Crematório oferece opção mais “prática e acessível”

Sofia

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Cecília Cussioli

Page 18: Quatro, edição 2, de 2008

18 QUATRO Florianópolis, dezembro de 2008

Estréia da TV digital traz dúvidasA chegada do sinal aberto a Florianópolis mostra que a população não está preparada

Vendas de blu-rays ainda não decolaram devido ao alto preço e desconhecimento

O sinal aberto de tele-visão digital chega a Florianópolis an-tes da data prevista no cronograma do

Ministério das Comunicações. De acordo com o planejamento do Sis-tema Brasileiro de Televisão Digital (SBTVD), a primeira transmissão aconteceria apenas em janeiro de 2009, mas a estréia ocorreu já em dezembro. O sinal digital traz para a ilha não só tecnologia, mas princi-palmente muitas dúvidas e um cená-rio semelhante ao das cidades onde ele já estava em vigor: a população não está bem informada a respeito do que é e como vai funcionar, e muito menos preparada para se adaptar a essa nova tecnologia.

A única emissora que já deu início às transmissões em Florianópolis foi a RBS – afiliada da Rede Globo na região Sul. Em um primeiro momen-to, a programação transmitida digi-talmente será a da filial Rede Globo do Rio de Janeiro, incluindo nove-las, shows e filmes. As produções em telejornalismo serão as últimas a incorporar a tecnologia digital. Aos poucos, produções locais serão gra-vadas em alta definição.

Outras emissoras ainda devem

passar por aprovação para começa-rem a transmitir digitalmente. A TV Barriga Verde, por exemplo, repre-sentante da Rede Bandeirantes em Florianópolis, recebeu consignação do Ministério das Comunicações em novembro. “A partir daí, vamos enviar um projeto para o Ministério e para a Anatel (Agência Nacional de Telecomunicações), que devem responder em até 6 meses”, afirma Renato Frasetto, coordenador dos projetos para TV Digital da emis-sora.

Leandro Oliveira Santos, 32 anos, morador do bairro Monte Cristo - lo-calizado na parte continental de Flo-rianópolis, que também vai receber o sinal digital – tem acesso apenas à programação da TV aberta. Ele ou-viu falar sobre a TV Digital através de amigos e na própria televisão, em um telejornal. Entendeu que com a novidade a imagem de seu televisor iria melhorar. “Tenho muitos chu-viscos na TV lá de casa. Nem parece que moro na capital”. Leandro esta-va certo. Com a tecnologia digital, a qualidade da imagem é superior e sem chuviscos, e o som é igual ao de uma gravação em CD. “Assim como o vídeo cassete era bom e o DVD é melhor, ou no caso do celular, que foi diminuindo de tamanho e de pre-ço, acho que com a TV Digital deve ser assim também”, diz Santos.

Tendo certo dia visto no folheto

de uma loja o conversor de TV Di-gital (mais conhecido como set-top box), Leandro ficou curioso sobre como funcionava. O aparelho trans-forma o sinal digital que chega da emissora em um sinal que o televi-sor comum consiga processar. Ligou para a loja e lhe disseram que tinham dois modelos à venda: um que cus-tava cerca de R$ 500 e outro de R$ 900. Mas que por enquanto apenas a RBS iria transmitir digitalmente, o que fez Leandro perder seu inte-resse. Ele entendeu que o conversor disponibilizaria mais canais, como

se fosse uma forma de acessar a pro-gramação de redes pagas.

Interpretações equivocadas e dú-vidas como as de Leandro são muito comuns. André Pereira, vendedor de uma loja de eletrodomésticos no centro de Florianópolis, conta que todo dia em média 10 pessoas perguntam, só para ele, sobre o apa-relho conversor. “Algumas pessoas acham que com o início da TV Di-gital elas são obrigadas a comprar o conversor ou vão ficar sem nada na televisão”, relata Pereira. Apesar do interesse e da curiosidade do consu-

uando chegou em casa, o bancário Pe-dro Paulo Martins, 42 anos, ligou o aparelho de DVD que fica na

sala de estar e introduziu o disco que acabara de comprar em uma loja de um Shopping Center de Flo-rianópolis. Era um show de Bruce Springsteen, um de seus cantores prediletos, ao vivo em Dublin. Pe-dro Paulo estranhou o preço do pro-duto, que ultrapassava os R$ 100, e a embalagem azul e menor que as de costume. Comprou do mesmo jeito, não encontrando um mais barato. A surpresa maior veio quando o apa-relho não reproduziu o disco recém-comprado. O bancário telefonou para a loja, relatando o problema, e apenas depois de descrever para a atendente o produto foi que des-cobriu que não havia comprado um DVD, e sim um tal de blu-ray.

Pedro Paulo não é um caso iso-lado. A grande maioria da popula-ção ainda não conhece a mais nova tecnologia em discos com imagem de alta definição, som cristalino e alta capacidade de armazenamento de dados. No blu-ray, disco de 12 centímetros de diâmetro, igual a um cd comum, a imagem é formada

por 1.080 linhas de resolução, seis vezes mais nítida que a do DVD. “Há maior sensação de profundida-de, cores mais vivas e sensação de realismo”, comenta André Pasetto, vendedor. O som deste, que preten-de ser o sucessor do DVD, é três vezes mais claro e potente. A maior capacidade de armazenamento está relacionada com o reduzido com-primento da onda que compõe o laser óptico do disco, que permite a rmazenamen-to de até cinco vezes maior. A cor desse laser, azul, é o que dá o nome ao novo formato (o “e” de blue foi extraído do nome em vir-tude de registro da marca em al-guns países).

O blu-ray é uma novidade cara para o bolso do cidadão, principalmente porque, para ser utilizado, é necessário que se tenha um aparelho reprodutor específico (o disco também toca no videogame Playstation 3). Este custa a partir de R$ 1.499. Também é importante uma televisão de alta resolução, para que as mudanças de imagem e som sejam justificadas. O preço do disco também é elevado, comparado com o DVD. Enquanto

se podem encontrar DVDs de filmes por R$ 12,99, é difícil encontrar um filme blu-ray por menos de R$ 79. “Esse preço é alto porque o formato é novo e poucas pessoas conhecem o blu-ray”, afirma Pasetto.

A loja em que Pasetto trabalha, a mesma em que Pedro Paulo comprou por engano o blu-ray do Springste-en, é um dos poucos pontos de ven-da do novo formato em Florianópo-lis. Enquanto se as vendas de DVDs

ultrapassam os 100 exemplares por semana, ape-nas dois blu-rays são vendidos, em média, no mesmo período. Este nú-mero, à primeira vista baixo, é con-siderado pela loja satisfatório, uma vez que o novo formato ainda é

pouco conhecido, e é reduzido o número de pessoas que já aderiram à nova tecnologia. “A tendência é crescer a venda deste formato, as pessoas vão aos poucos conhecendo e substituindo o DVD pelo blu-ray. Mas ainda vai demorar muito para as vendas ficarem parecidas”, afir-ma Andréa Flores, gerente da loja. Porém, a vendedora Carina Araújo, também responsável pelo setor de CDs, DVDs e blu-ray, afirma que

as pessoas estão curiosas para ver como funciona o disco que vem “dentro destas caixinhas azuis, me-nores”.

Um retrato do estágio embrioná-rio em que os blu-rays se encontram no mercado é que eles nem mesmo estão disponíveis na maioria das locadoras de vídeos da capital ca-tarinense. Emílio Polatti, gerente de uma videolocadora do centro da cidade afirma que o custo seria mui-to alto para uma clientela bastante específica e reduzida. “Ainda não trabalhamos com discos de alta de-finição, mas a previsão é que come-cemos a adquirir alguns exemplares a partir do ano que vem”.

Enquanto o novo formato não ganha difusão na sociedade, o DVD ainda é a alternativa economica-mente viável para a população. E sua dinastia irá durar por alguns bons anos. “É improvável que o DVD desapareça por completo nos próximos 20 anos, assim como a fita cassete ainda é bastante utiliza-da. Os três formatos vão coexistir”, comenta Polatti. Neste período de transição, as pessoas vão gerindo as novas tecnologias, e conhecer os novos formatos é fundamental para não ser engolido pela evolução dos eletrônicos, e não ter surpresas desa-gradáveis como a que ocorrou com Pedro Paulo na tentativa de assistir ao show de Bruce Springsteen.

Camila Chiodi

A maioria das dúvidas relativas à TV Digital tem origem nos aparelhos e termos técnicos que envolvem essa nova tecnologia. Antes de tudo, o usuário se pergunta o que é preciso fazer para ter acesso ao sinal digi-tal. Para quem assiste à TV aberta, é necessário conectar um conversor à televisão comum, ou comprar um televisor que já venha com o con-versor embutido. É preciso ainda ter uma antena UHF (Freqüência Ultra Alta), já que o sinal analógico fun-ciona com antenas VHF (Freqüên-cia Muito Alta).

Um dos benefícios que a televi-são digital pode oferecer é a interati-vidade. Pelo próprio controle remo-to, o telespectador, agora chamado de usuário, pode enviar perguntas e vídeos, participar de votações e até mesmo fazer compras e acessar ser-viços de banco on-line.

Para que isso aconteça é neces-sário que o Ginga - middleware (es-pécie de programa de computador) do SBTVD – esteja pronto, mas por enquanto os envolvidos com o seu desenvolvimento lidam com pro-blemas de direitos autorais. Alguns dizem que em maio de 2009 os pri-meiros conversores com o programa estarão prontos para o mercado. Ou-tros prometem a chegada para daqui a um ano. As incertezas continuam sendo a marca TV Digital.

Camila Chiodi

Dúvidas continuame usuários ainda não têm interatividade

“Estão todos curiosos para ver como funciona o disco destas caixinhas azuis”

midor, na loja em que ele trabalha, até a metade de novembro nenhum conversor havia sido vendido. A si-tuação é parecida nas demais lojas do centro de Florianópolis que dis-ponibilizam o produto. O preço de um conversor pode variar de R$ 300 a mil reais.

Para 2009, com a extensão do si-nal no país a previsão é de aumen-to nas vendas de conversores. Os principais compradores desses apa-relhos deverão ser os telespectado-res das classes C e D, que assistem à TV aberta e eventualmente terão que se adaptar à tecnologia digital. As classes A e B, além de não serem muito populosas, em muitos casos têm acesso ao serviço digital pelas operadoras de TV a cabo. Segundo o Fórum Brasileiro de TV Digital, até o final de 2008 o sinal digital das redes abertas estava ao alcance de 40 milhões de usuários, mas apenas cerca de 650 mil (1,6 %) havia se adaptado ao sistema.

A transição da televisão analógi-ca para a digital no Brasil começou em dezembro de 2007, com a es-tréia na cidade de São Paulo, e deve terminar em 2016, quando a trans-missão analógica será interrompi-da. Depois de São Paulo o sinal já chegou também a Rio de Janeiro, Belo Horizonte, Goiânia, Curitiba, Porto Alegre, Salvador, Campinas e agora Florianópolis.

Televisores com o conversor digital em loja do centro de Florianópolis

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Gustavo Naspolini

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TECNOLOGIA

Page 19: Quatro, edição 2, de 2008

1�QUATROFlorianópolis, dezembro de 2008

Na farofa, proteína de soja e azeite de oli-va. No ovo, feito na chapa, uma pequena dose de óleo vegetal

puro. O mesmo sabor e a mesma aparência, a diferença está nos in-gredientes e no modo de preparo: nada de gordura hidrogenada ou margarina, os principais disfarces da gordura trans.

A dona da farofa, do ovo frito e de muitos outros alimentos libertos da trans é a empreendedora Vânia For-nasari, proprietária do restaurante Le Due Regine em Florianópolis que, em parceria com o Laboratório de Técnicas Dietéticas da Universidade Fe-deral de Santa Catarina (UFSC), tornou-se o primeiro restaurante sem gordura trans do Brasil.

Criada em laboratório a partir do século XX, a trans tem origem em um processo chamado hidrogena-ção, que transforma o óleo vegetal - líquido - em gordura vegetal - só-lida - e permite deixar os alimen-tos macios e mais duráveis, além de ter sabor neutro e baixo custo, o que explica sua forte presença nos produtos industrializados. No entanto, não possui valor nutritivo e vem sendo associada a doenças cardiovasculares, obesidade, cân-cer, preocupando profissionais da saúde que a consideram o veneno dos tempos modernos.

“A gordura trans é uma invenção. Ela é uma gordura em uma forma que não existe na natureza. O or-ganismo não a reconhece como um

alimento que ele possa metabolizar, tratar, aproveitar. A partir de uma determinada quantidade, que é mui-to pequena, ele começa a acumular, e a gordura trans passa a ser tóxica para o organismo”, alerta a nutricio-nista Rossana Proença.

A substância, encontrada em bo-lachas e biscoitos, pipocas de micro-ondas, chocolates, sorvetes, salga-dinhos, folhados, tortas, fast foods, margarinas acumula-se no sangue, no fígado, nos rins, no coração e no tecido adiposo – camada de gordura

da pele – o que provoca alteração da parede de vasos sanguíneos; aumen-ta o colesterol ruim (LDL) e trigli-cerídeos; diminui o colesterol bom (HDL) e aumenta risco de câncer colorretal, de próstata, de mama e de útero. Além disso, passa pelo leite materno ou pela placenta, o que pre-judica o desenvolvimento do bebê.

Criando e testando receitas, alu-nos e professores do curso de Nutri-ção da UFSC conseguiram realizar uma experiência pioneira: eliminar totalmente a presença da gordura

transaturada dos alimentos do Le Due Regine sem alterar o sabor e a textura. “Essa mudança não foi difí-cil. Pelo contrário, foi super fácil e super natural. Quando a gente viu, já tinha mudado e conseguimos adap-tar todos os pratos que eram servi-dos”, garante Vânia, que possui o restaurante buffet a kilo há quatro anos e meio e recebe cerca de 150 pessoas por dia.

Com a inovação, a clientela au-mentou e a fidelidade dos antigos freqüentadores foi conquistada. “Eles dizem que a alimentação fi-cou mais leve, menos gordurosa, diminuindo aquela sensação de peso após o almoço”.

Falta de conhecimentoMas o fato de Florianópolis ter o

primeiro restaurante sem gordura trans do país não é sinônimo de co-nhecimento e preocupação da popu-lação e dos proprietários de restau-rantes sobre o assunto. Mesmo com a recomendação da Organização Mun-dial da Saúde para eliminar a subs-tância da alimentação, muitos ainda ignoram a definição de gordura tran-saturada e seus malefícios. Heloísa Veronesi, empresária, almoça todos dias em restaurantes a kilo e admite que até pouco tempo nunca se pre-ocupou com o assunto. “Em virtude do sobrepeso, estou mudando meus hábitos alimentares, mas confesso que tenho pouco conhecimento sobre esse tipo de gordura”, conta.

A cozinheira Fátima do Santos, sem saber o que é a substância e onde ela se encontra, diz que usa muita gordura hidrogenada nas so-bremesas, margarina e caldos pron-tos nos pratos que prepara para o

restaurante onde trabalha há cinco anos e duvida: “Farofa sem marga-rina, não é farofa, deve ter um gosto diferente”.

Djuliana Corsi, estudante de Nu-trição e colaboradora do projeto do Le Due Regine, ensina: “Nós substi-tuímos os temperos prontos, a mar-garina presente em molho branco, em farofa. Em todos esses produtos, substituímos as massas utilizando óleo e não margarina. Então, tem como fazer”.

LegislaçãoA ciência está ajudando a melho-

rar a qualidade de vida das pessoas, falta agora uma legislação para dar respaldo aos estudos e auxiliar os consumidores.

Até o momento, o que há é uma resolução (veja o box) que tornou obrigatória a rotulagem nutricional com os valores de gordura trans das porções de alimentos.

No Congresso Nacional e no Ministério da Saúde algumas dis-cussões estão sendo desenvol-vidas. Há cinco projetos de lei exclusivos sobre o assunto com di-ferentes propostas: uma delas é a publicidade explicativa para a po-pulação sobre a substância, e outra é a proibição da industrialização e comercialização desse tipo de gor-dura em todo o território nacional, como já acontece na Dinamarca e na Califórnia.

“Só a informação não muda o comportamento. Agora, sem a infor-mação, a mudança de comportamen-to não vai existir. Não é só alarmar as pessoas com relação à gordura trans. É mostrar que existe um ca-minho”, finaliza Rossana Proença.

A nova fobia da alimentaçãoMayara Schmidt Vieira

Depois do colesterol e da gordura saturada, o alvo agora é a transaturada

Mayara Vieira

Restaurante Le Due Regine em Florianópolis: há um ano adaptou seu cardápio e aboliu completamente a gordura trans dos alimentos sem alterar sabor e textura

A obrigatoriedade de informar na embalagem do produto a quan-tidade de gordura trans contida numa porção considerada normal para uma pessoa, em vigor desde agosto de 2006, foi uma inicia-tiva da Agência Nacional de Vi-gilância Sanitária (Anvisa) para proteger o consumidor. “A medi-da é importante para brecar o rit-mo de crescimento de obesos no país e tem como objetivo permitir que as pessoas possam controlar melhor o consumo desse tipo de gordura”, explica Djuliana.

De acordo com essa portaria (n. 360, dezembro de 2003), os rótulos devem conter informa-ções sobre o valor energético de carboidratos, proteínas, gorduras totais, gorduras saturadas, gordu-ras trans e fibra alimentar.

Atenção: Nos rótulos dos pro-dutos, pode acontecer da tabela nutricional informar que tem

Atenção aos rótulos

Trans nos rótulos desde 2006

zero de trans e existir gordura hi-drogenada na lista de ingredien-tes. Isso significa que o produto tem menos de 0,2 grama do in-grediente por porção, quantidade insignificante, segundo a Anvisa. E, portanto, o fabricante está au-torizado a informar no rótulo que seu produto é livre de trans.

SAÚDE

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20 QUATRO Florianópolis, dezembro de 2008

Angieli Maros

É domingo. Numa barca parada sobre as águas da Lagoa da Concei-ção, em Florianópolis, 50 pessoas, a maioria

delas ainda crianças, dividem o es-paço mergulhadas num clima de magia. Nesse caso, a barca não é um simples meio de transporte para passeio ou trabalho: é a Barca dos Livros, que há quase dois anos apro-xima a literatura dos moradores da Costa da Lagoa, bairro que contorna a parte norte da Lagoa da Conceição.

Inaugurada em fevereiro de 2007 por iniciativa da Associação Aman-tes da Leitura, a biblioteca Barca dos Livros é um projeto coordenado por Tânia Piacentini, doutora em edu-cação pela Universidade de Campi-nas (UNICAMP) e que trabalha como avaliadora da Fundação Na-cional do Livro Infantil e Juvenil (FNLIJ). Mais do que incrementar a formação cul-tural do local por onde passa, a bi-blioteca móvel tem como meta facilitar a criação do hábito de lei-tura em pessoas de todas as ida-des e principalmente incentivar a formação de novos leitores, como explica a bibliotecária Elizabeth Cardoso Fernandes. Além de contar histórias, o projeto também realiza outras atividades culturais, como saraus, noites literárias, teatros, debates sobre ciência e cultura e empréstimos de livros para os mo-radores da região de Florianópolis.

Nos últimos dez anos, iniciati-vas como a Barca dos Livros têm se espalhado por todo o país. Não

é para menos: o índice de leitura no Brasil é de 4,7 livros por habi-tante ao ano – longe de ser um dos melhores do mundo – segundo re-vela a pesquisa Retratos da Leitura no Brasil, divulgada pelo Instituto Pró-Livro (IPL) em maio de 2008. A pesquisa, que ouviu 172.731.959 brasileiros, o equivalente a 92% de toda a população, mostrou também que 45% dos estudados não têm o hábito de ler. Apesar de esse nú-mero ainda ser pouco considerável, brasileiros ainda lêem mais que ar-gentinos, cuja média de livros por ano é de 3,2; e mexicanos, que lêem 2,9 livros por ano. No entanto, en-tre dados, estatísticas e indicações, uma resposta ainda não se confi-gurou: por que se lê pouco aqui?

Num país como o Brasil, onde as desigualdades são evidentes e a evolução cultural ainda caminha a passos lentos, é fácil perceber que a deficiência no processo de edu-

cação – essencial na formação de leitores – é um dos motivos que leva o brasileiro a se manter afas-tado dos livros. De acordo com Nilcéa Lemos Pe-landré, professora e pesquisadora do Programa de Pós-Graduação em

Educação da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), a falta de recursos nas escolas do país dificul-ta o trabalho de alfabetização. “Os professores são muito importantes na formação de leitores, principal-mente para as crianças cujo único local de aprendizado de leitura é a escola, mas eles também encontram dificuldades de diferentes ordens. Uma delas é a de nem sempre dispo-rem de bons materiais de leitura nas escolas”, relata Nilcéa, para quem a falta de conhecimento dos pro-fessores também é uma das causas

das distorções no ensino da leitura.Segundo a professora, outro pro-

blema que bloqueia a disseminação do hábito de ler está inserido nos-sa cultura. “Na formação cultural do povo brasileiro, o hábito de ler não tem merecido lugar de desta-que. Ele sempre foi considerado prática de grupos de prestígio social e econômico. Políticas públicas de leitura são recentes na história da educação brasileira, e, ainda as-sim, não têm atendido ao univer-so da população de baixa renda”.

A leitura é um hábito que deve ser incentivado desde a infância, pois é nessa fase da vida que existe mais facilidade para desenvolver um perfil de leitor. Pelo fato da criança hoje depender inexoravelmente dos meios de comunicação eletrônicos, principalmente a TV, a familiaridade com os livros é ainda mais restrita. Para Gilka Girardello, coordenadora do Ateliê Aurora da UFSC - que que trabalha a relação criança, mídia e imaginação - ao contrário do que se pensa, literatura, TV e internet po-dem ser trabalhadas juntas sem ne-nhum problema. “A gente não pode opor a literatura às mídias eletrô-nicas. Se houver presença de pais, professores e educadores na gestão das crianças com a produção cultu-ral, há possibilidade de que elas as-sistam TV e se interessem por leitu-ra ao mesmo tempo. Não são coisas necessariamente opostas”, explica. Gilka ainda defende a necessidade de trabalhar a leitura de forma cole-tiva. Segundo a educadora, “quanto mais a prática de ler for uma coisa de grupo, mais as crianças vão ter interesse pelos livros, porque embo-ra isso seja uma atividade solitária, de encontro com o texto, também deve ter uma dimensão social”. De acordo com Nilcéa Pelandré, as no-vas tecnologias não devem ser vis-tas como adversárias da leitura nem da aprendizagem, uma vez que elas trazem novos suportes e estimulam as crianças e os adultos a lerem o

que realmente querem, o que torna o exercício de ler mais prazeroso.

Porém, sabemos que não são ape-nas fatores como educação, cultura e tecnologia que influenciam nos ín-dices de leitura. Este também pode variar segundo o poder econômico, o mercado editorial, o porte das ci-dades, as regiões, e até mesmo se-gundo gênero e idade. Conforme a pesquisa divulgada pelo IPL, no Brasil mulheres lêem mais que ho-mens, e crianças e jovens lêem mais que adultos. No entanto, muito mais que interpretar dados sobre a real situação dos brasileiros em relação à leitura, o principal é incentivar.

Nos últimos anos, o governo bra-sileiro tem desenvolvido algumas políticas públicas de estímulo à lei-

No Bras�l, b�bl�otecas vaz�as s�o comuns. Mot�vos como a defic�ênc�a educac�onal e as relações cultura�s s�o alguns dos res�onsáve�s �elo d�stanc�amento entre l�vro e bras�le�ro

“Na formaçãocultural do povobrasileiro, leituranão tem recebidodestaque ”

tura, como o Programa Nacional Bi-blioteca da Escola (PNBE), que foi criado em 1997 com o objetivo de democratizar o acesso de alunos e professores à cultura através da dis-tribuição de acervos formados por obras de referência da literatura. Ou-tro exemplo é o Plano Nacional do Livro e Leitura (PNLL), um conjun-to de projetos, programas, atividades e eventos na área do livro, leitura, literatura e bibliotecas em desenvol-vimento no país, criado em 2005. Em Santa Catarina, o PNLL já doou R$ 68 mil para projetos de crítica e expressão literária, que assim como todos os que estão sendo desenvol-vidos Brasil afora, tem nas mãos – e principalmente nos livros – o grande poder de construir um país melhor.

Projeto Barca dos Livros: cultura para todos os moradores da Lagoa

País feito de homens sem livrosApesar do aumento no índice de leitura, pesquisa mostra que brasileiro lê pouco

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CULTURA

Page 21: Quatro, edição 2, de 2008

21QUATROFlorianópolis, dezembro de 2008

As livrarias ainda são os princi-pais pontos de comercialização de publicações no Brasil, segundo estudo feito pela Fundação Ins-tituto de Pesquisa Econômica da USP (Fipe).

A pesquisa “Produção e Vendas do Setor Editorial Brasileiro”, en-comendada pela Câmara Brasileira de Livro (CBL) e pelo Sindicato Nacional de Escritores de Livros (SNEL), mostra um panorama do mercado editorial, com dados refe-rentes ao número de livros produzi-dos, setores com mais títulos publi-cados e os meios de aquisição.

Em 2007, as livrarias comercia-lizaram 95,5 milhões dos 200 mi-lhões de exemplares vendidos, e es-tão em primeiro lugar nos postos de vendas, seguidas das distribuidoras e do comércio de porta em porta.

No Brasil há 2.600 livrarias, sendo que 66 estão em Santa Cata-rina. “A maioria está concentrada no litoral do estado, enquanto que 85% dos municípios catarinen-ses não têm nenhuma. O mínimo aceitável seria de uma por cidade”, afirma José Vilmar da Silva, pre-sidente da Câmara Catarinense do Livro (CCL).

Com nível de leitura de 2,6 livros por ano - índice baixo comparado ao vizinho Rio Grande do Sul com 5,5 - a presença das livrarias exerce importante função no incentivo à leitura. “Com a defasagem existen-te nas bibliotecas, principalmente crianças e jovens ficam sem alter-nativa para conseguir os livros”, completa Silva. Florianópolis con-ta com seis estabelecimentos sendo “o único município do estado com

um número até maior que o neces-sário”, comenta o presidente da CCL.

Líder de mercado na região Sul, as Livrarias Curitiba, proprietária das Livrarias Catarinense e Porto, é a maior rede de SC com filiais em Joinville, Blumenau e Balne-ário Camboriú. Na capital, com lojas no Centro, Shopping Beira-Mar e bairro Estreito, as Livrarias Catarinense oferecem 60% de seu estoque em livros e o restante em CDs, DVDs, materiais escolares e produtos de papelaria.

Para atrair novos leitores, a livra-ria promove projetos como o “Pas-se Adiante - Corrente de Leitura Li-vraria s Catarinense.” Em diferentes pontos da cidade são espalhados li-vros, novos e de diversos gêneros, que a população, depois de lê-los, pode deixar em outro local públi-co, para que mais pessoas possam fazer o mesmo. Há também o “Clu-be da Descoberta”, em que escolas agendam visitas para conhecer a loja. “Muitos dos alunos, principal-mente de escolas públicas, entram em uma livraria pela primeira vez”, conta Suzi Mara do Amaral, geren-te da Livrarias Catarinense, locali-zada no centro da capital.

Para Rafael Arnecke, gerente da Livraria Vozes, atrair novos leitores depende, em parte, de promoções, participação em feiras ou eventos, mas também da questão do hábito da leitura. “Há pessoas que têm como prioridade comprar um apa-relho eletrônico e não um livro, que ainda é visto como um supérfluo”, finaliza Arnecke.

Gabriela Cabral

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Número de livrarias em SC ainda não é satisfatórioQuer comprar um livro?

Centro Oeste 4%

Nordeste 20%

Distrito Federal 3%

Norte 5%

Sudeste 53%

Sul 15%

Fonte: Diagnóstico Setor Livreiro 2007 - Associação Nacional de Livrarias

Participação das regiões brasileiras na quantidade de estabelecimentos:

Com 2.600 unidades distríbuidas irregularmente, as livrarias são o principal meio de aquisição de títulos no país

Livrarias Nobel: maior rede do Brasil, com 194 lojas distribuídas por 110 cidades, 23 estados e em países como Espanha, Portugal, Angola e México

Livrarias Saraiva: maior rede em faturamento com receita de R$ 340 milhões no primeiro trimestre de 2007. Conta com 99 lojas em 12 estados e no DF

Com o objetivo de estabelecer um perfil do leitor brasileiro, o Institu-to Pró-Livro divulgou em maio de 2008 a segunda edição da pesquisa Retratos da Leitura no Brasil.

Baseada em projeto desenvolvido pelo Centro Regional de Fomento ao Livro na América Latina e no Caribe (Cerlalc), Organização das Nações Unidas para a Educação, Cultura e Saúde (Unesco) e pela Or-ganização dos Estados Íbero-ameri-canos (OEI), o estudo mostra vários aspectos da leitura no país. Um dos destaques é o aumento do nível de leitura, de 1,6 livros/ano para 4,7- posição favorável se comparada a outros países da América do Sul.

Outro ponto a destacar são as maiores influências nos hábitos de leitura. Em 49% dos entrevistados, a figura materna foi citada como a principal incentivadora.

Os não leitores - 77, 1 milhões de brasileiros - alegam não ler por falta de tempo, por não gostarem de ler, porque não têm dinheiro para adqui-rir livros ou mesmo porque não são alfabetizados. Mesmo assim, muitos deles ainda têm como único gênero de leitura a Bíblia.

Hoje, de acordo com o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatítica (IBGE), o número de analfabetos no Brasil é de 14,1 milhões, ou seja, um em cada dez brasileiros com 15 anos ou mais.

Angieli MarosGabriela Cabral Fonte: Pesquisas “Retratos da Leitura no Brasil” (Brasil-2008) e “El espacio iberoamericano del libro (Colômbia-2008)

Nas estantes do país

Leitura pelo mundo

Brasil4,7*

Argentina3,2*

Peru2,2*

Colômbia1,6*

México2,9*

Cuba9*

Portugal10*

Espanha11*

Dados da pesquisa Retratos da Leitura no Brasil mostram o que o brasileiro está lendo**

Veja quais os índices de leitura em algunspaíses latino-americanos e europeus*Média de livros lidos por habitante de cada país em um ano

** Resposta estimulada em que o leitor podia escolher mais de uma opção

Pesquisa descreve as características da leitura no Brasil

Ilustração: Gabriela Cabral - Colaboração: Rogério Moreira Júnior

Revistas-52%Livros-50%

Jornais-48%

Livros indicadospela escola-34%

Textos escolares-30% Histórias em

quadrinhos-22% Textos na internet-20%

Ilustração: Angieli Maros - Colaboração: Rogério Moreira Júnior

CULTURA

Page 22: Quatro, edição 2, de 2008

22 QUATRO Florianópolis, dezembro de 2008EDUCAÇÃO

Vestibular 2009 causa ansiedade e nervosismo em jovens estudantes

“Eu tenho que passar”. “É preci-so estudar muito”.

“Tenho medo de que dê branco na prova”. “Tenho medo de escolher a profis-são errada”. “Será que estou escolhendo certo? Se não estiver, vou ter que voltar pra cá, e não quero voltar pra cá”. “Não quero passar por tudo isso de novo”.

Essas são algumas das frases que a psicóloga Roselene Schutz diz mais escutar no atendimento aos alunos do cursinho pré-vestibular em que trabalha. Lidando com adolescentes e jovens em sua maioria, ela afirma que os alunos encaram a prova do vestibular de forma diferente, cada na sua maneira. “A ansiedade varia de aluno para aluno. Tem aquele que fica nervoso, mas também tem aque-le que fica mais tranqüilo”. Ainda segundo ela, aqueles que ficam mais nervosos são geralmente os que es-tudam mais, porque se sentem mais pressionados por eles mesmos.

Para a psicóloga Dulce Helena Penna Soares, que desenvolveu o trabalho “Vestibular: Fatores Ge-radores de Ansiedade na Cena da Prova”, dentre os motivos levanta-dos como geradores de ansiedade, o medo da reprovação, a excessiva quantidade de matérias para estudar e o elevado número de candidatos por vaga são os mais indicados pe-los vestibulandos”. O principal fator que motiva a ansiedade, no entanto, seria “o medo da reprovação e a de-cepção que podem causar a seus fa-miliares, no caso de fracassarem.

E o medo de fracassar não é à toa. Este ano, 11.837 pessoas fize-ram a primeira etapa do vestibular da Universidade do Estado de Santa Catarina, a Udesc. A Universidade conta com 42 cursos, os quais so-mam 1.488 vagas para o primeiro semestre letivo, o que resulta em 7,95 candidatos para cada vaga. No vestibular da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), este índi-ce foi de 6,75 candidatos para cada vaga, disponíveis nos 70 cursos da instituição. A UFSC ofereceu 2.544 vagas para os alunos no 1º semestre do ano letivo, e 2027 vagas para o segundo semestre.

O curso mais concorrido do Esta-do é medicina, na UFSC, cuja rela-ção candidato/vaga foi de 42,95 no vestibular 2009. Annelise de Olivei-ra Renzetti, de 19 anos, é uma das estudantes que fez as provas. An-nelise já tentou medicina três vezes

– quando cursava o terceirão, ano passado e este ano. No vestibular 2008, o último candidato que entrou no curso fez 81.04 pontos, enquanto Annelise fez 69, dez a mais do que tinha atingido no ano anterior. Mas ainda achou pou-co. “Para medi-cina fiquei muito longe”. Ela atribui seu desempenho à ansiedade que sentiu no primei-ro dia de exames. “Não terminei a prova, me deu ta-quicardia, quase desmaiei, fiquei branca, branca... No segundo dia eu não parava de chorar durante o aulão [revisão fei-ta pelos cursinhos pré-vestibulares] e cheguei para a prova com o olho inchado.” Após os dois primeiros dias, Annelise conta ter ficado mais tranqüila porque não via mais possi-bilidade de passar e não havia mais o que fazer. Com esse episódio, ela começou a ir ao psiquiatra e a tomar um remédio para concentração, mas mudou de médico, e este disse que o remédio era muito forte. Se não pas-sar este ano no vestibular, Annelise já analisa a possibilidade de fazer o curso de medicina em uma universi-dade particular. “É muito sacrifício ter de passar por isso de novo”.

Quem também pensa em cursar uma universidade particular é Caro-lina Gabriel Cardoso, 17 anos. É o primeiro vestibular que faz e não se sente preparada para entrar em uma universidade pública. Carolina conta que se inscreveu para Administração de Empresas na Udesc, Relações In-ternacionais na UFSC e Administra-ção na Unisul. “Eu sei que eu não vou passar [em nenhuma pública], mas eu me inscrevi. Sempre passei de ano com média sente, pegando recupera-ção”. Ela comenta que não se sente nervosa, e acha que isso não é de-vido à sua falta de preparo. “Se eu achasse que ia passar eu também não ia ficar ansiosa. Porque eu pego prova final no colégio e não fico nem um pouco nervosa”. Caro-lina se sente irritada por li-dar com tanta tranqüilida-de com qualquer situação, já que isso faz com que ela não estu-de: “Eu tô ferrada na escola e eu não consigo estudar”.

Diferente de Carolina, Caro-linne Odebretch Dias, de 17 anos, mostra que sua

rotina é bastante estressante. No começo do ano, pensava em fazer medicina e estudava muito. Mas mesmo depois de mudar sua opção para um curso menos concorrido,

ciência e tecnolo-gia agroalimentar, não diminuiu seu ritmo de estudos. “No início do ano sentia bas-tante insegurança, achava que não estava estudando o suficiente, mes-mo com todas as apostilas do cur-sinho”, afirma ela. “Fazer o terceirão mais o cursinho é muito estressan-te. Eu fico até as

11h da noite estudando”. Ela vai de manhã para o colégio, estuda alguns dias à tarde no colégio, outros vai para o cursinho, e chega em casa às 6h da tarde. Então estuda até a hora de dormir. Carolinne fala exaustiva-mente de seus planos, e apesar de dizer não se sentir pressionada por seus pais, ela acredita que não seria justo que pagassem uma faculdade particular. “Fiz escola particular desde pequeninha e ainda ter que pagar uma faculdade, que às vezes nem é tão boa assim, não dá!”. Ca-rolinne fez vestibular no ano passado para ver como era a prova, e disse que ficou “super tranqüila”. Mesmo as-sim, teme que o n e r v o -s i s m o t e n h a a t r a -

palhado seu desempenho neste ano. “Penso em fazer acupuntura”.

Carlos Henrique da Silva, de 20 anos, está no seu terceiro ano de vestibular e, ao contrário de Caro-linne, não se sente despreparado. Se sente ansioso? “Olha, sinceramente, não muito. Ano passado, me senti só no primeiro dia”. Foi quando tentou entrar na UFSC para jornalismo e na Udesc para História. Neste ano, tentou ambos os cursos novamente. Para isso, faz um cursinho pré-vesti-bular de manhã e estuda durante 2h

à noite. À tarde trabalha para ajudar

sua mãe nas despesas de casa. Car-los diz não se sentir ansioso, mas se sente cansado com essa rotina toda. “Ah! Porra! Queria fazer esporte, mas não tá dando tempo”.

Embora também sem muito tem-po para estudar, Matheus do Amaral Ribeiro, de 18 anos, é um desses es-tudantes que se considera tranqüilo. Matheus fez o vestibular da UFSC para o curso de Engenharia de Pro-dução Elétrica através das cotas de estudantes de escola pública. Aluno do terceiro ano do ensino médio do Colégio Aderbal Ramos, estuda à noite e trabalha durante o dia por-

que gosta. Quando entrou no terceiro ano, nem pensava

muito em fazer ves-tibular. Viu que as inscrições estavam abertas e resolveu tentar. Matheus tem matérias apenas do terceiro ano em seu colégio e, por isso, pegou apostilas emprestadas de um amigo. Se não passar este ano, fará o mesmo ano que vem, estuda-rá por conta pró-pria. Mas acre-dita que estará na universida-de em 2009: “Se eu for fazer a prova achando que eu não vou passar, aí é que eu não passo mesmo”.

Luísa Konescki

“A ansiedade varia de aluno para aluno. Tem aquele que fica nervoso, tem aquele que fica mais tranqüilo”

Estudo mostra que o medo de reprovar e de decepcionar os pais caso não passem deixam os vestibulandos mais ansiosos

Apesar de estudar o dia todo, Carolinne ainda tem medo da prova

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Page 23: Quatro, edição 2, de 2008

2�QUATROFlorianópolis, dezembro de 2008 CULTURA

Desenha, olha, apa-ga, refaz, amassa, começa de novo. Rabisca, colore, põe no portfolio, guar-

da na gaveta. Assim é a rotina de um quadrinista num país em que não é comum publicar suas histó-rias se você não for um dos gran-des expoentes do traço, ou pagar do seu próprio bolso. Uma média de 10 publicações nacionais são lançadas no mercado brasileiro por mês, segundo dados da Devir – uma das maiores distribuidoras de quadrinhos por aqui. Nos Esta-dos Unidos, esse número passa de 600, contando apenas a distribui-ção da principal empresa da área, a Diamond.

No ano passado, cerca de 84% das HQs publicadas no Brasil eram estrangeiras. Somente em outubro, 108 histórias entraram no mercado brasileiro, entre americanas, japo-nesas e européias. A pequena pro-dução brasileira não permite ter a mesma imponência frente ao merca-do como, por exemplo, a européia, onde o quadrinho é produzido para todas as faixas etárias e consumido como literatura.

A maré de má sorte, porém, tem dado sinais de mudança. Para Samuel Casal, ilustrador e qua-drinista, a área nunca esteve tão saudável e produtiva. Ele é um dos casos bem-sucedidos. Gaúcho, mora há dez anos em Florianópo-lis, mas através da Internet produz

para o mundo: Alemanha, Argenti-na, França, Bolívia, Espanha e Es-tados Unidos já conheceram seus traços e idéias, sem que saia de casa. “Já desenhei para gente que nunca vi ao vivo”, brinca.

Cinema, prêmios internacionais e a mobilização independente de qua-drinistas de todo o Brasil têm dado visibilidade ao setor. Um desses exemplos é a QuartoMundo, espé-cie de cooperativa on-line através da qual quadrinistas brasileiros tro-cam experiências, álbuns e idéias. Fernanda Chiella é participante da QuartoMundo há dois meses, e ago-ra responsável pela distribuição dos álbuns independentes em Florianó-polis. Fernanda publicou seu álbum In her darkest hours, em outubro pela editora Image/Shadowline.

A produção cinematográfica é outro fator que tem impulsionado o consumo, revertendo o processo: o novo leitor é incentivado a procurar as HQs após conhecer sua versão na “telona”. A linguagem dos dois gê-neros, aliás, é similar: ambos se va-lem das linguagens visual e verbal, enquadramento, seqüências e ilumi-nação. Super-Homem, Batman, Ho-mem-Aranha, Quarteto Fantástico, Sin City, 300, X-Men, Hulk, Cons-tantine, V de Vingança, Motoqueiro Fantasma, Demolidor, e Hellboy são apenas alguns exemplos dos últimos sucessos de adaptação de HQ para longas-metragens. E o enredo de fil-mes e de literatura clássica também alimenta as histórias ilustradas, pro-movendo intertextualidades. Samuel Casal lançou em outubro Prontuário 666, HQ sobre a prisão do persona-gem Zé do Caixão que explica os 40

anos de hiato entre os filmes À Meia-Noite Levarei Sua Alma (1963) e Encarnação do Demônio (2007). Na literatura, a categoria “didático, paradidático e ensino fundamental ou médio” do prêmio Jabuti 2008 foi dos gêmeos Gabriel Bá e Fábio

Moon, pela adaptação do conto O Alienista, de Machado de Assis.

Internacionalmente, o Brasil está bem representado. O Eisner, um dos prêmios mais importantes para qua-drinhos, há dois anos mantém bra-sileiros em seu pódio. Em 2007, foi

a primeira vez em vinte anos que o país ganhou uma das categorias. Os gêmeos Bá e Moon já haviam sido indicados antes, mas foi o traba-lho do gaúcho Rafael Grampá em conjunto com a americana Becky Clooney e o grego Vasilis Lolos que marcou pela primeira vez a pre-sença verde-amarela no pódio. Este ano, foram três prêmios. Grampá e os gêmeos comemoraram juntos: o trio, juntamente com Lolos e Clo-onan ganhou pela antologia 5, uma brincadeira entre amigos de perfilar um ao outro. Para Gabriel Bá, o Eis-ner rendeu o prêmio de melhor mi-nissérie por The Umbrella Academy, e para Fábio Moon, pela HQ on-line Sugarshock!.

A principal característica destes quadrinistas é o trabalho autoral. Nos últimos anos, o gênero se forta-leceu após o amadurecimento de ar-tistas nacionais, mas o mercado bra-sileiro não tem crescido junto, como explica Casal. “Recebemos depois de ter publicado a história. Em paí-ses europeus, pagam até antecipado para você trabalhar. No Brasil ainda não se tem como sobreviver só de quadrinhos”. Como os artistas gos-tam do que fazem, muitos aceitam as condições impostas pelas edito-ras, e trabalham sem garantia de re-torno breve.

Ao contrário do trabalho autoral, HQs de super-heróis são as princi-pais responsáveis pela venda de ál-buns ilustrados. A maior parte dos profissionais, iniciantes ou não, está ou passou pelas grandes empresas, desenhando personagens prontos, sem necessariamente ter desenvol-vido seu traço.

Com nervos de aço, quadrinho autoral disputa seu lugar no mercado

Casal: heavy metal, mariachi e tintaDez minutos passados das sete da noite e o hall do shopping Igua-temi começa a encher. Crianças de colo, casais, estudantes, ado-lescentes, senhores de idade, de-ficientes físicos e nerds ocupam cinqüenta cadeiras dispostas em filas em frente a um palco impro-visado. Restam cerca de 30 pesso-as, encostadas nas escadas rolantes e pilares do shopping. Assim foi a abertura, no dia 30 de outubro, do 1º Florianópolis em Quadrinhos.

Dentre os convidados, Samuel Casal foi o escolhido para repre-sentar o quadrinho autoral. Há 12 anos no mercado, ele já teve suas ilustrações publicadas em revistas nacionais de grande circulação e antologias e livros estrangeiros. Começou aos 17 anos como ilus-trador de um jornal de Caxias do Sul, RS, sua cidade de origem. Em 1998, mudou-se para Floria-nópolis como editor de arte do jornal Diário Catarinense, e, des-de 2002, trabalha exclusivamente como free lancer.

De cabelo raspado, barba com-prida, tatuagens pelos braços e alargadores nas orelhas, Samuel sobe sério no palco. De relance, olha para a filha de quatro meses

Não precisa ser o Super-homemNo Brasil, a carreira de quadrinista autoral é difícil, mas mercado já esteve pior

A relação entre os chamados “qua-drinhos autorais” e alternativos com a web é quase que simbiótica. Sa-muel Casal, autor do álbum Prontu-ário 666, baseado em um período da vida do personagem Zé do Caixão, conta que em 2002 foi “descober-to” na rede. Hoje trabalha através do computador, sem sair de casa, como ilustrador de grandes revistas e jornais brasileiros e estrangeiros. Ele conta também que era costume entre os profissionais enviar “e-mails pesadíssimos” para mostrar trabalhos anexados, que dependen-do da velocidade de conexão talvez nem fossem abertos. Hoje, com um portfolio on-line, basta enviar aos potenciais clientes a linha do seu en-dereço eletrônico.

Se a web serve para os profissio-nais da ilustração e dos quadrinhos inserirem-se no seu nicho de mer-cado, é útil também para os caça-talentos. O desenhista iniciante que tem “brilho” e não tinha onde publi-car pode, de uma hora para a outra, ter seu trabalho reconhecido. Foi o que aconteceu com André Dahmer, autor de Malvados – tirinha de hu-mor ácido e politicamente incorreto, toscamente rabiscada, que agora in-vade grandes jornais e sites brasilei-ros, como o portal G1, o Jornal do Brasil e a Folha de São Paulo.

A tendência foi explicada em A Cauda Longa, relatório de um estudo realizado por Chris Anderson, editor da revista americana Wired. No li-vro, são analisadas as alterações no comportamento dos consumidores a partir da convergência digital. Se-gundo o autor, o comércio eletrônico permite que o custo de manutenção de um produto destinado a um públi-co extremamente específico, como quadrinhos autorais, seja equiva-lente ao de produtos procurados por muitos consumidores – fenômeno extremamente contemporâneo.

Jessé Torres

Para autores, o mundo é o limite

DAHMER: popularidade na web

Samuel Casal, ilustrador desde os 17 anos, atualmente é free lancer

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que está sentada no colo de sua esposa e sorri. Aos 34 anos, 18 de profissão, tem no currículo mais de oito prêmios nacionais. “Desenho a lápis, nanquim, tinta a óleo, grafite, vetorial, tatuagem... qualquer coi-sa, desde que desenhe”. No tempo livre, pratica yôga e toca guitarra na banda WWDiablo, que mistura o estilo mariachi com metal pesado.

A proposta para seu último tra-balho, Prontuário 666, surgiu nos bastidores da gravação do últi-

mo filme de Zé do Caixão, como uma alternativa para preencher visualmente a lacuna na filmogra-fia. Casal adaptou contos sobre o personagem de José Mojica Ma-rins para o roteiro do álbum e em menos de três meses o álbum foi lançado pela Conrad. O traço pe-sado, cheio de contraste, combina com o clima de terror psicológico – como ele mesmo define – das histórias de Mojica.

Flávia Schiochet

Flávia Schiochet

Page 24: Quatro, edição 2, de 2008

24 QUATRO Florianópolis, dezembro de 2008CULTURA

Marcelo Andreguetti

Cinema comsotaque manése destaca na 32ª Mostra de São Paulo

Os do�s filmes, em 35 mm, consegu�ram recursos �ara a filmagem atrav��s do Prêm�o Ed�tal ��nemateca

Reconhecimento de filmes de dois diretores confirma importância do Edital Cinemateca

Ficha TécnicaAOS ESPANHÓIS CONFINANTESDireção e Roteiro: Angelo Clemente SganzerlaFotografia: Edson FattoriMontagem: Tiago dos SantosElenco: Édio Nunes, João Bosco, Gilbas Piva, Marcello Trigo, Raul Ferreira, Sandro MaquelProdutora: ACS Multimídiax85 minutos, 35 mm P&B

DOCE DE COCODireção e Roteiro: Penna FilhoFotografia: Adriano BarbutoMontagem: Tiago dos Santos e Penna FilhoElenco: Antonella Batista, Hélio Cícero, Maria Carolina Vieira, Gil Guzzo, Margarida Baird, Berna Sant´Ana e Renato TurnesProdutora: Penna Filho Produções104 minutos, 35 mm Color

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O cinema catarinen-se parece enfim dar passos largos. Pela primeira vez, dois longa-metragens

produzidos no estado foram selecio-nados para a Mostra Internacional de São Paulo, que em sua 32ª edi-ção, decorrida entre 17 e 31 de outu-bro, exibiu 456 filmes de 75 países em inúmeras salas espalhadas pela megalópole paulistana.

“Doce de Coco”, de Penna Filho, e “Aos Espanhóis Confinantes”, de Angelo Clemente Sganzerla, repre-sentaram a bandeira barriga-verde na Mostra, que é uma das principais vitrines do cinema mundial. Ambas as produções só se concretizaram por incentivo do Prêmio Edital Ci-nemateca Catarinense da Fundação Catarinense de Cultura.

Os diretores reconhecem o refi-namento que um evento como esse proporciona ao currículo do filme. A Mostra é não apenas uma forma de ampliar contatos, mas também uma oportunidade de acesso a obras que ainda não atingiram o mercado. “Há filmes que só a partir dessa visibi-lidade conseguem atrair uma dis-tribuidora”, afirma Penna. Embora já tivesse propostas de distribuição comercial para seu filme, motiva-das pela visibilidade que obteve no FAM (Festival Audiovisual Merco-sul) em Florianópolis, considerou animadora a presença do filme em São Paulo, onde participou da mos-tra Perspectiva Internacional.

Já o filme de Sganzerla, Aos Es-panhóis Confinantes, participou da mostra competitiva Novos Diretores, fato que já considerou um prêmio. “Passar por uma peneira de 1300 filmes, estar entre os 450 exibidos e ainda cair numa mostra com outras seis grandes obras que sintetizam o que há de novo e de qualidade no cinema brasileiro já é uma grande conquista”, comemora Angelo.

30 anos depoisA idéia por trás de Doce de Coco, de acordo com Penna Filho, remete

aos idos de 1973, quando um exi-bidor paulista que se aventurava na co-produção de filmes lhe solicitou um roteiro que contasse a história de Nossa Senhora da Aparecida e seus milagres na região de Aparecida do Norte. “Agnóstico, fiz uma comédia sobre a busca desesperada de romei-ros por milagres, em meio daquele risível ‘milagre econômico’ da dita-dura”, conta Penna, que, claro, não agradou seu proponente. Daí para frente, o projeto foi caminhando as custas do diretor, que finalmente o finalizou em 2005, devidamente adaptado para as possibilidades do edital cinemateca catarinense e da nova realidade cotidiana brasileira.

Para rodar o filme, Penna optou pela película de 35 mm, o que re-presentou um desafio e tanto, pois a quantidade de material à dispo-sição era mínima. “Cinema é um brinquedo caro. Um erro qualquer - foco, luz, ou um diálogo errado - e as perdas seriam consideráveis”. Aí, lembra, entrou em jogo a qualidade do grupo, que realizou um excelen-te trabalho e garantiu um padrão de produção digno de um filme com or-çamento bem superior.

Apesar do recurso escasso, que constitui um obstáculo recorrente no cinema em qualquer região do país, Santa Catarina oferece um quadro um pouco mais animador pra quem vive do Cinema, garante Penna Fi-lho. A firmeza dos realizadores do estado, através da Cinemateca Ca-tarinense, ajuda o cumprimento da lei estadual que criou os editais do Prêmio Cinemateca e do Funcine (Fundo Municipal de Cinema de Florianópolis). “Todos os anos, os cursos de audiovisual das universi-dades locais colocam mais profis-sionais no mercado, e essa política é fundamental para o fomento da produção”. Mas a luta deve conti-nuar, sublinha Penna, já que o atual governo deixou de cumprir o Edital Cinemateca em 2003, 2004 e 2006.

O diretor acredita ainda que San-ta Catarina precisa de mais ousadia em sua política cultural voltada ao audiovisual. Dentre as medidas que poderiam ser tomadas, indica, estão a criação de um pólo de produção no estado e um maior incentivo à circulação. Penna Filho participa do Conselho de Ética da Cinemateca Catarinense, uma associação sem fins lucrativos com papel assumida-mente político e que reúne os envol-vidos na produção cinematográfica do estado.

Filme é películaAngelo Clemente Sganzerla é irmão de Rogério Sganzerla, um dos mais influentes cineastas brasileiros, morto em 2004. Em Aos Espanhóis Confinantes, seu primeiro longa-metragem de ficção, o diretor quis ampliar o espectro da visão que ti-nha lançado sobre a exploração do oeste catarinense em documentário homônimo, que foi o responsável pela vitória no Prêmio do Edital Cinemateca Catarinense em 2007.

O filme é uma ficção baseada na obra de Othon Gama D’Eça, que em 1929 acompanhou, junto de um fotógrafo, uma expedição oficial que planejava “catarinizar” o oes-te do estado, onde a influência dos castellanos confundia as fronteiras entre Brasil e Argentina. “Resolvi unir as fotografias da viagem com o texto de Othon, coisa que nunca havia acontecido”, declara Angelo.

Feito em estúdio, as locações para o faroeste de Sganzerla foram montadas com mata nativa, trazida do Parque Estadual das Araucárias, na localidade de São Domingos, município próximo de Chapecó. Lá ainda se encontra preservada a ve-getação do início do século XX, pe-ríodo no qual a história toma lugar.

Inteiramente rodado, editado e produzido em película de 35 mm, o filme de Sganzerla já é rotulado pelos críticos como experimental, devido ao uso de técnicas pouco usuais no cinema de hoje, mais características do cinema mudo, como a trucagem, e a filmagem em 12 quadros. No entanto, o diretor refuta a idéia de sua obra ter caráter experimental. “Experimentalismo

é coisa de amador. Lancei mão de todas as técnicas cinematográficas que estudei pra realizar um filme que é, acima de tudo, profissional”.

Outra coisa que motivou Angelo a dar uma estética diferenciada à Aos Espanhóis Confinantes é sua convicção de que quem faz filme é quem usa película. “Tem muita gente gravando vídeo e dizendo que faz filme”, diz o diretor, que ao explorar todas as possibilidades que o suporte lhe permite, encon-tra sua forma de dizer: “isto, é efe-tivamente, um filme”.

Em relação ao cinema do estado, Sganzerla lamenta o número pre-cário de roteiristas. “Já são pou-cos, e os que temos só produzem bombas”, brinca o diretor, que fora isso demonstra confiança no pano-

rama de audiovisual catarinense. “Não vejo dificuldado para fazer cinema em Santa Catarina, tanto que meu longa é o primeiro total-mente produzido por catarinenses e com recursos catarinenses.”, en-fatiza.

Aos Espanhóis Confinantes também foi selecionado para a Mostra Internacional de Brasília, onde esteve na mostra competi-tiva, ao lado de grandes filmes nacionais como “Feliz Natal”, de Selton Mello, “A Festa da Menina Morta”, de Matheus Nachtergale, e “Última Parada 174”, de Bruno Barreto. “Ter meu filme compa-rado com essas grandes obras foi para mim até mais importante que estar na Mostra de São Paulo”, diz, orgulhoso, o diretor.

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2�QUATROFlorianópolis, dezembro de 2008 RELIGIÃO

Pouco depois das dez da noite, Naldo Júnior sai de trás de seus equipa-mentos de DJ e pausa momentaneamente o

reggaeton (ritmo latino) que vinha animando o salão do clube Seis de Janeiro até então. Pega o microfone das mãos do promoter Daniel Olly e chama todos para perto do palco. O público é o que se imagina para um sábado a noite: jovens de classe média, meninos de bermuda ou cal-ça jeans e meninas produzidas. “E aí me perguntam...”, diz Naldo, com a platéia vidrada em seu discurso, “esse povo não bebe, não se droga, não fuma, que felicidade é essa? De onde vem?” pergunta, levantando a voz. A platéia, em uníssono, respon-de: “de Jesus!”.

Naldo é um DJ de Brasília e foi convidado para tocar na Ecko Fest, a terceira edição da festa gospel promovida por Daniel Olly em Flo-rianópolis. Através da divulgação boca-a-boca nas igrejas e na rádio Sara Brasil FM - rede nacional do pastor Rodovalho, líder da igreja Sara Nossa Terra - os eventos reú-nem uma média de 1500 pessoas, evangélicas ou não. Olly aposta no crescimento da festa e esperava 2000 presentes nessa terceira edi-ção. Para isso misturou bandas gos-pel de rock, reggae, pagode e black music, montou uma estrutura à altu-ra de qualquer festa secular (como os evangélicos se referem a festas não-crentes) e fez questão de não pôr a palavra “gospel” no material de divulgação da festa.

A última estratégia é conseqüên-cia confessa de seu próprio proces-so de conversão. Criado em Campo Grande, Mato Grosso do Sul, Da-niel diz ter se envolvido cedo com as drogas e o tráfico. Vivia em festas pela cidade e acabou, por engano, indo a uma festa evangélica. Sem o efeito das drogas e do álcool, ele afirma ter sentido naquela noite uma paz interior, que acabou o condu-zindo à reabilitação e a converter-se para a igreja Sara Nossa Terra. A igreja, comandada pela família Rodovalho, ficou conhecida por ter muitos crentes famosos e por pregar a teologia da prosperidade, onde as posses materiais são consideradas uma promessa de Deus e a pobreza é vista como conseqüência do pecado, seja das próprias pessoas ou de, por exemplo, administradores públicos.

A principal reclamação do promo-ter, hoje, é a falta de incentivo dos empresários evangélicos. A festa, orçada inicialmente em 9 mil reais, contou com a ajuda de algumas pou-cas empresas, cada uma contribuin-do com um cota de R$ 500. O resto saiu do bolso de Olly, com a ajuda de alguns amigos. Daniel sonha alto e quer levar a Ecko Fest para casas noturnas famosas da cidade. A única barreira é, atualmente, o dinheiro. Ele não quer se associar a nenhuma igreja, o que poderia gerar uma con-tribuição financeira, pois tem medo

de que a imagem da religião possa ficar manchada se algo der errado.

Daniel, além de promoter, é DJ e gosta de afirmar que toca psy-gos-pel, numa referência ao ritmo ace-lerado e eletrônico do psy-trance. A diferença, segundo ele, é o proces-so de criação das músicas. “Existe muita colaboração no meio gospel. Antes de compor nos juntamos [com outros DJ’s da cena], oramos e ofe-recemos a música a Deus. A partir daí ela se torna mais que uma músi-ca, vira um instrumento de louvor”, explica. “Também não pego sam-ples [pequenos pedaços de músicas usadas para montar novos ritmos] de músicas demoníacas. Tem uma, por exemplo, que convoca todos os que estão na festa a irem para o in-ferno” completa. Justiça seja feita, a música, do duo inglês Chemical

Brothers, apenas diz “aí vamos nós” (Hey boy / Hey girl / Superstar Dj’s / Here we go). Freqüentemente, ain-da, ele busca referências em festas seculares: “Vou a vários shows aqui na cidade, mas não para beber, fu-mar ou me prostituir. Vou lá para ver a iluminação, a montagem do palco. Levo isso para as minhas festas”.

Os jovens que vão às festas de Olly não são incentivados a buscar inspiração no meio secular, a que eles se referem como “mundão”. Lucas Córdoba, de 20 anos, come-mora o fato de não haver pessoas “ficando” nas festas evangélicas. Outro ponto a favor, segundo Julia-na Paula, 17 anos, é o fato de que as festas não têm censura de idade, já que não há venda de bebidas e cigarros, e que não ocorrem brigas. Guilherme Araújo, 17 anos, afirma

que eles nunca vão a festas secula-res e se orgulha ao apontar a van em que, segundo ele, mais de 20 pessoas vieram para a Ecko Fest.

As festas gospel não são, porém, unanimidade entre os evangélicos. Pastores mais antigos costumam condenar o ambiente de festa e tor-cer o nariz para a divulgação des-ses eventos em seus templos. “Até porque existia uma certa rivalidade. Eles viram as festinhas de bairro e as festinhas juninas organizadas pe-las igrejas começarem a se esvaziar. Os jovens passaram a se reunir de-pois do culto para ir a eventos maio-res. Mas hoje a maioria já entende e apóia as festas”, explica Olly.

Também gera polêmica a parti-cipação de bandas evangélicas (ver box) em festas seculares. A maioria dos músicos se apressa em dizer que

Sobriedade com louvor e swing

SEM CENSURA: Durante a �esta, a ��sta de dança �� tomada �or fi���s de todas as �dades que a�rove�tam a no�te ao som da mús�ca de Deus

Promoters evangélicos apostam em baladas gospel como opção para jovens fiéis

“A inspiração maior vem de Deus”Um cenário desconhecido da maioria do público, a música gospel é o segundo estilo mu-sical mais vendido no Brasil, movimentando cerca de 45 milhões de reais em venda de discos. Neste mercado “para-lelo”, alguns artistas e bandas se destacam e alcançam grande reconhecimento neste público específico.

A cantora carioca Aline Bar-ros é hoje o maior nome desse mercado. Começou no meio gospel aos nove anos de idade. Hoje, aos 32, já produziu 29 álbuns e ganhou por três vezes o Grammy Latino de melhor álbum de música cristã (2004, 2006 e 2007).

Caso semelhante é o trio pau-listano Oficina G3, uma das mais antigas bandas gospel do país. Criado em 1987, o conjun-

to é vencedor de dois prêmios Grammy Latino (2005 e 2007), além de ser a única banda gos-pel a ter se apresentado no Rock in Rio, na edição de 2002. Já se apresentaram no estádio do Morumbi, Pacaembu e Canindé reunindo, ao todo, mais de cem mil pessoas.

As bandas religiosas de Flo-rianópolis são bem mais recentes se comparadas a outras do resto do país. O grupo de pagode Pu-rifica Samba, um dos principais no cenário da cidade, foi forma-do em 26 de agosto deste ano. “Alguns de nós éramos amigos há anos, outros Deus botou no nosso caminho. Aqui cada um é de uma igreja diferente” conta o vocalista William dos Santos. Segundo ele, apesar do nome da banda, a inspiração para as músicas é mais divina do que

dos ritmos brasileiros. “Estuda-mos samba e pagode e tiramos o que há de bom para compormos nossas músicas. Nos inspiramos muito no Bezerra da Silva, de-pois que ele se converteu, mas a inspiração maior vem de Deus”, conta. A banda, além de tocar em festas, também realiza cul-tos especiais.

Outro exemplo desse novo cenário na capital é a banda de reggae Da Raiz, formada há apenas dois anos. Três dos in-tegrantes: Thiago, Matheus e Armison são de diferentes igre-jas e se conheceram durante os cultos. Com uma proposta di-ferente, o trio busca tocar não só em festas gospel: “Nós toca-mos no WQS de Itajaí [etapa do campeonato mundial de surfe] e o resultado foi muito legal, nos receberam muito bem”.

Pedr

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agne

lo

não toca somente no meio gospel. Um exemplo é a banda Da Raiz, de reggae gospel, que faz ques-tão de lembrar da apresentação em um campeonato de surfe em Itajaí. “Nossas músicas muitas vezes não falam diretamente de Deus, muitas vezes fazemos referências sutis a Ele”, justifica Armison Isídio, inte-grante da banda. No entanto, muitos religiosos não concordam com a mistura de fé e festa. Um caso co-nhecido foi a participação da banda de metaleiros gospel Oficina G3 no Rock in Rio em 2001. Várias igrejas protestaram formalmente contra o show, citaram o rock como diabóli-co, chamaram o evento de “templo de satanás” e aconselharam os fiéis a manter distância da apresentação.

Outras doutrinas evangélicas são completamente favoráveis às come-morações. Seguidores da Bola de Neve, da igreja Batista, das igrejas Quadrangulares e da Livre em Je-sus, do vice-prefeito de Florianópolis Bita Pereira, são maioria nos eventos. Adolescentes, pré-adolescentes e jo-vens se reúnem em média três vezes por mês para aproveitar festas e shows gospel. Mas não são só eles, na Ecko Fest podiam-se ver famílias, adultos e crianças dançando ao som de ritmos com toques de louvor.

Fora o público diferenciado, o ambiente é o mesmo de uma festa secular. A música é alta, as meninas ensaiam as coreografias da moda - em versão mais comportada - e o camarim das bandas, regado a fru-tas e sucos, está sempre superlotado e confuso. Quando a banda Purifica Samba subiu ao palco, já eram 23h. Após abençoar o show e o público, Zão do Cavaco, como é conhecido o vocalista William dos Santos, fez um convite tentador: “Vamos swin-gar com Jesus!”, puxou, já ao ritmo do pagode. E a platéia acompanhou, animada. Uma longa noite, que os evangélicos garantem ser “livre de vícios”, estava apenas começando.

Paulo RochaPedro Dellagnelo

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26 QUATRO Florianópolis, dezembro de 2008FUTEBOL

O agasalho oficial nas cores preto, branco e verde, as chutei-ras em bom estado, o calção esportivo

na cintura e a alta estatura, magreza, indicam um atleta do Figueirense. De expressão séria, André gagueja um pouco no início da entrevista, mesmo depois do aval do superinten-dente técnico das categorias de base do clube, João Abelha. “Pode falar a vontade”, diz Abelha, ao passar an-dando no cor-redor entre as quadras cober-tas do Centro Esportivo Cate-geró, no bairro de Monte Ver-de, na capital. Enquanto chove torrencialmente lá fora, outros atletas treinam fundamentos do esporte no gramado sintético coberto: fazem ziguezague pela quadra dan-do saltos e cabeceando bolas que os companheiros alçam das laterais, to-dos muito concentrados, ouvindo as recomendações do treinador enquan-to fazem os exercícios. André, que está fora das atividades de hoje por causa de um resfriado, lembra que já ficou sem jeito ao responder uma outra entrevista após sair de campo tendo marcado um gol. André, o atle-ta do Figueirense, tem 15 anos.

A vida do garoto de Caçador, no oeste do estado, que se mudou para a capital em setembro para treinar futebol personifica a descrição que Abelha faz dos seus atletas. Ele foi descoberto ao jogar em um campe-onato catarinense para garotos en-tre 11 e 14 anos, o Moleque Bom de Bola, e desde então, motivado a tentar seguir carreira profissional.

Incentivado por seu pai mudou-se para Florianópolis, deixando para trás também sua mãe e a irmã de quatro anos. A mãe concordou com a idéia, embora fosse contra. O pai, que fora atleta do Internacional gaú-cho e tentou sem sucesso se tornar jogador lhe disse “a minha mãe não deixou, mas você vai poder realizar o meu sonho”.

André também herdou do pai o time pelo qual torce, o Vasco. O ga-roto, porém, se contém, talvez ten-tando agir profissionalmente. Diz que pode torcer enquanto estiver nas categorias de base, mas que vai ser

figueirense ao jogar pelo time principal. Sabe, porém que essa é uma possi-bilidade difícil de ser concretizada. O técnico da categoria infantil, Fernando Gil, compara o pro-cesso de ascensão com uma pirâmide, sendo que na base estão os mais novos.

André, ciente que terá sua promo-ção avaliada junto com a de outros atletas infantis no final do ano, faz coro com seus dirigentes e com as-sistente social Josiane Resende ao afirmar que “é importante estudar”. Na cabeça dos garotos os testes de fim de ano estão ganhando impor-tância: “Não tem como não pensar”, diz André.

O garoto André é um dentre os cerca de 100 que estão sob os cuida-dos do Figueirense. Após serem pré-selecionados em jogos em Santa Ca-tarina - as chamadas “peneiras” -, na capital ou por indicação de olheiros ou escolas de futebol particulares afiliadas presentes em outros esta-dos, eles são novamente testados na sede do time, em Florianópolis. Os selecionados são integrados à equi-pe e passam a receber alojamento, refeições diárias e uma mesada de

R$ 100. Eles têm como responsabi-lidade 2h30 de treinos de segunda a sábado e a exigência de permanece-rem na escola.

A rotina dos meninos começa com estudo. Os mais jovens como André, nascidos em 94 ou 95 estu-dam na parte da manhã, enquanto os mais velhos à noite. Após saírem das aulas, que podem ser em colé-gios públicos ou particulares, cuja mensalidade depende dos pais, os garotos almoçam e seguem para o treino, no mesmo centro de prepa-ração da equipe principal, na cidade de Palhoça. “O treino deles é mais lúdico. A gente faz eles brincarem de pega-pega, por exemplo, que ao mesmo tempo eles estão exerci-tando”, conta Gil. À noite, quando estão no alojamento, conversam. Alguns meninos, que têm notebook, deixam os colegas usarem para na-vegar na internet.

A dedicação não passa desperce-bida por quem está ligado ao dia-a-dia desses jovens. Gil diz que dá par pais, é “uma lição de vida”. Josiane - que desde abril é responsável por eles em assuntos que incluem o co-légio e dar ciência do comportamen-to aos pais - também nota. Segundo ela os meninos já têm consciência do sacrifício que terão que fazer, mas ainda falta um adulto como referencial. A freqüência das liga-ções para casa varia de acordo com o dinheiro disponível de cada um. Nesse intervalo, ela tenta ajudá-los a decidir quando alguém pensa em desistir. “Vocês chegaram até aqui. É isso mesmo que vocês querem?”, encoraja. A pergunta “como é que eu vou falar para o meu pai que eu fui desligado?” é comum na cabeça de alguns jovens atletas.

EscolinhaOs meninos que treinam em uma

das escolinhas de futebol do Grêmio, também na capital catarinense, têm o mesmo sonho, mas uma realidade

diferente. Os quase 150 alunos na unidade do bairro Agronômica tam-bém têm uniforme oficial, campo, treinador, treinos táticos, físicos e técnicos. Mas os treinos acontecem somente duas vezes por semana e os atletas são mais jovens, com idades entre 7 e 15 anos. O responsável téc-nico, João Lorini, reconhece que a intenção é fazer com que os jovens joguem bola, pois o ideal para ser

atleta é treinar todo o dia. Em se tra-tando de sonho, a idéia é não iludir, mas também não desestimular. Nor-malmente há clubes que aproveitam jogos como os de campeonatos en-tre escolinhas, por exemplo, o Me-tropolitano, para descobrir talentos com idade por volta dos 13 anos. “Tem garoto que dá duro nos treinos pensando nisso”, aponta, mesmo considerando que pouquíssimos de-les vão ter chances de se tornarem profissionais.

A rotina desses atletas é mais descontraída. Os garotos, algumas vezes, se indispõem com as reco-mendações e a saída é não pressio-nar. Afinal, além de muito jovens, os pais pagam mensalidade, de R$ 25, ao invés dos meninos receberem como os profissionais.

Existem hoje no Brasil 21.180 atletas profissionais, atuando no país, cadastrados junto à Confedera-ção Brasileira de Futebol (CBF). Em 2008 ainda foram transferidos até novembro 1.176 jogadores, para pa-íses do mundo todo, inclusive aque-les que não têm tradição no futebol como Armênia, Chipre, Islândia ou Vietnã. A transferência internacional envolve desde times tradicionais de

elite a clubes pequenos de terceira divisão. O Figueirense foi responsá-vel por seis transações nesse ano e o Grêmio, por duas.

Os cerca de 15 milhões de eu-ros (R$ 43,5 milhões) pagos ao Internacional no ano passado pela mais nova revelação do futebol - Alexandre Pato, que só pôde atuar pelo A.C Milan neste ano por ter completado 18 anos em setembro de 2007 - indicam um negócio que movimenta bastante dinheiro. Lori-ni crê que o baixo custo necessáro para manter um jovem atleta, como o que é feito pelos grande clubes, tem muito retorno em negociações como essas. Abelha dá uma dimen-são da importância das categorias de base “Nós trabalhamos com so-nhos”, completa.

Eu quero ser jogador de futebol

“A minha mãe não deixou, mas você vai poder realizar o meu sonho”

Grandes legendas da humanidade fazem o barato aqui até o final da linha não quero mais brincar de legenDuipit utatuero ex estrud magna aliquisim zzrit, commod esto e

Lor�n�, da escol�nha do Grêm�o, crê que �oucos ser�o �rofiss�ona�s

DIA-A-DIA: os atletas das categorias de base do Figueirense treinam duas horas diariamente, uma rotina que incluiu fundamentos técnicos como exercícios físicos

O sonho de se tornar uma estrela internacional exige dedicação desde cedoFe

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Felipe Machado

Felipe Machado

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2�QUATROFlorianópolis, dezembro de 2008 MÍDIA

G�sele Pavanate em sess�o de �otos em �tajaí. Pela Nua, já passaram uma ex-rainha da Oktoberfest e uma princesa da Festa do Pinhão

Até pouco tempo, o leitor de revistas masculinas tinha poucas opções na banca. Basicamente

a Playboy, com uma nudez mais artística e erótica, e a Sexy, um pou-co mais pornográfica. Portanto, o surgimento de uma publicação ca-tarinense voltada para esse público pode ser considerado natural: a re-vista bimestral Nua, que lançou sua sétima edição em novembro, já al-cança vendas entre 4 e 5 mil exem-plares por edição.

Cada número traz um ensaio principal, com uma modelo em des-taque no estado. A Nua só aceita mulheres catarinenses, e já trouxe na capa uma ex-rainha da Oktober-fest (Blumenau), uma princesa da Festa do Pinhão (Lages) e uma luta-dora de vale-tudo (Joinville), entre outras. Além disso, são publicados ensaios com modelos menos co-nhecidas e reportagens, entrevistas e perfis de interesse masculino.

O editor responsável, Rafael Fa-rias, tem seu escritório no centro de Florianópolis. É uma sala pequena, parecendo mais um apartamento do que um escritório profissional, com vários livros na prateleira, um sofá e uma mesa redonda no centro. O relacionamento entre os produtores da publicação é bem informal: “Em Floripa e na região, nós mesmos pegamos um carro e distribuímos nas bancas”, explica. Já em outras cidades, como Blumenau, Joinville e Lages, a produção da Nua usa o serviço comissionado de distribui-doras de revistas.

A equipe é formada por profis-sionais autônomos. No total, qua-tro fotógrafos, três revisores e uma jornalista, além de uma empresa produtora para os ensaios fotográ-ficos. O casting é escolhido, prin-cipalmente, por Rafael Farias, com o apoio de uma série de olheiros espalhados pelo estado. “Eles tra-balham com isso, mas para várias revistas. Vão a lugares onde po-dem encontrar mulheres bonitas, como festas e desfiles, e fazem as propostas”, explica Levi Farias, responsável pela área de comercia-lização da revista.

Mesmo sem revelar o cachê de cada modelo, o editor explica que a Nua oferece mais do que as revistas de grande porte, como a Playboy e a Sexy, pagam para “anônimas”. “Elas cobram por dia, e esse valor muda sempre, dependendo de uma série de pontos”, como a fama e a importância da pessoa. “As revistas maiores só pagam bem para as mais famosas”. As modelos são, então, fotografadas em pontos turísticos importantes do estado. Na maioria das vezes, as próprias escolhem o lugar onde serão feitas as fotos – o que pode incluir lugares abertos e públicos, como praias e praças.

Rafael explica que, durante mui-tas sessões, curiosos param para assistir. “Só há algum problema se

alguma pessoa chama a polícia por se sentir ofendida – o que nunca aconteceu. Até porque fazemos as fotos durante a madrugada ou bem de manhã”. O editor conta que, du-rante uma sessão na beira-mar de Balneário Camboriú, vários velhi-nhos pararam para assistir, aplau-dindo ao final da tomada.

Gisele Pavanate é a capa da edição de novembro. A modelo nasceu em Laguna, e decidiu posar para a revis-ta em Itajaí, por ser uma cidade com “clima carnavales-co”. Em 2004, Gi-sele foi fotografa-da para a Playboy, além de vídeos e outros quatro ensaios para a revista. “No dia das fotos para a Nua, tinha um monte de gente olhando”, conta. “Desde crianças até ‘a melhor ida-de’. Mas quando eu tirei a roupa, os surfistas de 14 e 15 anos que tinham parado por ali foram ‘convidados’ a sair”, brinca.

Público difícilAntes do lançamento da revista, foi feita uma pesquisa de mercado por todo o estado. A questão era: “Você compraria, por cinco reais, uma re-vista com fotos de mulheres cata-rinenses nuas em pontos turísticos de Santa Catarina?”. O resultado impressionou Rafael Farias: prati-camente 100% de aceitação.

Foi decidido que seriam impres-sos dez mil exemplares da primeira edição. Para a frustração da equi-pe, menos da metade foi vendida. “Superestimamos o mercado. Re-

duzimos a tiragem pela metade nas outras edições, então, para sobrar menos”, afirma Rafael. De fato, os exemplares recolhidos das bancas, na prateleira no escritório, mostram o resultado: somando as sobras das quatro edições – a primeira foi ven-dida a preço de custo para uma dis-tribuidora, e a sexta ainda não havia

sido recolhida das bancas –, não chegava a cem exemplares.

A busca pela publicidade é outro problema. “Nossa revista não é pornográfica”, acredita o editor. “Entretanto, muita gente confunde as coisas. Por isso,

a procura por anunciantes se torna uma faca de dois gumes: de um lado, o público-alvo é muito claro. Do ou-tro, perdemos vários anunciantes em potencial, que não querem ligar o nome dos produtos que vendem pro-dutos à revista”.

Na edição de setembro e outubro, as propagandas de cerveja, vodka e motos se intercalam com as de um chuveiro e de lâmpadas purificado-ras de ar. Além disso, ao comprar a revista, o leitor ainda ganha um preservativo.

Rafael conta também o caso de um cirurgião plástico que topou ser entrevistado. Após conhecer a Nua, o médico voltou atrás. Entretanto, a edição de setembro e outubro traz uma reportagem com o repórter Hé-lio Costa, que, segundo o editor, foi prestativo e solícito, sem preconcei-to. “Temos que mostrar que a revis-ta não é de sacanagem”.

Nudez catarinense nas revistasPublicação com tiragem de 5 mil exemplares é a primeira do gênero no estado

Cerca de um ano antes do primeiro número da Nua, outra revista focada no público catarinense era lançada no mercado, mas com uma proposta completamente diferente. Em outu-bro de 2006, chegava às bancas a primeira edição da História Catari-na, publicação que trata apenas de temas do passado “barriga verde”.

A História é feita em Lages e é trimestral, com tiragem de cinco mil exemplares. O editor Cláudio Sil-veira explica que “como a revista não é jornalística, mas histórica, as edições não ficam velhas” possibi-litando a republicação dos números esgotados. “É uma revista especia-lizada em história, produzida por historiadores”.

Tanto a História quanto a Nua demonstram uma tendência do jor-nalismo atual e, principalmente, das revistas: a segmentação. As duas são concorrentes de revistas de por-te nacional, como a Playboy (com uma circulação média de 238 mil exemplares por edição) e a Aventu-ras na História (68 mil exemplares), ambas publicadas pela Abril, editora com mais recursos. Por que então cada vez mais títulos são lançados no mercado? “Chegar a cada indi-víduo foi uma das tendências mais discutidas no meio das revistas nos anos 90”, explica Marilia Scalzo no livro Jornalismo de Revista. “A internet resolveu esse problema de uma forma melhor. Para as revistas, fica o meio termo: não falar com todo mundo (como a TV e o jornal) e não individualizar seu leitor”.

As maiores revistas do Brasil são as semanais de informação: as

vencedoras são a Veja, com uma tiragem média de mais um milhão de exemplares por edição, e a Épo-ca, com 417 mil. Entretanto, elas têm registrado uma queda cada vez maior na circulação. Segundo os dados do Instituto de Verificação de Circulação (IVC), a impressão de publicações do gênero sofreu uma diminuição de 12% na média total de exemplares desde o ano 2000.

No mesmo período, o mercado de revistas focadas no público po-pular, feminino e no mundo televi-sivo cresceu 27%. São consideradas “populares” as com preço de capa menor que R$ 2, geralmente dispo-níveis apenas em bancas – área do-minada pela Abril, com Viva Mais, Ana Maria, Tititi e Minha Novela. Semanalmente, são vendidas quase um milhão de títulos do gênero.

A segmentação pode ser vista também nos jornais impressos, mas através da cadernalização: editorias de variedades, esportes, política e economia separadas e com re-pórteres e colunistas próprios. “Há dez anos, era realmente muito difí-cil você encontrar um veículo seg-mentado além de revistas como a Bizz e os fanzines. Afinal, vivíamos o auge da cultura generalista.”, re-lembra Marcos Espíndola, colunista do Diário Catarinense. A sessão do jornalista tem um público-alvo dife-renciado da publicação: “A coluna Contracapa tem um vínculo com os jovens, mas não necessariamente este é o seu objetivo. O foco é o uni-verso da cultura pop, principalmente o âmbito regional e a nova geração de artistas”.

Segmentação cria novo mercado

As modelos sãofotografadas empontos turísticos de SC – muitosdeles, públicos

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Gabriel Rosa

Page 28: Quatro, edição 2, de 2008

28 QUATRO Florianópolis, dezembro de 2008PERFIL

“A drag é o exagero da mulher”

Através da janela la-teral do Uno Mille branco que estacio-na em frente à casa noturna, é possível

ver o perfil realçado pelos vistosos cabelos loiros. Com passos firmes e cabeça erguida, sai do carro: salto alto, calça jeans, cinto preto, blusa de alça, sem decote. Apesar do traje discreto, Selma Light visivelmente chama mais atenção do que qualquer um por perto. Corpulenta, de traços fortes e olhar marcante, a famosa drag queen cumprimentou-me com a mesma cortesia com que me tratou durante toda a madrugada. Passava das 23 horas, mas a noite estava ape-nas começando.

Encostados no balcão, dois ho-mens sem camisa tocam-se de leve, alternando olhares, sorrisos e goles de cerveja. Perto do caixa, apoiam os cotovelos três pessoas de longos cabelos castanhos, vestes curtas e altas sandálias, mas de indiscutíveis traços masculinos. Na extremidade do bar, a entrada para o banheiro não indica distinção entre área masculi-na e feminina. Lá dentro, o espelho reflete um homem de salto, saia e blusa, levantando o tecido que cobre as partes íntimas e deixando-se foto-grafar por um amigo.

Subindo as escadas, avista-se a entrada do dark room, coberta por tiras pretas que iam do alto vão até o chão. Ignorando o quartinho e che-gando à pista, dezenas de pessoas,

principalmente homens, dançam re-mixes no melhor estilo drag music. Alguns sem camisa, alguns abra-çados a seus parceiros, um ou dois atracados a mulheres; outros, ainda, eram vistos em cima de suportes de concreto, embalando-se sensual-mente ao som do DJ.

Atrás do palco, escondida pela cortina, uma porta leva ao camarim. No recinto de aproximadamente oito metros quadrados, Selma Light começa a se aprontar para o show. Elvis Leon, o maquiador, munido de uma incrível diversidade de som-bras, blushes e pós, transforma aos poucos a travesti em drag queen. Enquanto ele delineia, pinta, retoca, Selma fala abertamente comigo, dis-posta a relembrar fatos marcantes e revelar detalhes de sua vida.

Trejeitos, roupas e pensamentos femininos em um corpo predomi-nantemente masculino. Esta é Selma Light. Ela se define como travesti, um homem que assume inteiramente a identidade de mulher. Mas também faz o papel de drag queen durante a noite. “A drag é o exagero da mu-lher. É o brilho, as cores, a maquia-gem chamativa. É uma personagem que interpreto em eventos”, explica. E é como drag que ela se sustenta. “Essa é minha profissão”.

Ela conta que sempre teve ca-racterísticas femininas. “Nunca me senti outra coisa que não fosse gay. Nasci gay”. Sempre gostou de andar com meninas, de fazer coisas que as meninas faziam. “Escondia-me para brincar com a Barbie da minha prima. Enquanto os meninos gosta-

vam do Batman, eu gostava da Mu-lher Maravilha. Esses são só alguns exemplos. Mas quando você é crian-ça, isso parece natural.”

A primeira vez que os pais per-ceberam que havia algo diferente no pequeno Aurélio Basthos foi quando ele tinha apenas cinco anos. “Um dia eles me perguntaram: ‘Você gosta de Fulaninha?’. Eu respondi: ‘Não. Eu gosto é do Fulaninho’. Pronto. Eles ficaram horrorizados. Levaram-me até para o psicólogo. Mas freqüentei durante pouco tempo, até o momen-to em que aprendi a fingir”.

Selma conta que a própria aceita-ção é difícil. “A princípio, você não se conforma. Eu achava que poderia ser apenas uma fase, que iria pas-sar”, diz. Durante a juventude, che-gou a namorar meninas; experimen-tou, inclusive, o sexo com mulheres, mas nunca o sentimento de paixão. “Nunca chorei por uma mulher, era apenas um deslumbramento. E eu não namorava porque realmen-te queria. Era mais para mostrar ao meu pai que eu era capaz.”

Com 18 anos começou a fazer te-atro. Foi durante um exercício para treinar o choro que se aceitou. “A orientação do professor era que fi-xássemos os olhos em um espelho e falássemos de coisas que não gos-távamos em nós mesmos. Eu come-cei: ‘Não gosto de mim por isso, não gosto de mim por aquilo... não gosto de mim porque sou homossexual’. Nesse momento, caí em prantos”.

Na época, não assumiu para mais ninguém. Só foi sair do armário por volta de 1999, quando já mora-

va em Santa Catarina. A drag veio depois, em 2001. “No dia de meu aniversário, vesti-me por imposição de amigos e caí no gosto”, conta. Ao revelar para a família, já mora-va sozinha. “Foi tranqüilo. Na ver-dade, eles sempre souberam que eu era gay”, afirma. Hoje em dia, mora com os pais e mantém um bom rela-cionamento. “Saio com minha mãe para comprar roupas, ela dá pitaco na minha vida, opina sobre o ho-mem certo para mim...”

Em 2007, deixou de se vestir como Aurélio. No começo, teve re-ceio à reação do pai. “Ficava com medo de chegar perto dele. Até que ele questionou minha mãe por que eu não o abraçava mais, por que es-tava tão distante. A partir de então comecei a mudar minha atitude, vi que poderia agir normalmente, como antes”. No entanto, os pais ainda a chamam pelo nome verdadeiro.

Entre as situações inconvenien-tes, se destaca a do ano passado, quando foi convidada a participar de um programa de televisão. “Eu estava na sala de espera. Certa hora, um advogado entrou e sentou, e as-sim que eu dei ‘boa noite’, levantou e foi embora. Na hora, nem percebi que era por minha causa”. Selma soube apenas no dia seguinte que tinha sido preconceito. “Rolou um stress, mas o pessoal da mídia me defendeu”, diz.

Apesar do preconceito, a princi-pal comandante das Paradas da Di-versidade de Florianópolis consegue tirar disso seu sustento. É apresen-tadora fixa de uma casa noturna em

Florianópolis, viaja semanalmente a trabalho e participa de qualquer evento. O amigo Marcelo Quinti-no Meller conta que não é fácil um travesti ser bem-sucedido, e este é o diferencial da ‘diva drag brasileira’. “Muitos acabam como garotas de programa. As pessoas criticam, mas não dão oportunidade de trabalho”.

Do camarim é possível ouvir a agitação que toma a pista. Em fren-te ao espelho, o hairstyler Carlos Lopes dá nova feição a seus pró-prios traços, tornando mais sutil o semblante masculino. Lança um olhar sedutor e admira o reflexo de sua personagem. Vira ligeiramente a cabeça, faz caras e bocas, retoca compulsivamente a maquiagem. O tecido zebrado, que o cobre dos om-bros às coxas, combina com a meia arrastão e uma bota de couro branco e bico fino. Vez ou outra borrifa no rosto o sufocante fixador de cabelos, para dar firmeza à pintura. Em pou-co tempo Penélope está pronta.

Selma, por sua vez, cala-se du-rante a finalização da arte em sua face. Um desenho que lembra um chifre de alce é desenhado na testa; cada olho, circundado por uma pin-tura preta em forma de asas e pedras redondas brilhantes, como as que expunha em seu collant. O cabelo adquire nova forma aos cuidados de Penélope, transformando-se em um moicano minuciosamente estili-zado. Traje, penteado e maquiagem impecáveis, a multidão embebida em entusiasmo lá fora e uma músi-ca estonteante no último volume: o show vai começar.

Ísis Martins

O glamour e charme da produtora Selma Light na vida noturna de Florianópolis

A transformação acontece no camarim, onde Penélope prepara Selma para brilhar em mais uma show

Exageros no cabelo e na maquiagem caracterizam a super-mulher

Seu sustento vem das a�resentações em casas noturnas e eventos