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Agriculturas - v. 5 - n o 3 - setembro de 2008 39 Dra. Ana Maria Primavesi: a professora de todos nós Manoel Baltasar Baptista da Costa m fins dos anos 70, se constituía na Associação dos Engenheiros Agrônomos do Es- tado de São Paulo – AEASP o Gru- po de Estudos de Agricultura Alter- nativa (GAA), do qual participavam agrônomos, estudantes, físicos, ar- tistas, intelectuais, militantes do movimento ambientalista, dentre muitos outros simpatizantes. Com o objetivo de buscar alternativas para o modelo agrícola dominante, o grupo se pautava pela crí- tica ao padrão tecnológico da Revolução Verde, que já naquele momento, decorridas menos de duas décadas de sua implementação no país, provocara sérios efeitos nega- tivos. Estudos comprovavam, entre outros dados alarman- tes, elevados teores de resíduos de agrotóxicos (organo- clorados) no leite materno; acentuada degradação do solo (para cada quilo de soja exportada se perdiam dez quilos de solo com a erosão); e a destruição irreversível dos recursos naturais (solo, flora e água) com a expansão da fronteira agrícola e a mecanização intensiva. Constatávamos dessa forma o grande equívo- co de o país adotar um padrão tecnológico capital-inten- sivo desenvolvido para atender aos interesses do comple- xo industrial petro-químico-mecânico que, com o fim da Segunda Guerra Mundial, ficara ocioso em função da per- da do mercado dos artefatos militares. No entanto, naquela época praticamente inexistia no Brasil a preocupação com a busca de alterna- tivas que pudessem minimizar ou superar os impactos eco- lógicos e sociais, até esse momento pouco diagnostica- dos, produzidos pelo padrão tecnológico em rápida ex- pansão. Diante desse contexto, o modelo técnico da Re- volução Verde era fomentado pelo Estado brasileiro sem resistências organizadas por parte da sociedade civil. E Foto: Sakae Kinjo

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Agriculturas - v. 5 - no 3 - setembro de 2008 39

Dra. Ana Maria Primavesi:a professora de todos nós

Manoel Baltasar Baptista da Costa

m fins dos anos70, se constituíana Associação

dos Engenheiros Agrônomos do Es-tado de São Paulo – AEASP o Gru-po de Estudos de Agricultura Alter-nativa (GAA), do qual participavamagrônomos, estudantes, físicos, ar-tistas, intelectuais, militantes domovimento ambientalista, dentremuitos outros simpatizantes.

Com o objetivo de buscar alternativas para omodelo agrícola dominante, o grupo se pautava pela crí-tica ao padrão tecnológico da Revolução Verde, que jánaquele momento, decorridas menos de duas décadas desua implementação no país, provocara sérios efeitos nega-tivos. Estudos comprovavam, entre outros dados alarman-

tes, elevados teores de resíduos de agrotóxicos (organo-clorados) no leite materno; acentuada degradação do solo(para cada quilo de soja exportada se perdiam dez quilos desolo com a erosão); e a destruição irreversível dos recursosnaturais (solo, flora e água) com a expansão da fronteiraagrícola e a mecanização intensiva.

Constatávamos dessa forma o grande equívo-co de o país adotar um padrão tecnológico capital-inten-sivo desenvolvido para atender aos interesses do comple-xo industrial petro-químico-mecânico que, com o fim daSegunda Guerra Mundial, ficara ocioso em função da per-da do mercado dos artefatos militares.

No entanto, naquela época praticamenteinexistia no Brasil a preocupação com a busca de alterna-tivas que pudessem minimizar ou superar os impactos eco-lógicos e sociais, até esse momento pouco diagnostica-dos, produzidos pelo padrão tecnológico em rápida ex-pansão. Diante desse contexto, o modelo técnico da Re-volução Verde era fomentado pelo Estado brasileiro semresistências organizadas por parte da sociedade civil.

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As informações que inicialmente subsidiavamo GAA vinham na maioria das vezes do exterior, onde seexpandiam os movimentos de agricultura alternativa: agri-cultura biológica na França; agricultura orgânica na In-glaterra e nos EUA; agricultura biodinâmica na Alema-nha e Suíça; agricultura natural no Japão; assim como aspráticas das comunidades rurais surgidas no bojo de mo-vimentos de contracultura.

Foi nesse contexto, por intermédio de DedBourbonnais, que tivemos o primeiro contato com a Dou-tora Ana Maria Primavesi. Ela havia se mudado recente-mente para São Paulo após ter se aposentado da Univer-sidade Federal de Santa Maria (RS), onde lecionara desdeque chegara ao Brasil procedente da Áustria.

Com sua simplicidade, competência e partici-pação ativa, a Dra. Primavesi rapidamente ganhou o res-peito e a admiração de todos que tiveram o imenso privi-légio de conviver por muitos anos com ela. Portadora deconceitos até então desconhecidos na orientação da pro-blemática do manejo e da conservação dos solos brasilei-ros, ela introduziu enfoques inovadores para abordar apedologia a partir de uma perspectiva ecológica. Até en-tão, o manejo da fertilidade dos solos era abordado deforma reducionista e compartimentada e centrava-se ba-sicamente nas práticas de mobilização intensiva do solo eno emprego de adubos sintéticos com elevada concen-tração e solubilidade de nutrientes, sobretudo o NPK (ni-

trogênio, fósforo e potássio). A Dra. Primavesi criticavaessa orientação restrita, dada a importância dosmicroelementos na eficiência produtiva e na sanidade ve-getal. Assinalava os prós e os contras das distintas formase fontes de nutrientes, sua eficiência e aproveitamentopelas plantas, sua ciclagem no ambiente, seus impactossobre a biologia do solo. Ao tratar desse assunto, alertavapara o fato de que a fertilidade do solo não poderia sercompreendida apenas por suas características químicas,já que é intrinsecamente ligada a fenômenos que tambémse relacionam às propriedades físicas e biológicas. Numaépoca em que a importância da dinâmica biológica dossolos era em larga medida ignorada pela pedologia con-vencional, ela enfatizou a relevância da biocenose1 na efi-ciência produtiva dos sistemas agrícolas nos trópicos ba-seados no manejo e na reciclagem da biomassa.

Do ponto de vista edáfico, a Dra. Primavesiapontava para as complexas relações entre o solo, a plantae o clima, sendo este último o determinante principal dascaracterísticas distróficas e de acidez que predominam nossolos tropicais. Com isso, chamava a atenção para a distin-ção entre as características climáticas das regiões mais friase as dos trópicos e subtrópicos, estes últimos marcadospor chuvas torrenciais com elevada energia cinética e umacelerado intemperismo resultante da maior disponibilida-de de energia térmica, radiante e hídrica durante boa partedo ano. Diante dessa constatação, sua principal orienta-ção é que o manejo dos solos tropicais se baseie em proces-sos vegetativos, e não nas práticas mecânicas.

Outra contribuição no plano conceitual deenorme importância veio do fato de ela ter alertado deque na natureza não existem ervas daninhas, mas sim plan-tas adventícias e invasoras que devem ser percebidas comoindicadores ecológicos de grande utilidade para a com-preensão do estado das qualidades físicas, químicas e bi-ológicas dos solos.

Em 1979, o GAA/AEASP teve a honra de pro-mover o lançamento de seu livro Manejo ecológico dosolo: a agricultura em regiões tropicais, obra-prima dapedologia brasileira que viria revolucionar os conceitosaté então dominantes no Brasil e na América Latina.

Decorridas mais de três décadas da expansãodo Movimento de Agricultura Alternativa, que evoluiupara o movimento da Agroecologia, podemos sem riscoafirmar que muito desse avanço foi possível graças às con-tribuições da Dra. Ana Maria Primavesi.

Manoel Baltasar Baptista da CostaProfessor de Agroecologia

Universidade Federal de São Carlos (Campus de Araras)[email protected]

1 Biocenose: relação de vida comum de organismos que vivem em um mesmo ambi-ente (nota do Editor).