edgar_morin_cultura_massa_artigo.pdf

8
79 Cultura de massas e outras culturas: as concepções contemporâneas de Edgar Morin e Néstor García Canclini sobre a cultura de massas Fernanda Dutra Graduação em Jornalismo da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) Orientação: Prof.ª Dr.ª Gislene da Silva. Resumo: Fazer a sociologia do presente era a ambição do pensador francês Edgar Morin, na década de 60. Analisando a cultura de massa, criada pelo sistema industrial capitalista, Morin diagnosticou o prejuízo da cultura culta e da popular diante da cultura massiva. Além disso, ocorreria a homogeneização dos costumes, uma vez que a indústria cultural procurava atingir o maior público possível. A massa não responderia. Na década de 90, o argentino Néstor García Canclini, analisando também o presente, a partir de pesquisas de campo inclusive, disse que a cultura de massas não acabou com as culturas culta e popular, mas se integrou a elas criando culturas híbridas. Acreditando no consumidor dos produtos culturais, García Canclini sugere que o consumo seja ligado à cidadania para aplicar políticas culturais que valorizem a multipli- cidade cultural. Palavras-chave: Cultura de massa hibridação cultural sincretismo consumo 1. Considerações iniciais Cultura de Massas no Século XX, de Edgar Morin, foi lançado em 1962. É difícil ali- nhá-lo a somente uma linha de pensamentos, pois ele escreveu muitos livros e elaborou vários conceitos. No entanto, Mauro Wolf considera que o livro de 1962 seja a base da Teo- ria Culturológica (WOLF, 1987, p. 100). Neste artigo, pretende-se trazer as idéias a respeito da cultura de massa de Morin junto às idéias de Néstor García Canclini expostas nos livros Culturas Híbridas e Consumidores e Cidadãos. Morin validou a produção cultural com fins lucrativos e a relação da cultura de mas- sa com as outras culturas (popular, culta, religiosa, nacional, etc). Assim como Morin, Gar- cía Canclini também pensou dentro de uma perspectiva multicultural. No entanto, se aque- le acreditava no prejuízo das outras culturas na relação com a cultura de massas, este en- xergou a criação de uma nova cultura: a mistura de todas elas mais novos elementos, uma cultura híbrida. A visão que ambos têm sobre o consumo dos produtos culturais também é bem diferente. Enquanto Morin acreditava na homogeneização dos costumes e das visões, Crátilo: Revista de Estudos Lingüísticos e Literários. Patos de Minas: UNIPAM, (1): 79-86, ano 1, 2008

Transcript of edgar_morin_cultura_massa_artigo.pdf

  • 79

    Cultura de massas e outras culturas: as concepes contemporneas de Edgar Morin e Nstor Garca Canclini sobre a cultura de massas

    Fernanda Dutra

    Graduao em Jornalismo da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) Orientao: Prof. Dr. Gislene da Silva.

    Resumo: Fazer a sociologia do presente era a ambio do pensador francs Edgar Morin, na dcada de 60. Analisando a cultura de massa, criada pelo sistema industrial capitalista, Morin diagnosticou o prejuzo da cultura culta e da popular diante da cultura massiva. Alm disso, ocorreria a homogeneizao dos costumes, uma vez que a indstria cultural procurava atingir o maior pblico possvel. A massa no responderia. Na dcada de 90, o argentino Nstor Garca Canclini, analisando tambm o presente, a partir de pesquisas de campo inclusive, disse que a cultura de massas no acabou com as culturas culta e popular, mas se integrou a elas criando culturas hbridas. Acreditando no consumidor dos produtos culturais, Garca Canclini sugere que o consumo seja ligado cidadania para aplicar polticas culturais que valorizem a multipli-cidade cultural. Palavras-chave: Cultura de massa hibridao cultural sincretismo consumo

    1. Consideraes iniciais

    Cultura de Massas no Sculo XX, de Edgar Morin, foi lanado em 1962. difcil ali-

    nh-lo a somente uma linha de pensamentos, pois ele escreveu muitos livros e elaborou

    vrios conceitos. No entanto, Mauro Wolf considera que o livro de 1962 seja a base da Teo-

    ria Culturolgica (WOLF, 1987, p. 100). Neste artigo, pretende-se trazer as idias a respeito

    da cultura de massa de Morin junto s idias de Nstor Garca Canclini expostas nos livros

    Culturas Hbridas e Consumidores e Cidados.

    Morin validou a produo cultural com fins lucrativos e a relao da cultura de mas-

    sa com as outras culturas (popular, culta, religiosa, nacional, etc). Assim como Morin, Gar-

    ca Canclini tambm pensou dentro de uma perspectiva multicultural. No entanto, se aque-

    le acreditava no prejuzo das outras culturas na relao com a cultura de massas, este en-

    xergou a criao de uma nova cultura: a mistura de todas elas mais novos elementos, uma

    cultura hbrida. A viso que ambos tm sobre o consumo dos produtos culturais tambm

    bem diferente. Enquanto Morin acreditava na homogeneizao dos costumes e das vises,

    Crtilo: Revista de Estudos Lingsticos e Literrios. Patos de Minas: UNIPAM, (1): 79-86, ano 1, 2008

  • 80

    partindo de um conceito implcito da agulha hipodrmica1 (WOLF, 1987, p. 105), Garca

    Canclini entendia que um mesmo produto poderia ser lido de vrias formas diferentes, de

    acordo com a formao socioeconmica e histrica do consumidor (GARCA CANCLINI, 1997,

    p. 142).

    Em A cultura de Massas no Sculo XX, a preocupao de Morin em fazer uma so-

    ciologia do presente (MORIN, 1977, p. 7) est nos dois livros de Garca Canclini utilizados

    neste artigo, em que h tambm reflexes sobre pesquisas empricas e anlises de fenme-

    nos da atualidade. Assim, os trs livros so coerentes com o pensamento contemporneo e a

    comparao entre ambos uma forma de atualizar os conceitos propostos por Morin. Tam-

    bm por esse motivo, o contexto histrico do desenvolvimento dessas pesquisas ajuda a

    esclarecer alguns pontos do discurso. Em seguida, as idias de Garca Canclini sero expos-

    tas enfocando a formao das culturas hbridas para entender as relaes da cultura de

    massas com as culturas popular e culta. Tambm importante expor o pensamento de Gar-

    ca Canclini sobre o consumidor, perfil que permite a possibilidade de ao e, sugere o au-

    tor, cidadania.

    2. A cultura massiva e o carter homogeneizante

    A Cultura de Massas no Sculo XX aponta as principais caractersticas dessa cultu-

    ra, recente, surgida com a industrializao e o desenvolvimento dos meios de comunicao

    de massas. Segundo Morin, a cultura de massas segue as normas capitalistas e destinada a

    um aglomerado gigantesco de indivduos compreendidos aqum e alm das estruturas

    internas da sociedade. Morin consolida os produtos massivos como cultura, criticando os

    intelectuais por julgarem a existncia somente da cultura culta, que ele diz ser guiada pela

    esttica, qualidade, criao, espiritualidade e elegncia e produzida pelos intelectuais (Op.

    cit., p. 17).

    Uma srie de conseqncias resulta da caracterstica industrial. A criao subme-

    tida tcnica e burocracia, predominando a organizao racional do produto sobre a

    inveno (MORIN, 1977, p. 25). O filme, por exemplo, comea no roteiro, mas passa pelo

    trabalho de muitas pessoas e interferncias burocrticas relacionadas ao custo de produo

    e a divulgao, o que acaba por limitar a criatividade do autor. Para Morin, essa caracters-

    tica vai contra a necessidade humana do consumo cultural individualizado. A isso, a inds-

    tria cultural responde com frmulas que permitam algumas mudanas para individualizar o

    produto, como atrizes e atores famosos, no caso dos filmes, ou finais diferentes. A contra-

    dio inveno-padronizao a contradio da cultura de massa. seu mecanismo de

    adaptao ao pblico e de adaptao do pblico a ela (MORIN, 1977, p. 28).

    1 A teoria norte-americana sobre a recepo pode ser resumida na afirmao: Cada elemento do pblico pessoal e diretamente atingido pela mensagem (WOLF apud WRIGHT, 1977: 22).

    Fernanda Dutra | Cultura de massa e outras culturas

  • 81

    Por ser um produto, a cultura de massa busca atingir o maior pblico possvel (Op.

    cit., p. 35). assim que os programas adicionam contedos que os produtores julgam atin-

    gir mulheres (romances), homens (aventura) e crianas (humor). Com a expanso do mer-

    cado para alm dos Estados Unidos, os filmes hollywoodianos passam a contar com perso-

    nagens estrangeiros, como chineses e latinos (MORIN, 1977, p. 44):

    Essa variedade , ao mesmo tempo, uma variedade sistematizada, homogeneizada, se-gundo as normas comuns. O estilo simples e claro [...] visa conferir-lhe uma inteligibili-dade imediata e essa universalidade oculta os mais diversos contedos. (MORIN, 1977, p. 35 e 36)

    O pblico desse contedo o chamado homem mdio2, resultante de cifras de ven-

    da, viso em si mesma homogeneizada. Para Morin, os produtores procuram incutir gostos

    e desgostos e, assim, a homogeneizao procura tornar assimilveis ao homem mdio os

    mais diferentes contedos (Op. cit., p. 36). A palavra utilizada pelo autor para a tendncia

    homogeneizao sincretismo3.

    Quando menciona a reao do consumidor cultura de massas, Morin diz que este

    no responde a no ser por sinais pavlovianos; o sim ou o no, o sucesso ou o fracasso. O

    consumidor no fala (MORIN, 1977, p. 46). Mas, a partir do ponto de vista dos mecanismos

    do consumo, o autor diz que o questionamento mais importante se o produto cultural

    feito a partir das normas da indstria, afetado pela censura do Estado e pelas intervenes

    de outras instituies intermedirias, satisfaz as necessidades culturais do pblico. Morin

    no d respostas, mas nota que a cultura massa , portanto, o produto de uma dialtica

    produo-consumo, no centro de uma dialtica global que a da sociedade em sua totalida-

    de (MORIN, 1977, p. 47).

    Em uma nota de rodap no livro, Morin diz que h pesquisas norte-americanas que

    indicam que no h ao unilateral das mass media sobre o receptor e que nem sempre h

    uma relao direta entre as intenes de quem comunica com a compreenso de quem re-

    cebe a mensagem. A partir desse comentrio de Morin, nota-se como o desenvolvimento

    das pesquisas sobre recepo era recente. Em 1962, os Estudos Culturais ingleses, principal

    na linha de estudos sobre recepo, comeava a divulgar seus trabalhos (ESCOSTESGUY,

    2001, p. 152). Outra caracterstica que precisa ser levada em conta o hermetismo das pes-

    2 O homem mdio, ou o homem universal, um conceito antropolgico do anthropos. Morin diz se tratar de um homem que em todas as partes responde s imagens pela identificao ou projeo [...], o homem-criana que se encontra em todo homem, gostando do jogo, do divertimento, do mito do conto [...], o ho-mem que em toda parte dispe de um tronco comum de razo perceptiva, de possibilidades de decifrao, de inteligncia. (MORIN, 1977, p. 44 e 45). 3 Sincretismo a palavra mais utilizada por Morin, mas ele tambm usa hibridao, mesclagem e outras com sentido semelhante. J Garca Canclini usa predominantemente a palavra hibridao, tambm com a inteno de se referir mistura. O conceito pode confundir, pois o sincretismo de Morin pretende assinalar a forma como a indstria cultural quer levar homogeneizao. Enquanto para Garca Canclini, hibridao a relao entre as culturas que forma uma nova cultura, hbrida. Assim, a mistura para Morin o que ir levar semelhana, enquanto para Garca Canclini, as vrias misturas devem garantir a variedade cultural.

    Crtilo: Revista de Estudos Lingsticos e Literrios. Patos de Minas: UNIPAM, (1): 57-69, ano 1, 2008

  • 82

    quisas francesas que, indo contra a pesquisa administrativa norte-americana maior parte

    das pesquisas realizadas at ento era pouco empirista (WOLF, 1987, pp. 100-101).

    As sociedades modernas so policulturais (MORIN, 1977, p. 16). Para Morin, na con-

    juntura moderna, culturas de natureza diferente se relacionam e influenciam umas s ou-

    tras. A cultura de massas, portanto, no autnoma. No entanto, o autor v a influncia da

    cultura macia do sculo XX como daninha s outras culturas e sociedade.

    A cultura de massa integra e se integra ao mesmo tempo numa realidade policultural; faz-se conter controlar, censurar (pelo Estado, pela Igreja) e, simultaneamente, tende a corroer, a desagregar outras culturas. A esse ttulo, ela no absolutamente autnoma: ela pode embeber-se de cultura nacional, religiosa ou humanista e, por sua vez, ela em-bebe as culturas nacional, religiosa ou humanista. (MORIN, 1977, p. 16).

    H um ponto da cultura de massa em que a distino com a cultura culta dos li-

    vros, msicas e teatro clssicos puramente formal. Os CDs e o rdio multiplicam Bach e

    Beethoven, os livros de bolso tornam acessveis obras de Shakespeare, Sartre, Camus. A

    democratizao uma tendncia da cultura de massa, mas no a principal nem a especfi-

    ca (Op. cit., p. 53).

    A cultura industrial integra as formas e contedos de que se apropria. Mas, ao lado

    da multiplicao pura e simples, h uma vulgarizao4. A obra lenta e densa substituda

    pela condensao agradvel e simplificadora (MORIN, 1977, p. 54). Os processos da vulga-

    rizao so: simplificao, modernizao, maniqueizao e atualizao. Assim, as obras da

    cultura culta so aclimatadas cultura de massa, para torn-las mais facilmente consum-

    veis.

    Pelo carter visual, a cultura de massa tambm reencontra o carter da cultura pr-

    impressa e folclrica da presena viva, das danas e jogos. No entanto, ela separa fisica-

    mente espectadores e atores (Op. cit., p. 62). O pblico j no pode mais participar do es-

    petculo, a no ser pela teleparticipao. A cultura folclrica era do hic et nunc (aqui e ago-

    ra).

    A cultura urbana popular conserva alguns traos da cultura folclrica. Apesar de

    no ter razes num passado longnquo, ela tem grias e relaes de vizinhana, o espao

    pblico da taverna, do pub. As culturas urbana popular e folclrica tm a interferncia de

    outras culturas como a nacional, a crist, a socialista. Mas a cultura industrial que desa-

    grega efetivamente as culturas do hic e do nunc. Ela tende ao pblico indeterminado. No

    possui razes, mas uma implantao tcnico-burocrtica (MORIN, 1977, p. 64).

    Mas assim como a cultura de massa se apropria de contedos da cultura culta, ela se

    apropria tambm do folclore e do popular. O processo de apropriao, no entanto, dife-

    rente: a universalizao dos contedos. O folclore do Oeste americano, por exemplo, vira o

    4 A vulgarizao definida como transformao tendo em vista a multiplicao, segundo os padres da indstria da cultura de massas (MORIN, 1977, p. 54).

    Fernanda Dutra | Cultura de massa e outras culturas

  • 83

    western. O slapstick comedy londrino vira a comdia de O Gordo e O Magro, por exemplo

    (Op. cit., p. 64).

    Um verdadeiro cracking analtico transforma os produtos naturais em produtos cultu-rais homogeneizados para o consumo macio. Em outras palavras, certos temas folclri-cos privilegiados so mais ou menos desintegrados a fim de serem mais ou menos inte-grados no novo grande sincretismo. (MORIN, 1977, p. 65)

    O novo grande sincretismo criaria uma cultura de lazer, em que a principal preocu-

    pao o consumo e a realizao dos desejos pessoais. A concluso de Morin de que a

    cultura de massas contribui para enfraquecer todas as instituies intermedirias desde a

    famlia at a classe social para constituir um aglomerado de indivduos a massa ao ser-

    vio da supermquina social (MORIN, 1962 apud WOLF, 1987, p. 105).

    3. O hibridismo cultural

    Com uma histria de pesquisas de denncia e ao, os estudos latino-americanos do

    fim dos anos 80 e da dcada de 90 se voltam s pesquisas sobre mediao e hibridao,

    repensando as relaes do popular e do culto com o massivo. A influncia dos Estudos Cul-

    turais ingleses ocorre por j existir uma linha de pesquisas com o resgate da cultura popular

    e uma crtica diviso elitista da alta e da baixa cultura (BERGER, 2001, p. 269).

    Em Culturas Hbridas, de Garca Canclini, no se fala da cultura de massas de for-

    ma isolada, pois o autor acredita que

    O culto, o popular e o massivo no esto onde estamos habituados a encontr-los. ne-cessrio demolir essa diviso de trs pavimentos, essa concepo em camadas do mun-do da cultura e averiguar se sua hibridao pode ser lida com as ferramentas das disci-plinas que os estudam separadamente: a histria da arte e a literatura se ocupam do culto; o folclore e a antropologia, consagrados ao popular; os trabalhos sobre comuni-cao, especializados na cultura massiva. Precisamos de cincias nmades, capazes de circular pelas escadas que ligam esses pavimentos. (GARCA CANCLINI, 1998, p. 19)

    O autor afirma que o mundo ps-moderno5 no concebe essa diviso rgida entre as

    culturas na poca da globalizao, em que as identidades fixadas em elementos nicos de

    uma comunidade tnica ou nacional se tornam instveis (GARCA CANCLINI, 1997, p. 15).

    As identidades modernas eram territoriais e quase sempre monolingsticas. Por outro

    lado, as identidades ps-modernas so transterritoriais e multilingsticas (Op. cit. p. 35).

    5 Garca Canclini coloca claramente a sua concepo do termo em Culturas Hbridas: concebemos a ps-modernidade no como uma etapa ou tendncia que substituiria o mundo moderno, mas como uma ma-neira de problematizar os vnculos equvocos que ele armou com as tradies que quis excluir ou superar para constituir-se (GARCA CANCLINI, 1998, p. 28).

    Crtilo: Revista de Estudos Lingsticos e Literrios. Patos de Minas: UNIPAM, (1): 57-69, ano 1, 2008

  • 84

    A fragmentao da sociedade e da identidade contribuiu para a formao das cultu-

    ras hbridas, formas novas de cultura que misturam elementos das culturas popular, culta e

    massiva. Garca Canclini seleciona alguns aspectos poltico-culturais que refletem a socie-

    dade fragmentada e contribuem na formao das culturas hbridas.

    a) A teleparticipao A expanso urbana e o xodo rural incharam as cidades latino-americanas, como a

    cidade do Mxico e So Paulo. Mas, ao contrrio do que se imaginava, viver numa cidade

    grande no significa se tornar annimo, parte da massa. O que se observa a tendncia de

    buscar na intimidade domstica, formas seletivas de sociabilidade (CANCLINI, 1998, p.

    286). Assim, o espao pblico da modernidade no mais onde se exerce a cidadania. Para

    saber o que ocorre na cidade, a populao precisa se informar pela mdia, o que enfraquece

    a mobilizao social e aumenta a fragmentao da sociedade. Segundo o autor, as ditaduras

    teriam tornado essa transformao ainda mais radical.

    b) Descolecionar A desarticulao do espao pblico e do urbano ps (...) em dvida que os sistemas

    culturais encontrem sua chave nas relaes da populao com certo tipo de territrio e de

    histria que prefigurariam em um sentido peculiar os comportamentos de cada grupo

    (GARCA CANCLINI, 1998, p. 302). Assim, colees e museus nos moldes tradicionais perde-

    ram o sentido. Museus foram institudos como uma forma de consolidar a compreenso da

    cultura culta e folclrica, a identidade nacional (Op. cit., p. 303). Mesmo no espao urbano

    se pode observar o descolecionamento6: se antes as ruas seguiam estilos arquitetnicos bem

    definidos, hoje em dia nota-se uma mistura de estilos de vrias pocas.

    Garca Canclini tambm nota que, atualmente, cada usurio pode montar sua cole-

    o, por exemplo, gravando discos com msicas de jazz e ax. Os dispositivos de reprodu-

    o, tais como fotocopiadoras, o videocassete, os videoclipes e os videogames, so meca-

    nismos em que as colees se perdem e se reestruturam imagens e contextos.

    O ponto principal dos descolecionamentos no permitir a vinculao rgida das

    classes sociais com os estratos culturais (GARCA CANCLINI, 1998, p. 309), contribuindo com

    o processo de hibridao cultural.

    c) Desterritorializao Desterritorializao a perda da relao natural da cultura com os territrios geo-

    grficos e sociais, e reterritorializao a relocalizao territorial relativa, parcial, das ve-

    lhas e novas produes simblicas. Os dois processos so contemporneos globalizao e

    intensa onda de migrao.

    6 Descolecionamento o termo utilizado por Garca Canclini em Culturas Hbridas, como substantivo do verbo descolecionar. Ou seja, com o sentido de fim das colees.

    Fernanda Dutra | Cultura de massa e outras culturas

  • 85

    As mudanas na produo de bens culturais, que, seguindo o sistema capitalista,

    globalizaram-se, levaram os produtos dissociao dos locais. O filme Babel (2006), por

    exemplo, dirigido pelo mexicano Alejandro Gonzlez Irritu e falado em ingls, rabe,

    francs, espanhol, japons e a lngua de sinais japonesa.

    As migraes tambm contriburam para o surgimento de culturas hbridas. Quan-

    do em pases diferentes, os migrantes no deixaram de produzir e se relacionar, tanto entre

    si, quanto entre os locais e os de sua terra natal (Op. cit., p. 312). Com a intensificao das

    migraes, tambm houve um processo de resistncia dos locais para proteger a cultura

    popular e defender a soberania. Garca Canclini cita o exemplo da cidade mexicana de Tiju-

    ana, que faz fronteira com os Estados Unidos. Em uma pesquisa realizada por ele, detectou-

    se que os mesmos que elogiam o carter cosmopolita da cidade, queriam fixar signos de

    identificao, rituais que os diferenciem dos que esto s de passagem (GARCA CANCLINI,

    1998, p. 325). Esse fenmeno mostra que as culturas hbridas no vo acabar com as cultu-

    ras populares.

    A perspectiva ps-moderna da fragmentao e da multiplicidade permite lidar de

    forma multifocal com as tenses criadas pela desterritorializao e reterritorializao

    (GARCA CANCLINI, 1998, p. 326).

    Cultura de Massas no Sculo XX uma obra conhecida pela relativizao do poder

    da mdia sob a sociedade, ao reconhecer que esta tambm contribui na formao da cultura

    de massa e que ela no autnoma (SILVA, 2001, p. 176). Ainda assim, a cultura de massas

    uma ameaa s culturas tradicionais (MORIN, 1977, p. 16). Quase 30 anos depois, Garca

    Canclini defende que a cultura de massas no dominou as outras, mas, junto com as cultu-

    ras popular e culta, criou uma nova linha hbrida.

    O carter homogeneizador da mdia est presente nos comentrios de Garca Can-

    clini, mas ele no acredita na supresso das diferenas, como Morin. Inclusive sugere que

    os estudos de recepo sejam feitos analisando como os diferentes grupos sociais recebem a

    mesma mensagem (GARCA CANCLINI, 1997, p. 142).

    O conceito de receptor tambm muda. Garca Canclini no suprime o carter indus-

    trial da produo cultural, mas chama o receptor de consumidor, assim como Morin. Mas,

    ao contrrio deste, Garca Canclini v o poder de ao do receptor. O consumo compre-

    endido pela racionalidade econmica. inegvel que as propagandas procurem induzir ao

    consumo, mas a ao no arbitrria (GARCA CANCLINI, 1997, p. 53).

    Partindo da idia de que a cidadania praticada pela teleparticipao, coerente

    nos sentirmos como consumidores ainda quando se nos interpela como cidados (Op. cit.,

    p. 14). A perspectiva que o autor enxerga para mudar a conjuntura atual ligar o exerccio

    da cidadania s atividades que fazem com que nos sintamos parte das redes sociais, ou

    seja, ligar a cidadania ao consumo (GARCA CANCLINI, 1997, p. 20).

    Tanto Edgar Morin quanto Nstor Garca Canclini fazem a sociologia do presente.

    Morin analisa o mundo moderno, bipolar, e escreve em plena Guerra Fria de um pas que

    Crtilo: Revista de Estudos Lingsticos e Literrios. Patos de Minas: UNIPAM, (1): 57-69, ano 1, 2008

  • 86

    sente sua hegemonia econmica e cultural ameaada pela ascenso dos Estados Unidos.

    Garca Canclini analisa o mundo ps-moderno, multipolar, e escreve do Mxico, saindo da

    recesso da dcada de 80 e se tornando um pas emergente. O desejo de mostrar a capaci-

    dade de resistncia e tambm de assimilao das culturas hegemnicas leva ao desenvolvi-

    mento de pesquisas de recepo que valorizam o receptor. Assim, o ttulo do livro de Edgar

    Morin cabe ao contedo, medida que pe uma data: Cultura de Massas no Sculo XX.

    Lanados no fim do sculo XX, os livros de Garca Canclini apontam a conjuntura do sculo

    atual: um mundo de identidades fragmentadas e culturas hbridas.

    Referncias

    BERGER, Christa. A pesquisa em comunicao na Amrica Latina, in: HOHLFELDT, Antoni-o, MARTINO, Luiz C.; FRANA, Vera Veiga (orgs.). Teorias da Comunicao: conceitos, esco-las e tendncias. Petrpolis: Vozes, 2001. ESGOTESGUY, Ana Carolina. Os estudos culturais, in: HOHLFELDT, Antonio, MARTINO, Luiz C.; FRANA, Vera Veiga (orgs.). Teorias da Comunicao: conceitos, escolas e tendncias. Petrpolis: Vozes, 2001. GARCA CANCLINI, Nstor. Consumidores e Cidados: conflitos multiculturais da globaliza-o. Rio de Janeiro: Editora UFRJ, 1997. _____. Culturas Hbridas: estratgias para entrar e sair da modernidade. So Paulo: E-dusp, 1998. MORIN, Edgar. Cultura de massas no sculo XX: o esprito do tempo. Rio de Janeiro: Fo-rense-Universitria, 1977. SILVA, Juremir Machado da. O pensamento contemporneo francs sobre a comunicao, in: HOHLFELDT, Antonio, MARTINO, Luiz C.; FRANA, Vera Veiga (orgs.). Teorias da Comu-nicao: conceitos, escolas e tendncias. Petrpolis: Vozes, 2001. WOLF, Mauro. Teorias da Comunicao. Lisboa: Editorial Presena, 2002.

    Fernanda Dutra | Cultura de massa e outras culturas