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1 INTRODUÇÃO AO ECLESIASTES Luciano R. Peterlevitz 1 1 Luciano Robson Peterlevitz leciona matérias de Hebraico Bíblico e Antigo Testamento. Doutorando e Mestre em Ciências da Religião, na área de Bíblia, pela Universidade Metodista de São Paulo. Atualmente trabalha como Coordenador Acadêmico no Seminário Batista de Campinas, e pastoreia a Missão Batista Vida Nova, em Nova Odessa/SP.

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INTRODUÇÃO AO ECLESIASTES

Luciano R. Peterlevitz1

1 Luciano Robson Peterlevitz leciona matérias de Hebraico Bíblico e Antigo Testamento. Doutorando e Mestre em Ciências da Religião, na área de Bíblia, pela Universidade Metodista de São Paulo. Atualmente trabalha como Coordenador Acadêmico no Seminário Batista de Campinas, e pastoreia a Missão Batista Vida Nova, em Nova Odessa/SP.

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INTRODUÇÃO

Jó, Salmos, Provérbios, Eclesiastes e Cântico dos Cânticos são denominados de livros poéticos. Entretanto, dentre os poéticos do Antigo Testamento, Eclesiastes é bastante singular. Não encontramos nesse livro a paixão e dramaticidade de Jó; a súplica e o louvor, muito comuns nos Salmos, estão totalmente ausentes em Eclesiastes. A doutrina proverbial de Provérbios, representante da antiga sapiencialidade israelita, não faz parte do propósito do autor do livro. A ternura e o amor de Cântico dos Cânticos estão longe de atrair o escritor de Eclesiastes. Na verdade, na contemplação da fugacidade da vida, o livro assume tons bastante pessimistas.

Por meio de suas afirmativas um tanto céticas, e às vezes até contraditórias, o Eclesiastes propõe uma nova maneira de entender o significado da vida. Isso é muito significativo para a nossa contemporaneidade, que frustradamente busca pelo propósito da vida. Ed René Kivitz comenta, em um de seus livros, que em frente ao cemitério do Araçá, em São Paulo, alguém pichou: “Olhe ao redor. Estranho, né?”. Aquele grafiteiro não se referia à quietude do lado de dentro do muro, mas à turbulência e à agitação ao lado de fora. Queria respostas sobre o que todo mundo faz. As questões, para aquele grafiteiro, eram: Por que esta correria? Por que estamos vivos? Certamente o autor de Eclesiastes tem muito a dizer sobre essas questões. Pois o livro procura pelo sentido último da existência humana.

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1. ANÁLISE GERAL

1.1 Título do livro

O livro recebe o nome de “Eclesiastes”, uma palavra de origem grega, que oriunda - se de ekklesia, “assembléia”. No hebraico, o livro é intitulado Qohelet, que tem o mesmo sentido do termo grego: “orador”, “pregador”. Esta palavra hebraica origina-se de qahal, “reunir, congregar”. Provavelmente Qohelet “significava alguém que convocava ou, mais provavelmente, quem falava a um encontro de pessoas, e daí (grego ekklesiastes) o conhecido título em português ‘o Pregador’.”2

É provável que Qohelet signifique “aquele que reúne”, e, portanto, o Qohelet seria alguém que reuniu alunos para aprender; reuniu ditos e reflexões, contidos no livro.

1.2 Autoria e data

Muitos estudiosos atribuem o livro de Eclesiastes a Salomão. Supostamente algumas evidências no livro apontam à autoria salomônica:

1) O autor identifica-se como “filho de Davi” (1.1).

2) A sabedoria do autor se coaduna com a sabedoria de Salomão (1.12, 12.9,11; cf. 1Rs 3.12; 4.29-34).

3) As riquezas e as conquistas do Coélet3, descritas em 2.4-9, se encaixam perfeitamente na grandeza do reinado de Salomão.

Assim, a Salomão são atribuídos três livros poéticos: Cântico dos Cânticos, Provérbios e Coélet. Aludindo a isso, um rabino afirmou4:

Quando um homem é jovem, canta canções de amor (Cântico dos Cânticos)

Quando um homem se torna adulto, enuncia máximas de vida (Provérbios)

Quando um homem fica velho, fala da vaidade das coisas (Coélet)

2 FLEMING, Donald C. “Eclesiastes”. Em FRUCE, F.F (Editor). Comentário Bíblico NVI – Antigo e Novo Testamento. São Paulo: Editora Vida, 2009, p.958. 3 Seguindo a sugestão de vários hebraístas, transliteraremos o termo Qohelet por Coélet. 4 RAVASI, Gianfranco, Cântico dos Cânticos. São Paulo: Paulinas, 1988, 203p. (Pequeno Comentário Bíblico – AT), p.21.

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Entretanto, existem outras evidências que contradizem a autoria salomônica:

1) Segundo os comentaristas da Bíblia de Estudo Almeida, “o hebraico característico da sua redação e as idéias nele expostas correspondem a uma época posterior”.5 Para Lasor, Hubbard e Bush, “tanto o vocabulário quanto a estrutura das frases são pós-exílicos, mais próximos do estilo da Mishná que qualquer outro livro do Antigo Testamento”6.

2) É verdade que as experiências do Coélet lembram as experiências de Salomão (2.4-9). Mas a nota a seguir instiga à reavaliação da autoria salomônica de Eclesiastes: “(...) a afirmação em 1.16 e 2.9 de que ele ultrapassou todos que os que governaram Jerusalém entes dele não seria significativa se seu pai fosse o único antecessor. Também se nota que a linguagem do livro difere em vários aspectos da encontrada em outras obras de Salomão.”7

3) É verdade que o Coélet identifica-se como “sábio” (1.12; 12.9). Mas ele também reconhece a inacessibilidade da sabedoria (“... mas a sabedoria estava longe de mim”, 7.23), e também afirma que a sabedoria é vaidade (2.12-15).

4) O trabalho opressor condenado em Eclesiastes dificilmente se encaixa com a política escravista implantada por Salomão (4.1; 5.8; 8.9; 10.5-7; cf. 1Rs 4.20-28; 5.13).

Além destas considerações, é preciso considerar que a expressão “filho de Davi” não seria necessariamente uma alusão a Salomão, mas a qualquer descendente da linhagem de Davi. Nota-se que em nenhum lugar do livro o autor é chamado de Salomão.

Muitos comentaristas datam o livro no período helênico (cerca de 300 – 200 a.C), quando a Palestina passou a ser governada pelos Ptolomeus8, que exploravam o país mediante a exigência de pagamentos tributários. Neste caso, os mais prejudicados seriam os pequenos fazendeiros. Esses tributos eram efetuados não com produtos agropecuários (porcentagens da colheita ou dos rebanhos ovinos e bovinos), mas com uma taxa fixa em moeda corrente. Esse sistema tributário gerou uma grande crise na Palestina, onde uma das índoles principais era o distanciamento entre os pequenos proprietários e fazendeiros e a minoria de funcionários estrangeiros, da classe rica aristocrática, instalados no país. Os valores da lealdade e compaixão humanas foram ocupados pelos valores materialistas da riqueza. Muitos judeus sentiam-se impotentes de melhorar a situação. Pode-se situar o Coélet nesse contexto de incerteza e inquietação.

5 Sociedade Bíblica do Brasil. 1999; 2005. Bíblia de Estudo Almeida - Revista e Atualizada. Sociedade Bíblica do Brasil 6 LASOR, William S; HUBBART, David A.; BUSH, Frederic W. Introdução ao Antigo Testamento. Trad. Lucy Yamakami. 1ª Ed. São Paulo: Vida Nova, 1999, p.544. 7 HILL, Andrew E. & WALTON, J.H. Panorama do Antigo Testamento. São Paulo: Editora Vida, 2006, p.402. 8 Os Ptolomeus, que tinham por sobrenome “Lágidas”, são os descendentes de Ptolomeu I, um dos generais de Alexandre Magno. Após a morte de Alexandre, Ptolomeu I governou o Egito, a Palestina e a Fenícia. A Palestina ficou sob o domínio dos Lágidas até 200 a.C., quando passou a ser dominada pelos Selêucidas, da dinastia de Selêuco, outro general de Alexandre.

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Assim, o Coélet responde às crises econômicas de duas formas: de um lado, dirige-se ao seu povo, sugerindo a ele uma espiritualidade marcada por um rigoroso ascetismo. E de outro lado, “ataca os fundamentos intelectuais, a chamada ‘sabedoria’ da economia monetária helênica, que estava causando tamanha destruição na vida de seus companheiros”9.

Portanto, as experiências do Coélet podem ser identificadas com as de Salomão. Mas também existem boas evidências para datarmos o livro na época do helenismo, sendo assim bem posterior a Salomão. “Para concluir, não é impossível que Salomão seja Qohelet, mas as evidências opostas são suficientes para gerar dúvidas. Como as Escrituras não comentam o assunto, não podemos identificar Qohelet com certeza.”10

Alguns estudiosos sugerem que o Coélet pode ser um pseudônimo, ou seja, um anônimo que escreve como se fosse Salomão. Para Lasor, Hubbart e Bush, a identificação de Coélet com Salomão não objetiva enganar seus leitores, antes, produz um efeito literário.

“As palavras do cabeça do movimento de sabedoria de Israel teriam peso diante dos sábios a quem o Coélete queria corrigir. Além disso, o próprio Salomão talvez servisse como modelo da vida que o Coélet se esforçava por avaliar. A sabedoria, o prazer, a riqueza, a influência, as realizações eram atributos louvados pelos sábios. O autor não conseguiria oferecer melhor das limitações deles que no próprio caso de Salomão.”11

Assim, “Parece que o nosso autor seguiu a prática comum de se identificar com alguma pessoa importante para acrescentar peso ao seu argumento”12.

1.3 Um livro cético?

A canonicidade de Eclesiastes foi questionada por uma das vertentes da antiga tradição judaica, a escola de Shammai. O pessimismo e o humanismo foram notados no livro, não só por esta escola judaica, mas também por vários cristãos dos primeiros séculos da Igreja. “Ele é considerado livro difícil de interpretar, desorientador, até embaraçoso ou inconveniente, imbuído de mentalidade tacanha ou muito pessimista.”13

Mas as contradições encontradas no livro podem muito bem servir ao propósito do Coélet. É que ele utilizou-se de um estilo dialético, onde se faz uma afirmação e em seguida se contesta a mesma; justapõe-se o positivo e o negativo. Cito pelo menos dois exemplos:

9 CERESKO, Antony R. A sabedoria no Antigo Testamento: espiritualidade libertadora. Tradução Adail Ubirajara Sobral, Maria Stela Gonçalves. São Paulo: Paulus, 2004, p.102 (Bíblia e sociologia). 10 HILL, Andrew E. & WALTON, J.H. Panorama do Antigo Testamento, p.402. 11 LASOR, William S; HUBBART, David A.; BUSH, Frederic W. Introdução ao Antigo Testamento, p.545. 12 FLEMING, Donald C. “Eclesiastes”, p.959. 13 PRÉVOST, J. P. “Coélet”. Em: MONLOUBOU, Louis et alli. Os Salmos e Outros Escritos. Trad. Benôni Lemos. São Paulo: Paulus, 1996, p.193 (Biblioteca de Ciências Bíblicas 9).

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� Em 2.13-14a fala-se da vantagem da sabedoria sobre a insensatez, mas em seguida, nos v. 14b-15, contesta-se tal vantagem: “o sábio morre como o insensato” (v.16). � Em 3.12-13, Coélet exorta seus leitores a regozijar-se com a bondade da criação, desfrutando do trabalho, mas, em contraposição, ele já havia afirmado que o homem é incapaz de reter ou possuir qualquer lucro dos seus trabalhos (1.3, 14; 2.21).

Mediante esse estilo dialético, e considerando a crise que o povo judeu enfrentava na época helenista, Coélet elabora um convite para se caminhar com ele pelo caminho escuro, das incertezas. O povo já conhecia o Deus Uno, redentor e criador. Mas Coélet enfatiza o Deus que não pode ser conhecido por meras explicações teológicas (5.1-2). “Às vezes, tem-se de aprender a viver sem explicações e permitir que Deus fique livre para ser Deus.”14 Podemos chamar a “espiritualidade” do livro de “ceticismo”. Trata-se de uma espiritualidade que se rende ao inatingível, e renuncia a possibilidade do mais profundo desejo do coração humano: entender a vida (8.17).

Ademais, julgar o Coélet de pessimista é omitir suas considerações sobre a felicidade. Nas próprias passagens em que ele fala da vaidade, insere várias reflexões sobre a felicidade: 2.24; 3.12-13, 22; 5.18; 8.15; 9.7-9; 11.7-9. Coélet convida os leitores a saborearem a felicidade! Assim, ele escreveu “palavras agradáveis” (12.10).

1.4 Palavras chaves

Há seis palavras ou frases chaves, através das quais podemos condensar a mensagem de Eclesiastes:

1) “Vaidade”, hebel, 39x (33 x no restante do AT) 2) “Debaixo do sol”, tahath hashamesh, 29x, aludindo o que é terrestre, preso à terra. 3) “Deus”, Elohim, 40x, o Deus criador, Onipotente, infinito; não aparece “Adonai” ou “Javé”, o Deus pessoal da aliança. 4) “Sábio”, “Sabedoria”, hokhmah e hakam, 45x, cujo significado é um discernimento entre o bem e o mal. A sabedoria é uma prudência prática. 5) “Eternidade”, olam, 7 x (1.4; 1.10; 2.16; 3.11; 3.14; 9.6; 12.5). 6) “Trabalho”, ‘amal, “fadiga, trabalho árduo”, 38x.

14 CERESKO, Antony R. A sabedoria no Antigo Testamento: espiritualidade libertadora, p.104.

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1.5 Estrutura

Recorremos à estrutura adotada por Ivo Storniolo15:

I. Enquadramento (1.1-3) II. Cosmologia (1.4-11) III. Antropologia (1.12-3.15) IV. Sociologia 1 (3.16-4.16) V. Religião (4.17.5.6) VI. Sociologia 2 (5.7-6.10) VII. Ideologia (6.11-9.6) VIII. Ética (9.7-12.7) IX. Enquadramento (12.8)

Conclusão (acréscimos posteriores)

Primeiro epílogo (12.9-11)

Segundo epílogo (12.12-14)

Storniolo diz que Coélet elaborou seu livro dentro de uma estruturação tipicamente semita, ou seja, a estrutura concêntrica, formada nesse livro por nove elementos. Oito elementos são construídos ao redor de um centro, sendo que os quatro primeiros correspondem simetricamente aos quatro últimos, como indicamos acima. Reconhecendo algumas influências gregas em Eclesiastes, Storniolo afirma que a parte II corresponde à VIII, pois a ética é fundamentada pelo mundo físico. “Isso parece dizer que a ética deve ser, no mundo humano, o reflexo e a continuidade da ordem e equilíbrio da própria natureza.”16 A parte III corresponde à VII, pois grande parte das angústias humanas podem ser explicadas a partir da construção ideológicas que deturpam o valor do ser humano. As partes IV e VI também são correspondentes. De fato, essas partes tratam de uma sociologia que observa as desigualdades sociais: a “maldade no lugar da justiça” (3.16). Observa-se que 4.1-3 pode ser aproximado de 5.8-9.

A partir dessa estruturação, Storniolo nota que a Religião ocupa um lugar de destaque. Ela está “bem no centro da problemática social”, diz Storniolo.

Ainda sobre a estrutura de Eclesiastes, outros estudiosos atribuíram uma importância especial à repetição de palavras-chaves. O padrão estrutural do livro parece ser determinado pela palavra hebel, “vaidade”, que aparece 37 x. O número de versículos de cada metade do livro (1.1-6.9 e 6.10-12.14) é 111, ou três vezes trinta e sete. Ainda destaca-se que em cada refrão de 1.2 e 12.8 três vezes aparece o termo hebel. 15 STORNIOLO, Ivo. Trabalho e felicidade- O livro de Eclesitastes. São Paulo: Paulus, 2002, p.25 (Bíblia e cotidiano). 16 STORNIOLO, Ivo. Trabalho e felicidade- O livro de Eclesitastes, p.25.

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Após 12.8, vem o que alguns estudiosos chamam de calofão. “Ele era usado na literatura do Antigo Oriente Médio para apresentar mais detalhes sobre o autor e condensar o ensino do manuscrito ou na tábua (...) nada aqui reverte e nega a mensagem do livro ou corrige seu ensino.”17 Dessa forma, todas as afirmações de Eclesiastes devem ser lidas à luz do final livro, principalmente a partir do que é dito em 12.13:

“Teme a Deus e obedece aos seus mandamentos; porque este é o propósito do homem.” (Almeida Século XXI). O Coélet convida seus leitores a desfrutarem dos prazeres da vida. Mas isso não significa uma vivência desregrada e longe da vontade de Deus. Significa, sim, enxergar o temor a Deus como princípio da vida abundante e feliz.

1.6 Esboço:

Adotamos o esboço de Donald Fleming18:

I. ACEITE O QUE DEUS DÁ E DESFRUTE (1.1 – 4.16)

1) O mundo como parece (1.1-11) 2) A busca pelo sentido da vida (1.12 – 2.26) 3) Tudo acontece no tempo certo (3.1-15) 4) Não há ordem moral no mundo (3.16 – 4.3) 5) A futilidade das realizações (4.4-16)

II. TIRE O MÁXIMO DAS DIVERSAS CIRCUNSTÂNCIAS DA VIDA (5.1 – 10.20)

1) Conselhos sobre a religião (5.1-7) 2) A riqueza é inútil sem o contentamento (5.8 – 6.12) 3) A valor da sabedoria num mundo imperfeito (7.1-14) 4) Um conselho para se evitarem os extremos (7.15-29) 5) A conciliação é o caminho para a sobrevivência (8.1-9) 6) Não há justiça na vida (8.10-17) 7) Em vista da morte, tenha prazer na vida (9.1-12) 8) A sabedoria é melhor que a tolice (9.13 – 10.20)

17 HILL, Andrew E. & WALTON, J.H. Panorama do Antigo Testamento, p.407. 18 FLEMING, Donald C. “Eclesiastes”, p.960.

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III. TENHA UMA ATITUDE POSITIVA EM RELAÇÃO À VIDA (11.1 – 12.14)

1) Seja ousado, apesar das incertezas (11.1-8) 2) Usufruir a vida é uma responsabilidade (11.9 – 12.8) 3) Comentários finais (12.9-14)

2. CONTEÚDOS TEOLÓGICOS

2.1 A vaidade e a morte

Tudo é vaidade, ou melhor, “vaidade das vaidades” (1.2). A nota da Bíblia do Peregrino esclarece o sentido da expressão hebraica:

“O vocábulo hébel significa sopro, e, por translação o que não tem substância, o vazio o oco, nada. A construção é uma espécie de superlativo – como ‘cântico dos cânticos’ significa ‘o melhor cântico’. Poderíamos traduzir sopro ligeiro, suspiro leve, ou então, vazio completo, total falta de sentido, nada de nada...”19

Para Ivo Storniolo, o que Coélet “pretende é frisar a condição efêmera da vida humana: entre o passado que já se foi e o futuro completamente incerto, resta o momento fugitivo do presente, a única dimensão em que o homem pode realmente fruir a vida”.20

Portanto, “vaidade”, que é o termo chave do livro, aparece do início (1.2) ao fim (12.8), alude às coisas ilusórias, que ao invés de conferir significado à vida, proporciona decepção.

Assim, Coélet advoga que a felicidade não está relacionada às circunstancias imediatas da vida. Ela não se constrói a partir de conquistas pessoais. Aliás, essas conquistas nada apontam senão à frustrante busca da felicidade não conquistada por elas. Oscar Wilde tinha razão: “neste mundo só há duas tragédias – uma é conseguir o que se quer, a outra é conseguir.”

“Tudo é vaidade”, ou seja, “tudo é passageiro” (1.2; cf. Tg 4.14). Contrapondo-se a essa efemeridade, está a eternidade de Deus (3.14). Por isso, numa oração, alguém disse para Deus: “Os que têm tudo, e não a ti, riem-se daqueles que nada tem, a não ser a ti”.

Deus é eterno. As obras de Deus são eternas (3.14). Deus colocou a eternidade no coração do homem, entretanto, o homem não conhece as obras eternas de Deus (3.11). É uma grande ironia o homem, criado para a eternidade, prender-se demasiadamente nas coisas efêmeras existentes debaixo do sol. O homem tem a eternidade dentro de si, mas 19 Bíblia do Peregrino. São Paulo: Paulus, 2002, nota de rodapé de Ec 1.2. 20 STORNIOLO, Ivo. Trabalho e felicidade- O livro de Eclesitastes. São Paulo: Paulus, 2002, p.29 (Bíblia e cotidiano).

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deseja as coisas que não são eternas. Assim, a fugacidade ameaça engolir a eternidade. Segundo a obsersavaçao do Coélet, os elementos temporais (riqueza, sabedoria, poder) sempre ameaçam dominar com muito mais firmeza o coração do homem do que aquilo que é atemporal. Mas o ser humano só encontra sua verdadeira realização em Deus. Corrobora a isso a afirmação de C. S. Lewis: “Ora, um automóvel feito para andar com gasolina não andará bem com nenhum outro combustível; e Deus projetou a máquina humana para andar à base dele mesmo”.21

Da efemeridade (1.2-3), o Coélet passa à monotonia cósmica (1.5-7), que reproduz ou explica a monotonia de todas as coisas (v.4, 8-11). O ritmo cíclico da criação é observado: o sol que nasce e se põe, repetidamente; o vento que sopra e depois retorna ao seu ponto de partida; os rios que sempre correm para o mar, sem encher o mar. Tudo isso causa estranheza para o Coélet (v.8), levando-o à seguinte afirmativa: “O que foi será, e o que se fez, se fará novamente; não há nada de novo debaixo do sol.” (v.9). Esse ciclo repetitivo dos elementos naturais aponta à ilusão das conquistas humanas, pois, assim como para a natureza, há um destino (morte) marcado para a humanidade (2.14; 5.16; 6.10; 9.3).

É notável que o Coélet, antes de concluir seu livro afirmando a fugacidade da vida (12.8), descreve o processo de chegada da morte (12.1-7). “A descrição da morte, feita pelo Coélet, parece basear-se na narrativa de Gênesis 2, onde o sopro divino e o pó da terra foram combinados para formar o homem. Na morte, o processo parece reverter-se: ‘...e o pó volte à terra, como o era, e o espírito (sopro) volte a Deus, que o deu” (12.7)...”22

Aliás, no livro de Eclesiastes, os termos “morte” e “vaidade” (fugacidade) estão intimamente relacionados. Observando a inevitabilidade da morte, Coélet conclui que “tudo é vaidade” e corrida atrás do vento. A morte anula as realizações humanas, e iguala todos num mesmo nível (2.16; 3.20; 6.7; 9.2-3;). Por isso, em alguns casos, a morte é melhor do que a vida (6.3; 7.2).

2.2 O trabalho

Para o Coélet, o trabalho é bem melhor traduzido por opressão e ilusão (2.18-22, 24, 26; 3.10, 13; 4.4, 6, 8; 5.12, 16, 18, 19; 8.16-17; 10.15). O termo hebraico ‘amal, “trabalho”, também pode ser traduzido por “fadiga”, ou “trabalho árduo”. Sobre esta palavra, a Bíblia de Jerusalém comenta: “evoca, a maioria das vezes, trabalho penoso semelhante ao do escravo (cf. Dt 26.7), donde a fatiga, o sofrimento”23.

O autor de Eclesiastes não questiona o trabalho em si, mas aquele “em que tanto se esforça debaixo do sol” (1.2). Para muitos estudiosos, a expressão “debaixo do sol”

21 LEWIS, C. S. O cristianismo puro e simples. São Paulo: ABU Editora, 1989, p.27. 22LASOR, William S; HUBBART, David A.; BUSH, Frederic W. Introdução ao Antigo Testamento, p.555. 23 Bíblia de Jerusalém – Nova Edição, revista e ampliada. 5ª Impressão. São Paulo: Paulus, 2008, em nota de rodapé sobre de 1.3.

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alude a tudo aquilo que pertence ao âmbito terrestre material, em contraposição ao céu, onde Deus está. Entretanto, “debaixo do sol” parece referir-se principalmente ao

“árduo trabalho do camponês, que transpira e se queima sob o sol quente no campo. De sua produção depende a sustentação de todo o sistema nacional e também do sistema estrangeiro do Egito dos Ptolomeus, graças à exportação de vinho e óleo, produtos incentivados pelo monopólio estatal daquela época. A esse trabalho do campesinato é reservado o termo hebraico ‘amal...”24

Portanto, Coélet escreve para aqueles que são massacrados pelo trabalho. “O trabalho é a melhor e a pior das coisas: a melhor, se é livre; a pior, se é escravo” (É. C. Alain).

2.3 A bondade de Deus através da criação de Deus

Coélet contempla a bondade de Deus através da criação. Para ele, tudo o que Deus criou é bom. Alguns eruditos até relacionam o livro a Gn 1-3, afirmando que o Coélet deliberadamente alude aos primeiros capítulos de Gênesis. Destaca-se, assim, a bondade de Deus na criação (ver 2.24-25; 3.13; 5.19).

O autor de Eclesiastes desenvolve a teologia da graça de Deus numa sociedade que tentava sabotar a participação das pessoas nas bênçãos da criação divina. A sociedade do Coélet valorizava demasiadamente o lucro. A elite de Judá avantajava-se sobre os mais pobres, lhes arrancado a porção devida para o bom sustento da vida. É nesse cenário que o livro reafirma a “porção” devida a cada trabalhador (2.10, “recompensa” - ARA, cf. 2.21; 3.22; 5.18; 9.9). A “porção” (hebraico heleq) é a dádiva divina, para a qual todos tem acesso igualmente. “‘Porção’ contrasta com ‘proveito’ ou ‘ganho’ (yitron), outra palavra freqüente (1.3; 2.11, 13; 3.9; 5.9, 16 [Tm 8, 15]; 7.12; 10.10s.; cf. a palavra afim, motar, ‘vantagem’, 3.19). ‘Proveito’ descreve o saldo positivo que o esforço humano pode gerar; ‘porção’ retrata a parte concedida pela graça divina.”25

O termo hebraico yitron, que ocorre 18 vezes em Eclesiastes, também pode ser traduzido “lucro”, e origina-se no mundo comercial da antiga Judá. “Coélet parece se apropriar propositadamente da linguagem do comércio para subverter e sabotar a atitude e a mentalidade que o comércio pressupõe.”26 Para ele, a matemática é uma ciência imprecisa. Em 4.6, o “um” é na verdade “mais que” dois, ou, melhor que dois. Dessa forma, Coélet se opõe à sabedoria fundamentada nos cálculos da economia monetária, e conclama seus ouvintes a diminuírem o esforço pelo lucro e a gozarem mais da graça do Deus criador.

24 STORNIOLO, Ivo. Trabalho e felicidade- O livro de Eclesitastes, p.31. 25 LASOR, William S; HUBBART, David A.; BUSH, Frederic W. Introdução ao Antigo Testamento, p.555. 26 CERESKO, Antony R. A sabedoria no Antigo Testamento: espiritualidade libertadora, p.105.

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Donald C. Fleming afirma corretamente, sobre o Coélet: “Ele não afirma ter encontrado a resposta para o problema do sofrimento e do mal, mas mesmo assim está seguro de que Deus é um Criador bom, e que, no desfrutar dos presentes dados por ele, o homem pode encontrar ao menos algum significado na vida (3.11ss).”27

2.4 A felicidade como dom de Deus

As observações de Coélet apontam que a felicidade não se constrói a partir de realizações pessoais, nem se encontra nos prazeres terrestres. Heráclito de Éfeso disse acertadamente que se a felicidade estivesse nos prazeres do corpo, diríamos felizes os bois, quando encontram ervilhas para comer.

Na verdade, a felicidade é um dom de Deus (2.25; 3.13; 5.18). Em 2.26 lemos que Deus “dá sabedoria, conhecimento e felicidade ao homem”. A raiz do verbo hebraico natan, “dar”, aparece várias vezes no livro de Eclesiastes, tendo Deus por sujeito. Comentando sobre 2.24-26, relacionando esses versos com os versos antecedentes, Storniolo afirma:

“A felicidade até agora havia sido procurada como fruto de riquezas e esforços do homem. A partir de agora ela é percebida dentro de um novo cenário, e é descoberta como dom de Deus.”28 É notável que uma vida prazerosa é um “dom” de Deus; “dom” é a tradução do hebraico mattah, “presente”, “recompensa” (cf. 3.13; 5.19).

É curioso que, conforme notamos acima na estrutura de Eclesiastes, a Religião ocupa o lugar central no livro. Mas a felicidade não está nos valores religiosos, nas promessas e nos votos (cf. 5.1-6). É que “no contexto da filosofia de Qohélet da felicidade, de explicitar que Deus, como doador de todas as dádivas da felicidade e como aquele que torna mais uma vez possível a experiência da própria felicidade (5.18), é o absolutamente indisponível”.29

“A mensagem de Eclesiastes é que a vida a ser buscada é centrada em Deus. Os prazeres não satisfazem de forma duradoura, podem ser desfrutados como dons divinos.”30

Há de se considerar, também, que a verdadeira felicidade não advém do exercício da filosofia. Essa afirmação é muito importante no contexto do Coélet, em que a filosofia grega estourava como proposta para as respostas existências do ser humano. “Os filósofos helenistas eram da opinião de que o ser humano pode alcançar a felicidade unicamente pelo esforço próprio, mais precisamente desvalorizando tudo o que é inatingível.”31

27 FLEMING, Donald C. “Eclesiastes”. p.958. 28 STORNIOLO, Ivo. Trabalho e felicidade- O livro de Eclesitastes, p.51. 29 SCHWIENHORST-SCHÖNBERGER, Ludger. “O livro do Eclesiastes (Qohélet)”, em ZENGUER, Erich e outros autores. Introdução ao Antigo Testamento. Tradução de Werner Fuchs. São Paulo: Edições Loyola, 2003, p.339 (Coleção Bíblica Loyola, 36). 30 HILL, Andrew E. & WALTON, J.H. Panorama do Antigo Testamento, p.405. 31 SCHWIENHORST-SCHÖNBERGER, Ludger. “O livro do Eclesiastes (Qohélet)”, p.339.

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Portanto, a felicidade não é algo para ser conquistado pelo homem, mas é algo para ser doado por Deus. O foco não está na alegria em si, mas Naquele que é a fonte da alegria (2.24).

John Piper pergunta: O que Deus poderia dar para o nosso prazer que prova que Ele é extremamente amoroso? Piper responde: “Há apenas uma resposta possível: ele mesmo. Se ele nos priva da contemplação dele e da sua comunhão, não importa o que ele nos dê, não estará amando.”32 O mesmo autor ainda afirma: “A felicidade de Deus em Deus é a base da nossa felicidade.”33

Mas, é também notável que o Coélet convida seus leitores a aproveitarem das alegrias da vida (5.18; 9.9). Isso é um alerta à teologia cristã da ressurreição futura, pois o Coélet exorta a “não desvalorizar a ‘vida presente’ à custa da ‘vida no além’”.34

32 PIPER, John. Teologia da Alegria – A plenitude da satisfação em Deus. São Paulo: Shedd, 2001, p.35. 33 PIPER, John. Teologia da Alegria – A plenitude da satisfação em Deus, p.37. 34 SCHWIENHORST-SCHÖNBERGER, Ludger. “O livro do Eclesiastes (Qohélet)”, p.340.